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Livro: História da Igreja CatólicaAutor: Pierre Pierrard

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HISTRIA DA IGREJA CATLICAPierre Pierrard

Contracapa:Esta Histria da Igreja Catlica, bem elaborada, acessvel e estruturada, oferece ao leitor as articulaes, os dinamismos, as tenses e os malogros de uma evoluo que no revela apenas as lies mas ainda a inteligncia da economia divina: uma Igreja no Mundo.Um clssico recomendado a quem deseja uma viso de dois milnios cristos.

OUTRAS OBRAS PUBLICADAS:Janice T. Connel,ENCONTROS COM MARIAJanice Connell fez uma pesquisa vastssima e apresenta crnicas autnticas das aparies de Nossa Senhora, onde se destacam as do sculo XX, histrias - contadas e gravadas em santurios e locais de peregrinao; documentao reunida em universidades, igrejas, sinagogas, mesquitas, templos, presbitrios, conventos.

Thomas MooreA ALMA E O ESPRITOO to aguardado complemento de O SENTIDO DA ALMA"A espiritualidade nunca deve ser usada como um tubo de escape mas deverer catalizar este potencial para procurar novos caminhos para a vida luz de uma nova espiritualidade. Este novo livro apresenta Moore no seu melhor, retirando os ensinamentos dos textos sagrados, das igrejas e dos plpitos aplicando-os realidade diria Fazendo uma abordagem dos cultos do Cristianismo, do Zen e do Tausmo, Moore revela-nos que a religio no dever ser usada como uma concha, mas como uma ferramenta que nos liberte e apele ao humanismo, empatia e a uma melhor forma de nos relacionarmos com os poderes criativos..."PUBLISHERS WEE

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PIERRE PIERRARDHISTRIA DA IGREJA CATLICADois milnios cristos incluindo actividade pastoral de Joo Paulo II at 2002 em Apndice Complementarpor P. Artur Roque de Almeida

PLANETA EDITORA

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A Colette

Ttulo original: Histoire de l'glise Catholique by Pierre Pierrard

Reservados todos os direitos desta obra para publicao em Portugal de acordo com a legislao em vigor por:PLANETA EDITORA, LDA.Travessa do Noronha, 21-1 F - 1250-170 Lisboa Telefone 21 397 87 56 - Fax: 21 395 10 26www.planetaeditora.pte-mail: [email protected].

Traduo: Serafim FerreiraReviso Literria: Frederico SequeiraCapa: Jos LaranjeiraComposio, impresso e acabamento: Grafitexto, Lisboa

Depsito legal n 185790/02ISBN 972-731-135-0

Proibida a reproduo no todo, ou em parte, por qualquer meio, sem prvia autorizao do editor

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NOTA DO EDITOR

A Histria da Igreja Catlica, que agora se publica em edio portuguesa a partir da 3 edio francesa revista e aumentada em 1991, uma das muitas que Pierre Pierrard assinou, e desde h muito um clssico, recomendado no apenas aos iniciados na disciplina de Histria, mas tambm a quem deseja ter uma viso completa, precisa e atraente destes dois milnios cristos.A edio francesa cobre os acontecimentos que marcaram a Igreja Universal e a actividade pastoral de Joo Paulo II at ao ano de 1990 e apresenta uma ampla bibliografia, classificada segundo os grandes perodos e justamente comentada. Em anexo, e depois da celebrao do Bicentenrio, o Autor apresenta o essencial das publicaes recentes sobre a Igreja e a Revoluo Francesa. E estes contributos confirmam, sem dvida, o interesse pedaggico j elevado desta obra sempre renovada, destinada a atravessar o limiar do milnio.Esgotada a edio portuguesa, no quisemos reeditar esta obra sem atender s vrias crticas feitas a determinadas falhas existentes nessa edio. Assim, para melhor servir o leitor, fez-se uma reviso profunda da traduo, aproximando-a o mais possvel do pensamento do autor.Conforme assinalamos, a edio francesa termina com a actividade pastoral do papa Joo Paulo II at 1990 pelo que

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decidimos solicitar a colaborao de Artur Roque de Almeida, antigo Professor de Histria da Igreja da Universidade Catlica de Lisboa que amavelmente se disponibilizou completando e actualizando em Apndice Complementar a actividade pastoral do Santo Padre at ao final do sculo XX.

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PREFCIO

Historia est magistra vitae: mxima admirvel que condensa, ao mesmo tempo, uma experincia milenar e um princpio de elevada cultura. urgente que, contra as reivindicaes infantis de uma espontaneidade que se afirma a nica criadora, se medite sobre as lies e as leis da Histria, tanto para o conhecimento das civilizaes como na tradio viva da Igreja. O enraizamento inteligente no passado a garantia da projeco do futuro; o presente no mais que o ponto nevrlgico desta dialctica. precisamente a que nascem os profetas. verdade que o nosso axioma no deixa de ter alguma ambiguidade e que a prpria palavra histria, sobretudo na nossa lngua (1), abarca contedos e mtodos muito diferentes. O recurso Histria um mtodo equvoco. Ento, como ler esta Histria da Igreja, de forma a corresponder tanto inteno do autor como verdade do seu objecto? Seria inquietante verificar que, na Igreja em despertar evanglico, a renovao bblica e a renovao litrgica no engrenam, com uma sensibilidade mais viva, no movimento da Histria, abandonando-as a um positivismo pastoral demasiado tacanho, fora da compreenso de uma economia definida como "histria da salvao", iluminada pelos "sinais dos tempos", inclusive na vida sacramental.

Nota 1: Francesa e, na portuguesa, igualmente. [N. do T.]

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Durante vrios sculos, incluindo a Idade Mdia at cerca de meados do sculo XIX, considerou-se a histria um conjunto de "modelos" (de exempla, dizia a lngua latina medieval) e o seu objectivo uma empresa moral. Os "ensinamentos" da Histria no se podem resumir a estas lies, cuja referncia ao passado implica o imobilismo do homem e das sociedades. Frequentemente, a Histria da Igreja tratada apenas como um reportrio, onde tanto o telogo como o pastor vo buscar enunciados e normas j estabelecidos, com o perigo de se ficarem por adaptaes casusticas. Por isso, compreende-se a impacincia dos "inovadores".Trata-se de um grave malentendido, tanto da histria do homem como da tradio da f. Esse positivismo dogmtico esvazia a dimenso essencial de uma economia que desencadeia e anima a entrada de Deus na Histria. Na verdade, a Histria entra no tecido da f, que a encontra no apenas materiais exemplares, mas tambm a compreenso do seu dinamismo; porque "o Esprito, que conduz o curso dos tempos e renova a face da Terra, est presente nesta evoluo" (Vaticano II, Constituio da Igreja Gaudium et spes, 26).O que importa, portanto, que o cristo, desde o momento em que nele emerge a conscincia do seu ser cristo, esteja disponvel ao entendimento da Histria, da Histria "sagrada", incluindo os condicionamentos terrestres que constituem o lugar de seu mistrio. No se trata de curiosidade de erudito, mas de maturidade da f.Eis aqui, portanto, uma Histria da Igreja elaborada em traos rpidos e agradavelmente acessvel que, estruturada com delicadeza e ttulos sugestivos, revela ao leitor as articulaes, os dinamismos, as tenses e os fracassos de uma evoluo que no fornece apenas lies, mas tambm o entendimento da economia divina: uma Igreja no Mundo.M. D. Chenu

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IA IGREJA OCULTA

Captulo IO NASCIMENTO

1. O terreno: a civilizao greco-romana, o judasmo

O fundador do cristianismo Jesus de Nazar. Nazar era uma pequena cidade judia perdida no seio do imenso Imprio Romano. Portanto, Jesus nasceu judeu, sbdito de Augusto. A sua doutrina surgiu numa terra enriquecida pela civilizao greco-romana e pelo judasmo.Quando Jesus nasceu, o mundo romano estava em paz. Nas costas do Mediterrneo estendia-se um imprio admiravelmente organizado: Roma era o seu corao vivo e a sua luz; ao conquistar o mundo, o seu povo de camponeses-soldados, tinha-se educado. Mas o panteo romano - que o Olimpo grego havia reforado e renovado - mantinha apenas o prestgio de lendas deslumbrantes. Claro, havia sempre soldados para invocar Marte, doentes para implorar a Esculpio e artesos para pedir a proteco de Minerva. Nas provncias pacificadas, a deusa Roma e o divino Imperador ainda despertavam um sentimento de reconhecimento que poderia passar por culto. Mas o helenismo difundira amplamente no mundo mediterrnico o gosto pelas coisas do esprito, assim como uma nova concepo do homem: o cosmos, entendido como um todo animado por uma lei racional e ao qual o homem deve harmonizar a sua vida. Pregadores de linguagem realista e plena de imagens falavam de

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um Deus universal, centro e animador do mundo; proclamavam a igualdade e a fraternidade dos homens, canonizando o exerccio asctico como fonte da sua verdadeira felicidade e da paz de esprito.Por outro lado, as conquistas de Alexandre haviam colocado o mundo grego em contacto com o Oriente; ora, a Frgia, a Capadcia, a Sria e o Egipto eram ricos em cultos antropomrficos e naturalistas com ritos excitantes. De Alexandria, chegaram aos portos mediterrneos - e da s cidades, at mesmo a Roma - os mistrios de Isis, a deusa benfeitora, me de toda a civilizao, e de Serpis, o protector da sade que faz do homem o eterno contemplador dos deuses. Os marinheiros fencios e os comerciantes srios propagaram o culto colorido dos Baals e a ideia, to cara aos semitas, da transcendncia divina. Uma liturgia sensual e purificadora instalara-se no prprio corao de Roma, com Cibele, a grande me de Pessinunte. O orfismo desviava os espritos do pensamento discursivo, levando-os a considerar que entre Deus e o corao dos homens havia intermedirios, um Verbo, diziam os pitagricos. Mas era, sobretudo, para Mitra, o jovem deus-sol dos Arianos, cujo culto se fortalecia na astrolatria caldeia, que se voltavam as almas que se sentiam convidadas a satisfazer a sua necessidade de imortalidade e de justia.No centro deste mundo to diversificado, simultaneamente corrompido e suspirando pela pureza, velava, irredutvel ao sincretismo helenstico, o pequeno povo judeu.Era realmente um povo parte. Na Palestina - a Terra Prometida - no passavam de um milho. Os judeus da dispora, cinco a seis milhes, formavam colnias importantes na Mesopotmia, na Sria e no Egipto, sobretudo em Alexandria. No entanto, o corao de todos estava em Jerusalm, cidade nica: no que ela se pudesse comparar a Antioquia ou a feso, mas porque o seu Templo era a morada do Deus nico, o refgio de um monotesmo muito elevado que dava a cada um dos filhos de Israel, por mais pobre que fosse, a conscincia de uma superioridade indestrutvel. Todos estavam unidos pela f num Deus

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santo, transcendente, que criou o homem sua imagem, que o convida esperana num messias libertador e numa eternidade bem-aventurada, cumulada pela contemplao das perfeies divinas.Entre este Deus - Yahweh = Jav - e o seu povo h uma ligao concreta, santa, viva: a Tora - lei de Moiss ou Pentateuco -, ao mesmo tempo fonte da vida e da sabedoria, e colectnea de preceitos religiosos e morais que completava um ensino oral transmitido de gerao em gerao. O sindrio, presidido pelo sumo sacerdote, e os escribas eram os guardies desses tesouros, cuja posse fazia dos Judeus o povo de onde viria a salvao.Mas o judasmo alexandrino j assimilara as riquezas do platonismo e do estoicismo. Flon de Alexandria (13 a. C. - c. 54 d. C.) era um representante tpico desses judeus helenizados que organizavam a doutrina extrada das Escrituras num sistema teolgico e filosfico elaborado, cuja influncia chegava s comunidades judaicas da sia Menor e da Sria. Este sistema preparar o caminho para a teologia crist.Na Palestina, a situao era outra. No tempo dos Selucidas, os Judeus permaneceram refractrios ao helenismo. Quando Antoco Epifnio ousou erguer um Jpiter olmpico no prprio corao do templo, levantou-se, atrs dos Macabeus, um povo inteiro armado para a guerra santa e que triunfou. Quando a fora invencvel de Roma acabou por sujeitar Israel condio de vassalo, o povo de Deus apegou-se sua f com um fervor ainda maior e uniu sua volta os melhores dos seus filhos, os fariseus (perouschim = separados) herdeiros dos Hasidim (os piedosos) do tempo dos Macabeus.Para os fariseus, cuja vida religiosa se centrava na meditao e na prtica da Lei, o judeu que ensinasse grego a seu filho era maldito. Exigiam a rgida observao do sabat, a pureza leal e o pagamento das dzimas sagradas, porque a seus olhos, a alegria nascia dessa fidelidade aos mais pequenos mandamentos de Deus. Alis, mantinham a f na imortalidade da alma, na ressurreio, na existncia dos anjos, ao contrrio dos saduceus, que apenas se cingiam s prescries da Tora.

