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ARTIGO ARTICLE 987 1 Faculdade de Nutrição, Universidade Federal de Goiás. Rua 227 s/n o , Quadra 68, Setor Leste Universitário. 74605-080 Goiânia GO. lucilenemaria.sousa@ gmail.com Alimentação escolar nas comunidades quilombolas: desafios e potencialidades School nutrition in ‘quilombola’ communities: challenges and opportunities Resumo O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) para estudantes de escolas públicas. Este artigo tem por objetivos discutir os desafios e as potencialidades da ali- mentação escolar nas comunidades quilombolas e relatar a experiência do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar da Universi- dade Federal de Goiás e Região Centro-Oeste (CE- CANE UFG/Centro-Oeste). Relato de experiên- cia associado à sistematização da literatura sobre o PNAE, SAN e outras políticas. O acesso perma- nente e adequado às políticas sociais é um desafio para as comunidades quilombolas. Identificam- se na execução do PNAE entraves de ordem eco- nômica, estrutural e social. Neste contexto, a Lei 11.947/2009 incentiva o desenvolvimento local, por meio da aquisição de alimentos da região e determina valor per capita diferenciado, traduzi- do em cardápio com alimentos da cultura negra e que atenda no mínimo 30% das necessidades nu- tricionais diárias. O CECANE UFG/Centro-Oes- te no projeto alimentação, saúde e qualidade de vida de escolares quilombolas realiza ações em SAN. O campo da alimentação escolar mostra-se sensível às necessidades locais e apoia o desenvol- vimento e a promoção da qualidade de vida. Palavras-chave Alimentação escolar, Grupo com ancestrais do continente africano, Políticas pú- blicas Abstract The Brazilian School Nutrition Pro- gram (PNAE) is a Food and Nutritional Security (SAN) strategy for public school students. This article seeks to discuss the challenges and opportu- nities of school nutrition in ‘quilombola’* com- munities and report on the experience of the Co- operation Center for Student Food and Nutrition of the Federal University of Goiás and the Mid- west Region (CECANE UFG/ Centro-Oeste). It includes a report on the experience with the sys- tematization on PNAE, SAN and other policies. Continued access and adequate social policies are a challenge for the ‘quilombola’* communities. Some economic, structural and social barriers have been identified in PNAE. In this context, Law 11.947/2009 encourages local development, with the acquisition of food from the region, and it es- tablishes differentiated values per capita, which are translated into menus including products in- herent to Afro-Brazilian culture that provide at least 30% of daily nutritional requirements. In the nutrition, health and quality of life project of ‘quilombola’* schoolchildren, the CECANE UFG/ Midwest carry out food and nutritional security actions. The area of school nutrition has proven responsive to local needs and supports the develop- ment and promotion of quality of life. Key words School nutrition, Group with ances- tors from the African continent, Public policies Lucilene Maria de Sousa 1 Karine Anusca Martins 1 Mariana de Morais Cordeiro 1 Estelamaris Tronco Monego 1 Simoni Urbano da Silva 1 Veruska Prado Alexandre 1

Pane Quilombola

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1 Faculdade de Nutrição,Universidade Federal deGoiás. Rua 227 s/no, Quadra68, Setor LesteUniversitário. 74605-080Goiânia [email protected]

Alimentação escolar nas comunidades quilombolas:desafios e potencialidades

School nutrition in ‘quilombola’ communities:challenges and opportunities

Resumo O Programa Nacional de Alimentação

Escolar (PNAE) é uma estratégia de Segurança

Alimentar e Nutricional (SAN) para estudantes

de escolas públicas. Este artigo tem por objetivos

discutir os desafios e as potencialidades da ali-

mentação escolar nas comunidades quilombolas e

relatar a experiência do Centro Colaborador em

Alimentação e Nutrição do Escolar da Universi-

dade Federal de Goiás e Região Centro-Oeste (CE-

CANE UFG/Centro-Oeste). Relato de experiên-

cia associado à sistematização da literatura sobre

o PNAE, SAN e outras políticas. O acesso perma-

nente e adequado às políticas sociais é um desafio

para as comunidades quilombolas. Identificam-

se na execução do PNAE entraves de ordem eco-

nômica, estrutural e social. Neste contexto, a Lei

11.947/2009 incentiva o desenvolvimento local,

por meio da aquisição de alimentos da região e

determina valor per capita diferenciado, traduzi-

do em cardápio com alimentos da cultura negra e

que atenda no mínimo 30% das necessidades nu-

tricionais diárias. O CECANE UFG/Centro-Oes-

te no projeto alimentação, saúde e qualidade de

vida de escolares quilombolas realiza ações em

SAN. O campo da alimentação escolar mostra-se

sensível às necessidades locais e apoia o desenvol-

vimento e a promoção da qualidade de vida.

