Paulo Mendes Da Rocha_cidade Degenerada

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/12/2019 Paulo Mendes Da Rocha_cidade Degenerada

    1/364 CARTACAPITAL 15 DE AGOSTO DE 2007

    Plural

    A ANA PAULA SOUSA

    Da janela do escritrio de PauloMendes da Rocha v-se o Edi-fcio Copan, desenhado porOscar Niemeyer. linda essaponta do prdio, no? as-

    sim, meio ao acaso, que os mais destaca-dos arquitetos brasileiros se encontramem So Paulo. Mendes da Rocha man-tm, no centro da cidade, o estdio am-plo, com lmpadas industriais,onde foram traados o Museu deArte Contempornea da USP, o gi-nsio do Clube Paulistano (SP), oEstdio Serra Dourada (GO), a co-bertura da Praa do Patriarca (SP)e mais incontveis obras.

    Ganhador do Prmio Pritzker2006, espcie de Nobel da arqui-tetura, Paulo Mendes da Rocha,de 79 anos, vive tempos de cele-bridade. Para tocar os projetos emandamento (um prdio de habita-o social em Madri, o campusda Universidade de Vigo, tambmna Espanha, e a recomposio daantiga Santa Casa, no Rio, entre e-les), tem sido obrigado a dizer nopara convites vrios, de entrevis-tas a jris internacionais. Mas, nasegunda-feira 13, passar a noite aautografar os livros Projetos de1999-2006 e Maquetes de Papel,editados pela CosacNaify. Achoto gentil terem feito os livros,diz, como se pensasse em voz alta, en-quanto gira um compasso no papel.

    O arquiteto tem o hbito, entre um ci-garro e outro, de desenhar crculos en-quanto conversa. tambm de grandesvoltas que se constitui sua fala. Pensadordas cidades, inventor dos espaos, ele an-da serenamente aflito. V um desastre ur-bano. Mas no desacreditou das sadas.

    CartaCapital: O senhor cansou de dar en-trevistas?Paulo Mendes da Rocha: Voc fica num di-lema. De um lado, acha que tem de falarporque um prestgio para a arquiteturae uma forma de lev-la ao conhecimentodo poder pblico. Por outro lado, h o pu-dor de ser abordado. Mas acho, no fundo,que eu devia me obrigar a dizer certas coi-sas, porque o que nos persegue, dia apsdia, a aflio com a cidade. Essa uma

    questo tcnica ligada arquitetura e ao ur-banismo. A rigor, de-vamos ser mais ouvi-dos no plano poltico,nas questes de de-senvolvimento das ci-dades. uma penaque haja uma tendn-cia de a arquitetura setornar banal. Isso

    decorrncia da vertigem mercantilista donosso tempo. Precisamos cuidar das cida-des. Falamos em gua, ar, mas o que podeacabar antes somos ns mesmos.

    CC: O Pritzker teve algum efeito poltico ouo senhor se sente pregando no deserto?PMR: Politicamente, o prmio significaque o mundo se preocupa com as coisas

    das quais eu trato. A questo fundamen-tal das cidades poltica. So polticas p-blicas que direcionam as cidades para umdestino ou outro. Quando olhamos da ja-nela uma cidade como So Paulo, vemosuma coisa imensa construda. Acharmosque vemos um desastre uma desmorali-zao da imagem que temos de ns mes-mos. Trnsito, poluio, ostentao de ri-queza e falta de esgoto, m distribuioda populao pelas construes nos fa-zem ver que a arquitetura, sem querer,produziu a desmoralizao da tcnica.Somos um pas onde todos so engenhei-ros, juristas, economistas e mdicos. E oresultado o desastre. A reflexo, portan-to, deveria se dar no campo poltico. Tam-bm perigoso adotar uma viso esnobe,evitando falar de trnsito por ser um lu-gar-comum. importante repetir as re-flexes sobre o desconforto nas cidadescom outra viso, no superficial.

    CC: Quais so os lugares-comuns sobre otrnsito, por exemplo?

