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10 FLORESTAN FERNANDES EA SOCIOLOGIA NO BRASIL Com a seguinte reprodução das resenhas de dois livros de Florestan Fernandes pretendemos reiterar a fim de preservar, no cultivo da sociologia em nossas instituições universitárias, o ameaçado tipo de preocupações que nortearam e continuam a orientar a atividade intelectual dêsse Autor. Sob êsse título, Florestan Fernandes reúne, em livro, dezes- seis estudos diferentes quanto ao conteúdo específico, ao mate- rial empírico básicoe ao tipo deelaboração. Dois dêsses tra- balhos referem-se aoperíodo de formação da sociedade brasi- leira: "Os Tupi ea Reação Tribal à Conquista" e "Aspectos do Povoamento de SãoPaulo no Século XVI". Os demais inci- dem sôbre setores ou aspectos das transformações que a estru- tura dessa sociedade vem sofrendo, em época atual ou em pas- sado mais ou menos próximo. Em vista dos objetivos da aná- lise que aqui se propõe efetuar, deixa-se, por enquanto, de considerar aquêles dois mencionados estudos e conjuntamente se focalizam sobretudo os relativos à sociedade brasileira global e ,à metrópole paulista na fasecontemporânea. Essa focalização

PEREIRA, Luis. Florestan Fernandes e a Sociologia No Brasil

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FLORESTAN FERNANDES E A SOCIOLOGIANO BRASIL

Com a seguinte reprodução das resenhas de dois livros deFlorestan Fernandes pretendemos reiterar a fim de preservar, nocultivo da sociologia em nossas instituições universitárias, oameaçado tipo de preocupações que nortearam e continuam aorientar a atividade intelectual dêsse Autor.

Sob êsse título, Florestan Fernandes reúne, em livro, dezes-seis estudos diferentes quanto ao conteúdo específico, ao mate-rial empírico básico e ao tipo de elaboração. Dois dêsses tra-balhos referem-se ao período de formação da sociedade brasi-leira: "Os Tupi e a Reação Tribal à Conquista" e "Aspectosdo Povoamento de São Paulo no Século XVI". Os demais inci-dem sôbre setores ou aspectos das transformações que a estru-tura dessa sociedade vem sofrendo, em época atual ou em pas-sado mais ou menos próximo. Em vista dos objetivos da aná-lise que aqui se propõe efetuar, deixa-se, por enquanto, deconsiderar aquêles dois mencionados estudos e conjuntamente sefocalizam sobretudo os relativos à sociedade brasileira global e,à metrópole paulista na fase contemporânea. Essa focalização

conjunta não é pertinente apenas como recurso de análise: im-põe-se pela própria linha de exploração dos temas seguida peloAutor - ao cuidar de São Paulo, estabelece suas conexõessociais, culturais, políticas e econômicas com a sociedade inclu-siva e, através desta, com o sistema internacional de fôrçassociais; e, ao estudar globalmente a sociedade brasileira, mostracomo os processos de mudança nela evidenciados aparecem, emSão Paulo, em sua forma extrema de desenvolvimento. Consti-tuindo a maior parte do livro, são êstes ensaios integrados quelhe dão situação Ímpar na literatura sociológica ,concernente àsmudanças sociais em curso na comunidade nacional brasileirae, indiretamente, também na bibliografia sociológica sôbre asnações subdesenvolvidas em geral.

A relevância da obra decorre, inicialmente, da filiação ideo-lógica do Autor, determinante da perspectiva adotada no estudodos referidos processos. Não os encara como historicamentevazios, mas sim, em têrmos das categorias de autonomia e deheteronomia social da comunidade brasileira, e propugna, paraesta, pela primeira dessas condições de existência histórica. Tra-ta-se de vinculação ideológica expressa em vários ensaios e im-plícita em outros, porém de fácil identificação. Nesse sentido,Florestan Fernandes assume o papel de sociólogo engagé, con-corde conc,epções por êle próprio defendidas acêrca dos papéisa serem desempenhados pelos cientistas brasileiras em geral epelos sociólogos em particular, ,como depois melhor seesclare-cerá. Tal fato se torna sobremaneira importante para a com-preensão de Mudanças Sociais no Brasil, pois a distingue deoutras obras sociológicas sôbre o subdesenvolvimento nacional,com caráter aparente e pretensamente "neutro".

