Upload
others
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ELIZABETH CARDOSO DE OLIVEIRA
Os Programas de Transferência Condicionada de Renda e a
proteção social na América Latina:
A experiência do Brasil, Argentina e Chile
MESTRADO EM ECONOMIA POLÍTICA
SÃO PAULO
2015
ELIZABETH CARDOSO DE OLIVEIRA
Os Programas de Transferência Condicionada de Renda e a
proteção social na América Latina
A experiência do Brasil, Argentina e Chile
MESTRADO EM ECONOMIA POLÍTICA
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Economia, sob a orientação da
Profa. Dra. Rosa Maria Marques.
SÃO PAULO
2015
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
__________________________________________________
__________________________________________________
Aos meus pais, José Lindolfo de Oliveira e Terezinha Cardoso de Oliveira,
amores mais sinceros e perenes da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Se “a gratidão é a memória do coração”, como se atribui ao filósofo grego
Antístenes, que agradecer seja, então, um tipo de souvenir que se leva de recordação das
boas viagens feitas: ainda que aparentemente simples, contém em si bem mais do que sua
forma revela. Como souvenir dessa bela viagem que foi o meu Mestrado Acadêmico, a todos
que foram importantes, cada um à sua maneira, para que eu concluísse mais este percurso na
minha vida, quero manifestar meus agradecimentos.
A Deus, pela vida que me concedeu, pela saúde que me outorgou, pela perseverança
que me legou, pelos obstáculos que me impôs e pelo discernimento que me facultou.
A Santo Expedito, padroeiro dos estudantes e santo da minha devoção, que me
acompanha em todos os difíceis momentos da minha jornada, seja de vida ou acadêmica,
pelo ânimo e perseverança que constantemente me renova.
Aos meus pais José e Terezinha, causa e razão da minha vida, que todo o tempo e
em todos os momentos estão ao meu lado, ainda que fisicamente distantes, apoiando-me e
incentivando-me a prosseguir.
Ao meu irmão, de sangue e de coração, Eduardo (e à linda família que ele
constituiu), sempre presente, sempre solícito, sempre companheiro, em qualquer momento
e necessidade que se me apresentem.
Aos meus grandes amigos, Shana, Vanessa e Carlos, pelos ouvidos abertos e
ombros acessíveis aos meus desabafos, como também pelos sorrisos disponíveis às minhas
alegrias.
À minha orientadora Professora Rosa Maria Marques, docente e pessoa,
paradoxalmente simples, simplesmente complexa, que conquistou minha admiração e
respeito, pela oportunidade constante de aprender.
Ao professor Antônio Carlos de Moraes, mestre e amigo, solícito, sorridente,
contagiante, pela amizade, pelas palavras sempre convenientes e sábias.
À Soninha, secretária do Programa, pelos cafezinhos, pelas tardes em companhia,
pelas palavras amigas, enfim, pela amizade e pelo carinho.
Aos meus colegas discentes do curso de Mestrado – Ricardo Tamashiro, André
Galhardo, Daniel Garzillo, Gabriel Oliveira, André Paiva, Rodrigo Hisgail, Marcelo Moser,
Liliane Regina – que se tornaram amigos, que ultrapassaram os limites das edificações da
PUC-SP, para tomar parte também na minha vida.
Aos professores Marcel Guedes Leite e Áquilas Moreira Mendes, que compuseram
minha banca de qualificação e muito me auxiliaram na direção adequada a tomar neste
estudo.
Aos professores da minha banca de defesa, Maria Lúcia Garcia e Marcel Guedes
Leite, pela dedicação e leitura atenta ao meu estudo, pelas críticas construtivas e pelo bom
caminho apontado.
Ao corpo docente do curso de Mestrado do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Economia Política, pelas importantes lições (não apenas) acadêmicas ensinadas,
devidamente aprendidas.
Aos colegas do núcleo de pesquisa Políticas para o Desenvolvimento Humano –
PDH, pelas sempre interessantes, produtivas e inspiradoras reuniões realizadas, fontes de
conhecimento nas quais frequentemente me apoiei e de onde me veio a inspiração primeira
para a construção deste trabalho.
Aos colegas do projeto de cooperação internacional – que envolve instituições do
Brasil, Chile e Cuba – indispensável ao desenvolvimento da minha dissertação e fonte
fundamental de pesquisa; pelos ensinamentos, pela dedicação e seriedade com que assumem
este projeto, pela sempre agradável convivência.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, por tudo o que vivi e aprendi ao
longo desses dois anos como mestranda, pela receptividade com que fui e sou recebida por
todos, de professores, a funcionários e colegas de turma.
Ao Brasil, por me subsidiar durante o período de estudo, acreditando na formação
profissional e humana de seus cidadãos.
RESUMO
O objetivo que se persegue neste trabalho consiste em descrever, comparar e
analisar os principais Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCR) vigentes
no Brasil, Argentina e Chile, implantados a partir dos anos 2000, tendo como quadro
conceitual e referencial, principalmente mas não apenas, os trabalhos desenvolvidos por
Castel acerca do papel social do Estado, à vista da experiência do Welfare State nas
sociedades europeias ocidentais. Especificamente, os programas tratados neste estudo são o
Programa Bolsa Família (PBF), do Brasil; a Asignación Universal por Hijo (AUH) e a
Asignación por Embarazo (AEPS), pertencentes ao subsistema não contributivo do regime
de Asignaciones Familiares, da Argentina; e, do Chile, o Sistema Chile Solidario (SCS) e o
programa Ingreso Ético Familiar (IEF). Em última instância, busca-se – mediante a análise
dos referidos programas, da trama conceitual supracitada e a partir do debuxo dos sistemas
de proteção social dos países em foco – inferir se a inserção dos PTCR nesses países alterou
a lógica de seus respectivos sistemas de proteção social e em que medida isso é generalizável
para o continente latino-americano, diante de um contexto de reconfiguração do social – sob
a égide das condicionalidades e dos processos de mercantilização. Ademais, pretende-se
ainda expor e discutir, de maneira crítica ainda que sumariamente, a questão das
condicionalidades e a mercantilização do social por elas impostas e a natureza, bem como a
potencialidade, dos objetivos precípuos perseguidos por este tipo de programa. Ao fim da
pesquisa, conclui-se que a inserção dos PTCR nos três países em análise não implicou uma
alteração consistente na lógica de seus sistemas de proteção de social. Antes, o que se
conformou foi uma coexistência entre os mecanismos clássicos de proteção e os novos
instrumentos (os PTCR, neste caso). Configurou-se, assim, um gênero de proteção híbrida
nesses países.
Palavras-chave: PTCR, proteção social, condicionalidades, mercantilização
ABSTRACT
The goal is pursued in this paper is to describe, compare and analyze the main
Programs Conditional Cash Transfer (PTCR) now in force in Brazil, Argentina and Chile,
deployed from the 2000s, with the conceptual and referential framework, mainly but not
only, the work done by Castel about the State of the social role, in the light of experience of
the Welfare State in Western European societies. Specifically, the programs covered in this
study are the Bolsa Família Program (BFP) of Brazil; the Universal Asignación by Hijo
(AUH) and Asignación by Embarazo (AEPS), belonging to the non-contributory subsystem
of the allocations Family regime, Argentina; and Chile, Chile Solidario System (SCS) and
the Family Ethical Ingreso program (IEF). Ultimately, we seek - through the analysis of
these programs, the above conceptual plot and from the Sketching of social protection
systems of the focus countries - infer whether the insertion of PTCR in these countries
changed the logic of their respective systems social protection and to what extent it is
generalizable to the Latin American continent, before a reconfiguration of context the social
– under the aegis of conditionalities and the processes of mercantilization. In addition, we
intend to further expose and discuss critically albeit briefly, the issue of conditionalities and
the commodification of social which it imposes and the nature and the potential of the prime
objectives pursued by this type of program. At the end of the study, it is concluded that the
inclusion of the PTCR in the three countries under review did not result in a consistent
change in the logic of their social protection systems. Rather, what was conformed
coexistence between mechanisms classic protection and new instruments (the PTCR in this
case). Configured is thus a hybrid genre protection in these countries.
Keywords: PTCR, social protection, conditionalities, mercantilization
As fábricas encerradas,
Fechadas as oficinas;
Só estão escancaradas
As mil bocas pequeninas,
As mil bocas adoráveis,
Dos filhos dos miseráveis!
É o trabalho um dever
A que o Homem foi sujeito?
Nós julgamo-lo um direito.
Qual será maior pesar:
Pedir pão e não o ter,
Ou não ter onde o ganhar?
Roberto Eduardo da Costa Macedo
Escritor e poeta português.
SUMÁRIO
Lista de Quadros................................................................................................................ xiii
Lista de Gráficos................................................................................................................ xiv
Lista de Tabelas................................................................................................................. xvi
Lista de Figuras.................................................................................................................. xvii
Lista de Siglas e Abreviações............................................................................................ xviii
INTRODUÇÃO................................................................................................................ 23
1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL.............................................................. 29
1.1. O ideário liberal e o advento da questão social................................................... 30
1.2. O compromisso social......................................................................................... 34
1.3. O papel do social................................................................................................. 38
1.4. A crise do social.................................................................................................. 43
1.5. O social na América Latina................................................................................. 51
1.6. Os sistemas de proteção social do Brasil, Argentina e Chile................................ 62
1.6.1. O sistema de proteção social brasileiro................................................................. 63
1.6.2. O sistema de proteção social argentino................................................................ 74
1.6.3. O sistema de proteção social chileno................................................................... 79
2. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE
RENDA NA AMÉRICA LATINA: A EXPERIÊNCIA DO BRASIL,
ARGENTINA E CHILE...................................................................................