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Ao fervor farisaico - guardio da chama sagrada - ligava-se o ardor dos zelotas, resistentes que combatiam abertamente os Romanos e representavam o nacionalismo judaico na sua forma virulenta. E os essnios (cerca de quatro mil) levavam, margem da vida religiosa oficial, uma vida de cenobitas, obedecendo a uma regra rigorosa.Foi no seio deste pequeno povo indomvel que nasceu Jesus.

2. Jesus

"O nome de Jesus no se inscreveu simplesmente na histria do Mundo; marcou-a profundamente", escrevia Emerson. Nisso, toda a gente est de acordo. Mas, entre os estudiosos, h divergncias sobre a realidade histrica da pessoa de Cristo e sobre a origem da sua mensagem. O homem comum, se no foi catequizado em profundidade, revela acerca de Jesus ideias j feitas ou confusas: um Jesus taumaturgo, charlato, vendedor de sonhos e de iluses, "o primeiro socialista do Mundo" ou, quando muito, "o grande amigo" consolador.Durante sculos, Jesus, filho de Deus, foi objecto de uma f quase sem problemas. A exegese alem, no sculo XIX, baseando-se nos progressos da filologia e da histria literria, e num conhecimento mais completo do Antigo Oriente, chegou a audaciosas concluses nascidas do racionalismo.J Reimarus (falecido em 1768) via nos apstolos apenas uns falsrios e nos Evangelhos a expresso de uma impostura; segundo ele, Jesus no passava de um profeta revolucionrio que fracassou. Com A Vida de Jesus, de David Strauss, publicada em 1835, desemboca-se em plena mitologia: segundo Strauss, os discpulos de Jesus, ao narrar a vida do Mestre, teriam criado um Cristo ideal. Um dos representantes mais clebres desta escola mtica foi Couchoud que, em O Mistrio de Jesus (1924), fez de Jesus o produto dos sonhos das primeiras comunidades crists. A essa escola se ops a escola de Tubinga, particularmente representada por F. C. Bauer (falecido em 1860) que se deixou levar pela fantasia de uma imaginao criadora.

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Para A. von Harnack (falecido em 1930), chefe da escola liberal, tudo o que, no Evangelho, ultrapassar o quadro do misticismo no ser mais que uma adaptao momentnea s concepes caducas da poca ou uma vegetao parasita que revela as deformaes efectuadas pelos discpulos na obra do Mestre. Em face deste misticismo de contornos nebulosos, a escola escatolgica (J. Weiss, A. Loisy e A. Schweitzer) desenvolveu uma concepo aparentemente mais positiva, que consiste em fazer descer o Evangelho ao plano do judasmo contemporneo. Por seu lado, os defensores da chamada escola "da histria das religies" (Bousset e Guignebert) procuraram a origem do cristianismo num sincretismo do judasmo com as religies pags do sculo I.Actualmente, a nova interrogao sobre o "Jesus da Histria" deriva das posies do exegeta luterano Rudolf Bultmann que aplica a Formgeschichte ("histria das formas") aos Evangelhos sinpticos e manifesta a originalidade do pensamento de S. Paulo e de S. Joo. Segundo ele, o Jesus da Histria no pode ser, se facto, alcanado pela investigao; a interrogao sobre o Jesus da Histria no se justifica teologicamente nem, alis, tem alguma importncia para a f. A partir de 1930, a escola de Lovaina, com L. Cerfaux, aplica sistematicamente ao estudo do Novo Testamento o mtodo da Formgeschichte, libertando-a dos pressupostos filosficos e dos preconceitos histricos.Como se v, Jesus permanece um "sinal de contradio".O que no impede a subsistncia de dvidas razoveis sobre a existncia de Jesus. Hoje em dia, j no se pe essa questo por se considerar intil. E muitos superaram o abismo que alguns pretenderam estabelecer entre o "Jesus da Histria", a personagem que viveu e morreu na Terra, e o "Cristo da f", desligado da Histria e prestes a tornar-Se uma personagem mtica.Na falta de uma biografia no sentido estrito do termo, possvel, graas aos Evangelhos, seguir Jesus ao longo da sua curta vida - uma trintena de anos - na Palestina, submetida ao jugo romano, e extrair uma mensagem que, mesmo para um incrdulo, se situa no nvel mais elevado da histria dos homens.

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Jesus nasceu da Virgem Maria, em Belm, no ano 5 ou 4 antes da era que tem o seu nome. Deitado numa manjedoura, teve como primeiros admiradores alguns pastores e, depois, uns magos vindos do Oriente. Aps uma estada no Egipto, instalou-se com Maria e Jos - seu pai adoptivo - na aldeia de Nazar da Galileia. No ano de 27, de l saiu para receber o baptismo das mos de Joo, que O apresentou s multides como "o cordeiro de Deus".Foi nas margens do lago de Tiberades que Jesus escolheu os seus apstolos - fundamento da sua Igreja - e foi a que comeou a sua pregao. Comentando um texto da Lei na sinagoga de Cafarnaum, assombra os seus ouvintes; pois, contrariamente aos escribas, fala com autoridade, solicitando que se ultrapassem as prescries farisaicas, afirmando que no tinha vindo para revogar a Tora, mas para lhe dar pleno cumprimento, e anunciar o Reino que vir.Ainda que Jesus tenha ido a Jerusalm para a celebrao da Pscoa, em 28 e em 29, na Galileia que a sua mensagem ganha expresso. Foi l que Ele proferiu as suas mais belas parbolas e foi s multides que acorriam Galileia que Ele ensinou o Pai-Nosso e anunciou a sua Paixo; foi para essas multides - esfomeadas e pobres como Ele -, que multiplicou os pes; foi sobre elas que lanou o estranho e paradoxal programa que deveria ser a carta de uma nova humanidade: "Bem-aventurados os pobres, os mansos, os aflitos, os que tm fome e sede de justia, os misericordiosos, os puros, os que promovem a paz, os perseguidos...", todos aqueles que o "mundo" rejeita, desde o aparecimento do Homem sobre a Terra.Quando, no fim do ano de 29, Jesus desce lentamente at Jerusalm, sabe que ser entregue aos Romanos. A glria dos Ramos precede de pouco a priso, o julgamento diante do sumo sacerdote e, depois, perante Pilatos, a morte na cruz e a sepultura, provavelmente em Abril do ano de 30. fcil admitir a morte de Jesus. J a sua ressurreio choca, escandaliza ou provoca sorrisos. No entanto, o testemunho dos apstolos centra-se na relao entre a morte e a ressurreio de Jesus: aquele que alguns viram agonizar, morrer e, passados trs dias, vivo, idntico a Si mesmo, capaz de ser apalpado e

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de partilhar a refeio dos seus amigos. o Cristo ressuscitado que os seus discpulos pregaro e que constitui o fundamento do cristianismo: "Se Cristo no ressuscitou, a nossa f v", escreveu Paulo. Foi no jbilo da ressurreio de Jesus e, depois, na expectativa de uma parsia iminente que as primeiras comunidades crists se expandiram.

3. As primeiras comunidades crists

Em 2 de Outubro de 1963, aquando do debate relativo ao esquema sobre a Igreja no Conclio Vaticano II, Mons. Van Dodewaard bispo de Harlem (Holanda), fez votos para que os laos entre a Igreja Catlica e Abrao e os Judeus fossem mais evidentes, "j que a Igreja herdeira do povo judeu". Fazia-se eco da expresso famosa de Pio XI: "Ns somos espiritualmente semitas." Porque o cristianismo nasceu da pregao de um judeu, cujos primeiros discpulos - igualmente judeus - se dirigiram, em primeiro lugar, aos judeus. Para o cristo, o Antigo Testamento inseparvel do Evangelho e dos escritos apostlicos.Os membros da pequena comunidade, a Igreja, que Jesus, aps a sua ascenso, deixara em Jerusalm, apresentavam-se como judeus que viviam a sua religio de uma forma mais pura do que os seus pais; porque, transcendendo o ensinamento bastante elevado, mas ritualista, dos fariseus, eles tinham como referncia as palavras do Mestre - considerado por eles como o Messias anunciado - que dava o lugar primordial s disposies do corao.Era uma comunidade bem temerria aquele primeiro grupo judeo-cristo que, durante algum tempo, viveu confinado sala superior da casa onde Jesus celebrara a Ultima Ceia. Pouco depois, acontece o Pentecostes, aquele vendaval que enche toda a casa; o Esprito que fortalece os coraes tmidos e transforma aqueles homens humildes em arautos to vibrantes perante quem os escuta que, desde o incio, os acusam de estarem bbedos. A festa judaica levara a Jerusalm uma multido enorme. Pedro, um pescador, ainda ontem um renegado, dirige-se a ela: "Israelitas, escutai estas palavras: Jesus de Nazar, homem

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que Deus creditou junto de vs com milagres, foi entregue conforme o desgnio e a prescincia de Deus; vs condenaste-O morte; mas Deus ressuscitou-O e disso ns somos testemunhas."Escutaram-no, sobretudo os judeus da dispora, o que explica a presena, bem cedo, de um pequeno grupo de judeus cristos em Damasco, Antioquia, Alexandria e Roma. Um certo nmero desses "helenistas" permaneceu em Jerusalm e, para se ocuparem deles, os "doze" designaram os diconos (em nmero de sete, dizem os Actos dos Apstolos). Estvo, um dos sete, uma figura de proa: no hesitando em identificar com a idolatria o culto prestado a Deus no Templo de Jerusalm, substitua-o, na sua pregao, pela nova ordem instaurada pelo Filho do Homem. Muito naturalmente, foi lapidado como blasfemo. A posio avanada de Estvo, porta-voz dos "helenistas", assinala uma primeira etapa na evoluo da comunidade judeo-crist.Durante a lapidao de Estvo aparece, pela primeira vez nos Actos, um jovem judeu da sia, Saulo, que mudar o nome para Paulo.Temos muito poucos elementos sobre a vida de Paulo antes da sua converso. A sua famlia, judia de origem, mas que havia adquirido o direito de cidadania romana, estabelecera-se na Cilicia, em Tarso, cidade amplamente aberta s rotas comerciais e aos sincretismos religiosos: foi a que Saulo nasceu no princpio da era crist; mas, em Jerusalm, seguiu as lies de um doutor famoso, Gamaliel, sendo atrado pelo ideal farisaico. Com um temperamento apaixonado, perseguiu o cristianismo nascente, no qual no via seno impostura.Derrubado do cavalo por uma fora invencvel no caminho para Damasco - "Saulo, Saulo, porque Me persegues?" -, passa algum tempo nos ermos do reino nabateu antes de rumar a Jerusalm, onde encontra os chefes da comunidade judeo-crist, Tiago e Pedro, e, junto deles, fortalece a sua f em Cristo crucificado e perseguido. De Jerusalm, parte para Antioquia na companhia de Barnab, onde o encontraremos a preparar a sua primeira viagem missionria.Na Palestina, os discpulos de Jesus alargam timidamente o seu campo de aco. Os Actos relatam o episdio da entrada

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na Igreja do eunuco - um semita - da rainha da Etipia, graas ao dicono Filipe. Os eunucos eram excludos da comunidade de Israel. Mais significativa ainda a pregao do mesmo Filipe, depois de Pedro e de Joo, aos Samaritanos, esses pestilentos, como lhes chamavam os judeus. Melhor: o Esprito que leva Pedro - que em Cesareia, cidade pag, baptiza o centurio Cornlio - a quebrar um tabu, universalizando a mensagem crist; mas os murmrios escandalizados - "Entraste em casa de incircuncisos e comeste com eles!" - que acolhem Pedro, no seu regresso, provam que os espritos ainda no estavam preparados para essa etapa.Nesse meio tempo, na comunidade crist, os ritos judaicos enriquecem-se com uma liturgia original: administrao do baptismo e tambm por ocasio das ceias comunitrias, o rito eucarstico da partilha do po. provavelmente no decurso dessas reunies que os irmos se interrogam sobre Jesus e a sua mensagem, rememorando as suas lembranas, interrogando as testemunhas da vida do Mestre, controlando os materiais de que so feitos os Evangelhos sinpticos. Mas a jovem Igreja aparece como o verdadeiro Israel e o Antigo Testamento atentamente examinado luz do Novo.

