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Pesquisa FAPESP

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Especial 450 anos de São Paulo

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Ciência e Tecnologia no Brasil

www.revistapesquisa.fapesp.br

4 CARTA DO EDITOR

Decifra-me ou devoro-te

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6 Metamorfose ambulante

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46 A metrópole nas telas

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26 Terra da garoa e da ciência

20 A cidade de 77 climas

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32 O mapa da exclusão

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50 Impunidade e violência

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38 Retratos doentardecer

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12 Estufa que exporta poluição 56 Em revista, o

desvario dapaulicéia cultural

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58 RuaRiachuelo

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 3

Capa: Hélio de Almeida - Foto Miguel Boyayan

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4 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Decifra-me ou devoro-te

ma onda alucinante de sons, tons, cheiros, cores,imagens, palavras, discursos se espraiou porSão Paulo nos últimos dias de janeiro, no dia25 em especial. Uma multidão impressionante,multiétnica, se aglomerou sob a chuva na esqui-

na da Ipiranga com a São João, invadiu o Parque Ibirapuera, seespalhou pela avenida 23 de Maio, chegou à Liberdade, ao Pátiodo Colégio, tomou a Luz, entrou na Pinacoteca, cantou, dan-çou, festejou. Era tudo festa, e festa popular, pelos 450 anos dacidade. Houve, claro, quem torcesse o nariz. Quem achasse tudoaquilo uma chateação. Uma bobagem. Produção de mero mar-keting eleitoreiro. Um exagero, enfim, uma celebração kitschaté a náusea. Mas só uma má vontade extrema não reconhece-ria na vibração positiva da multidão na rua, em sua alegria co-letiva, aberta ou meio contida, traços de um sentimento valio-so de pertencimento, tão raro de ser flagrado no cotidiano deSão Paulo. Ou expressões de um renovado e forte vínculo socialcom o lugar em que se vive, sempre tão ameaçado nesta cidade.E um e outro são certamente ingredientes fundamentais de con-traposição à face violenta da metrópole, a seu lado duro, nãoraro selvagem, que também é parte integrante das relações sociaise econômicas que ela estabelece.

Comemorar não impede o pensar, antes o propõe. E, emparalelo à festa, vieram as reflexões. Mostrou-se muito nessesdias de janeiro, por uma infinidade de ângulos e numa diver-sidade de meios, a complexidade extraordinária de São Paulo.Mas o tema é, sem dúvida, inesgotável, e Pesquisa FAPESP pre-tende, em seu campo próprio, dar uma pequena contribuiçãopara os debates que ele provavelmente suscitará ao longo des-te ano. Assim, esta edição especial da revista reúne reportagenssobre estudos que tomaram como objeto problemas ou aspec-tos significativos da gigantesca metrópole. Para começar, abor-damos um denso e inédito trabalho sobre o próprio perfilatual da Região Metropolitana desenhado no livro São Paulometrópole, a ser lançado em breve pela Edusp. Elaborado pelospesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), umdos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) pa-trocinados pela FAPESP, ele é resultado de quase duas décadasde pesquisa. A análise daí decorrente, relata a editora de Polí-tica, Claudia Izique (a partir da página 6), não cai na tentação

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA,DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

FAPESPCARLOS VOGT

PRESIDENTE

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADOVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIORADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO

CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER,HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR,PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO

BRENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVOFRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

JOSÉ FERNANDO PEREZDIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESPCONSELHO EDITORIAL

LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO),EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA

COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J.DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ,

LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO,PAULA MONTERO, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTEHÉLIO DE ALMEIDA

EDITORESCARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE),MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITOR ESPECIALMARCOS PIVETTA

EDITORES-ASSISTENTESDINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTETÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃOJOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORESEDUARDO GERAQUE (ON-LINE),

FABRÍCIO MARQUES, GIL PINHEIRO, LAURABEATRIZ,MARGÔ NEGRO, RENATA SARAIVA,

SAMUEL ANTENOR, SÍRIO J. B. CANÇADO,THIAGO ROMERO (ON-LINE), YURI VASCONCELOS

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NÚMEROS ATRASADOSTEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

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519-

8774 ESPECIAL

SÃO PAULO 45O ANOS

Carta do editor

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das interpretações causais. Em vez disso, mostra a metrópolecomo expressão de uma nova etapa do sistema produtivo e ele-ge os temas que melhor descrevem o percurso de transforma-ção, do ponto de vista da evolução urbana, qualificando as si-tuações emergentes e transitórias.

As outras reportagens que constituem essa edição foram se-lecionadas dentre o extenso material a respeito de São Paulopublicado pela revista, de forma dispersa, ao longo dos dois úl-timos anos – um pouco mais, a rigor, já que o trabalho mais an-tigo aqui tratado é de novembro/dezembro de 2001. Buscamoscontemplar diferentes enfoques científicos sobre a cidade, massempre considerando a relevância do tema pesquisado paraseus habitantes. Dessa forma, abordamos a poluição que a ca-pital paulista não só produz como exporta para cidades dis-tantes de seu território até 400 quilômetros, detalhadamenteexaminada sob o comando de pesquisadores do Instituto deAstronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Mostra-mos as conclusões de uma grande pesquisa sobre a exclusãosocial na cidade, coordenada por pesquisadores da Faculdadede Serviço Social da PUC-São Paulo. A violência, as dores e ale-grias do envelhecimento na metrópole, mas também o cinemaque busca entendê-la ou expressá-la, são outros temas que apa-recem nesta edição, oferecendo uma bela amostra das preocu-pações de pesquisadores de diferentes áreas que têm em SãoPaulo não apenas um lugar para viver, mas um fascinante desa-fio profissional: há que compreendê-la, decifrá-la e, por quenão?, ajudar a transformá-la.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO

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Grafite no túnel de acesso à avenida Paulista:intervenção no espaço urbano

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6 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Livro que será lançado em

breve faz radiografia da transformação

urbana de São Paulo

ão Paulo é uma metrópole em transformação.Favelas, cortiços e esgoto a céu aberto, rema-nescentes de um período de crescimento de-sordenado, dividem o cenário com um padrãode urbanização moderno e comprometido

com novas funções produtivas e novas tecnologias, quetem como ícones os edifícios e condomínios auto-sufi-cientes. Essas oposições marcam o fim de um ciclo pre-dominantemente industrial e, simultaneamente, o iní-cio de outro, caracterizado pela expansão dos serviços.São Paulo não transita, exatamente, entre os dois mo-delos: o precário e o moderno, a indústria e os serviçoscoexistem no território urbano, enquanto a metrópoleganha contornos de cidade metropolitana.

O novo perfil da Região Metropolitana está desenha-do no livro São Paulo metrópole, elaborado pelos pes-

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Metamorfoseambulante

ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

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quisadores do Centro de Estudos daMetrópole (CEM) – um dos dez Cen-tros de Pesquisa, Inovação e Difusão(Cepids) patrocinados pela FAPESP–, que está sendo lançado pela Edusp.“O livro mostra o processo de trans-formação da metrópole”, sintetiza Re-gina Prosperi Meyer, da Faculdade deArquitetura e Urbanismo (FAU), da Uni-versidade de São Paulo (USP), coor-denadora do grupo de urbanismo doCEM e co-autora do livro.

Resultado de quase duas décadas depesquisa, a análise não cai na tentação dasinterpretações causais: a metrópole é vis-ta como expressão de uma nova etapado sistema produtivo. Busca articulaçõesde tempo e espaço e elege os temas quemelhor descrevem o percurso de trans-formação, do ponto de vista da evolu-ção urbana, qualificando – com dadose informações georreferenciadas – as si-tuações emergentes e transitórias.

O livro é ilustrado com um excelen-te acervo de mapas e fotos, registradasem seis horas de vôo de helicópterosobre a região, que revelam as contra-dições e ajudam a apontar saídas parao futuro da metrópole.“O objetivo é au-xiliar os órgãos responsáveis a formu-lar hipóteses sobre a natureza e a es-trutura do processo de transformaçãourbana em curso, assim como produziruma agenda de ações a serem assumidaspelas políticas públicas de alcance me-tropolitano”, sublinha Regina Meyer.

Expansão centrípeta - São Paulo regis-tra uma redução drástica no ritmo decrescimento populacional desde a dé-cada de 1980, quando a taxa foi de1,18% ao ano. Esse padrão se mantevena década de 1990: a população cres-ceu 0,88% ao ano. As mudanças e osrearranjos urbanos nesse período, noentanto, foram intensos e contamina-

Contraste urbano:

avenida Faria Lima

e serra da Cantareira

ram todo o espaço metropolitano. Osbairros centrais, como Barra Funda, BelaVista e Pari, perderam população, cres-cendo a taxas negativas no mesmoperíodo, enquanto as políticas públi-cas levavam seus moradores para “ca-sinhas” na periferia. “Os cortiços sãouma resposta a isso”, comenta ReginaMeyer. Essa dinâmica criou um novoparadoxo urbano e econômico: áreasplenamente equipadas com infra-es-trutura e transportes de massa encon-tram-se em processo de esvaziamentopopulacional, enquanto se abrem, in-discriminadamente, novos – e distantes– setores de expansão urbana, numaespécie de expansão centrípeta.

Outros bairros, mais consolidados,verticalizaram-se, atraindo para seu en-torno atividades de comércio e serviçosespecializados. Tatuapé, Jardim AnáliaFranco, Mooca e Moema são exemplodisso. Ao longo de 20 anos, essas áreas

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registraram intenso movimento de tro-ca de população: prédios novos foramocupados por pessoas de maior rendae os velhos moradores deslocaram-separa bairros novos que ainda hoje semultiplicam na periferia.

li, na periferia, a ação dosórgãos públicos fez prolife-

rar os conjuntos habitacio-nais de interesse social,novo endereço dos mo-

radores do centro, do Tatuapé, do Jar-dim Anália Franco e tantos outros.Junto com os conjuntos habitacionais,cresceram as construções informais decomércio e serviços e, no espaço origi-nalmente destinado pelos programasoficiais aos equipamentos de serviço,formaram-se novas favelas.

Cidade informal - A metrópole abriga 2mil favelas com população de mais de 1milhão de habitantes, legado dramáti-co dos tempos da São Paulo industrial.Atualmente, as grandes favelas, comoHeliópolis e Paraisópolis, ganharamatributo de bairro de “pleno direito”,como diz Regina Meyer. Mais uma vez,por iniciativa do próprio poder públi-co, já contam com serviço de ônibus eCorreios, por exemplo.“O poder públi-co não pensa mais em remover favelas,só aquelas instaladas em propriedade pri-vada”, afirma Regina Meyer. “Hoje, apalavra de ordem é transformá-las embairros equipados, a exemplo do pro-grama Favela-Bairro, do Rio de Janei-ro.” Como grande parte delas está assen-tada em áreas públicas e desocupadas– como as regiões de fundos de vale,impróprias para o desenvolvimento deprogramas habitacionais –, seguirãocomo permanências do ciclo industrial,no jargão dos urbanistas. E demandamprogramas de reorganização urbana,como regularização fundiária e implan-tação de infra-estrutura e equipamen-tos sociais, ou seja, um desafio para osgovernos locais e estadual.

O estabelecimento de sistemas viá-rios de grande extensão que atraves-sam áreas ocupadas por população debaixa renda – como a avenida JacuPêssego/Nova Trabalhadores – con-tribuiu, e muito, para a consolidaçãodos conjuntos habitacionais nas áreasperiféricas e das permanências, comoas favelas, agora transformadas embairro.

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ARua Verbo Divino

Avenida Luiz Carlos Berrini Alphaville Empresarial

Centro de São Paulo

Itaim Bibi

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A oferta de moradias por meio deprogramas públicos tem sido reduzidadiante da demanda e do déficit habita-cional, sobretudo para a população comrenda de até três salários mínimos. Nodecorrer dos anos 1980 e 1990, foram-se firmando novas abordagens paraprovisão de habitação e aprimoraram-se os programas de atuação nas áreasinformais da metrópole, como a urba-nização de favelas, a regularização deloteamentos irregulares e clandestinos,e a realocação de população em área derisco. “A informalidade passou a serobjeto de políticas públicas, embora suaárea de atuação seja ainda muito pe-quena”, diz Marta Grostein, do Labo-ratório de Urbanismo da Metrópole, daFAU, e co-autora do livro. É preciso queesses programas contem com a parti-cipação de empreendedores privadosna produção de habitação de interessesocial, que se implementem programasde melhorias em assentamentos infor-mais consolidados – como as favelas-bairro – e que a construção por mutirãose transforme em prática comum.

O roteiro do capital - A metrópole setransforma e as atividades terciárias sedeslocam do centro tradicional para osudoeste do município de São Paulo.Esse fenômeno, a rigor, ocorre há 50anos: passou pelas avenidas Paulista eFaria Lima até alcançar o eixo da Mar-ginal Pinheiros. Esse percurso, no seuinício, foi resultado da metropolizaçãoda cidade. Mas, a partir dos anos 1980,passou a corresponder à movimenta-ção do grande capital imobiliário e ainteresses especulativos. Esse processonão criou novas “centralidades”: ma-terializou-se em edifícios corporativos.Os investimentos públicos, nas déca-das de 1980 e 1990, na infra-estruturaviária do eixo sudoeste da metrópolefacilitaram o acesso de novos usuá-rios. Roteiro, aliás, idêntico ao do setorfinanceiro que ocupou as avenidasLuiz Carlos Berrini e Nações Unidas,instalando-se em edifícios auto-sufi-cientes – equipados com restaurantes,shoppings e outros serviços – que cria-ram “centralidades” inevitáveis, ain-da que exacerbadas. Cada torre é umcorpo autônomo. O padrão é o isola-mento. “A localização das sedes dasempresas, sobretudo das grandes cor-porações multinacionais, também re-flete esse deslocamento”, observa Ciro

Cerqueira César

Avenida Paulista

Vila Olímpia

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Biderman, da Fundação Getúlio Var-gas de São Paulo, um dos autores dolivro. Esses bairros funcionais forambeneficiados por obras públicas viá-rias que propiciaram – por meio dedesapropriações e transformações deusos – a formação de novas áreas qua-lificadas de comércio, serviços e habi-tação de padrão médio e alto.

Antes mesmo disso, empreendimen-tos imobiliários de grande porte já ti-nham gerado projetos como Alphavil-le e Tamboré, destinados à populaçãode alta renda, também concebidos como conceito de auto-suficiência.“Os con-domínios fechados multiplicam-se etornam-se um padrão de organizaçãoagora também para as classes B e C.Esse é um modelo pernicioso de ocu-pação, já que cria enclaves graves paraa urbanização”, avalia Regina Meyer.Os condomínios fechados alastram-sena grande maioria dos municípios daregião, em áreas com qualidade ambien-tal, um atributo que acrescenta valorimobiliário aos empreendimentos. Ig-noram o seu entorno, voltando-se ex-

clusivamente para o interior da glebaou lote onde estão instalados.

O mercado imobiliário também foiresponsável pelo adensamento popu-lacional junto aos trechos urbanos dasrodovias que, a partir dos anos 1990,alcançaram o município de São Paulo.Os novos edifícios residenciais, loca-lizados até o quilômetro 18 da rodoviaRaposo Tavares, por exemplo, atendemàs faixas de renda média e baixa, exi-gindo que os moradores tenham veí-culos que permitam tamanho desloca-mento. Os planos do poder público detransformar esses trechos rodoviáriosem vias expressas com acessos locaisdeverão ampliar a oferta habitacionalnessas áreas.

A dinâmica de expansão da me-trópole aproximou áreas urbanas deocupação distintas do ponto de vistasocioeconômico. Hoje, a favela de Pa-raisópolis é contígua ao Morumbi, e aGranja Viana, vizinha de Carapicuíba.“Essa situação aponta para o fenôme-no descrito como ‘proximidade físicae distância social’ e não chega a gerar

formas de inclusão social ou urbana, jáque cada um dos grupos está assenta-do em sistemas urbanos isolados”, ob-serva Regina Meyer. E esse isolamentose deve, em parte, à organização do sis-tema viário e de transporte.

a cidade metropolitana– futuro inevitável deSão Paulo – perdem ni-tidez os contornos decada um dos 39 muni-

cípios que formam a região, e o terri-tório transforma-se num espaço ur-banizado contínuo. Nesse contexto dedispersão, as vias expressas dão conti-nuidade ao território da metrópolee são condição para a mobilidade. Ossistemas de transporte de massa e mo-bilidade passam a ser o elemento agre-gador. É possível morar em Cotia e tra-balhar na Zona Leste da capital.

