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De olho nos traficantes, malandros e celebridades: um estudo de mídia e violência urbana Cláudio Cardoso de Paiva * Índice 1 Abertura .............. 1 2 Elementos para uma sociologia da mídia ............... 2 3 Breve digressão em torno do título Abusado .............. 3 4 O êxtase e a tirania da publicidade 4 5 O lado mau e lado bom da banda midiática .............. 5 6 A ética e a terceira margem do texto jornalístico .......... 5 7 Uma antropológica do cotidiano do morro .............. 7 8 Antecedentes das imagens e letras abusadas .............. 8 9 Referências bibliográficas ..... 9 Resumo: O livro Abusado – O Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcelos con- siste num romance de reportagem investi- gativa, revelando os bastidores da formação de uma quadrilha e suas histórias de guerra, morte, prisões, fugas e traições. Abusado conta a trajetória de Juliano VP – codinome de um conhecido traficante carioca – e seus companheiros de geração. A partir dos rela- tos de sua adolescência, entrada e ascensão * Prof. Adjunto do Departamento de Comunicação - UFPB no tráfico de drogas, temos um retrato his- tórico da ocupação do morro pelo Comando Vermelho, principal facção criminosa no es- tado, e da implantação de sua cruel disci- plina. Ao mesmo tempo, Caco mostra o de- senvolvimento da noção de cidadania entre os moradores da Santa Marta, seus esforços e conquistas, como mutirões que levaram água e luza todos os barracos da favela. Mas não deixa de apontar as péssimas condições de higiene, a pobreza, a desesperança e a bru- talidade da polícia, que ainda vigoram no morro. No mesmo ano do lançamento da obra, as professoras de comunicação social da UFPB Sandra Moura e Nadja Carvalho or- ganizaram uma coletânea chamada Leitu- ras do Abusado, reunindo onze professores- pesquisadores, filósofos, historiadores, an- tropólogos, jornalistas e sociólogos confe- rindo um enfoque transdisciplinar ao livro de Barcelos. O texto que se segue consiste em parte da nossa contribuição para o projeto. 1 Abertura Lançamos aqui uma mirada sobre o livro Abusado - O Dono do Morro Dona Marta (Caco Barcelos, 2003), buscando enten- der a maneira como este escritor-jornalista-

Paiva Claudio Midia Violencia Urbana

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  • De olho nos traficantes, malandros e celebridades: umestudo de mdia e violncia urbana

    Cludio Cardoso de Paiva

    ndice1 Abertura . . . . . . . . . . . . . . 12 Elementos para uma sociologia da

    mdia . . . . . . . . . . . . . . . 23 Breve digresso em torno do ttulo

    Abusado . . . . . . . . . . . . . . 34 O xtase e a tirania da publicidade 45 O lado mau e lado bom da banda

    miditica . . . . . . . . . . . . . . 56 A tica e a terceira margem do

    texto jornalstico . . . . . . . . . . 57 Uma antropolgica do cotidiano

    do morro . . . . . . . . . . . . . . 78 Antecedentes das imagens e letras

    abusadas . . . . . . . . . . . . . . 89 Referncias bibliogrficas . . . . . 9

    Resumo: O livro Abusado O Dono doMorro Dona Marta, de Caco Barcelos con-siste num romance de reportagem investi-gativa, revelando os bastidores da formaode uma quadrilha e suas histrias de guerra,morte, prises, fugas e traies. Abusadoconta a trajetria de Juliano VP codinomede um conhecido traficante carioca e seuscompanheiros de gerao. A partir dos rela-tos de sua adolescncia, entrada e ascenso

    Prof. Adjunto do Departamento de Comunicao- UFPB

    no trfico de drogas, temos um retrato his-trico da ocupao do morro pelo ComandoVermelho, principal faco criminosa no es-tado, e da implantao de sua cruel disci-plina. Ao mesmo tempo, Caco mostra o de-senvolvimento da noo de cidadania entreos moradores da Santa Marta, seus esforos econquistas, como mutires que levaram guae luza todos os barracos da favela. Mas nodeixa de apontar as pssimas condies dehigiene, a pobreza, a desesperana e a bru-talidade da polcia, que ainda vigoram nomorro.

