22

PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

  • Upload
    lehanh

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-
Page 2: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

PARTE I

Page 3: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

CAPíTulo 1

Quando o meu marido, Michael, morreu pela primeira vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman

com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-deja de cupcakes nas minhas mãos trementes.

Trementes porque eu sofrera uma sobrecarga de açúcar — afinal de contas, alguém tinha de vestir a pele de herói e oferecer--se para provar os cupcakes — e não porque estava preocupada com deixar cair a bandeja, mesmo apesar de aqueles não serem uns Betty Crockers normalíssimos. Estas obras-primas eram de chocolate derretido e pimenta-de-caiena, cada uma com um nome escrito em folha de ouro comestível.

Cupcakes decadentes como cartões de lugar para as mesas redondas espalhadas pelo salão de festas: era o tipo de porme-nor que me mantinha no ativo como organizadora de festas. Esta noite, angariaríamos meio milhão para a Companhia de Ópera de Washington, DC. Talvez mais, se os empregados não parassem de encher os copos de vinho e espumante como os tinha instruído.

— Julia!Pousei com cuidado a bandeja e, de seguida, dei meia-volta

e vi o rosto agitado do florista-assistente que chamara o meu nome.

Page 4: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

10

— O fornecedor quer baixar os centros de mesa — chora-mingou ele, praticamente a transpirar agonia pelos poros. Não podia censurá-lo. Ninguém sabia, mas a sua patroa, a florista- -chefe, uma mulherzinha rude de buço bem forte, também me metia medo.

— Ninguém toca nas flores — disse eu, a tentar soar como o Clint Eastwood soaria, caso alguma vez se envolvesse numa briga por causa do comprimento adequado de flores.

O meu telemóvel tocou, e peguei nele, olhando distraida-mente para o identificador de chamadas. Era o meu marido, Michael. Enviara-me uma mensagem mais cedo a informar que ia fazer uma viagem de negócios e faltaria ao jantar de aniversário que a minha melhor amiga estava a organizar para mim no final do mês. Se Michael tinha uma amante de longa data, poderia ser mais fácil fazer concorrência, mas a empresa dele dançava e seduzia-o na sua cabeça mais tenta-doramente do que qualquer modelo estrategicamente oleada da Victoria’s Secret. Há muito tempo que me tinha resignado ao facto de que o trabalho ocupara o meu lugar como o ver-dadeiro amor de Michael. Ignorei a chamada e deixei cair o telemóvel no bolso.

Mais tarde, claro, aperceber-me-ia de que não era Michael a ligar-me, mas sim a sua assistente pessoal, Kate. Nessa altura, o meu marido levantara-se da cabeceira da mesa na sala da direção da sua empresa, abrira a boca para falar e caíra no chão alcatifado. Tudo isso no mesmo tempo que levei a atravessar o salão de festas a poucos quilómetros de distância.

O assistente de florista foi-se embora a correr e foi instan-taneamente substituído por um segurança de cabelo branco e com aspeto de avô da Little Jewelry Box.

— Menina? — disse ele educadamente.Agradeci em silêncio aos meus tratamentos de oxigénio

faciais e às minhas madeixas caramelo pela decisão dele de não me tratar por senhora. Estava quase a fazer 35 anos, o que significava que não seria capaz de me esconder para

Page 5: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

11

sempre das mãos manchadas da idade típicas da senhoridade, mas esquivar-me-ia valentemente das suas garras ossudas enquanto pudesse.

— Onde quer que ponha isto? — perguntou o guarda, a apon-tar para cerca de uma dúzia de caixas retangulares que trazia num tabuleiro envolvido em veludo preto. As caixas estavam embru-lhadas num tom prateado que combinava exatamente com a pis-tola acomodada no seu quadril amplo.

— Na mesa de exposição mesmo à entrada, por favor — instruí-o. — As pessoas precisam de vê-las assim que entram. — Licitariam dezenas de milhares de dólares para ganharem uma bugiganga-surpresa, nem que fosse para mostrar a todos que conseguiam. O guarda era provavelmente um agente da polícia reformado, a tentar ganhar dinheiro para complemen-tar a pensão, e eu sabia que lhe tinham dado a ordem de man-ter as caixas debaixo de olho toda a noite.

— Deseja tomar alguma coisa? Café? — ofereci.— É melhor não — disse ele com um sorriso torcido. O pobre

homem provavelmente não bebia nada porque a joalharia nem sequer o autorizava a fazer uma pausa para ir à casa de banho. Tomei nota mentalmente para não me esquecer de lhe arranjar umas quantas refeições para ele levar para casa.