A malha viária também contribuipara o deslocamento das indústrias dasregiões mais centrais para municípiosmetropolitanos como Osasco e Arujá.E foi responsável pela expansão dos

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Evolução da área urbanizada - de 1949 a 1992

Área urbanizada 1949 1962 1974 1980 1985 1992

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municípios-dormitórios, com grandeestoque habitacional, como Franco daRocha, Francisco Morato e Poá. Essascidades concentram população de bai-xa renda sem oferecer postos de tra-balho na escala necessária. São regiõesprecárias, com urbanização insuficien-te e baixo valor imobiliário. Concen-tram grande número de moradias pro-duzidas pelo poder público na formade conjuntos habitacionais, assim comofavelas e loteamentos irregulares, mui-tas vezes assentados em áreas de prote-ção ambiental e no interior de baciashidrográficas dos principais sistemasprodutores de água. Vigora nessas áreas,desde os anos 1990, uma nova abor-dagem de intervenção que busca recu-perar a degradação, regularizar a ocu-pação urbana e conter os processospredatórios, lembra Regina Meyer.

A nova metrópole - O novo modelo es-pacial da metrópole requer uma in-fra-estrutura de transportes que in-tegre as atividades dispersas noterritório metropolitano e crie pólos

articuladores locais. “A identificaçãodesses pólos de convergência deve serum dos focos de planejamento urba-no”, sugere Regina Meyer. Os pólosmetropolitanos – definidos como lo-calizações que articulam funções ur-banas locais e metropolitanas associa-das ao transporte público de massas –têm papel decisivo na estruturação donovo território metropolitano.

cidade metrópole tambémexige a identificação de es-

paços estratégicos que per-mitam que as interven-ções do poder público

ganhem escala metropolitana. Umadessas áreas de intervenção multipli-cadora, sugere a pesquisa, é a orla fer-roviária que se estende ao longo dos dis-tritos centrais da cidade de São Paulo,cujo uso está liberado pela privatiza-ção da operação das ferrovias. As ter-ras pertenciam à Rede Ferroviária Fe-deral (RFFSA) e o poder público tempossibilidade de utilizá-las na instala-ção de novos empreendimentos habi-

tacionais que permitiriam trazer no-vos moradores para o centro, diz Regi-na Meyer.

Os bairros centrais devem propi-ciar espaços de moradia que redire-cionem o fluxo migratório do centropara a periferia. As transformações paraárea da Luz – previstas no Plano In-tegrado de Transportes Urbanos (Pitu2020), que integrará o metrô e o tremmetropolitano –, por exemplo, serãoestratégicas para a intensificação douso habitacional desse setor urbano.

A incorporação da cidade informalà cidade legalmente constituída é, atual-mente, o grande desafio das políticaspúblicas, especialmente aquelas relati-vas à regularização fundiária. Desde1997, a nova Lei de Proteção e Recupe-ração de Mananciais permite ao pla-nejador legislar sobre áreas específicas:as bacias ou sub-bacias hidrográficas.Mas é preciso conjugar política urba-na e ambiental para garantir que a me-trópole se consolide, garantindo qua-lidade de vida a toda a sua população,conforme Marta Grostein. •

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Estrutura viária e de transportes metropolitana

Metrô existente

Trem urbano

Corredores de ônibus

Ferrovias 2001 operadas pela CPTM

Rodoanel e anéis viários

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Sistema viário principal

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Noroeste da capital

e pico do Jaraguá: poluição

é barrada pela serra

da Cantareira, considerada

de “ar puro”, e ali se acumula

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Mais quente e sem garoa,

São Paulo espalha a fumaça

que produz para cidades

distantes até 400 km

CA RLOS FIO RAVA NT I

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ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

Estufaque exportapoluição

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clima de São Paulo mudou. Os dias de verão sãocada vez mais quentes e os de inverno, mais secos.A temperatura média da maior cidade do Brasil está1,3º C (grau Celsius) mais alta do que há quatrodécadas. E, ao contrário do que se poderia imaginar,

os efeitos da urbanização, sobretudo a impermeabilização do soloe o excesso de veículos, não são os principais responsáveis pela mu-dança: respondem por cerca de 30% nas alterações, enquanto os70% cabem às forças naturais, principalmente ao aquecimento dooceano Atlântico nesse período.

Além de explicar essas alterações, as pesquisas coordenadas porPedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísicae Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), mostram algo pior: a Região Metropolitana de São Paulo– capital e 38 municípios vizinhos – é um centro exportador depoluentes. Cercada ao sul pela serra do Mar, que separa a planí-cie litorânea do planalto – e ao norte pela serra da Cantareira, decerca de 1.200 metros de altitude, a região ocupa um quadriláte-ro de 200 por 150 km (quilômetros), onde vivem 17 milhões depessoas. Seu ar poluído, principalmente no inverno, pode che-gar a cidades situadas a até 100 km da capital, ainda que em con-centrações menores do que nas imediações das avenidas ou plantasindustriais onde é produzido. Silva Dias estima que, conforme aépoca do ano, de 20% a 30% da poluição de Campinas, Tatuí eSorocaba, por exemplo, venha de São Paulo.

A poluição tornou-se, portanto, um problema não mais apenaslocal, mas regional. Má notícia para os próprios paulistanos que,nos finais de semana e férias, vão se refugiar na montanha em bus-ca de ar puro, um dos atrativos de cidades serranas próximas. Mo-delagens feitas em computador atestam que o ar pode não ser tãopuro assim, por causa da poluição trazida sorrateiramente pelosventos que sopram da capital. Quem vive mais longe nem sempreescapa. Se embalado por ventos mais intensos, o ar poluído da me-trópole pode alcançar Bauru, a quase 400 km.

Delineou-se outro problema para os vizinhos de São Paulo: hálugares onde a concentração de ozônio (O3) perto do solo chega asuperar a da capital. Formado pelos poluentes emitidos pelos carros,esse ozônio é prejudicial, ao contrário do que existe numa camadaatmosférica elevada, que protege o planeta de radiações danosas.Na alta atmosfera, essa forma de oxigênio filtra os raios ultravio-leta do Sol, mas junto do solo pode irritar os olhos e causar rinite,

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Túnel Jânio Quadros:

medições valiosas nesse

“laboratório” livre da

radiação solar, que acelera

as reações entre poluentes

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tosse e outros problemas respiratórios. É tóxico tambémpara as plantas.

Em Barueri, Embu e Jundiaí, por exemplo, o teor desseozônio poluente pode ser até 50% maior que na praça da Séou no vale do Anhangabaú – nesses pontos, em pleno cen-tro, a média horária de ozônio, de 60 ppb (partes por bi-lhão), oscila conforme a época do ano e às vezes excede o li-mite de segurança, que é de 80 ppb.

uando se pensa em soluções, surge um com-plicador. Quem deve assumir a responsabi-lidade pelos problemas de saúde causadospela poluição: o município que exporta po-luentes ou o que os recebe? Nem os especia-listas em Direito Ambiental da Europa ou dos

Estados Unidos se entendem a respeito.Na capital, também há surpreendentes pontos de for-

mação de ozônio, como a serra da Cantareira e o pico do Ja-raguá. Embora considerados refúgios de ar puro, são regiõesaltas, e por isso barram a passagem do ar e podem ter as mes-mas concentrações de ozônio que áreas densamente urbani-zadas, segundo levantamentos do IAG e do Instituto de Pes-quisas Energéticas e Nucleares (Ipen).

A situação preocupa porque hoje o ozônio é o poluenteque mais ultrapassa o limite de segurança, sobretudo nosbairros paulistanos do Ibirapuera e da Mooca, bem comoem Cubatão, na Baixada Santista. A formação de ozônio emlocais distantes dos pontos de origem dos poluentes é umproblema comum aos grandes centros. Silva Dias acreditaque haja muito ozônio nos arredores de Brasília e Curitiba,por exemplo, já que o fenômeno costuma ocorrer em cida-des com mais de 400 mil habitantes.

O trabalho conjunto de físicos, químicos, meteorologistase matemáticos mostra por que hoje a terra da garoa não pas-sa de uma lembrança. Esse apelido de São Paulo se refere a umasituação que persistiu até os anos 1960, quando a chuvinhafina era assídua e se somava ao clima mais frio: no inverno,

os paulistanos não dispensavam casacos grossos, luvas e ca-checóis. Hoje praticamente não há garoa, enquanto são maisfreqüentes as chuvas torrenciais, causadoras de inundaçõesna estação quente.

Os pesquisadores analisaram as condições meteorológi-cas – variação de temperatura e umidade, distribuição dechuvas, freqüência de nevoeiros e ventos – que determinamo transporte dos poluentes e concluíram: as forças naturaissão decisivas para e transformação da São Paulo da garoanuma cidade de chuvas torrenciais. “Há uma forte correla-ção entre as mudanças do clima da capital e as ocorridas noAtlântico Sul, cuja temperatura média anual aumentou 1,4ºCem 40 anos”, explica Silva Dias.

Influências marinhas - Embora não se possa garantir queo aquecimento do oceano seja a causa direta do aqueci-mento da capital, a hipótese é plausível. Medições feitasdesde 1933 na estação meteorológica do IAG na ÁguaFunda, junto ao Jardim Zoológico, apontam para umamudança drástica no regime pluviométrico: aumento daschuvas intensas no verão e diminuição das chuvas levesno inverno. Disso resultou uma mudança no teor de umi-dade do ar. O ar mais seco que passou a predominar noinverno dificulta a dispersão dos poluentes gerados pelos6 milhões de automóveis, 400 mil caminhões e ônibuse cerca de 30 mil instalações industriais da Região Me-tropolitana.

Apoiados ainda em medições de 1999 e 2000, que se so-maram a informações colhidas rotineiramente pela Com-panhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estadode São Paulo (Cetesb), os pesquisadores passaram a enten-der melhor não só as mudanças climáticas, mas tambémas origens e os movimentos das massas de ar que se desfa-zem, estacionam ou mudam de rota ao encontrar as serrase os corredores de prédios. São os ventos originados mais fre-qüentemente no mar que carregam a poluição produzidana cidade, principalmente por veículos, em volumes nada

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Cubatão, ao pé da serra

do Mar: brisa marinha

leva ao planalto poluentes

dessa cidade industrial

16 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Page 16: Pesquisa FAPESP

desprezíveis: 1,6 milhão de toneladas de monóxido de car-bono, 380 mil toneladas de hidrocarbonetos e 64 mil tone-ladas de aerossóis (material particulado) por ano. Além demostrar que esses poluentes afetam a qualidade de vida nacapital e nos municípios vizinhos, o estudo é provavelmen-te o primeiro a medir a origem e o destino do ar respiradoem São Paulo.

A Região Metropolitana produz a maior parte de seuspoluentes: de 70 a 80%. O resto vem do interior ou de outrosestados: entre fins de outubro e começo de novembro, cercade 10% da poluição da metrópole é resíduo de queimadas,principalmente de cana, feitas a até 300 km de distância, nasregiões de Piracicaba ou Ribeirão Preto. Mesmo as cinzas dequeimadas no sul da Amazônia podem chegar à maior cida-de do Brasil, dependendo da direção e da intensidade dosventos – a movimentação diária dos ventos pode ser acom-panhada na página www.master.iag.usp.br, construída comos resultados da pesquisa.

análise do movimento e da qualidade do arbaseou-se numa metrópole ampliada em raiode 100 km – inclui parte da Baixada Santista(Santos e Cubatão), do Vale do Paraíba (atéSão José dos Campos) e de áreas mais

planas, como Sorocaba e Campinas. Foi essa visão abran-gente que permitiu conhecer os pontos e os processos deformação de ozônio.

Já se sabia que há menos ozônio no Centro ou em Con-gonhas, porque os próprios poluentes dessas áreas – sobre-tudo óxidos de nitrogênio – o consomem. É pela falta dessespoluentes que pode haver mais ozônio no parque do Ibira-puera do que na vizinha avenida 23 de Maio.

Levados pelas massas de ar, os poluentes emitidos peloscarros – formadores do ozônio – saem da capital e partici-pam de reações promovidas pela luz solar, que demoram deduas a três horas para se completar – tempo suficiente paraque cheguem a municípios vizinhos ou estacionem nas en-

costas das serras. A situação se agrava em novembro, quan-do há muitos dias ensolarados e sem nuvens.

O detalhamento do processo foi um trabalho duro. Avice-coordenadora Maria de Fátima Andrade, do IAG, estu-dou a formação e interação de poluentes. Com os valores doinventário de emissões, estudou a formação de ozônio a par-tir de óxidos de nitrogênio, hidrocarbonetos e radicais livres(fragmentos de moléculas formadas a partir de oxigênio). Oprograma de previsão de formação de ozônio que ela usoutem cerca de 200 reações com 90 poluentes.

Tampa de panela - Ficou clara a importância da brisa ma-rinha – corrente de ar de baixa intensidade que nasce nooceano, como resultado da diferença de temperatura entreo mar e o continente. É essa brisa, ao circular a 500 metrosda superfície, que ameniza a temperatura da capital e in-tensifica a dispersão de poluentes, sobretudo quando asso-ciada aos ventos de Sudeste, correntes mais intensas, tam-bém originadas no mar. O efeito refrescante desses ventosmarinhos, descobriram os pesquisadores, pode chegar atéSão Carlos ou Pirassununga, a 230 km da capital. “SãoPaulo tem sorte de estar perto do mar”, diz o coordenador.“O clima seria pior, do ponto de vista do impacto sobre asaúde pública, sem a brisa.” Dias quentes e abafados sãodias em que a brisa marinha não atinge a cidade.

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A equipe fez também um perfil tridimensional dasmassas de ar na Região Metropolitana: é a camada-limiteplanetária, região baixa da atmosfera onde os poluentesreagem entre si. Descrita num artigo publicado em abrilde 2001 em Atmospheric Environment, essa região ocupade 50 a 100 km ao redor do centro de São Paulo. Sua altu-ra depende da força dos ventos que abriga, mas durante odia chega a 1.500 metros do solo. À noite, o limite cai para400 metros ou menos e, como o volume ocupado pelo arurbano diminui, a concentração de poluentes aumenta.

ar piora com um fenômeno típico do inver-no paulistano: inversão térmica. Na chegadade uma frente fria, a temperatura sobe com aaltura, ao contrário do habitual: nor-malmente a temperatura cai 1ºC a cada 100

metros de altitude. Em 1999 e 2000 houve observações pormeio do Sodar – Sounding Detection and Ranging ou sonda-dor acústico, aparelho que emite sinais sonoros como um ra-dar de submarino e traça o perfil da variação térmica a até1.500 metros do solo. Apurou-se que, sob forte inversão tér-mica, a camada-limite pode cair para 200 metros. Ela funcio-na como uma tampa de panela e, quanto mais baixa, maisconcentração de poluentes. “Para os moradores da cidade, éa pior situação”, diz Fátima.

O Sodar evidenciou também dois fenômenos que afetama qualidade do ar. Um deles é o dos “jatos noturnos”, ventosverticais intensos que resultam de mecanismos atmosféricosde maior escala, como as frentes frias – massas de ar vindasdo sul do continente. Os jatos quebram a estabilidade da ca-mada-limite noturna e podem trazer para baixo poluentescomo o ozônio, aumentando sua concentração perto da su-perfície. Além disso, a mistura do ar provocada pelos jatostambém pode contribuir para a diminuição da concentraçãode poluentes produzidos na superfície, como a poeira.

A situação pode melhorar com o segundo fenômeno, odas ondas de gravidade. Mais intensas à noite, assemelham-se às ondas de água que batem numa barreira: ao subir a

Cantareira, o ar origina oscilações, análogas às ondas de água,o que contribui para reduzir a poluição.

“Esta foi a primeira vez que se estudou o perfil tridimen-sional da poluição na Região Metropolitana”, comenta Pau-lo Artaxo, pesquisador do Instituto de Física da USP queparticipou do trabalho. Para chegar onde chegaram, os es-pecialistas soltaram balões parecidos com os de festas deaniversário, que sinalizam a direção e a intensidade dos ven-tos. Valeram-se também de um avião Bandeirante do Insti-tuto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em quatro vôos,nos invernos de 1999 e 2000, coletaram amostras de ar dascidades de São Paulo, Sorocaba, São José dos Campos, Cam-pinas e Cubatão, voando a 200 metros do solo, abaixo dotráfego aéreo.

