"Pílades"(Caderno Encenação de Luis Miguel Cintra)

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Caderno da Encenação e Adaptação por Luis Miguel Cintra (Teatro da Cornucópia) da peça "Pílades" de Pier Paolo Pasolini. Em cena entre 18 setembro – 5 outubro 2014 no Teatro Nacional São João (Porto), e 16 outubro – 9 novembro 2014 no Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa).

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  • traduo Mrio Feliciano e Luiza Neto Jorge

    cenografia e figurinosCristina Reisdesenho de luzCristina Reis, LuisMiguel Cintra com Rui Seabra

    interpretaoPlades Dinis Gomes Orestes Duarte GuimaresElectra Sofia MarquesAtena Rita DuroCoro Guilherme Gomes, Isac Graa (Ela no episdio 1), Jos Manuel Mendes, Lus Lima Barreto, LuisMiguel Cintra, SrgioCoragem (Rapaz no episdio 1 e Segundo Rapaz no episdio 2), Slvio Vieira (Rapaz nos episdios 1, 2 e 3)Eumnides Ana Amaral, Rita Cabao, Vnia RibeiroVelho (episdio 3) Jos Manuel MendesVelho (episdios 2 e 5) Lus Lima BarretoCampons (episdio 4) Bernardo NabaisEstrangeiro (episdio 3) Isac GraaServa (episdio 2) Rita CabaoUma Mulher (episdio 3) VniaRibeiroUma Mulher (episdio 5) Ana AmaralRapaz (episdio 8) Bernardo NabaisMensageiro (episdio 8) Isac GraaSoldado (episdio 8) Srgio CoragemVelho (episdio 8) Jos Manuel MendesVelho (episdio 9) Luis Miguel CintraRapaz (episdio 9) Slvio Vieira

    Teatro Nacional So Joo (Porto) 18 setembro 5 outubro 2014quasb 21:00 dom 16:00

    PilAdE (1966-1970)de PIeR PAoLo PASoLINI

    com colagem de excertos dapea Um Peixinho (1957) e de Projeto para um Espetculo sobre o Espetculo (1965), tambm dePier Paolo Pasolini

    encenao eadaPtaoLuIS MIGueL CINTRA

    Plades

    o tnSJ membro da

    Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa)16 outubro 9 novembro 2014qua 19:00 qui-sb 20:00 dom 16:00

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    assistncia de encenao econtrarregra Manuel Romano assistncia de cenrio e figurinos Linda Gomes Teixeira Lus Miguel Santos direo tcnica Jorge esteves construo e montagem de cenrio Joo Paulo Arajo, Abel Duarte montagem e operao de luz e som Rui Seabraguarda-roupa e conservao Mariado Sameiro Vilelacostureira Teresa Balbiassistncia de produo TniaTrigueirossecretariado da companhia AmliaBarrigaimagem para um cartaz CristinaReis

    na primeira parte do espetculo, ouvem-se inmeras verses da cano ma lamore no de Giovanni danzi, lanada por alida Valli no filme Stasera niente di nuovo de mario mattoli (1942), bem como trechos de Faccetta nera, na sua verso original de cano popular tocada num acordeo (tornada depois pelo fascismo em hino militar), e de nessuno ti ama de mondo marcio. na segunda parte, ouvem--se gravaes de poca de uma cano revolucionria (I ribelli della montagna)* e da cano que se tornou no hino nacional fascista italiano (Giovinezza), para alm de trechos de msica do sc. XVII para rgo (Girolamo Frescobaldi, Jan Pieterszoon Sweelinck e dietrich buxtehude) e talvez, porque no?, uma verso de ma lamore no por adriano celentano nos anos 70.

    coproduo Teatro da Cornucpia, TNDM II, TNSJ

    estreia 18Set2014 tnSJ (Porto)dur. aprox. 3:30 com intervaloM/12 anos

    * os rebeldes da montanha(letra emilio Casalini, msica Luciano Rossi)

    Sou partidrio.eu odeio quem no participa, eu odeio os indiferentes.Antonio Gramsci Scritti giovanili

    Fujamos depressa para as ridas montanhasdeixando as belas cidades entregues ao inimigoe em cada penhasco busquemos a liberdadecontra a escravido do cho trado.

    deixamos as casas, as escolas e oficinastransformamos os velhos celeiros em casernas por armas temos nas mos as bombas e a metralhae temperamos msculos e corao nesta batalha.

    Somos os rebeldes das montanhasvivemos de privaes e sofrimentosmas a f que nos acompanha ser no futuro a nossa lei.

    a justia a nossa disciplinaliberdade a ideia que se aproxima da cor do sangue a nossa bandeirapartidrios das cerradas fileiras ardentes.

    nas estradas assaltadas pelo inimigos vezes deixamos a pele esfarrapadasentimos desejo de desforrasentimos amor pela ptria nossa.

    Somos os rebeldes das montanhasvivemos de privaes e sofrimentosmas a f que nos acompanha ser no futuro a nossa lei.

    trad. Luis Miguel Cintra.

    o Teatro da Cornucpia uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal Secretrio de estado da Cultura/Direo-Geral das Artes e apoiada pela Cmara Municipal de Lisboa.

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    No te falarei, amigo, do que, em cantose episdios, e coros em vez de imagens sobrepostas,escreverei sobre o silncio de Plades,que se converter em revolta, e traio, contra o amigo da adolescncia de membro erguido,Orestes, o prncipe socialista, e da degenerescncia de certas Friaspurificadas que se retiram para os montes festivos no cu,e no cu perdidos; do regresso dessas Frias, no seu estado primitivo, cidade libertada, com elas, da monarquia; a regresso de Electra, ela, filha que amou o Rei seu pai,e que agora fascista como se fascista na sombria saudade de origensculpadas; da fuga de Plades para os montes das Friastransformadas em Eumnides, as deusas dos resistentes e do amor sbito que liga ao resistenteum outro resistente; da preparao da luta, e do regresso cabea de um exrcito irregular o misterioso exrcito das montanhas; da aliana entre a fascista Electra e Orestes, liberale partidrio de reformas na cidade agora opulenta;

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    Plades uma pea escrita no princpio dos anos 70, quando em Portugal houve pessoas que, tentando aliar-se aos militares que derrubaram o anterior regime, tentaram uma revoluo, com talvez as mesmas dvidas sobre o poder poltico e o mesmo amor aos que no mandam, aos que so explorados, aos que nesse tempo chamvamos povo, que os protagonistas desta tragdia.

    Quarenta anos depois, nem mesmo os que ainda no morreram e viveram esses tempos ousam j chamar povo aos explorados, por mais claro que seja que continuamos a ser explorados, e agora dizemos todos explorados (todos?), porque a diferena entre explorados e exploradores se esconde, os exploradores no tm cara, e quem nos governa um sistema sem corpo humano, sem cara, aceite por todos, um sistema poltico que inventa a mentira a que chamamos democracia, sistema este que no seu nome une as palavras povo e poder: o poder que anulou a cara das classes sociais e que descobriu a frmula para que a sociedade no pudesse reconhecer o inimigo, porque toda ela se tornou cmplice da encoberta explorao.

    Que faz um escritor que vai acrescentando captulos a um romance (Petrolio) que no chega a publicar, e nele se inventa a si prprio como industrial em crise pessoal de meia-idade, e chega ao ponto de escrever um captulo em que o protagonista descreve em pormenor o sexo de cada um dos vrios operrios a quem, hora de almoo, esse homem, numa variao da cena crstica do ecce homo, ou da maior blasfmia que uma mente humana j inventou para o mistrio da f crist, a eucaristia, de joelhos, toma na boca o sexo, como a hstia na celebrao religiosa? Que faz ele? Eu penso que tenta fazer poltica, viver com os outros, numa poca em que o pensamento talvez o campo de batalha possvel. Mas como, se se identifica com o lugar do patro, se escolhe para metfora de si prprio um dono de fbrica que ele prprio o poder? Humilhando-se desesperadamente. Ele procura desesperadamente a carne, e encontra ainda o corpo diferente de cada um, no sexo, essa funo em que, no orgasmo, reproduzido alis pelos msticos, est o ltimo reduto da sinceridade. Do puro ser? Est a livrar-se da culpa, a resgatar-se atravs de um amor humanidade, uma humanidade que se no reconhece como humana. Este poeta sabe o que a morte e ama tanto a vida que sabe que o amor vida o amor aos outros, todos, e sofre porque onde procura caras s v mscaras, disfarces, massificao.

    a mesma atitude que o leva, estando fechado em casa com outra das coisas que nos individualizam ainda, a doena, a reinventar a tragdia clssica, e no caso do Plades, a Oresteia, como no caso da Afabulao o dipo, matrizes da nossa civilizao como processos poticos para recuperar a humanidade perdida dessas tragdias clssicas, reescrevendo-as a partir de um ponto de vista que o da morte dos valores em que essas obras fundadoras

    este espectculoLuIS mIGueL cIntra

    da interveno de Atena que protege Electra e Orestes,filhos da Razo, e os une, fazendo calar o uivodas Frias antigas que vagueiampela cidade nova; da incerteza de Pladesdiante da cidade enriquecidaque j no precisa dele; do seu encontro, na noite da vspera da batalha, com o seu velho amigo da adolescnciaque se manteve jovem, belo como nos tempos dos seus primeiros amores quando as mulheres eram para eles desconhecidas; e das horas que passaram em conversas sobre o amore a alma que nada tm a ver com a realidade presente,e que os rene; e, por fim, j no final da noite,da solido de Plades, que, antes da alvorada, ter de tomar uma deciso.

    Pier Paolo Pasolini

    Excerto de WHO IS ME: Poeta das Cinzas.Suplem. de Teatro da Cornucpia, org. Afabulao: [Programa]. Lisboa: T. da C., 1999.

    Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

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    da civilizao so irreconhecveis pelo nosso tempo. Irreconhecveis naquilo que as tornava humanas, comeando pelo prprio espao onde so apresentadas, o tipo de linguagem utilizada, a difcil insero da arte na vida social. Escreve assumidamente para minorias, para teatros pequenos, obras que dificilmente podem ser recuperadas como entretenimento, de extenso impossvel, sem aco, puro verbo, como quem se atira para o abismo e faz disso um manifesto. Ser que o suicdio de Maiakovski em cabeas de educao catlica pode ser assim?

    Um tal amor pela humanidade, um tal sentido da responsabilidade, infelizmente tende a soar nostalgicamente aos que, como o nosso poeta, vivem a srio e estavam vivos nos anos que em Portugal se seguiram ao 25 de Abril de 74, para j no falar nos que viveram como Resistncia Poltica os anos anteriores. Esses, como velhos que, por definio, deixam de viver a vida antes do fim, dizem: Os jovens sabem l o que isso ! E eu lhes podia responder: Mas j encontrei muitos que se interessam por saber, tanto pelo menos quanto ns que, para nos sentirmos existir, o queremos guardar apenas como passado nosso. Pasolini parece quase crstico na sua atitude, e facilmente nos vem boca a palavra santo. No ser por acaso que quis dessacralizar a vida de Cristo no seu Evangelho Segundo So Mateus, que dedicou a Joo XXIII. Mas o que resultou, ao escolher corpos e pessoas ainda do povo, imaculados de civilizao industrial, e no s porque Deus escreve direito por linhas tortas, foi o contrrio, foi que o filme se tornou to religioso, to lmpido e to simblico, to metafsico, como as pinturas do Beato Fra Angelico, e com figuras que teimamos em chamar idealizadas, de to raras e puras que se tornaram. Isto porque algum ousou pensar nas caras dos homens, ousou pensar o Evangelho como uma histria de homens e reconhecer nas caras da gente do povo as caras das suas personagens, tanto como os pintores chamados primitivos, no meio da abstraco pura dos dourados, comearam a ousar pintar caras de gente.