    No mesmo ano do lanamento da obra,as professoras de comunicao social daUFPB Sandra Moura e Nadja Carvalho or-ganizaram uma coletnea chamada Leitu-ras do Abusado, reunindo onze professores-pesquisadores, filsofos, historiadores, an-troplogos, jornalistas e socilogos confe-rindo um enfoque transdisciplinar ao livro deBarcelos. O texto que se segue consiste emparte da nossa contribuio para o projeto.

    1 AberturaLanamos aqui uma mirada sobre o livroAbusado - O Dono do Morro Dona Marta(Caco Barcelos, 2003), buscando enten-der a maneira como este escritor-jornalista-

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    reprter se debrua sobre as tramas sociaise polticas que regem a vida dos habitan-tes desse outro Brasil, dos favelados. Como pretexto de fazer uma biografia do trafi-cante Marcinho VP (codinome Juliano, noromance), Barcelos mergulha no submundodo crime no Rio de Janeiro, e nos permiteperceber que, em meio a uma espcie deguerra no fim do mundo, gangues rivais sedigladiam e transgridem a lei de maneira vi-olenta, mas que ali tambm se realizam pro-cessos de formao da identidade, agregaocoletiva e laos de sociabilidade.

    Em se tratando de identidade e socializa-o, no Brasil, a televiso contribuiu bastantenesse processo, atravs de uma espcie deduplicao ou clonagem da realidade cotidi-ana. No preciso ser especialista em mdiapara perceber que passamos a coexistir comessa camada miditica radical que nos ins-pira e nos aspira. Ento, o que est em jogoaqui so os estilos de representao dos valo-res do bem e do mal, as modalidades de iden-tificao e pertencimento. A mdia - comoum vetor de publicizao da vida cotidiana -tm o poder de formar, informar e transfor-mar, mas tambm pode deformar os estilosde identidade, subjetividade e sociabilidade.Ento, faz-se preciso encontrar as estratgiaspara entrar e sair dos jogos miditicos que seinfiltraram nos diversos campos da experin-cia.

    Quando a televiso no tem tempo paraa uma reflexo, impedindo o encontro-confronto, aproximao e reconhecimentodo Outro, a narrativa jornalstica, como umacrnica do cotidiano, cria a oportunidadepara os exerccios de abstrao, contempla-o e entendimento dos paradoxos, contradi-es e complexidades da vida comunitria.

    Por este prisma percebemos que o livro

    Abusado, de Caco Barcelos, se distinguedentre as sries de imagens difundidas pelamdia global - particularmente, dos telejor-nais, programas de auditrios e talk shows,nas tevs abertas e pagas - que traduz a rotinados deserdados da terra de maneira estigma-tizada. O escritor-jornalista expe a dura re-alidade do morro sem vus, sem meias pa-lavras. Logo, instiga o leitor, escrevendo pormeio de uma tica jornalstica compreensiva,no respeita ao mundo violento dos excludos.

    No caso da biografia de Marcinho V.P, orelato assume significaes especficas, poisos traficantes do morro - distintamente dospersonagens desviantes de outros perodoshistricos (1900, 1930/60/70...) - agenciamas suas mquinas de guerra sem bandeiras,nem ideologias. Eles se movem pela von-tade de poder, de dominao e pelas pulsesnarcisistas que os levam a ver o mundo comouma extenso de si prprios.

    H sempre um argumento defensor deuma suposta causalidade profunda, incons-ciente, faminta e desejante, tentando expli-car a brutalidade das gangues e quadrilhas nomorro. Em verdade, elas se nutrem do vazio,da falta e das neuroses causadas - tambm -pelas privaes de todas as ordens; isso -em grande parte - que as impulsiona para acriminalidade. O fato que as experinciasrecentes dos narcotraficantes constituem umtipo de transgresso, cuja eficcia funcionaem favor do mal, da destruio e da morte.

    2 Elementos para uma sociologiada mdia

    No caso do romance Abusado, aqui saltaaos olhos uma narrativa que mantm umacerta cumplicidade com o personagem de-

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    linqente e suas gangues. O autor se mos-tra generoso para com os tipos de fala, coma ginga e a temporalidade do morro, com osdias de festa e de luto, exibindo tambm asformas de indignao e rebeldia das tribos domorro.