O meu BlackBerry vibrou quando comecei a dispor os cupcakes na mesa principal e debater mentalmente o problema incómodo do guru de videojogos que parecia e se comportava como um adolescente de 13 anos que se esquecera de tomar a dose devida de Ritalina. Decidi que o ensanduicharia com uma senadora dos EUA e um coproprietário da equipa de basquetebol profissional Washington Blazes. Ambos eram altos; podiam falar por cima da cabeça do técnico dos jogos.

Nesse instante, uma dúzia de executivos saltava das suas cadei-ras de pele para se apinhar em redor do corpo mole de Michael. Todos gritavam entre si para chamar o 112 — esta multidão estava habituada a dar ordens, não a cumpri-las — e exigiam que alguém fizesse reanimação cardiopulmonar.

Page 6: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

12

Enquanto eu, no meio do salão de festas, alisava um vinco num guardanapo de linho branco e inalava a doce fragrância de lírios, um representante de semblante imberbe da Companhia de Ópera de Washington, DC dava-me as piores notícias que poderia imaginar.

— A Melanie está com a garganta inflamada — anunciou ele sobriamente.

Deixei-me cair numa cadeira e suspirei. Sacudi os pés para descalçar os sapatos. Perfeito. Melanie era a célebre soprano que, segundo o programa, cantaria um excerto de Orfeo ed Euridice esta noite. Se os copos de vinho cheios não arrancas-sem os livros de cheques dos bolsos dos convidados, a voz lírica e soberba de Melanie certamente arrancaria. Eu precisava desesperadamente de Melanie esta noite.

— Onde é que ela está? — inquiri.— Num quarto no Hotel Mayflower — disse o represen-

tante da Ópera.— Que treta! Quem é que lhe reservou o quarto?— Hum… eu — respondeu ele. — Há prob…— Arranje-lhe uma suíte — interrompi. — A maior que

tiverem.— Porquê? — perguntou, confuso, a torcer o nariz arrebi-

tado. — Como é que isso a ajudará a ficar melhor?— Como é que disse que se chamava? — perguntei.— Patrick Riley.Obviamente; só faltava porem-lhe um trevo de quatro

folhas na lapela, e ele poderia ser o rapaz do cartaz Bem‑vindos à Irlanda!

— E, Patrick, há quanto tempo trabalha na companhia de ópera? — perguntei com delicadeza.

— Há três semanas — confessou.— Confie em mim. — Melanie necessitava de drama do

mesmo modo que o resto das pessoas necessitavam de água. Se a hidratasse com uma fita agora, Melanie poderia recuperar milagrosamente e desistir de fazer uma fita logo à noite.

Page 7: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

13

— Envie-lhe um humificador — continuei a falar enquanto Patrick sacava de um bloco de notas e escrevinhava, diligente como um repórter inexperiente a perseguir a sua primeira grande história. — Não, dois! Leve-lhe pastilhas para a garganta, chá de camomila com mel, tudo de que se lembrar. Compre uma farmácia inteira. Se a Melanie desejar uma massagem lin-fática, peça à receção do hotel que lhe providencie uma. Tome. — Saquei do meu BlackBerry e deslizei até ao nome do meu médico privado. — Ligue ao Dr. Rushman. Se ele não puder deslocar-se até lá, peça a alguém que o vá buscar.

Tinha a certeza de que o Dr. Rushman estaria disponí-vel. Largaria o que estivesse a fazer se soubesse que eu pre-cisava dele. Era o médico pessoal da equipa de basquetebol Washington Blazes.

O meu marido Michael era outro dos coproprietários da equipa.

— Percebido — disse Patrick. Baixou a cabeça, olhou para os meus pés, corou e saiu rapidamente. Deve ter sido o decote dos sapatos; costuma ter esse efeito nos homens.

Acabei de pôr o último cupcake antes de verificar as minhas mensagens. Quando li os e-mails frenéticos de Kate, que tentava descobrir se Michael recebera recentemente algum diagnós- tico de epilepsia ou diabetes que nós escondêramos, já tudo tinha acabado.

Enquanto executivos com fatos Armani se apinhavam em redor do meu marido, Bob, o responsável do correio, viu a cena e atravessou o corredor a correr, espalhando envelopes brancos como confetes pelo caminho. Chegou à secretária da rececio-nista e encontrou o desfibrilhador portátil que a empresa do meu marido adquirira seis meses antes. Depois, voltou a correr, ras-gou a camisa de Michael, pôs o ouvido junto ao peito dele para confirmar que o coração do meu marido parara de bater e apli-cou os adesivos no peito de Michael.