    Esta minha devoo por Pasolini, e que aqui torno a confessar, reconheo que antiga e bastante pessoal. Mas foi dessas maravilhas do Angelico, que j em Heiner Mller nos tinham parecido pertinentes, que me voltei a lembrar quando vi a caixa ptica a que tnhamos chegado para o cenrio do espectculo, nascida da vontade de criar um estrado monumental para o espao onde se movem os protagonistas, com a sua nobre retrica, contra um fundo de nuvens pintadas mais uma vez pela Cristina (j tantas nuvens pintou e to bem que aposto que j as sabe de cor), com uma porta que um rasgo num cu de papel. Quando, na minha devoo especial tambm a um seu maravilhoso filme, Che cosa sono le nuvole?, reconheci naquele filme, no teatro de marionetas de Domenico Modugno, a mesma inspirao. essa pergunta que Ninetto Davoli faz, com a sua voz inconfundvel e a sua cara de absoluta inocncia, quando depois do seu dono o atirar para a lixeira, uma verdadeira vala comum, deitado pela primeira vez de barriga para o ar, olha o cu. Por coincidncia ou no, foi esse o ttulo que Tolentino Mendona, poeta e padre catlico, escolheu para as suas crnicas no Expresso. Est a par das minhas devoes e talvez por isso me oferea, do livro Estao Central, o seu poema sobre uma fotografia de Pasolini em Nova Iorque, que termina com estes versos:

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    do pensamento daqueles a quem chamei velhos portugueses de hoje. A mim interessa-me, gosto de pensar sobre tudo isto. E gostaria de o pensar mais com os outros. E julgo, afinal como Pasolini, que no treino de uma sensibilidade artstica, ou no acompanhamento e na prtica de uma arte difcil, e naquilo que de mais sincero os artistas produzem, que aqueles que ainda so cidados recentes podero encontrar a funo do teatro e ns o verdadeiro teatro que havemos de representar. Mais, assim que no teatro havemos de fazer poltica. E se houver quem diga que o tema antigo, que j nada disto interessa, eu digo: Pois no. E o culpado voc. E ele dir: No senhor, o sistema. Agora sim, digo eu, agora criaste um conflito dramtico. E no se pode extermin-lo? Se esperamos muito, ainda nos extermina a ns primeiro, adianta-se morte.

    Aqui, ao contrrio das peas de Brecht, o corao dos chefes o que se mostra. E, mais do que a luta de classes, a tragdia da conscincia quando pomos em causa a natureza do poder e a capacidade revolucionria das massas. Os heris trgicos aparecem exactamente como os polticos no so e teriam de ser. Para desejarmos que no fossem como so, que o poder no fosse uma mscara, que a sociedade fosse uma sociedade sem vencedores nem vencidos. Sem relaes de poder. O teatro que Pasolini defende no descritivo. No serve para nos informar. Quer provocar. E no prprio trabalho de construo do espectculo este texto revelou-se de facto como uma provocao, absolutamente vivo, motor de pensamento, criador de mais vida ao obrigar-nos a entrar em to pouco praticados dilemas da responsabilidade poltica. Aqui fica ao vosso dispor um objecto estranho, incmodo, que talvez o sistema que domina o nosso quotidiano como um permanente estado de stio venha a hostilizar (a nossa pouca disponibilidade de horrios, a hora de jantar e deitar, a canseira do dia-a-dia, o desconforto e tambm a ignorncia ou a falta de hbito de prticas culturais um tudo nada mais conceptuais). Agradeo, quer Direco do Teatro Nacional So Joo do Porto quer do Teatro Nacional D. Maria II de Lisboa, por terem tido a coragem de assumir a nossa escolha e de co-produzirem o espectculo, correndo talvez at maior risco que ns, que temos menos a perder. Mas, no contexto Europeu, Portugal acaba por ser quase sempre uma interessante excepo. E sei que os dois actuais directores dessas casas viveram e conviveram com a estranha realidade poltica desses anos 70. Talvez at tivessem visto a primeira encenao portuguesa no ACARTE e vibrado com a traduo de Mrio Feliciano e Luiza Neto Jorge que neste espectculo voltamos a adoptar. O tempo nem sempre desfaz. Tudo deixa um rasto na terra. No com a terra que riscou com o dedo molhado de saliva que Jesus cura os olhos do cego num dos seus milagres?

    O ltimo entrevistador de Pasolini falou-lhe assim: No so pose artstica coisas destas que nos pem tanto em tanto perigo que chegam a levar-nos a mortes prematuras. E regista o que Pasolini lhe diz poucas horas antes de morrer: Parece que dizem que eu tenho saudades da revoluo pura e directa feita pelos oprimidos, e que tem como objectivo tornarem-se livres e patres de si prprios. Diz-se que eu imagino que um momento desses ainda poderia acontecer na histria da Itlia e do mundo. Aquilo que de melhor produz o meu pensamento talvez possa vir a inspirar-me um dos meus

    No verso desta fotografia que me acompanha h tantos anosescrevi tambm uma frase sua sobre a blasfmiaque a santidade tem de serE ao balco deste caf, no longe de Times Squaredou comigo a pensarconfusamente em tudo isto

    Percebi que a nossa encenao do Plades voltava a parecer-se, como a da primeira Misso, com as vidas exemplares que os primitivos pintavam em quadradinhos por baixo da vida do santo, por mais que, no desamparo em que no nosso espectculo todos os episdios se geram, a outros possa lembrar a admirvel fantasia kitsch da pera de Pequim do tempo do camarada Mao Tsetung, com a mesma enfatizao dos protagonistas e sobretudo com a bandeira vermelha no cu azul ao som de hinos militares.

    Tenho, verdade, por Pasolini, e muitos outros me acompanham, uma admirao desmedida. Orgulho-me de ter representado e produzido na Cornucpia a sua Afabulao. Mas sei que, como muitos sentiro, seria de facto difcil encontrar pea mais desadequada que este seu Plades eficcia de programao e gesto que hoje pedida ao teatro em geral e muito em especial a um Teatro Nacional. Ou ser que basta a etiqueta vintage para j se poder comercializar nem que seja como antiguidade?

    O teatro interessou Pasolini como autor nuns meses em que escreveu praticamente todas as grandes peas. E apesar de muitas vezes, na Afabulao, nos termos lembrado das antigas tragdias, no Plades que nos parece evidente que, com matria to pouco comparvel daquele tempo, est a tentar fazer uma tragdia com caractersticas parecidas com as da Grcia antiga, uma tragdia j destinada ao fracasso, num momento (mas que dura eternidades) poltico contemporneo mas num tom literrio, elevado, o da pura filosofia. Parece apostado em provar que j no pode haver tragdias quando no sentimos o Teatro como um momento poltico por excelncia, tanto que os remorsos e as intrigas, que nas antigas eram expostas como matria pblica, nestas suas tragdias do poder so agora, pelo contrrio, camufladas em interminveis falas introspectivas. Mas Pasolini no quer entrar no mercado. Est interessado ou num combate com o inimigo, o pblico burgus, ou num encontro verdadeiro com um novo pblico revolucionrio e amigo. J no seu tempo havia dificuldade em encontrar um pblico de algum modo cmplice, que, como ele, vive a mesma problemtica mais ou menos sozinho e no desiste. As suas personagens de polticos, Orestes e Plades, ambos progressistas, no tm duplos nos polticos profissionais da realidade, como antes talvez no tivessem tambm tido. So porta-vozes de um discurso de dvidas e dilaceramentos da conscincia, ainda presa nas teias da Razo. So, segundo o prprio Pasolini, metforas. E so as dvidas sobre o prprio sistema, absolutamente indissociveis, infelizmente, da sua condio de ricos, aquilo que mais prximo est

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    da democracia liberal. As outras Eumnides, continuando nos montes, inspiram por sua vez a revoluo socialista e partidria de Plades. Mas eis que inopinadamente intervm e fora de toda a previsibilidade histrica Atena. a nova civilizao capitalista. Atena, depois de ter previsto a Orestes a sua conivncia com as atrocidades da burguesia fascista e a luta partidria contra ele, volta a chamar dos montes as Eumnides fiis. E estas, sempre inopinadamente, obedecem-lhe e tornam-se as deusas do bem-estar, da nova era opulenta. Plades, assim abandonado por elas (notar, portanto, que foram as mesmas deusas da democracia liberal a inspirar a sua revoluo socialista), no tem nada sua frente, restando-lhe uma nica verdade: o horror do poder.

    intil que Pagliarani se finja de parvo como a maior parte dos crticos de Veneza: ele no um crtico de cinema, com a sua rotina, vindo no se sabe de onde, e muito menos um grande espectador de Taormina. Se ele no capaz de perceber por si s certas subtilezas quando elas so absolutamente explcitas, como o meu texto publicado a est a demonstr--lo materialmente Pagliarani deve perceber. Porque, se no fosse assim, ento seria de facto intil publicar livros e fazer representar textos de teatro, pelo menos em Itlia.

    Obrigado e saudaes cordiais. O seuPier Paolo Pasolini(Trad. Lus Lima Barreto)

    So os anos 70 em Itlia ou so os dias de hoje em Portugal? E na personagem que fomos roubar a duas peas secundrias suas

    e ao talento do Isac, eu pecador me confesso.

    Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

    futuros poemas: o que sei e o que vejo no, de maneira nenhuma. Digo-vos francamente: eu deso aos infernos e sei coisas que no perturbam a paz dos outros. Mas tenham cuidado, o inferno est a cair-vos em cima. verdade que ele veste uma farda e inventa uma justificao (s vezes). Mas tambm verdade que o seu desejo, a sua necessidade de violncia, de agresso, de assassinato, grande e partilhada por todos. No permanecer por muito mais tempo como a experincia privada e perigosa de quem, digamos assim, j experimentou a vida violenta. No tenham iluses. E os grandes conservadores desta ordem horrvel assente sobre a ideia de posse e sobre a ideia de destruio so vocs, com a escola, a televiso, e a calma dos vossos jornais. Felizes aqueles de entre vs que rejubilam quando conseguem que se identifique um crime. Para mim, isso parece-se com uma entre tantas das operaes da cultura de massas. No podendo impedir que algumas coisas se produzam, encontramos a paz fabricando prateleiras onde as enfiar.

    Poucas horas depois era assassinado, ao que parece por um jovem, num bairro-de-lata em Ostia, ao lado do aeroporto que liga Roma ao mundo inteiro.

    Pasolini soa como profeta, no s porque se no envergonha de assumir esse papel em nome do papel de todos os artistas, alis com alguma amarga ironia (veja-se o que ele fez em La Ricotta, em que ps o seu colega realizador, conhecido como o mais megalmano e convencido do mundo, Orson Welles, no papel de seu duplo), mas tambm porque efectivamente como um Inferno que estamos a viver a vida poltica das Democracias Parlamentares quarenta anos mais tarde.

    Para mim, o trabalho neste texto foi a descoberta de uma nova improvisada companhia, como h muito no acontecia. A gravidade do assunto comunicou-se s trs geraes de que o elenco feito, e se o trabalho com o grupo mais novo de actores foi a descoberta de um grupo a srio de cabeas que pensam bem e felizmente j so diferentes, o grupo de actores que j conheo, alguns desde que eu comecei a representar e os quatro principais desde que eles comearam a representar, e que so os meus amigos, deram-me a alegria de neles me reconhecer mas de ainda me conseguirem surpreender com a inteligncia do seu trabalho.