85
2.1. Programa Bolsa Família – Brasil......................................................................... 86
2.1.1. Antecedentes históricos e origem........................................................................ 87
2.1.2. Aspectos legais e operacionalização.................................................................... 89
2.1.3. Público-alvo e benefícios..................................................................................... 90
2.1.4. Condicionalidades................................................................................................ 94
2.1.5. O Programa Bolsa Família em números.............................................................. 96
2.1.6. Impactos do Bolsa Família.................................................................................. 101
2.2. Asignación Universal: Familiar e para Protección Social – Argentina............... 113
2.2.1. Aspectos preliminares e origem........................................................................... 114
2.2.2. Subsistema contributivo....................................................................................... 116
2.2.3. Subsistema não contributivo................................................................................ 121
2.2.4. O subsistema não contributivo em números – AUH e AEPS................................ 127
2.2.5. Impactos da AUH e AEPS................................................................................... 132
2.3. Sistema Chile Solidario e Ingreso Ético Familiar – Chile................................... 135
2.3.1. Aspectos preliminares e origem........................................................................... 135
2.3.2. Chile Solidario..................................................................................................... 136
2.3.3. Ingreso Ético Familiar......................................................................................... 140
2.3.4. Chile Solidario e Ingreso Ético Familiar em números.......................................... 147
2.3.5. Impactos dos programas chilenos......................................................................... 148
3. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE
RENDA SOB PERSPECTIVA COMPARADA............................................. 150
3.1. Análise comparativa dos programas..................................................................... 151
3.2. A proteção social e a inserção dos PTCR.............................................................. 161
4. AS CONDICIONALIDADES E OS OBJETIVOS DOS PTCR: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES........................................................................................... 164
4.1. As condicionalidades e a mercantilização do social............................................. 165
4.2. Redução e superação da pobreza.......................................................................... 167
4.2.1. O curto prazo: redução da pobreza....................................................................... 168
4.2.2. O longo prazo: superação da pobreza................................................................... 174
CONCLUSÕES................................................................................................................ 177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 182
xiii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Sistema de Proteção Social – Brasil........................................................... 74
Quadro 2 – Sistema de Proteção Social – Argentina.................................................... 79
Quadro 3 – Sistema de Proteção Social – Chile............................................................ 84
Quadro 4 – Valores dos benefícios do Programa Bolsa Família................................... 93
Quadro 5 – Condicionalidades do Programa Bolsa Família......................................... 95
Quadro 6 – Valores, público-alvo e condicionalidades da AUH e da AEPS................ 126
Quadro 7 – Valores dos benefícios do Ingreso Ético Familiar – 2014.......................... 145
Quadro 8 – Condicionalidades do Ingreso Ético Familiar............................................ 146
Quadro 9 – Panorama dos PTCR do Brasil, Argentina e Chile..................................... 158
xiv
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Evolução do gasto fiscal total com benefícios do PBF (2004-2014) –
valores correntes........................................................................................... 99
Gráfico 2 – Valor máximo do benefício mensal (R$) – valores correntes.................... 100
Gráfico 3 – Número de pessoas pobres e extremamente pobres................................... 102
Gráfico 4 – Número de residentes em domicílios pobres e extremamente pobres........ 103
Gráfico 5 – Taxa de fecundidade total – Brasil (1960-2010)........................................ 107
Gráfico 6 – Taxa de fecundidade durante a década de implantação do PBF (2003-
2014)............................................................................................................. 107
Gráfico 7 – Percentual de crianças com vacinação em dia e acompanhadas pelo SUS
– condicionalidades de saúde........................................................................ 109
Gráfico 8 – Percentual de crianças, de 6 a 15, com acompanhamento de frequência
escolar – condicionalidade de educação........................................................ 110
Gráfico 9 – Evolução do grau de desigualdade – Coeficiente de Gini.......................... 113
Gráfico 10 – Gasto total, em Pesos, com pagamento de benefício da AUH, segundo
tipo de prestação............................................................................................ 130
Gráfico 11 – Evolução dos valores da AUH, por tipo de benefício............................... 131
Gráfico 12 – Evolução da quantidade de beneficiárias na AEPS - mar./2011 a
dez./2011....................................................................................................... 132
Gráfico 13 – Influência da AUH na distribuição de renda: Coeficiente de Gini do
IPCF, com e sem AUH (2007-2012)............................................................. 134
Gráfico 14 – Bonos de protección – Chile Solidario (2006-2010)................................ 148
Gráfico 15 – População em condição de pobreza e indigência e Coeficiente de Gini
(1990-2009).................................................................................................. 149
Gráfico 16 – Nível de gasto e proporção da população atendida por PTCR não
contributivo, em países selecionados da América Latina – 2012................... 159
Gráfico 17 – América Latina e Caribe: incidência de extrema pobreza a US$1,25
dia/pessoa...................................................................................................... 170
xv
Gráfico 18 – América Latina e Caribe: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa... 170
Gráfico 19 – Argentina: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa............ 171
Gráfico 20 – Argentina: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa......................... 172
Gráfico 21 – Chile: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa................... 172
Gráfico 22 – Chile: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa................................. 173
Gráfico 23 – Brasil: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa.................. 173
Gráfico 24 – Brasil: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa................................ 174
xvi
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Benefícios previdenciários emitidos (dez./2013)........................................ 65
Tabela 2 – Número de famílias beneficiárias do PBF, por região e UF (dez./2013).. 97
Tabela 3 – Evolução do PBF – 2004 a 2013................................................................. 98
Tabela 4 – População por estratos de renda – Brasil (2003 e 2011).............................. 104
Tabela 5 – Composição familiar por estrato de renda – Brasil (2003 e 2011)............... 106
Tabela 6 – Valores da AAFF – subsistema contributivo.............................................. 120
Tabela 7 – Distribuição da AUH, por faixas de idade (abril/2014)............................... 127
Tabela 8 – Cobertura dos menores de 18 anos (2011-2014)......................................... 128
Tabela 9 – Distribuição territorial da AUH, por região (dez./2011)............................. 129
xvii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Estrutra do Sistema Chile Solidario............................................................ 139
Figura 2 – Infográfico do Ingreso Ético Familiar: público-alvo e benefícios............... 142
Figura 3 – Pilares e caráter das transferências do Ingreso Ético Familiar.................. 143
xviii
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
Siglas
AAFF Asignación Familiar por Trabajador
ADP Administrador de Datos de Personas
AEPS Asignación por Embarazo para Protección Social
AFIP Administración Federal de Ingresos Públicos
AFP Administradoras de Fondos de Pensiones
AIBF II Avaliação de impactos do Bolsa Família (2ª rodada)
ANSES Administración Nacional de la Seguridad Social
APS Aporte Previsional Solidario
APV Ahorro Previsional Voluntario
AUH Asignación Universal por Hijo para Protección Social
BIRD Banco Interamericano de Desenvolvimento
BVJ Benefício Variável Jovem
BNA Banco de la Nación Argentina
BPC Benefício de Prestação Continuada
BSP Benefício para Superação da Extrema Pobreza
CadÚnico Cadastro Único
CEF Caixa Econômica Federal
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e Caribe
CF Constituição Federal do Brasil (1988)
CIB Comissões Intergestores Bipartite
xix
CIT Comissão Intergestores Tripartite
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNPS Conselho Nacional de Previdência Social
COEGEMAS Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social
COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
CONASEMS Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
CONASS Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde
CONGEMAS Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social
CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
COSEMS Conselho de Secretários Municipais de Saúde
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social
EPH Encuesta Permanente de Hogares
FAO Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
FGS Fondo de Garantía de Sustentabilidad
FMI Fundo Monetário Internacional
FNAS Fundo Nacional de Assistência Social
FONASA Fondo Nacional de Salud
FONSEAS Fórum Nacional de Secretários de Estado de Assistência Social
FPM Fundo de Participação dos Municípios
FPS Ficha de Protección Social
GEPM Garantía Estatal de Pensión Mínima
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IEF Ingreso Ético Familiar
xx
IGF Ingreso del Grupo Familiar
INDEC Instituto Nacional de Estadística y Censos
INSS Instituto Nacional de Seguro Social
IPCF Ingreso Per Capita Familiar
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ISAPRE Instituciones de Salud Previsional
LOAS Lei Orgânica da Assistência Social
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MDS-Ch Ministerio de Desarrollo Social (Chile)
MEC Ministério da Educação
MECON Ministerio de Economía y Finanzas Públicas
MF Ministério da Fazenda
MIDEPLAN Ministerio de Planificación
MINEDUC Ministerio de Educación
MINSAL Ministerio de Salud (Chile)
MINTRAB Ministerio del Trabajo y Previsión Social
MINVU Ministerio de Vivienda y Urbanismo
MPAS Ministério da Previdência Social
MS Ministério da Saúde
MSAL Ministerio de Salud (Argentina)
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
MTEySS Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social
OIT Organização Internacional do Trabalho
OMS Organização Mundial de Saúde
xxi
PAP Prestación Adicional por Permanencia
PASIS Programa de Pensiones Asistenciales
PBF Programa Bolsa Família
PBS Pensión Básica Solidaria
PBU Prestación Básica Universal
PCA Programa Cartão-Alimentação
PEN Poder Ejecutivo Nacional
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PGRM Programa de Garantia de Renda Mínima
PIB Produto Interno Bruto
PMAS Pensión Máxima con Aporte Solidario
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PTCR Programas de Transferência Condicionada de Renda
RGPS Regime Geral de Previdência Social
RMG Renda mínima garantida
SAGI Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação
SAP Servicio de Alcantarillado de Aguas Servidas
SCFV Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
SCS Sistema Chile Solidario
SIMPLES Sistema Integrado de Pagamentos de Impostos e Contribuições das
Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte
SIPA Sistema Integrado Previsional Argentino
SMVM Salario Mínimo Vital y Móvil
SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social
xxii
SPS Sistema de Pensiones Solidarias
SS Seguridade Social
SUAF Sistema Único de Asignaciones Familiares
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUF Subsidio Único Familiar
SUS Sistema Único de Saúde
UNFPA Fondo de población de las Naciones Unidas en Argentina
UO Unidade Orçamentária
Abreviações
Apud Citado por
et al. Entre outros
Ibid. Na mesma obra
n. Número
p. Página (s)
p.p. Pontos percentuais
vol. Volume
23
INTRODUÇÃO
Quando em 1776, Adam Smith lançou sua obra seminal, A Riqueza das Nações,
acreditava que a incipiente estrutura capitalista seria a chave para abrir as portas ao amplo
desenvolvimento dos Estados-nação. De fato, ao longo de seu percurso histórico, o
capitalismo engendrou imensas riquezas, opulentou pessoas, famílias, empresas,
governantes e governos, massificou produtos e consumos, mas, também, e vigorosamente,
exacerbou desigualdades e disseminou misérias.
Ampliar-se de maneira incessante, esta é a característica intrínseca do capital, como
ensinou Marx. E, para tal, não há barreiras geográficas, sociais, políticas ou mesmo morais.
Parece não haver empecilhos de qualquer natureza, obstáculos de qualquer gênero, que não
possam ser vencidos, transpostos, ultrapassados, excedidos, destruídos, subjugados.
Habitamos um mundo, nos dias atuais, onde as grandes corporações transnacionais
dominam as economias, ditam padrões desmedidos de consumo e de comportamento,
excluem milhões de trabalhadores do processo produtivo, cada vez mais poupador de mão
de obra, influenciam politicamente governos e organismos internacionais diversos, saqueiam
países com seus mecanismos de financeirização, comprometem as gerações futuras com a
ostensiva degradação ambiental em prol de uma produção massificada e aprisionam milhões
de pessoas na indigência. Eis a configuração contemporânea.
Dada tal configuração, uma antonímia se coloca. Antonímia que opõe o capitalismo
de seu limiar, “utópico”, “ideal”, idilicamente gerador e propagador de riquezas, ao
capitalismo contemporâneo concreto, concentrador de fortunas, produtor de desigualdades e
indigências, destruidor de suas forças produtivas, em prol de uma contínua acumulação.
Desta maneira, passados mais de duzentos anos desde o lançamento d’A Riqueza
das Nações, parece-nos que aquilo que o capitalismo mais tem desenvolvido é, ao contrário,
a “pobreza das nações”, um estado tal de disparidades, injustiças e insuficiências que pode
ser considerado como um empobrecimento múltiplo e generalizado das sociedades humanas.
A exacerbação da condição de pobreza (o pauperismo), derivada e ampliada do
desenvolvimento capitalista ao longo dos dois últimos séculos, engendrou problemáticas (de
24
conflitos, marginalização e exclusão) que se configuraram em uma verdadeira questão
social. O embate que historicamente se desenvolveu nas sociedades acerca desta questão
culminou, em última instância, na construção de sistemas de proteção social cada vez mais
institucionalizados e complexos, voltados a proteger os indivíduos dos riscos prementes de
natureza biológica e social. Estes sistemas encontraram plena institucionalização através da
atribuição ao Estado da proteção social, constituindo o que veio a ser chamado de Estado
Social, ou ainda Estado do Bem-Estar (Welfare State). A construção histórica da proteção
social contemporânea tem seu fundamento nas lutas e mobilizações dos trabalhadores
assalariados, que desde os estágios iniciais do capitalismo se manifestaram no mundo do
trabalho. Por outro lado, ao institucionalizar e assumir a proteção em seu papel social, o
Estado concorreu favoravelmente para a consolidação do próprio assalariado.