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Captulo IIFORA DA PALESTINA

1. Paulo

O caso de Paulo nico. Ao lado de Pedro e da comunidade judeo-crist, eis que surge um "novo", algum que no viu o Mestre, que no faz parte dos doze e que, assumindo inesperadamente uma vocao exigente, se lana no meio dos pagos, seus irmos, sendo o primeiro a perceber que se podia passar directamente da idolatria para Cristo. Personagem excepcional, a sua autoridade foi de tal modo fulgurante que alguns julgaram poder ver nele o primeiro foco do cristianismo; porque, enquanto os Actos dos Apstolos, dos seus vinte e quatro captulos, consagram quinze ao apostolado de Paulo, muito pouco nos informam acerca da actividade de Pedro - "o prncipe dos Apstolos" -, cujo rasto se perde rapidamente. Aos que opem Paulo a Pedro, pode responder-se que os Evangelhos - inclusive o Evangelho de Joo - sublinham, por vrias vezes, a importncia do papel de Pedro como intermedirio entre Jesus e os outros apstolos; que os Actos mostram Pedro a presidir eleio de Matias e a falar em nome dos seus; que o prprio Paulo, na sua primeira Epstola aos Corntios, apresenta Pedro como a primeira testemunha da ressurreio: alis, foi junto de Pedro que buscou a confirmao da sua misso.

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Isso no impede que este pequeno judeu helenizado seja, com toda a propriedade e significado da palavra, "o apstolo", isto , a testemunha, o pregador e o organizador. Paulo contribui para este apostolado com as riquezas de uma personalidade excepcional, de uma f ardente, de uma sensibilidade muito viva por vezes desconfiada, de uma vontade dominadora, de uma sade dbil, de uma inteligncia apurada pelas formas quotidianas da vida apostlica e de uma dialctica marcada tanto pelo rabinismo como pelo helenismo; enfim, de uma caridade insondvel.Trs grandes intuies deram a esta existncia a sua densidade: a universalidade do reino de Deus e da salvao pela f, o primado do esprito sobre a letra e a liberdade dos filhos de Deus.No ano de 44, Paulo encontra-se em Antioquia: Barnab, chefe da comunidade crist, chamou-o de Tarso, de onde se irradiou a sua fama de pregador. Durante um ano, Paulo e Barnab trabalham juntos. Na Primavera de 45, embarcam para Chipre e, depois, vo para a Panflia. Paulo, tornado chefe da misso, irradia influncia em redor de Perge e, depois, Antioquia da Pisdia; posteriormente, percorre a Licania: Icnio, Listra e Derbe. Por toda a parte, procede da mesma maneira: na sinagoga toma a palavra como lhe permite o ritual judaico e esfora-se por demonstrar pelas Escrituras que Jesus o Messias esperado por Israel; depois, a sua pregao orienta-se para os gentios. No lhe faltam dificuldades: aqui, os judeus incitam a multido a apedrej-lo; acol, tomam-no pelo eloquente Hermes, enquanto outros desejam adorar Barnab, cuja estatura evoca Jpiter.Regressado a Antioquia, Paulo choca-se com os judeo-cristos que pretendem ligar a salvao ao rito da circunciso. Embora sujeitando-se s prescries judaicas - "Para os que esto sujeitos Lei, fiz-me como se estivesse sujeito Lei, se bem que no esteja sujeito Lei, para ganhar aqueles que esto sujeitos Lei" -, Paulo no compreende que se imponha a circunciso aos gentios desejosos de ingressar na Igreja. A controvrsia levada a Jerusalm, perante os chefes da comunidade crist, Pedro e Joo, que avalizam os mtodos paulinos, malgrado a resistncia de muitos irmos.

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No Outono de 49, Paulo volta a sair de Antioquia para uma viagem missionria que durar trs anos. Separa-se de Barnab e leva consigo Silas, cidado romano. Em Listra, Paulo junta a si Timteo, jovem grego nascido de me judia. Os trs atravessam a Frigia e a Galcia, penetram na Macednia e alcanam Filipos, onde so presos. Chegam a Tessalonica, onde os judeus os acusam de actuar como adversrios do imperador ao apresentarem Jesus como rei. Chegam a Bereia; a sinagoga acolhe avidamente a palavra de Paulo, "examinando, todos os dias, as Escrituras para ver se tudo era exacto". E eis que Paulo chega a Atenas. Todos os dias discute na Agora com os gregos subtis e cultos, mas cpticos e levianos. Encontra-os no Arepago, onde anuncia um Deus desconhecido, nico e invisvel que fez a Terra e os homens e que "fixou um dia para julgar o universo com justia, por um homem que Ele destinou, oferecendo a todos uma garantia ao ressuscit-Lo de entre os mortos". Um escravo crucificado e sado do tmulo! Com risos zombeteiros, mandaram o orador de volta aos seus sonhos: "Ouvir-te-emos sobre isso outro dia!"O pequeno judeu desce a Corinto, o porto cosmopolita onde, entre duzentos mil homens livres servidos por quatrocentos mil escravos, trabalham numerosos orientais mais bem preparados que os gregos para receber a mensagem evanglica. Paulo, misturando-se com os pobres e os marinheiros - ele prprio faz-se tecelo de tecidos de plo de cabra para tendas -, permanece dezoito meses em Corinto. E, depois de o seu ministrio se ter iniciado "na fraqueza, no temor e em grandes atribulaes", Paulo adquire segurana e fala da Cruz sem receio de chocar o orgulho judeu ou de escandalizar a razo grega. de Corinto - onde se organiza uma importante comunidade crist - que Paulo remete as suas duas cartas aos Tessalonicenses que quer fortalecer na f, mantendo-os na esperana do retorno do Senhor. Aps uma breve escala em feso, Paulo retorna Sria por mar.Mas, a partir da Primavera de 53, empreende a sua terceira viagem missionria, a mais longa. Escolhe feso como quartel-general; feso, a magnfica, emula de Alexandria, estendida, inteiramente branca, sob o sol implacvel, em torno do templo

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de Artemis ou Artemsia, uma das maravilhas do Mundo. Apesar de conduzir numerosas almas para Cristo, Paulo tem de travar em feso aquilo que designar, na sua segunda Epstola aos Corntios, como o seu "combate contra as feras": "So ministros de Cristo? Como insensato digo: muito mais eu. Muito mais, pelas fadigas; muito mais, pelas prises; infinitamente mais, pelos aoites. Muitas vezes, vi-me em perigo de morte..." de feso que Paulo remete duas das suas mais belas cartas. Na Epstola aos Glatas, exorta-os e intima-os a sacudir definitivamente o jugo da Lei, depois de lhes relembrar a origem e a fora da sua prpria vocao. E com que soberano jbilo enumera os "frutos do esprito", opostos aos frutos da carne: caridade, alegria, paz, pacincia, benignidade, bondade, fidelidade, mansido e temperana!A primeira Epstola aos Corntios (Primavera de 57) tornou-se necessria devido s divises que enfraqueciam a comunidade de Corinto; tratar-se-ia de uma ofensiva de judaizantes ou da aco de gnsticos acobertados pela autoridade de um certo Apoio? A tica helnica e ao legalismo judaico, Paulo contrape a liberdade do cristo, para quem a ressurreio de Cristo justia, santificao e redeno.Paulo forado a sair rapidamente de feso porque um fabricante de estatuetas de Artemis provocou um grande tumulto contra os cristos que prejudicavam o seu negcio. Vai para a Macednia (Vero de 57), de onde envia aos Corntios uma segunda epstola: um poderoso partido - difcil de identificar - minava a autoridade de Paulo; da que ele considerasse necessrio relembrar o fundamento da sua autoridade. De Corinto, onde permanece trs meses, escreve aos Romanos para pedir-lhes que o ajudem numa viagem que, de Roma, deveria conduzi-lo Pennsula Ibrica.Mas, antes disso, preciso levar a Jerusalm o produto da colecta feita no Oriente a favor da Igreja-me. Parte de Filipos para Trade, de onde ruma para Mileto. Aos irmos de feso que foram v-lo, confidencia os seus pressentimentos: "E agora estou certo de que nunca mais vereis o meu rosto. [...] Mas no considero preciosa a minha vida, contanto que leve a bom termo a minha carreira e cumpra o ministrio que recebi do Senhor Jesus..."

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Comea, ento, a paixo de Paulo, de que se conhecem apenas alguns episdios. Em Cesareia, onde desembarca, tentam det-lo, mas em vo; o Pentecostes judaico (em 58) j o v em Jerusalm: a sua presena desencadeia a clera daqueles que o consideram um traidor do judasmo. Prestes a ser linchado, preso como agitador. Para no ser flagelado, usa a sua condio de cidado romano, conseguindo que o levem at Cesareia, onde reside o procurador Flix, que faz arrastar o assunto durante dois anos (58-60). O seu sucessor Festus, cansado de ouvir Paulo apelar para Csar, acaba por envi-lo para Roma. Passando por Sdon, Creta, Malta e Puteoli, numa travessia movimentada, Paulo chega capital do Imprio, onde vive dois anos em liberdade vigiada, correspondendo-se com os fiis de Colossos, feso e Filipos. A narrativa dos Actos detm-se a.As cartas pastorais - a Tito e a Timteo, cuja autenticidade contestada - deixam supor que o apstolo sobreviveu ao primeiro cativeiro romano; o cativeiro, a que a 71 Epstola a Timteo se refere, seria a priso no tempo de Nero. Segundo Eusbio, Paulo teria sido decapitado em Roma no ano de 67 e enterrado junto de Pedro.

2. A sementeira crist

Na Igreja palestiniana - mais estruturada do que o mundo paulino -, Pedro era o chefe incontestado e, depois dele, Tiago. As viagens de inspeco de Pedro Judeia, Samaria e at a Antioquia testemunham a irradiao da Igreja-me que, no entanto, mais do que as comunidades da sia e da Grcia, tinham dificuldade de se desembaraar dos laos muito fortes do judasmo. Mas o que aconteceu com Pedro? "Uma coisa certa - afirmava Renan -, Pedro morreu como mrtir; e no se pode conceber que tenha sido mrtir noutro lado que no em Roma." No se tem as provas absolutas; mas as investigaes empreendidas por ordem de Pio XII provaram que, no sculo II, se sabia que um mrtir muito importante - e porque no Pedro? - tinha sido enterrado numa necrpole da colina vaticana.

