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 outraspalavras.net http://outraspalavra s.net/capa/a-grecia-p oe-na-mesa-a-carta-da-democracia/  Antonio Martins A Grécia põe na mesa a carta da democracia O primeiro-ministro grego, Ale xis Tsipras, encontra-se com chefes de Estado da Alemanh a e França, há uma semana. Pressionado pela aristocracia financeira, ele soube dizer “não”. Chantageado pelos credores, governo convoca plebiscito sobre “ajuste” imposto ao país. Oligarquia financeira vacila. O que a atitude representa, em termos globais Por Antonio Martins “A revolução não será televisionada”, lembra um documentário de enorme repercussão na década passada. Em certas ocasiões, os grandes impasses históricos desenvolvem-se diante dos nossos olhos – e o velho jornalismo tornou-se incapaz de narrá-los. Um deles começou a se desenrolar na manhã deste sábado (27/6) e vai se estender até 5 de Julho. T em como protagonista o primeiro-ministro da Grécia, Alexis T sipras, eleito no início do ano por um partido-movimento organizado em rede e partidário de uma nova ordem internacional. Pressionado pelos credores do país, que querem impor redução de direitos sociais para rolar uma dívida financeira, o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, convocou, em pronunciamento pela TV , um plebiscito sobre a proposta. Considerou que ela equivale a um “ultimato”, uma “tentativa de humilhar o povo grego”. Disse esperar dos eleitores “um grande não”. Lembrou que passava a palavra a eles por considerar a democracia “um valor supremo da sociedade grega”.  A consulta popular , um recurso essencial da política, foi considerada um tapa na cara pelos demais governantes dos países da zona do euro – todos implicados em políticas de . “Estou muito desapontado”, afirmou Jeroen Dijsselbloem, o membro do Partido Trabalhista Holandês  (supostamente de centro-esquerda) que preside o chamado “eurogrupo”. Ainda no sábado, reunido em Bruxelas, o órgão respondeu à convocação democrática com uma demonstração de força bruta. A proposta de Atenas, que pedia adiar a decisão sobre a rolagem da dívida por apenas sete dias – até que se conhecesse a opinião popular –, foi rechaçada. O Banco Central Europeu (BCE) decidiu não manter as linhas de crédito automáticas que normalmente oferece aos bancos de todo o continente. A consequência imediata, todos sabiam, seria o início de uma crise bancária na Grécia  – cidadãos correndo aos caixas para retirar seus depósitos, sem poder fazê-lo. T sipras não se intimidou. Em novo pronunciamento aos gregos, anunciou um feriado bancário de sete dias (até a apuração dos votos do plebiscito). A medida tem conteúdo igualitário. No período, as retiradas de dinheiro ficarão limitadas a 60 euros por dia, seja qual

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A Grécia Põe Na Mesa a Carta Da Democracia

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    AntonioMartins

    A Grcia pe na mesa a carta da democracia

    O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, encontra-se com chefes de Estado da Alemanha e Frana, h umasemana. Pressionado pela aristocracia financeira, ele soube dizer no.

    Chantageado pelos credores, governo convoca plebiscito sobre ajuste imposto ao pas. Oligarquia financeiravacila. O que a atitude representa, em termos globais

    Por Antonio Martins

    A revoluo no ser televisionada, lembra um documentrio de enorme repercusso na dcada passada. Emcertas ocasies, os grandes impasses histricos desenvolvem-se diante dos nossos olhos e o velho jornalismotornou-se incapaz de narr-los. Um deles comeou a se desenrolar na manh deste sbado (27/6) e vai se estenderat 5 de Julho. Tem como protagonista o primeiro-ministro da Grcia, Alexis Tsipras, eleito no incio do ano por umpartido-movimento organizado em rede e partidrio de uma nova ordem internacional. Pressionado pelos credoresdo pas, que querem impor reduo de direitos sociais para rolar uma dvida financeira, o primeiro-ministro daGrcia, Alexis Tsipras, convocou, em pronunciamento pela TV, um plebiscito sobre a proposta. Considerou que elaequivale a um ultimato, uma tentativa de humilhar o povo grego. Disse esperar dos eleitores um grande no.Lembrou que passava a palavra a eles por considerar a democracia um valor supremo da sociedade grega.