    PMR: como se tivssemos inven-tado uma mquina de produzir ve-neno e, todo dia, nos empenhsse-mos em aprimor-la. A questo dostransportes fundamental. No setrata, puramente, de introduzirconforto. Trata-se de ver que, quei-mar petrleo para transportar umapessoa de 60 quilos numa lataria de700 quilos, que no anda, um er-ro grave. repugnante ver a cidadecongestionada de carros que noandam. A questo no faz-los an-dar, ver que isso no tem sada, o

    transporte individual uma bobagem.

    CC: Ento uma bobagem construir t-neis e viadutos?PMR: Vai se aprimorando a mquina doveneno. E j no importa que o carro noande, porque voc v todo mundo l den-tro falando no celular, usando o laptop...

    CC: Quando v, j que os vidros esto pretos.PMR: Sim, quando v, porque as pessoasesto escondidas. um pouco a rota doabsurdo. Acho at que isso no assuntopra mim, mas para Borges, Cortzar ouRabelais. Quando ouo, no rdio, que so157,8 quilmetros de congestionamento,penso na linguagem de descalabros do Ra-belais. O absurdo pode ir a dimenses dodesastre. As pessoas fingem que no soantropfagas, mas so. Est todo mundo

    UMA CIDADE

    DEGENERADAENTREVISTAO arquiteto Paulo Mendes daRocha ergue e destri a paisagem urbana

    Otransporteindividual

    mquinade veneno

    CARLO

    SN

    O

    GU

    EIRA/TRIBUN

    A

    DESAN

    TOS/AE

  • 8/12/2019 Paulo Mendes Da Rocha_cidade Degenerada

    2/3CARTACAPITAL 15 DE AGOSTO DE 2007 65

    caando feras. Desenvolveu-seuma mentalidade extremamenteagressiva nas pessoas, que, entre-tanto, acham que se comportambem. Ricos ou pobres, parece queest um querendo matar o outro.

    CC: O senhor sempre diz que noexiste espao privado, que todo es-pao pblico. Esse esprito agres-sivo est ligado inverso dessa l-gica, tentativa de transformar acidade em guetos privados?PMR: Voc j viu isso? Ser que merepito muito? Por isso fico preo-cupado em dar entrevistas. Mas,sim, no h espao privado. A ar-quitetura constri espaos paraamparar a imprevisibilidade da vi-da, no para determinar compor-tamentos. A cidade o lugar da li-berdade. Voc no pode constran-ger as pessoas no espao pblicocom dificuldades. Caso contrrio,elas desenvolvem a conscinciade espao no espao imaginadodentro de si, num individualismo atroz.

    CC: O que so os prdios que oferecem tudo,de piscina de 25 metros a churrasqueira, quevendem uma idia de exclusividade?PMR: o desvio do conceito de urbanis-mo. Mas, como voc v, a prpria piscinaser pblica, no de um morador s. Voufalar uma coisa indevida. Imagine umame: quando o filho dela vai para a escola,ele pblico. A sade uma dimenso p-blica. O conhecimento uma dimensoessencial da nossaprivacidadeenquanto p-blico. Masestou falan-do de coi-sas para fi-lsofo. Dei-xe exempli-ficar isso naarquitetura. Acasa, enquanto

    coisa, da cidade, no de fulano ou beltrano. Elase transforma conformequem compra, vende,aluga. Imagine a crnicado Copan. Quanta gentemorou numa casa proje-tada pelo Niemeyer? Oresultado do nosso traba-lho eminentemente p-blico. A gua que sai da

    torneira pblica e est sob responsabili-dade de gente que no conhecemos. O pi-lar do prdio pblico: se o morador tiraa viga, ele cai. Apesar disso, estamos alie-nando a conscincia sobre nosso estadono universo. Por isso, insisto, as decisessobre as construes, e nesse sentido aarquitetura, so aes polticas.

    CC: Os arquitetos tambm perderam a di-menso do pblico?PMR: Tenho a obrigao de dizer queno. Temos de ter confiana no futuro.

    CC: Seu colega Jorge Wilheim perguntou,

    num texto, quantos arquitetos di-riam no para um projeto de edif-cio neoclssico, to em voga emSo Paulo. Quantos diriam?PMR: Todos diriam no. Mas,conformistas, vo e fazem. Penseno nazismo e no fascismo. Noaderiram todos? O mercado umhorizonte falso e, se ficar no co-mando do processo, s produzirasneiras como a dos neoclssicos.Isso um engodo de quem preci-sa continuar com o negcio.