Variação brusca - Os pesquisadores analisaram a concen-tração dos gases poluentes ozônio, óxidos de nitrogênio,monóxido de carbono e dióxido de enxofre. A concentra-ção de material particulado foi analisada por uma técnicaque analisa os raios X gerados por uma amostra num ace-lerador de partículas. Foram analisados tanto o materialfino, de menos de 2 micra (1 mícron é a milésima parte domilímetro), que entra na corrente sanguínea e atinge os al-véolos pulmonares, quanto o grosso, acima de 2 micra, quecausa rinite, tosse e resfriado.

Primeira conclusão: a concentração de poluentespode variar bruscamente num local. Em medição do dia13 de agosto de 1999 no aeroporto Campo de Marte, havia9 mil partículas por centímetro cúbico (cm3) a 1 mil metrosde altitude. A 1.500 metros, o teor de material particuladocaía para 2 mil por cm3. A diferença também varia muitocom a distribuição geográfica: “Das áreas litorâneas parao centro da cidade, a concentração de material particuladosubiu 20 vezes”, diz Artaxo. E as fontes desses poluentesvariam no ano. Num estudo feito no inverno, a distribui-ção de material particulado fino foi esta: veículos, 28%;poeira do solo, 25%; sulfatos de fontes industriais, 23%; equeima de óleos industriais, 18%. Já no verão, a partici-

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Beleza enganadora:

as cores do pôr-do-sol

na metrópole se devem

ao excesso de poluição

18 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Page 18: Pesquisa FAPESP

pação dos carros cai para 24% e se destacam a poeira dosolo (30%) e a queima de óleo residual (21%).

Ficou claro que a emissão de poluentes se casa com ascondições meteorológicas para determinar a qualidade doar. O problema é que uma lógica ainda misteriosa rege essacombinação.“Se reduzíssemos a emissão de poluentes pelametade, pode ser que a poluição não caísse pela metade”,diz Artaxo. “Em algumas condições meteorológicas, pode-ria cair muito pouco.”

Estudos mais refinados do Instituto de Física indicaramque o material particulado afeta o comportamento das ca-madas mais baixas da atmosfera. Já se descobriu que a poei-ra, sobretudo a mais fina, absorve e reflete luz, além deaquecer o ar ao redor – o ar poluído a 1 km do solo é maisquente que o ar puro na mesma altitude. As partículastambém diminuem a visibilidade e dificultam a dispersãode poluentes – e oferecem o pôr-do-sol avermelhado típicoda capital. Já se conhece a composição dessa poeira da ci-dade: há partículas de pelo menos 13 elementos, como en-xofre, cloro, titânio, ferro, níquel, zinco, bromo e chumbo.No particulado fino, predomina o enxofre e no grossoelementos vindos do solo, como silício, cálcio e ferro. Nessasopa aérea também circulam esporos de fungos e bactérias.

ó não se sabe de onde vem mais material parti-culado, se dos carros ou das indústrias. Por isso,Fátima e a equipe do Instituto de Química daUSP coordenada por Lílian Carvalho viveramdois dias desconfortáveis fazendo medições e

coletas em dois túneis da cidade: o Jânio Quadros, por ondesó passam veículos leves, e o Maria Maluf, que também re-cebe caminhões. São laboratórios onde se misturam poluen-tes que ainda não reagiram entre si – entre outras razões,porque ali não há radiação solar. Nos próximos meses, àmedida que o grupo concluir as análises, conhecerá melhora contribuição dos veículos.

O aprofundamento da pesquisa evidencia mais as solu-ções. Estudos semelhantes em Santiago do Chile permiti-

ram reduzir pela metade a concentração de poluentes, cujadispersão é barrada pela cordilheira. Segundo Artaxo, foisimples: depois de se descobrir que a poeira era o maiorpoluente, concluiu-se ser mais viável investir em caminhõesque varrem as ruas toda noite do que controlar a emissãode poluentes por indústrias e veículos. “Poluição do ar temsolução”, diz Artaxo. “Basta criar um plano de controle bemembasado cientificamente, com metas claras e multas paraquem não cumpri-las.”

Soluções à mão - Para ele, não se trata de criar, mas de im-plantar medidas já anunciadas: mais investimento notransporte urbano coletivo, controle anual de emissõesveiculares e substituição dos ônibus a diesel por equiva-lentes a gás. “Se essas medidas houvessem sido aplicadashá dez anos, a poluição hoje seria de 30 a 50% menor.”Há mudanças em andamento. Já funciona no pico do Ja-raguá uma estação móvel da Cetesb que mede o teor dematerial particulado, dióxido de enxofre, monóxido decarbono e ozônio a 300 metros do solo. Há outras 23 es-tações fixas e duas móveis na Região Metropolitana e seisfora: Cubatão (duas), Campinas, Paulínia, Sorocaba eSão José dos Campos.

Atentos ao futuro, pesquisadores da USP buscam o estudoda poluição por imagens de satélites com resolução de 1 a 5km. O satélite Terra, lançado no ano passado pela Nasa, aagência espacial dos Estados Unidos, mostra ser possível de-tectar ao menos o teor de partículas na faixa da luz visível ede monóxido de carbono no infravermelho. Em dez anos,quando a Região Metropolitana fundir-se com Campinas eSão José dos Campos, como se prevê, talvez seja difícil admi-nistrar centenas de sensores para saber como está o ar do dia.De imediato, o estudo ensina a ter uma idéia da qualidade doar só com uma olhada no céu. Se há nuvens, é bom sinal,pois elas funcionam como aspiradores: sugam o ar poluídodas camadas baixas da atmosfera e o expelem para o alto. •

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 19

SPesquisa FAPESP nº 71, janeiro de 2002

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ão dez horas da manhã de 3 de setem-bro na maior metrópole do Brasil. Oano, 1999, quando foi feita uma dasmedições da pesquisa que fundamentaesta reportagem, mas o cenário mudou

pouco nesse tempo. Em meio ao corredor de pré-dios e ao barulho do trânsito da avenida Paulista,é fácil ver homens com ternos escuros e mulheresdesfilando sobre saltos com tailleurs quase sem-pre pretos. Por causa dos 28º C, atípicos para amanhã ensolarada de final de inverno, os trajesparecem pouco adequados, mas são exigênciasdo trabalho no maior centro financeiro do país –e, é verdade, a temperatura pode cair à tarde. Oitoquilômetros a oeste dali, na mesma hora, emmangas de camisa, os vendedores do mercadomunicipal da Lapa atendem seus clientes – nasredondezas do mercado, a temperatura é de 32ºC. A 10 quilômetros dali, em um bairro do ladooposto, na Mooca, não é menos intenso o calorenfrentado pelos comerciantes e moradores.

A diferença de temperatura, que incomodaquem vive em São Paulo, pode chegar a 10 grausno mesmo horário entre dois pontos próximos,

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 21

A cidade de climas

A temperatura na maior

metrópole brasileira varia até

10 graus no mesmo momento

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ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

Serra da Cantareira:

reserva de vegetação

natural que perde

espaço com o

crescimento da

capital paulista

77

Page 21: Pesquisa FAPESP

como o Parque Ecológico do Tietê e aMarginal do Tietê, a dez quilômetrosum do outro. Quem sofre mais comessa peculiaridade da maior cidade bra-sileira são os habitantes das favelas edos cortiços, seguidamente empurra-dos para regiões cada vez mais distantesdo Centro.

uas casas, despreparadas paraenfrentar as oscilações detemperatura, são como for-nos durante o dia e geladeirasà noite. O põe-e-tira de aga-

salho – e, claro, a propagação de habita-ções precárias, nas quais vivem 12%dos 10 milhões de moradores da capital– é conseqüência do crescimento de-sordenado da metrópole, agora esmiu-çado com a publicação este mês doAtlas Ambiental do Município de SãoPaulo, projeto conduzido pelas secre-tarias municipais do Verde e do MeioAmbiente e do Planejamento, comapoio do Biota-FAPESP, programa delevantamento da flora e da fauna pau-listas. O Atlas, cujos primeiros resulta-dos foram anunciados em dezembro de2000 (veja Pesquisa FAPESP nº 60), jáse encontra na internet (http://atlasam-biental.prefeitura.sp.gov.br). O projetode pesquisa que o fundamentou “éresultado de uma parceria paradig-mática entre o poder público munici-pal e o sistema de pesquisa do Estadode São Paulo”, comenta José FernandoPerez, diretor científico da FAPESP, noprefácio do livro. “O sucesso desse em-preendimento deve nos remeter a umareflexão sobre o potencial dessa relaçãopossível e necessária, mas ainda tão pou-co explorada.”

O Atlas mostra como se distribuemos 200 quilômetros quadrados queainda restam de vegetação intacta nomunicípio, o equivalente a 13% do seuterritório (1.512 quilômetros quadra-dos). Ao longo de seus quase 450 anos,a serem completados no início de2004, a construção de casas, prédios eindústrias pôs abaixo 87% da vegeta-ção nativa da capital paulista. De acor-do com esse estudo, coordenado pelageóloga Harmi Takiya, subprefeita daMooca, a cidade perdeu um quinto desua vegetação natural entre 1990 e2000. Hoje as árvores se concentramnos 39 parques estaduais e municipaise em poucos bairros – Jardins, Pinhei-ros e Morumbi, na Zona Oeste, e Moe-

ma, na parte da Zona Sul mais próxi-ma ao Centro. Mas à medida que se se-gue rumo a Capão Redondo e JardimÂngela, no miolo da Zona Sul, o braçomais longo da cidade, a cerca de 20quilômetros do Centro, as árvores es-casseiam. Ganha espaço uma paisagemhorizontal absolutamente urbana, comprédios esparsos e impressionantesconjuntos de casas precárias – e a tem-peratura sobe, lentamente. Em bairrosmais próximos da serra do Mar, comoMarsilac, por causa da proximidade

com a reserva de Capivari-Monos, atemperatura é bem mais baixa, osci-lando ao redor dos 23º C.

Mosaico de microclimas - Em uma dasvertentes de trabalho do Atlas, umaequipe da Universidade de São Paulo(USP) descobriu que, em conseqüênciadas distintas formas de ocupação doespaço urbano, a cidade apresenta 77climas diferentes – vistos em umaconcepção mais ampla, que, além datemperatura e da umidade do ar, consi-

22 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

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Avenida São João, centro

de São Paulo: luz do Sol

não chega ao solo por causa

do excesso de prédios ED

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Obs.: Medição feita

às 10h do dia 3 de setembro de 1999.

Foram consideradas

apenas as 14 categorias básicas

de microclimas, sem

as variações internas de

cada uma delas.

Variação de temperatura (°C)

O calor da metrópole

Page 23: Pesquisa FAPESP

dera os fatores que alteram as carac-terísticas do clima e influenciam obem-estar das pessoas, como o tipo deconstrução predominante (mais ou me-nos casas, prédios ou favelas) e a inten-sidade do trânsito, já que a tempera-tura pode subir com o calor emitidopelos carros e a poluição. O resultado éum mosaico que ganha homogeneida-de nos extremos da cidade, por causada proximidade com as serras da Can-tareira, ao norte, e a do Mar, ao sul. Hátambém uma certa uniformidade nosbairros que circundam o Centro, numarco que começa na Barra Funda, naZona Oeste, passa por Limão e Santana,na Norte, avança até Penha e Vila Matil-de, na Leste, e termina no Sacomã, naZona Sul da cidade. Há variações detemperatura dentro dos próprios bair-ros, em ruas ou praças, razão pela qualesses climas também podem ser chama-dos de microclimas. Mas o mosaico seembaralha, com diferenças mais acen-tuadas de temperatura, nas porções dasregiões Oeste e Sul próximas ao Centro.

ma das principais cau-sas de tamanha varia-ção é o desmatamento,associado a loteamentosclandestinos e favelas

que se disseminam nos extremos dacidde. Aos danos da devastação, deacordo com o estudo coordenado pelogeógrafo José Roberto Tarifa, soma-seinicialmente o impacto provocado pelaimpermeabilização do solo: São Paulotem hoje 60 mil quilômetros de ruas as-faltadas, que retêm calor e assim tor-nam a cidade mais quente. Há tambémuma forte influência da circulação diá-ria dos 3 milhões de carros na cidade.Além de gerar calor com a queima decombustíveis, que corresponde a umdécimo da energia que a cidade recebedo Sol, os veículos lançam ao ar 2,6 mi-lhões de toneladas de poluentes porano, segundo a Companhia de Sanea-mento Básico do Estado de São Paulo(Cetesb) – e, quanto mais fumaça noar, mais calor. Adicione-se o concretode 4 milhões de casas e prédios.Resultado: a temperatura tende a subirainda mais com a densidade de cons-truções verticais – efeito conhecidocomo ilhas de calor. O centro históricode São Paulo é uma exceção. A densida-de de arranha-céus é tão elevada quesurge o efeito oposto, as ilhas de frio:

a temperatura em uma região especí-fica em um determinado horário.

Tarifa e Gustavo Armani, outro ge-ógrafo do Laboratório de Climatolo-gia e Biogeografia da USP, reuniram osestudos sobre o clima paulistano reali-zados de 1970 a 2000 e compararamos dados com fotos aéreas da cidade eimagens do satélite Landsat 7. Foi apartir dessa base de dados que eles lis-taram 18 variáveis relacionadas ao cli-ma da cidade. O clima de uma região édefinido inicialmente por oito delas,como a temperatura da superfície dosolo, a umidade do ar e a quantidadede chuva. Os outros dez fatores regu-lam essas características básicas: são oschamados controles climáticos, comoemissão de poluentes, dimensão dacobertura vegetal e densidade da po-pulação e de edifícios. O resultado fi-nal – os 77 climas apresentados no li-vro Os Climas na cidade de São Paulo –Teoria e prática, publicado em 2001 –deixa claro que essas expressões da ur-banidade são hoje mais importantesna definição do clima metropolitano

24 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Represa de Guarapiranga:

com clima ameno, é um

oásis em meio a regiões de

intensa urbanização

em muitos prédios, os andares maisbaixos não recebem a luz do Sol.

Desde que começou a estudar oclima de São Paulo há 30 anos, Tarifanão se conformava com a idéia de queambientes tão diferentes – as alame-das dos Jardins e o tapete acinzentadode casas da Zona Leste – tivessem o cli-ma homogêneo, de acordo com a vi-são clássica de físicos e meteorologis-tas. “Os estudos eram segmentados eavaliavam apenas um ou outro as-pecto, como as chuvas ou a poluição”,diz Tarifa, que logo após aposentar-seda USP, em 2002, foi contratado pelaUniversidade Federal de Mato Grosso(UFMT), em Rondonópolis. “A visãoantiga não levava em consideração quea vida das pessoas em São Paulo sofrea influência, por exemplo, da quali-dade do ar e do conforto térmico.”Segundo ele, a mudança na forma deanalisar o problema era necessária tam-bém porque há períodos do dia em queas atividades dos moradores, a exem-plo do deslocamento para o trabalho,pesam mais que o relevo para definir

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Page 24: Pesquisa FAPESP

mil habitantes, cresceu 40 vezes e hojese espalha até mesmo pelas áreas antesde difícil acesso como a serra da Canta-reira, uma muralha natural a 1.200 me-tros de altitude. “Cada vez que se alterao espaço, redefine-se o clima”, lembraTarifa. Cercada ao norte pela Cantarei-ra e ao sul pela serra do Mar, a maiormetrópole brasileira se encontra emum corredor que facilita a entrada dasmassas de ar frio provenientes da An-tártida e das correntes de ar carregadasde umidade do oceano Atlântico, dis-tante apenas 45 quilômetros em linhareta – ainda hoje elementos naturaisresponsáveis pela temperatura relativa-mente amena da cidade.

Terra sem garoa - Da época dos jesuítaspara cá, São Paulo devorou quase todoo verde ao redor e deixou de ter apenascinco climas, como há quinhentos anos,na época do descobrimento. Os cincotipos eram variações do clima Tropical,marcados por uma estação fria e seca,que se estende pelo outono e o inver-no, e outra quente e chuvosa, durante a

primavera e o verão, com temperaturasmédias que variavam de 15º C a 25º C.De acordo com um estudo feito no Ins-tituto de Astronomia, Geofísica e Ciên-cias Atmosféricas da USP, a tempera-tura média da cidade subiu 1,3º C nosúltimos 40 anos. Até os anos 60, a capi-tal ainda era a Terra da Garoa, por cau-sa da chuva fina e assídua que se somavaa um clima mais frio que o atual. No in-verno, os paulistanos não dispensavamcasacos grossos, luvas e cachecóis.