— A analisar… — disse a voz eletrónica da máquina. — Aplicação de choque recomendada.

Page 8: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

14

A ópera italiana Orfeo ed Euridice é uma história de amor. Nela, Eurídice morre e o seu marido desgostoso viaja até ao submundo para tentar trazê-la de volta à vida. Melanie, a soprano, estava pro-gramada para cantar a ária desoladora de quando Eurídice está suspensa entre os mundos gémeos da morte e da vida.

Talvez não devesse ter-me surpreendido que a ária de Eurídice tocasse na minha cabeça enquanto Bob, o tipo do cor-reio, se debruçava sobre o corpo do meu marido, aplicando cho-ques no coração de Michael até que, finalmente, começou a bater de novo. É que, às vezes, sinto-me como se todos os grandes momentos da minha vida coincidissem com as belas histórias, desgastadas pelo tempo, de ópera.

Quatro minutos e oito segundos. Foi esse o tempo que o meu marido, Michael Dunhill, esteve morto.

Quatro minutos e oito segundos. Foi esse o tempo preciso para o meu marido se tornar um autêntico estranho para mim.

Page 9: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

15

CAPíTulo 2

Eu e Michael provavelmente não nos teríamos apaixo-nado se não fosse por um homem violento, que tinha acabado de ser libertado da prisão, por uma menina

numa cadeira de rodas e pelo facto de que Michael estava cons-tantemente, quase selvaticamente, faminto.

Em adolescente, Michael conseguia devorar 3 litros de gelado como entrada antes do jantar, e ainda assim as calças de ganga Lee de corte slim ficavam-lhe folgadas à volta da cintura. Conheço um monte de mulheres em DC que trocariam as casas de verão por uma oportunidade de deleitarem-se com este metabolismo espetacular.

Eu sempre soube quem Michael era, claro. Na pequena cidade da Virgínia Ocidental onde ambos crescemos, era impos-sível alguém ser um estranho. A propósito, eu e o meu marido não somos primos em primeiro grau, e ambos temos os den-tes todos. Já ouvi todas as piadas sobre a Virgínia Ocidental até ao momento, mas ainda me desato a rir como uma maluca, mais do que ninguém, com elas. Se não o fizer, as pessoas pen-sam que sou mal-humorada e mal-educada, mesmo se estiver coberta da cabeça aos pés em Chanel e tiver as sobrancelhas arranjadas profissionalmente. Que agora é o que faço, de três em três semanas, embora não acredite que estou a gastar tanto dinheiro para domar e destruir uns pelos como a minha mãe

Page 10: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

16

costumava gastar em permanentes e desbastes num ano inteiro na Brenda’s Cut and Curl.

Nessa altura éramos Mike e Julie — agora estamos evoluídos ao nível dos nomes, bem como em tudo o resto — e, apesar de os nossos caminhos se cruzarem quase diariamente, nunca falámos realmente de verdade um com o outro até àquela tarde de prima-vera. Eu tinha 16 anos e estava a caminho, pelos carris do comboio, do meu trabalho depois da escola como babysitter da doce Becky Hendrickson, que ficara paralisada da cintura para baixo num aci-dente de carro uns anos antes. Estava um dia ameno e soalheiro, o tipo de tarde que chega como um presente-surpresa após as som-bras escuras e os pés gelados do inverno. Caminhava rapidamente, balançando um saco plástico na mão direita, a desejar que os 2,5 litros de gelado de morango e chocolate não derretessem antes de chegar a casa de Becky. Aquela miúda de 11 anos gostava de gelado mais do que alguém que eu conhecesse.

— Qual é a pressa, querida?O homem pareceu materializar-se do nada, como um fan-

tasma. Num minuto estava a olhar para os caminhos de madeira paralelos que se estendiam à minha frente; no outro fitava um par de botas de trabalho amarelas plantadas aos meus pés. Levantei o olhar e vi o rosto do homem.

Estava errada; afinal de contas, havia um estranho na minha vilazinha.

Parecia ter 20 e poucos anos. As mangas compridas da sua camisa estavam arregaçadas de modo a revelar bíceps fortes, e o seu cabelo loiro tinha um corte tão curto que se podia ver o escalpe branco a brilhar. Haveria raparigas que o considera-riam bonito, poderiam até interpretar erradamente a sua frieza no rosto como força, se o tivessem conhecido no meio seguro de uma festa ou de um bar apinhado de gente.