    CC:A classe mdia passou a gos-tar disso de fato ou, simplesmente, notem mais gosto?PMR:A classe mdia alta a classe maisbaixa da populao. Ela est to desespe-rada que corre atrs de qualquer coisaque se diga. Como ela totalmente con-formista desfrutante, a propaganda diz oque ela deve dizer e ela diz. O mtodo deproduzir a decadncia para depois corri-gir, a idia do quanto pior melhor, ela-borado pela classe dominante. A vocchega a um limite em que s a guilhoti-na resolve. Ningum agenta meia de se-da, renda de florzinha, cabeleira posti-a... Eles mesmos se matam. Mas vamoscorrigir as palavras. A classe dominante,no Brasil, a mais pobre. A exignciamaior de uma cidade como So Paulo habitao, transporte e sade.

    CC: Qual a sua opinio sobre o prdio daDaslu?PMR: No acho nada, no tenho coragemde achar. como se voc me mandasseprovar uma beberragem horrvel e meperguntasse o que acho. como se eufosse um expert em usque e voc medesse uma garrafa com uma bebida azule me dissesse que o novo usque feitonas Ilhas Fuji. Se me perguntasse se euqueria provar, eu diria: Deus me livre!

    CC: Esse prdio simboliza o qu?PMR: No sei o que dizer, mas tenho a im-presso de que uma espcie de maso-quismo. fazer o mais horrvel possvel,como a dizer: J que esto dizendo quesou horrvel, vocs vo ver aonde vou che-gar. uma espcie de modo de escarne-cer e provar que tem razo. Se voc quiserfalar do ponto de vista da ternura huma-na, voc tem de se preocupar com essagente. Eles esto se ferrando. Moram lon-ge, precisam de seis vagas de garagem. Os

    Notenho nem

    coragemde falar sobrea Daslu

    Os ricos

    abandonarama cidade,com medo daliberdade

    O

    LG

    A

    VLAH

    O

    U

    KARIME

    XAVIER

  • 8/12/2019 Paulo Mendes Da Rocha_cidade Degenerada

    3/366 CARTACAPITAL 15 DE AGOSTO DE 2007

    Plural

    panfletos entregues na rua e os annciosde imveis nos jornais de domingo so umdescalabro de floresta de eucalipto abati-da para fazer papel para imprimir asneira.

    CC: E o negcio agora terrao gourmet,com churrasqueira.PMR: Se voc faz um edifcio de 25 anda-res com uma churrasqueira em cada ter-rao, a imagem que me ocorre a do bifeque se vende em So Paulo, num cilindro,fumegante e muito cheiroso. O prdio in-teiro vira isso, como o nome? Churras-co grego? de um ridculo supremo.

    CC: A arquitetura se encolheu diante dasempreiteiras?PMR:A questo que no se inibe. En-quanto h gente construindochurrasqueira na varanda, discu-tindo esquerda e direita de mo-do idiota, h tambm prdios in-teressantssimos. O conheci-mento humano no precisa servisto como algo condenado aodesastre, ele pode ser virtuoso. Aarquitetura no ser eterna, mastambm no precisa ser to ef-mera. A transformao da cida-de, h pouco tempo horizontal,numa cidade de edifcios, noprecisaria ser trgica. A vertica-lizao, a despeito da imagem dafloresta de cimento, uma virtu-de da tcnica, uma racionaliza-o do desejo humano de morarna cidade. Seria uma cidade ab-surdamente extensiva se 20 mi-lhes morassem em casinhas. Acidade anterior era assim porqueno havia 20 milhes.

    CC: Como acomodar os que viro?PMR: O hbitat humano contem-porneo a cidade, temos a obrigao deenfrentar isso com energia. A fundamentalquesto contempornea o deslocamento.E no algo particular do Brasil. O mundocolonizador est pagando as dvidas do de-sastre que produziu nos pases colonizados.