    O que nos distingue como seres vivos das plantas e dos animais? Assumir que Ado e Eva nos condenaram ao Inferno de pensar. O teatro no uma montra de vaidades.

    Aqui fica um texto de Pasolini, indignado com o desrespeito com que menosprezaram este Plades na sua estreia ao ar livre, no anfiteatro antigo de Taormina.

    Aproveito tambm este bilhete para uma preciso sobre o meu Plades, apresentado em Taormina, criticado no seu jornal por [Elio] Pagliarani (o texto de Plades est publicado em Nuovi Argomenti). O tema profundo do drama o seguinte: a deusa da democracia liberal, Atena, transforma as Frias, deusas da irracionalidade selvagem, em Eumnides, deusas da irracionalidade sobrevivente como capacidade de sonho e sentimento num mundo racional; mas eis que metade das Eumnides degenera e, das misteriosas montanhas, regressa cidade, em pleno momento

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    edI LIccIoLI*

    E ento, progenitor,mata-me, ou queres que te sigaescarnecendo-me com leves ingenuidades? ( de facto uma criana quem te lana este desafio.)Pier Paolo Pasolini Madrigais a Deus

    realidade como representao1966 na histria de Pasolini um ano crucial, daqueles que encerram uma fase na vida, no estilo e abrem outra. crise ideolgica, que atormenta no s Pasolini mas toda a esquerda italiana depois da morte de Palmiro Togliatti (o carismtico secretrio do Partido Comunista Italiano), junta-se uma dilacerante crise pessoal, provocada por um sbito ataque de lcera. Os meses de convalescena, a rgida dieta, o fastio provocado pela doena fazem-no pronunciar palavras amargas, sem apelo possvel: Pela primeira vez, sinto-me velho.1 Este sentimento precoce de velhice, com quarenta anos apenas, modifica profundamente a relao do poeta consigo prprio e com a realidade que o rodeia: Porque envelheci, porque me transformei num sage, humorista, porque aceitei demasiado as coisas...2 Assim, a palavra esperana desaparece do seu dicionrio privado, ou substituda na sua linguagem quotidiana pelo termo muito mais angustiado de utopia. Um sinistro sentido de humor interrompe a sua juvenil, e no entanto sria, adeso ao mundo, porque com o avanar da idade diminui o futuro, com o diminuir do futuro diminuem os problemas, diminuem as esperanas, diminui a retrica, e ento fica-se mais alegre.3

    Neste estado de esprito, o autor dedica-se a escrever, com a paixo exclusiva de uma autntica iluminao, as tragdias em verso do seu teatro da Palavra. A leitura das obras de Plato (que o deixam perturbado pela sua beleza)4 leva-o a utilizar a forma dialogada: Como estas tragdias esto escritas em verso, provvel que necessitasse de um pretexto, pessoas interpostas, quer dizer, personagens, para escrever versos.5 Pouco mais de vinte anos depois do incio da sua carreira (o drama em dialeto friulano I Turcs tal Friul de maio de 1944), volta o teatro a apresentar-se-lhe no s como gnero onde reciclar os materiais desprendidos de outras linguagens todas elas em crise, incluindo o cinema, nessa difcil metade dos anos 60 , mas tambm como uma nova forma de poesia. O teatro converte-se

    Tragdia de um homem ridculo

    * Excerto do

    prefcio da traduo

    espanhola de Carla

    Matteini: Fabulacin

    de Pier Paolo

    Pasolini. Madrid:

    Editorial Hiru, 1997.

    Trad. lus lima Barreto.

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    Sombra de Sfocles, no sexto episdio de Afabulao, corresponde a tarefa de traduzir numa frmula mais acessvel a sntese desta procura:

    O homem s se apercebeu da realidadequando a representouE nada melhor do que o teatro a pde alguma vez representar.

    A nvel semiolgico, Pasolini define o teatro como uma tcnica audiovisual que, semelhana do cinema, utiliza um sistema cujos signos, no simblicos mas icnicos, so os mesmos signos da realidade. O teatro representa um corpo mediante um corpo, um objeto mediante um objeto, uma ao mediante outra ao.12 Mas, diferentemente do cinema, no reproduz a realidade, representa-a apenas. Neste matiz semntico pode-se captar o valor distinto atribudo aos dois termos, j que em relao com o homem representao indica um sistema que de todos os modos distancia da realidade, ao passo que reproduo supe uma permanncia da mesma na linguagem audiovisual, que a recria. Se, com efeito, no cinema, a linguagem escrita-falada se limita a integrar a linguagem pura da presena fsica e da ao, no teatro, pelo contrrio, precisamente sempre esta ltima o suporte da primeira. No teatro, a palavra falada, que contm a grande e insupervel beleza da vida em si e por si, que se vai, atravessa o processo de estilizao da escrita do autor, para voltar depois falada: mas falada (e por isso viva, em toda a sua felicidade fsica) depois de ter sido escrita (quer dizer, dominada pela severidade e pela loucura da razo).13 Por isso, a Sombra de Sfocles sentencia:

    No teatro, a palavra vive uma dupla glria, nunca ela to glorificada. Porqu?Porque , ao mesmo tempo, escrita e proferida. escrita, como a palavra de Homero,mas ao mesmo tempo pronunciada como as palavras que trocam entre si dois homens no trabalho [...] Ora, no teatro, fala-se como na vida.Vs? Agora, lamentas-te: aaaaah, aaaaah, e no teatro esse som o mesmo: aaaaah, aaaaaaaaaaaaah

    A palavra o eixo central de um teatro que desloca a ao para as margens, humilhando-a como que por um calculado contrapeso em relao com a supremacia adquirida no cinema. Se a linguagem das aes a linguagem mesma da realidade, Pasolini no exclui nem a palavra nem a poesia do conceito de ao, porque nada nem mesmo os sistemas simblicos e convencionais pode fugir do crculo mgico da realidade. Da poesia como ao, Pasolini aproxima, ou confronta, de acordo com as necessidades expressivas das linguagens empregadas (cinema, teatro, poesia), a potica das coisas. A vida, nos seus elementos mais simples, nos seus atos mais comuns, poesia pura, uma poesia testemunhada por si mesma, concomitante com a vida, arrastada com a vida.14 As coisas so as palavras da realidade: com

    em instrumento para continuar a escrever versos, depois da interrupo de alguns anos (Poesia in forma di rosa tinha sado em 1964), ao mesmo tempo que lhe oferece a oportunidade de transcender os limites do sistema simblico da escrita e recrear, no momento da representao, uma poesia oral (h sculos perdida, inclusivamente no teatro),6 baseada na fora da palavra. No espao do teatro, Pasolini identifica o nico mbito sacralizado pela conveno onde opor linguagem puramente verbal a das aes e comprovar, no confronto, a validade da presumida lngua da realidade. Eixo central desta instituio o problema filosfico da representao que, a partir de Schopenhauer, no pode deixar de relacionar-se com o espetculo da vida, duplicado (no sentido artaudiano do termo) pelo teatro.

    Ao viver, representamo-nos e assistimos representao alheia. A realidade do mundo humano apenas esta dupla representao, onde somos atores e espectadores ao mesmo tempo: um happening gigantesco, de certa maneira.7

    O observador converte-se em espectador e o observado assume o papel do ator. A vida assim vivida como um espetculo recproco: O que demonstra que no existe uma dissociao entre Experincia e Representao.8 Nos ensaios cinematogrficos entre 1966 e 1971, Pasolini elabora a teoria da linguagem das aes como linguagem da realidade, pelo que o cinema no passaria da lngua escrita da prpria realidade, quer dizer, corresponderia transcrio do monlogo que o Corpo infinito da Realidade faz consigo mesmo,9 mediante todos os signos existentes (tanto icnicos como simblicos). E se a realidade fala consigo prpria, surge a suspeita de que, quando Pasolini alude ao conceito de representao, se refere a uma espcie de autorrepresentao que a realidade poria em cena a e consigo prpria, atravs da multido de signos que compem o seu corpo nico e infinito. Assim, tambm aquilo que o autor define como Cdigo da Realidade vivida (ou Ur-Cdigo, ou, mais ainda, Cdigo dos Cdigos), onde a vida se exprime no puro pragma, o monlogo da realidade consigo prpria se faria mediante a representao que um signo confere a outro signo, ou seja, um espetculo... De quem? E para quem? arriscado responder a estas perguntas, mas, tendo em conta que Pasolini se exprime sempre en pote, podem aventar-se algumas concluses. Quando o autor escreve, per absurdum, a realidade a linguagem de B. (onde B. Brahma, ou seja, Deus),10 a inteno de superar a definio de uma natureza que se autorrevelou tautologicamente e de demonstrar que ser no natural,11 no alude em definitivo apenas a Deus (Brahma ou Uno originrio), que fala consigo mesmo atravs de todas as coisas e de todos os seres criados, mas tambm ao espetculo que as coisas e seres criados constituem para Ele. Em suma, algo parecido com a teoria do mundo como representao do Uno originrio (que de Schopenhauer passa a Nietzsche, e deste ao pensamento dbil do nosso sculo), e a consequente iluso da existncia: dedues a que Pasolini volta frequentemente nas suas livres anlises semiolgicas.

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    palavras, precisamente na refinada construo mtrica do verso, defrontam--se com o informe, com a inquietante matria das vsceras, perdem o seu equilbrio e caem em excessos autodestrutivos. Ao delrio da corporalidade, sempre unicamente dito, corresponde o delrio da verbalidade, que acaba por desterrar toda a ilusria f logocntrica na desconstruo da linguagem: a afasia da ltima Rosaura em Caldern, os gritos obsessivos que desgarram as rplicas de quase todas as personagens das tragdias, finalmente o silncio, invocado como trgua da razo, brecha at ao longnquo mundo em que NINGUM FALAVA,18 so as rebeldias extremas contra a tirania do logos. O labirinto lingustico (metaforizado pelo arqutipo mtico), de onde se extraviam os homens e as mulheres do teatro de Pasolini, no passa de um crcere da razo, pois, como se interroga Giorgio Colli em O Nascimento da Filosofia: Que signo o logos? um produto do homem, em que o homem se perde, se derruba?

    a iluso teatralUm destino igual, atormentado, abarca todo o corpus teatral de Pasolini. Exceto Caldern, considerado pelo autor como um dos seus logros formais mais seguros19 e por isso entregue editora em 1973, as outras tragdias tm uma histria bastante mais complexa e angustiada. A escrita dramtica parece amplificar a maldio da palavra, e os textos so continuamente retocados, numa espcie de condenao forma precria, nunca resolvida nem definitiva. fria expositiva da primeira escrita dos dramas ope-se, ou simplesmente acrescenta-se, a sua correo contnua, inacabada, a quase obrigao de permanecerem inditos. Os pragmticos assertos contidos no Manifesto para um Novo Teatro (apresentados ao pblico por ocasio da estreia de Orgia em 1968) confirmam, por um lado, a necessidade de incidir no panorama cultural para renovar o espetculo, mas, por outro, tal segurana de opinio contradiz-se com as repetidas censuras que sofrem os textos. Um teatro frequentemente julgado como impossvel, em busca da sua prpria definio interna que, no fundo, no concluiu nunca, deixando abertas novas possibilidades de elaborao. O facto de serem coisas quase pstumas20 no em definitivo casual, e liga-se ao projeto potico, adotado por Pasolini a partir dos anos 60 e s perfeitamente realizado em Petrolio, de deixar a escrita ps-moderna incompleta. Enquanto mimesis na forma e nos contedos do caos provocado pela Nova Pr-Histria, a escrita deve permanecer num estado de fragmento, para os textos sarem depois em edies pstumas, cuidadas pelo prprio autor que se finge morto (no caso de Divina mimesis) ou ao verificar-se a sinistra circunstncia por outros eminentes fillogos.