    A consulta popular, um recurso essencial da poltica, foi considerada um tapa na cara pelos demais governantes dospases da zona do euro todos implicados em polticas de . Estou muito desapontado, afirmou JeroenDijsselbloem, o membro do Partido Trabalhista Holands (supostamente de centro-esquerda) que preside ochamado eurogrupo. Ainda no sbado, reunido em Bruxelas, o rgo respondeu convocao democrtica comuma demonstrao de fora bruta. A proposta de Atenas, que pedia adiar a deciso sobre a rolagem da dvida porapenas sete dias at que se conhecesse a opinio popular , foi rechaada.

    O Banco Central Europeu (BCE) decidiu no manter as linhas de crdito automticas que normalmente oferece aosbancos de todo o continente. A consequncia imediata, todos sabiam, seria o incio de uma crise bancria na Grcia cidados correndo aos caixas para retirar seus depsitos, sem poder faz-lo. Tsipras no se intimidou. Em novopronunciamento aos gregos, anunciou um feriado bancrio de sete dias (at a apurao dos votos do plebiscito). Amedida tem contedo igualitrio. No perodo, as retiradas de dinheiro ficaro limitadas a 60 euros por dia, seja qual

  • for o volume depositado em cada conta bancria. Esto suspensas, alm disso, as transferncias de recursos aoexterior.

    A ousadia de Tsipras provocou uma reviravolta. O poder econmico dos gregos nfimo, diante dos tecnocratas daUnio Europeia (UE) mas a convocao do plebiscito um tapa democrtico sobre um tabuleiro viciado. Nestasegunda-feira, os mercados financeiros europeus abriram em meio a uma incerteza prxima do pnico. As aesesto caindo fortemente, nas bolsas de valores de Londres, Frankfurt, Paris e Amsterdam, as mais importantes docontinente. As aes mais desvalorizadas so as dos maiores bancos europeus. O secretrio de Finanas dos EUA,Jacob Lew, achou prudente intervir, e recomendar cautela aos governantes do Velho Continente empenhados empressionar Atenas. H semanas, ele havia advertido: ningum sabe se o sistema financeiro internacional, aindaenvolto em crise, suportar o impacto de um trauma como o de uma eventual expulso da Grcia do euro..

    Nos prximos sete dias, estar em jogo muito mais que uma disputa entre Atenas e Bruxelas. As sociedades tm odireito de construir coletivamente seu futuro? Ou devem curvar-se ao que Marx chamou, de modo sarcstico, de asguas glidas do clculo econmico? Num tempo em que a aristocracia financeira nova classe global de super-ricos parece cada vez mais forte e insensvel aos velhos valores civilizatrios, ser possvel encontrar uma brechaem seu sistema de dominao?

    * * *

    Ao contrrio do que tentam fazer crer as manchetes dos jornais de hoje, o est em jogo na disputa entre a Grcia eseus credores muito mais que uma querela econmica e tcnica. Do ponto de vista financeiro, a crise grega poderiaser resolvida sem sobressalto algum. Desde 2010, a UE emprestou Grcia algo como 316 bilhes de dlares. Asduas linhas de crdito que precisam ser renovadas nas prximas semanas 1,8 bilho de dlares junto ao FMI,mais 7,5 bilhes de euros ao BCE perfazem apenas 3% deste total. Se as negociaes se arrastam h cincomeses porque est em jogo muito mais que uma ninharia percentual.

    Por trs dos nmeros, cada parte tenta validar seus projetos de longo prazo para as sociedades e sua relao comas finanas. Quando evitaram que o Tesouro grego quebrasse, h cinco anos, seus credores, reunidos na chamadatroika (BCE, Fundo Monetrio Internacional-FMI e Comisso Europeia-CE), impuseram, como condio, um ataquerude aos direitos sociais dos gregos, aos servios pblicos e soberania do pas sobre si mesmo. Os acordos entreas duas partes foram estabelecidos em dois documentos, conhecidos como Memorandos (1 2). Produzirampolticas que elevaram o desemprego a quase 30% (60% entre os jovens), privatizaram em massa de portos aredes de infraestrutura a parques pblicos e stios arqueolgicos , ampliaram a carga de impostos (tornando-a, aomesmo tempo, mais injusta) e reduziram, at mesmo em termos nominais, o salrio mnimo e as aposentadorias.

    O projeto de unidade europeia construdo pacientemente a partir do Tratado de Roma (1957), nas dcadas decapitalismo keynesiano, implicava difundir o modelo do Estado de Bem-estar Social. Mas aps a crise de 2008, aEuropa reduziu-se ao continente da regresso de direitos e aumento da desigualdade O dinheiro destinado aogoverno grego jamais produziu benefcio coletivo algum: retornou integralmente aos bancos privados a quem o pasdevia. O movimento foi chamado de austeridade um termo enganoso e interesseiro. Oculta o fato de que oslucros e salrios dos banqueiros e demais membros da aristocracia financeira recuperaram-se e voltaram aospatamares nababescos de antes da crise enquanto, nas ruas, multiplicam-se os sem-teto e os que se alimentamda sopa dos pobres.