— A escola já acabou? — perguntou o homem, enfiando o polegar numa presilha do cinto nas calças de ganga.

— A-hã. — Anuí, mas não me mexi. Por instinto, sabia que, se tentasse circundá-lo, ele atacaria com a rapidez de uma cobra.

Page 11: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

17

— Parece-me um pouco cedo para sair da escola — disse ele, com um piscar de olho. — Tens a certeza de que não estás a baldar-te às aulas?

As nossas vozes estavam a ter uma conversa; os nossos olhos e corpos, outra completamente diferente. A adrenalina corria-me pelas veias enquanto ponderava e descartava planos: Não fujas, que ele apanha‑te. Não grites, que ele ataca. Não lutes, que não lhe ganhas. Algo no modo como os olhos dele me avaliavam disse-me que ele sabia o que me ia no pensamento. E estava a gostar de ver as minhas opções de fuga a reduzirem-se.

— Não me estou a baldar — retorqui. Os meus sentidos ficaram em alerta. A passos de distância, um pequeno animal rastejou pelos arbustos e pela erva alta que ladeavam os cami-nhos de ferro. O saco plástico que eu tinha na mão parou lenta-mente de balançar, como um pêndulo a desacelerar. Lutei contra o impulso de olhar em volta para ver se se aproximava alguém; não podia virar as costas a este homem nem por um instante.

— Sabes, quando andava na Wilson, poderia ter jurado que saía-mos às 2.30 — disse o homem. Retirou o polegar da presilha do cinto das calças e deu um passo na minha direção. Reuni todas as minhas forças para não reagir ao seu movimento com um passo para trás.

— São quase 3 horas — retorqui, obrigando as palavras a sair da garganta, que ficara apertada e seca. Aquela cicatriz na têmpora direita do homem, aliada à sua voz, que era estranha-mente esganiçada, revelou subitamente a sua identidade. Jerry Knowles, o irmão mais velho do meu colega de turma John, que tinha a mesma voz de desenho animado. Jerry passara os últimos quatro anos na prisão estatal por roubar um carro e brigar com os agentes da polícia que o prenderam. Foi preciso uma pancada de cassetete na têmpora para dominar por fim Jerry, que estava a levar a melhor aos dois polícias. Pelo menos era o que os miúdos na escola diziam.

— Então não estás a baldar-te às aulas — provocou ele. Deu mais um passo em frente. — Bem me parecia que não eras uma menina malcomportada.

Page 12: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

18

— Te… tenho de ir trabalhar — retorqui. O meu coração batia com tanta força que parecia ir explodir para fora do peito.

Outro passo lento e deliberado.Ele estava tão perto agora; eu conseguia ver que a cicatriz

dele tinha a forma de estrela e estava ligeiramente levantada, como se não tivesse levado pontos para juntar a pele rasgada numa linha direita.

— Estão à minha espera — murmurei em desespero. — Hão de vir à minha procura.

Foi quando ele deu um último passo. Estendeu um dedo para me tocar na face. Não me conseguia mexer, não conseguia falar, nem sequer conseguia respirar. Senti o seu dedo quente e áspero na pele. Moveu-se mais para baixo e percorreu-me a clavícula.

— Engraçado, também não pareces ser uma miúda de liceu — disse ele ao mergulhar o dedo no meu decote. Jerry estava farto de brincar comigo. Agora revelaria a verdadeira razão pela qual me parara. A adrenalina do meu corpo tomou as rédeas, a gritar que eu tinha de fugir agora. Dei meia-volta para correr, mas Jerry agarrou-me por trás antes de eu percorrer 5 metros.

— Alguém está com pressa — ironizou ele e riu-se, esmagando-me os braços com as suas grandes mãos ao mesmo tempo que esfregava o corpo no meu. Senti o seu hálito quente na face, que tinha um cheiro azedo. As minhas pernas perde-ram o vigor com o medo.

— Vamos dar um pequeno passeio — sugeriu Jerry. De alguma maneira aquela voz aguda e esganiçada era mais assustadora do que um berro. Obrigou-me a sair do caminho, levando-me para um aglomerado de arbustos.

— Baixa-te — pediu Jerry, a empurrar-me bruscamente para o chão. Inclinou-se sobre mim, numa posição de flexão, encurralando-me entre os antebraços. Estava tão silencioso que as expirações irregulares de Jerry soavam como explosões nos meus ouvidos. Estava vagamente consciente de uma pedra a magoar--me a omoplata, mas a minha mente nem sequer registou a dor.

— Levanta a camisa — ordenou ele.