Palavras-chave Alimentação escolar, Grupo com

ancestrais do continente africano, Políticas pú-

blicas

Abstract The Brazilian School Nutrition Pro-

gram (PNAE) is a Food and Nutritional Security

(SAN) strategy for public school students. This

article seeks to discuss the challenges and opportu-

nities of school nutrition in ‘quilombola’* com-

munities and report on the experience of the Co-

operation Center for Student Food and Nutrition

of the Federal University of Goiás and the Mid-

west Region (CECANE UFG/ Centro-Oeste). It

includes a report on the experience with the sys-

tematization on PNAE, SAN and other policies.

Continued access and adequate social policies are

a challenge for the ‘quilombola’* communities.

Some economic, structural and social barriers have

been identified in PNAE. In this context, Law

11.947/2009 encourages local development, with

the acquisition of food from the region, and it es-

tablishes differentiated values per capita, which

are translated into menus including products in-

herent to Afro-Brazilian culture that provide at

least 30% of daily nutritional requirements. In

the nutrition, health and quality of life project of

‘quilombola’* schoolchildren, the CECANE UFG/

Midwest carry out food and nutritional security

actions. The area of school nutrition has proven

responsive to local needs and supports the develop-

ment and promotion of quality of life.

Key words School nutrition, Group with ances-

tors from the African continent, Public policies

Lucilene Maria de Sousa 1

Karine Anusca Martins 1

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Introdução

No Brasil, o Programa Nacional de AlimentaçãoEscolar (PNAE) é uma estratégia para a garantiado Direito Humano à Alimentação Adequada(DHAA), cujos pressupostos reportam aos prin-cípios da alimentação saudável discutidos no GuiaAlimentar para a População Brasileira¹. Suas Di-retrizes sugerem o respeito aos hábitos alimen-tares culturalmente referenciados, bem como odesenvolvimento local sustentável, traduzidas emduas ações: a educação alimentar e nutricional ea oferta de refeições que atendam às necessida-des nutricionais de estudantes de escolas públi-cas durante o período letivo2,3.

A legislação vigente determina atendimentodiferenciado aos escolares quilombolas como es-tratégia de promoção do DHAA. Trata-se de me-canismos de orçamento (com valor per capita di-ferenciado), planejamento (orientação para queo cardápio atenda às necessidades nutricionaisespecíficas destes grupos e contribua para a supe-ração da Insegurança Alimentar e Nutricional -InSAN) e de garantia de geração de renda (priori-dade na aquisição de alimentos oriundos da agri-cultura familiar destas comunidades, pela gestãodo PNAE nos estados e municípios)2,3.

Comunidades quilombolas constituem gru-pos de indivíduos, cuja descendência tem relaçãocom grupos étnico-raciais, segundo critérios deautoatribuição, com trajetória histórica própria,dotados de relações territoriais específicas, compresunção de ancestralidade negra relacionadacom a resistência à opressão histórica sofrida.Para fins de acesso a direitos diversos, estas co-munidades devem estar cadastradas na Funda-ção Cultural Palmares4.

No Brasil existem 1.711 comunidades qui-lombolas certificadas pela Fundação CulturalPalmares, das quais 7,7% (n= 131) na RegiãoSul; 9,2% (n= 158) na Região Norte; 14,1% (n=241) na Região Sudeste; 62,8% (n= 1075) na Re-gião Nordeste e 6,2% (n= 106) na Região Cen-tro-Oeste5.

Embora reconhecidas e consideradas patri-mônio cultural brasileiro, as comunidades qui-lombolas enfrentam graves problemas relacio-nados não só aos aspectos culturais, como àqualidade de vida e saúde de sua população. Es-tudos recentes em comunidades tradicionais eétnicas evidenciam a InSAN como um dos pro-blemas de maior evidência nestas comunidades6-

9. Por esta razão, nos últimos anos diversas polí-ticas públicas buscam garantir a interlocução dasnecessidades deste grupo populacional com as

agendas governamentais, onde se destacam: oPlano Brasil sem Miséria10; a Política Nacional deSaúde Integral da População Negra11 e o Progra-ma Brasil Quilombola12. O PNAE está inseridono escopo destas políticas, sendo as ações pro-postas reiteradas pelo Plano Nacional de Segu-rança Alimentar e Nutricional13.