Tão elevada diversidade de climasnão é uma exclusividade de São Paulo.Em maior ou menor grau, existe tam-bém em metrópoles mundo afora, co-mo a Cidade do México, Santiago, noChile, e Buenos Aires, na Argentina.“Va-riações tão acentuadas de climas sur-gem quando se abdica do sonho de umavida harmoniosa com o ambiente”, co-menta Tarifa. “É um fenômeno queocorre quando a lógica do lucro passa adeterminar a forma como os espaçosdevem ser ocupados.” •

2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 25

que o próprio relevo, um dos princi-pais fatores determinantes das caracte-rísticas dos climas naturais até o iníciodo século passado.

ão Paulo cresceu a partir deuma colina entre os rios Tie-tê e Tamanduateí, a 720 me-tros de altitude, sobre a qualos padres jesuítas José de An-

chieta e Manuel da Nóbrega criaram oColégio de São Paulo de Piratininga emuma precária cabana de madeira. Dali,os moradores ganharam, primeiro, asterras mais planas e baixas. Num se-gundo momento, avançaram rumo àelevação conhecida pelos geógrafoscomo espigão central, a 800 metros aci-ma do nível do mar, sobre o qual hojese assentam bairros como Sumaré, Cer-queira César, Vila Mariana e Jabaquara.O trecho mais alto desse corredor é aavenida Paulista, que até 1900 não pas-sava de um bucólico conjunto de chá-caras e mansões.

Desde o começo do século passado,a população da cidade, então com 240

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Pesquisa FAPESP nº 92, dezembro de 2001

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26 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Terra da garoa e da ciência

“terra da garoa” ganhou loasem seu aniversário. Nemsequer a “poesia concreta desuas esquinas” foi esquecida.No entanto, quem

se lembrou de celebrar a “terra da ciência”? A cidade de São Paulo,em 2001, ganhou da ONU o status de Centro Mundial de InovaçãoTecnológica e, historicamente,tomou a dianteira nacional na implementação de uma política de ciência e tecnologia num país em que a elite via ações desse tipo como perda de tempo. Mas,já no espírito do “avesso do avesso do avesso”, São Paulo, crescendo em passos acelerados por causa da prosperidade cafeeira, compreendeu a necessidade de se colocar ao passo da revolução técnico-científica que ocorria no Primeiro Mundo.

De início, os institutos de pesquisaque surgiram na metrópole incipiente destinavam-se a resolver problemas práticos do capitalismo paulistano,em especial, a agricultura, a saúde e a engenharia. A elite cada vez mais endinheirada de São Paulo podia se darao luxo dessas experiências e, a partir da notável instalação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,responsável pela expansão e renovação deuma cidade então em franca decadência,esse grupo pôde ver com seus olhoscomo o conhecimento também gerava progresso material. Daí, o nascimento da Escola Politécnica, criada em 1893,pelo engenheiro Antônio Francisco dePaula Souza; do Instituto Adolfo Lutz (na época, o Laboratório Bacteriológico),em 1899; o Instituto Butantan, tambémde 1899; o Instituto Biológico, de 1927,um dos casos mais bem-sucedidos

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ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 27

da associação entre pesquisa e necessidades práticas; entre outros.

Mesmo o surto da industrializaçãodos anos 1920 e 1930, que previa apenasuma política de substituição de importações (logo, sem criação de tecnologia), não arrefeceu o ânimo paulistano. Em 1934, acreditando que era preciso preparar sua elite para a nova revolução e para a modernidade,foi fundada a Universidade de São Paulo,uma cartada inteligente da cidade paramanter sua hegemonia, apostando na ciência e na cultura. Teve papel centralnessa criação a Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras (FFCL) que, anos mais tarde, na rua Maria Antônia,durante a ditadura militar,transformou-se em símbolo da resistência contra o autoritarismo.Não foi também por acaso que,no mesmo ano, a cidade foi escolhida

para abrigar o Instituto de PesquisasTecnológicas (IPT).

A ideologia da metrópole invadiu oestado: em 1947, a Constituição Estadualdestina 0,5% da arrecadação paraamparo à pesquisa. Esse passo realizou osonho da comunidade científica paulistaque ganhou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo(FAPESP), poucos anos após ter participado do esforço pela criação do então Conselho Nacional dePesquisas, atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq), em 1951. A “terrada garoa” se convertia na “terra da ciência”. O ensaio fotográfico que vocêverá nesta e nas próximas páginas desejajustamente homenagear a beleza dessa luta, infelizmente algo esquecidanas celebrações dos 450 anos de São Paulo. Justiça seja feita.

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Campus da

Cidade

Universitária

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28 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Sino e escadarias

da torre da praça

do Relógio,

Cidade Universitária

Faculdade de

Arquitetura

e Urbanismo

(FAU-USP)

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 29

Instituto

Butantan,

na USP

Centro Universitário

Maria Antônia

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30 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Instituto Biológico

Pontifícia

Universidade

Católica

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 31

Faculdade de

Direito do Largo de

São Francisco

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32 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

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Mais de 8,9

milhões de pessoas

em São Paulo

vivem abaixo de um

padrão desejável

Page 32: Pesquisa FAPESP

2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 33

Projeto indica piora da qualidade

de vida em 76 dos 96 distritos da cidade

de São Paulo nos últimos dez anos

CL AU DIA IZ IQUE

cidade de São Paulo ga-nhou 1 milhão de excluí-dos nos dez últimos anos.Atualmente, dos mais de10 milhões de habitan-tes da capital, em tornode 8,9 milhões vivemabaixo de um padrão

desejável de vida: além de baixa renda,têm dificuldade de acesso à educação,saneamento, habitação, entre outros ser-viços. Essa deterioração na qualidadede vida da população em 76 dos 96 dis-tritos em que se divide a capital é resul-tado da ausência ou inadequação depolíticas públicas e da carência na ofer-ta de equipamentos sociais. E o quadroé ainda mais grave: a falta de planeja-mento aprofundou as desigualdades in-tra-urbanas. Na Vila Jacuí, por exemplo,há um déficit de mais de 27 mil vagasnas creches, um problema desconheci-do para a população do Jaguaré, Brásou Bom Retiro; para cada novo empre-go em Aricanduva são criados 1.114postos de trabalho na Sé; para cadamorador de rua no Morumbi, existem1.061 na Mooca, e, no Jardim Ângela, ataxa média de homicídios é 28 vezesmaior que a de Moema.

Essa topografia social perversa estáestampada no Mapa da Exclusão/In-clusão Social da Cidade de São Paulo,destaque do projeto de pesquisa Dinâ-mica social, qualidade ambiental e espa-ços intra-urbanos em São Paulo: Uma

A

O mapa da exclusão

ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

análise socioespacial, desenvolvido noâmbito do Programa de Pesquisas emPolíticas Públicas da FAPESP.

Resultado da parceria entre Pontifí-cia Universidade Católica de São Paulo(PUC-SP), Instituto Nacional de Pes-quisas Espaciais (Inpe) e Instituto Pó-lis, o mapa, já em sua terceira versão, foielaborado a partir da comparação dosdados dos censos do Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística (IBGE) de1991, 1996 e 2000, de estatísticas mu-nicipais e dados da pesquisa Ori-gem/Destino da Companhia do Metro-politano de São Paulo, que subdivide acidade em 270 regiões. A pesquisa uti-liza uma metodologia de análise geo-espacial e tratamento matemático-computacional das informações emambiente de Sistema de InformaçãoGeorreferenciado (SIG), que permiteidentificar “o lugar” dos dados nas dis-tintas áreas da cidade e na criação deum Índice de Exclusão/Inclusão (IEX)que possibilita classificar os níveis dequalidade de vida nos diversos distritosde São Paulo. “As informações geradaspelo mapa são estratégicas para a defi-nição de políticas públicas adequadasàs necessidades de cada região”, diz Al-daíza Sposati, coordenadora do projetoe secretária de Assistência Social domunicípio de São Paulo.

O Índice, construído pela equipe depesquisadores que integra o projeto, é umaespécie de Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH), utilizado pela Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) para clas-sificar a qualidade de vida dos países, sóque ampliado. Enquanto o IDH utilizaquatro indicadores para avaliar a situaçãosocioeconômica das várias nações, oÍndice de Exclusão usa 47 variáveis – quea equipe de pesquisadores chama de “uto-pias” – agregadas em quatro grandesáreas: autonomia, qualidade de vida, de-senvolvimento humano e eqüidade.

Os pesquisadores responsáveis peloprojeto desenvolveram uma meto-dologia de análise semelhante em San-to André, no ABC paulista, e começama mapear as desigualdades intra-urbanas nos municípios de Campinas,Guarulhos, Piracicaba e Goiânia. “Osdados principais são do IBGE, mas éfundamental compatibilizá-los com in-formações das prefeituras”, explicaDirce Koga, pesquisadora da PUC-SP,que integra o grupo.

Qualidade de vida - O indicador de Auto-nomia avalia a renda dos chefes de famí-lia e a oferta de emprego nos diversosdistritos; o de Qualidade de Vida mede oacesso a serviços, como saneamento,saúde, educação, além de densidade ha-bitacional e conforto domiciliar; o indi-cador Desenvolvimento Humano consi-dera o nível de escolaridade dos chefes defamília, longevidade, mortalidade infan-til e juvenil e a violência; e o índice deEqüidade registra o grau de concentra-

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34 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

ção de mulheres na condição de chefesde família. A cada um desses indicadoresforam atribuídas notas decimais negati-vas e positivas, variando de -1 a 1, sendoo zero definido como o padrão básico deinclusão social. Os distritos foram classi-ficados nesses intervalos em função dadistância positiva ou negativa do padrão.

De acordo com esse critério, o piorlugar para se viver em São Paulo é oJardim Ângela, com índice -1; e o me-lhor, Moema, com índice 1. Dentro deum padrão desejável está a Vila Jagua-ra, com índice 0. Segundo essa avalia-ção, 76 dos 96 distritos da capital foramconsiderados excluídos. A Zona Lesteperdeu para a Sul a condição de regiãomais carente da capital . “Constatamosque, na última década, os níveis de ex-clusão na Zona Leste não se alteraram.A região conseguiu melhorias coletivas.Na Sul, a exclusão se intensificou. Pre-cisamos agora entender como issoocorreu”, afirma Aldaíza.

Além da Zona Sul, a situação tam-bém é grave na região que faz limite coma serra da Cantareira, a noroeste da ca-

pital, onde se concentra um grande nú-mero de distritos excluídos. O mais per-verso é que essas são áreas de mananciaise de preservação ambiental que foram“congeladas”, conforme diz Aldaíza, tan-to do ponto de vista dos investimentoscomo de melhorias. Desvalorizadas, elassão objeto de ocupação e estão sendodegradadas.“Os índices de exclusão estãocomprometendo o futuro da cidade”,alerta Aldaíza. “Não há combinação depolítica ambiental e de defesa humana.”

Planejamento urbano - O Mapa da Ex-clusão faz uma radiografia detalhada datopografia social de São Paulo e é umaimportante ferramenta de planejamen-to urbano. O primeiro mapa, que com-para os dados dos censos de 1991 e arecontagem realizada em 1996, foi uti-lizado pela Secretaria Municipal daEducação, durante a gestão do prefeitoCelso Pitta, para avaliar a demandaeducacional nas diversas regiões. O se-gundo, publicado em 2000 – já no âm-bito do programa de Políticas Públicasda FAPESP –, tem sido ferramenta es-

tratégica para a definição de áreas deimplantação de programas sociais nagestão da prefeita Marta Suplicy. “Ofoco são as áreas de maior índice de ex-clusão”, diz Aldaíza.

A terceira versão, que incorpora àsérie histórica os dados do censo de 2000,ainda está em fase de conclusão, mas osresultados preliminares já são referên-cia para debates sobre o OrçamentoParticipativo da prefeitura e para o pla-nejamento de programas de saúde.

“As políticas públicas se beneficiamda espacialização dos dados. Essa me-todologia de análise permite a com-preensão das diferenças entre os váriosterritórios de um mesmo município”,diz Gilberto Câmara, coordenador-geral de Observação da Terra do INPEe coordenador-assistente do projeto.“Os pobres do Itaim Paulista não sãoos mesmos do Jardim Ângela”, resume.O uso da estatística espacial, ele ressal-ta, é bastante sensível à análise e subsi-dia as avaliações qualitativas. Aumentaa possibilidade de se identificar e focar“um alvo”, no caso das políticas públi-

1995 2002

Topografiaperversa

O Mapa da Exclusão

foi construído a

partir de 47 “utopias”

agregadas em quatro

grandes áreas:

autonomia, qualidade

de vida, desenvolvi-

mento

humano e eqüidade.

Para cada indicador,

foram atribuídas notas

negativas e positivas,

variando de -1 a 1

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2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 35

cas, ampliando as chances de sucesso deprojetos e programas sociais e evitandoo desperdício de recursos públicos. “Omapa da exclusão é uma forma de au-mentar a capacidade de decisão do pre-feito”, diz Câmara.

A metodologia de análise utilizadano projeto revela, por exemplo, que en-tre 1996 e 2001, período em que a popu-lação da capital registrou crescimento de2%, o número de habitantes do distritode Anhangüera aumentou 129,96%, en-quanto o do Pari decresceu 27,54%. Osnúmeros sugerem que, nesse período,houve uma intensa migração intra-urba-na dos distritos mais centrais, como oPari, em direção a áreas periféricas, comoAnhangüera, Grajaú, Cidade Tiraden-tes, entre outras, carentes de equipamen-tos e serviços públicos para atender àsdemandas da população ampliada.

O movimento populacional com-prometeu a qualidade de vida nos diver-sos distritos paulistanos. O Índice Auto-nomia, por exemplo, mostrou umaimpressionante desigualdade na ofertade emprego entre os vários distritos pau-listanos. O da Sé, de baixa densidade demoradores, concentra a maior taxa dis-trital, com 6,80 empregos por habitante.O seu contraponto é Anhangüera, regiãoque, apesar da explosão demográfica re-gistrada na década, manteve estável ataxa de crescimento da oferta de traba-lho de 0,18 vaga por habitante. A faltade emprego obriga o deslocamento diá-rio dos trabalhadores/moradores paraoutras áreas com maior oferta de tra-balho. “Essa situação deveria exigir dopoder público local maior atenção noque diz respeito aos transportes coleti-vos”, diz Dirce Koga.

O quadro ocupacional se agravaquando se contabiliza a oferta distritalde emprego em relação à populaçãoeconomicamente ativa (PEA), entre 14 e69 anos: existem empregos para 64% daPEA na cidade. Os demais 36%, pelo me-nos estatisticamente, estão fora do mer-cado de trabalho. Nessa perspectiva deanálise, a pior situação é a de Cidade Ti-radentes: de cada dez moradores, me-nos de dois (1,8) tem emprego no pró-prio distrito.

A menor renda familiar, correspon-dente a 4,64 salários mínimos, está nodistrito de José Bonifácio, e a maior, qua-se 41 mínimos, em Moema. O padrãobásico de renda, base para a construçãodo Índice de Exclusão, foi de 14 míni-

MA

PAS

SIR

IO J

. B

. C

AN

ÇA

DO

1 Jardim Ângela -1,00

2 Grajaú -0,95

3 Cidade Tiradentes -0,93

4 Itaim Paulista -0,92

5 Lajeado -0,92

6 Guaianases -0,90

7 Iguatemi -0,87

8 Parelheiros -0,85

9 Jardim Helena -0,84

10 Brasilândia -0,82

11 Vila Curuçá -0,79

12 Capão Redondo -0,77

13 Pedreira -0,75

14 José Bonifácio -0,73

15 Perus -0,72

16 São Rafael -0,71

17 Cidade Ademar -0,70

18 Cachoeirinha -0,70

19 Jardim São Luís -0,68

20 Cidade Dutra -0,67

21 Sapopemba -0,67

22 Itaquera -0,67

23 Marsilac -0,64

24 São Miguel -0,64

25 Vila Jacuí -0,63

26 Jaraguá -0,63

27 Campo Limpo -0,61

28 Parque do Carmo -0,60

29 Cidade Líder -0,58

30 São Mateus -0,53

31 Vila Medeiros -0,50

32 Cangaíba -0,50

33 Anhangüera -0,49

34 Ermelino Matarazzo -0,49

35 Artur Alvim -0,49

36 Sé -0,47

37 Raposo Tavares -0,46

38 Ponte Rasa -0,46

39 Tremembé -0,44

40 Jaçanã -0,42

41 Rio Pequeno -0,42

42 Pirituba -0,41

43 Aricanduva -0,40

44 Vila Andrade -0,37

45 Brás -0,36

46 Jabaquara -0,33

47 Freguesia do Ó -0,3

48 Sacomã -0,31

49 São Lucas -0,29

50 Jaguaré -0,27

51 Vila Maria -0,24

52 Limão -0,24

53 Socorro -0,21

54 São Domingos -0,21

55 Vila Matilde -0,20

56 República -0,18

57 Penha -0,18

58 Vila Sônia -0,18

59 Mandaqui -0,17

60 Vila Prudente -0,16

61 Bom Retiro -0,16

62 Liberdade -0,15

63 Tucuruvi -0,15

64 Vila Formosa -0,14

65 Pari -0,13

66 Cursino -0,12

67 Carrão -0,11

68 Casa Verde -0,10

69 Cambuci -0,09

70 Ipiranga -0,06

71 Vila Guilherme -0,06

72 Água Rasa -0,06

73 Campo Grande -0,04

74 Bela Vista -0,01

75 Morumbi -0,01

76 Mooca -0,01

77 Jaguara 0,00

78 Barra Funda 0,03

79 Santa Cecília 0,05

80 Tatuapé 0,13

81 Vila Leopoldina 0,16

82 Saúde 0,21

83 Santana 0,25

84 Belém 0,25

85 Campo Belo 0,33

86 Butantã 0,35

87 Itaim Bibi 0,46

88 Alto de Pinheiros 0,46

89 Perdizes 0,49

90 Santo Amaro 0,51

91 Vila Mariana 0,57

92 Consolação 0,76

93 Jardim Paulista 0,90

94 Lapa 0,91

95 Pinheiros 0,91

96 Moema 1,00

Ranking da exclusão

Page 35: Pesquisa FAPESP

mos, encontrada no Bom Retiro. Por essecritério, 20 distritos tiveram nota positiva, e54, notas negativas.