Desta forma, esta dissertação parte de uma explanação essencialmente centrada no
arcabouço conceitual construído por Castel (1995, 2010, 2011, 2011b), a respeito do
desenvolvimento histórico e da situação contemporânea da questão social, como da
construção do Estado Social, nas sociedades europeias ocidentais. Tal questão, segundo o
autor, corresponde ao dilema elementar acerca do qual a sociedade indaga-se sobre sua
própria coesão, sobre sua capacidade de manter-se enquanto um conjunto de indivíduos
vinculados por relações de interdependência. A questão social tem seu fundamento na
degradação das relações laborais, que degradam igualmente o laborante, lançando-o em uma
situação de vulnerabilidade social, quando não de miséria. A degradação dessas relações
resulta diretamente da excessiva exploração capitalista, marcante do advento e consequente
avanço da indústria nascente. A partir desta degradação, diversas foram, e continuam sendo,
as formas de enfrentamento a esta questão. A promoção do social pelo Estado, através do
compromisso social estabelecido no apogeu do capitalismo, constituiu-se como a via
principal de manutenção do laço social. Do papel social assumido pelo Estado, emergem
proteções sociais, pautadas na incondicionalidade e universalidade do direito e da cidadania.
Contudo, ao longo do tempo e decorrentes da própria dinâmica dos processos de
transformação do sistema capitalista, esse Estado passa a ter seu papel social
progressivamente deteriorado e reorientado. Em vista disso, a promoção do social tem sido
readaptada às novas configurações que ele vem adquirindo, implicando que as políticas
sociais, consequentemente, transformem-se e ganhem um caráter mercantil e condicionado,
o que corresponde, em grande medida, ao estado vigente de tratamento da questão social.
25
Consequentemente, surgem novos gêneros de política no âmbito do social. Neste contexto,
emergem os Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCR), como importante
instrumento de política social, particularmente nos países da América Latina, objetos deste
estudo. Esses programas representam uma outra lógica de concessão de proteção, vis-à-vis
as estruturas do social até então vigentes no continente.
Assim, o objetivo que se persegue nesta dissertação está vinculado a esse novo
gênero de política social e consiste em descrever, comparar e analisar os PTCR, na
configuração vigente da proteção social na América Latina. Busca-se analisá-los à luz da
construção conceitual supracitada, procurando adequá-la ao desenvolvimento histórico e à
conjuntura social particular do continente latino-americano. Pretende-se, em última
instância, a partir de tal comparação e análise dos programas, responder à pergunta que
orienta este trabalho: em que medida a introdução dos PTCR (que possuem uma lógica
própria e distinta) modifica a natureza da proteção social até então existente na América
Latina? Em outras palavras, os PTCR prestam-se a substituir ou a complementar as demais
políticas sociais?
Além disso, como objetivo secundário, pretende-se realizar uma explanação e
discussão acerca das condicionalidades e da mercantilização do social derivada de sua lógica
de “toma lá, dá cá”, como também abordar e controverter as premissas por trás dos objetivos
precípuos perseguidos por este tipo de programa.
Contudo, na impossibilidade de operar a descrição, comparação e análise dos PTCR
para cada país do continente, escolheram-se para este estudo três países, a saber Brasil,
Argentina e Chile. Examinam-se os seguintes PTCR: o Programa Bolsa Família (PBF), do
Brasil; os programas Asignación Universal por Hijo para Protección Social (AUH) e
Asignación por Embarazo para Protección Social (AEPS), integrantes do regime de
Asignaciones Familiares, da Argentina; e, finalmente, do Chile, o sistema Chile Solidario e
o programa Ingreso Ético Familiar. Estes três países foram escolhidos como
“representantes” ou “tipos exemplares” dos programas de transferência condicionada de
renda, implementados em diversos países latinos sob diferentes configurações, embora
assemelhados em seus elementos constitutivos fundamentais. A escolha dos países
mencionados explica-se por alguns critérios. No caso do Brasil, a escolha se pautou pelo fato
de o PBF constituir-se no programa de transferência condicionada de renda de maior
26
magnitude do continente, e do mundo, tanto pelo contingente de beneficiários atendidos,
quanto pela extensão territorial alcançada, como também pelo volume de recursos
monetários aplicados. Quanto ao Chile, por ter sido o primeiro país latino-americano a adotar
o modelo neoliberal, na esfera econômica e também social, mercantilizando sua proteção à
população. No que se refere à Argentina, o porquê de sua escolha se fundamenta no fato de,
ao contrário dos outros dois países citados, o PTCR argentino constituir-se em um direito e
não uma ação de assistência, não possuindo, em tese, restrições de vínculo político ou
orçamentário, motivo pelo qual é importante contrapô-lo aos demais.
Nesta dissertação, empregaram-se as pesquisas bibliográfica e documental,
fundamentando a investigação na ampla literatura afim ao tema, através de diversas obras,
estudos e fontes existentes – como artigos, livros, sites institucionais e governamentais, entre
outras fontes.
Para alcançar os objetivos propostos, foram adotados diversos métodos na
realização deste trabalho. Utilizaram-se, a saber, os métodos: histórico, por analisar,
também, mas não unicamente, fenômenos passados vis-à-vis os presentes; comparativo, por
realizar analogias entre tais fenômenos, comparar os diferentes programas entre si assim
como seus resultados, procurando suas similaridades e divergências; descritivo, por
descrever as características dos programas; analítico, por analisar as informações, dados,
conceitos, processos e fenômenos descritos; e, finalmente, estatístico, por pautar algumas
argumentações em certos dados empíricos.
Além desta introdução, a dissertação conta com mais quatro capítulos, subdivididos
em seções. No capítulo 1, intitulado “A questão social do social”, estrutura-se e explicita-se
o aparato conceitual sobre o qual o trabalho está alicerçado. Este capítulo está dividido em
seis seções. A primeira delas, refere-se à concepção liberal, enquanto embasamento
ideológico dos processos econômicos e sociais, e do advento da questão social, nas
sociedades europeias ocidentais do século XVIII. A questão social coloca-se pela exploração
capitalista imposta aos trabalhadores e pelo recrudescimento do pauperismo da população,
como produto da indústria em suas fases iniciais. Desse contexto emerge o dilema social
acerca da aptidão da sociedade em manter-se coesa ante o risco de rompimento de seu elo.
Este dilema, que representa a questão social, engendra, em última instância, o germe para o
processo de desenvolvimento e posterior configuração que tomará a proteção social. A
27
seguir, o capítulo se volta ao processo de construção do “pacto” entre capital e trabalho, que
teve lugar no período conhecido como “anos gloriosos” do capitalismo. O Estado
intermediou este compromisso, de onde deriva a função social que então passou a assumir.
Em sequência, na terceira seção, o objeto é a trajetória de evolução e institucionalização da
proteção social e do papel social que o Estado exerce. Após, na seção quatro, são tratados os
elementos que concorrem para a paulatina desconstrução, iniciada ao término dos anos de
ouro do capitalismo, do papel social do Estado e mesmo dos pilares embasadores da proteção
social. Na quinta seção, introduz-se a América Latina, no que concerne ao debate acerca da
formação e configuração atual dos sistemas de proteção social no continente. A nova
conformação desses sistemas incorpora um particular gênero de política, que são os
programas de transferência condicionada de renda (PTCR), implantados no continente a
partir da década de 1990, e os fundamentos sobre os quais tais programas se embasam. O
questionamento que se coloca é, em que medida, este novo gênero de política significa ou
não um novo paradigma para a proteção social existente na América Latina. Por isso, a
última seção é dedicada a apresentar um retrato, em linhas mais ou menos gerais, dos
sistemas de proteção social do Brasil, Argentina e Chile, de forma a favorecer o debate e a
análise acerca da mudança (ou não) da natureza desses sistemas, com a inserção dos PTCR.
No capítulo 2, cujo título é “Os Programas de Transferência Condicionada de Renda
na América Latina: a experiência do Brasil, Argentina e Chile”, são expostos os PTCR
selecionados, sob o aspecto de seu desenho institucional, assim como de seu marco legal,
operacionalização, público-alvo, benefícios e condicionalidades. Ademais, apresentam-se
alguns dados disponíveis sobre tais programas, acerca de sua dimensão, cobertura, resultados
e impactos, dentre outros. Trata-se de um capítulo essencialmente descritivo.
O capítulo 3 realiza uma análise comparativa de tais programas, a partir de seus
elementos constitutivos fundamentais, tais como descritos no capítulo precedente. O capítulo
divide-se em duas seções. Na primeira, cotejam-se três programas: o Programa Bolsa
Família – PBF (Brasil), a Asignación Universal por Hijo – AUH (Argentina) e o Ingreso
Ético Familiar – IEF (Chile). A segunda seção é dedicada a analisar, discutir e comparar a
inserção dos PTCR nos países em exame e o lugar que tais programas ocupam no respectivo
sistema de proteção social, de maneira a identificar se ocorreu ou não uma alteração
substancial nos referidos sistemas a partir da inserção dos PTCR em sua estrutura.
28
O quarto e último capítulo, enfim, coloca em debate alguns aspectos acerca das
condicionalidades e dos objetivos perseguidos pelos PTCR. Duas seções compõem o
capítulo. Na primeira, discutem-se as condicionalidades, suas premissas embasadoras, seu
papel no âmbito dos PTCR, a mercantilização do social que acarretam e a pretensão que
perseguem. A seção seguinte aborda e discute os dois principais objetivos preconizados
pelos PTCR: a diminuição da pobreza vigente e sua superação intergeracional. Ao fim,
encontram-se as conclusões, onde se busca realizar uma análise geral das questões abordadas
e debuxar algumas inferências acerca da pergunta orientadora deste trabalho.
29
1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL
Este capítulo tem por objetivo apresentar o arcabouço conceitual, assim como os
fundamentos da construção e evolução da proteção social e do papel social assumido pelo
Estado, considerando principalmente as abordagens desenvolvidas por Castel (1995, 2010,
2011, 2011b) e por Marques (1997), porém, pontuando-as com contribuições de outros
autores afins ao tema.
O capítulo encontra-se dividido em seis seções. Na primeira, abordam-se o ideário
liberal e a questão social, no contexto das sociedades europeias ocidentais no século XVIII.
O ideário liberal fundamenta ideologicamente tanto a Revolução Industrial quanto a
Revolução Francesa, naquele período. A questão social, por seu turno, segundo a abordagem
aqui considerada, impõe-se devido à exploração exacerbada infligida aos operários, à
deterioração das relações laborais e ao consequente aprofundamento da pobreza e miséria
da população, que derivam do processo de advento e desenvolvimento da indústria em suas
fases iniciais. Estes fatores engendram o dilema social que o profundo pauperismo da
população trabalhadora da época coloca para as sociedades europeias. Criam-se, assim, as
raízes para o desenvolvimento e institucionalização que, posteriormente, a proteção social
alcançará. A segunda seção, por sua vez, trata sobre os determinantes da construção do
“compromisso social” que se estabeleceu entre capital e trabalho, no apogeu do capitalismo.