    As seis tragdias parecem nascer de uma primeira escrita unitria e contempornea, embora surjam dvidas sobre a ordem seguida nas fases sucessivas de reelaborao dos textos. Pasolini associa sempre a redao das obras teatrais grave crise de lcera que, segundo seguras referncias biogrficas, o atacou em maro de 1966, e no em 65, como ele repetidamente afirma em artigos e entrevistas. Teatro e doena esto estreitamente ligados desde a primeira carta enviada ao seu editor, Livio Garzanti, depois da fase

    elas, com a sua polissemia e o seu mistrio, a realidade fala uma linguagem por vezes obscura, misteriosa, sempre potica:

    por isso que eu s queria viver, mesmo sendo poeta, porque a vida tambm se exprime por si mesma.Queria exprimir-me com exemplos. Lanar o meu corpo na luta. Mas se as aes da vida so expressivas,a expresso tambm ao, porque no h outra poesia seno a ao real.15

    Nestes versos autobiogrficos, compostos no fatdico ano de 1966, anuncia--se esse confronto entre palavras e coisas (corpos) que, desbaratando os conflitos arquetpicos, acaba por envolver as personagens-ideia do teatro da Palavra. Uma espcie de tragdia lingustica16 na qual se inserem as outras tragdias que falam, em troca, a lngua primria da carne. Assim, paradoxo no paradoxo, a linguagem dos corpos, anunciada e verbalizada com tanta insistncia, no se exibe nunca em cena. Como no antigo teatro ateniense (sobre o qual se modela o teatro da Palavra, de acordo com o ponto 7 do Manifesto para um Novo Teatro), todas as aes se desenvolvem fora, longe da vista do pblico, para reunir-se depois na e pela palavra, omnipresente e omnipotente.

    No teatro atuam duas tenses contraditrias, igualmente ativas e potentes em toda a potica pasoliniana: por um lado, a exigncia de abolir as barreiras erguidas pelos sistemas simblicos,17 na iluso de poder recuperar a linguagem primeira e puramente pragmtica da realidade; por outro, fazer desta demanda utpica o contedo da poesia, que constitui o momento delicadamente expressivo da lngua na sua distncia da realidade. O teatro poderia satisfazer este desejo, j que os seus signos vivos so os mesmos que os da realidade, a ponto de, no sexto episdio de Afabulao, a Sombra de Sfocles afirmar: O teatro / no evoca a realidade dos corpos s com as palavras / evoca-a tambm com esses mesmos corpos... E, em contrapartida, o teatro, precisamente, declara perdida e irrecupervel a linguagem da Carne e exibe o conflito entre as palavras orais e as corporais. Nos cinzelados monlogos em verso livre, a palavra exprime a sua qualidade de detrito, de aditivo linguagem das coisas, e denuncia o desgaste que a corrompe at ao limite da abstrao verbal. O espelhismo da realidade que oscila sob os projetores da cena, apesar ou precisamente em virtude da representao, revela-se como tal. Ficam as vozes para falar da carne (distante, maldita, mas imperiosa) e do mundo (perdido como o den, ou ento demasiado presente como um campo de concentrao), at que os suspiros da nostalgia ou os gritos de raiva desgarram a ltima franja da realidade, que permanece na palavra: a phon. O som contrai-se em grito, e este afogado pela conscincia. A voz atenua-se, cala-se. O silncio acaba por envolver o palco. Chega-se assim a outro limite na longa cadeia de oposies, que se desprende, primeiro, na poesia, depois, ainda mais evidente, no teatro de Pasolini: as

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    depois de ter lido o ensaio de Foucault As Palavras e as Coisas, e acabado entre o vero de 1968 e 1973 , Pasolini comea a falar precisamente nesse perodo: alude ao projeto de um filme intitulado Caldern numa conversa com Jon Halliday e volta a propor ao seu editor, em finais de 1970, o volume de teatro, seis tragdias, com o ttulo Caldern. Mas quando depois, em janeiro de 1973, Garzanti reclama o livro anunciado vrias vezes desde maio de 1966, Pasolini responde com cautela: Precipitei-me um pouco: as outras coisas teatrais precisam ainda de uma reviso e de serem rescritas, antes de serem legveis. A nica possvel Caldern, que lhe mando. Gostava de publicar Caldern antes, sozinha; e depois, mais adiante, o volume inteiro de todo o teatro.

    O encontro com a crtica, tanto teatral como literria, frequentemente procurada pelo autor, ou no se produz ou manifesta-se em termos de confronto. Com o linchamento de Pasolini por ocasio da representao das suas tragdias (primeiro Orgia e depois Plades), alternam silncios ainda mais ofensivos, quando os seus textos aparecem na revista. Assim, precisamente com a publicao de Afabulao em 1969, encerra-se o perodo em que o teatro tinha sido o centro do programa cultural de Pasolini. Da primavera de 1966 ao vero de 1969, todo o projeto iniciado por Pasolini gira em torno do teatro, tal como toda a linguagem praticada se contamina com o teatro: a novela-guio Teorema no passa da traduo do texto dramtico; os filmes rodados neste perodo so tradues cinematogrficas de peas teatrais (Teorema e Porcile), verses para cinema de tragdias clssicas (dipo Rei e Medeia) ou filmes teatrais.

    O fracasso da ideia de um centro permanente de atividades teatrais, a experincia no fundo dececionante da encenao de Orgia (apressada e descontnua por causa do incio da rodagem de Porcile) e o regresso poesia com os textos que seriam publicados em 1971 em Trasumanar e organizzar, so fatores que confluem para que o balano deste binio seja negativo. Nas entrevistas de 1969, Pasolini comea a distanciar-se do compromisso teatral, que considera pronto para arquivo: Cada vez mais me dou conta de que o teatro no se improvisa, que uma empresa que exige que se lhe consagre toda uma vida. A desconfiana para com o ambiente teatral italiano no lhe permite outras possibilidades, e depois do silncio com que so recebidas as duas tragdias publicadas, Pasolini sentencia: O teatro morreu porque a gente do teatro no tem qualquer interesse pela cultura.22 O contacto direto com a cena coloca-se entre parnteses e os textos voltam para as mos do escritor como peas literrias, continuamente relidas de forma crtica. O primeiro momento de euforia dilui-se numa obsessiva meditao sobre a poesia dramtica e sobre a sua prpria funo de dramaturgo s para leitores de poesia,23 um teatro que evita o encontro com o palco para viver na dimenso exclusiva da literatura.

    aguda do ataque de lcera: Levantei-me, finalmente, depois de ter passado quase um ms na cama. Uma experincia no sofrida em vo [...]; escrevi um drama, Orgia, e estou a acabar um segundo drama, O Poeta Checo (ou Poesia). J ento o autor devia duvidar da possibilidade de representao destes dramas teatrais, pois em abril de 1966 assinala preferir que estes dramas se faam no estrangeiro, e, em Itlia, quem sabe, no se representem, ou que se representem depois da sua publicao. Teria de encontrar um bom tradutor, melhor, muitssimo bom, porque os dramas so em verso, embora num verso muito prximo da prosa.21 A Orgia e Besta de Estilo (ttulo definitivo do segundo drama) junta-se uma referncia a Plades na carta a Garzanti de maio de 1966: Vou quase a meio de um terceiro drama (a continuao poltico-fantstica da Oresteia): teremos que programar um volume de teatro!

    Em junho do mesmo ano, noutra carta ao editor, Pasolini volta a propor o projeto de um volume de teatro que inclua os quatro ou cinco dramas que est a acabar, enquanto alude pela primeira vez s verses cinematogrficas de Teorema e do dipo Rei de Sfocles.

    Plades sai na revista Nuovi Argomenti em finais de 1967. Se Orgia a primeira coisa escrita para o teatro e a primeira a ser levada cena, para comprovar os ditames programticos do novo teatro da Palavra, Plades sem dvida o texto mais cuidado e mais bem organizado, pelo menos a nvel literrio, para uma divulgao das posies ideolgicas do autor um pouco antes e durante o famoso Maio de 1968.

    Em pleno clima sessentaeoitista, Pasolini escreve uma carta cheia de apreenso ao seu editor, que est a atrasar a sada do ltimo nmero da revista Nuovi Argomenti: Preocupa-me, porque publiquei a qualquer coisa que me importa muitssimo, e de que depende todo o meu trabalho futuro: refiro-me ao Manifesto para um Novo Teatro. Como creio que lhe indiquei, o Teatro Stabile de Turim decidiu financiar o meu projeto; estou a preparar os textos (que lhe entregaria para publicao no outono, com o ttulo de Porcile): todos os meus amigos (Volponi, Moravia, Siciliano, a Morante, Bertolucci) aceitaram traduzir do grego, e preparam-se para o trabalho. O novo teatro ser, para alm de teatro, um movimento cultural e de certa maneira poltico (componente de uma autntica Nova Esquerda, e Nuovi Argomenti ser o seu rgo). A proposta dos teatros stabili previa num primeiro momento a criao de espaos de encontro, um autntico frum (como especifica Pasolini em carta a Leonardo Sciascia na primavera de 1968), aberto aos escritores italianos comprometidos na dupla frente da renovao da linguagem teatral por uma via cultural, e da renovao do compromisso mediante a eleio de um teatro poltico. Mas, apesar do clima de euforia, o projeto naufraga e Pasolini tem que confrontar-se com a direo cnica de Orgia.

    Primeiro Teorema e depois Porcile convertem-se em filmes. (Pasolini diria: traduzem-se.) No turbulento vero de 1969, o autor est a realizar Medeia e, durante uma viagem ao Uganda e Tanznia, realiza tambm o documentrio Appunti per unOrestiade africana. Enquanto em Itlia sai, na Nuovi Argomenti, Afabulao. De Caldern esboado em princpios de 1967,

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    o teatro de dipoAo recuperar a forma da antiga tragdia tica e a primazia que nela tem a palavra, Pasolini parece avalizar a teorizao aristotlica, segundo a qual o texto dramtico, considerado como obra literria mais do que teatral, o eixo do teatro. Com efeito, o ponto 8 do Manifesto assinala: Assistir s representaes do teatro da Palavra com a ideia de escutar (de ouvir) e no de ver (restrio necessria para compreender melhor as palavras entendidas e, portanto, as ideias de fundo, as personagens reais deste teatro). No ponto 10, diz: A ausncia de ao cnica implica naturalmente o desaparecimento quase total de encenao luzes, cenografia, guarda-roupa, etc., tudo ser reduzido ao indispensvel.