Evidentemente, dado o padrão civilizatório moderno, omodo autanômico de existência histórica das comunidadesnacionais implica que realizem o tipo urbano-industrial em seusistema social global, já alcançado pelas nações ditas desenvol-vidas. As alternativas históricas dessa realização, uma capita-lista e outra socialista, levantam a questão das possibilidadesoferecidas por cada alternativa ao des,envolvimento da socie-dade brasileira nessa direção, nas suas presentes condições deexistência em face do sistema capitalista internacional. Nessecontexto, ganha realce a posição socialista do Autor, firmadaexplicitamente num dos ensaios. Trata-se, porém, de posição

secundária, quando confrontada com outra mais geral - defesade existência autônoma para a nação brasileira - e quase irre-levante quando, em outros ensaios, analisa fatôr,es adversos efavoráveis à expansão do capitalismo industrial nacional, atravésdo qual s,e implantaria o sistema urbano-industrial autonômicoentre nós.

Tomar posição como a definida acima, diante da reali-dade histórico-social, não leva necessàriamente a elaboraçõesintelectuais deficientes com referência aos padrões a que deveatender o conhecimento sociológico. Contudo, a regra na lite-ratura ",contra" o subdesenvolvimento nacional é dada por taisproduções insatisfatórias ou precárias do ponto de vista socio-lógico. No entanto, Florestan Fernandes consegue opor-se aosubdesenvolvimento sem deixar de ser sociólogo estudioso dosubdesenvolvimento e sem fazer sociologia "subdesenvolvida".E, como contribuições valiosas à sociologia do subdesenvolvi-mento, apresentam-se os ensaios onde focaliza a emergência dosistema urbano-industrial na sociedade brasileira, os fatôres pro-pulsores dêsse processo e os que o obstaculizam, as áreas detensão oriundas da desintegração do sistema agrário paterna-lista e os problemas sociais daí surgidos etc.

Capítulos sôbre manifestações da pequena integração donegro "na sociedade de classes em formação", as dificuldadese progressos da penetração e fortalecimento dos valôres e ins-tituições democráticos, os "obstáculos extra-econômicos à indus-trialização no Brasil", as "relações culturais entre o Brasil ,e aEuropa", as "relações culturais entre o Brasil, o Ocidente e oOriente", os "caracteres rurais e urbanos na formação e desen-volvimento da cidade de São Paulo", "a café na evolução deSão Paulo", os desajustamentos do homem à metrópole paulistaetc., - não contêm, porém, alcance apenas teórico, porquanto, ..os objetivos pragmáticos do Autor estão sempre presentes. Do-;ângulo da teoria, formulam pistas promissoras de investig~çãosociológica, visto que Florestan Fernandes nêles pôs ênfase 'nosaspectos propriamente sociais da realidade, embora leve emconta ou subentenda os estritamente econômicos. A explora-ção dessas pistas, além da constante dos ensaios em foco, en-contra-se relativamente avançada quanto a algumas e em etapainicial quanto a outras, colocando-se o Autor e seus assistentesna Universidade de São Paulo dentre os principais executores

dessa tarefa. Nessas investigações, nas quais se incluem pes-quisas de ,campo, mantém-se o mesmo nível de interpretaçãosociológica da realidade brasileira, inerente aos 'ensaios de M u-danças Sociais no Brasil. De fato, as evidências empíricas sãoelaboradas dentro dos amplos quadros de referência conceitualque fiz·eram a grandeza de um Weber, Marx, Tonnies, Sombart,Durkheim, Mannheim e outros - evitando-s,e, assim, trabalhossem a devida perspectiva histórica, nos quais os setores abor-dados da realidade, por não serem vistos como componentes dofuncionamento histórico dos sistemas sociais globais, tendem areoeber tratamento meramente sociográfico. A essa altura, vol-te-se a 'Considerar os dois estudos ligados à fase de formaçãoda sociedade brasileira: além de fornecerem uma pequena indi-cação da especialização também etnológica do Autor e da suaprática em trabalhos de reconstrução histórica, consistem emmais uma demonstração da sua perspectiva histórico-sociológica,patente nos demais estudos que se estêve focalizando.