Serviço deficitário - O déficit de vagas nascreches públicas e privadas na cidade cresceu34%, desde 1995. É certo que, nesse período,a população entre 0 e 4 anos reduziu 12%,mas, ainda assim, as vagas são insuficientes. Oproblema é particularmente grave em Vila Ja-cuí, onde o déficit saltou de 540 para 10.014vagas. Também faltam vagas nas escolas deeducação infantil, que atendem crianças en-tre 5 e 6 anos de idade, em 85 dos 96 distritospaulistas. Em algumas áreas, como o Pari –que teve decréscimo de população –, foi re-gistrado superávit de 83,49%. As vagas nasescolas de ensino fundamental também nãoatendem à demanda em pelo menos 13 re-giões da cidade. Na República, só existemmatrículas em escola pública para 868 das3.646 crianças, um déficit de 76,19%.

Não existem unidades de saúde em dezdistritos. Nas áreas centrais, o déficit chega a100%. Noutras 76, a cobertura está abaixo dopadrão básico de um posto de atendimentopara cada grupo de 20 mil habitantes. A piorsituação é a do Campo Limpo. Já em Jagua-ra ou na Ponte Rasa, há superávit.

A pesquisa mostra pelo menos um pontopositivo: o percentual de chefes de famíliasem instrução baixou de 9,47% para 6,45%,em 1996, uma redução de quase 32%. Aindaassim, em 47 distritos, o percentual de chefes

36 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

LALO

DE

ALM

EID

A/F

OLH

A I

MA

GE

M

Populações carentes ocupam áreas de mananciais e de

preservação ambiental, comprometendo o futuro da cidade

Inscrustada no alto do Jardim Ân-gela, Copacabana parece uma cidadefantasma. Às 13h30 de uma segunda-feira, as ruas estão vazias e as casastrancadas. Todas têm as portas e janelasprotegidas por grades pontiagudas dealumínio. Os bares estão igualmente fe-chados. O silêncio parece absoluto. Naesquina, um grupo de crianças joga bolanum terreno baldio atulhado de lixo.Duzentos metros à frente, cinco garo-tos empinam pipa sobre uma laje que sedebruça sobre a Vila Tupi. Dizem quelá, sim, é que os chefes do tráfico im-põem aos moradores toque de recolhera qualquer hora do dia e da noite.

Com uma população de 250 milhabitantes, o distrito de Jardim Ângela

é uma espécie de corredor isolado, naZona Sul da cidade, um tipo de “buracourbano” que acaba na serra do Mar. Depovoamento recente, abriga uma po-pulação sem qualificação profissional eatrai grande parte do contingente demigrantes intra-urbanos. Registra amaior taxa de homicídios e o pior índi-ce (-1) de exclusão da cidade de SãoPaulo. “Acho que há um certo exageroquando se fala que esta região é muitoviolenta”, diz Helena dos Santos, de 54anos, 36 dos quais vividos no JardimÂngela. “A violência está em todo lu-gar.” Foi ali que ela conheceu e se casoucom João, que já foi até dono de cami-nhão, mas que hoje “dirige o caminhãodos outros”. Foi com o dinheiro que ele

trazia da estrada e com o seu salário decostureira numa confecção da rua JoséPaulino, na região central, que amboscriaram os dois filhos. “Resolvi largar aconfecção e hoje faço bolos para festase uma ou outra costura”, conta Helena.É assim que ela está ajudando na edu-cação de seus cinco netos, filhos do seuprimogênito assassinado há dois anos.“Ele era Policial Militar, mas, naqueledia, não estava em serviço. Era domingoe ele tinha jantado com a mulher, aquiem casa. Foi morto a poucos metros da-qui e até hoje não sabemos exatamenteo que aconteceu”, diz, deixando claroque não gosta de tratar do assunto. Nãoatribui a sua tragédia pessoal à violên-cia que campeia no Jardim Ângela. Mas

“A gente faz o que Deus quer”

Page 36: Pesquisa FAPESP

de família analfabetos superava a média dosmunicípios, em alguns casos em até 20,08%.A maior concentração estava no Grajaú, e amenor, na Barra Funda. O percentual de che-fes de família com oito a 14 anos de estudocresceu 32,20%, com destaque para Lajeado.Outra boa notícia é que o número dos quetêm nível universitário cresceu 13,85% noconjunto da cidade, no mesmo período. Amaior incidência de diplomas de 3º grau foiregistrada no distrito do Iguatemi.

Os índices de longevidade também sãopositivos. E caiu o número de anos potenciaisde vida perdidos, calculado pela diferença en-tre o ano da morte e a expectativa de vida dapopulação, em 23 dos 96 distritos. A taxa dehomicídios, no entanto, cresceu 11,33%, en-tre 1996 e 1999. No Jardim Ângela, a taxa –que é calculada pelo número de homicídiosmultiplicada por 100 mil habitantes e dividi-da pela população do distrito – foi de 94,42.Na Sé, essa taxa saltou de 37,52 para 93,47.

Novas utopias - O projeto entra na fase II doPrograma de Pesquisas em Políticas Públicas.As metas são produzir novos mapas, aperfei-çoar os indicadores, rever o conteúdo do indica-dor de eqüidade e agregar ao Índice de Exclusão/Inclusão novas “utopias”: democracia, cidada-nia e felicidade. “Trabalhamos com a idéia deque há um sofrimento na exclusão e que a feli-cidade é um direito público”, explica Dirce. •

2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 37

TUC

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A/F

OLH

A I

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GE

M

Moema: o melhor lugar

para se viver em São Paulo

confessa: “Na época, tivevontade de voltar parao interior. Mas depoispensei: a gente faz o queDeus quer. Resolvi ficare estou bem aqui”.

Regina Eugênia, de34 anos, três filhas, tam-bém defende o lugaronde mora há 11 anos.“Não faltam escolas paraas crianças.” Ela desco-nhece o déficit de vagasnas creches do bairro.“Nunca precisei. Eu nãotrabalhava e ficava em casa com ascrianças.” Regina reconhece que a re-gião tem problemas com atendimentode saúde. “Quando alguém precisa demédico, procuramos um hospital emCampo Limpo, afinal, é para isso queservem os convênios”, afirma. Campo

Limpo é distrito vizinho ao JardimÂngela, com índice de exclusão de -0,61,e que ocupa a 27ª posição no rankingda exclusão. A grande dificuldade,confessa, está em continuar pagandoo convênio médico. Seu marido erainspetor de qualidade numa grande

Jardim Ângela: campeão no ranking da exclusão

MIG

UEL

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YAYA

N

empresa, mas está desempregado há trêsmeses e ela “faz bicos”, como diz, parasustentar a família: passa roupas, fazfaxina, cozinha. “Tivemos que cortaralguns gastos, inclusive com o convê-nio”, justifica.

Do outro lado da estrada do M’BoiMirim, Maria do Socorro Pereira, 47anos, frita mais uma rodada de pastéissob a barraca de lona.“Tenho esta barra-ca há oito anos e nunca fui assaltada”, or-gulha-se. A proximidade de uma BaseComunitária da Polícia Militar ajuda aintimidar. Mas ela diz que tem um pactocom quem tem “cara de bandido”.“Ofe-reço-lhe pastel gratuitamente e conquis-to a sua simpatia.” Aguarda ansiosa quea prefeitura cumpra a promessa de trans-formar a M’Boi Mirim num corredorde ônibus.“Isso com certeza vai aumen-tar o movimento e eu vou aumentar avenda de pastéis”, prevê.

Pesquisa FAPESP nº 83, janeiro de 2003

Page 37: Pesquisa FAPESP

ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

Retratosdo entardecer

ascida há 87 anos em Pedreira, cidade do in-terior paulista, Matilde Lazzari Zanardi nun-ca foi à escola. Sua irmã mais velha morreucedo, e ela, ainda menina, teve de ajudar amãe a tomar conta de seus nove irmãos

mais novos. Enquanto eles estudavam, tinha de cuidar dacasa. Além de se ocupar dos afazeres domésticos, tocava otrabalho na roça. Em 1940, após ter morado por um breveperíodo no ABC paulista, retornou a Pedreira e ali se casoucom Hugo Antonio Zanardi, com quem viria a ter um ca-sal de filhos, Osvaldo e Maria Ivone. No dia seguinte aomatrimônio, o par mudou-se definitivamente para a cida-de de São Paulo. Na capital, ambos trabalharam no setortêxtil. Ele como estampador. Ela como tecelã. Por volta dos50 anos, Matilde, que aprendera a ler e escrever sozinha ape-sar de não ter freqüentado colégios, aposentou-se. Mas,para reforçar o caixa e se manter na ativa, a descendente deitalianos passou a comercializar jóias.“Ela visitava os clien-tes em casa e vendia artigos em ouro e prata”, lembra a ar-quiteta Liamara Milhan, 40 anos, neta de Matilde. A vidaseguia seu curso natural no clã dos Zanardi, que moravam

38 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

Em sua maioria de origem rural,

os idosos da cidade de São Paulo

foram trabalhadores

braçais e têm baixa escolaridade

N

MA RCOS PIVE TTA

Page 38: Pesquisa FAPESP

EDU

AR

DO

CES

ARPopulação com 60 anos

ou mais representa

9,3% dos habitantes

na capital paulista

Page 39: Pesquisa FAPESP

todos (pais, filhos e até netos) próxi-mos uns dos outros em casas na VilaPrudente, bairro da Zona Leste de SãoPaulo. Até que, em 1984, o marido deMatilde, aos 70 anos, morreu de infar-to. Mesmo com a perda, a aposentada(um salário mínimo de pensão) seguiuem frente. Em outubro de 98, um aneu-risma cerebral, seguido de derrame, qua-se a fez tombar. Apesar da idade avan-çada, hoje se recupera do baque em casa,com a ajuda da família e dos remédios.

trajetória dessa ex-tecelã ser-ve, em grande medida, como

testemunho da história devida de uma parte signi-

ficativa dos idosos quemoram na capital paulista. Por ser mu-lher, ter pouco estudo, vir do meio rural,ser aposentada, ganhar pouco, ter exerci-do uma profissão braçal, morar com afamília e depender de medicamentos –enfim, por tudo isso –, dona Matildereúne algumas das principais caracte-rísticas do contigente de quase 1 milhãode idosos que moram na maior e maispróspera metrópole brasileira. Pode-sedizer isso ao deparar com os principaisresultados de um levantamento feitopor pesquisadores da Faculdade deSaúde Pública da Universidade de São

Paulo (USP), em parceria com a Organi-zação Pan-Americana da Saúde (Opas)e com apoio da FAPESP. Formalmentedenominado Sabe (Saúde, bem-estar eenvelhecimento), o trabalho traçou umretrato de quem são, como vivem e qualé o estado de saúde das pessoas com 60anos ou mais que residiam no ano 2000no município de São Paulo. Os morado-res dessa faixa etária equivalem a 9,3%da população da capital paulista, deacordo com dados do Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Eis alguns números fornecidos peloestudo, que registrou uma idade mé-

dia de 69 anos entre osidosos de São Paulo. Majo-ritárias na população totalda metrópole, as mulheressão ainda mais fortementerepresentadas na terceiraidade, respondendo porquase 60% dessa faixaetária. Um em cada cincoidosos nunca foi à escola e60% estudaram até seteanos. Antes de terem semudado para São Paulo,quase dois terços deles mo-raram no campo até os 15anos de idade por um perí-odo não inferior a 60 me-

ses. Em sua vida profissional, poucomais de 75% dos idosos exerceram ocu-pações que lhes demandaram esforçospredominantemente físicos. Os medi-camentos são um companheiro de to-das as horas e de quase todos: 87%usam algum remédio. Dois terços daspessoas que atingiram a terceira idadetêm um rendimento entre um e cincosalários mínimos, provenientes essen-cialmente de aposentadorias, visto que80% delas não trabalham mais. Porfim, 86% dos idosos moram acompa-nhados, ao lado de alguém da família(cônjuge, filhos ou parentes). Dá para

40 ■ PESQUISA FAPESP ■ 2004

AFO

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RD

O C

ESA

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Homens são pouco

mais de 40%

dos idosos

em São Paulo

Page 40: Pesquisa FAPESP

enxergar um quê de dona Matilde nosidosos de São Paulo?

Essas cifras e porcentagens são ape-nas uma amostra das centenas de in-formações que começam a emergir doSabe (para outros dados, veja quadroà página 43). Para cumprir o objetivodo projeto, seus pesquisadores tiveramde entrevistar 2.143 idosos que resi-diam em São Paulo, visitar seus domi-cílios e tirar suas medidas (peso, altu-ra, prega cutânea para ver a capa degordura etc.). As pessoas que deramdepoimentos ao estudo foram estatis-ticamente selecionadas para formarum conjunto representativo do seg-mento mais velho da população domunicípio.“Temos muito material comos mais variados dados sobre os ido-sos”, comenta a pesquisadora MariaLúcia Lebrão, da Faculdade de SaúdePública da USP, um dos coordenado-res do Sabe. “Falta gente para analisartanta informação.” A Opas promo-veu projetos idênticos ao realizadoem São Paulo nas capitais de mais setepaíses da América Latina e Caribe(Cuba, Costa Rica, Uruguai, Argenti-na, México, Chile e Barbados). Porora, apenas uma pequena parte dessesdados, coletados com a mesma meto-dologia usada na capital paulista, está

disponível para comparação.Pelos padrões definidos no Sabe,

96% dos idosos de São Paulo moramem residências cuja qualidade é boa.Suas moradias – em 78% dos casospróprias, deles ou de alguém que lhescede graciosamente o espaço – têmágua encanada, sistemas de esgoto ebanheiro e contam com um cômodopara cozinhar. Essa boa notícia, contudo,esconde um dado perverso da locali-zação geográfica dos idosos na cidade.A imensa maioria está concentrada embairros mais centrais, de melhor estru-tura, longe das favelas e da periferia,um indício de que envelhecer ainda éum privilégio das classes mais abas-tadas. Embora somente 13% dos ido-sos residam sozinhos, sete de cada dezindivíduos com 60 anos ou mais disse-ram que não contam com ninguémpara ajudá-los em suas atividades diá-rias. Que tipo de auxílio eles gostariamde ter? Possivelmente, uma mãozinhapara desempenhar tarefas outrora cor-riqueiras que se tornaram pequenosmartírios: 17% têm dificuldade parase vestir, 12% para deitar e se levantar,10% para tomar banho, 7% para ir aobanheiro e 6% para comer.