    Mas se para Aristteles, e para a dramaturgia clssica em geral, a forma dramtica deve ser segundo a definio de Peter Szondi absoluta no seu tempo (entendido como presena, aplanado no presente, excluindo passado e futuro) e no seu mundo de relaes intersubjetivas (resolvidas no dilogo), em Pasolini, o drama sofre o mesmo processo de epicizao que caracteriza a histria do teatro contemporneo. A opo de dividir os textos no em atos e cenas (unidades tpicas da estrutura dramtica clssica) mas em episdios, um indcio claro do deslizar da forma para uma fragmentao da narrao e do sentido que s o teatro pico permite. O exemplo de Brecht apenas colateral, enquanto atuam em profundidade, na escrita dramtica de Pasolini, os estmulos provocados pelas aberturas picas intentadas por Strindberg, Maeterlinck, Thornton Wilder e Eugene ONeill. Se o drama uma entidade absoluta, e esta entidade deriva em definitivo da sua origem dialtica, e se o drama no se escreve, implanta-se, ainda que os termos enunciados sejam sempre resolues,24 Pasolini afasta-se dessa forma absoluta pelo simples facto de levar at sua dissoluo a estrutura dialgica. Em geral, no drama, a pessoa que fala diferente da que ouve, e ambas so tpicas da situao espaciotemporal de um dilogo, enquanto no monlogo enunciado anmalo o interlocutor no existe, e a personagem fala consigo prpria. A condio de um enunciado costuma ser egocntrica, quer dizer, o papel de falante, de centro do discurso, transfere-se de um participante para outro na conversa; mas nos textos de Pasolini assistimos a uma aniquilao dos vrios interlocutores, que se resumem no perdurar esttico do monlogo, o mais teatral dos eventos teatrais, observa o autor no prlogo a Orgia. Afabulao avana toda ela atravs de falsos dilogos entre o protagonista e outras aparncias de personagens (a Me, a Rapariga, a Vidente), cujas perguntas servem apenas para introduzir os longos monlogos do Pai, que verbaliza a sua corrente de conscincia isolando-se em cena, em posio frontal, diante dos espectadores: O teatro da Palavra no encontra o seu espao teatral em mais nenhum lugar que no seja a cabea. Tecnicamente, este espao teatral frontal: texto e atores de frente para o pblico, lemos no eplogo do Manifesto.

    Resulta evidente, alm disso, nas tragdias pasolinianas, a violao da outra categoria formal essencial do teatro clssico: a temporal, constituda pela sucesso de muitos momentos presentes que, um aps outro, motivam a mudana das personagens e das suas aes. Num artigo de 1965, Pasolini

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    1 Entrevista com Giorgio Bocca, Il Giorno, 19 de julho de 1966.2 Jean Duflot, Conversaciones con Pier Paolo Pasolini. Barcelona: Anagrama, 1971.3 Entrevista ao programa de televiso Terza B, facciamo lappello, dirigida por Enzo Biagi em 1971.4 Pasolini su Pasolini: Conversazioni con Jon Hallyday (1969). Parma: Guanda, 1992.5 Un discorso di Pasolini sul teatro e sulla poesia, entrevista com Jean-Michel Gardair, Il Corriere del Ticino, 1971. Cf. tambm a declarao anloga em Pasolini su Pasolini, onde acrescenta: O facto que j no escrevia poesia h bastantes anos, e de repente voltei a faz-lo, mas para o teatro, e devo dizer que nunca escrevi com tanta facilidade como para o teatro, nem me diverti tanto.6 Pasolini, Il cinema di poesia, in Empirismo eretico. Milo: Garzanti, 1972.7 Pasolini, La lingua scritta della realt, in Empirismo eretico.8 Pasolini, Tabella, in Empirismo eretico.9 Pasolini, Il codice dei codici, in Empirismo eretico.10 Ibidem.11 Cf. Essere naturale?, in Empirismo eretico.12 Pasolini, Manifesto per un nuovo teatro, Nuovi Argomenti, n. 9, janeiro-maro de 1968.13 Pasolini, Da tecnica audiovisiva a tecnica audiovisiva, in Catalogo-programma della Biennale di Venezia: 26 Festival internazionale del teatro di prosa, 1967.14 Pasolini, Un poetico si, in Las bellas banderas. Barcelona: Ed. Planeta, 1982.15 Do poema autobiogrfico Poeta das Cinzas, 1966.16 Prlogo de Orgia 1. Episdio, Quaderni del Teatro Stabile di Torino, n. 13, Milo, 1968.17 Creio que agora posso dizer que escrever poemas, ou novelas, foi para mim um meio de exprimir a minha recusa de uma certa realidade italiana, ou pessoal, num momento determinado da minha existncia. Mas estas mediaes poticas ou novelescas interpunham entre mim e a vida uma espcie de barreira simblica, um ecr de palavras... E talvez a verdadeira tragdia de todo o poeta seja que apenas pode alcanar o mundo metaforicamente, segundo as regras de uma magia limitada em definitivo na sua apropriao do mundo, declara o autor a Jean Duflot em Conversaciones con Pier Paolo Pasolini.18 Pasolini, Orgia.19 Da autocrtica a Caldern, in Descrizioni di descrizioni. Turim: Einaudi, 1979.

    20 Da j citada entrevista Un discorso di Pasolini sul teatro e sulla poesia.21 Todas as citaes das cartas foram extradas do segundo volume do epistolrio coordenado por Nico Naldini, Lettere 1955-1975. Turim: Einaudi, 1988.22 Pasolini su Pasolini: Conversazioni con Jon Hallyday.23 Do artigo do autor depois da estreia de Orgia em Turim, A teatro con Pasolini, Il Giorno, dezembro de 1968.24 Peter Szondi, Teoria do Drama Moderno.25 Ibidem. Em 1940, Pasolini leu, achando-o belssimo, Os Habitantes de Hems de Strindberg, ficando profundamente impressionado pela dramaturgia do eu iniciada pelo autor sueco, ao ponto de podermos considerar Nel 46! a sua segunda tentativa de escrita teatral, como um Stationendrama reinterpretado segundo as tcnicas da crueldade de Artaud. Strindberg continuar a ser um referente nas sucessivas fases da experincia literria de Pasolini.26 Brecht faz parte dos autores que eu durante muito tempo no apreciei. Na verdade, descobri-o bastante tarde, declara Pasolini numa das suas conversas com Jean Duflot. Quando este lhe pergunta se a suspenso do sentido introduzida nas suas obras era um emprstimo da tcnica de distanciao brechtiana, Pasolini responde: De facto, esta suspenso do sentido brechtiana. Mas creio t-la praticado instintivamente, a bem dizer por efeito do meu carcter, do meu temperamento que, como sabe, evita o julgamento moral, o julgamento definitivo, por respeito a um certo mistrio da existncia, das coisas e dos seres. Na realidade, esta suspenso do sentido bastante diferente da de Brecht. Brecht vai at ao fim da sua concluso ideolgica. Para ele, a ambiguidade provisria, escapa existncia, resolve-se muitas vezes na histria... Pelo contrrio, a suspenso em Accatone de resto, nessa poca, eu praticamente no conhecia Brecht de carcter existencial; teoricamente o que poderamos definir como uma interrupo do julgamento diante do mistrio da existncia.27 Pasolini, Petrolio.28 Franco Rella, Miti e figure del moderno. Parma: Pratiche, 1981.

    defendia que a fortiori o presente real era o nico tempo possvel do teatro, mas nos seus textos dramticos parece negar esta concluso terica, na constante fuga da ao verbalizada do tempo presente para o tempo do passado ou do sonho-recordao. Ao faz-lo, o poeta vai na esteira das experincias tpicas do teatro moderno que, sobretudo em Strindberg e na sua dramaturgia do eu,25 rompem com as relaes intersubjetivas do drama, a favor de uma dimenso mesmo patologicamente subjetiva, na qual se fundem passado recordado, espao onrico e presente alienado no nico tempo reconhecido como vlido: o eu. Apesar dos propsitos ideolgicos expostos no Manifesto, Pasolini situa-se idealmente numa zona mais prxima de Strindberg e de certo teatro expressionista do que de Brecht.26 Nas tragdias do teatro da Palavra, as personagens, embora caracterizadas por pertencerem a uma classe social bem determinada (a burguesia), nunca so atores de uma histria apenas ou sobretudo dialtica. Os temas de debate ou de reunio caem num delrio de corporalidade, que em breve acaba por absorver a densidade ensastica numa espcie de ebriedade dionisaca. Isto ocorria j nos melhores poemas de Le ceneri di Gramsci (1957) e de La religione del mio tempo (1961), s que agora a prepotncia da carne no se compromete nos limites evocativos da linguagem potica, e pode libertar-se no espao tridimensional, fsico, do palco.

    Pasolini elimina da sua escrita dramtica toda a forma de graduao, considerada um elemento crepuscular e pequeno-burgus: Os erros que se devem a uma alma diminuda no so trgicos. Tambm o no so as suas hesitaes e incapacidades de interpretar na sua fatalidade, trgica por matemtica, a acumulao dos eventos que lhe acontecem.27 A tragdia antiga morreu quando em dipo em Colono, sobre o fundo de contradies que pareciam insanveis, o velho Sfocles sacrificou dipo, aquele que tinha transgredido as mais sagradas ordens da natureza (para conquistar, como diria Nietzsche, a sabedoria), nomeando-o garante do termo sagrado de Atenas. A tragdia extingue-se, quando, em As Bacantes, a dor raia a loucura pergunta O que a sabedoria?, Eurpides responde a sabedoria no sabedoria: no existe saber, nem mesmo o trgico, que possa penetrar no mistrio da vida. Todavia, a tragdia volta a aflorar na histria, e emerge sempre que o homem tem que pensar na radicalidade de conflitos e de contradies que no se podem mas devem pensar juntos. A tragdia no a narrao de eventos lutuosos: um pensamento, escreve Franco Rella. o pensamento que fluidifica os limites conhecidos, ente a plis e o exterior plis, entre masculino e feminino, entre humano e divino. o pensamento que descobre que a relao do homem com o mundo e com o divino se realiza dentro de um conflito. Pode-se ficar aniquilado neste combate, mas no vencido, porque a vitria de um contendor significaria o fim do pensamento trgico, que se movimenta estruturalmente dentro de um conflito capaz de questionar toda a representao mtica e simblica de uma civilizao.28 Por meio dele, o heri trgico alcana o saber (de si e do outro) despotenciando-se, degradando-se, num processo de sofrimento que a cura da enfermidade do poder.

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    foras. Para um marxista, dir-se-ia uma afirmao um pouco heterodoxa. E a cincia? PPP Tambm a cincia, na sua essncia, pertence mais ao mundo religioso que ao da racionalidade. Repara no cientista. um homem religioso, no tem sentido prtico, desinteressado; , sua maneira, um mstico que supera com a intuio, com a fantasia, com a totalidade do seu poder cognitivo a simples razo. O erro da burguesia identificar a inteligncia com a razo, quando aquela algo mais do que esta. MC Pois bem, ns vivemos numa poca cientfica; hoje, na cultura, a cincia que domina; dever-se-ia concluir que vivemos numa poca religiosa...PPP No, porque hoje triunfa a aplicao da cincia, ou seja, a tcnica, no a cincia. O racionalismo burgus, que contempla apenas a utilizao prtica das coisas, no tem nada a ver com o verdadeiro esprito cientfico. MC Compreendo. Para ti, a razo a utilizao prtica das descobertas feitas pela inteligncia, sejam elas religiosas ou cientficas. PPP Sim, a inteligncia como poesia, sabedoria, fantasia, intuio a capacidade de compreender. A razo limita-a porque exclui tudo aquilo que no se pode compreender, rejeitando-o para a categoria do no-cognoscvel. Exclui, por exemplo, o inconsciente. No inconsciente no tem validade o princpio da no-contradio, que o pilar de qualquer lgica racionalista; em consequncia, a razo burguesa recusa o inconsciente. MC Na verdade, o inconsciente exatamente uma descoberta da nossa civilizao, que tu chamas burguesa...