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Pode afirmar-se que a primeira comunidade crist de Roma foi fundada por Pedro? Parece mais certo que a semente do cristianismo tenha sido semeada em Roma por alguns judeus vindos de Jerusalm, pouco depois do Pentecostes. Em 61, quando Paulo chega a Roma, os irmos j so numerosos. Seja como for, a tradio catlica sustenta que Pedro permaneceu durante muito tempo na capital do Imprio, onde foi crucificado por volta do ano de 60. O primado de Pedro transmitido ao chefe da Igreja romana. Na memria dos cristos, Pedro, sado da tradio judeo-crist, e Paulo, o apstolo dos gentios, permaneceram inseparveis.Na Palestina, as comunidades continuam a ter uma vida difcil. Em 62, Tiago foi executado. Depois de 70, Jerusalm foi esmagada e destruda por Tito; sobrevivem alguns pequenos grupos de cristos na Transjordnia; separados da grande corrente, transformar-se-o em seitas heterodoxas contaminadas pelo agnosticismo e pelo maniquesmo.Se a fisionomia de Paulo esclarecida pelos textos sagrados e se a silhueta de Pedro e do prprio Tiago se perfilam, por vezes, no horizonte do sculo I, que sabemos dos outros apstolos e da sua aco apostlica? Nada ou quase nada. Eusbio e Rufino pretenderam que, aps a morte de Tiago, foi designada a cada um deles uma zona de aco: assim, a terra dos Citas (Sul da Rssia) a Andr, a da ndia Citerior a Bartolomeu, a terra dos Partos a Tom, a Etipia a Mateus... Mas trata-se apenas de uma bela lenda. No entanto, quem poderia acreditar que algum dos doze pudesse esquecer a directriz do Mestre: "Ide, ensinai todas as naes..."?O autor do primeiro Evangelho - Mateus, o antigo publicano - revela uma rica personalidade, mas nada sabemos da sua vida. As lendas que cercam a histria de Joo - o apstolo que Jesus amava - desaparecem diante do ardor dos seus escritos. Aps a morte de Paulo, Joo est em feso: parece ter sido, na sia, a mais elevada autoridade espiritual do fim do sculo I. Tertuliano pretendeu que Joo sofresse em Roma, sob Domiciano, o suplcio da gua a ferver: teria sado so e salvo e, relegado para Patmos, acabaria por morrer j centenrio, em feso. O quarto Evangelho - o de Joo - um documento nico

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que, no essencial, coincide com os sinpticos; mas Joo interessa-se menos pela Galileia, onde Jesus pregou e curou, do que por Jerusalm, onde se estabeleceu a nova aliana; menos pelas parbolas de Cristo do que pelas reflexes sobre os mistrios de Deus: Jesus Deus, Verbo, Luz e Po da Vida, Jesus formando um s com o Pai, propagando a vida pelo amor. Sem dvida, a ideia de um Verbo era familiar filosofia da poca; mas em Joo o Logos no o pensamento de Deus, antes a sua Palavra incarnada. Ter sido escrito algo mais prodigioso do que o famoso prlogo: "No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus"?Quais so as causas da progresso assombrosa do cristianismo no decurso dos trs primeiros sculos? Depois de Paulo e Pedro, o silncio da Histria recai sobre a actividade dos seus discpulos e seus sucessores, e nenhum nome de propagador ou de arauto chegou aos nossos dias. Mas essa obscuridade no foi infecunda. A Boa-Nova foi transmitida de boca em boca por mercadores, viajantes, vendedores ambulantes, escravos libertos, judeus helenizados conquistados para Cristo ou gentios convertidos. verdade que a "misso" crist beneficiou de um contexto histrico e geogrfico privilegiado. Uma boa rede de relaes humanas, facilitada pela segurana das estradas e pela actividade dos portos, permitia que os homens e as ideias circulassem e se difundissem rapidamente. No caso do cristianismo, as inmeras comunidades judaicas da dispora e, depois, as comunidades paulinas serviram naturalmente de apoio evangelizao. No foi por acaso que os principais centros do cristianismo nascente foram Antioquia, encruzilhada de caravanas, feso, o grande porto da sia, Tessalonica, porta aberta para a Macednia, Corinto, em contacto com o mar Egeu e o mar Adritico, e Roma, o corao do Imprio.Mons. Duchesne dizia justamente que o Imprio Romano foi "a ptria do cristianismo". De facto, foi Roma quem indicou Igreja as suas primeiras fronteiras: a Pax Romana favoreceu, no interior do Imprio, os intercmbios necessrios. Roma forneceu Igreja crist os seus quadros jurisdicionais: a cidade, a provncia e, mais tarde, a diocese. De resto, sabe-se que o

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terreno espiritual - sobretudo nas costas orientais do Mediterrneo - estava pronto para receber a semente crist. O prprio Paulo se inspirara, na sua pregao, no vocabulrio e na ideologia do helenismo.No devemos considerar o cristianismo um sincretismo, o resultado de uma amlgama de religies misteriosas com a gnose pag, porque h dois elementos que estabelecem a diferena essencial entre a religiosidade que reina no sculo I e a religio de Jesus pregada por Paulo: o constante recurso Bblia e pessoa histrica de Cristo - "Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo rezam as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas (Pedro) e depois aos Doze" (ICor 15,3-5). esse cristocentrismo, ao lado da conscincia da sua autonomia em relao ao judasmo, que faz a originalidade do cristianismo e a unidade das comunidades dispersas; ele que d um sentido tpico ao termo que Paulo introduziu: a Igreja, corpo de Cristo e centro vivo do reino de Deus.Quaisquer que tenham sido as facilidades oferecidas pelo contexto do Imprio Romano e pelas preparaes ideolgicas, h um "milagre cristo", como houve um "milagre grego", que encantava Brulle: "Diante de um mundo poderoso, organizado e triunfante, um punhado de pobres homens sem instruo nem poder; o imprio eterno estabelecido por pobres pescadores mudos como peixes, de entre os quais foram tirados sem intriga nem prudncia, sem exrcito nem violncia."Diante de Jesus e dos seus humildes intrpretes, levanta-se um mundo no qual a virtude certamente no est morta; mas em que, apesar de tudo, oficialmente triunfam o ouro e o estupro, a fora e o gozo, o respeito medroso pelo mais forte e o desprezo pelo pobre; um mundo, cujos recursos materiais e espirituais so mobilizados em proveito de uma aristocracia; um mundo, no qual a maioria dos homens constitui aquilo a que Toynbee chama "o proletariado interno": a massa de escravos, base econmica do Imprio; os peregrini, gente sem lar nem ptria, os humiliores, os tenuiores (1). Existem ainda matronas

Nota 1: Os mais humildes, os mais fracos. [N do T.]

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antiga, mas uma sensualidade desenfreada a expresso do desprezo pela mulher... Nesse mundo, o cristianismo prope uma doutrina e uma vida cujos elementos essenciais so a pureza, a caridade universal, a pobreza e o desapego das honrarias, elementos no totalmente novos, mas renovados e ressuscitados com Cristo.No fim da era apostlica (ano 70), a Igreja crist conta com inmeras comunidades no Oriente: Sria, sia, Macednia e Grcia. provvel que Alexandria tenha conhecido o cristianismo antes do fim do sculo I. Para o Ocidente, os progressos so mais lentos. No incio do reinado de Trajano (ano de 98), Roma o nico centro cristo comprovado: parece que o cristianismo foi a recrutar adeptos inicialmente entre os indivduos oriundos do Oriente, de lngua grega, essa lngua que foi o primeiro veculo do Evangelho.Foi precisamente atravs dos orientais que se implantou, no sculo II, a primeira Igreja crist da Glia, a de Lio, com os seus dois primeiros bispos, Fotino e Ireneu, originrios da sia; metade dos quarenta e oito cristos martirizados, em 177, tinha nomes gregos. E foi tambm do Oriente que chegaram, no sculo II, os fundadores da Igreja da frica.No decorrer do sculo III, a Igreja espalha-se por toda a parte: na sia, onde as comunidades se multiplicam e no somente junto das costas, na Sria, no delta e no vale do Nilo e na Cirenaica. Para l das fronteiras do imprio, alcana a Mesopotmia. No Ocidente, da Ilria Hispnia so implantadas uma centena de igrejas: a Itlia Central, o Sul da Glia e a costa mediterrnica da Hispnia so as zonas mais favorecidas. A (Gr) Bretanha e a Siclia conhecem Cristo e encontram-se cristos nas cidades-fronteiras, face aos brbaros, na margem esquerda do Reno e na margem direita do Danbio. O Norte de frica abre-se amplamente ao Evangelho: por volta de 235, um conclio rene uma centena de bispos em torno do bispo de Cartago.Mas este nascimento da Igreja realizou-se no sofrimento.

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3. A Igreja que sofre

O Imprio Romano ter sentido a ascenso desta nova seiva? Antes do fim do sculo I, certamente no. O mais antigo documento oficial, em que se faz referncia aos cristos data do ano de 112; trata-se da carta dirigida a Trajano por Plnio, o Jovem, procnsul na Bitnia, provncia na qual o cristianismo prosperava.Durante muito tempo, a opinio pblica confunde judeus e cristos, e sobre ambos correm as mesmas maledicncias: hbitos impuros, sacrifcios humanos... Em Roma, no entanto, desde o reinado de Nero, parece que j se fez a distino.Nero! A Histria j deps suficientemente contra essa personagem para que ns venhamos apertar ainda mais os seus grilhes, pois sabemos bem o que o imperador histrio representa na tradio crist. Na noite de 18 para 19 de Julho de 64, trs quartos da cidade de Roma foram devastados por um incndio que s seria dominado passados seis dias: a opinio pblica atribuiu o sinistro - parece que erroneamente - loucura de Nero. Acusado, o imperador procura e encontra os culpados plausveis: os cristos que o povo mal conhece, tendo-os por misantropos, ateus e homens dados a ritos orgacos. E o circo de Nero, situado no local onde actualmente se ergue a Baslica de So Pedro, assiste durante a noite de 15 de Agosto de 64, a uma das cenas mais atrozes de um reinado frtil em ignomnias: cristos transformados em tochas vivas iluminando os jogos e as orgias.Tertuliano afirma que Nero deu um instrumento jurdico sua aco contra os cristos: o Institutum Neronianum, cuja proibio essencial era: "Non licet esse Christianos." Os historiadores mostram-se divididos quanto a esse facto; mas, em todo o caso, no foi a razo de Estado que levou Nero (falecido em 68) a perseguir os cristos.A situao prolongou-se durante o tempo de Domiciano (81-96). Na ltima dcada do sculo I, a religio crist fez grandes progressos, ganhando adeptos mesmo entre os crculos vizinhos do imperador: assim, por exemplo, M. Flvio Clemente e Flvia Domitila, primos-irmos de Domiciano, e Aclio Glbrio, um dos cnsules de 91. O autoritarismo e os tiques

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fsicos de Domiciano alimentam os sarcasmos da elite romana; por isso, o imperador procura atingi-la, castigando os cristos, que so espoliados ou executados por atesmo. A perseguio parece ter sido particularmente violenta na sia.Dois anos depois da morte de Domiciano, o Imprio cai nas mos de Trajano (98-117), o optimus, que leva as qualidades de homem de Estado ao grau supremo. Trajano vangloria-se de manter a antiga tolerncia romana. Respondendo a Plnio, o Jovem, procnsul na Bitnia, que o consultara sobre a conduta a manter em relao aos cristos, fixa uma norma de conduta: os cristos, com efeito, so ateus; se convictos, devem ser punidos, mas no se deve procur-los e deve deixar-se de lado as denncias annimas: todo o inculpado que se arrepender deve ser libertado. Este "rescrito" de Trajano (112) iria fazer jurisprudncia, embora a atitude do poder a respeito dos cristos, no decurso dos sculos II e III, no seja nada clara. Os grandes Antoninos: Adriano (117-138), Antonino, o Pio (138-161), e Marco Aurlio (161-180) nada fariam para agravar a legislao anticrist; mas, aqui e ali, eclodiriam chamas de antagonismo e tombaram mrtires, devido s presses do povo sobre o poder local, pois inegvel que a clera popular, alimentada por maledicncias, invejas, aborrecimento ou patriotismo exagerado arrastou mais de um cristo aos seus tribunais e ao suplcio: a multido sempre se mostrou covarde em relao s minorias e s pessoas vigiadas pela polcia.Mais hostis foram os Severos. Septmio Severo (193-211) assina, em 202, um rescrito que visa, ao mesmo tempo, os judeus e os cristos: proibido no s fazer-se cristo, mas tambm "fazer" cristos; a justia no deve apenas esperar as denncias, mas igualmente procurar os cristos: , sobretudo, no Egipto e em frica, onde o cristianismo progride rapidamente, que esse rescrito faz mais vtimas.O cruel Caracala (211-217), Heliogbalo, um oriental desequilibrado (218-222), e o religiosssimo Alexandre Severo (222-235) deixam adormecida a legislao precedente. Quiseram fazer de Alexandre Severo um admirador de Cristo, o que certamente falso; alis, o seu reinado foi marcado, esporadicamente, por execues de cristos denunciados pela multido.