Este compromisso, ou pacto, foi intermediado pelo Estado, o que o levou a assumir um papel
social crescente. Em seguida, na terceira seção, abordam-se a evolução da proteção social,
assim como o papel social exercido pelo Estado. A seção seguinte apresenta os fatores que
implicam a progressiva desconstrução do papel social assumido pelo Estado, como também
dos próprios fundamentos que embasaram a proteção social durante o período de apogeu do
capitalismo. Na sequência, a quinta parte deste capítulo insere a América Latina na discussão
acerca da construção, avanço e (re)configuração contemporânea da proteção social. Esta
(re)configuração considera o novo gênero de política, corporificado nos programas de
transferência condicionada de renda (PTCR), que se implantam no continente a partir da
década de 1990, e os fundamentos sobre os quais tais programas se embasam. O
questionamento que se coloca é, em que medida, a inclusão dos PTCR implica, ou não, um
novo paradigma para a proteção social existente na América Latina. Uma vez que se coloca
30
tal questionamento, cumpre conhecer a configuração dos sistemas de proteção social nos
países considerados neste estudo, para fornecer parâmetros de cotejo e inferência à questão
levantada, a saber, se a inclusão dos PTCR altera ou não a natureza dos referidos sistemas.
Deste modo, a sexta seção deste capítulo realiza uma apresentação sintética dos sistemas de
proteção social do Brasil, Argentina e Chile.
1.1. O ideário liberal e o advento da questão social
A partir do século XVIII, as concepções liberais ganharam prevalência e tornaram-
se dominantes no pensamento econômico. Estas concepções preconizavam a noção de um
mercado autônomo, naturalmente regulado e regulador “natural” das relações produtivas e
sociais. De maneira que a posição de cada indivíduo no conjunto social, assim como as
relações entre eles estabelecidas, definiam-se pela forma como estes se encontravam
inseridos no processo produtivo desse mercado. Ao Estado, apenas caberia o papel de
garantir a ordem e a segurança, para a manutenção da propriedade privada (CUNHA &
CUNHA, 2008, p.11).
O ideário liberal de então, pontificado pelos economistas clássicos (e que será
retomado a partir da década de 1970 sob a alcunha de “neoliberalismo”), apregoava uma
economia capitalista utópica, ideal, uma economia de pleno emprego dos recursos e da força
de trabalho, autorregulável, geradora e propagadora de riquezas, mas que não encontrava
respaldo na realidade.
Como considerou Keynes (2013, p.29), dois séculos mais tarde, referindo-se a esses
economistas clássicos, como também aos seus coetâneos cujas análises econômicas
fundamentavam-se na mesma matriz teórica clássica, eles eram:
(...) cândidos, que, tendo se retirado do mundo para cultivarem seus jardins, nos
ensinam que tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis (...). Pode ser
que a teoria clássica represente o caminho que desejaríamos que a nossa economia
seguisse. Mas supor que na realidade ela se comporta desse modo é supor que
todas as dificuldades foram afastadas.
Keynes, portanto, já no século XX, chama a atenção para algo que desde o princípio
do capitalismo se mostrava patente, qual seja, que o pensamento ortodoxo, apesar de sua boa
estética, não reflete a realidade do funcionamento econômico. Por isso, ao contrário do que
31
propunha a concepção liberal, no lugar da plena utilização dos recursos e do pleno emprego
da força de trabalho, o que de fato se propagou, concomitantemente ao desenvolvimento da
incipiente indústria capitalista, foram o pauperismo e a miséria da parcela da população sem
posses, nas sociedades europeias ocidentais dos séculos XVIII e XIX.
O advento da Revolução Industrial implicara novas formas de produção e de
participação no processo produtivo. Estas novas relações eram essencialmente opressoras,
instigadas pelo espírito maximizador dos capitalistas e favorecidas pela falta de qualquer
controle, por parte do Estado, das atividades produtivas e laborais. Infligia-se, desse modo,
à população um grave estado de vulnerabilidade1 social. Como destaca Castel (2011, p.37),
ao expor a situação do operariado na indústria nascente, havia naquele período:
1 O termo “vulnerabilidade” aparece referenciado em diversos autores afins à temática do social, bem como
referido em documentos de política social e nas próprias definições adotadas por diversos programas no que
concerne ao seu público-alvo e objetivos. O conceito de vulnerabilidade, porém, não encontra pleno consenso
na literatura. Em vista disso, optou-se neste estudo por adotar uma abordagem mais ampla para tal conceito,
consoante à Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, assumida pela Política Nacional de
Assistência Social (PNAS) e pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em suas
ações socioassistenciais. Para melhor esclarecimento acerca dessa concepção, segue trecho de documento
elaborado pelo MDS:
“Não há um significado único para o termo vulnerabilidade. (...) Por esse motivo, diversas teorias, amparadas
em diferentes percepções do mundo social e, portanto, com objetivos analíticos diferentes, foram
desenvolvidas.
(...) As situações de vulnerabilidade podem decorrer: da pobreza, privação, ausência de renda, precário ou nulo
acesso aos serviços públicos, intempérie ou calamidade, fragilização de vínculos afetivos e de pertencimento
social decorrentes de discriminações etárias, étnicas, de gênero, relacionadas à sexualidade, deficiência, entre
outros, a que estão expostas famílias e indivíduos, e que dificultam seu acesso aos direitos e exigem proteção
social do Estado. Com intuito de subsidiar a reflexão sobre o conceito de vulnerabilidade adotado pela
PNAS/2004, seguem algumas considerações de diferentes autorias:
Kaztman: o autor elabora a concepção “ativos-vulnerabilidades” – a qual é utilizada pela Comissão Econômica
para América Latina e Caribe - CEPAL. Segundo essa compreensão, as vulnerabilidades resultam da relação
entre duas variáveis: estrutura de oportunidades e capacidades dos lugares (territórios). Compreende-se por
estrutura de oportunidades a composição entre: a) mercado; b) sociedade; e c) Estado. Já o conceito de
capacidades dos lugares (territórios) diz respeito às possibilidades de acesso a condições habitacionais,
sanitárias, de transporte, serviços públicos, entre outros - fatores que incidem diretamente no acesso diferencial
à informação e às oportunidades e, consequentemente, no acesso a direitos. Nessa perspectiva, são as diferentes
combinações entre ambas variáveis que originam tipos e graus de vulnerabilidade diferenciados. Os atores
sociais, portanto, não dependem somente de sua capacidade de gerenciamento de ativos, mas de um contexto
histórico, econômico e social formado de oportunidades e precariedades, bem como da intermediação/proteção
da estrutura estatal para que consigam usufruir dos diferentes tipos de ativo necessários para responder às
situações de vulnerabilidade.
Dieese – Unicamp: segundo o DIEESE, o termo vulnerabilidade define a zona intermediária instável que
conjuga a precariedade do trabalho, a fragilidade dos suportes de proximidade e a falta de proteção social.
Assim, se ocorrer algo como uma crise econômica, o aumento do desemprego e a generalização do
subemprego, a zona de vulnerabilidade dilata-se, avança sobre a zona de integração e gera a desfiliação. As
situações de vulnerabilidade social devem ser analisadas a partir da existência ou não, por parte dos indivíduos
ou das famílias, de ativos disponíveis e capazes de enfrentar determinadas situações de risco. Logo, a
vulnerabilidade de um indivíduo, família ou grupos sociais refere-se à maior ou menor capacidade de controlar
as forças que afetam seu bem-estar, ou seja, a posse ou controle de ativos que constituem os recursos requeridos
para o aproveitamento das oportunidades propiciadas pelo Estado, mercado ou sociedade: a) físicos – meios
32
(...) uma vulnerabilidade de massa que afeta grandes camadas populares. Em
particular, a maior parte dos assalariados de então era condenada a uma
precariedade permanente e a uma insegurança cotidiana pela ausência de um
mercado organizado de trabalho. Os mais vulneráveis desses vulneráveis
oscilavam entre a mendicância e a vagabundagem (...).
Segundo o autor, a doutrina da Revolução Francesa, que se seguiu à Revolução
Industrial, servindo-lhe de aparato ideológico, difundia a tese de que o livre acesso ao
trabalho (isto é, a um mercado de trabalho não regulado) melhoraria a condição de vida dos
trabalhadores, permitindo que todos encontrassem trabalho e, ainda, possibilitaria que o
capitalismo incipiente se desenvolvesse de forma livre pela própria dinâmica de
funcionamento do mercado. Entretanto, no que concerne aos trabalhadores, isto não ocorreu
(CASTEL, 2010, p.65-66).
Deste modo, no limiar do capitalismo2, no lugar da promessa dos clássicos ou da
esperança propagada pela Revolução Francesa, o que se assistia era a uma deterioração das
já antes deterioradas condições de trabalho dos trabalhadores urbanos da época. A diferença
para o bem-estar – moradia, bens duráveis, poupança, crédito; b) humanos: trabalho, saúde, educação
(capacidade física e qualificação para o trabalho); e c) sociais – redes de reciprocidade, confiança, contatos e
acessos à informação. Assim, a condição de vulnerabilidade deve considerar a situação das pessoas e famílias
a partir dos seguintes elementos: a inserção e estabilidade no mercado de trabalho, a debilidade de suas relações
sociais e, por fim, o grau de regularidade e de qualidade de acesso aos serviços públicos ou outras formas de
proteção social.
Marandola Jr. e Hogan: o termo vulnerabilidade é chamado para compor estudos sobre a pobreza enquanto um
novo conceito forte, na esteira dos utilizados no passado, tais como: exclusão/inclusão, marginalidade,
apartheid, periferização, segregação, dependência, entre outros. Enfatiza-se também que o termo
vulnerabilidade tem sido empregado para tratar do cerceamento dos bens de cidadania – seja em função de
uma diminuição de renda ou de perda de capital social.
A partir desse breve percurso sobre a concepção de vulnerabilidade, pode-se afirmar que a abordagem adotada
pela PNAS, ao dialogar com as análises mencionadas, possibilita à assistência social uma visão menos
determinista e mais complexa das situações de pobreza, pois dá um sentido dinâmico para o estudo das
desigualdades, a partir da identificação de zonas de vulnerabilidades, possibilitando um maior poder
explicativo de uma realidade social, composta por uma heterogeneidade de situações de desproteção social.
Nessa direção, pode-se afirmar: a) A vulnerabilidade não é sinônimo de pobreza. A pobreza é uma condição
que agrava a vulnerabilidade vivenciada pelas famílias; b) A vulnerabilidade não é um estado, uma condição
dada, mas uma zona instável que as famílias podem atravessar, nela recair ou nela permanecer ao longo de sua
história; c) A vulnerabilidade é um fenômeno complexo e multifacetado, não se manifestando da mesma forma,
o que exige uma análise especializada para sua apreensão e respostas intersetoriais para seu enfrentamento; d)
A vulnerabilidade, se não compreendida e enfrentada, tende a gerar ciclos intergeracionais de reprodução das
situações de vulnerabilidade vivenciadas; e) As situações de vulnerabilidade social não prevenidas ou
enfrentadas tendem a tornar-se uma situação de risco” (MDS, 2012, p.12-15).