As preocupações pragmáticas de Florestan Fernandes,nesses estudos, r,esultam das suas concepções a respeito do quedenominou padrão integrativo de trabalho científico para ossociólogos brasileiros, segundo o qual os alvos teóricos, empí-ricos e práticos se revelam como objetivos igualmente essen-ciais da produção sociológica. Percebe-se, assim, como a suaposição em face do subdesenvolvimento não poderia ser "neu-tra" e como êle a deriva criticamente do conhecimento dasfunções que à sociologia cabe preencher no mundo moderno,como técnica social racional, no sentido de instrumento de diag-nóstico das situações e de interferência deliberada na realidade.No caso especial do subdesenvolvimento nacional, a sociologiaestaria dentre os recursos a utilizar-s·e para a promoção racio-nal do sistema urbano-industrial autonômico na sociedade brasi-leira (conforme a posição do Autor). Dêsse modo, não é deestranhar e, sim, de valorizar, o conteúdo da maioria dos ensaiosde Mudanças Sociais no Brasil quando, a partir de certo mo-mento da exposição de cada um dêles, vem a situar-se naquelazona de passagem do conhecimento "puramente" sociológicopara a formulação de orientações à ação - traço característicodas elaborações intelectuais que se caracterizam, para usar umatipologia mannheimiana, como pensamento planificador e nãosimplesmente como pensamento inventivo.

É vasta a gama de assuntos tratados nos estudos reunidosneste volume: a situação da investigação científica no Brasil ea contribuição das ciências sociais para o desenvolvimento nacio-nal; os dilemas postos pelo "subdesenvolvimento" ao trabalhoe à atuação do sociólogo; os canais e possibilidades de apro-veitamento dos conhecimentos sociológicos pelos não-especialis-tas; a estratégia a adotar-se para o progresso da sociologia emcondições de recursos humanos e materiais insatisfatórios; osrumos que o progresso da investigação sociológica deve assu-mir; o estado "crítico" do ensino e da pesquisa sociológica noBrasil; a estratégia de intervenção deliberada na realidade tendoem vista ultrapassar o "subdesenvolvimento" e a contribuiçãoque o sociólogo pode oferecer 'em têrmos de diagnóstico eatuação; a relevância teórica e prática dos estudos de sociologiaindustrial e do trabalho na presente situação brasileira etc. Em-bora cada um dos ensaios mereça uma análise particular, oslimites desta notícia não permitem senão o destaque de algunsaspectos que lhes são comuns e que conferem a unidade básica,temática e metodológica, à obra.

De fato, como êsse arrolamento sumário de temas já deixaentrever, tais ,estudos estão sempre referidos aos papéis sociaisdesempenhados ou desempenháveis por uma categoria de inte-lectuais numa determinada situação histórico-social: os soció-logos de "países subdesenvolvidos", sobretudo a atual soci,e-dade brasileira. Tanto assim que, se fôsse o caso, uma felizexpressão do Autor - "o sociólogo e o cidadão" - bem pode-ria aparecer como subtítulo da obra, sugerindo de imediato asua probl,emática fundamental: o modo pelo qual os cientistassociais se inserem no processo histórico - tanto em têrmos deneste intervirem direta ou indiretamente ou de se absterem dessaparticipação, como em têrmos de serem, enquanto intelectuais,condicionados pelas situações histórico-sociais de existência.

A êsse respeito, a tese do Autor pode ser esquemàtica-mente configurada pelas seguintes passagens, dentre outras:" ... o fato de pensar cientificamente pressupõe critérios espe-cíficos de opção e de ação. O sociólogo não está menos prêso

* Florc::aan Fernandes, A Sociologia Numa Era de Re,'oll/ção Social, SãoPaulo, Companhia Editora Nacional, 1963. Resenha pllblicada no "SuplementoLiterário" de O Estado de São Pal/lo, n.O 355, 1963.