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Fenmeno idntico no tempo de Filipe, o rabe (244-249), transformado abusivamente em cristo. No entanto, verdade que, em meados do sculo III, houve entre os funcionrios do Imprio mais de um discpulo de Jesus: "Ns enchemos os campos, as cidades, o Frum, o Senado e o Palcio", escrevia Tertuliano, com algum exagero, levado pela sua conscincia de cristo.A grande vaga de perseguies desencadeou-se na poca do valoroso Dcio (249-251), preocupado com que o envelhecido Imprio regressasse s virtudes e ao culto da antiga Roma. Em 250, todos aqueles que, no territrio do Imprio, beneficiassem do direito de cidadania romana, eram obrigados a manifestar expressamente (atravs de um sacrifcio, de uma libao ou da participao numa refeio sagrada) a sua adeso religio oficial: certificados (libelli) atestaro o facto e os infractores podero ser punidos com a morte. A aplicao desse dito provoca muitas abjuraes, mas tambm encontra alguns resistentes que do origem a numerosos martrios em Roma, na sia, no Egipto e em frica.Valeriano (253-260), atravs de dois ditos, agrava essa legislao, visando a cabea do corpo cristo: bispos, padres e diconos; a Igreja de frica dizimada. Sobrevm oito anos de paz sob o reinado de Galiano (260-268), inimigo das desordens policiais. Aureliano (268-275) no tem tempo de impor ao Imprio o seu sincretismo solar.Quando, aps dez anos de anarquia, Diocleciano assume as rdeas do Imprio (284), o Mundo conhece um mestre, cujas reformas profundas permitiriam que Roma manifestasse um derradeiro esplendor. Mas a vontade imperial de unificao administrativa e religiosa, a impossibilidade para os cristos de associar o culto de Jesus ao rito da adoratio - essencial aos olhos de Diocleciano e de Maximiano, seu associado - e o papel cada vez mais importante desenvolvido pelo cristianismo na sociedade romana explicam suficientemente a durao (303-313) e a violncia da ltima perseguio, qual o nome de Diocleciano permaneceu definitivamente ligado. Houve muitos mrtires, ainda que, em muitos locais, as ordens vindas de cima tenham sido amortecidas pelo enfraquecimento das posies pags ou pela coabitao fraterna entre pagos e cristos.

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Seria ilusrio querer enumerar os mrtires dos trs primeiros sculos bem como os apstatas, os lapsi, particularmente numerosos, parece, na frica do Norte. Aqui, a severa hagiografia deve tomar o lugar das lendas, por mais belas que sejam.As Actas e as Paixes dos mrtires - as mais antigas peas hagiogrficas - foram, por vezes, retocadas, num sentido edificante, a ponto de se transformarem em verdadeiras canes de gesta cclicas, aparecendo a invariavelmente - como nos filmes de zvesterns - os elementos da epopeia: o imperador malvado ou o procnsul dissoluto, o carrasco cuja mo treme, as pretensas testemunhas oculares, interrogatrios prolixos e estereotipados, o terrfico arsenal de torturas, o abuso dos bons, os enterros durante a noite... As Actas de Sta. Ceclia, de Sta. Tecla, de S. Sebastio, a Paixo de S. Julio encontram-se entre os mais clebres desses romances piedosos.Dispomos de testemunhos suficientes em primeira mo, cuja brevidade garantia de autenticidade, para nos convencer de que muitos cristos se mostraram corajosos perante a morte e que as Gesta Martyrum tm um valor de apologia. Em 177, por exemplo, uma carta-circular dirigida pelas Igrejas de Lio e de Viena s Igrejas da sia, relativa morte do bispo Fotino e dos seus companheiros - entre os quais a escrava Blandina - fornece um relato sem nfase, mas individualizado, dos sofrimentos dos cristos. As Actas dos mrtires cilicanos - levados de Scillicum para Cartago em 180 - so um breve dilogo, certamente estenografado, entre o procnsul Saturnino e Speratus, porta-voz dos seus humildes companheiros. O mesmo tom de autenticidade se regista nas Actas proconsulares de S. Cipriano, bispo de Cartago (258), de S. Frutuoso, bispo de Tarragona, e dos seus diconos (259), de S. Maximiliano, o conscrito de Tebessa (295), de S. Marcelo, o centurio, em Tingi (Tnger) (296), de S. Fileias de Tunes (305), etc.Muitas vezes se repetiu que o "sangue dos mrtires foi uma semente de cristos". Incontestvel e etimologicamente, um mrtir uma testemunha e o seu testemunho - por vezes voluntrio - tem um valor apologtico; tem tambm um valor redentor, sendo uma vitria sobre o mundo e Sat. Considerado como o grau culminante da santidade, o martrio aureola

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os seus eleitos com uma venerao de que testemunho a prpria Eucaristia que era, e ainda , celebrada sobre os seus tmulos. Mas era a um testemunho perptuo que cada um dos membros da Igreja crist era chamado.

4. A Igreja que vive

Quando se pretende evocar a vida dos cristos dos trs primeiros sculos, inevitvel que se imponham as imagens coloridas dos superfilmes americanos ou italianos: Barrabs, Quo Vadis, Ben Hur e muitos outros. Os cristos aparecem a como um tmido grupo conduzido por ancios trmulos - a no ser que se revelem possudos por um profetismo grandiloquente. Desta multido gemente, destaca-se um belo hrcules apaixonado por uma frgil pag ou sobressai uma linda crist cortejada pelo filho de um procnsul: o amor impele-os para o p da cruz e, mais tarde, para a arena ensurdecedora invadida pelas feras. De qualquer forma, o herosmo tenso de "Polieucto" mais sadio do que a suave graa da "Fabola" de Wiseman.Ao relermos os documentos sobre a vida crist dos primeiros sculos, deixados por Tertuliano, Orgenes, Clemente de Alexandria ou Hiplito, ficamos com uma impresso muito diferente. Os cristos no se distinguem dos outros homens por nenhum pormenor exterior; participam inteiramente da vida da cidade, mas os seus chefes exigem que eles, perante os costumes pagos - excessos de luxria, comezainas, espectculos obscenos ou cruis e divrcio -, reajam com firmeza. O Evangelho deve dar forma s relaes quotidianas. Pede-se a homens fracos uma atitude viril, um controlo permanente dos seus gestos e dos seus pensamentos. A iniciao dos catecmenos e a reconciliao dos pecadores no so formalidades ou ritos destitudos de sentido: exigem uma fora e uma humildade singulares.No sculo II, o catecumenato comporta trs fases: uma, durante a qual os audientes (1) so instrudos na vida crist e se

Nota 1: Ouvintes. [N. do T]

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exercitam praticando-a; outra que a preparao imediata dos electi (1); e, finalmente, o baptismo por tripla imerso, precedido de exorcismos, de uma longa viglia e seguido pela imposio das mos, verdadeiro sacramento (confirmao).A disciplina da reconciliao (sacramento de penitncia) abrange: a confisso do pecado ao presbtero ou ao bispo; a excluso pblica do pecador que passou para a categoria e grupo dos penitentes; a reconciliao que tem lugar na Pscoa, como o baptismo. Para os casos de adultrio, de homicdio e de apostasia, a penitncia dura muito tempo, por vezes at morte. Os mais exigentes chegam ao ponto de advogar que a reconciliao seja negada nos casos graves de reincidncia.Assim , porque, de facto, nem todos os cristos foram necessariamente heris. O livro de Hermas - escrito em meados do sculo II - demonstra que, embora a Igreja contasse, ento, com numerosos santos e mrtires, muitos cristos apegavam-se aos bens deste mundo; ricos que, nas assembleias, se recusavam a ficar junto de pessoas humildes; diconos que traam os interesses temporais de que eram responsveis; a apostasia era um escndalo muito comum. A Igreja avanava lentamente; mas, como o seu Mestre a caminho do Glgota, por vezes tambm ela tropeava.Os centros cristos so essencialmente "comunidades", em que os ritos de reunies desempenham um papel capital: assembleia eucarstica a que preside o bispo cercado de presbteros, com a orao de consagrao e a distribuio do po eucarstico ao povo; assembleias quotidianas de instruo, com leituras e homilias, e gapes fraternas.Inicialmente, os cristos reuniam-se numa sala posta disposio por um deles. No sculo III, j encontramos lugares de culto autnomos, que pouco a pouco so construdos segundo uma arquitectura especfica (tipo basilical). Os cristos dispem, a partir do sculo II, de cemitrios prprios: primeiro, cemitrios de superfcie e, depois, sobretudo em Roma, em galerias subterrneas ou catacumbas, onde o culto cristo se refugia em tempos difceis: a se desenvolve uma arte protocrist

Nota 1: Eleitos ou escolhidos. [N. do T]

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frescos, mosaicos e sarcfagos -, evocando a vida crist e fornecendo um alimento perptuo catequese.No fim do sculo II, a hierarquia parece fixada uniformemente nas comunidades crists. Na cpula, o bispo, designado pelo povo; abaixo dele, os presbteros e os diconos, ordenados pelo bispo, e como auxiliares activos: os aclitos, os leitores, os exorcistas e os ostirios. Em meados do sculo III, contam-se em Roma quarenta e seis presbteros, sete diconos, quarenta e dois aclitos, cinquenta e dois clrigos menores. A populao crist est dividida em sete regies, tantas quantas o nmero de diconos. O pessoal eclesistico, alm do servio litrgico, dedica-se tambm a funes administrativas e de assistncia: em Roma, por exemplo, mil e quinhentos pobres esto permanentemente a cargo da comunidade crist. O primado do bispo de Roma, a sua influncia doutrinal - quando no disciplinar - , segundo Sto. Ireneu, "uma tradio apostlica"; no entanto, acerca dos primeiros papas, quase s conhecemos os nomes.A escala da provncia e mesmo da diocese, impe-se pouco a pouco a autoridade do metropolita (mais tarde, designar-se- por arcebispo e patriarca). Junto das ordens eclesisticas hierarquizadas, a Igreja primitiva cria um lugar para os confessores, ou seja, os cristos que foram presos por causa da f, para as vivas, futuras diaconisas, e para as virgens. A superioridade da virgindade sobre o casamento , desde logo, admitida; no entanto, alguns advogam mesmo o encratismo, a renncia ao casamento, considerada como condio de ingresso na Igreja. Este excesso filia-se em numerosas deformaes que representam um perigo constante para a cristandade nascente e, de modo especial, no gnosticismo.