Nesta perspectiva, este estudo tem como ob-jetivo discutir os desafios e as potencialidades daalimentação escolar nas comunidades quilom-bolas e relatar a experiência do Centro Colabo-rador em Alimentação e Nutrição do Escolar daUniversidade Federal de Goiás e Região Centro-Oeste (CECANE UFG/Centro-Oeste) junto aoPNAE quilombola no estado de Goiás. Este estu-do foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesqui-sa da Universidade Federal de Goiás.

O contexto das comunidades quilombolas

Embora a preocupação com a qualidade devida esteja refletida nas políticas públicas no Brasil,inquérito nacional realizado pelo Ministério doDesenvolvimento Social e Combate à Fome(MDS) em comunidades quilombolas indica quea maioria destas famílias encontra-se em situa-ção de extrema pobreza. Apenas 29% têm acessoao serviço de coleta de lixo; 24,0% ao esgotamen-to sanitário e 56,0% à água encanada9. De formasimilar, estudos realizados em comunidades doTocantins, Pará e Paraíba evidenciam que a In-SAN esteve presente em 85,0% das famílias6 comuma frequência elevada de domicílios de adobe,palhoça ou taipa7,8.

Em relação às iniciativas econômicas e pro-dutivas, a produção de alimentos por meio daagricultura tem destaque nestas comunidades,sendo prática usual para 93% das famílias, se-guida pela pecuária (56,0%) e pela pesca(32,0%)14. A maior parte dos produtos proveni-entes destas atividades é utilizada como subsis-tência, com uma comercialização reduzida, sejapor dificuldades de acesso ou no transporte8,9.

A maioria das comunidades (89,0%) dispõede escolas9, porém, estudo realizado na Paraíbaevidenciou que apenas 34,5% das crianças qui-lombolas estudam7. Em adição a esta informa-ção, 43,6% das mães das crianças quilombolasde zero a cinco anos têm até quatro anos de esco-laridade, enquanto 47,0% dos chefes de famíliaestudou até o quarto ano do ensino fundamen-tal, evidenciando altos índices de analfabetismofuncional9.

Estudo denominado Chamada NutricionalQuilombola9, investigou o estado nutricional de

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2.723 crianças menores de cinco anos, das quais11,6% e 8,1% apresentaram déficit de Altura/Ida-de e de Peso/Idade, respectivamente, sendo que asfamílias menos favorecidas socioeconomicamenteapresentaram uma pior situação nutricional.

Em relação ao consumo alimentar, foi obser-vado que a maioria das crianças de três a 11 anose 7,5% da população de 11 anos e mais consumi-am menos do que três refeições por dia, indicati-vo da presença de InSAN em famílias quilombo-las9. De forma similar, estudo realizado em 14comunidades quilombolas do Tocantins obser-vou reduzido consumo de alimentos tanto entreadultos quanto em crianças, com cerca de 15,0%de InSAN grave neste grupo social6.

Diante deste cenário, é possível supor que oPNAE seja uma estratégia de enfrentamento daInSAN entre os estudantes quilombolas. Porém,estudo realizado em comunidade do Pará evi-denciou irregularidades na entrega, além de ali-mentos inadequados ao hábito dos estudantes,sendo comum a oferta de alimentos semipron-tos como sopas e mingaus8. Diagnóstico preli-minar realizado pela equipe do CECANE UFG/Centro-Oeste em visita realizada a comunidadequilombola de Goiás, indicou a presença de pro-dutos industrializados alheios aos hábitos regio-nais, contrapondo-se ao grande potencial agrí-cola para produção de frutas e hortaliças, quenão estão presentes na alimentação escolar15.

Políticas públicas, o Direito Humano

à Alimentação Adequada

e as comunidades quilombolas

A Política Nacional de Segurança Alimentar eNutricional (PNSAN)16 a Lei Orgânica de Segu-rança Alimentar e Nutricional (LOSAN)17, a Po-lítica Nacional de Alimentação e Nutrição(PNAN)18 e a legislação do PNAE2,3 estabelecemDiretrizes e articulam diferentes setores da socie-dade civil e órgãos governamentais em açõesuniversais e locais em prol da efetivação do DHAAno território brasileiro.