à sociedade que os seus semelhantes. Mas, na medida em quese coloquem problemas práticos de uma perspectiva científica,a sua contribuição deve corresponder, nos limites do possível,aoscaracteres intrínsecos do pensamento científico... Daíresulta que precisam estar dispostos a resguardar, firmemente,as condições de liberdade e de independência que são essenciaispara que tais assuntos sejam encarados e resolvidos de acôrdocom os dados ou as descobertas da própria ciência" (pp. 78-9).

Como se percebe, essa posição impõe duas perspectivas,convergentes, para a adequada compr,eensão e avaliação dês telivro: uma que focalize sua discussão acêrca de questões meto-dológicas fundamentais das ciências sociais e outra que leve aconsiderar sua contribuição ao conhecimento dos processos demudança social, especialmente os de mudança provocada e diri-gida. De um lado, trata-se, pois, de saber como os sociólogos,mantendo-se intelectualmente autônomos, podem e devem aten-der às pressôes do meio, tendentes a levá-Ios à participação emprocessos de r,econstrução social - e de forma a aproveitaremêsse envolvimento como situação também favorável ao avançoempírico e teórico da sua disciplina. A aceitação de tais r-es-ponsabilidades pelos sociólogos implica, portanto, uma redefi-nição de seus papéis sociais - o que, por sua vez, se faz comimplicações metodológicas e temáticas de vulto. De outro lado,trata-se de perceber que, se institucionalizado êsse tipo de vin-culação entre sociólogos e sociedade, o próprio processo demudança tende a se alterar, no sentido de o padrão de mudançaespontânea ceder ao de mudança controlada racionalmente -fato êsse que pressupõe uma nova modalidade de reação socie-tária à contribuição dos sociólogos. E, no desenvolvimento dêssepadrão de relações entre sociólogos e sociedade, parte grande-mente ativa há de caber a tais especialistas.

Na produção intelectual do Autor, essas formulações nãosão novas. Por exemplo, bastaria lembrar três trabalhos ondeelas estão tratadas em nível de sistematização altamente teórica:"O Padrão de Trabalho Científico dos Sociólogos Brasileiros","A Sociologia Aplicada: seu Campo, Objeto e Principais Pro-blemas" e "A Ciência Aplicada e a Educação como Fatôres deMudança Cultural Provoca da" (respectivamente capo V de AEtnologia e a Sociologia no Brasil e caps. lU e IV de Ensaiosde Sociologia Geral e Aplicada). De uma parte, essas refe-rências são suficientes para que soedestaque como o presentelivro decorre de certos interêsses intelectuais que informam pro-

fundamente boa parcela da já ampla contribuição sociológicado Autor. De outra, elas -conduzem à apre-ensão da originali-dade com qu-e tais interêsses se efetivam nos ensaios dêste volu-me, em face de outros trabalhos anteriores. Realmente, nestesensaios, a problemática acima delineada é explorada em análisesde situações histórico-sociais concr'etas, consistentes - conformese procurou realçar - nas relações da ciência e dos sociólogoscom a sociedade "subdesenvolvida" (brasileira ou latino-ameri-cana) e com os movimentos de superação dêss'e seu estágio. E,discutindo entrosadamente questões de ordem metodológica eproblemas de mudança social, cada um dos estudos em focoacaba, com intensidade variável, pondo no centro do debate ospapéis efetivos e potenciais dos sociólogos.

Dêsse ângulo, e deixando-se à margem dois ensaios rela-tivos à América Latina, que de certo modo amplificam outrosreferent,es à sociedade brasileira, pode-se dizer que esta obraconsiste, bàsicamente, num balanço crítico das possibilidadesteóricas e práticas da sociologia no Brasil. Trata-se de um diag-nóstico que lhe aponta tarefas de grande envergadura histórica,no sentido de ela atuar como fôrça social construtiva no pro-cesso de nosso desenvolvimento econômico-social e, por issomesmo, capaz de vir a apresentar-se como produto de um mo-vimento de criação intelectual autônomo e original. A concreti-zação de tais possibilidades depende, porém, em não pequenaescala, da estratégia adotada pelos próprios sociólogos - oque significa, em última instância, a defesa, também para a ex-pansão da sociologia, do padrão de mudança provocada edirigida.