    PPP Exato. Pertence cultura irracionalista que caracteriza o nosso tempo e que, como no princpio te dizia, representa o simblico suicdio da burguesia. MC Dizes tu que qualquer classe no poder necessariamente racionalista, porque deve pr ordem no mundo dos fenmenos, e que, consequentemente, violenta as melhores capacidades cognitivas do homem. Eu no me iludiria muito acerca destas capacidades, que alis, onde existem, teriam milhentas possibilidades de expresso. Por outro lado, consegues imaginar uma sociedade sem poder e, consequentemente, sem racionalidade? PPP Sim. Sou marxista exatamente porque Marx dizia que a revoluo levaria ao enfraquecimento e desapario do poder tal como ele concebido pela sociedade burguesa. O poder insisto neste ponto horrendo: quer se esteja na sua posse, quer se queira conquist-lo. sempre corruptor.MC Isso uma histria velha, creio que relegada de vez pelos prprios marxistas para o arsenal das velharias. No parece que na Rssia o Estado esteja muito enfraquecido. E na China... Quem sabe o que quer que seja de como o poder efetivamente exercido? Conheces, portanto, um exemplo na histria que mais prximo esteja deste ideal de sociedade que se autogoverna? PPP A plis grega. MC A plis era um Estado. Pequeno, mas ainda assim um Estado; por vezes tirnico, nem sempre democrtico. PPP No entanto, permitia que Scrates desenvolvesse o seu ensino. Entretanto, desvimo-nos do assunto. O ponto a fixar aquele que referi quando me perguntaste se era

    Pier Paolo Pasolini [] O nosso sculo pode ser, culturalmente, bem definido. Posso resumir-te a histria com uma parbola. Existia no mundo uma sociedade muito poderosa, decidida a conservar o poder por todos os meios. Mas o que existe de mais culpvel do que deter o poder? E quando algum se sente em culpa o que que deseja? Deseja punir-se. A burguesia, oprimida pelo sentimento de culpa, queria suicidar--se. E f-lo. Mas indiretamente, atingindo-se na cultura, ou seja, na razo. A cultura burguesa, de facto, estava sob a insgnia da razo; a razo era o grande mito da cultura oitocentista. Atravs da morte da razo, a burguesia suicidou-se expiando a sua culpa, a culpa de deter o poder. Manlio CanCogni Nunca tinha pensado que quem manda se sentisse em culpa. Pelo contrrio, tive sempre a sensao de que o frui com prazer; o poder est na cabea de quem manda, f-lo sentir-se importante, vivo. PPP E neste suicdio a burguesia encontrou o seu carniceiro: Hitler. Hitler foi o deus do irracionalismo. Toda a poesia europeia de Rimbaud at hoje irracional.

    MC Desta maneira, colocam-se no mesmo plano Rimbaud e Hitler, o simbolismo e o nazismo... As ideias confundem-se-me. PPP A razo, o culto da razo, burgus. MC Mas tambm a civilizao grega racionalista; queres dizer que tambm ela era burguesa? Ento necessrio dizer que tu entendes por burguesia a classe no poder. Se assim , toda a histria do mundo burguesa, desde Atenas at China de Mao. PPP As civilizaes do passado eram religiosas, no racionalistas.MC Contrapes a religio razo. Mas ento onde colocas o catolicismo? O catolicismo, na poca da sua plenitude, quando se pode falar de uma civilizao por ele marcada, a Idade Mdia, uma das maiores construes racionalistas (basta pensar em S. Toms) de toda a filosofia ocidental. PPP Isso quer dizer que a essncia religiosa do cristianismo foi racionalizada pela classe no poder. MC Pensas, portanto, que a fora vital da histria de natureza religiosa e que a razo o instrumento com o qual as classes no poder moldam e utilizam essas

    O poder insisto neste ponto horrendoconVerSa com PIeR PAoLo PASoLINI. Por MANLIo CANCoGNI.*

    * Excerto de Pier Paolo Pasolini: Se

    nasci in un piccolo

    paese sei fregato,

    La Fiera letteraria, 14

    de setembro de 1967.

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    romance precisa de estabilidade. Doutra maneira, narrar torna-se um fatigante andar a correr atrs das coisas. O teatro, pelo contrrio, permite-me fazer ao mesmo tempo poesia e romance. Poesia, porque, como sabes, escrevo as minhas tragdias em verso; romance, porque conto uma histria. MC E o destinatrio? Existe para as tragdias? PPP Sim. O destinatrio aquele contra o qual entro em polmica, contra o qual luto. O destinatrio o meu inimigo, a burguesia que vai ao teatro. Foi com este esprito que escrevi os meus quatro dramas: Monumento,1 que tem como personagens principais Orestes e Plades, como smbolos das duas revolues do nosso tempo (se quiseres, a revoluo russa, que se enquadra numa ordem burguesa, e a cultural na China); Besta de Estilo, que escrevi para o [Teatro] Stabile de Turim; e duas outras coisas que ainda no tm ttulo. MC Teatro, portanto, como comcio? PPP Como queiras. Chama-lhe at comcio.

    1 Ttulo provisrio de Plades.

    possvel definir a cultura do nosso tempo. possvel: o irracionalismo que, por um lado, contestao, escndalo, violncia contra a ordem, os cdigos, a sociedade, a moral corrente, desde Rimbaud a Ginsberg, para melhor nos entendermos; e, por outro, autopunio, e a tens Hitler. [...]

    MC Tu j no escreves romances ou narrativas. Porqu? PPP Perdi a confiana no gnero. J no me atrai. Penso que um escritor deve ser sempre realista; em unio, portanto, com a realidade. Pois bem, a realidade que dantes me interessava, quero dizer, o subproletariado romano dos subrbios, est a mudar rapidamente, j no o reconheo. O subproletariado romano que antes apenas existencialmente era real, no tinha realidade histrica, hoje est a tornar-se uma frao do terceiro mundo. MC Bem. pois muito mais importante, mais real, no sentido de que agora lhe reconheces uma dimenso ideolgica. E ento? PPP Sim, mas apercebo-me disso apenas como citadino, no como escritor.MC Estarias nas condies ideais para escrever uma obra-prima.PPP Teoricamente, sim. S que, entretanto, tornei-me mais sbio.MC E crs que isso seja uma limitao? PPP No necessrio ser-se sbio para escrever obras-primas.MC Aburguesaste-te? PPP Talvez. Desenvolveu-se em mim um sentido de humor que dantes no tinha e que uma caracterstica tpica da burguesia. MC Porqu apenas da burguesia? E na Antiguidade?

    PPP Refiro-me poca moderna, de Ariosto em diante. O humorismo uma atitude da classe no poder. Repara: quais so as caractersticas do humorismo? O sentimento de culpa e a redutibilidade. Ora, o burgus sente-se em culpa (porque detm o poder) e tem tendncia para estar em pantufas. O humorismo uma atitude de defesa de quem, no quotidiano, tem uma estreita viso da vida.MC Poderia para ti ser um elemento novo. Uma chance extra para escrever uma obra-prima, visto que, segundo me dizes, esta no pode ser seno uma obra composta, contraditria. PPP De facto. S que no consigo imagin-lo a caminho do romance.MC Em que outra via, ento? PPP Neste momento, diria que na do teatro. Mas nota bem que se trata de uma considerao pessoal. Teoricamente, a obra-prima pode nascer em qualquer lado. Mas hoje, a mim, no me apetece escrever nem romances nem poesia. No escrevo poesia porque no tenho destinatrio. J no sei a quem me remeter. Sei que existem em Itlia umas dez mil pessoas que amam a poesia. Mas a elas remeto-me mesma, ainda que no escreva. MC E quem o destinatrio natural de um poeta? PPP Quem o poeta acreditar ser to idealista e quixotesco quanto ele prprio. Quando o idealismo do poeta comea a abrir falhas, assim tambm acontece com a f no idealismo dos outros; sente ento que j no existe destinatrio para a sua poesia. MC E o romance, porque no? PPP Pelas razes que j te disse, e tambm porque a realidade italiana est em arrumaes enquanto o

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    Pergunto-me a mim mesmo / porque que, sendo uma tragdia, / no se fecha com novo sangue?WILLIam Van WatSon*

    * Pylades, in Pier

    Paolo Pasolini and the

    Theatre of the Word.

    Ann Arbor: UMI

    Research Press, 1989.

    Trad. lus lima Barreto.

    Plades foi a primeira pea de Pasolini a ser apresentada aos leitores, tendo aparecido na revista Nuovi Argomenti em 1967. Contm algumas passagens lricas muito belas mas, de certa maneira, o ltimo dos seus dramas poticos. Nele, Pasolini utiliza as palavras num sentido mais denotativo do que conotativo, mais preocupado com as ideias nele contidas. As prprias personagens so anuladas, representativas dessas ideias. Na opinio do crtico Paolo Emilio Poesio, a pea peca por ser demasiado emblemtica. Este seu aspeto emblemtico deriva do facto de ser essencialmente uma alegoria, j que Pasolini examina a evoluo da sociedade italiana contempornea, estabelecendo uma relao com a Oresteia de squilo.

    A pea comea com a queda do fascismo, representando Argos a Itlia, depois da Segunda Guerra Mundial, espera de um novo governo. Egisto e Clitemnestra foram mortos, tal como Mussolini foi assassinado e a monarquia italiana foi dissolvida. Orestes chega para trazer uma nova ordem, que trouxe de uma nao mais avanada, / para a minha, ainda rural e obcecada / com a pobreza e a religio. A nao mais avanada uma referncia aos Estados Unidos, e, nessa ordem de ideias, Orestes oferece a Argos a democracia. Ele declara: A nova revoluo no obra / deste ou daquele homem, ou de um grupo deles: / obra da cidade inteira! Similarmente, toda a populao de Itlia votou como um todo pela repblica e pela constituio.

    Este triunfo da democracia inaugura uma era de positivismo e Argos comea a prosperar materialmente, criando uma economia baseada no capitalismo. A nova ordem de Orestes apresenta-se como um boom semelhante ao que experimentou a Itlia do ps-guerra, nos anos de 1950:

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    como se ns mesmos a tivssemos concebido...A sua hora no a alvorada, nem o crepsculo,mas sim o pleno pulsar do dia, e o seu cultono requer santurios espalhados por esses campos fora:os seus lugares so de preferncia os mercados, as praas,os bancos, as escolas, os estdios, os portos,as fbricas.

    De facto, a religio secularizada numa sociedade que separou a estrutura do poder poltico dos preceitos espirituais. Argos representa todas as democracias que abandonaram o direito divino e a Grande Cadeia do Ser, defendendo a separao da igreja e do Estado. Electra forada a admitir: As Frias no templo, Atena no parlamento.

    Esta separao equivalente prpria queda; um sintoma do universo desintegrado. A prpria promoo da razo feita por Orestes insinua o vazio existencial percetvel como resultado dessa desintegrao. Tal como Argos, e por extenso, todas as democracias do laissez-faire se baseiam na razo, refletem esse vazio existencial. O Coro pergunta a Orestes:

    Mas que disse o povo de Atenasao ver-se j sem Rei com um poderfundado, justamente, no terror daquelas antigas Deusas?Que disse ele, ao ver-se entregue a si prprio?

    Tanto no vazio existencial como na democracia, o homem deve ser totalmente responsvel pelos seus atos, uma vez que o seu mundo no faz parte de um todo mais alargado, sendo, em vez disso, uma sua arbitrria e hermtica criao.

    Por consequncia, lgico que a justia deixe de ser divina. Orestes pode ento ser indultado dos assassnios de Egisto e de Clitemnestra por um jri humano e, uma vez que os jurados no podem apelar para a interveno de um deus no seu julgamento, ficam entregues a si prprios para determinarem se h culpa ou inocncia. Em As Moscas, o filsofo e dramaturgo francs Jean-Paul Sartre afirma que o homem carrega consigo a sua prpria punio. Em Plades, Pasolini apresenta o corolrio lgico da assero de Sartre: se o homem se pode condenar a si prprio, tambm se pode absolver a si prprio. O Coro, em Plades, diz a Orestes: Tu s o inventor da tua liberdade.