    A emergncia do Syriza, o partido-movimento a que pertence Alexis Tsipras, desmontou a trama, ao jogar luz sobreela. No pas europeu mais atingido pelas novas polticas, o grupo chegou ao governo em janeiro. Embora ligadosao pensamento anti e ps-capitalista, seus membros apresentaram um programa moderado e realista, que se apoiaem quatro pilares todos de natureza social-democrata: a) enfrentar a crise humanitria; b) reativar a economia,

  • com Justia Fiscal; c) um Plano Nacional de Retomada do Emprego; d) Reforma Poltica para aprofundar ademocracia. Embora contido, o projeto claro: os eleitores gregos votaram numa proposta que exige a reviso dosMemorandos firmados com a troika.

    Para surpresa de muitos, a oligarquia financeira recusou-se ao dilogo efetivo, mesmo diante desta propostaconciliadora. Em fevereiro, poucas semanas depois de assumir o governo, o Syriza enfrentou a primeira bateria denegociaes com a troika. O resultado foi uma espcie de empate. Para postergar, por quatro meses, o vencimentode dois emprstimos, os gregos recuaram de medidas como a reverso das privatizaes. Pela primeira vez emcinco anos, no entanto, a resistncia de Atenas impediu que o governo fosse obrigado a anunciar novos cortes dedireitos. Este fato provocou um primeiro desconforto, num cenrio poltico europeu marcado pelo conservadorismo.Governos como os da Espanha, Portugal e Irlanda constrangeram-se diante de um desfecho que mostrou, paraseus prprios eleitores, que poderia valer a pena resistir.

    Em junho, quando este acordo provisrio expirou e as negociaes foram retomadas, a troika voltou com sanguenos olhos. Inspirando-se em medida semelhante oferecida Alemanha , em 1953, Atenas reivindica uma reduo nadvida, para que seja possvel melhoras as condies de vida da populao e relanar a economia. Os credores nose limitam a repelir a proposta. Exigem que o Syriza traia seu programa e se desmoralize. No abrem mo de duasmedidas emblemticas, pela enorme repercusso poltica que teriam junto aos gregos: nova reduo no valornominal das aposentadorias (a terceira, em cinco anos) e aumento dos impostos indiretos os mais injustos e osque so sentidos mais imediatamente pela populao.

    Desde meados de junho, o eurogrupo viu-se imerso numa bateria frentica de negociaes. Alm das reunies entrechefes de Estado, os ministros de Finanas foram convocados a Bruxelas cinco vezes, nos ltimos dez dias. Atenaschegou a lanar propostas aparentemente conciliadoras, para tensionar o discurso dos credores. Sugeriu, porexemplo, que o ajuste fiscal reivindicado pela troika poderia ser feito tributando os mais ricos. No houve o menorsinal de recuo. No sbado, quando todas as possibilidades de negociao se esgotaram, Tsipras colocou na mesa acarta do plebiscito aprovado pelo Parlamento em sesso de emergncia, um dia depois. Agora, as propostas datroika tero de ser feitas a todo o povo grego, que se pronunciar no prximo domingo. Mas quais as condiesconcretas para continuar resistindo?

    * * *

    Na era da ultra-mercantilizao, nada mais eficaz, para submeter um Estado ou sociedade rebelada, que o fantasmade uma crise bancria. Em 11 de fevereiro, apenas quinze dias aps a posse de Alexis Tsipras em Atenas, o BancoCentral Europeu agiu conscientemente para evocar uma destas crises na Grcia. Numa deciso casustica, eledecidiu excluir o pas do mecanismo de assistncia automtica que oferece aos bancos da eurozona, quandoenfrentam dificuldades momentneas de liquidez. Desde ento, o auxlio aos bancos gregos precisa ser autorizado,caso a caso, pelos dirigentes do prprio BCE. Quem reconheceu o vis poltico da deciso foi a revista Economist,insuspeita de qualquer simpatia pelo Syriza: foi um tiro de advertncia disparado contra o novo governo, admitiuela.

    Inserida na zona do euro, a Grcia abriu mo do poder de emitir moeda. E, sociedade dividida em classes, passou asofrer, tambm desde a chegada do Syriza ao poder, a presso das elites, interessadas em fazer todo o possvel amudanas no status-quo. A partir de janeiro, os bancos vivem um processo de retiradas predatrias e cada vezmais macias de dinheiro, feitas pelos mais ricos. J em fevereiro, o montante total dos depsitos havia cado para140,5 bilhes de euros, o mais baixo em dez anos, desde a criao da moeda nica europeia.