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Captulo IIIA IGREJA QUE FALA

1. Ireneu perante a gnose

A gnose uma cincia religiosa, uma forma de conhecimento superior. O gnstico pretende possuir relativamente aos problemas angustiantes da metafsica um conhecimento directo, intuitivo, total e beatificante: no um "fiel", mas um "iniciado". Os gnosticismos - porque so muitos - revelam convices comuns: o carcter essencialmente mau das operaes da matria e da carne; a infelicidade do homem, prisioneiro do seu corpo, do mundo, do tempo e da sua alma inferior pecadora, porque ele tem uma alma celeste. O fundamento da gnose o dualismo.A carne, a gnose ope o esprito; ao criador do mundo visvel - o demiurgo -, ope um deus desconhecido, que luz e bondade. Os gnsticos cristos dos primeiros sculos oporiam o homem-Jesus ao Verbo. Porque, embora possa ter existido uma gnose pr-crist, especialmente judaica (os essnios de Qumr), uma gnose judeo-crist (os ebionitas) e uma gnose extracrist (mandesmo, sabesmo) que sobreviveu na Mesopotmia, a verdadeira gnose desenvolveu-se, em particular, durante os primeiros sculos cristos.Como os seus congneres, os gnsticos cristos tm como referncia ensinamentos misteriosos e vo busc-los em parte

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a numerosos evangelhos apcrifos. A maioria recusa-se a acreditar na incarnao e na morte de Cristo; na sua opinio, os sacramentos cristos no diferem dos mistrios pagos e das iniciaes ocultas. As suas posies morais so extremas: ou um ascetismo desumano ou um amoralismo total, dado que aqueles que possuem a gnose salvadora esto colocados acima das leis morais institudas pelo demiurgo.O cristianismo primitivo na sia, na Sria e no Egipto, testemunha uma proliferao das confrarias gnsticas. O Apocalipse de Joo denuncia dois grupos de gnsticos asiticos: os discpulos de um certo Balao e os nicolatas que amaldioavam o Deus do Antigo Testamento e praticavam o libertinismo absoluto.Mas o chefe de seita mais prestigiado Simo, o Samaritano, tambm chamado o Mago ou o Mgico, personagem muito culta que os seus discpulos consideram o primeiro deus, adversrio dos anjos criadores do mundo. As confrarias simonianas espalham-se por toda a parte, at mesmo em Roma. Samaritano como Simo, Menandro apresenta-se como um mgico imortal, semelhante a Cristo.Na cosmopolita Alexandria, a gnose floresce com Basilides, fundador de um culto de mistrios, no qual s se podia ingressar apenas passados cinco anos de silncio completo. Nela, Carpcrates objecto de uma adorao pstuma. Valentim vai de Alexandria para Roma na poca do papa Higino e disputa a sucesso de Pio: a sua teologia poderosa seduz muitos cristos. Marcio (falecido cerca de 160) foi a Roma na mesma poca de Valentim; exagerando o pessimismo paulino perante a carne e a criao, rejeita totalmente os ensinamentos do Antigo Testamento; as Igrejas marcionistas multiplicam-se no mundo mediterrnico, mas, sobretudo, na Mesopotmia, onde abrem caminho ao maniquesmo.Para a Igreja nascente, a gnose representa um perigo mortal, porque corrompe a ideia judaica da transcendncia divina. Ela confunde os mistrios cristos e a ideia paulina da misria do homem com o esoterismo das religies antigas. O misticismo impreciso, mas tentador, e o pessimismo fundamental do gnosticismo ameaam desviar a esperana crist - alimentada pela

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crena num Homem-Deus histrico - para um desejo de libertao prximo do nirvana. Exasperando a ascese ou, pelo contrrio, os desejos da carne, a gnose coloca-se contra a moral evanglica, feita de mansido e equilbrio. Todo o corpo da Igreja visvel est ameaado de morte. Ainda mais quando um sacerdote frgio de Cibele convertido ao cristianismo, Montano, pretende que a preeminncia da Igreja pertena no aos bispos, mas aos profetas, em virtude da iminncia da parsia.Face a essas doutrinas efervescentes, face gnose e ao montanismo, ergue-se Ireneu, bispo de Lio (Frana), que a voz do corpo eclesial. Este grego de Esmirna conheceu Policarpo, discpulo do apstolo Joo. Sabe onde esto as fontes do cristianismo e capaz de distinguir a corrente evanglica, atravs dos solavancos da histria. Aos chefes de seitas, ele ope a autoridade colegial e institucional dos bispos, autoridade oriunda dos apstolos e da qual a Igreja de Roma depositria. s doutrinas extravagantes, em que o sublime convive com o inslito, ope a regra da f crist, tal como provm das Escrituras e chegou aos fiis atravs da tradio apostlica. Ireneu recapitula tudo em Cristo: a histria dos homens - incluindo o Antigo Testamento - e o prprio homem. A seus olhos, a unidade a prpria condio da vida da Igreja e essa Igreja no uma justaposio de confrarias, em que cada uma, isoladamente, pretende penetrar mais profundamente no mistrio de Deus; mas uma comunidade humana em marcha para um Deus ressuscitado: Ubi Ecclesia, Ibi Spiritus. Eis porque o Adversus haereses de Ireneu , na Histria da Igreja, um livro capital.

2. Uma apologia pela pena e pelo sangue

Ireneu morreu mrtir? H dvidas. Outros, antes ou depois dele, acrescentaram o testemunho da sua morte ao das suas palavras e escritos. De entre eles, destaca-se Incio de Antioquia (falecido em 107) e Policarpo de Esmirna (falecido em 155).Bispo de Antioquia, talvez nomeado por Pedro ou por Paulo, Incio foi condenado s feras no tempo de Trajano; mas, para sofrer esse martrio, teve de fazer a longa viagem at Roma,

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guardado por dez soldados. Em Esmirna, onde Policarpo o recebe, avista-se com os delegados das Igrejas do Oriente e da escreve a cada uma delas e tambm aos Romanos para os prevenir da data aproximada da sua chegada e transmitir-lhes a alegria que sente em morrer para dar testemunho de Cristo. As sete cartas - autnticas - que ficaram deste mrtir so um monumento precioso: evidenciam, contra o docetismo, o carcter simultaneamente divino e humano da pessoa de Jesus, a autoridade unificadora dos bispos e a catolicidade da Igreja no incio do sculo II.Policarpo, o anfitrio de Incio, anuncia aos Filipenses que, em breve, iro receber o relato do martrio do bispo de Antioquia. E ele prprio dever renovar a gesta inaciana. Na poca de Antonino, perseguido durante muito tempo pela polcia do procnsul Quadratus, Policarpo, quase centenrio, preso e, depois, levado montado num burro, ao centro do anfiteatro de Esmirna, repleto de espectadores vidos. Quadratus, manifestamente impressionado pelos gritos da multido, interpela-o: "Blasfema e eu te soltarei! Insulta Cristo!", mas o velho replica: "J h noventa anos que O sirvo e Ele nunca me fez mal. Por que motivo haveria eu de O renegar?" O interrogatrio breve e a fogueira que devora Policarpo feita pelos espectadores que invadem a arena. A carta com a qual os cristos de Esmirna descrevem o relato dessa morte alimentar o fervor de vrias geraes de cristos na sia.Justino, morto como mrtir em Roma por volta de 165, um filsofo grego convertido: colocou a sua dialctica ao servio do cristianismo que considera o florescimento do ideal platnico. o mais destacado dos apologistas do sculo II - Aristides, Apolinrio, Melito... - que, dirigindo-se directamente ao chefe do Imprio, procuram demonstrar-lhe que, longe de renegar o helenismo, o cristianismo transcende as suas riquezas.Mas em Alexandria e em frica que a jovem Igreja encontra os seus defensores mais bem preparados. Enquanto, aos olhos dos poderosos, o cristianismo no passa de uma seita de gente humilde - "uma religio de cardadores, sapateiros e lavadeiras", como ironiza Celso -, aqueles dois focos permitem

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que a nova religio possa dialogar, sem ridculo, com opensamento greco-latino.

3. Dois plos de pensamento cristo: Cartago e Alexandria

Em Cartago, os cristos so em grande nmero e empregam quase exclusivamente o latim na liturgia. Foi Tertuliano (155-220) quem deu Igreja de frica e a toda a latinidade a sua linguagem teolgica, to diferente do estilo oriental.Personalidade fora de srie, este Quintus Septimius Florens Tertullianus, cartagins, filho de centurio, fez estudos que lhe permitiram exercer em Roma, na poca de Septmio Severo, o cargo de advogado. Foi, talvez, o espectculo da morte dos mrtires que o levou ao cristianismo. Regressando a frica, como presbtero, chefe dos catecmenos, coloca todo o seu entusiasmo e talento - poder-se-ia mesmo dizer o seu gnio - de jurista e de polemista ao servio de um ideal cristo que coloca num ponto muito alto, mesmo demasiado alto, desumanamente inacessvel. Porque Tertuliano pertence classe dos convertidos intransigentes, dos Rance, dos Veuillot, dos Huysmans e dos Bloy, cujo bisturi nem sempre respeitou a carne boa. Embora se possa lamentar que Tertuliano - como mais tarde La Mennais - tenha chegado a injuriar e depois a deixar a Igreja-me julgada demasiado sonolenta.O latim do sculo III deixou poucas obras to substanciais como Ad martyres, exortao ao martrio, ou De Praescriptione haereticorum, mtodo de combate baseado na autoridade jurisdicional e histrica da Igreja. E esse Apologeticum, onde a erudio do escritor refora a veemncia da sua f para combater a idolatria! Mas j nesta obra se revela o rigorismo moral de Tertuliano, a impossibilidade que ele experimenta de partilhar a vida de uma cidade ainda pag. Pouco a pouco, chega ao ponto de s respeitar os fiis "pneumticos" - aqueles que acreditam estar em contacto directo com o Esprito -, esmagando com o seu desprezo e crueldade os fiis comuns, ao mesmo tempo que acentua as mesquinhezes da vida quotidiana: espectculos, modas e segundas npcias, nada escapa aos seus ataques.

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No seu tratado De Poenitentia, Tertuliano ergue-se com veemncia contra a longanimidade do papa Calisto que admite a remisso de todos os pecados e, depois, afunda-se lentamente no esquecimento daqueles que desligaram as suas geis canoas do grande e pesado barco da Igreja. Tomando o lugar de Tertuliano, eis Cipriano (Thascius Caecilius Cyprianus), que foi bispo de Cartago desde 248 at sua morte, ocorrida por decapitao, em 258. O juridicismo latino faz com que o Ocidente cristo se preocupe menos com o ascetismo e a teologia do que com a disciplina. Na sua obra-prima De Unitate Ecclesiae, Cipriano insiste na autoridade unificadora do bispo na comunidade crist e afirma o primado de Roma, no a considerando incompatvel com a colegialidade dos bispos.Em Alexandria, centro do helenismo cristo, o clima bem diferente. Enquanto na frica latina, a f se orienta para a aco, no Egipto, floresce uma cultura refinada, uma literatura especulativa que atinge pontos culminantes, desembocando na miraculosa sntese da filosofia grega com o esprito evanglico. Uma escola crist alexandrina havia sido fundada por um tal Panteno, de quem foi discpulo Clemente (falecido por volta de 215) que deu renome a essa escola. Tanto na sua ctedra como nos prprios escritos - o Pedagogo, os Stromata... -, Clemente de Alexandria quer demonstrar que existe concordncia entre a sabedoria antiga e o Evangelho: multiplica as analogias, aproximando a Bblia dos poemas de Hesodo e de Homero (o bonito quadro das raparigas de Jetro comparadas a Nausica na caminhada para o lavadouro!); mas, ao mesmo tempo, insiste na unidade da Revelao disseminada pelo Verbo nas diversas culturas. Tudo isso est muito longe do judeo-cristianismo e da austeridade de Tertuliano: que o cristo nunca se esquea de que cristo, mas que assuma, sem fanfarronice nem vergonha, o seu lugar na cidade terrestre. Se a Igreja romana no admitiu Clemente no seu martirolgio foi porque ele, nos seus Stromata, desenvolveu estranhas teorias sobre a gnose. E semelhante desventura aconteceria tambm a Orgenes, outro grande alexandrino do sculo III.Filho de um mrtir, Orgenes estava destinado s letras profanas quando o bispo de Alexandria, Demtrio, lhe pede