2 O limiar do capitalismo, enquanto sistema hegemônico, equivale ao advento da indústria, a partir do século
XVIII. A indústria capitalista comanda o capitalismo durante os séculos XVIII e XIX. Ao fim do século XIX,
será o capital a juros que predominará no capitalismo, até a Crise de 1929. A partir do fim da Segunda Guerra
Mundial, como próprio resultado do pós-Guerra, o capitalismo industrial retomará a dominância no sistema,
atingindo seu ápice nos trinta anos seguintes ao término da Segunda Guerra, período conhecido como os “anos
gloriosos” ou “anos de ouro” do capitalismo.
33
é que, como alega Castel (2010, p.66-67), com o advento da indústria capitalista e do livre
mercado de trabalho, passava a existir o contrato de trabalho, uma ordem contratual, que
legitimava a exploração do trabalhador por parte do capitalista, sem conceder nenhum
estatuto jurídico ao trabalho.
A liberdade do então novo livre mercado de trabalho do capitalismo nascente
submetia a população a um estado de precariedade inexorável, implicando sua crescente
exploração, pauperização e miséria. Sob este cenário, emerge a questão social, que, nas
palavras de Castel (1995, p.18), trata-se de:
(...) uma aporia [dilema] fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o
enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. Ela é um desafio que
interroga, que põe em questão a capacidade de uma sociedade de existir enquanto
um conjunto ligado por relações de interdependência.3 (Tradução nossa)
A questão social, portanto, coloca-se diante do risco de fratura social, da ameaça de
rompimento da coesão de uma sociedade, quando esta se encontra abalada em seu alicerce,
enquanto um conjunto de pessoas vinculadas por interdependências. Desta maneira, o
problema da questão social passa a se evidenciar quando a existência crescente de indivíduos
não incorporados (ou mal incorporados) ao mercado de trabalho engendra pressões sociais,
ameaçando a estabilidade do corpo social (CODES, 2008, p.7).
Uma das formas pelas quais tais pressões se manifestavam consistia nas frequentes
greves e conflitos que tiveram lugar nas sociedades da Europa Ocidental, quando da indústria
capitalista emergente. Marx e Engels (2002, p.37) descrevem a natureza dos embates que
então ocorriam:
Inicialmente, operários entram em luta isoladamente; em seguida, operários de um
setor industrial, em um mesmo local, contra um mesmo burguês, que os explora
diretamente. Dirigem seus ataques não somente contra as relações burguesas de
produção; dirigem-nos também contra os próprios instrumentos de produção;
destroem as mercadorias estrangeiras concorrentes, quebram máquinas,
incendeiam fábricas (...).
Sob este contexto, e por ele, surgiram e se desenvolveram os movimentos
revolucionários de caráter socialista, ameaçando a recém-conquistada hegemonia do
3 “(...) une aporie fondamentale sur laquelle une société expérimente l’énigme de sa cohésion et tente de
conjurer le risque de sa fracture. Elle est un défi qui interroge, remet en question la capacité d’une société à
exister comme un ensemble lié par des relations d’interdépendance.” (CASTEL, 1995, p.18).
34
capitalismo, colocando a sociedade diante do risco de sua fissura, ao questionar-se de sua
capacidade em sustentar os vínculos de interdependência das relações que a fundamentam.
Todas as sociedades repousaram no antagonismo entre classes opressoras e
oprimidas. Mas, para se oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe condições
para que possa, no mínimo, prolongar sua existência servil. (...) O operário
moderno em vez de elevar-se com o progresso da indústria, decai cada vez mais,
abaixo das condições de sua própria classe. O operário transforma-se em
indigente, e a miséria cresce mais rápido do que a população e a riqueza.
Evidencia-se, assim, que a burguesia é incapaz de permanecer por mais tempo
como classe dominante (...). É incapaz de dominar, pois é incapaz de assegurar a
seu escravo a própria existência no âmbito da escravidão, porquanto é compelida
a precipitá-lo numa situação em que tem que alimentá-lo em vez de por ele ser
alimentada. (MARX & ENGELS, 2002, p.44)
Em suma, a questão social tem seu âmago na questão laboral. Emerge da exploração
do capitalismo sobre a classe trabalhadora urbana, ao imprimir-lhe uma forte degradação,
não apenas no que concerne aos aspectos do trabalho, mas também de sua condição social e
humana, situando-a em uma posição de profunda vulnerabilidade, ampliando seu
pauperismo e sua miséria.
1.2. O compromisso social
Diante da questão social que se impunha, o desenvolvimento dos sistemas de
proteção social ganhou ênfase no mundo do trabalho, como instrumentos de redução da
situação precária em que viviam os trabalhadores. Tal desenvolvimento tem sua base na
iniciativa dos próprios trabalhadores assalariados vinculados à indústria, que se
“organizaram na forma de ‘ajuda mútua’, buscando promover a cobertura de riscos tais
como: a doença, o desemprego, a morte e a velhice” (MARQUES, 1997, p.14), de maneira
a amenizar a demasiada precariedade que lhes atingia. Nesse momento, nem o Estado e
tampouco os empregadores contribuíam com mecanismos significativos de proteção. Os
trabalhadores por seu poder organizativo, principalmente através dos sindicatos, promoviam
sua “autoproteção”.
Como esclarece Marques (1997, p. 36), os mecanismos primários de proteção social
desenvolvidos no âmbito das organizações sindicais procuravam realizar dois objetivos
precípuos:
35
De um lado, tratavam de preencher o vazio ocasionado pela destruição das antigas
formas de solidariedade, associadas às corporações de ofício e à vida no campo,
provocado pelo rápido crescimento da indústria e das cidades. Naquele momento,
dada a situação em que viviam os trabalhadores, mesmo a família e a vizinhança
não conseguiam se colocar como efetiva rede de proteção. De outro lado, serviam
como garantia mínima para que os trabalhadores não ficassem completamente à
mercê das condições, de trabalho e salário, oferecidas pelos capitalistas.
Isto posto, tem-se que o grau do poder organizativo dos operários, expresso pelas
organizações sindicais, refletia diretamente tanto a existência quanto a capacidade de
cobertura promovida pelos instrumentos rudimentares de proteção social que puderam ser
construídos pelos trabalhadores ainda nos estágios incipientes do capitalismo, nos séculos
XVIII e XIX.
Segundo Marques (1997), o avanço e a expansão dessa ação organizada dos
trabalhadores, através dos sindicatos e dos mecanismos de proteção, levam o Estado a
progressivamente encarregar-se da incumbência de promover as proteções sociais, a partir
do início do século XX. Por conseguinte, o papel social que o Estado passará a assumir, o
que lhe valerá o adjetivo de “Social”, deriva essencialmente da pressão que a organização
trabalhista e sua presença política exercem nas sociedades.
Ao atribuir-se um papel social crescente, o Estado é colocado como uma espécie de
intermediador, do que Castel (2010) chama de “compromisso social”. Trata-se de um tipo
de “pacto” implícito que se celebra entre capitalistas e trabalhadores. Este pacto se
apresentou como uma opção reformista, não revolucionária (ou, ainda, antirrevolucionária),
para equilibrar os interesses do capital e do trabalho. Tal pacto consistia na mudança do
status do trabalho (que será então incorporado ao âmbito do direito) e na institucionalização
da proteção social. Sendo assim, esse compromisso social que se engendra no interior do
capitalismo, a partir do início do século XX e que se consolida no período dos “anos
gloriosos”, nas sociedades europeias ocidentais, debilitou as forças revolucionárias, assim
como enfraqueceu a dicotomia capital x trabalho, burguesia x operariado. A diferenciação
entre grupos e segmentos sociais passou a centrar-se essencialmente nos diferenciais de
salários e não mais em classes antagônicas (CASTEL, 2010, p.19).
Além disso, tal compromisso concorreu para a própria formação do assalariado, ao
tornar o assalariamento “atraente” ao trabalhador – nas palavras de Marques (1997, p.38) –
em função da mudança no status do trabalho e das proteções que passam a ser asseguradas
pelo Estado, o que “possibilitou a transformação em massa da força de trabalho despossuída
36
em trabalho assalariado” (LENHARDT & OFFE, 1984, p.17). Estruturou-se, assim, uma
sociedade salarial. Nas palavras de Castel (2011b, p.285), a sociedade salarial:
(...) não é somente uma sociedade na qual a maioria da população é assalariada,
ainda que seja verdade. (...) Mas uma sociedade salarial é sobretudo uma sociedade
na qual a maioria dos sujeitos sociais têm sua inserção social relacionada ao lugar
que ocupam no salariado, ou seja, não somente sua renda, mas também seu status,
sua proteção, sua identidade.
Segundo Castel (2010), o capitalismo, durante os referidos “anos gloriosos” (entre
o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos de 1970), alcançou o seu apogeu e obteve êxito
em promover este tipo de compromisso social, que fora capaz de amenizar o peso das
desigualdades e controlar os abusos patronais. A essência das relações entre capitalistas e
trabalhadores, todavia, não se alterou, mas passaram a ser mediadas por regras, direitos e
deveres. Tal compromisso tornou-se possível pelo estabelecimento de uma nova condição
salarial e laboral para os trabalhadores, consubstanciada no estatuto do emprego e na
proteção social, que passava a lhes conceder garantias fundamentais.
A consolidação e consistência dessa nova condição laboral, doravante apoiada e
assegurada pelo estatuto do emprego e pela proteção, basearam-se na estruturação coletiva
dos trabalhadores. Ocorrera um processo de “desindividualização”, ou “coletivização”,
como nomeia Castel (2010, p.24). O “coletivo” era o seu alicerce: os coletivos sindicais, as
convenções e regulações coletivas, e, principalmente, o Estado Social, o “coletivo por
excelência”, nas palavras do autor, orquestrando tal aparato, concedendo um aspecto legal
ao equilíbrio que então se estabelecia entre os distintos interesses do capital e do trabalho e
constituindo-se em peso favorável ao trabalho para nivelar tal relação.
Como considera Castel (2010), o trabalhador isoladamente, assim como o seu
trabalho, não possuía qualquer importância frente ao poder do capital. Por isso, a organização
coletiva dos trabalhadores foi o elemento crucial na transformação que sua própria condição
de trabalho alcançou no período dos anos gloriosos. A partir desse período, ao inserir-se “nos
sistemas de garantias coletivas do estatuto do emprego e da proteção social”4, o trabalhador
deixava de estar em absoluta desvantagem ante sua relação com o capitalista. Portanto, por
intermédio do direito do trabalho que então lhe embasara, o trabalhador extravasava o
domínio do mero utilitarismo econômico infligido pelos capitalistas e ascendia à esfera da
4 Castel, 2010, p.24. Tradução nossa.
37
cidadania social, através das proteções e direitos aos quais se encontrava doravante
vinculado.
O compromisso social estabelecido, portanto, alcançava repelir a ameaça de fratura
da sociedade, equilibrando os interesses em disputa. Sendo assim, ao Estado, enquanto
intermediador desse pacto, fora incumbido o papel de assegurar a coesão da sociedade,
diante da questão social com a qual se defrontava. Tal papel é exercido pelo Estado pela via
do direito, ao inserir o trabalho e a proteção social neste âmbito. Desta forma, o Estado Social
que se consolida nesse compromisso fundamenta-se sob um princípio universalista, da
promoção incondicional de direitos (CASTEL, 2010).