    O movimento intensificou-se desde ento e se converteu em bola de neve medida em que os credoresendureceram as condies para um acordo. Os saques subiram a 300 milhes dirios na semana entre 13 e 20 dejunho e a bi a cada 24 horas, desde ento. No ltimo fim de semana, antes de o governo estabelecer um limitedirio equnime para as retiradas, havia longas filas diante dos caixas eletrnicos. Temeu-se pelo pior: alm de nohaver mais dinheiro nos bancos, surgiu o risco de faltarem recursos para pagar, na virada do ms, os aposentados e

  • pensionistas O New York Times no deixou de captar as possveis consequncias polticas. Na Argentina, umacrise bancria que eclodiu em janeiro de 2001 derrubou trs presidentes em cinco dias. Houve quem especulasse: aUnio Europeia estar tramando uma mudana de regime em Atenas?

    possvel, porm, que estas especulaes no levem em conta outro aspecto, de sentido contrrio. Caso a rupturase consume, e impea Atenas de saldar tambm seus compromissos internacionais, qual ser o impacto sobre osmercados financeiros internacionais? O pensamento convencional prev repercusso limitada. O PIB anual daGrcia, de 242 bilhes equivale a apenas 1,34% do europeu. Os grandes bancos do Velho Continente j teriamprecificado o risco de uma retirada grega da zona do euro (a Greek Exit, ou Grexit) ou seja, teriam feitoprovises para absorver os eventuais prejuzos.

    Mas talvez valha a pena ouvir duas opinies ilustres e divergentes. No final de maio, o secretrio de Tesouro dosEUA, Jacob Lew, advertiu seus colegas do G7 sobre as consequncias a seu ver desconhecidas da possvelgrexit. S sabemos ao certo que estamos aumentando os riscos de um acidente [financeiro] quando deixamos deagir at que chegue o prximo prazo fatal, disse ele. Um dia depois, Paul Krugman, Prmio Nobel de Economia, foialm. Mesmo no curto prazo, as salvaguardas financeiras de uma sada grega nunca foram tesstadas e poderiamperfeitamente falhar. Alm disso, a Grcia, goste-se ou no, parte da Unio Europeia e seus problemas iriam seesparramar pelos demais pases do grupo, mesmo se a barreira financeira aguentar, escreveu ele que enxerganos governantes europeus atuais a mesma tendncia alienao e cegueira poltica que levou I Guerra Mundial.

    * * *

    Indiferentes at ontem crise grega, os velhos jornais brasileiros abrem hoje suas manchetes para ela. A descobertado assunto bem-vinda, mas em todos os textos sobressai uma distoro. A crise tratada apenas em seu ladodramtico. Destacam-se os limites aos saques nos bancos, as filas quilomtricas, os temores dos aposentados. como se estivssemos diante de uma fatalidade trgica: os gregos desobedeceram os deuses, os mercados agora, assistiremos ao castigo.

    Nesta cobertura invertida, o que no se menciona, ou se subestima, precisamente o fato novo, a notcia. Tsipras eo Syriza convocaram um plebiscito. A sociedade ser ouvida, ao invs de convidada a submeter-se (como no Brasildo ajuste fiscal) a polticas apresentadas como to inevitveis como os terremotos ou as grandes secas ou osterremotos. Abriu-se, subitamente, uma brecha na ditadura financeira.

    Saberemos aproveit-la? Os prximos sete dias sero decisivos. O gesto de Tsipras agrega uma nova incgnita equao, num mundo marcado por imensos riscos e oportunidades. E se as populaes da Espanha, Portugal ouIrlanda para no falar dos outros pases europeus exigirem tambm ser consultadas, sobre os programasimpostos a seus pases? E se o recm-fundado Banco dos BRICS oferecer a Atenas amparando-se na imensafartura das reservas monetrias chinesas os recursos de que precisa para se livrar da crise? E se, no Brasil,algum propuser um referendo sobre o ajuste fiscal tambm concebido para permitir elevao dos juros eenriquecimento ainda maior da aristocracia financeira?

    Os dados esto lanados e o resultado final j no depende apenas do interesse dos mercados mas das atitudese posturas que tomaremos, coletiva e individualmente. Costumava-se dar a isso o nome de democracia.

    A Grcia pe na mesa a carta da democracia