As doenças crônicas são uma som-bra que paira sobre os idosos, segun-

do o projeto Sabe. Pouco mais da me-tade dos idosos que residem em SãoPaulo disse ter pressão alta. Um terçorelatou sofrer de artrite, reumatismoou artrose. Um quinto afirmou apre-sentar algum problema cardíaco. Osque se declararam diabéticos chegama 18%, quatro pontos percentuais amais que as vítimas de osteoporose, adescalcificação progressiva dos ossosque afeta especialmente as mulheres.Outras enfermidades freqüentementemencionadas foram problemas nospulmões (12%), embolia/derrame(7%) e câncer (3%). Num primeiroolhar, o estado de saúde de uma pes-soa de idade avançada parece ser in-versamente proporcional ao númerode doenças: mais enfermidades signi-ficam menos qualidade de vida. Isso,no entanto, nem sempre é verdade.“Às vezes, um idoso com quatro oucinco doenças crônicas, só que todassob controle, pode viver melhor e termenos risco de parar numa cadeira derodas ou morrer do que outro comum ou dois problemas de saúde quenão são tratados de forma adequada”,pondera o geriatra Luiz R. Ramos, doCentro de Estudos do Envelhecimen-to da Universidade Federal de SãoPaulo (Unifesp).

2004 ■ PESQUISA FAPESP ■ 41

Boas histórias de mulheres de fibra

Aos 65 anos, Guiomar Hachel

(à esq) gosta de dançar.

Matilde Zanardi (87)

se recupera de derrame

com ajuda da filha Maria Ivone

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Cifras da terceira idadeCifras da terceira idade

Alguns dados obtidos a partir de levantamento feito em 2000 com 2.143 pessoas com 60 anos ou mais residentes na capital paulista

Receita para envelhecer bem - Na se-gunda metade da década passada,Ramos coordenou um projeto queacompanhou, por dois anos, a saúde de1.667 idosos que moravam na Vila Cle-mentino, bairro da capital paulistaonde fica a Unifesp. Seus objetivos cen-trais eram levantar fatores de risco queaumentavam a chance de óbito na ter-ceira idade e tentar entender por quealgumas pessoas envelheciam bem eoutras, não. Uma das principais con-clusões do estudo foi que o foco doatendimento a essa faixa da populaçãonão devia ser pura e simplesmente nasdoenças, mas sim nos impactos que es-sas enfermidades tinham sobre as fun-ções cognitivas e motoras do paciente.“O mais importante é que o tratamentovise preservar ou, se possível, até au-mentar o grau de independência (men-tal e de locomoção) do idoso em rela-ção a outras pessoas”, afirma Ramos.

o passar os olhos sobre amontanha de números doSabe, um ponto se destaca:o nível de escolaridadedos idosos parece se com-

portar como um marcador de sua con-dição geral de saúde, sobretudo de seusaspectos cognitivos. Aparentemente,quanto maior o grau de educação for-mal do entrevistado, menor o seu des-conforto físico e mental. Como eviden-ciar essa relação? Ela começa a ganharcontornos de realidade quando se vêque aproximadamente 65% dos indiví-duos sem escolaridade classificaram suasaúde de ruim ou má, dez pontos per-centuais acima do resultado geral daamostra. Se o assunto é saúde mental,essa relação se explicita de vez. Indepen-dentemente do grau de instrução dosidosos, a ocorrência de problemas cog-nitivos, como perda de memória, racio-cínio e outras funções cerebrais, atinge11% de toda a amostra do Sabe, comfreqüência um quarto maior nas mu-lheres do que nos homens. Entre aspessoas com 60 anos ou mais que nuncaforam à escola, a incidência desse tipo deproblema é de 17%. Nos idosos que es-tudaram menos de sete anos, essa taxacai para 5%. E entre os que contabiliza-ram mais de sete anos nos bancos esco-lares, é de apenas 1%. “Quem pôde es-tudar geralmente atingiu uma melhorcondição socioeconômica durante a

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vida e é mais bem informado sobre asquestões de saúde”, afirma Ruy Lauren-ti, também da Faculdade de Saúde Pú-blica da USP, outro coordenador doSabe. “Ele se prepara e tem mais condi-ções de envelhecer bem.”

s preocupantes índicesde deterioração cogniti-va em idosos, tambémencontrados nos demaispaíses latino-americanos

radiografados pelo Sabe, são um indíciode que uma série de problemas devemaparecer no futuro próximo, em espe-cial demências, como o mal de Alzhei-mer, e perda de autonomia para a reali-zação de tarefas cotidianas. Em outraspalavras, esse idoso, se a deterioraçãomental avançar, terá de ser assistido poralguém diuturnamente. Para a psicólogaAna Teresa de Abreu Ramos Cerqueira,da Faculdade de Medicina de Botu-catu da Universidade Estadual Paulista(Unesp), que também participa da aná-lise dos dados do Sabe, a relação entreescolaridade e distúrbios cognitivosrealmente existe. É um problema real,mas precisa ser um pouco relativizado.“Os resultados variam muito de acordocom a metodologia que usamos paralevantar esse tipo de dado”, ponderaAna Teresa.“Muitas vezes ocorre o quechamamos de falso positivo para pro-blemas de cognição ou demência, espe-cialmente no diagnóstico da situaçãode pessoas menos instruídas.” Os ido-sos sem estudo têm mais dificuldadede responder aos questionários dos pes-quisadores do que as pessoas com maiorescolaridade. Resultado: muita gentecom pouca ou nenhuma escolaridadeacaba sendo rotulada, erroneamente,de demente ou portadora de proble-mas mentais.

Mais velho e sem dinheiro - A preocu-pação da Opas em estudar a velhicenesta parte do planeta tem uma razãoclara: nos próximos 20 anos, o númerode pessoas com 60 anos ou mais naAmérica Latina e Caribe vai praticamen-te dobrar, saltando de 42 milhões de in-divíduos no ano 2000 para estimados82 milhões depois de 2020. Nesse mes-mo período, em termos proporcionais,o aumento será um pouco menor, masainda assim muito expressivo. Os idosospassarão de 8,1% para 12,4% da popu-lação total desses países. Nesse quadro

de rápido envelhecimento das socieda-des latino-americanas, o Brasil não éexceção. Em 1940, só 4% de sua popu-lação tinha 60 anos ou mais. Segundo ocenso, os idosos em 2000 já somavam8,6% de todos os brasileiros – um con-tingente de 14,5 milhões de indivíduos,55% dos quais mulheres. Nos próximos20 anos, a população idosa do Brasilpoderá ultrapassar os 30 milhões de pes-soas e representar quase 13% de seushabitantes. “Pode até não parecer tantagente assim em termos proporcionais,sobretudo quando se olha para dadosde países europeus, onde mais de 15% dapopulação é de idosos”, comenta RuyLaurenti. “Mas o número absoluto deidosos no Brasil é muito grande e con-tinuará crescendo.”

As conseqüências do aumento ex-pressivo na quantidade de pessoas dachamada terceira idade sobre os siste-mas de saúde e a Previdência Social sãoevidentes e já são sentidas hoje em dia.Basta mencionar o acalorado debatenacional sobre o teto máximo das apo-sentadorias e a idade mínima para serequisitar o benefício. Fora isso, há ain-da o impacto do envelhecimento nasrelações familiares. Quem nunca parti-cipou daquela reunião de família paradiscutir, baixinho e de forma meioconstrangida, onde a vovó iria morar

depois que o vovô se foi? A rigor, o pro-blema maior nem é o envelhecimentoda população na América Latina (tam-bém na Ásia e África), mas, sim, o seuenvelhecimento sem saúde e qualidadede vida. Essa questão é ainda mais dra-mática no universo das nações pobres eem desenvolvimento, como o Brasil eseus vizinhos latinos, onde boa parte dosidosos tem pouca instrução formal, di-nheiro contado e serviços públicos pre-cários. “Primeiro os países desenvol-vidos ficaram ricos e, depois, velhos”,afirma Maria Lúcia Lebrão. “Nós esta-mos ficando velhos antes de sermos ri-cos.” Os dados do projeto Sabe na capi-tal paulista servem para ilustrar essamáxima. Pagar um plano de saúde éum luxo que apenas quatro de cada dezidosos que moram em São Paulo con-seguem manter. Dona Matilde está en-tre os que contam com esse benefício.Por ser antigo e lhe dar direito a aten-dimento em apenas um hospital daregião, o valor da mensalidade, cercade R$ 150, é considerado baixo para aidade da portadora do convênio.

O envelhecimento da população eo aumento da expectativa média devida ao nascer – em 1980, era de 62,7anos para os brasileiros e hoje está emquase 69 anos – são fenômenos na-cionais. Mas, segundo dados de cen-

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Idosos em praia

do Rio de Janeiro: a

capital da

terceira idade O

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sos do IBGE, a presença de idosos nas27 unidades federativas varia – e mui-to. Na base, há um grupo de estados emque a parcela mais velha da popula-ção representa entre 4% e menos de7% de seus habitantes. Esse é o caso detoda a região Norte. Numa situaçãointermediária, há um grande grupode estados cuja proporção de idososvaria de 7% a 9% de seus moradores.Em São Paulo, por exemplo, as pessoascom 60 anos ou mais representam 9%da população. No topo, com uma taxade idosos que chega a dois dígitos, fi-guram três estados: Paraíba (10,2%),Rio Grande do Sul (10,5%) e Rio deJaneiro (10,7%). Não por acaso, os mu-nicípios de Porto Alegre e Rio de Ja-neiro também são as capitais com maisgente de idade (11,8% e 12,8%, res-pectivamente, de seus habitantes).

á se tornou clássica a associa-ção de um dos mais tradicionaisbairros da Zona Sul carioca àimagem de simpáticos velhinhos– relativamente prósperos em re-lação ao grosso dos aposentados

nacionais – andando na praia ou seexercitando na areia. “Vinte e sete porcento dos moradores de Copacabanasão idosos”, diz o médico Renato Veras,diretor da Universidade Aberta da Ter-

ceira Idade (Unati), projeto mantidopela Universidade Estadual do Rio deJaneiro (UERJ) que, por semestre, mi-nistra 125 cursos para 2.200 idosos. Es-pecialista na saúde da terceira idade, Ve-ras afirma que o setor público de saúdeainda não está preparado para atenderà demanda crescente de serviços espe-cialmente voltados para a parcela demais idade da população. “Mesmo comessa enorme presença de idosos, quemacha um geriatra num posto de saúdeem Copacabana?”, indaga o médico.

Creche para idoso - Cuidar do idoso édiferente de tratar de uma criança ouadulto. Por isso, muitos especialistasdefendem a implementação de serviçosdiferenciados para essa faixa etária. Ve-ras é a favor do incremento do atendi-mento domiciliar para essa parcela dapopulação. “Em casa, o idoso tem me-nos infecção hospitalar e está num am-biente conhecido”, diz o diretor daUnati. Implantar um sistema de atendi-mento domiciliar exige uma logísticacomplexa, que gerencie de forma efici-ente e racional o deslocamento de equi-pes médicas. Mas, segundo Veras, sebem administrado, esse serviço até re-duz os custos do atendimento, na me-dida em que atua mais preventivamen-te e evita internações desnecessárias.

Aliás, sair de casa e chegar a umhospital ou consultório médico podeser uma tarefa impossível de ser cum-prida por muitos idosos. Em São Paulo,de acordo com os resultados do Sabe, afalta de (bom) transporte público che-gou a ser a causa mais citada pelos en-trevistados para faltarem a consultasmédicas. Outra possibilidade de servi-ço diferenciado para os idosos, que nãoexclui a proposta anterior, é estimulara criação de centros de convivência paraesse segmento da população, lugares quefuncionam como creches da terceiraidade. Nesses locais, quem já chegouaos 60 anos pode passar o dia desenvol-vendo atividades físicas e intelectuaissempre sob a supervisão de alguém daárea médica, uma enfermeira ao menos.À noite, o idoso volta para casa. “Dessaforma, ele não perde o vínculo familiare se mantém ativo”, diz Maria Lúcia Le-brão, da Faculdade de Saúde Públicada USP, que advoga essa idéia.

Algumas das chamadas universida-des da terceira idade fazem, de certa for-ma, o papel de centro de convivência deidosos. É verdade que o número de vagasoferecidas em seus cursos e atividadesgeralmente é pequeno diante da procu-ra. Mas quem consegue um lugar ficasatisfeito. Esse é o caso da dona de casaGuiomar Genaro Hachel, 65 anos, quefreqüentou durante quatro anos ativi-dades para idosos na Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo (PUC/ SP)e, há três, participa da UniversidadeAberta à Terceira Idade (Uati) mantidapela Unifesp. Desacompanhada do ma-rido, Guiomar já assistiu a todo o ciclode palestras e agora faz “aulas extracur-riculares” de teatro, dança de salão e taichi chuan. “Na universidade, fico maisesclarecida e faço amizades”, diz essa avóde seis netos. A presença de homens émenor nos cursos para terceira idade,mas não inexistente.Viúvo e aposentado,o ex-profissional de marketing Celso Pa-varin, 73 anos, começou a freqüentar aUati neste ano. Além das palestras regu-lares promovidas pela universidade, fazaulas de teatro, dança de salão e infor-mática. “Mais do que o conhecimento,o que mais me impressiona na Uati é ocarinho das pessoas”, afirma Pavarin, quehá 21 anos carrega uma safena no pei-to. “Aqui é bom ser velho. Mais pessoasdeveriam ter essa oportunidade.” •Pesquisa FAPESP nº 87, maio de 2003

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Como o cinema paulistano – em especial,

sete filmes – mostrou as mazelas e os personagens

de São Paulo durante a década de 1980

A metrópole nas telas

ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

e você mora ou conhece ra-zoavelmente a cidade de SãoPaulo, feche os olhos e pensenas primeiras imagens quelhe vêm à cabeça. Provavel-

mente não ficará livre dos pedestresandando às pressas pelo Centro ou naavenida Paulista. Tampouco dos limi-tes impostos pelos rios Pinheiros e Tie-tê e das pontes cobertas de congestio-namento no cair da tarde. Certamentese lembrará também de algum arra-nha-céu famoso: o prédio do Banespa,o Terraço Itália ou o Copan. Algumaspalavras sobre o cenário? Trabalho, co-rreria, progresso, modernidade, opor-tunidades e barulho.

Estereótipos da capital paulista, as-sim como de qualquer outra grandecidade, permanecem na memória deseus moradores. São frutos da vivênciado indivíduo na metrópole, mas, tam-bém, das imagens veiculadas pelo ci-nema, pela televisão, pelos jornais eaté mesmo pela literatura. A observa-ção é de Andréa Cláudia Miguel Mar-

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Anjos do Arrabalde:

relação difícil

entre indivíduo e cidade

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ques Barbosa, que escreveu a tese SãoPaulo: Cidade azul. Análise da constru-ção de um imaginário da cidade pelocinema Paulista dos anos 80, do De-partamento de Antropologia da Facul-dade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas (FFLCH) da Universidadede São Paulo (USP).

Durante quatro anos, financiada pe-la FAPESP por meio da bolsa de dou-torado, Andréa analisou, do ponto devista antropológico, a visão da cidadede São Paulo existente em sete filmesproduzidos por cineastas paulistas nadécada de 1980. Observou com aten-ção, também, a maneira como os per-sonagens (indivíduos) lidavam com essacidade. Colocando-se como especta-dora privilegiada, ela viu e reviu de-zenas de vezes, escutou e interpretouobras de Wilson Barros, Chico Bote-lho, Carlos Reichenbach, Guilherme deAlmeida Prado e Cecílio Neto. “Escolhifilmes da década de 1980 porque essefoi o período em que a temática urba-na foi muito comum no cinema nacio-nal”, explica a pesquisadora.“E isso nãofoi privilégio de São Paulo; em outroslocais do país também ocorreu.”

O primeiro filme da lista é de 1979,Disaster movie, um curta-metragem deWilson Barros. Os demais são: Diver-sões solitárias (Wilson Barros, 1983),Cidade oculta (Chico Botelho, 1986),Anjos da noite (Wilson Barros, 1987),Anjos do arrabalde (Carlos Reichen-bach, 1987), A dama do Cine Xangai(Guilherme de Almeida Prado, 1988) eWholes (Cecílio Neto, 1991). “Na or-dem cronológica, o primeiro e o últimofilme não foram feitos na década de1980, mas contêm as mesmas caracte-rísticas dos demais”, observa Andréa.

Os filmes foram selecionados en-tre dezenas de opções, por terem sidoproduzidos, em sua maioria – com ex-ceção de Anjos do arrabalde, do já ve-terano Carlos Reichenbach –, por ci-neastas recém-formados, os chamadosjovens cineastas paulistas. O ponto emcomum entre alguns deles é o fato deterem utilizado recursos técnicos nasáreas de fotografia e de iluminaçãoadvindos da publicidade. “Ao se for-marem, esses cineastas encontraramgrande dificuldade para atuar comoautores”, explica a pesquisadora. “As-sim, muitos passaram a trabalhar com

publicidade e, dessa área, que temmelhores recursos econômicos, leva-ram um gosto pelo rebuscamento téc-nico para o cinema.