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para o ajudar como catequista. Nessa qualidade, o jovem toma contacto com a apologtica crist, mas, sentindo-a muito frgil diante da dialctica grega, passa a estudar a filosofia neoplatnica. De 212 a 231, Orgenes dirige em Alexandria e, depois, em Cesareia na Palestina, a Didasclia, uma espcie de universidade, onde todos os conhecimentos humanos so recapitulados luz do Evangelho.A obra escrita de Orgenes colossal: trabalhos sobre as Escrituras, exegticos - entre os quais as clebres Hexaplas, primeiro monumento da crtica crist -, apologticos, polmicos... e uma correspondncia importante. claro que algumas afirmaes origenistas - crena na eternidade da matria e na preexistncia das almas - foram condenadas como erradas, mas Orgenes teve o mrito de abrir caminho a quase todas as cincias sagradas.Pela refutao que Orgenes promoveu (Contra Celsum), conhece-se o Verdadeiro Discurso do filsofo pago Celso, que v no cristianismo apenas ilogismo e estupidez.No pensemos que os apologistas cristos no encontraram nenhum adversrio. A reaco pag desenvolver-se-ia at ao sculo V.Uma primeira forma dessa reaco foi o sincretismo, que faz de todos os deuses - incluindo o deus dos judeus e o deus dos cristos - uma mesma divindade pantesta. Apolnio de Tiana e Numrio so os dois mais clebres representantes dessa tendncia.Mais vigoroso o ataque conduzido pela escola neoplatnica, fundada em Alexandria, no sculo II, por Amnio Saca. Conta entre os seus discpulos Plotino (205-270), que elaboraria uma doutrina baseada essencialmente no platonismo, do qual Plotino aproveitou sobretudo a metafsica, colocando-a na base de uma moral da pureza, condio de elevao da alma at ao Uno. Fervoroso adepto do helenismo, Plotino no persegue os cristos, mas s conhece o cristianismo - uma religio sem tica - na sua verso deformada pela gnose.Com Porfrio (cerca de 234-305), discpulo de Plotino, e Jmblico (cerca de 250-330), o neoplatonismo torna-se violentamente anticristo. Baseando-se na filologia e na histria, estes filsofos

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examinam criticamente o texto da Bblia, insistem nas divergncias entre os relatos evanglicos, indignam-se com a Paixo de Jesus e s descobrem no cristianismo incoerncias e mentiras. Os quinze livros que Porfrio elaborou contra os cristos, e que foram destrudos em 448, constituem a mais forte maquinao montada no sculo III contra a religio de Jesus. No entanto, isso no impede que esta, no alvorecer do sculo IV esteja pronta a suceder ao paganismo.

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IIA IGREJA PEDAGOGA DO OCIDENTE

Captulo IDE CONSTANTINO A TEODSIO

1. Constantino ou a emergncia

Quando, em 305, Maximiano e Diocleciano abdicam a favor de Constncio e de Galrio - que completaram a tetrarquia, designando como csares Severo e Maximino Daia -, o Imprio penetrou num perodo obscuro: lutas breves, mas implacveis, opuseram os imperadores ou os seus filhos.Foi atravs de Constantino, filho de Constncio, que o Imprio reencontrou a unidade e a paz. Em 28 de Outubro de 312, vindo da Glia, Constantino esmagava e matava, na ponte Milvius, diante dos muros de Roma, o filho de Maximiano, Maxncio. Seis meses mais tarde, Licnio, que Galrio designara como augusto por ocasio da morte de Severo (307), batia, na Trcia, Maximino Daia, levando-o ao suicdio. J no havia mais que dois imperadores: Constantino em Roma e Licnio na Nicomedia.Ao mesmo tempo, o cristianismo emergia da clandestinidade, porque, com a instalao de Constantino no corao do Imprio, realizava-se um milagre que o prprio Tertuliano acreditaria ser impossvel: um imperador cristo. Quando que Constantino abraou o cristianismo? Foi na Glia? E por que influncias? E ele quem era? Eis algumas das questes a que os historiadores no cessam de dar as mais diversas respostas. Devemos acreditar no bispo Eusbio de Cesareia - o historigrafo

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de Constantino - que fez dele um modelo de virtude? Ou no pago Zzimo que viu nele o responsvel pela decadncia romana? Deve dar-se f ao episdio lendrio, segundo o qual, junto da ponte Milvius, os soldados de Constantino colocaram nos seus escudos o smbolo cristo, pois o vencedor de Maxncio tivera uma viso que apresentava a cruz de Cristo com a inscrio: Neste sinal vencers? O facto de Constantino s ter pedido o baptismo no leito da morte (337) ser uma prova de falta de fervor cristo, apesar de os baptismos tardios serem frequentes na Igreja primitiva?O certo que, desde o incio do seu reinado, Constantino manifestou, em relao ao cristianismo, uma simpatia militante de que prova evidente aquilo que se designou impropriamente o dito de Milo (313). Trata-se menos de um acto jurdico do que dos resultados concretos das conferncias realizadas em Milo entre Licnio e Constantino: esquecimento do passado, total liberdade dos cultos, reparao dos prejuzos sofridos pelos cristos. Na realidade, s com Teodsio (390-395) que a situao privilegiada do paganismo cessou totalmente a favor do cristianismo.Embora a amizade de Constantino para com os cristos tenha contribudo para preparar essa mudana, no Oriente, Licnio, permanecendo pago, contentava-se em ser tolerante. No Ocidente, desde 323, os smbolos cristos comeam a substituir os signos pagos nas moedas; as baslicas - de configurao rectangular, com naves sobre colunas e tectos com vigas aparentes - multiplicam-se em Roma e em todo o Imprio; o vocabulrio cristo infiltra-se na legislao; os filhos do imperador so criados no cristianismo, exemplo contagioso num Estado romano fortemente monarquizado. E no s: os julgamentos dos tribunais episcopais so oficialmente vlidos e as Igrejas tm a faculdade de construir um patrimnio prprio. No entanto, a famosa "doao de Constantino" ao papa Silvestre no passa de lenda forjada somente no sculo VIII.Quando Constantino, desembaraando-se de Licnio, se torna o nico senhor do Imprio, transforma Bizncio na esplndida Constantinopla (324), criando uma "nova Roma" especificamente crist.

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2. Uma ameaa para a Igreja: a ingerncia do Estado

Entretanto, Constantino permanecia na linha autoritria de Diocleciano. Alis, no sculo IV, seria impensvel uma separao entre o temporal e o espiritual. Assim, o imperador no se limitou a interessar-se pela Igreja crist, mas quis ser tambm a sua "eminncia parda", preocupado tanto com os interesses do Estado como com os dos fiis de Cristo. Foi ele quem convocou e presidiu ao primeiro conclio ecumnico, em Niceia, no ano de 325, e decidiu as medidas que seriam tomadas contra os hereges, embora, trs anos mais tarde viesse a tornar-se protector deles. Poder-se-, ento, falar de csaro-papismo? Esta expresso anacrnica, quando aplicada ao sculo IV. Mas no menos verdade que a Igreja se tem mostrado profundamente marcada - e at aos nossos dias! - pela sua experincia de cristandade constantiniana. durante a crise ariana que o peso do imprio se mostra mais forte. Por volta de 320, um padre de Alexandria, Ario, comeou a ensinar que Jesus, a primeira das criaturas, apenas possua uma divindade secundria e subordinada. Forado pelo bispo Alexandre, um conclio egpcio condenou Ario que se sabia apoiado por diversos telogos orientais. Em breve, todo o Oriente estaria envolvido na querela, embora um conclio geral, reunido em Niceia (325), graas aos cuidados do imperador, definisse que o Filho de Deus foi gerado pelo Pai, no criado, consubstancial ao Pai, e Se fez carne para a salvao dos homens. A paz no surgiu em Niceia porque, divididos sobre o sentido da palavra consubstancial os bispos hesitaram entre frmulas diversas. A f nicena encontra um arauto na pessoa do jovem bispo de Alexandria, Atansio, que Constantino - agora, j partidrio de Ario - mandou exilar para Trveros (336). No tempo de Constncio II, imperador nico, e, depois, no Oriente, no tempo de Valente, tambm ele prncipe ariano, a confuso chegou ao seu ponto culminante.Foi necessria a autoridade de Teodsio (379-395) para que, por um dito assinado em Tessalonica (28 de Fevereiro de 380), todos os povos submetidos ao Imprio fossem chamados "a aderir f transmitida aos Romanos pelo apstolo Pedro, ou seja,

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f professada pelo pontfice Dmaso e pelo bispo de Alexandria, que consiste no reconhecimento da Santssima Trindade do Pai, do Filho e do Esprito Santo". O segundo conclio ecumnico, reunido em Constantinopla, em 381, por presso de Teodsio, fez triunfar a f nicena. O catolicismo ortodoxo tornava-se a religio oficial de todo o mundo romano. Teodsio ia mais longe: empreendeu a destruio do velho politesmo romano e, ao mesmo tempo, beneficiou o cristianismo com mltiplos privilgios fiscais e judiciais. Os bens confiscados dos templos pagos foram entregues s igrejas que, amide, ajudadas pelos benefcios imperiais, se tornaram muito ricas.Poder dizer-se que, desde ento, a Igreja se ter enfeudado ao Estado? No h dvida de que ela se cola estrutura administrativa aperfeioada por Diocleciano: cada cidade com o seu bispo, cada provncia com o seu metropolita. Mas, enquanto os funcionrios imperiais eram "nomeados" pelo imperador, os bispos eram pastores livremente eleitos pelo clero local e pela populao, de tal maneira que a autoridade religiosa era bem distinta da autoridade civil; fundamento de uma monarquia de direito divino, a Igreja representava tambm um poder espiritual, sem o qual o prprio Imprio j no se poderia conceber. Alm do mais, a decadncia do Imprio no Ocidente, no sculo V, no foi acompanhada pela queda da jovem Igreja.Porque esta Igreja j est fortemente organizada: o primado da ctedra de Pedro que perceptvel, sobretudo, no notvel pontificado de Dmaso (366-384); a importncia dos snodos provinciais e dos conclios ecumnicos; a autoridade dos metropolitas e dos bispos que, por seu turno, asseguram a colegialidade necessria; a livre circulao das instrues e das ordenaes cannicas, e a fluidez favorvel irradiao de fortes personalidades como Atansio de Alexandria e Ambrsio de Milo. A partir dos finais do sculo IV, operam-se grandes agrupamentos regionais, normalmente em redor dos mais antigos centros cristos: Constantinopla, Antioquia, Jerusalm e Alexandria.Assim, quando Teodsio morre, em 395, a Igreja j encontrara a paz e a proteco necessrias aos seus grandes

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amadurecimentos. Mas, na sombra calma, j dormem tambm os inimigos que, por dezenas de vezes, no curso da sua Histria, tentaro arrebatar-lhe o tesouro da sua pobreza e da sua liberdade.