    As capitais tm problemas com os habitan-tes de antigas colnias. As populaes que-rem se dirigir aos centros de maior flores-cimento dos recursos que, na maioria doscasos, foram eles mesmos que produziram.Os prdios que vemos desta janela foramconstrudos pelos baianos, por operriosdescalos, no tempo em que se carregavaconcreto com carrinho de mo.

    CC: E quem pagou para erguer estes pr-dios no centro fugiu daqui...PMR: a contradio de que te falei. Aclasse chamada alta produz o prprio de-sastre. Ela abandonou a cidade e a popu-lao pobre ocupou-a. Voc abandonauma cidade e funda outra, como Alpha-ville, porque teme a liberdade. A aveni-da So Lus, feita de habitaes de altopadro, no durou 15 anos. Mas talvezse alimente a desvalorizao para, umdia, criar-se um plano de revitalizao,favorecendo, de novo, a especulao. Es-sa no uma boa poltica. H grandesvazios na cidade. Como revitalizar o cen-tro histrico? Transformando botequimem centro cultural? O botequim era umcentro cultural.

    CC:O senhor refez o prdioda Pinacoteca e, ao mesmotempo, tem uma viso pes-simista em relao revi-talizao do centro a par-tir da cultura. Por qu?PMR: Eu no quero di-zer que o que se tem fei-to seja ruim. Mas recu-so a idia do panegricoda cultura sem reco-

    nhecer que a cidade, na totalidade, asuprema manifestao da cultura. A ci-dade o lugar da reproduo do conhe-cimento na fala diria dos homens queprecisam conviver. Se voc faz o paneg-rico do edifcio especificamente cultu-ral, primeiro voc nega que, antes, alihavia cultura. A antiga sede do Banco doBrasil, em So Paulo, um edifcio no-tvel, feito para abrigar um banco. Masfica l dentro um auditrio pssimo. Eufico malvisto, porque vo dizer: Como?O centro cultural uma maravilha. Maso centro histrico tem uma beleza quevive sendo negada.

    CC: Permanecer neste prdio uma reao?PMR: No, estou aqui espontaneamente.Quando entrei na faculdade, tinha comoum dos meus ideais andar por aqui, ver aspessoas que se cumprimentavam tirandoo chapu no Viaduto do Ch. Meu idealnunca foi comprar uma casinha velha nosei onde e montar meu estdio como seeu fosse um artista do sculo XIX.

    CC:Como o senhor vem para o escritrio?PMR:A p ou de txi. O trfego tornou-seto problemtico que melhor um pro-fissional dirigindo o carro do que eu. Oautomvel desenvolve 150 quilmetrospor hora e anda a 5. Mas as pessoas que-rem andar de carro. A classe mdia noquer freqentar a liberdade.

    CC:Sem se dar conta disso.PMR: Sabe que, sem fundamentolgico, acho que eles tm absolutaconscincia e esto desesperados? o imobilismo do aflito, como onaufrgio do Titanic: a orquestrano parou de tocar. Faz de contaque esta nossa conversa se degene-rou, a ponto de podermos dizer oque estamos dizendo. Se voc ima-ginar, por hiptese, uma pessoa quetenha um razovel conhecimentoda literatura universal, teria ou noconscincia do que estamos falan-

    do? Teria. Isso quer dizer que essa classeno l, ou seja, ela j est degenerada.

    CC:Um certo pnico generalizado faz partedessa degenerao?PMR:Acho que essa conscincia do pr-prio desastre que forma estados patolgi-cos como o pnico. So pessoas que j norespeitam o outro, esto num estado dedelrio. Voc est me deixando muito psi-clogo. Depois v se organiza isso.

    CC:Organizo. Como o senhor conversa comos clientes dessa classe que o senhor definecomo degenerada?PMR: Existe uma dimenso grande de nega-o no que fazemos. Enquanto linguagem, aarquitetura um discurso. Diante do que fa-lamos aqui, temos de admitir que esta mes-ma pessoa que apontou os erros tem de neg-los. A arquitetura parte muito do que no fa-zer. Como produzir algo belo sem ser contra-ditrio em relao ao que vejo? E at ao quedigo? A cidade , por excelncia, o lugar dodiscurso do homem, o lugar onde as coisascontinuam, como experincia e como vida.

    Grelhasno terraome lembramchurrasco

    grego