    Ento, temos aqui um caso em que ojornalista-escritor-reporter, um habitante doasfalto, mergulha na rotina diria da favela,desvendando o que h ali de beleza e horror,as sensaes de pertencimento e sensaesde medo. O narrador relata os modos de or-ganizao e de desordem da favela, um am-biente com suas prprias leis, em que os do-nos do morro se julgam no direito de matarou deixar viver.

    Substancialmente, Barcelos investe a suapesquisa num vigor que lana luz sobre a cri-ao das condies bsicas de existncia so-cial, incluindo a infraestrutura material queassegura a sobrevivncia da tribo, como asredes de gua, energia eltrica, esgoto e sa-neamento. E apresenta tambm o mundosimblico do sincretismo religioso (em quecatlicos, evanglicos e espritas dividem osespaos da f), traduz os estilos de sonori-dade e musicalidade que concedem o ritmoe o vigor no cotidiano, expe as redes de pa-rentesco e os regimes de afetividade que en-laam os seres humanos numa comunidadepobre.

    Barcelos fabrica uma denncia da socie-dade, da tica violenta e excludente dos po-derosos, dos habitantes do asfalto, sem que-rer pintar com cores bonitas a vida cotidi-ana dos traficantes e os outros habitantes domorro.

    Trata-se de um romance-jornalstico comrigor na decifrao dos traos psicolgicosdos personagens, descrevendo as modalida-des da ira, do recalque, da vergonha, do de-

    sespero e da vingana. E ao mesmo tempo,revela tambm os sentimentos de orgulho, devaidade e as atitudes de ironia e subversonum ambiente marcado por uma ordem so-cial injusta e desequilibrada.

    3 Breve digresso em torno dottulo Abusado

    O ttulo chama a ateno pelo desvio orto-grfico: a palavra Abusado, grafada com ums ao contrrio, remete ao modo de escre-ver dos segmentos sociais grafos. Tal ex-pediente, se por um lado denota o desejodo autor de simular uma representao fide-digna da linguagem dos habitantes do morro,por outro lado, a grafia de Abusado denunciaum sentido de transgresso norma (lings-tica), algo compactuado com o autor, querespeita tal transgresso (comunicativa) e an-tecipa toda uma rede de cumplicidades entreo protagonista da trama (o traficante, Juli-ano/Marcinho VP) e o narrador (o jornalista-escritor-reprter Caco Barcelos). Mas hum nvel de significao da palavra Abusado,que se sobressai, designando uma dimensode excesso, violncia e ultrapassagem de to-dos os limites, afinal os traficantes so crimi-nosos que assumem o ato extremo de matarseus semelhantes.

    Contudo, Abusado fala do estado ou daqualidade de algum irado, rebelde, indig-nado, o que designa - de algum modo- aqueleque se rebela contra as normas, ao estilode vida convencional, s regras estabeleci-das (quando estas lhe parecem arbitrrias edesumanas). Ento, abriga tambm um ladosimptico, carismtico, sedutor que envolvea imagem dos delinqentes.

    Logo o texto e o contexto de Abusado

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    nos alerta os sentidos para percebermos omodo como uma narrativa pode demonstrarmais ou menos sensibilidade e afinidade coma postura dos fora-da-lei, dos marginaliza-dos, dos outsiders. E, em ltima instn-cia, como obra literria - virtualmente - o li-vro Abusado traz consigo a possibilidade deadentrarmos nas misteriosas dobras da almados seres humanos. Ali se inscrevem as for-mas de ternura e brutalidade, o belo e o feio,o sublime e o grotesco da existncia. quaseimpossvel no sentir afeto pelos persona-gens descritos no romance, por mais que es-tes sejam letais.

    Sem pretendermos antecipar um juzotico a respeito desta representaojornalstico-literria e suas possveisemanaes de simpatia para com a trajetriados desviantes sociais, percebemos queBarcelos contorna os trmites da objeti-vidade jornalstica e tambm que - comona narrativa de Os Sertes (Euclides daCunha, 1900) - a subjetividade do narrador,do sujeito da enunciao aqui faz parte dainterpretao de uma complexidade histricaem que esto imersos os personagens.