Do ponto de vista operacional, a PNSAN tra-duz-se no Plano Nacional de Segurança Alimen-tar e Nutricional, cuja finalidade é a concretiza-ção do DHAA e a construção de um modelo sus-tentável de produção e consumo de alimentosno país, preconizado pelo Sistema Nacional deSegurança Alimentar e Nutricional (SISAN)16.Dentre as Diretrizes do Plano evidenciam-seavanços relativos à garantia de direitos dos po-vos e comunidades tradicionais, com destaquepara a promoção, a universalização e a coorde-

nação das ações de Segurança Alimentar e Nutri-cional (SAN)13.

Na prática, o planejamento e a execução dasações coordenadas de SAN desdobram-se em ar-ticulações locais, tendo como referencial os terri-tórios destas comunidades tradicionais, onde oSetor Educação, incluídas as unidades escolares, échamado a garantir a oferta regular e permanen-te de alimentos com atenção à identidade culturaldos estudantes quilombolas. Entretanto, a con-cretização desta responsabilidade se dá por meiode articulações com outros setores, como o agrí-cola (buscando assistência técnica referenciada nastradições culturais de cultivo de alimentos e o res-gate das formas tradicionais de cultivo, incluindoaqui o uso de sementes crioulas e animais da re-gião) e o setor saúde (com monitoramento dosindicadores de InSAN), dentre outros.

Com o objetivo de reduzir os desafios na arti-culação entre os setores, as Diretrizes do PNSANindicam ações capazes de promover a interface daalimentação escolar com outras necessidades dascomunidades quilombolas. Por esta razão, suge-rem o aprimoramento, a qualificação e o moni-toramento da execução do PNAE nas escolas lo-calizadas em comunidades quilombolas; a expan-são da participação de agricultores(as) familiaresquilombolas nos mercados institucionais; a ga-rantia da regularização fundiária e a certificaçãodas comunidades quilombolas; além da proteçãoe estímulo da agrobiodiversidade e do desenvol-vimento local sustentável13.

O Plano estabelece metas concretas e moni-toráveis para as ações e programas de SAN, e,nesta perspectiva, tem como um dos objetivos ofortalecimento da PNAN, cujo propósito é me-lhorar as condições de alimentação, nutrição esaúde, em busca da garantia da SAN da popula-ção brasileira. A PNAN, aprovada no ano de 1999e reformulada entre 2010 e 2011, é pautada nosPrincípios do Sistema Único de Saúde e do DHAA,com destaque ao respeito à diversidade e à cultu-ra alimentar, o fortalecimento da autonomia dosindivíduos e a busca da segurança alimentar enutricional com soberania18.

Tendo as comunidades quilombolas comoeixo de discussão, identificam-se nas Diretrizesdo Plano de SAN convergências com as reivindi-cações e as políticas voltadas a este grupo13:

- Aprimoramento, qualificação e acompa-nhamento da alimentação escolar nas escolas si-tuadas em comunidades quilombolas; fomentoà aquisição, pelas escolas, de gêneros alimentí-cios da agricultura familiar quilombola; distri-buição de alimentos às famílias vulneráveis à

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fome, dentre estas, aquelas situadas em comuni-dades remanescentes de quilombos [Diretriz 1];

- A ampliação do acesso aos serviços de as-sistência técnica e extensão rural para os agricul-tores familiares quilombolas, com conseqüenteaumento da participação dos mesmos no abas-tecimento de mercados institucionais [Diretriz 2];

- Regularização fundiária/certificação das co-munidades quilombolas e promoção da saúde eSAN dos povos quilombolas, por meio do usosustentável da agrobiodiversidade [Diretriz 4];

- A ampliação da cobertura de ações e servi-ços de saneamento básico e de abastecimento deágua em comunidades quilombolas, priorizan-do soluções alternativas que permitam a susten-tabilidade dos serviços [Diretriz 6].

Ao evidenciar a priorização de ações do Esta-do, com foco na população quilombola, estaspolíticas mostram sintonia com os condicionan-tes de renda, concentração da propriedade de ter-ra, dificuldade de acesso ao alimento, dentre ou-tros, que historicamente determinaram uma altaprevalência de InSAN nestas comunidades.