Reivindicação - Ironicamente, utilizan-do tais recursos, esses diretores tam-bém conseguiram romper com algu-mas limitações impostas pelo padrãode patrocínio vigente na época, o daEmbrafilme, órgão oficial de financia-mento do cinema. Atualmente, muitoscineastas reivindicam a criação de umorganismo semelhante, já que a Em-brafilme foi extinta pelo ex-presiden-te Fernando Collor de Mello e, hoje, apolítica de financiamento do cinemase dá por meio das leis de incentivofiscal, principalmente da Lei do Audi-ovisual, de esfera federal.

Do ponto de vista histórico, os anos1980 representaram grandes trans-formações na cinematografia nacional.Com a morte de Glauber Rocha, Joa-quim Pedro de Andrade e Leon Hirs-zman, houve uma superação do mode-lo hiper-realista do Cinema Novo. A luzambiente foi substituída pela ilumina-ção artificial e os filmes noturnos se

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tornaram possíveis, como vários dalista de Andréa demonstram: Cidadeoculta, Anjos da noite e A dama do CineXangai.

“Ainda que não conscientemente,esses cineastas formaram um movi-mento estético”, afirma a doutoranda.“Além dos recursos técnicos, desenvol-veram temáticas comuns”, diz. Disastermovie, de Wilson Barros, trata da ques-tão da incomunicabilidade entre os se-res humanos, mesmo tema de DiversõesSolitárias, do cineasta. A marginalidadesocial ou cultural, por meio de perso-nagens outsiders, está presente tanto emCidade oculta quanto em Anjos do arra-balde. Esse filme, mesmo contrastandocom os demais – além de produzidopor um cineasta veterano e autodidata,preservava o realismo cinemanovista –,foi escolhido justamente por causa datemática. “O tema principal é o da rela-ção entre o indivíduo e a cidade”, afirma.

Ao começar seus estudos, a pesqui-sadora acreditava que haveria algumasconstantes nos filmes: a solidão, a vio-lência e a fragmentação. Para seu es-panto, pelo menos um desses elemen-tos, o da sensação de fragmentação, não

era vivido pelos personagens. “Ao criarestratégias para sobreviver nessa imen-sa cidade, os personagens faziam umaseleção entre as milhares de referênciasexistentes nela para construir uma cida-de própria, um percurso pessoal”, ana-lisa a antropóloga.

“O personagem Anjo, de Cidadeoculta, por exemplo, trabalha em umadraga, retirando lixo acumulado dofundo do rio. Ele constrói um mundopróprio por meio de objetos encontra-dos (um anel, um brinquedo, uma foto)no lixo”, conta Andréa.“São objetos quesimbolicamente constituem sua própriacidade, ou seja, não um amontoado defragmentos e referências, mas uma to-talidade”, explica.

Recurso audiovisual - Para compreen-der melhor a influência das imagenscinematográficas sobre o cotidiano dospaulistanos, Andréa lançou mão dopróprio recurso audiovisual analisadoteoricamente em sua tese. Saiu às ruasda cidade entrevistando todo tipo decidadão, do camelô ao dono do restau-rante ou o executivo da Bolsa de Valo-res, e produziu um vídeo de dez minu-

tos. “A pergunta básica era: o que éa cidade de São Paulo para você?”,conta a pesquisadora. Indo alémdas primeiras impressões, Andréaouviu pacientemente os entrevista-dos e chegou à conclusão de queexistia uma estrutura comum aodiscurso construído por todos eles,muito semelhante à construção dacidade para muitos dos persona-gens dos filmes analisados.

“Num primeiro momento, aspessoas se valem de estereótipos dacidade: ‘É uma cidade difícil, mas sóaqui há oportunidades’,‘é a cidade doprogresso’ ”, conta ela. Num segundomomento, Andréa aponta, o indiví-duo costuma se inserir nesse estere-ótipo, com depoimentos do tipo: “Édifícil, acordo às 5 horas e chego às11 da noite, mas tenho trabalho”, porexemplo. Conforme a conversa con-tinua, ela nota, descobre-se que as pes-soas também constroem a sua pró-pria cidade, a cidade que é possívelpara elas.

Dentro dessa construção, a pes-quisadora encontrou outro fatointeressante. “A noção de que nagrande cidade só há lugar para o in-dividualismo é equivocada”, diz.“Isso

porque as pessoas pertencem a grupos,nunca estão o tempo todo sozinhas,assim acabam construindo cidades sim-bólicas semelhantes e redes de solida-riedade para sobreviver”, observa.

Com esses elementos, Andréa resu-me duas conclusões de sua tese. De umlado, o trânsito de mão dupla em que,por um lado a construção simbólicado cinema alimenta a vida e a imagemque as pessoas têm da cidade, por outro,essa memória também alimenta o tra-balho dos cineastas. A segunda conclu-são é que não há uma cidade, mas vá-rias cidades em São Paulo e nos filmesque a retratam. O que não significa,obrigatoriamente, uma fragmentação,mas a intersecção de várias totalidades.“Uma pessoa pode pertencer a um oua diversos grupos ao mesmo tempo”,desde que escolha assim. “É como umbancário que esconde suas tatuagensdurante o dia, quando defende seus in-teresses profissionais e, à noite, trans-forma-se no punk a bater cabeça emum baile”, exemplifica. São as comple-xidades da urbe moderna. •

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Cidade oculta (à esq.) e Disaster Movie

(acima): ao criar suas estratégias

para sobreviver em São Paulo,

os personagens dos filmes

tentam construir uma cidade própriaR

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Pesquisa FAPESP nº 81, novembro de 2002

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modelo de Justiça que deveriaproteger os brasileiros está en-fraquecido. Nos últimos cincoanos, dos mais de 600 mil cri-mes registrados em 16 delega-

cias de polícia na cidade de São Paulo, háindicações de que só uma pequena porcenta-gem poderá resultar em pena com reclusãodo acusado. Isso porque, de um total de338,6 mil crimes, violentos e não violentos,analisados no período, apenas 21,8 mil fo-ram objeto de inquérito policial. Estima-secom base em outros estudos que, desses in-quéritos, 40% venham a ser arquivados. Seessas estatísticas se confirmarem, apenas 13,1mil crimes se traduzirão em denúncia enca-minhada ao Ministério Público e acolhidapela autoridade judiciária.“Alguns serão des-qualificados por falta de provas, por exem-plo, e possivelmente algo em torno de 5%dos crimes analisados redundarão em pena”,diz Sérgio Adorno, coordenador do Centrode Estudos da Violência, um dos dez Centrosde Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) fi-nanciados pela FAPESP. “Na França, em 20

Porcentagem de crimes violentos

convertidos em pena com

reclusão do acusado é muito

baixa, constatam pesquisadores

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Impunidade e

crimes violentos, 19 tendem a merecer pena”,compara.

Os números que estão sendo reveladospela pesquisa Identificação e medida da taxade impunidade penal não chegam a surpreen-der. Outro levantamento, sobre o assassinatode crianças e adolescentes, realizado em SãoPaulo entre 1991 e 1994 e já concluído, reve-lou taxa de conversão do crime em pena deapenas 1,72%. Esse quadro certamente é agra-vado pelo despreparo e falta de recursos dapolícia para conduzir as investigações. “Amaioria dos crimes é de autoria desconheci-da”, observa Adorno. Mas pode também estarrelacionado ao perfil da vítima ou do agres-sor, ou à natureza do crime, suspeita.“E podeter a ver com obstáculos enfrentados pelos réusno acesso à Justiça penal, inclusive à plenagarantia dos direitos de defesa. Paradoxal-mente, pode ainda estar relacionado a sub-terfúgios processuais, como o excesso derecursos protelatórios que retardam a aplica-ção das sanções”, acrescenta Adorno. O resul-tado é que a impunidade ajuda a sustentar ocrime e também alimenta o medo.

ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

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A pesquisa está em curso. É parte deum projeto ainda mais amplo desen-volvido pelo centro, em que se avalia acrise na Justiça brasileira, inclusive pormeio de estudo histórico das políticasde segurança pública implementadasem São Paulo, desde 1822 até hoje, apartir de documentos normativos eoficiais. No caso da impunidade, ospesquisadores igualmente partiram deestatísticas oficiais, mas tiveram deoptar por outros procedimentos meto-dológicos. “Nos países com estatísticasconfiáveis, o fluxo do sistema de Justiçacriminal produz estatísticas em todosos segmentos – policial, judicial e naexecução da sentença –, o que permiteobservar o movimento dos crimes re-gistrados, dos denunciados e processa-dos e dos condenados”, diz. No Brasil,no entanto, continua Adorno, as esta-tísticas disponíveis, além de incomple-tas, não permitem a realização de umfollow-up. Em função da extensão e ovolume de informações, foi necessáriorestringir o levantamento a uma únicaseccional de polícia que coordena odesempenho e as atividades de postospoliciais entre as zonas Oeste, Noroestee Sul da cidade, num total de 14 delega-cias de polícia e duas delegacias espe-cializadas. Em vez de acompanhar omovimento geral dos crimes, recorreu-se à observação individualizada de re-gistros de forma a perseguir o seu des-tino no interior do sistema de Justiçacriminal. “Fizemos um estudo detalha-do e crítico dos registros primários, deforma a cercar com maior precisão oscrimes que efetivamente interessam àobservação, ou seja, o homicídio, roubo,roubo seguido de morte, estupro, tráfi-co de drogas, considerados crimes vio-lentos”, ele relata. A primeira parte dapesquisa está praticamente concluída.Na etapa seguinte será feito o estudodetalhado dos inquéritos e processospenais.

Situação de risco - O Centro de Estu-dos da Violência analisa, desde 1987,a violência e transgressões aos direitoshumanos no país, desenvolvendo es-tudos sobre temas como políticas desegurança pública e participação dacomunidade na solução da violência.Atualmente, desenvolve cinco linhas depesquisa, entre elas o projeto Identifi-cação e medida da taxa de impunidadepenal, coordenado por Adorno.

A exemplo do estudo sobre a impu-nidade, a grande dificuldade dos pes-quisadores dos demais projetos está nacoleta dos dados. Sabe-se, que em SãoPaulo o homicídio corresponde a 186,7mortes em 100 mil jovens com idadeentre 15 e 19 anos e 262,2 dos óbitosem 100 mil pessoas com 24 anos, deacordo com estatísticas de 1995 e 1998,respectivamente. Mas pouco se sabe so-bre os agressores e tampouco sobre avítima, além do seu endereço residen-cial e causa mortis. Os registros da Jus-tiça, da polícia ou da saúde não lançamluz sobre a natureza dessa violência,não informam sobre ogrupo responsável pelohomicídio nem dãosubsídio para que seconheça a relação entreos envolvidos. E, nessazona cinzenta, é im-possível conhecer as ví-timas potenciais ou ascircunstâncias que fa-vorecem o homicídioe, menos ainda, imple-mentar políticas efica-zes para combatê-lo.

As estatísticas, no entanto, revelamalguns padrões e mostram que algunsbairros de São Paulo têm taxas de ho-micídio mais elevadas que a média dacidade, que crescem num ritmo supe-rior ao do conjunto de 96 distritos quecompõem a capital. Entre 1996 e 2000,por exemplo, enquanto as taxas médiasde homicídio da capital cresciam de55,6 por 100 mil habitantes para 66,9, odistrito de Jardim Ângela já registrava amarca de 116,23 homicídios por 100mil habitantes. Essa disparidade foi ob-servada em vários distritos da cidade.Os números e a distribuição geográ-fica das ocorrências sugeriam que asregiões com altas taxas de homicídioeram, igualmente, as de maior concen-tração de pobreza.

A partir desses dados, os pesquisa-dores do centro iniciaram uma pesqui-sa de georreferenciamento da violência.Constataram não ser a concentração ele-vada de população pobre a responsávelpelas altas taxas de homicídio. O cená-rio da violência registrava alta concen-tração de jovens entre 11 e 14 anos e 15e 19 anos, grande número de chefes defamília com menos de quatro anos deescolaridade e/ou sem renda, baixaoferta de emprego local, mortalidade

infantil acima da média, ausência dehospitais na região, menor acesso a es-goto e com alto congestionamento do-miciliar, isto é, menor privacidade,maior tensão e competição por espaço.“Diversos estudos já provaram que, di-vidindo áreas exíguas, as pessoas ficammais insensíveis, até por defesa, masessa situação afeta as estatísticas decriminalidade”, explica Nancy Cardia,vice-coordenadora e responsável peloprograma de difusão do Cepid.

A violência letal, portanto, sobre-põe-se à violação de direitos sociais eeconômicos e esse conjunto de fatores

se entrelaça para for-mar uma espécie decírculo vicioso de ca-rências e violência. Oemprego é escasso nasáreas de elevadas ta-xas de homicídio, e aalternativa para oschefes de família estáno mercado informalde trabalho, com ocu-pação irregular, malremunerada e sujeitaa período de desem-

prego prolongado. A ociosidade força-da pode aumentar a tensão dentro dafamília, o consumo de álcool e tende afavorecer a violência. De fato, nos 24distritos da cidade onde existiam mui-tos chefes de família sem renda, os es-tudos mostraram que a violência seagravava. “Esses distritos tinham 49%de todos os chefes de família sem ren-da. É uma super-representação”, cons-tata Nancy.

Os pesquisadores também identifi-caram um enfraquecimento dos grupossociais entre si e com as instituições deproteção social. “Os vínculos institucio-nais entre a população e as autoridadessão caracterizados por tensões, mútuadesconfiança e até mesmo quase ine-xistência”, diz Nancy. Essa ausência devínculos se manifesta, por exemplo, emsituações de linchamento. “O lincha-mento parece algo que acontece no ca-lor do momento, mas, quando se inves-tiga o caso, é possível dar conta de quea população já tinha se mobilizado an-teriormente em situações semelhantes,sem ter obtido apoio ou proteção dasautoridades. Os meios para solucionaro problema foram exauridos, eles sesentiram impotentes e foram levados àviolência”, completa Adorno.

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Carências sociais

e econômicas

enfraquecem

relação com

autoridades

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na tentativa de desenvolver modelos degestão de conflitos. Esses encontros fo-ram batizados de fórum de convivência“vem quem quer”, conta Nancy. “Dis-cutimos qualidade de vida, violência,criminalidade, conflito entre homens emulheres, relação com amigos no re-creio, entre outras situações, e a vanta-gem de fazer as coisas juntos”, ela diz. Aintenção dos pesquisadores é iniciar es-ses jovens na resolução de pequenosconflitos, seguindo o modelo desenvol-vido pelo pesquisador canadense Clif-ford Shearing para lidar com a violênciaem conjuntos habitacionais em Toron-to, no Canadá, e que foi adaptado paramediar tensões nos guetos da África doSul e em comunidades carentes de Ro-sário, na Argentina. “Quando a comu-nidade começa a resolver conflitos in-ternos, ganha mais poder para negociarcom as autoridades a sua situação”, ex-plica Nancy. Antes de iniciar os grupos,a proposta de trabalho foi apresentadaaos professores, aos pais e aos própriosalunos, que visitaram a sede do Centrode Estudos da Violência, instalado naUniversidade de São Paulo (USP).

Além desses adolescentes, os pes-quisadores também trabalham com fó-runs de convivência com adultos e jo-

Nesse cenário, a presença de muitascrianças e jovens em situação de con-centração de pobreza e de carência so-cial torna-os extremamente vulneráveisà possibilidade de serem vítimas ouagressores. “A faixa de idade entre 11 e14 anos está muito exposta à situaçãode violência mais severa: os pais, assimcomo a escola, já consideram que ele sevira sozinho e eles acabam por ficar semnenhuma supervisão”, afirma Nancy. Nasvésperas de se tornarem adultos, essesjovens acabam por adotar condutas derisco, envolvendo-se freqüentementeem situações de delinqüência, alcoolis-mo, uso de drogas, entre outros. Ou setornam alvos fáceis em conflitos por mo-tivos fúteis, como, por exemplo, brigasna vizinhança em razão de uma janelaquebrada, música alta etc. “O problemareside em identificar quais situações so-ciais estão mais associadas ao risco, demodo a que governos e organizações dasociedade civil possam promover pro-gramas de prevenção”, diz Nancy.