    A cada dcada encontramos um repertrioimportante de narrativas literrias, temati-zando as anomias sociais. Assim, Feliz AnoNovo, Pixote, Bicho de Sete Cabeas, Ca-randiru e Cidade de Deus, entre outros sonarrativas que criam as condies de identi-ficao dos leitores com as obras atravs dosregimes de oralidade e visibilidade que re-presentam, antes mesmo de chegarem ao ci-nema - tem um poder imenso de promoverexperincias estticas, poticas e catrticas.

    O horror difcil de nomear, a dor difcilde traduzir, a solido difcil de comunicar seprojetam por meio das imagens e letras, con-duzindo os leitores s regies abissais do es-

    prito e assim, lhes despertam a percepopara outras vises e experincias do mundo.Assim, apostamos que todos estes discur-sos (como prticas scio-culturais) se pres-tam formao de uma conscincia crticaacerca do nosso contexto scio-econmicoem abismo. O dilogo intertextual e semi-tico entre o jornalismo, a literatura, o cinemae a televiso podem nos tornar mais prxi-mos, sensveis e compreensivos das tramassociais.

    4 O xtase e a tirania dapublicidade

    Optamos por explorar o Abusado, tomandocomo fio condutor um aspecto fundamentaldas culturas hbridas neste novo milnio, queconsiste na onipresena dos processos midi-ticos, pela fabricao e publicizao das ce-lebridades atravs da mdia, principalmente,a televiso.

    Ento, nesse contexto que a saga deJuliano (Marcinho V.P.), narrada por CacoBarcelos, ganha novos contornos e significa-es. Convm perceber que o personagemV.P. assume uma outra corporeidade, um ou-tro significado, na medida em que imor-talizado no romance. Mas tudo isso ainda pouco, se considerarmos que a sua aura(ou espectro) se desdobra, se multiplica ese irradia em diversas direes, ao se tornarfigurinha carimbada nos espaos das revis-tas e dos telejornais. Assim, necessriocompreender o sentido desta biografia, aten-tando para a complexidade de sentidos, queenvolve a imagem do traficante, o papel damdia e o culto das celebridades.

    O fenmeno da fama, das celebridades edos mitos da sociedade de consumo adquire

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    propores mais amplas e significativas nadita idade mdia, em que a exposio natev consiste numa experincia investida devalores quase transcendentais.

    A tica da comunicao - que em seu sen-tido etimolgico se liga s noes de troca,permuta, vinculao e comunidade temsido atropelada por um sistema que faz damdia uma espcie de fogueira das vaida-des. neste sentido que Muniz Sodr cri-tica a mdia (no caso, a televiso), como umaexpresso de monoplio da fala e comouma maquina de narciso que inibe a falado Outro, tendendo a dissolver os regimes desolidariedade, pois multiplica os espelhos doMesmo no imaginrio social.

    Ou seja, a apario de Marcinho VP nateleviso, nestes termos, j lhe assegura-ria um status de celebridade, algo que fun-ciona um habeas corpus, absolvendo-o -simbolicamente - perante a sociedade. E este um problema antes histrico-cultural doque miditico; ento, aqui que entra a li-teratura, como uma modalidade da grandearte mostrando outras corporeidades, novasleituras e textualidades, canais e conexesdiversas para instalao do leitor como su-jeito crtico, indignado e ativo face aos pro-cessos scio-polticos e culturais.

    Para seduzir o pblico-leitor o autor pre-cisa se embrenhar em meio a essa guerra ediviso de linguagens, que estrutura (e de-sestrutura) a esfera cultural e que, no escapaao crivo da mdia.

    Logo, para entender a forma e o sentidode um livro como Abusado, preciso aten-tar para os fenmenos de midiatizao, pu-blicizao e glamurizao dos personagense situaes. Neste contexto, ser consumista,manter a fama de mal e aparecer nos espaosmiditicos, confere poder e prestgio tanto

    s pessoas do morro quanto as do asfalto.Mas o capital que compra o status de cele-bridade para estas ltimas advm do narco-trfico, que se realiza atravs da criminali-dade e da violncia, ento, temos aqui umaconjuno explosiva.