Este compromisso social, que possibilitou ao trabalho e à proteção social tornarem-
se matéria de direito, teve sua intermediação e consolidação sob incumbência do Estado. Tal
tarefa concedeu a ele a atribuição de principal agente econômico e social nos países
capitalistas. Logo, outorgou-se ao Estado uma função cada vez maior na determinação das
trajetórias da economia e da proteção social nas sociedades modernas. O econômico e o
social tornaram-se, em consequência, objetos de política.
A maior determinação nos rumos da economia e da proteção social encontravam
respaldo teórico na influência do pensamento keynesiano. A construção teórica de Keynes
defendia um papel-chave para a atuação estatal no estímulo ao crescimento econômico e na
geração de empregos, como saída para o colapso no qual o sistema capitalista entrara após a
Crise de 1929. Tal evento e suas consequências no cenário mundial colocaram a
credibilidade da doutrina liberal ortodoxa em xeque. Diante da ineficácia do ideário ortodoxo
em propor respostas a tais problemas, as propostas de Keynes ganharam espaço, por fornecer
uma solução para a crise tanto na esfera teórica da economia quanto no campo político.
Assim, sob a validade das propostas keynesianas, o Estado e sua função social ganharam
força, consolidando-se através do compromisso social no período que se seguiu ao término
da Segunda Guerra (BURGINSKI, 2013).
Assim, por recapitulação, infere-se que o compromisso social, que se estabelece a
partir do início do século XX e que se consolida nos anos de ouro do capitalismo, tendo o
Estado por intermediário, tem sua gênese nos conflitos entre capital e trabalho na defesa de
seus distintos interesses. Como produto do processo histórico de lutas e mobilização dos
trabalhadores, o trabalho alcançará um novo status, assim como as proteções sociais serão
38
progressivamente institucionalizadas, ao serem assumidas pelo Estado. De maneira que o
estatuto do emprego e os sistemas de proteção social, que se firmarão sob a tutela do Estado
Social, devem ser considerados como conquistas dos trabalhadores e dos movimentos sociais
em prol de melhores condições de vida e de trabalho (MARQUES, 1997, p.46).
Contudo, importa frisar que apesar de constituir-se como resultado de embates entre
as classes burguesa e proletária e dos movimentos e organização dos trabalhadores, os
produtos gerados pelo compromisso social – quais sejam, a mudança do status do trabalho e
a institucionalização da proteção social – prestar-se-ão a favorecer o desenvolvimento tanto
do capitalismo industrial quanto do assalariado. Assim, o direito do trabalho e as proteções
sociais institucionalizadas serão, simultaneamente, “produtos” da mobilização dos
assalariados da indústria e também “insumos” da própria condição laboral e legal que
concorrerá para a consolidação da sociedade salarial e do desenvolvimento da indústria.
1.3. O papel do social
A partir do compromisso social, o Estado é levado a assumir um crescente papel
social que se solidifica por meio de regulações do trabalho e das proteções, de maneira a
assegurar o caráter universal e incondicional da cidadania ao conjunto da população,
concorrendo para a manutenção do elo da sociedade. Manutenção essa que fora um resultado
de todo o processo e não a sua motivação. Por este papel que lhe é colocado, o Estado desloca
o social para o domínio do público, alçando-o ao patamar de política. Em consequência, a
proteção social angaria a configuração de política pública, descolando-se da esfera da
benevolência primária e familiar de assistência aos necessitados.
Sabe-se que todas as sociedades humanas desenvolveram formas, em diferentes
épocas e sob distintas concepções, de enfrentar e lidar com as vicissitudes e riscos de
natureza biológica ou social da vida. Estas formas representam os sistemas de proteção
social, de menor ou maior grau de institucionalização, existentes nas diferentes sociedades
e períodos históricos (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2012, p.17).
Um primeiro gênero de tais sistemas equivale às proteções primárias e locais, cujo
encargo cabe ao entorno social imediato e adjacente, no qual instâncias especializadas, de
39
caráter público (o Estado) ou privado (o mercado), não intervêm. Neste sentido, quando não
plenamente institucionalizada, a proteção social corresponde, segundo Castel (1995, p.34),
ao conceito de sociabilidade primária (sociabilité primaire), que corresponde a:
(...) sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo à base de
seu pertencimento familiar, de vizinhança, de trabalho, tecendo redes de
interdependência sem mediação de instituições específicas.5 (Tradução nossa).
Como o autor pontifica, a partir do conceito de sociabilidade primária, seria lícito
pensar a existência de sociedades sem o social. Em outras palavras, sociedades onde
instituições especializadas de proteção social estivessem ausentes e o Estado, embora
existente, não exercesse a função de agente protetor (CASTEL, 2010, p.146). Neste caso, a
proteção dos membros mais vulneráveis dependeria tão somente da generosidade e
filantropia de seus próximos. Ao longo da história, a sociabilidade primária foi mantida pela
tradição e exercida pela família, vizinhos e amigos.
Posteriormente, o desenvolvimento das sociedades e a complexificação das
relações sociais levaram a proteção a exceder os vínculos primários, pois ela adquire um
caráter social mais amplo e a sociedade passa a agir sobre si mesma para proteger-se das
contingências. Neste sentido, como aborda Castel (1995, p.41), pode-se falar de uma
sociabilidade secundária (sociabilité secondaire), uma vez que se tratam de sistemas
desalinhados dos vínculos familiares e de proximidade. Assim, emerge o caráter social das
entidades religiosas e filantrópicas que também passam a encarregar-se das proteções em
diversas sociedades.
Pode-se considerar que os sistemas de proteção social desenvolvidos através da
organização dos trabalhadores nas primeiras etapas da indústria capitalista situam-se entre a
sociabilidade primária e a secundária, pois originam-se nas relações de proximidade do
trabalho, mas também as excedem por meio da progressiva expansão da cobertura das
proteções aos trabalhadores de cada setor industrial, via sindicatos e organismos coletivos,
segundo o grau de desenvolvimento organizativo dessas entidades.
5 “(...) les systèmes de règles liant directement les membres d’un groupe sur la base de leur appartenance
familiale, de voisinage, de travail, et tissant des réseaux d’interdépendances sans médiation de institutions
spécifiques.” (CASTEL, 1995, p.34).
40
Atualmente, as sociabilidades primária e secundária se configuram na atuação da
sociedade civil (uma sociabilidade terciária, poder-se-ia dizer), que engloba as entidades de
generosidade primária (familiar e de proximidade), mas também aquelas de generosidade
privada ou mercantil (instituições sociais privadas, com ou sem fins lucrativos).
De acordo com Castel (1995), a partir do desprendimento dos vínculos primários
de generosidade, formas de proteção cada vez mais complexas vão se desenvolvendo e
engendrando estruturas assistenciais mais sofisticadas. Deste modo, nas sociedades
contemporâneas capitalistas, a proteção social adquire uma crescente formalização, através
de “sistemas e organizações complexas totalmente dedicadas a prever e sanar riscos de
natureza biológica (...) bem como riscos de natureza social”, como expressam Silva, Yazbek
e Giovanni (2012, p.18).
A formalização e institucionalização do social retira-o, portanto, do puro domínio
da generosidade e passa a incluí-lo, progressivamente, no âmbito do direito. Este processo
ocorre sob a condução do Estado, que ao assumir o caráter de provedor e garantidor de
direitos e proteções, a partir do compromisso social que se consolida nos anos gloriosos,
encarrega-se da promoção do social nas sociedades. Deste modo, o Estado em seu papel
social assegura para cada indivíduo o direito coletivo adquirido.
O Estado Social que se solidifica nos anos de ouro do capitalismo, tendo por função
fundamental, segundo a abordagem de Castel (2010), zelar pela coesão da sociedade, busca
rechaçar os riscos que a ameaçam de fratura, mediante a proteção a seus membros mais
vulneráveis. Contudo, para exercer devidamente esta função, promovendo proteções aos
indivíduos diante das eventualidades de ordem natural ou social da vida, foi preciso que
instrumentos específicos fossem desenvolvidos, aptos a atender as diferentes necessidades
sociais. Estes aparatos concorreram tanto para formalizar e institucionalizar o social, quanto
decorreram de sua própria complexificação.
De acordo com Castel (2010), a complexidade do social se corrobora pela
heterogeneidade das populações atendidas. Tais populações se definem, essencialmente,
pela forma como se vinculam ao trabalho, distinguindo-se em duas categorias basilares:
válidos e inválidos.
41
Todos aqueles impossibilitados de trabalhar, por limitações físicas, etárias ou
mentais – os inválidos – encontram-se isentos desta obrigação, por possuírem motivos
socialmente considerados legítimos. A estes, a proteção social se coloca como um
imperativo moral da sociedade, que entende a necessidade de protegê-los, desde seus mais
remotos sistemas de proteção. Assim, a emergência do Estado Social, para este segmento de
assistidos, não fez mais que institucionalizar a proteção, que formalizar a assistência,
legalizando no âmbito do direito (retirando-a, por conseguinte, da esfera da mera
generosidade e da dependência) o que já se encontrava desde antes socialmente legitimado.
Por outro lado, no que concerne a todos aqueles que apesar de não possuírem
restrições (físicas, etárias ou mentais) para trabalhar, não conseguem fazê-lo ou o fazem sob
condições extremamente precárias – os válidos – e que, por isso, não possuem recursos
suficientes para subsistirem por si mesmos e tampouco para fazerem frente às vicissitudes
da vida, tal legitimidade social não se verifica. Por esta razão, a promoção do social para os
pobres e indigentes aptos ao trabalho se revelou uma tarefa de árdua concretização para o
Estado Social. Para esse segmento da população, precisou-se desenvolver uma nova
categoria de social, com mecanismos diferentes de proteção, distintos da assistência clássica
destinada aos inválidos. Tais mecanismos fundaram-se nas proteções e direitos sociais
vinculados ao trabalho, consubstanciados no estatuto do emprego e nos sistemas de proteção
social, que foram o alicerce do compromisso estabelecido no apogeu do capitalismo.
Entretanto, esta então nova modalidade do social, ao incorporar o trabalho, toca em
um ponto nevrálgico do ideário liberal capitalista, que é a premissa de livre funcionamento
do mercado. Não por outro motivo, a tarefa de institucionalizar esta modalidade foi muito
mais laboriosa ao Estado Social e, por isso, de realização mais tardia que a modalidade
clássica de assistência. Afinal, a assistência clássica – direcionada aos inválidos – não
detinha qualquer dificuldade maior à sua implantação, pois, além de moralmente legitimada,
não se imiscuía ao econômico, uma vez que seus beneficiários tratam-se justamente daqueles
isentos da obrigação de trabalhar (CASTEL, 2010). Portanto, aos assistidos desprendem-se
diferentes tratamentos, em virtude das distintas maneiras como estejam colocados em
relação ao trabalho.
Ainda de acordo com Castel (2010), a despeito da objeção capitalista quanto à nova
categoria do social, o Estado conseguiu promover as proteções para a totalidade da
42
população. Foi possível realizar tal feito em função da força que o Estado Social adquiriu
em sua construção. Ele se constituiu, no auge do capitalismo, enquanto um Estado-nação6
sólido e autônomo, responsável pelo desenvolvimento econômico e social da sociedade.