Alimentação escolar

nas comunidades quilombolas de Goiás:

para além da oferta de alimento

Pelo exposto, é possível supor que as últimasdécadas representaram um avanço, seja no au-mento da visibilidade das questões relacionadasà qualidade de vida das comunidades quilom-bolas, bem como nas políticas de apoio a estesegmento. O desafio é compatibilizar o propos-to ao executado, em especial pelas políticas rela-cionadas à comunidade escolar e ao PNAE2,3 nascomunidades quilombolas. A ineficiência na im-plementação local, em especial a irregularidadeda oferta de alimentos saudáveis e adequados,distantes dos hábitos regionais; a inadequaçãona distribuição dos recursos financeiros destina-dos ao Programa; as dificuldades na logística dedistribuição, armazenamento e produção dosalimentos oferecidos aos escolares quilombolas,são questões centrais nesta discussão19.

Neste contexto, a Lei 11.947/2009 representaum avanço por destacar em suas Diretrizes oapoio ao desenvolvimento sustentável, com in-centivo para a aquisição de gêneros alimentíciosdiversificados, produzidos em âmbito local, comdestaque no Artigo 14 que indica no mínimo

30,0% dos recursos financeiros repassados pelo

Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

(FNDE), no âmbito do PNAE, deverá ser utilizado

na aquisição de gêneros alimentícios provindos

diretamente da agricultura familiar e do empre-

endedor familiar rural ou de suas organizações,

priorizando-se os assentamentos da reforma agrá-

ria, as comunidades tradicionais indígenas e co-

munidades quilombolas². A inclusão de agriculto-res quilombolas neste mercado institucional éfundamental para o desenvolvimento local sus-tentável e para a possível superação da InSANem suas comunidades.

O benefício da alimentação para escolaresquilombolas inclui recurso financeiro diferencia-do para execução do PNAE. O valor per capita

atualmente repassado aos municípios com estu-dantes quilombolas matriculados no ensino fun-damental e médio, além de jovens e adultos (EJA),é de R$ 0,60 (sessenta centavos de real), enquan-to para os demais estudantes é de R$ 0,30 (trintacentavos de real)20. Já o cardápio elaborado paraeste grupo de estudantes deve atingir no mínimo30,0% das necessidades nutricionais diárias, su-perior em 10,0% ao estipulado para o cardápiodestinado aos demais alunos da rede pública deeducação matriculados em período parcial³.

O CECANE-UFG/Centro-Oeste é um espaçode fortalecimento e consolidação de políticas pú-blicas em alimentação e nutrição, com ênfase naSAN e no DHAA, cujo foco é o ambiente escolar.As comunidades quilombolas são parte desteuniverso, portanto, inseridas neste contexto. Umdos projetos em execução pelo CECANE-UFG/Centro-Oeste denomina-se Alimentação, saúde e

qualidade de vida de escolares quilombolas, cujasatividades iniciaram-se em 2010, com a identifi-cação de lideranças e entidades articuladas compopulações negras, povos e comunidades tradici-onais. Este grupo elaborou coletivamente um pro-jeto de ação, a partir de uma oficina que levantouos temas de maior relevância, categorizados emoito possibilidades de ação, a partir de então con-siderados como a espinha dorsal do projeto:

(1) Condições de saúde e nutrição

Investigação sobre como vivem, adoecem emorrem os indivíduos das comunidades quilom-bolas, com vistas a identificar a situação de saú-de, nutrição e qualidade de vida.

(2) Infraestrutura

Avaliação das condições das estradas; da es-trutura física das escolas (unidades de alimenta-ção e nutrição) e domicílios; do saneamento bá-sico (acesso a energia elétrica, água, esgoto e lixo)e o estudo da cadeia de transporte do alimentopara a escola.

(3) Gestão

Estudo da aplicação do recurso do PNAE qui-lombola; identificação do tipo de cardápio da zona

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urbana e rural, além da avaliação da atuação domanipulador de alimentos e nutricionista.

(4) Controle social

Identificação do Conselho de AlimentaçãoEscolar (CAE) e suas ações; mapeamento de ou-tras organizações sociais na região, tais comocooperativas e associações.

(5) Agricultura familiar

Estudo da produção (tipo de alimento pro-duzido e beneficiamento) e da comercialização(local e para o mercado externo), além do co-nhecimento do agricultor familiar da Lei 11.947/2009.

(6) Alimentos e alimentação escolar

Avaliação do cardápio e dos alimentos ofere-cidos (qualidade, quantidade e regularidade);estudo da cultura alimentar local e sua inserçãono cardápio e currículo escolar.

(7) Educação permanente

Nos municípios estudados, identificação doprocesso de formação de manipuladores de ali-mentos, nutricionista, CAE, agricultor familiar egestores, dentre outros.