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Captulo IIBALANO DO CRISTIANISMO EM MEADOS DO SCULO IV

1. Uma viso de conjunto

Teodsio deixa o imprio aos seus dois filhos, jovens e incapazes: o Oriente a Arcdio, o Ocidente a Honrio. Os dias da velha Roma esto contados. Enquanto a onda brbara avana a ponto de engolir o Imprio, que zonas do mundo se podem qualificar como crists?Para l dos limites do Imprio, as Igrejas prosperam. No Imprio Sassnida - apesar da longa perseguio de Shapur II (309-379) -, a Mesopotmia possui centros de fervoroso cristianismo em Edessa, Selucia (Ctesifonte) e Nsibis. Fortalecidas por S. Marutas - o segundo fundador da Igreja persa -, elas difundem-se ao longo do golfo Prsico e no Curasso, preparando a penetrao crist na sia Central.Entalada entre Roma e o Iro, a Igreja da Armnia, que beneficia da converso do rei Tiridates (por volta de 280), organizada por S. Gregrio, o Iluminador, e por seu neto Nerses. A Igreja georgiana tem na sua origem uma escrava crist, Nino. Na Etipia, Frumncio, sagrado bispo por Atansio (cerca de 330), funda uma Igreja com um futuro notvel, mas cujos primrdios se desconhecem. Ter havido infiltrao crist no Imen e na Arbia durante o sculo IV? bem possvel.

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Entre o Danbio e o Dniepre viviam tribos germnicas, os Godos, e foi um dos seus prisioneiros, Ulfilas, que os levou ao cristianismo, na forma ariana; substituindo os caracteres rnicos por um alfabeto original, Ulfilas traduziu a Bblia para gtico. Pouco a pouco, o cristianismo ariano vai ganhando os Visigodos, os Ostrogodos, os Burgndios, os Suevos e os Vndalos. Entre os Germanos, somente os Francos e uma parte dos Lombardos permaneciam fora do domnio cristo.No interior do imprio, havia um ntido contraste entre o Oriente e o Ocidente. Embora, desde o fim das perseguies, a densidade das comunidades crists j fosse grande na sia Menor, na Sria, no Egipto, na frica e tambm na Itlia Central e Meridional, a verdade que a Glia, a Itlia do Norte e a Pennsula Ibrica manifestavam um atraso que s seria parcialmente superado durante o sculo IV. Assim, a Glia que, em 313, contava apenas com uns cinquenta bispados, ter mais de uma centena um sculo mais tarde; em breve seria fixado o mapa eclesistico da antiga Frana, muito semelhante ao das cento e catorze cidades galo-romanas do Baixo Imprio.O limes (1), a linha fortificada romana do Reno-Danbio estava pontilhada por numerosas comunidades crists, como as de Colnia, Ratisbona e Passau, destinadas a um glorioso futuro. E no se deve esquecer que foi a sul da muralha de Adriano que nasceu, por volta de 389, o apstolo da Irlanda, Patrcio. Mas at que ponto essas populaes eram crists?

2. A elite intelectual e o cristianismo

Nesta poca, o cristianismo , essencialmente, uma religio de cidades. volta do bispo movimenta-se um clero numeroso; em redor dos padres e dos diconos formigam os clrigos menores, que canalizam as multides de fiis para as baslicas.Necessariamente, nem todos esses fiis eram santos. Com o seu nmero crescente, a Igreja sentia pesar sobre si o mistrio da sua existncia, o mistrio de Cristo unido a um corpo

Nota 1: Limite, fronteira. [N. do T.]

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tanto mstico como social, coberto de pecados e de fraquezas. As pequenas comunidades primitivas tinham crescido privilegiando a "massa", essa massa crist de que se fala e que tanto escandaliza, pelo seu peso e pela sua falta de fervor, aqueles que sonham com uma Igreja despojada, jovem, viva e totalmente generosa. "A massa - escreve monsenhor Duchesne, falando do sculo IV - era crist como podia s-lo uma massa superficial e formal: a gua do baptismo tinha-a tocado, mas o esprito do Evangelho no tinha penetrado nela." Os teatros e circos no haviam perdido a sua clientela; volta do imperador - que frequentemente era um cristo medocre -, fervilhava um bando de funcionrios, cortesos e cortess, cuja religio se acomodava aos costumes decadentes.Alis, em certos meios letrados e aristocrticos, sobretudo as famlias senatoriais permaneceram durante muito tempo hostis ao cristianismo, ainda considerado uma religio brbara, igualitria e sem poesia. A apostasia do imperador Juliano, educado no culto das tradies pags e da filosofia neoplatnica (361-363), outra coisa no foi seno uma renascena semelhante quela que, mais tarde, o sculo XVI conheceria, porm mais efmera, cujo elemento principal era a admirao pela filosofia, pelas artes e pelas letras antigas. Filsofos, retores (1), gramticos e sofistas tornariam ainda por muito tempo, a vida difcil ao cristianismo: a escola filosfica de Atenas s fecharia as suas portas em 529. O neoplatonismo seria o adversrio por eleio da religio do Galileu.Ora, o sculo IV foi precisamente a idade de ouro dos padres da Igreja - os ltimos fogos do paganismo iriam apagar-se diante dessa intensa luz.

3. Os trs plos do humanismo cristo: Ambrsio, Jernimo e Agostinho

Os padres da Igreja pertencem, quase todos, elite da sociedade e notvel a semelhana da sua formao e da sua

Nota 1: Ou retricos. [N. do T.]

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trajectria dentro da Igreja: estudos literrios que fazem deles escritores distintos, promissora carreira profana interrompida pela "converso", perodo fortalecedor passado em solido, intensa actividade pastoral, acompanhada de forte influncia doutrinal. Atansio de Alexandria, Baslio de Cesareia, Gregrio de Nazianzo, Joo Crisstomo, Cassiano, Dmaso de Roma, Hilrio de Poitiers, nunca a Igreja contar tantos doutores, ainda mais que dessa lista fazem parte tambm os trs pilares do humanismo cristo do sculo IV: o milans Ambrsio, Agostinho, o Africano, Jernimo, o mestre de Belm. Estes homens viram um mundo inteiro desmoronar-se e sabiam que a frgil cristandade contava muito com as suas palavras e os seus actos para se manter de p.Governador da Ligria e da Emlia com residncia em Milo, Ambrsio foi aclamado bispo aos 34 anos por um povo milans conquistado pela sua sabedoria. Foi como orador, como chefe e como jurista que enfrentou o paganismo e que quis dissociar do Estado romano. Mas o bispo de Milo no um especulativo; os seus escritos, pregados antes de serem publicados, visam a instruo; da sua obra-prima, De Officiis Ministrorum, imitada de Ccero, irradia uma paz admirvel onde a moral crist aparece, trs sculos depois da morte de Jesus, como uma flor perfeita!Muito diferente de Ambrsio (falecido em 397) Jernimo, que lhe sobreviveria longo tempo (falecido em 420), e que se revelaria antes de mais nada um sbio, mas a sua cincia volta-se para a aco. Tendo deixado Roma, depois da morte do seu amigo, o papa Dmaso, Jernimo viveria trinta e cinco anos junto da gruta da Natividade, dedicando-se a um gigantesco e original trabalho de exegeta, de tradutor (a Vulgata) e de historiador: obra imensa e diversa que ele marca com a sua personalidade vigorosa e, por vezes, derrotista. Atravs dele, o latim da Igreja obtm o seu ttulo de nobreza. Ao mesmo tempo, enquanto a velha Roma tomba sob os golpes de Alarico (410), ele sustenta a coragem dos homens que a noite ameaa envolver abruptamente.No outro lado do Mediterrneo, entrada da frica crist, em Hipona, onde bispo desde 396, brilha Agostinho, cujo

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pensamento e actividade literria pertencem ao patrimnio universal: o agostinismo a par do tomismo uma das formas originais da filosofia crist. Este convertido do prazer e do neoplatonismo desenvolveu, durante os trinta e quatro anos do seu episcopado, uma actividade que ultrapassa em muito os limites da sua pequena diocese. As centenas de sermes tinham como objectivo instruir o seu povo, mas as suas cartas - de que se conservaram 276 - dirigiam-se a todas as cabeas pensantes do mundo romano. Os tratados de Agostinho giram ao redor daquilo que ele considerava como os trs flagelos da poca: o maniquesmo, cujo universo espiritual lhe parecia catico; o donatismo, cisma africano provocado pelo bispo Donato, que pretendia excluir os pecadores da Igreja; e o pelagianismo, doutrina de um monge breto, Pelgio, que proclamava a fora da vontade do homem em detrimento da graa divina. Ao mesmo tempo, Agostinho esforava-se por demonstrar aos pagos, na Cidade de Deus, que o cristianismo podia vivificar um mundo novo. Escritor subtil a ponto de atingir a mais alta poesia, as suas Confisses s encontram comparao nos Pensamentos de Pascal. Agostinho revela-se, na frica invadida pelos Vndalos e num mundo submerso em trevas, como a conscincia viva do Ocidente.

4. A cristianizao dos campos

Confunde-se muitas vezes paganismo (paganub = campons) com rusticismo, como se, no sculo IV, a idolatria, inteiramente erradicada das cidades, no passasse de um fenmeno natural. Trata-se de uma definio abusiva, ainda que as massas camponesas, menos influenciadas pela cultura antiga e pelas ideias novas, estivessem menos avanadas do que as cidades quanto cristianizao. O velho pano de fundo das crenas populares - mais ou menos assimiladas pelo politesmo greco-romano - permaneceu vivo at ao sculo V nos campos do Ocidente: a Germnia, por exemplo, resistiu durante muito mais tempo. Os missionrios cristos depararam a com um paganismo heterclito, onde se misturavam o culto das foras da Natureza,

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das fontes e dos bosques e o culto das divindades domsticas e locais.Delicado problema era o da penetrao do cristianismo no campo, pois certo que os nossos ancestrais aderiram ao Evangelho com toda a sua bagagem de crenas e prticas supersticiosas. O objectivo dos missionrios - um Jonas na Trcia, um Victrcio entre os Morinos, um Viglio nos Alpes julianos ou um Martinho na Glia Central - era, evidentemente, o de vencer a resistncia dos camponeses pela autoridade das suas palavras e da sua conduta, mas, sobretudo, pelos seus milagres: os relatos hagiogrficos mostram com abundncia rvores sagradas cortadas, templos incendiados, esttuas de deuses derrubadas... Tratava-se tambm de substituir as supersties pelos gestos cristos: quantas "fontes sagradas" no foram exorcizadas pela implantao de uma cruz, mas, em contrapartida, quantos santos no foram confundidos no culto popular com os deuses que eles substituam! "Onde acaba o feitio e comea a orao?", perguntava o cnego Drioux, que foi um dos pr-historiadores das dioceses em Frana.Houve ncleos duros de resistncia. No Norte da Glia, a idolatria sobreviveu at ao fim do sculo VII. O ritual do baptismo propagou-se muito lentamente: um clero e fiis pouco preparados, igrejas em nmero muito escasso, pequenas e medocres, eis o que no facilitava a penetrao do esprito evanglico.No admira, por isso, que - segundo a bela frmula do professor Le Brs: "A prtica religiosa em todo o Ocidente propagou-se, graas ao duplo prestgio do maravilhoso e da autoridade." - se tenha, por vezes, concludo que o cristianismo se imps pela fora a uma populao ignorante e embrutecida. Mas ver na introduo e na manuteno do cristianismo apenas um fenmeno de iluso colectiva, facilitado pelo regime senhorial, uma simplificao fcil, pois estamos perante uma operao singularmente lenta, complexa e delicada: a infiltrao capilar do cristianismo nas camadas mais profundas da sociedade ocidental. verdade que, decorridos quinze sculos, com a ajuda do tempo e das foras novas, o cristianismo aparece, em muitos

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lugares, como uma religio puramente sociolgica cujo verniz j estalou h muito tempo. verdade que a Turena de S. Martinho a mesma de Rabelais e de Paul-Louis Courier. Mas quem poder dizer qual a simbiose, qual a metamorfose que presidiu ao florescimento do cristianismo na Bretanha, onde, durante trs sculos, se justapuseram as crenas primitivas e o cristianismo cltico? Sem dvida, se notar que a Bretanha, como o Oeste francs e como a Polnia, foram marcadas pelo feudalismo durant