    5 O lado mau e lado bom dabanda miditica

    Considerando-se os nveis de complexidadecultural da idade mdia, conviria anteci-par uma dialtica de olho nas relaes en-tre mdia e sociedade. Ento, ocorre que osindivduos, os grupos, as tribos encontramsempre maneiras de carnavalizar as men-sagens veiculadas pela mdia e conferir umnovo sentido s imagens miditicas (inclu-sive a dos heris e viles).

    Os excludos h muito j aprenderam atirar proveito das imagens, sons e discur-sos irradiados pela mdia. Isto se mostranos estudos de comunicao realizados poruma moderna tradio, que acolhe auto-res como Umberto Eco, Canclini, Matte-lart, Martin-Barbro (entre outros estudio-sos). Estes pesquisadores afirmam o poderdo receptor, no processo comunicativo. Re-conhecemos que os leitores-telespectadores,como cidados, tm sempre maneiras de en-contrar as sadas, driblando as adversidades eressignificando as mensagens de acordo como seu repertrio scio-cultural.

    6 A tica e a terceira margem dotexto jornalstico

    Assim, enfatizamos que existem diferentespossibilidades de se ler uma obra como Abu-sado, mas preciso prestar ateno para o

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    fato de que o imaginrio ocidental inteira-mente atravessado pelas irradiaes miditi-cas e pelo culto da personalidade. E eviden-temente isso mais forte numa ambinciaem que os indivduos passaram da oralidades imagens sem passar pelas letras.

    Mas, se quisermos analisar o Abusado,considerando o contexto scio-cultural emque este se insere, no podemos perder devista o fato de que autor e obra, personagem,ambincia e situao mantm relaes m-tuas com os processos miditicos. Uma an-tropologia urbana predisposta a contemplaro presente teria que abarcar os domnios dacasa, a rua e a mdia; para o melhor e para opior, esta a nossa condio ps-moderna.

    Neste sentido, seria conveniente relem-brarmos que a mdia, no ms de julho de2003, ocupou grande parte de seus espaoscom a notcia do assassinato do traficanteMarcinho VP, fonte inspiradora para o ro-mance de Barcelos. O mesmo foi assassi-nado, por enforcamento, nas dependnciasdo complexo presidirio de Bangu, em quese encontrava detido, aps o sucesso de suaapario, no livro de Barcelos, lanado emmaio de 2003. Mas, conviria destacar queeste j se tornara famoso nas pginas e telasdesde o episdio do videoclipe de MichaelJackson, no Morro Dona Marta.

    Os aspectos extra-textuais s vezes soinqos e at nocivos, no trabalho de inter-pretao, mas neste caso, de bom augrio,pois a morte de VP, na priso, pode signi-ficar um acerto de contas entre rivais, umarevanche das foras policiais que teriam sevingado do traficante Abusado ou um ato queincorporou a inveja dos companheiros anni-mos, irados, sem glamour e sem fama. Mas,no podemos a deixar de perceber, o resul-

    tado de um processo miditico-publicitrioque tornou o traficante importante demais.

    O ato de dar voz ao criminoso - virtual-mente - faz do narrador, o sujeito da enun-ciao, um cmplice no assassinato do ban-dido. E aqui no se trata de forar umabarra, exagerando na interpretao do fato,mas simplesmente de admitir o poder que amdia tem de acender e apagar as estrelas (in-cluindo aqui a o jornalismo investigativo, li-teratura de massa, o rdio, o cinema, a te-leviso). Assim, para entender o significadoda obra, torna-se oportuno deslocar-se ao seusentido miditico e cultural, acedendo assima uma terceira margem do texto jornalstico-literrio.