Page 13: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

1�

Devo obedecer‑lhe ou desafiá­‑lo? O que seria pior?Faz o que ele te manda, avisou o meu instinto. Não o enfureças.Subi a blusa, mas apenas uns centímetros. A minha mão

paralisou-se, e eu não era capaz de levantá-la mais. Porque tinha hoje de estar tanto calor?, perguntei-me desesperada. Porque é que vesti esta camisa fina em vez de uma camisola grossa e um casaco?

— Por favor — murmurei.— Por favor o quê? — perguntou Jerry.— Por favor, não — supliquei.Jerry inclinou-se mais perto de mim. O seu olhar monótono

penetrou no meu.— Levanta a porcaria da camisa — disse ele, pulverizando

partículas de cuspo nas minhas faces a cada palavra.Depois ouvi algo: o estalar de um galho pelo sapato de alguém.— Sai de cima dela!Apercebi-me de um vulto no lado esquerdo, e um tipo saltou

para as costas de Jerry e esmurrou-o na cabeça. Jerry soltou-me e rodopiou para trás, tentando libertar-se dele.

— Foge, Julie!Era Mike Dunhill, o rapaz magricela da minha turma cuja

mão se levantava sempre antes de os professores acabarem de fazer perguntas.

Levantei-me num salto e comecei a correr, para ir buscar ajuda, mas um som desagradável fez-me virar. Mike já estava no chão, e Jerry pontapeava-o. Jerry devia ter o dobro do peso de Mike e estava furioso. Mike ia ficar magoado, bem magoado, a não ser que eu interviesse agora. Só me lembrei de que ainda tinha o saco do gelado na mão quando o tirei de dentro e atirei quase 2 litros de gelado de morango à cabeça de Jerry.

Se o gelado ainda estivesse congelado, provavelmente não teria detido Jerry. Ele era obviamente um homem que aguentava uma pancada. Contudo, aquele dia inesperadamente quente reve-lou ser uma bênção em vários aspetos. A tampa saiu, e o gelado cor de rosa amolecido espalhou-se completamente em cima da cara e dos olhos de Jerry. Ele deixou-se estar, temporariamente

Page 14: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

20

cego, com o pé levantado a preparar-se para outro pontapé. Era a oportunidade de que Mike precisava. Desencolheu-se e agarrou no tornozelo de Jerry, desequilibrando-o. Jerry tombou para trás, e Mike levantou-se, como se não estivesse magoado sequer, e lan- çou a mão de lado para atingir Jerry na garganta com força.

— Foge! — gritou Jerry novamente, e desta vez obedeci. Juntos, corremos outros 5 metros pelos caminhos, virámos à esquerda para o trilho de terra batida que levava ao bairro de Becky e serpenteámos pelas ruas durante quase 400 metros, até chegarmos à sua casinha de tijolo de um só andar. Carreguei na campainha vezes sem conta, olhando de soslaio pelas costas, pois um certo Jerry podia aparecer do nada outra vez.

— Calma lá! Fogo!A porta abriu-se agonizantemente devagar. Eu e Mike entrá-

mos de rompante, ofegantes.— O que se passa? — perguntou a mãe de Becky quando

fechei a porta com força e a tranquei duas vezes.— Está tudo bem — tranquilizou Mike. Debruçou-se para a

frente e pousou as mãos nos joelhos enquanto inspirava gran-des quantidades de ar. — Ele não nos seguiu… Já verifiquei.

— Quem? — perguntou a mãe de Becky, olhando ora para Mike ora para mim. — Estão a jogar algum jogo?

Dos meus olhos saltaram lágrimas ao lembrar-me do sorriso frio de Jerry e do seu dedo insistente e preguiçoso a marcar um caminho quente na minha pele. De súbito senti a barriga às vol-tas e quase vomitei.

Então Mike salvou-me uma segunda vez.— De todos os livros que li sobre autodefesa — disse ele,

a sorrir para mim —, nenhum mencionava o temível contra--ataque do gelado. É preciso ser-se cinturão negro?

Fitámo-nos um ao outro por um segundo e começámos a rir--nos. Mike agarrou-se à barriga, escorreram-me lágrimas pelas faces, e encostámo-nos à parede, incapazes de falar.

— Estou a ver que tinha de lá estar para ver. — A mãe de Becky encolheu os ombros, indo-se embora. O que nos fez rir

Page 15: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

21

ainda mais, gritando, encolhendo-nos e ofegando. E quando por fim parámos de nos rir, enfiei a mão no saco e tirei o pacote de gelado de chocolate meio derretido que de alguma maneira guar-dara este tempo todo.