Semelhante responsabilidade assumida pelo Estado Social, imputa-lhe um papel
social mais amplo, que extravasa a promoção das proteções e assistências sociais. Por este
motivo, o Estado Social incumbe-se também da oferta de bens e serviços públicos, que, pela
sua própria natureza, são indispensáveis ao desenvolvimento social e de interesse geral da
sociedade, cuja execução plena escapa à esfera privada, por esta dedicar-se a interesses
particulares. Tais bens e serviços são tradicionalmente identificados nas áreas de educação
e de saúde e constituem elementos de alta relevância no que tange, para além do
desenvolvimento socioeconômico, à função do Estado de manutenção da coesão social. Ao
promover um sistema de bens e serviços públicos, o Estado exerce um importante papel
social, pois complementa o sistema de proteção que oferece. Pela proteção social, os
indivíduos têm proteções vinculadas ao seu trabalho, a seu ciclo de vida e à assistência. Pela
oferta pública, os indivíduos têm acesso a bens e serviços coletivos, de crucial importância
social. Tanto o sistema de proteção social como os bens e serviços públicos funcionam,
conjunta e complementarmente, como elementos fundadores da cidadania social (CASTEL,
2010, p.157).
O Estado Social, assim configurado (enquanto mediador do pacto do capitalismo e
promotor de proteções, bens e serviços sociais), encontrou sua primeira e mais acabada
expressão nas sociedades europeias ocidentais, em virtude do desenvolvimento industrial
pioneiro, da mobilização e organização trabalhista que os operários alcançaram e da posição
política e econômica privilegiada em que se encontravam em relação ao mundo. Tal
configuração do Estado Social, contudo, não é uma regra para todos os continentes e regiões
do planeta. Do mesmo modo como é possível pensar em sociedades sem o social, anteriores
ao advento do Estado de Bem-Estar, baseadas unicamente em sociabilidades primárias, há
ainda hodiernamente sociedades onde não se manifesta a presença ou mesmo a existência
deste modelo de Estado, como em alguns países africanos, conforme Castel (2010). Na
América Latina, alguns países, como Argentina e mesmo o Brasil, desenvolveram sistemas
6 O Estado Social apoia-se no Estado-nação construído no auge do capitalismo, mas, do ponto de vista do
desenvolvimento do social, contraditoriamente, isso foi feito já na fase imperialista, fase de crises e revoluções.
43
de proteção social mais complexos7, embora não equiparáveis aos europeus. Por
conseguinte, pode-se inferir que o Estado Social se edifica por um processo histórico,
vinculado às especificidades sociais, políticas, econômicas e até culturais sob as quais ele é
erigido, possuindo, por esta razão, estrutura, força e amplitude distintas entre as diferentes
sociedades.
1.4. A crise do social
A crise que abalou o sistema capitalista na década de 1930 repercutiu por algumas
décadas na economia mundial e somente após a Segunda Guerra finalizou-se de fato, quando
se inaugurou uma fase de prosperidade no sistema. Essa crise implicou o repensar dos
fundamentos ideológicos do capitalismo e levou à ascensão teorias e políticas favoráveis a
uma maior intervenção estatal no âmbito econômico e social, propostas por Keynes, o que
coadunado à crescente pressão trabalhista, à ameaça do socialismo e à questão social que se
fundara no advento e desenvolvimento do capitalismo industrial, favoreceram as
circunstâncias sob as quais o Estado Social emergiu. Este Estado consolidou-se e
predominou durante o período conhecido como “anos gloriosos”, que correspondem aos
trinta anos seguintes ao término da Segunda Guerra Mundial, período no qual o capitalismo
atingiu seu ápice. O Estado de Bem-Estar Social configurado nesse período representou, nas
palavras de Esping-Andersen (1995, p.73):
(...) um esforço de reconstrução econômica, moral e política. Economicamente,
significou o abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado, em favor da
exigência de extensão da segurança do emprego e dos ganhos como direitos de
cidadania; moralmente, a defesa das ideias de justiça social, solidariedade e
universalismo. Politicamente, o Welfare State foi parte de um projeto de
construção nacional, a democracia liberal contra o duplo perigo do fascismo e do
bolchevismo.
Logo, em última instância, o Estado Social foi um produto do pós-Guerra, advindo
da necessidade de reconstrução social, política e econômica das sociedades capitalistas, ao
término do conflito mundial.
7 Tais sistemas serão, sucintamente, apresentados na seção 6 deste capítulo.
44
De acordo com Marques (1997), o rápido e expressivo crescimento econômico que
os países avançados alcançaram nesse período forneceu as bases materiais para o
desenvolvimento e consolidação do próprio papel social do Estado, pois propiciou uma fonte
crescente e sólida de recursos fiscais, mediante os quais as proteções puderam ser
promovidas e ampliadas. Não apenas os benefícios garantidos pela seguridade como também
aqueles ligados ao trabalho fundamentavam-se tanto em contribuições dos empregados e
empregadores, com o concurso do Estado (a França é o país mais emblemático), como a
partir de recursos fiscais (países nórdicos). Em um primeiro momento, tais benefícios
dirigiam-se essencialmente aos trabalhadores urbanos. Porém, em função das pressões
sociais e favorecidas pelo acelerado crescimento econômico da época, as proteções foram
progressivamente estendidas, ampliando não apenas o leque de riscos cobertos como
também o público abarcado, passando a incluir aqueles sem capacidade de contribuição ao
sistema. Alcançava-se, assim, a universalização da cobertura na proteção social. Por isso,
pode-se considerar que, se por um lado, o Estado Social favoreceu a condição de
assalariamento, ao torná-la atrativa ao trabalhador por meio do estatuto jurídico do trabalho
e das proteções sociais, por outro, tanto o Estado Social como as proteções sociais foram
favorecidos pela expansão que o assalariamento auferiu, abrangendo o conjunto das
atividades humanas, através do célere crescimento econômico e do elevado nível de emprego
que as economias apresentaram no período dos anos gloriosos.
Todavia, um novo sismo estremeceu o capitalismo mundial na década de 1970,
debilitando as economias e acarretando que as políticas econômica e social de caráter
expansivo, implementadas pelo Estado Social, fossem perdendo sua eficácia, como também
o seu espaço. Segundo argumenta Marques (1997, p.58), o determinante último dessa crise
que abala o sistema capitalista, a partir dos anos setenta, é o “fim da onda larga”, isto é, o
esgotamento do ciclo de expansão que caracterizou o período dos anos de ouro do
capitalismo. Este esgotamento resultou da exaustão dos próprios mecanismos de acumulação
do período, o que passou a exigir um novo paradigma tecnológico para sua superação. A
produção e as atividades econômicas em geral serão, a partir daí, reestruturadas sob uma
nova base tecnológica, cimentada precipuamente no desenvolvimento da microeletrônica e
da informatização, que se constituirão como técnicas altamente poupadoras de mão de obra,
principalmente na indústria.
45
Ainda de acordo com Marques (1997), diante dessa nova conjuntura econômica e
tecnológica, as sociedades passaram a conviver com níveis elevados de desemprego,
contrastando sobremaneira com a situação anterior vivida nos anos gloriosos. Ademais, em
razão da própria natureza desse novo paradigma tecnológico, a persistência do desemprego
em patamar elevado ameaça consolidar-se, conformando uma nova configuração
contemporânea para o mundo do trabalho. Neste processo, as bases materiais de
financiamento e promoção das proteções sociais começam a ser tolhidas.
Sobre o conjunto deste cenário adverso que se coloca com a crise do capitalismo,
iniciada na década de 1970, avolumaram-se as críticas à proposta keynesiana, implicando o
fortalecimento da ortodoxia, que se (re)estabeleceu enquanto pensamento hegemônico, sob
a alcunha de neoliberalismo (BURGINSKI, 2013; GALLARDO & ANYUL, 2008; LIMA,
SICSÚ & PAULA, 1999). Como o define Draibe (1993, p.86,88-90):
O neoliberalismo não constitui um corpo teórico próprio, original e coerente. Esta
ideologia dominante é principalmente composta por proposições práticas e, no
plano conceitual, reproduz um conjunto heterogêneo de conceitos e argumentos,
“reinventando” o liberalismo mas introduzindo formulações e propostas muito
mais próximas do conservadorismo político e de uma sorte de darwinismo social
(...). As “teorizações” (...) neoliberais são geralmente emprestadas do pensamento
liberal ou de conservadores e quase que se reduzem à afirmação genérica da
liberdade e da primazia do Mercado sobre o Estado, do individual sobre o coletivo.
E, derivadamente, do Estado mínimo, entendido como aquele que não intervém
no livre jogo dos agentes econômicos. (...) Também no domínio das políticas
sociais, o fôlego teórico neoliberal é bastante reduzido. Suas proposições
compõem, negativamente, um conjunto de argumentos de ataque ao Estado de
bem-estar social e, positivamente, um conjunto de propostas de reformas dos
programas sociais, movendo-se sobretudo num campo mais prático de prescrições
para as políticas públicas no setor social.8
Isto posto, com o revigoramento da doutrina ortodoxa, o ideário neoliberal passa a
ocupar uma posição predominante na condução das políticas econômica e social, o que
concorrerá diretamente para o processo de progressiva desconstrução do papel social do
Estado, em vista do posicionamento ideológico e das “recomendações” práticas propagadas
por esta vertente.
O discurso neoliberal, que passa a vigorar, defende um novo modelo de acumulação
pautado sob um mercado de trabalho flexível. Segundo seus proponentes, esta seria a forma
de equilibrar a procura e a demanda por trabalho neste mercado, o que contribuiria para a
8 Grifos da autora.
46
redução do desemprego. No entanto, como já ressaltado, a própria natureza do paradigma
tecnológico implica que mesmo as novas vagas que pudessem ser geradas não compensariam
os empregos destruídos pela economia de mão de obra. Dessa forma, a flexibilização do
mercado de trabalho, defendida pela ortodoxia, poderia propiciar uma recomposição dos
lucros capitalistas, em uma tentativa de recuperar os níveis de lucratividade vigentes nos
anos de ouro, mas não asseguraria infalivelmente a recuperação das condições e dos níveis
de emprego.
A flexibilização do mercado de trabalho pretende tornar maleáveis as garantias
sociais vinculadas a ele, o que, em outras palavras, significa derrogar o estatuto jurídico do
emprego, erodir os direitos e proteções enleados ao trabalho. O estatuto do emprego vai
sendo, assim, paulatinamente enfraquecido. Este enfraquecimento do estatuto do emprego
reflete-se na crescente precarização do trabalho, nos obstáculos que têm se colocado para a
seguridade e para as proteções diversas a ele vinculadas. Tal ameaça ao estatuto do emprego
abala profundamente o principal sustento, o principal pilar, no qual a função protetora do
Estado foi edificada.
Na presença desse quadro de hegemonia do neoliberalismo e das evidentes e
crescentes dificuldades financeiras que o Estado Social enfrenta para sustentar as proteções
sociais, em vista da ameaça de consolidação de níveis elevados de desemprego e
precarização do trabalho, o que concorre diretamente contra a base contributiva que mantém
parte da seguridade, acentua-se o debate em torno do futuro dos sistemas de proteção, assim
como do próprio papel social do Estado (MARQUES, 1997). Neste cenário, emergem e
ganham força as propostas de renda mínima garantida (RMG), como opção substitutiva ou
suplementar (dependendo da vertente de pensamento que a defenda), para o conjunto de
proteções, benefícios e serviços promovido pelo Estado. De acordo com Marques (1997,
p.89), o entendimento da RMG e de sua necessidade, em função das diferentes correntes de
pensamento, distinguem-se essencialmente do seguinte modo:
Entre os neoliberais [a RMG] está associada à ideia de Estado mínimo e às
propostas de desregulamentação do trabalho e de redução ou extinção dos
encargos sociais, como condição para que as taxas de desemprego recuem, e como
requerimento da chamada globalização. No campo progressista, está associada à
construção de um novo conceito de solidariedade, entendida como necessária para
dar conta da situação criada pelo novo nível de produtividade e do novo mundo
do trabalho.