    O que est em jogo aqui so as modalida-des dos procedimentos ticos que norteiama mdia, os indivduos e a vida em comuni-dade. Relembrando Jean Baudrillard, autorde as trocas simblicas e a morte - per-cebemos que a saga do Abusado j surgeinvestida numa espcie de morte anunci-ada. Pois antes do livro, o traficante j ha-via se tornado uma pessoa pblica, ao tersido exibido nas pginas dos jornais brasi-leiros, em associao com o cineasta JooMoreira Salles. O clebre episdio nos trazelementos para um debate instigante, na me-dida em que conjuga o traficante e o abas-tado diretor de cinema, acusado de financiarcom uma bolsa de estudos, a iniciao lite-rria de VP, que - supostamente - escreveriaa sua autobiografia. Alis, este fato revi-sitado com esmero por Barcelos, mas cabe-ria aqui sublinhar uma modalidade tica, daparte de Salles, que se investe em nobreza deesprito, conscincia e solidariedade, o que -evidentemente - parece estranho numa soci-edade cujas regras de funcionamento se ba-

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    seiam tambm numa espcie de mais-valiaafetiva.

    7 Uma antropolgica docotidiano do morro

    A construo jornalstica de Barcelos pr-diga na captura do sentido de um universoem que se hibridizam os signos do Brasiloficial, autorizado e institudo com os sig-nos das culturas urbanas, da cultura popularde massa, das culturas perifricas, incluindosuas sonoridades, visibilidades e oralidades,irradiadas tambm pela mdia. Portanto,inscrevem-se aqui os emblemas da televisoe as falas e grias urbanas, como a turma daXuxa, a cocana afetivamente tratada comoBrizola e slogans como o lado bom davida errada - enquanto imagens e jargesque animam a coexistncia entre os membrosdas tribos do morro. neste contexto quepodemos entender a recepo amistosa dagravao do videoclipe com Michael Jack-son, na favela. Ou seja, os signos consti-tuintes do imaginrio dos jovens conformis-tas do asfalto reaparecem tambm no imagi-nrio dos jovens radicais na periferia da so-ciedade de consumo. Uma traduo do coti-diano do morro sem considerar este aspectoseria incompleta.

    E preciso saber apreciar os aspectos po-sitivos desta questo, pois aqui temos a re-velao dos traos de uma carnavalizao darotina comunitria, que desdramatiza a vidae assume uma postura afirmativa, conferindoum sentido mais ativo existncia.

    Astuciosamente, o humor e a ironia nasfalas e conversaes da comunidade (habil-mente assimiladas pelo escritor), funcionamcomo um modo de transcendncia ao regime

    de excluso e segregao, e - no fim das con-tas - promovem estilos de coeso e sociabili-dade internas.

    Ento, a literatura de Barcelos, enquantomdia impressa, pelo vis do chamado jorna-lismo investigativo, consegue flagrar o uni-verso de Dona Marta em seus abismos so-ciais, econmicos e culturais, mas mostratambm o componente humano, afetivo, gre-grio. O livro de Barcelos - pela sua pr-pria voz e pelas vozes dos personagens - nospermite enxergar camadas reativas e tam-bm camadas afirmativas. De um lado h ojornalista global com todas as incorpora-es ideolgicas da organizao empresariala que est filiado, do outro lado h o jorna-lista crtico e perspicaz empenhado no exer-ccio da tica e da responsabilidade.

    Em meio a este contexto minado de am-bigidades, em que se entrecruzam trafican-tes, jornalistas, malandros e celebridades... preciso ser prudente no ato da leitura.

    No morro, h as redes nefastas do crime eda violncia do narcotrfico, mas tambm asredes vitais de integrao e sociabilidade queasseguram a sobrevivncia das comunidadescarentes. Logo, na amplitude da obra (dentroe fora de sua textualidade) h formas ideol-gicas, estticas, ticas, sociais e antropol-gicas que propiciam um conhecimento apro-ximado das alteridades e complexidades docotidiano dos indivduos no Morro da DonaMarta; a reside a importncia de Abusado.

    Barcelos lana mo de uma estratgia bemsucedida, utilizada pelos produtores cultu-rais, que consiste em inserir - sistematica-mente - os discursos, as prticas e as re-presentaes dos excludos na espessura dascorporeidades miditicas. Assim, entre osfluxos dos meios e das mediaes, o livroAbusado consiste num fenmeno miditico

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    (e comunicacional) importante. Sem rancor,nem ressentimento, com perspiccia, humore ironia, um contingente importante de agen-tes culturais (intelectuais, jornalistas, escri-tores, artistas, dramaturgos, cineastas, entreoutros) - de modo sensvel e inteligente - tmsinalizado um novo sentido produo cul-tural brasileira.