— Tens fome? — perguntei a Mike.Um sorriso demorado abriu-se no rosto dele.— Estou esfomeado.

***

Fingi estar bem e, mesmo apesar de estar tão nervosa que a minha pele parecia elétrica, devo ter-me saído muito bem, por-que convenci a mãe de Becky de que não havia problema de ela sair para o turno da tarde na farmácia. O xerife vinha a cami-nho para registar o meu depoimento, e Mike ofereceu-se para ficar a fazer companhia, caso pudesse responder a alguma per-gunta. Senti, contudo, que a verdadeira razão pela qual Mike não se tinha ido embora era que ele sabia que eu morria de medo de que Jerry aparecesse de alguma maneira de trás da cor- tina do chuveiro assim que ficasse sozinha.

Eu estava a olhar pela janela enquanto Becky tagarelava sobre o novo mistério de Nancy Drew que espreitara na biblioteca, e não vi Mike levar as tigelas do gelado para a cozinha. Quando ele de súbito as deixou cair no lava-loiça, virei-me rapidamente, com o coração quase em convulsões de pânico.

— Desculpa — disse ele, ainda antes de olhar para o meu rosto branco. Anuí e engoli em seco.

— Então é assim. — Inclinou-se para trás contra o balcão da cozinha e cruzou os braços casualmente. — Todos aqueles mistérios que se cruzam no caminho da Nancy? Ela tem, quê, 17 anos? Não acham um bocado suspeito que ela já tenha resol-vido uma centena de casos? Não devia andar alguém a investi-gar a Nancy?

Sorri forçadamente, muito embora os meus lábios estives-sem frios e rígidos.

Page 16: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

22

— Estás a acusar a Nancy de ser exagerada? Cuidado, ela é a heroína da Becky, e também já foi a minha.

Mike ergueu as mãos com as palmas viradas para mim.— Só estou a dizer que alguém parece estar a precisar de

um pouco mais de atenção do que a miúda de 17 anos. Claro, o papá comprou-lhe um carrinho todo ousado, mas pelos vistos não se importa que ela tenha abandonado a escola.

Dei-lhe um toque com o ombro e consegui sorrir. Um pouco mais tarde, quando Becky bebia um copo de água e acidental-mente entornou umas gotas na mesa, vi Mike a aproximar-se, limpar a água com a manga casualmente e piscar-lhe o olho sem vacilar na sua imitação odiosa do nosso professor de Química, que parecia detestar não só adolescentes como tam-bém química e vilas (provavelmente não era grande ideia dar a um homem branco e solitário com problemas de raiva acesso livre a elementos combustíveis, mas a verdade é que não havia assim tantos professores para escolher).

Até então, tudo o que eu sabia sobre Mike surgiu dos sussur-ros que eu tinha ouvido. A mãe acordou e saiu, dissera Brenda a um cliente através dos ganchos que segurava no canto da boca enquanto moldava um apanhado no cabelo. Claro, eu também teria feito o mesmo, se fosse casada com aquele FDP. Mas só de pensar em abandonar os meus filh… Nesse instante, Brenda apercebera-se do meu olhar arregalado e rapidamente come-çara a falar sobre o novo labrador bebé amarelo que adotara há pouco tempo.

Era a bênção e a maldição de uma vila; a maioria das pessoas conhecia-nos, mas todos pensavam que sabiam tudo sobre nós. Porém, eu não tinha percebido nada sobre Mike.

Mais tarde nesse dia, ao acompanhar-me da casa de Becky até à minha, ele foi algo indiferente, mas o seu olhar permaneceu inquieto, movendo-se de um lado para o outro de modo mais vigilante do que qualquer agente de serviços secretos. Algumas vezes chegou mesmo a virar-se para olhar para trás. Percebi que ninguém jamais me abordaria pela calada com ele por perto e,

Page 17: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

23

pelo que pareceu ser a primeira vez em muito, muito tempo, respirei fundo e senti as mãos cerradas descontraírem-se late-ralmente ao meu corpo.

— A Becky teve um acidente de carro, não foi? — perguntou Mike ao virarmos a esquina para a minha rua. Estava a anoi-tecer, mas o dia ainda retinha um pouco do seu calor inicial, e alguns açafrões-amarelos floresciam como pequenos sinais de esperança nos pátios por onde passávamos. — Lembro-me de ouvir falar disso.

— Sim — confirmei. — A mãe dela estava a conduzir, a estrada estava gelada, e o carro derrapou contra uma árvore. Não ia muito depressa nem nada. Foi apenas um daqueles aca-sos horríveis.