Vítimas indefesas - Identificadas as víti-mas mais indefesas, os pesquisadoresdo Cepid começaram a trabalhar den-tro de uma escola no bairro do JardimÂngela, com crianças entre 11 e 14 anos,

vens grafiteiros da região. “As pessoasnão se vêem como uma comunidade,em parte por conta da violência do co-tidiano e das carências econômicas”,conta Nancy. Os grafiteiros, aliás, aju-daram na consolidação do grupo deadolescentes que era rejeitado pelos de-mais alunos da escola. “Os grafiteirossão respeitados e isso lhes deu prestí-gio”, explica a pesquisadora. A expecta-tiva é de que, se eles aprenderem a lidarcom incidentes de violência pessoal, es-tarão mais fortalecidos para negociarcom as autoridades.

O centro também implementouobservatórios da violência em quatrocomunidades, para debater o problemapela perspectiva das vítimas. E desenvol-ve, ainda, cinco projetos educacionais,tendo como tema central a violência,voltados para orientadores pedagó-gicos da rede municipal e estadual deensino, entre outros, além de um proje-to de ensino a distância, em parceriacom a Escola do Futuro.“Estamos, ago-ra, treinando uma equipe de Moçambi-que, em colaboração com a Organiza-ção Mundial da Saúde, num projetointerministerial que reúne programasde vigilância epidemiológica, preven-ção e avaliação da violência.” •

Prestígio dos grafiteiros ajudou na

consolidação do fórum de adolescentes

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grande maioria dos atos deviolência que resultam emferimentos causados porarma de fogo na cidadede São Paulo ocorre nos

finais de semana, principalmente aossábados. As agressões sexuais às mulhe-res são mais freqüentes nos dias úteis,com pico nas quintas-feiras, quandoelas estão longe da família, deslocando-se para o trabalho, a escola ou compras.As auto-agressões ou suicídio se con-centram nas terças e quartas-feiras, su-gerindo forte relação com situação deemprego, e também aos sábados, possi-velmente motivados pela angústia e so-lidão. Poucos atentam contra a própriavida nas sextas-feiras. A idade médiadas vítimas é de 30 anos. Esses dados,que constam de 7.073 atendimentosrealizados entre janeiro e dezembro de2002 no Hospital Municipal Dr. ArthurRibeiro de Saboya, também conhecidocomo Hospital Jabaquara – um centrode referência de trauma e com serviçoespecializado às vítimas de agressões –,deixam claro que é possível estabelecercálculos de riscos nos casos de violênciaque demandam o sistema hospitalar – eque, portanto, implicam risco de morte– e implementar políticas de prevençãoem microescala na cidade de São Paulo.“Com pouco investimento é possíveldesenvolver e implantar um sistema demonitoramento capaz de captar as in-formações relativas às ocorrências vio-lentas e acidentes mais comuns”, dizPaulo Saldiva, professor da Faculdadede Medicina da Universidade de SãoPaulo (USP) e coordenador do projetoEpidemiologia da Violência Criminal naCidade de São Paulo: Uma Abordagemem Macro e Microescalas, desenvolvidoem parceria com a Secretaria Munici-pal de Saúde, Secretaria da Administra-ção Penitenciária e Instituto de Mate-

mática e Estatística da USP, no âmbitodo Programa de Políticas Públicas, fi-nanciado pela FAPESP.

Saldiva, especialista nos estudos dosefeitos da poluição atmosférica sobre asaúde humana, decidiu utilizar os crité-rios de pesquisas epidemiológicas paraestudar a violência, utilizando estatísti-cas para cálculos de risco. “A violência,diferentemente da poluição, não estáhomogeneamente distribuída. É neces-sário levar em conta variáveis de tempoe espaço e criar novas técnicas teóricasde avaliação de risco”, reconhece. Osestudos, a exemplo do que ocorreu comos pesquisadores do Centro de Estudosda Violência (veja matéria na página 48),esbarraram nas dificuldades de coletade dados confiáveis nos órgãos oficiaisde segurança pública. A opção foi cole-tar informações sobre o tema no siste-ma de saúde.

No caso dos dados do Hospital Sa-boya, “apesar do esforço e dedicação doNúcleo de Atenção às Vítimas de Vio-lência”, ele ressalva, a análise dos dadosfoi dificultada pela falta de padroniza-ção de algumas variáveis importantes.Os pesquisadores tiveram, por exemplo,de gerar algumas variáveis, como a clas-sificação da ocorrência, tomando comobase informações registradas em moti-vo da procura e descrição da ocorrên-cia. “A qualidade da informação é umitem essencial em qualquer pesquisa”,observa. Para definir a classificação daocorrência, os pesquisadores recorre-ram à Classificação Internacional deDoenças, freqüência de determinadasocorrências e interesses específicos deoutras, para chegar às seguintes catego-rias principais: acidentes, agressões, in-tervenções legais, complicações médi-cas e cirúrgicas e eventos de intençãoignorada. As agressões foram classifi-cadas em auto-agressões, agressões se-

xuais, demais agressões com uso de ar-ma de fogo, com uso de outros objetoscontundentes e demais agressões comuso de força física ou não especificadas.

Padronizados e classificados, os re-gistros revelaram informações preciosas.Indicaram, por exemplo, que homens emulheres apresentam distribuição pa-recidas em relação à idade da vítima nomomento do registro da ocorrência,tendência de queda da violência nosmeses de janeiro a julho, seguida de umaumento constante de agosto a dezem-bro, e prevalência de vítimas do sexo fe-minino nesse período. Na distribui-ção de ocorrência faixa etária e localdo fato, os pesquisadores observarammaior freqüência da faixa entre 16 e 65anos (9,2%) nas violências registradasno local de trabalho e maior incidên-cia de vítimas na ∫faixa de 0 a 5 anos(18,6%) quando a agressão ocorre naprópria moradia. Nos demais locais deocorrência – área de comércio e servi-ço, via pública e estrada, em outra mo-radia, não informado e outros –, as dis-tribuições dos casos foram semelhantesem todas as faixas etárias.

Promiscuidade e violência - A equipede Saldiva também coleta dados sobreviolência na Coordenadoria de Saúdedo Sistema Penitenciário (Cosaspe),que concentra todos os prontuáriosrelativos aos atendimentos hospitala-res dos detentos na cidade de São Pau-lo. “A Cosaspe não possui nenhumainformação em arquivo magnético.Assim, a primeira etapa do trabalhofoi desenvolver, em parceria com a Se-cretaria de Administração Penitenciá-ria, a estrutura de um banco de dadospara, então, iniciar a digitação e análi-se dos mesmos”, conta Liliam Pereirade Lima, estatística que participa doprojeto. Também ali os dados foram

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A

Projeto de política pública mede

situações de violência

da população paulistana

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reveladores. A violência nos presídiosse manifesta na forma de doenças: oHIV e a tuberculose, com incidênciade 67,5% e 35,1% dos pacientes deten-tos atendidos no Centro Hospitalar doCarandiru, onde converge boa partedos casos de doença e violência ocor-ridos no sistema penitenciário paulis-ta. Os ferimentos por arma de fogonão ultrapassaram os 5,2%, e os comarma branca, 1,3%. Nos dois casos, asvítimas foram encaminhadas ao hos-pital pela Secretaria de Segurança Pú-blica, responsável pelo atendimentode feridos nos distritos policiais. Essasagressões, portanto, podem ter ocorri-do no momento da prisão. A violên-cia, no caso do sistema penitenciário,está na falta de controle das doençasinfectocontagiosas. “Os presídios sãoinsalubres e os presos vivem em pro-miscuidade”, sublinha Saldiva.“A solu-ção está na redução da possibilidadede contágio e na dispensa de medica-

mentos de controledessas doenças”, diz.

Algoritmo de ris-

cos - Concluído odiagnóstico, o pro-jeto de pesquisa en-tra, agora, na sua segundafase. “Vamos propor aosistema penitenciáriouma codificação de da-dos e um gerenciamentode informações baseadoem critérios lógicos”,afirma Saldiva. Na áreade saúde, a proposta seráimplementar um sistema uni-ficado para o preenchimento deinformações críticas que deve-rão alimentar um banco de dadosda violência na capital. “Informa-ções qualificadas permitirão, porexemplo, levantamentos de custos daviolência, relacionados a procedimen-tos médicos, horas de trabalho perdi-das, entre outras informações relevan-tes para a implementação de políticaspúblicas”, diz Saldiva. Esses dados per-mitirão elaborar um mapa georrefe-renciado de estudo da morbidade. Maso projeto de Saldiva quer ir mais longee chegar a um algoritmo de cálculo derisco que se traduziria num alerta à so-ciedade: uma mulher, andando sozinha,por região entre tais e tais ruas, no pe-ríodo de x horas e y horas, tem umgrande percentual de risco de se tornarvítima de violência sexual. •

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Pesquisa FAPESP nº 88, junho de 2003

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ções, que chegaram a somar mais de200 títulos entre 1890 e 1922. A pes-quisa, desenvolvida como tese de dou-torado defendida no departamento deHistória da Universidade de São Paulo(USP), acaba de ser lançada em livro,uma publicação ilustrada e muito bemcuidada, feita com apoio da FAPESPpela Edusp e Imprensa Oficial (591 pá-ginas, R$ 50).

O livro tem prefácio do bibliófiloJosé Mindlin e é comentado, na con-tracapa, pela historiadora Maria LuizaTucci Carneiro. Foi feito com base emdocumentos de diversos arquivos, entreeles o do Instituto Histórico e Geográ-fico de São Paulo e o do Instituto de Es-tudos Brasileiros da USP, além de bi-bliotecas particulares, como a do próprioJosé Mindlin. Apresenta análises quepermitem entender de que forma essas

revistas colaboraram para a formaçãode um público leitor, ao mesmo tempoque, fato inusitado, deram propulsão auma nova realidade econômica e mer-cadológica nos centros urbanos.

Imprensa tardia - “As revistas tiveramum papel muito importante no Brasilnaquela virada do século 20, em fun-ção da própria história da imprensano país”, explica Ana Luiza. “Foi umaimprensa tardia, se comparada com aexistente nos países latino-americanosde colonização espanhola, os quais co-nheceram o prelo desde o século 16.”A primeira impressão oficial feita emsolo brasileiro só ocorreu após a che-gada de D. João VI ao Rio de Janeiroem 1808, fato que elevou a cidade àcapital do Império português. “Antesdo Império, qualquer atividade que

a paulicéia desvairada,a luz elétrica tomouconta das ruas. As mu-lheres encurtaram oscabelos e as saias, os

bondes aceleraram a vida. Novos hábi-tos noturnos: o bar, o restaurante, aslojas de departamento iluminadas.São Paulo do início do século 20 viveusua belle époque com direito a quasetodo glamour de Paris. Mais: foi a cida-de em que se desenvolveu, com esplen-dor, uma indústria até então incipien-te no país: a da produção editorial derevistas.

Em Revistas em revista: imprensa epráticas culturais em tempos de Repú-blica, São Paulo (1890-1922) a histo-riadora Ana Luiza Martins apresentaum extenso levantamento documen-tal e iconográfico sobre essas publica-

Estudo mostra relação

entre mídia e vida

cotidiana na

São Paulo antiga

Em revista, o desvarioda paulicéia cultural

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ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

NRevistas “chiques” dos anos 10 e 20: apesar do esforço da elite cultural,

as publicações que faziam sucesso eram as de consumo

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pudesse resultar na publicação de umperiódico era submetida a uma cen-sura rigorosíssima, principalmente notempo em que a Inquisição esteve naColônia”, diz.

Um segundo momento curioso daimprensa nacional foi quando, apesarde ter surgido no Rio, ela teve São Paulocomo palco de seu grande desenvolvi-mento. “Ela surgiu tardiamente, masnum período de grandes eimportantes mudanças”, ob-serva a professora Maria Lui-za Tucci. Essas transformaçõesocorriam principalmente emsolo paulista, sob a égide dosbarões do café, que cultiva-vam a terra roxa no interiore apostavam na modernida-de da capital.

De que tratavam, então,essas publicações, responsá-veis pelo nascimento e cres-cimento de um verdadeiroparque gráfico na então terrada garoa? “De um pouco detudo”, diz Maria Luiza. Entreas de maior popularidade es-tavam as femininas, as de es-portes, as religiosas, as quetratavam de educação e –pasme – as revistas agrícolas.“Ocorre que essas publica-ções surgiram no início daRepública, quando os gruposmais progressistas estavamlutando por uma melhoreducação – não podemos es-quecer que o país tinha umaherança escravocrata, portan-to, era predominantementeanalfabeto”, explica a pesqui-sadora. O período foi mar-cado também pelo fortalecimento doensino público, com a fundação, porexemplo, dos grupos escolares Caetanode Campos e Rodrigues Alves. “As re-vistas serviam para ampliar o públicoleitor e era importante falar sobre as-suntos valorizados pelo governo, porexemplo, a agricultura, em primeiro lu-gar, e a educação, logo em seguida”, con-tinua a historiadora.

Embora fossem setorizadas, as re-vistas não eram monotemáticas, de for-ma que era possível, por exemplo, en-contrar peças literárias em uma revistaque tratava de assuntos ligados à terra eao plantio. “Um grande exemplo foi arevista Chácaras e Quintais, na qual a

ção da República. Já as esportivas acom-panhavam o modismo trazido pelos in-gleses. Naquele tempo, além do tênis, ofutebol, hoje um evento popular, tambémera um esporte exclusivamente elitista.

“Sem dúvida, as mais lidas eram asrevistas femininas”, afirma a autora. Vá-rios motivos explicam essa popularida-de.“Naquele tempo, havia mais mulhe-res do que homens alfabetizados na

elite”, diz Maria Luiza. “Alémdisso, as revistas femininaspodiam entrar nas casas dasfamílias, porque mesmo quecontivessem, por exemplo,contos ou textos literários,eles jamais chocariam moçase senhoras, como costumavaacontecer, muitas vezes, comas revistas literárias”, conti-nua. O período estudado se-gue somente até 1922, justa-mente por se tratar do anoem que o Modernismo se afir-mou e as revistas modernistasapresentaram rupturas de lin-guagem e de propostas emrelação a suas antepassadas.

Beleza gráfica - Um passeiopelas páginas coloridas deRevistas em Revista permi-te ao leitor deliciar-se coma beleza gráfica de muitasdessas publicações (Sports,Correio Paulistano, A Esta-ção, Vida Moderna). Os tí-tulos mostram o esforçocriativo para assuntos ge-rais (A Rolha, O Parafuso, ACigarra, A Farpa, A Vespa,Arara, O Queixoso – de opo-sição ao governo, Caras Y

Caretas) e para falar de São Paulo demaneiras diferentes (A Garoa, Ilus-tração Paulista, Correio Paulistano,Vida Paulista, Ilustração de S. Paulo,O Álbum Paulista).

Os esforços gráficos e editoriais eramacompanhados pelo desenvolvimento dapublicidade. “Foi naquele período quesurgiu a idéia de revista como negócio.Vingavam as de consumo. Revistas lite-rárias eram conhecidas por durar poucotempo, daí a inserção da literatura emoutros tipos de publicação”, diz Maria Lu-iza. Qualquer semelhança com os diasde hoje não é mera coincidência. •

ram conhecidos graças aos periódicos.Niterói, por exemplo, a primeira revistabrasileira de que se tem notícia, im-pressa na França, foi espaço de veicula-ção dos escritores do Romantismo.

As revistas paulistas religiosas tam-bém apostavam na diversidade de assun-tos para atrair mais leitores. Leia-se: fiéis.“Costumavam divulgar exposições dearte. A primeira exposição de BeneditoCalixto em São Paulo foi divulgada emuma revista da Igreja”, aponta a pesqui-sadora. O impresso periódico foi o meioencontrado pelos eclesiásticos para com-pensar a diminuição do poder da Igre-ja após a separação dessa instituição doEstado, o que ocorreu com a proclama-

escritora Júlia Lopes de Almeida des-pontou, publicando seus contos”, narraMaria Luiza.“Esse tipo de coisa era umavia de mão dupla: ao mesmo tempoque a autora conquistava seu público,sua obra ajudava a revista a encontrarleitores entre os mais diferentes gruposda sociedade”, explica ela. Como aindanão havia editoras de livros, muitos au-tores e até movimentos literários fica-

Ação do guarda: usando a imprensa para educar o povo

Pesquisa FAPESP nº 70, dezembro de 2001

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ESPECIALSÃO PAULO 45O ANOS

Fundos da Faculdade de Direito da USP, rua Riachuelo