(8) Mundo do trabalho

Identificação de alternativas de apoio aos jo-vens e adultos em atividades cujo objeto seja amanutenção dos mesmos junto a suas comuni-dades.

Promover a SAN junto às comunidades qui-lombolas é um grande desafio, sobretudo pelaspeculiaridades destas comunidades. Neste con-texto, a identificação de parceiros em nível local, acompreensão deste processo como sendo de ca-ráter interssetorial, e a necessária aproximação ediálogo com as lideranças locais apresentam po-tencialidade para que se constitua um espaço co-letivo de construção e aprendizagens mútuas.

O projeto está em execução, com o estabele-cimento de metas que, no curto prazo (segundosemestre/2011), traçou ações emergenciais e deaproximação com as comunidades, com desta-que para as oficinas de sensibilização para a ques-tão do PNAE, voltada para agricultores e estu-dantes quilombolas e a participação na ação Ka-

lunga Cidadão, atividade articulada com diversasáreas do conhecimento da Universidade Federalde Goiás. No médio prazo (primeiro semestre/2012) ocorreu uma oficina para validação do ins-trumento, posteriormente aplicado nas 22 co-munidades quilombolas goianas certificadas pelaFundação Cultural Palmares. No longo prazo(primeiro semestre/2013) estão previstas reuniõeslocais para divulgação dos resultados e pactua-ção de ações de intervenção.

A aproximação dos saberes popular e cientí-fico, permitindo uma inserção no cotidiano dascomunidades quilombolas possibilita a constru-ção de propostas de ações com potencial paramodificar a realidade local, e tem permitido àequipe do CECANE UFG/Centro-Oeste viven-ciar aprendizados, conquistas e muitos desafios.

Dentre os aprendizados, destacamos a cons-trução compartilhada da proposta com mem-bros das comunidades quilombolas de Goiás;representantes de organizações sociais e órgãosgovernamentais envolvidos na temática do pro-jeto. E a relevância da aproximação com os sujei-tos da ação, possibilitando assim a identificaçãode diferentes necessidades que condicionam aInSAN neste grupo social e como estes se expres-sam no cotidiano destas comunidades.

Os avanços contemplam a realização de ofi-cinas nos territórios das comunidades quilom-bolas, para discutir com os agricultores familia-res a comercialização dos gêneros alimentíciosproduzidos para a alimentação escolar, atenden-do ao proposto na legislação do PNAE; bem comoa discussão com os escolares sobre o consumoalimentar no ambiente escolar e familiar, ambascom boa repercussão entre os participantes.

Por outro lado, os desafios existem e são tãocomplexos quanto a realidade deste grupo so-cial, seja na tradução do conhecimento produzi-do em uma linguagem compreensível aos sujei-tos da ação; seja no desafio de compreender queum silêncio, um olhar, uma palavra, são sinaisde que há desejo de mudanças.

Quando a gente tem o conhecimento, a gente

tem como cobrar expressou uma representantede comunidade quilombola presente em um denossos encontros15. Este é o nosso maior desa-fio: enquanto grupo que detém o saber técnico,colocá-lo a serviço da promoção e proteção doDHAA e SAN nas comunidades quilombolas,num cenário de dificuldades no acesso a bens epolíticas sociais.

Colaboradores

LM Sousa, KA Martins, MM Cordeiro, ET Mo-nego, SU Silva e VP Alexandre participaram detodas as etapas de elaboração do manuscrito:concepção, desenho, proposição de ideias, análi-se crítica e redação do manuscrito.

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Brasil. Câmara Interministerial de Segurança Alimen-tar e Nutricional. Plano Nacional de Segurança Ali-mentar e Nutricional: 2012/2015. Brasília: Ministériodo Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2011.[acessado 2011 dez 10]. Disponível em: http://www.mds.gov.br/gestaodainformacao/biblioteca/secretaria-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-sesan/livros/plano-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-2012-2015/plano-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-2012-2015.Pedroso Júnior NN, Murrieta RSS, Taqueda CS,Navazinas ND, Ruivo AP, Bernardo DV, Neves WA.A casa e a roça: socieconomia, demografia e agri-cultura em populações quilombolas do Vale doRibeira, São Paulo, Brasil. Bol. Mus. Para. Emilio

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da União 2009; 29 dez.

Artigo apresentado em 03/01/2013Aprovado em 05/01/2013Versão final apresentada em 08/01/2013

Referências

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