    Contudo, se a inocncia de Orestes aceitvel, ela tambm arbitrria, j que arbitrria qualquer aplicao da razo num vazio universal. A prpria Atena contesta a confiana de Orestes na razo, censurando-o pela sua arbitrariedade, pelo seu hermetismo e profundo alheamento. Ela diz-lhe: que a Razo, sabes?, no podendo jogar com as coisas, preza os jogos de palavras! Noutro momento, diz-lhe: A Razo brilhante. No s joga com as palavras, mas at com o raciocnio! De facto, Atena deleita-se com jogos de palavras e a procurar argumentos que sejam ambguos, equvocos e at mesmo absurdos, mas mesmo assim lgicos.

    Apesar da absolvio de Orestes, persiste na pea uma ideia de pecado original. Plades avisa Orestes:

    O trabalho dava frutos imediatos.Prdios, fbricas, pontes alvejaram,feitas de claras matrias nunca vistas. Nasceramnovas tcnicas.A vida, no seu dia-a-dia, mudou de feio.

    O xito do capitalismo do ps-guerra italiano foi em parte possvel pela defeo do Partido Socialista Italiano (PSI), ao afastar-se da esquerda para participar num governo de coligao com a ala mais direita da Democracia Crist, apoiada pelos americanos. por isso que Pasolini se refere a Orestes como o prncipe socialista (Poeta das Cinzas).

    Alinhando com os democratas-cristos, o PSI excluiu efetivamente do governo os comunistas, o segundo maior partido italiano, pelo que esse governo no representava as massas, apoiando a estrutura de poder do capitalismo burgus. Assim, no criou aquilo que o Partido Comunista Italiano considerava um verdadeiro sistema igualitrio. Do mesmo modo, Orestes, proclamando uma nova ordem, mantm tanto poder na nova Argos democrtica como o que teria tido no antigo regime. O nome e a ideologia da estrutura de poder podero ter mudado, mas a estrutura de poder permanece to hierrquica como a da anterior ordem monrquica. Nota Rinaldo Rinaldi que o boom do perodo ps-guerra triunfa at ao momento em que uma pessoa se d conta de que esse feliz progresso representa exatamente a mesma velha injustia de Agammnon, Egisto e Clitemnestra (o fascismo).

    Pasolini critica a incapacidade de se criar um verdadeiro sistema igualitrio entre o povo, cuja passiva cumplicidade suporta a nova hierarquia. O Coro censura-se a si prprio: Mas ns... seremos porventura melhores? / Ns, que mais no sabemos fazer / do que esperar por uma nova autoridade? Plades argumenta que o povo s votou na democracia porque a figura autoritria de Orestes lhe disse para o fazer. Os dois confrontam-se:

    orestes: E foram eles, tambm, que nos elegeram!Plades: Ao darem o voto, quem os aconselhava? Quem tinham a seu lado? Atena, se calhar? No! Tinham ainda a seu lado, como dantes, Um novelo de serpentes.

    A burguesia d subtilmente a entender que representa as massas para manter o seu prprio poder e autoridade.

    A nova e opulenta sociedade materialista que Orestes encoraja em Argos est baseada na razo. Aconselha a rejeio dos antigos deuses a favor de Atena. Nascida j crescida da cabea de Zeus, Atena no produto de uma paixo animal, mas puro racionalismo cerebral. a deusa da razo e, como tal, anuncia uma era iluminada. Orestes elogia-a:

    a mais nova de todos os Deuses. No nasceunos tempos antigos, o seu partono se perde na noite dos tempos.Veio hoje luz, entre ns,

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    materialismo redutor veiculado pelo capitalismo burgus. So ambos produto da razo e pressupem uma insupervel queda universal. Em vez disso, Electra advoga uma religio no-utilitria, primordial e natural. Rejeita a cerebral conscincia de si prprio da sociedade burguesa de Orestes, mesmo quando ela rejeita a razo. Groppali compara judiciosamente Electra Medeia de Pasolini, defendendo que ambas aspiram comunicar com um universo abstrato atravs de signos e smbolos (Lossessione e il fantasma).

    A religio de Electra inspira-se na luz da alvorada e do crepsculo, deixando ao culto de Atena a luz do corao do dia. Enquanto a luz do dia de Atena favorece o esclarecimento, a inspirao oferecida pela luz do sol no horizonte ofusca na sua intensidade. Orestes nota, aludindo aos seguidores de Electra: Uma mesma fonte de luz que cegando-os os exalta, / rgidos como certos padres loucos, e contudo purificados / pelo seu dio fantico e irracional. moderao da razo de Orestes contrape-se o excesso potencialmente destrutivo da paixo de Electra. O seu positivismo polariza a sua religio para uma crescente posio niilista, que ela no entanto defende. Ela diz a Orestes: Nesse (meu) dio / h mais amor do que em toda a tua fraternidade. O seu dio, pelo menos, oferece compromisso e eterno, ao passo que a fraternidade dele oferece apenas alienao e efmera.

    De uma maneira paradoxalmente positivista, Orestes tenta pr em prtica o dio dela. Faz uma aliana de convenincia com ela para se aproveitar dos seus soldados. De acordo com o ideal fascista, so eles os mais valentes, motivados, no pelo capital ganho, mas por sentimentos de um patriotismo atvico. s por meio desta aliana que Orestes consegue desafiar os revolucionrios de Plades.

    Embora Orestes seja jovem e interessado em estabelecer uma nova ordem em Argos, Plades quem representa a figura de dipo na pea. medida que a sociedade democrtica de Orestes evolui, Plades torna-se no provocador que procura representar os que so privados dos seus direitos no sistema. Tal como Pasolini, Plades fala para o subproletariado, para as classes mais baixas e o campesinato. No entanto, e tambm como o nascido burgus Pasolini, Plades no membro dessas classes que afirma representar. Amigo de infncia do prncipe Orestes, Plades nascera, pelo contrrio, na classe superior. De facto, o Coro desconfia dos motivos do altrusmo poltico de Plades ao incitar revoluo. Avisa Orestes:

    Ou seria um desejo de poder, que noutro ladoera irrealizvel?[] Ele quer ser o que tu s.

    Invejoso do poder de Orestes, o Plades edipiano est to exposto como poderia ter estado Laio. A prpria Atena afirma que Plades lhe fiel sua maneira.

    Plades simpatiza com os excludos do poder porque ele prprio sofre uma espcie de excluso que , contudo, na sua origem, talvez mais existencial do que poltica. A sua inteligncia superior atormenta-o com uma aguda conscincia de autoalienao e uma irnica indiferena burguesa. Ele declara: Sou uma alma penada / e nem sequer estou muito certo / da

    Mas o teu esprito volta atrs [] Tu, as Frias, no as vsporque esto demasiado perto de ti.[] E embora Atena te tenha iluminado com a sua pura Razo, s impuro,porque em ti h a tua histria.

    A inocncia legal de Orestes no lhe traz uma inocncia espiritual. A sua confiana no processo racional no pode purgar-lhe a alma, nem a sua defesa de Atena significa que as Frias j no existem. De facto, o triunfo da razo posto em dvida quando as Frias regressam para contaminar os campos.

    Confrontado com a persistncia das Frias no seu novo mundo racional, Orestes tenta acalm-las, sublimando-as e reprimindo-as no campo do sonho, onde os impulsos irracionais e primitivos que as Frias representam podem ter rdea solta. Dormir, portanto, torna-se numa maneira de venerar as Frias. Orestes clama: dormindo que se ama mais puramente. Os sonhos so de novo, como em Caldern, o lugar onde o eu original existe e pode estar de acordo com o seu prprio mundo. Contudo, ao relegar o irracional para o inconsciente, Orestes torna-o ineficaz no mundo exterior e acordado. Assim, as Frias j no podem mais representar uma ameaa para o racionalismo material da nova Argos. Orestes deste modo astutamente permissivo, uma vez que os sonhos se transformam no processo burgus para absorver o irracional.

    Electra a campe da velha ordem. Pasolini descreve: A regresso de Electra, / ela, filha que amou o Rei seu pai, / e que agora fascista (Poeta das Cinzas). Ao contrrio de Orestes, ela assume a sua parte de culpa pelo assassinato de Egisto e Clitemnestra. At chegada de Orestes, a sua vida consistia em peregrinaes dirias aos tmulos dos pais e igreja. Chegou mesmo a recuar nas suas ideias, ao elogiar a me por ter tomado parte no ritual dos reis. Diz: Mas agora que ela est morta, outra vez rainha. O ritual serviu para reintegrar Clitemnestra no universo. Enrico Groppali diz que matar significa conformar-se com a harmonia do universo. A morte oferece transcendncia. Com a sua apaixonada e instintiva reverncia pela morte, Electra parece encarnar a mxima de Lacan de que a morte constitui no sujeito a eternizao do seu desejo, que na sua prpria vida ganha todo o significado que ela tem. De acordo com esta filosofia, Electra e os seus seguidores vestem-se de preto. Ela acalenta o ritual espiritual e tradicional e at mesmo a maldio da casa. Esta maldio oferece-lhe um sentimento de harmonia com o universo anterior queda. Para ela, uma manifestao de um plano bastante mais amplo. Ela acredita que, uma vez que Orestes abdica do seu papel no ritual dos reis e da sua concomitante culpa, tambm deve renunciar a qualquer sentido de harmonia universal anterior queda e integrao que ela lhe poderia aparentemente oferecer.

    Apesar desta posio reacionria, mesmo fascista, de Electra, Pasolini no a trata com antipatia, apreciando mesmo a sua crena no mundo espiritual e num universo original e ntegro. Pasolini defende que uma m religio ainda uma religio (O Enigma de Pio XII, Le poesie). Aqui, Pasolini ataca declaradamente a famosa afirmao de Marx de que a religio o pio do povo, acusando a clssica ideologia comunista de promover o mesmo

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    um todo, uma vez que a sua unio se torna apenas na dupla expresso da sua impotncia combinada. Da sua aliana poltica resultar apenas o fracasso da revoluo.

    Do mesmo modo, a sua relao sexual redunda apenas no fracasso de uma transcendncia orgsmica. Eles so aquilo a que Lacan chamou seres parcialmente sexuados. Guido Santato nota que Plades e Electra esto ligados por um anlogo destino de incompletude respetivamente, o macho frustrado e a fmea scubo. Longe de ser etreo e romntico, o sexo entre eles degenera numa desesperada insistncia sadomasoquista, afastando-se do racional, um simulacro de uma integrao mais autntica. Plades nota:

    embora a violncia da carne me arraste,com o meu smen, para fora de mim,numa fuga que me quer libertar,algo de nauseante e impuro, mas definitivo.

    Groppali descreve um processo semelhante em Electra quando, uma vez mais, a compara Medeia de Pasolini. Afirma: A sacerdotisa degrada-se numa mulher-animal, que procura no sexo um substituto ardente capaz de gravar um sinal no universo. Em contraste com a masturbao inicial e o celibato, o sexo deles nauseante e impuro, porque a sua natureza procriadora uma afirmao da sua queda, imperfeio e mortalidade. Como tal, a sua unio na realidade uma forma de resignao e autonegao. A heterossexualidade deste modo mostrada como forma de proporcionar a reintegrao do eu no universo, to niilista como a oferecida pelo ritual da morte dos reis. De forma bastante apropriada, Plades e Electra tiveram a primeira unio num cemitrio.

    Em contraste, o amor no-procriador entre Plades e Orestes puro. So o verdadeiro complemento um do outro: juntos, poderiam criar um todo ntegro. Orestes alto, loiro, glorioso e gil. Plades robusto, moreno, taciturno e ardente. Como tpico em Pasolini, as suas caractersticas fsicas complementares refletem apenas as suas naturezas mais profundamente complementares. A sua unio sexual poderia fornecer a transcendncia que Plades procura inutilmente com Electra. Groppali refere a inverso sexual como a dupla possesso do falo, o orgulhoso autoconhecimento da virilidade absoluta. O poder absoluto desta virilidade implica a possibilidade de uma recuperao da queda.