Chegámos a minha casa, e Mike acompanhou-me a subir os degraus de cimento da entrada. A maioria das casas na nossa vila era pequena mas arrumada, com pátios agradáveis e cer-cas feitas de canteiros de flores coloridas e sebes aparadas. A minha também costumava ser assim, mas agora os algero-zes ainda estavam entupidos com folhas de outono, e uma por-tada de janela soltara-se e estava pendurada meio torta, como um convidado para uma festa a tentar esconder o facto de ter bebido demasiados martinis.

Parei no degrau de cima. Detestava ser mal-educada, mas não podia arriscar convidar Mike a entrar. Nem mesmo depois de tudo o que tínhamos passado juntos. Mike olhou para a porta da frente, depois para mim, mas não disse nada. Talvez ele já soubesse; a maioria das pessoas já sabia.

— A Becky vai voltar a andar? — perguntou Mike, sentando--se casualmente, a inclinar-se para trás sobre os cotovelos e a esticar as pernas, como se fosse completamente natural conti-nuar a conversa aqui fora em vez de dentro de casa.

— Ela pensa que vai — retorqui ao sentar-me ao lado dele. — Mas não sei o que os médicos dizem.

— Meu Deus. — Mike soltou um suspiro longo e sibilante, depois fez uma careta e agarrou-se ao lado do corpo, apesar das

Page 18: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

24

alegações de que as suas costelas não doíam. — Ficar numa cadeira de rodas é a pior coisa que posso imaginar. Daria em louco.

— Acho que ninguém sabe até ao dia em que acontece. A Becky lida muito bem com isso, sobretudo sendo uma criança.

— Não. Eu daria em louco, Julie — repetiu. — Não ser capaz de me mover? Ter de depender da ajuda de outras pessoas?

De repente, levantou-se e transferiu o peso de um pé para o outro, como se se certificasse de que ainda detinha o con-trolo do seu corpo. Mike não parava quieto. Não tinha repa-rado nisso na escola, mas naquela tarde vi: a perna agitava-se levemente, ou as pontas dos dedos tamborilavam uma batida na mesa, ou a mão traçava caminhos intermináveis pelo meio do cabelo escuro e encaracolado. Foi assim, provavelmente, que ele se manteve tão magro, apesar do facto de ter devorado quase o gelado todo e invadido o frigorífico para fazer duas san-duíches de peru e queijo em casa de Becky.

Eu já começava a aprender que a mente dele era tão esfo-meada quanto o corpo. Mike disse-me que lera meia dúzia de livros sobre autodefesa, não porque se preocupava com a pos-sibilidade de ser atacado, mas porque lia de tudo. Era por isso que sabia qual era o ponto vulnerável no centro da garganta: bater com força suficiente com o lado de uma mão rígida dei-xaria atordoado praticamente qualquer tipo de agressor.

Mike despachava os trabalhos de casa, consumia livros na biblioteca e devorava jornais e biografias de líderes de negócios e enciclopédias da World Book. Até lia as listas de ingredien-tes nas embalagens de tudo o que comia (infelizmente, este habitozinho dele arruinou o meu caso amoroso com os boli-nhos de chocolate rosa-choque). Ele não precisou de fazer a 3.ª classe e, no final do 10.º ano, já completara todas as discipli-nas de Matemática do liceu.

Para Mike tudo era rápido. Semanas mais tarde, quando pousei pela primeira vez a cabeça sobre o seu peito nu, pensei que ele estava nervoso, porque eu podia sentir o seu coração a bater tão rapidamente. Esse era, porém, o seu ritmo cardíaco

Page 19: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

25

normal; Mike só era estimulado de maneira diferente de qual-quer outra pessoa que eu já conhecera.

Talvez me tivesse apaixonado por Mike de qualquer maneira, por causa das facetas inesperadas dele próprio que revelara no dia em que Jerry me atacou: a sua bravura, o modo como brincara sobre o quão inteligente eu fora por guardar o gelado de chocolate: «Bem, se vais usar alguma coisa como arma, por amor de Deus, que seja o de morango! O de morango é meio agressivo, mas o chocolate é demasiado brando. Está sempre pedrado e sentado a ouvir Led Zeppelin. Nunca queiras ter o chocolate a cobrir-te numa luta.»

Mas havia algo mais — algo que ele disse nesse dia nos degraus da frente da minha casa — que pareceu penetrar-me até ao meu âmago.