    Assim, alm das repeties, dos clichse esteretipos da mdia globalizada, encon-tramos no espao pblico algumas diferen-as especficas, um amplo repertrio comu-nicante contendo expresses de oralidade,sonoridade e visibilidade intempestivas. Emverdade so expresses abusadas (crticas,indignadas - e de certo modo - inventivas etransformadoras) que ressignificam a paisa-gem cotidiana.

    8 Antecedentes das imagens eletras abusadas

    Nos anos 60/70, os discursos e prticas dosagentes culturais - fazendo face ditaduramilitar - experimentaram o exerccio de umculto da marginalidade como estratgia deenfrentamento a um regime poltico de exce-o. Neste sentido emblemtico o sloganutilizado pelo artista plstico Hlio Oiticica:Seja marginal, seja heri!. Detectamosali uma certa sensibilidade que - de algummodo - comeava a reterritorializar os espa-os e tempos do universo cultural brasileiro.Naquela poca, durante os chamados anosde chumbo, no Brasil do milagre econ-mico (e mesmo do ps-milagre) havia umaf cega nos discursos em favor dos exclu-dos, dos marginalizados, dos deserdados daterra. Ainda no vivencivamos a sndrome

    das balas perdidas, dos assaltos e seqestrosem srie, do crime global e dos narcodlares.

    Por uma srie de motivos de diversas or-dens os discursos voluntaristas e engajadosarrefeceram, mudaram de forma. Por umlado, as indstrias culturais absorveram estesdiscursos de transgresso, inverteram os seussinais, mudando o seu sentido e sua direo.No obstante, as vozes dos excludos no tar-dariam a assumir novas configuraes e a sedisseminar na cena cultural brasileira. Semiluses, sem maquiagem nem meias palavrasos discursos dos marginalizados se tornarammais agressivos, mais virulentos e isto logose faria sentir nas diferentes formas de re-presentao. Nos jornais da televiso, nascanes populares (o pagode, o funk, o rap),no vesturio (tachas, peircings, moicanos,carecas), nas estruturas sensveis do cotidi-ano (gestos, linguagens e comportamento) -principalmente a partir dos anos 80/90 - as-sistimos as aparies visveis e sonoras dastribos que, performatizando uma espcie deeterno retorno do recalcado, infiltraram-seatravs das frestas do cotidiano, criando umanova tica e esttica da vida comunitria.

    Os produtos de cultura e de comunicao,como Abusado, que se nutrem da casa, da ruae das vibraes miditicas, sinalizam os ca-minhos para uma conscincia tica pelo visdas emoes, sensaes, afetos e sentimen-tos. Eles podem nos levar tambm a dis-cutirmos como os atores sociais (e suas tri-bos) encontram modos de identificao faces imagens e figuras da violncia e do medo.E alertam para as alteridades do medo, pelavia da coragem e da esperana, mas tambmdo humor e da ironia. Tudo isso se exibe far-tamente nas mdias impressas, visuais e so-noras, exigindo o rigor de novas leituras einterpretaes. nesta direo que podera-

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    mos vislumbrar uma trajetria do romanceAbusado, que virtualmente - se presta sdiversas atualizaes em cinema, televiso eDVD.

    Partimos do pressuposto que neste novomilnio se desenham cartografias urbanasnos permitindo visualizar novos estilos deexcluso e integrao social, formas emer-gentes de identidade e sociabilidade. Tudoisso configura novos desafios e exige novasposturas crticas e compreensivas aptas paradecifrar o sentido da nova desordem socialbrasileira e o lugar dos indivduos, num am-biente que apesar de catico e violento nocessa de sinalizar agenciamentos afirmati-vos. O livro Abusado emana bons press-gios, na medida em que decide enfrentar osdesafios e assumir uma nova postura face narrao do crime, castigo e seus desdobra-mentos na cultura das redes.

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    AberturaElementos para uma sociologia da mdiaBreve digresso em torno do ttulo AbusadoO xtase e a tirania da publicidadeO lado mau e lado bom da banda miditicaA tica e a terceira margem do texto jornalsticoUma antropolgica do cotidiano do morroAntecedentes das imagens e letras abusadasReferncias bibliogrficas