    Contudo, Plades e Orestes nunca se uniram, nem poltica nem sexualmente, nem mesmo espiritualmente, apesar do profundo vnculo entre eles, vindo j da infncia. Nessa altura, o autoconhecimento adulto dos seus papis sociais no se tinha ainda manifestado. No tinham conhecimento da mulher como o outro, mas apenas um do outro, como extenses narcisistas secundrias de si prprios. Pasolini refere-se a esse perodo anterior chegada da idade adulta como quando as mulheres eram para ele desconhecidas; / e das horas que passaram em conversas sobre o amor / e a alma / que nada tm a ver com a realidade presente (Poeta das Cinzas).Num sentido, como extenses narcisistas um do outro, Plades e Orestes so agora a mesma pessoa. A sua diviso em duas personagens representa

    sinceridade da minha dor. Plades responde a esse sentimento de alienao, rejeitando as regras do comportamento burgus que reprime o homem- -animal e explora as contradies do eu dividido. Recusa uma identidade que contingente num contexto social e desdenha a sociedade respeitvel que o seu patrimnio, em favor dos elementos mais antissociais da nova Argos, do prprio submundo. O Coro descreve o comportamento de Plades como no muito diferente da relao de Pasolini com os jovens prostitutos do subproletariado romano:

    Parece que ele, rejeitando as nossas jovens em flor,tinha amores com moas mais vidas que ciganas,com mulheres pagas e bem assim com horrveis mes para as violar e por elas deixar-se violar...

    Plades recorre ao sexo como algo de irracional e irredutvel. Apesar do seu comportamento fazer dele um pria sexual, ele prefere esta alienao social ao sentimento agudo e constante de autoalienao existencial que a sociedade respeitvel lhe impe.

    Est tambm perfeitamente consciente de que o triunfo da razo contingente perante o sacrifcio de um universo para ele integrado para se satisfazer com ele. Olha para o progresso material de Argos e v apenas a sua queda espiritual. Para ele, a estrutura democrtica burguesa da sociedade de Orestes uma mistificao, um artifcio. Por oposio estratgia positivista de Orestes, Plades afirma:

    Sou apenas escravo da realidade,sigo-a, observo-a, no tenho a mnima autoridadepara a reduzir ao meu poder e para a conhecer!

    Plades no aceita a justia humana. Rejeita a autoridade de Orestes para o considerar inocente. No quer reduzir a realidade dominando-a com um sistema de procedimentos racionais. Em vez disso, servo de uma realidade fora do seu controlo, sujeito s foras desconhecidas e misteriosas que esto para alm dela.

    Como Electra, Plades gravita numa espcie de niilismo quando confrontado com a nova sociedade materialista de Orestes. Declara ter um desejo / cego e irracional de destruio. Tambm como Electra, percebe que a morte reintegra o homem no universo. Comenta: UNO agora o sei / o lugar onde se nasce e onde se morre. Rejeita, como Electra, a luz do corao do dia, propagada por Orestes. Por consequncia, apesar de Plades ser um radical e Electra uma reacionria, os dois encontram um terreno comum no limite extremo das suas posies, opondo-se moderao e sensatez de Orestes. Apesar de Electra enfatizar o espiritual e Plades o animal, ambos tentam recuperar o irracional como meio de combater o lado cerebral de Orestes. Unem-se em razo da sua individual inabilidade para vencer a queda e despojar Orestes do seu poder. Separados, sero talvez incapazes, mas juntos esperam completar-se um ao outro. Mas as duas partes no conseguem fazer

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    Nem ele nem Orestes podem mudar o sangue um do outro, e precisam um do outro para perseguir a polmica dipo-Laio, no para um clmax mas como uma luta intestina contnua. Como Luca Canali afirmaria, a tragdia da pea assenta assim na sua incapacidade para ser trgica.

    Plades comea como a pea de Pasolini mais explicitamente dialtica. A sua estrutura uma sequncia virtual de teses-antteses-teses. Contudo, Pasolini infiltra-se e dissolve esta dialtica com uma revelao semelhante que faz Brecht na concluso de A Boa Alma de Setsuan. Atena comenta: Entre o amor liberdade e a necessidade das coisas / h uma ntima relao [] Por isso agirs bem, muito embora saibas / que tambm ests a agir mal. / Ou ento agirs mal por mor do bem. Assim, a tragdia convencional torna--se obsoleta, porque toda aquela abarcante e deflacionria tica burguesa substitui a dialtica de confronto que caracteriza tradicionalmente o drama ocidental.

    a natureza dividida do homem e a sua autoalienao. Quando Plades o abandona, Orestes constata: So as Frias que me apartam de mim prprio. Do mesmo modo, Plades tambm sofre o sentimento lacaniano do Eu um outro e deseja transitivamente essa parte de si prprio que est em Orestes. Defensor da razo, Orestes chora depois do seu encontro com Plades. Defensor do irracional, Plades combate Orestes com argumentos lgicos. So o yin e o yang, contaminados pela essncia um do outro, a ponto dos papis que representam na polmica dipo-Laio serem impuros. Como figura de dipo, Plades um Laio em potncia; como figura de Laio, Orestes um antigo dipo. dipo e Laio so um e o mesmo na sua origem, tal como Plades e Orestes. A dialtica dipo-Laio continua sem ser resolvida.

    Contudo, Pasolini resolve a ao da pea quando a revoluo de Plades acaba derrotada. Plades aspira a uma transcendncia existencial e poltica que Pasolini descreve com a mesma imagtica freudiana da luta usada em Caldern e Afabulao. Orestes chama a Plades uma guia que j voa rumo ao nada. Quando Orestes o desafia, diz-lhe:

    Ingnuo Plades! Os sentimentos que te impeliram[] atingiram agora em tio auge, uma extrema maturidade.

    Mas precisamente nesta altura que eles deixam de ter significado.

    Eu estou aqui a acolher-te com estas tremendas palavras,como um caador que mata o pssarono preciso momento em que o seu voo mais alto e seguro.

    A transcendncia impossvel e o desfecho imposto por Orestes permanece firme. Derrotado, o prprio Plades comea a suspeitar que a decadncia universal e no um mero produto da sociedade burguesa. Afirma: O mundo culpado e falsa a luz desses amanhs.

    este sentido de deflao e desencanto que marca a concluso da pea de Pasolini. Consciente da sua ligao yin-yang com Orestes, e da sua necessidade de uma estrutura de poder contra a qual se possa rebelar para representar o papel de dipo, Plades paralisado pela ambiguidade da sua prpria sinceridade. to derrotado pela sua autoconscincia e objetividade burguesas como por Orestes. Plades comenta:

    Pergunto-me a mim mesmo porque que, sendo uma tragdia, no se fecha com novo sangue?

    Pergunto-me a mim mesmo que sentido tema intriga de uma vidaque tanto buscou algumas verdadesdesfazer-se agoraem pura e simples incerteza?

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    aos leitores

    1. O teatro por que esperam, mesmo sob a forma de novidade total, nunca poder ser o teatro por que esperam. De facto, se esperam um novo teatro, esperam-no necessariamente no mbito de ideias que j so vossas; alm disso, importa precisar que aquilo por que esperamos j existe, de certo modo. Nenhum de vs ser capaz de dizer: teatro ou ento: No teatro, o que significa que tm dentro da cabea uma ideia de teatro perfeitamente enraizada. Ora, as novidades, mesmo totais, como sabem suficientemente, nunca so ideais, mas concretas. E, portanto, a sua verdade e a sua necessidade so mesquinhas, fastidiosas e dececionantes: no as reconhecemos, ou so discutidas tendo como referncia os velhos hbitos.

    Hoje, todos esperam o advento de um teatro novo, e a ideia que dele fazem nasceu no seio do velho teatro. Se estas notas assumiram a forma de manifesto, porque o que exprimem de novo se apresenta abertamente, ou at mesmo imperiosamente, como tal. No presente manifesto, o nome de Brecht nunca ser citado. o ltimo homem do teatro capaz de fazer uma revoluo teatral (no interior do teatro) no teatro: porque na sua poca prevalecia a hiptese de que o teatro tradicional existia (e, de facto, existia mesmo). Presentemente, como veremos neste manifesto, a hiptese que o teatro tradicional j no existe (ou est em vias de desaparecimento). Na poca de Brecht era possvel, portanto, realizar reformas, mesmo reformas profundas, sem pr o teatro em causa: alm disso, a finalidade destas reformas consistia em restituir-lhe a sua autenticidade teatral (tornar o teatro autenticamente teatral). Hoje, pelo contrrio, o que posto em causa o prprio teatro: e, portanto, este manifesto aspira a uma finalidade paradoxal: o teatro deve ser o que o teatro no . Seja como for, absolutamente certo: os tempos de Brecht esto definitivamente ultrapassados.

    os destinatrios do novo teatro

    2. Os destinatrios do novo teatro no sero os burgueses que compem geralmente o pblico teatral (de teatro): mas os grupos avanados da burguesia.

    Manifesto para um Novo TeatroPIer PaoLo PaSoLInI*

    * In As ltimas

    Palavras de um mpio:

    Conversas com Jean

    Duflot. Trad. Isabel

    St. Aubyn. Lisboa:

    Distri Editora, 1985.

    Traduo completada

    por luis Miguel Cintra a partir do texto integral.

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    No se cobe3 de se referir explicitamente ao teatro da democracia ateniense, pronto para transpor de um salto toda a tradio recente do teatro burgus, para no dizer de toda a tradio moderna do teatro do renascimento e do teatro de Shakespeare.

    8. Assistir s representaes do teatro da Palavra com a ideia de escutar (de ouvir) e no de ver (restrio necessria para compreender melhor as palavras entendidas e, portanto, as ideias de fundo, as personagens reais deste teatro).

    a que se ope o teatro da Palavra?

    9. Todo o teatro pode definir-se em dois tipos: estes dois tipos podem dar lugar a diversas definies, segundo uma terminologia seriamente escolhida, por exemplo: teatro tradicional e teatro de vanguarda; teatro burgus e teatro antiburgus; teatro oficial e teatro de contestao; teatro acadmico e teatro de underground, etc. Mas, a estas definies srias, preferimos duas definies mais vivas:

    a) teatro de conversao (e aqui aceitamos a brilhante definio de Moravia);b) teatro do gesto e do grito.

    Precisemos imediatamente: o teatro de conversao aquele em que a conversao, justamente, substitui o texto (a ttulo de exemplo, em vez de se dizer, sem humor, sem nenhum sentido do ridculo e da educao: Queria morrer, dir-se- sem amargura: Boa noite); o teatro do gesto e do grito aquele em que o texto completamente dessacralizado, ou at destrudo, em benefcio da presena fsica pura (cf. mais adiante).

    10. O novo teatro define-se, pois, como teatro da Palavra por oposio: ao teatro de conversao, que implica a reconstruo de um meio e uma estrutura espetacular naturalista: sem o que os acontecimentos (homicdios, roubos, bals, beijos, abraos e golpes de teatro) no seriam representveis; dizer Boa noite em vez de Queria morrer no teria sentido porque lhe faltaria o clima (as atmosferas) da realidade quotidiana.

    E tambm por oposio ao teatro do gesto e do grito, o qual contesta o primeiro fazendo tbua rasa das suas estruturas naturalistas e desconsagrando os seus textos: sem, contudo,