Mike olhou para o horizonte, com o sobrolho franzido, como se não fosse mesmo para mim que estava a falar.

— Um dia eu vou ter dinheiro suficiente para fazer o que quero. Vou ter a minha própria empresa e a minha própria casa também, não uma coisa que é do banco. Não vou acabar nesta cidade miserável como toda a gente. Nada me vai impedir.

Olhei para ele, incapaz de falar. Mike acabara de pôr em pala-vras tudo o que eu desesperadamente desejava, como se tivesse espreitado para o meu cérebro e retirado o meu desejo mais profundo e mais secreto. Não era tanto por causa do dinheiro, embora naquele momento não me imaginasse a possuir uma casa. Engraçado, porque agora temos duas: em DC e em Aspen, no Colorado. Porém, a segurança que o dinheiro trazia… Bem, eu ansiava por ela. A sensação doentia e instável que eu tinha desde que o meu pai mudara — a sensação de que se aproximava cada vez mais de mim areia movediça, a aguardar o seu tempo antes que pudesse sugar-me para baixo e cobrir-me a cabeça e sufocar-me — desapareceu quando Mike falou.

Olhei para ele, este tipo magro e irrequieto com caracóis indomáveis e calças de ganga com um buraco grosseiro no joe-lho, e senti-me envolta numa onda de certeza como se fosse

Page 20: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

S a r a h P e k k a n e n

26

uma manta quente: com Mike, estaria sempre segura, em todos os sentidos possíveis.

— Vemo-nos na escola amanhã? — perguntou ele.— Sim. Temos aquele teste de História.Ele anuiu e, de seguida, baixou a cabeça e olhou para os pés.— Sentas-te sempre à janela, não é?— É — retorqui, surpreendida.— Exceto na semana passada. — Ele respirou fundo, como

se estivesse a recompor-se, e levantou o olhar azul e amen- doado, cruzando-o com o meu. — A Shelby Rowan sentou--se no teu lugar primeiro. Olhaste para ela por um segundo, depois foste para a fila do fundo. Usavas uma camisola despor-tiva branca nesse dia.

Fitei-o, sem palavras. Estivera Mike a observar-me? Lembrava--se do que eu trazia vestido? Não mostrara medo ao atacar Jerry, mas agora parecia nervoso. Apercebi-me, sobressaltada, de que estava preocupado com a minha reação.

— Tu também te sentas na fila da frente, certo? — acabei por dizer.

Mike abanou a cabeça.— Fico logo atrás de ti, Julie. Sempre fiquei.Como hoje, quando precisei desesperadamente dele.Senti uma onda quente de vergonha.— Desculpa.Mike encolheu os ombros, mas vi desilusão no rosto dele.— Se não jogas futebol, ninguém repara em ti. Fogo, odeio o

liceu. Sabes quantos dias faltam até nos formarmos? Quatrocentos e trinta e oito, se contarmos com os feriados e fins de semana e férias de verão. Há anos que faço a contagem decrescente.

Era verdade; a nossa escola girava em torno do futebol, e metade da cidade saía para ver os jogos de sexta à noite. De repente lembrei-me: Mike tinha dois irmãos mais velhos. E ambos jogavam futebol; já ouvira as chefes da claque cantarem os seus nomes durante os jogos.

— Eu guardo-te o lugar amanhã — balbuciei.

Page 21: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-

Q u a n d o o T e u C o r a ç ã o P a r o u

27

— Boa — disse Mike, e sorriu. Os dentes dele eram um pouco tortos, mas nele isso era atraente. — Tenho de ir. Ficas bem?

Anuí.— O xerife disse que o Jerry provavelmente já deixou a cidade.

Pelos vistos já estava a planear fazer isso. Mas primeiro deu de caras comigo. Assim — soltei uma risadinha — não tenho nada com que me preocupar.

Mas eu ainda estava assustada. O toque daquele dedo ficou gravado na minha pele como uma queimadura. E, não sei como, Mike sabia-o.

Na manhã seguinte, às 7.30, ele estava à saída da minha casa com a mochila a rebentar em cima dos ombros magros, à espera para me acompanhar até à escola. A partir de então, éramos inseparáveis .

«Namorados desde o liceu?», exclamam sempre as pessoas depois de perguntar como nos conhecemos. «Que maravilha!»

E foi. Durante muito tempo, pelo menos, foi mesmo.

Page 22: PARTE I - topseller.pt · vez, estava eu a atravessar um chão de mármore recentemente encerado em sapatos Stuart Weitzman com saltos de 7,5 centímetros, equilibrando uma ban-