47
A autora ressalta que vários defensores da RMG advogam sua necessidade e
importância levando em conta uma tendência, que consideram inevitável, de superação da
sociedade salarial. Esta tendência se confirmaria em vista da persistência das elevadas taxas
de desemprego e da nova configuração que o mundo do trabalho tem tomado, através da
crescente precarização do emprego e das tentativas de enfraquecimento de seu estatuto. Não
obstante, aponta a autora, a pressuposição de um inevitável colapso da sociedade salarial
desatenta à possibilidade de retomada do crescimento do trabalho, seja como resultado da
mobilização trabalhista pela redução da jornada de trabalho e pela manutenção dos direitos
conquistados, seja como resultado de um novo ciclo de expansão do sistema que venha a
suscitar um aumento na demanda de mão de obra, ou seja ainda por intermédio de políticas
públicas sociais de estímulo à geração de emprego. Deste modo, a derrocada da sociedade
salarial não é um fato determinado, pelo menos não sob um ponto de vista dinâmico, que
exceda a análise estática da conjuntura atual.
No entanto, o risco de tal colapso está colocado, o que não é sinônimo de sua
inevitabilidade histórica. Entretanto, esse risco se agrava sob um cenário onde o Estado
Social, principal promotor e garantidor dos direitos coletivos e sociais no capitalismo
contemporâneo, encontra-se cada vez mais questionado e reprimido em sua função social.
Como considera Castel (2010), o Estado Social, característico do apogeu dos anos dourados
do capitalismo, tem sido combalido. Ele perde paulatinamente sua relativa autonomia ao
inserir-se em uma dinâmica de competição internacional cada vez mais acirrada, que se
avoluma com a intensificação dos processos globalizadores. Para seguir competitivo frente
às exigências da globalização e dos mercados financeiros mundializados, o Estado precisa,
diante da redução de suas receitas fiscais, eliminar custos, eleger prioridades e, neste ponto,
são os salários, as proteções e as vantagens sociais a ele vinculadas que aparecem como as
principais variáveis de ajuste.
Diante desse contexto, o Estado social perde sua força, vis-à-vis a robustez que
alcançara no apogeu do capitalismo. A promoção do social, como também a oferta de bens
e serviços públicos são coagidas, dando lugar para a crescente mercantilização que é
instigada pela doutrina neoliberal. Desse modo, não apenas o Estado Social é elanguescido,
mas o próprio papel social do Estado.
48
Concomitantemente à retomada da doutrina ortodoxa como pensamento
hegemônico, e decorrente disso, um processo de descolectivização da sociedade, como
Castel (2010) denomina, consolida-se de maneira progressiva. O caráter do “coletivo”, sob
o qual o Estado Social embasara as proteções, rui ante o crescente rogo à individualização.
“A exortação a ser um indivíduo se generaliza”9 (CASTEL, 2010, p.25). A sociedade
coletivizada, sob o Estado Social, descoletiva-se, individualiza-se. Desponta uma “sociedade
dos indivíduos” (ELIAS, 1994). Porém, a “exortação a ser um indivíduo” negligencia o fato
de que sê-lo não é um dado. Tornar-se um indivíduo é o cerne do problema, pois o indivíduo
não é algo acabado, uma “substância”, nas palavras de Castel (2010). O indivíduo é uma
construção social e histórica, e que, portanto, precisa de alicerce, de recursos para construir-
se enquanto tal.
Em face desta nova configuração de uma sociedade individualizada, as relações de
trabalho alteram-se sobremaneira. Segundo Castel (2010), cada vez mais são exigidas do
trabalhador mobilidade, adaptabilidade, responsabilidade, autonomia, tanto no que concerne
à atividade laboral e ao seu percurso profissional, quanto à sua própria vida. Daqui em diante,
cada indivíduo deve valer-se por seu mérito. A meritocracia torna-se a medida da trajetória
pessoal, profissional e social de cada um.
Sob a guarida do mérito, como o autor também ressalta, alguns indivíduos saem-se
bem, livres das “amarras” coletivas e do “peso” dos regimentos. Mas outros tantos, não
possuindo os recursos necessários para enfrentar as novas exigências, não conseguem se
inserir e, não havendo mais o coletivo (promovido pelo Estado Social) que os favorecia,
acabam por tornarem-se inválidos sociais, sem papel, sem função a exercer. Há, portanto,
um contingente amplo de indivíduos que não consegue responder adequadamente às novas
exigências impostas pelo processo de crescente individualização da sociedade.
Pode-se considerar, mesmo a partir de uma perspectiva liberal respaldada na
abordagem de Sen (2005), que tais indivíduos não possuem os “funcionamentos” necessários
para atender a esses requisitos. Os funcionamentos correspondem aos estados e ações do
indivíduo, como, por exemplo, a condição de nutrição, de educação ou mesmo seu
comportamento social. Segundo esta abordagem, é o conjunto de funcionamentos que
9 Tradução nossa.
49
determina se um indivíduo tem ou não capacidade para adquirir ou participar de algo, pois a
disponibilidade de um bem ou serviço não significa que a pessoa tenha capacidade de
adquiri-lo ou de participar dele. Deste modo, a ausência ou insuficiência de determinados
funcionamentos implica menor capacidade de resposta dos indivíduos às demandas sociais,
inclusive e principalmente do mercado laboral. Por tal perspectiva, os mais desvalidos
socialmente constituem-se em “incapacitados” a possuir ou participar de determinados bens
e serviços vinculados à vivência da sociedade. O Estado Social, enquanto promotor de bens
e serviços públicos, promove a formação desses funcionamentos ao conjunto desses
indivíduos desvalidos, tornando-os “capacitados” à tal participação social. Mas ao ter sua
função social enfraquecida, o Estado deixa de agir sobre tais sujeitos, que passam a ter que
atender por si mesmos às exigências da nova configuração do mercado.
Como argumenta Castel (2010), ao propiciar recursos e direitos basilares aos
indivíduos desprovidos de propriedade privada, o Estado, no apogeu do capitalismo, edificou
uma espécie de propriedade social, que proveu tais sujeitos de cidadania, ao valer-lhes
inserção social pela via do trabalho e das proteções e serviços sociais. Contudo, a emergência
desta “sociedade dos indivíduos” tem cada vez mais destruído a propriedade social, gerando
assim não mais indivíduos cidadãos, mas indivíduos “por defeito”, posto que são indivíduos
em termos fisiológicos e psicológicos, mas não o são no sentido social pleno, uma vez que
carecem dos recursos necessários para inserirem-se de modo adequado nas exigências do
novo regime. Logo, a sociedade dos indivíduos “maximiza as possibilidades de uns e
invalida as de outros”10 (CASTEL, 2010, p.27).
Perante esse processo, a própria questão social se metamorfoseia. Originalmente
fundada sobre a indagação acerca da capacidade da sociedade em manter-se coesa, ante os
problemas sociais que emergiam, a questão social de então teve como resposta a integração
social dos desprovidos por intermédio do emprego, alterando o status do trabalho,
embasando-o sobre direitos e garantias e promovendo a proteção social de caráter universal.
Neste sentido, o trabalho exerce o papel de ente integrador, pois através dele os sujeitos
puderam auferir um conjunto de direitos que lhes fornece garantias fundamentais,
integrando-os e habilitando-os à participação na sociedade, por meio da cidadania que
passaram a dispor. Contudo, com a fragilização do estatuto do emprego e, por consequência,
10 Tradução nossa.
50
a crescente precarização do trabalho, segundo Castel (2011b, p.281), a nova questão social
“parece ser o questionamento dessa função integradora do trabalho na sociedade”. Porém,
cabe interrogar se haveria “outros suportes da utilidade social e outros fundamentos
legítimos de reconhecimento social fora do trabalho”11 (CASTEL, 2010, p.70).
A ética do trabalho, enquanto construção histórica do capitalismo, pontifica que o
trabalho é a principal via de integração social (MARQUES, 1997, p.99). Ele não perdeu sua
centralidade social, apesar do processo de deterioração ao qual os fundamentos da sociedade
salarial têm sido submetidos. O significado de deterioração, neste sentido, implica
justamente que a estrutura deste tipo de sociedade se mantém, enquanto que seu sistema de
regulações se debilita, como explica Castel (2010, p.78). Sendo assim, ainda segundo o
autor, embora a sociedade salarial em sua configuração contemporânea mostre-se
globalmente deteriorada, as sociedades humanas atuais permanecem ao abrigo de seu marco
teórico, prático e político, pois a maior parte da vida social cotidiana segue-se exercendo em
torno da consistência do trabalho assalariado.
Diante da configuração vigente das sociedades capitalistas modernas, cada vez mais
individualistas, meritocráticas e mercantilizadas, a atuação do Estado deve ser reorientada,
para que seu papel social não seja completamente suprimido. A partir desta reorientação,
novos imperativos são colocados para o Estado. Segundo Castel (2010, p.164), o primeiro
deles é o da proximidade, que pontifica que a atuação do social deve ocorrer em nível mais
próximo ao beneficiário das proteções e serviços. Em outras palavras, isso equivale a retirar
o social do Estado e legá-lo à esfera do localismo. É o argumento da descentralização da
gestão e promoção do social, enquanto, teoricamente, a forma mais eficiente de promovê-lo.
O segundo imperativo é o da participação do usuário. Este imperativo defende a
atuação conjunta do beneficiário em relação ao benefício que lhe é concedido. Significa que
o Estado não deve mais atuar como um distribuidor de recursos incondicionais. Ao contrário,
ele deve exigir uma contraprestação do beneficiário do social (quando este não for
pertencente ao grupo dos isentos do trabalho), de modo a torná-lo responsável por si e por
seu desenvolvimento, por sua “recuperação”. É a lógica da condicionalidade, da
11 Tradução nossa.
51
contrapartida, do “toma lá, dá cá” (CASTEL, 2010). Assim, uma espécie de mercantilização
alcança a esfera do social.
Além de não mais distribuir recursos e proteções de maneira incondicional, o
Estado não deve, igualmente, fazê-lo de modo universal. É preciso distinguir os usuários,
não apenas por suas posições em relação ao trabalho, mas em suas necessidades e nas causas
destas. Contudo, ao diferenciar os beneficiários, o social torna-se seletivo, em oposição ao
universal. O critério de atendimento progressivamente deixa de ser a cidadania e passa a ser
a necessidade ou o mérito. O social, cada vez mais, abandona o domínio do universal e migra
para o campo do focalizado. A focalização avulta-se em detrimento da universalidade.
Deste modo, ao ter que se adaptar às exigências impostas pelo novo regime pautado
no predomínio da doutrina ortodoxa e na crescente individualização da sociedade, o Estado
Social tem sua própria natureza abalada. Originalmente erigido sob uma vocação
universalista, almejando a universalidade de direitos e proteções sociais incondicionais a
todo o conjunto da sociedade, o Estado Social tem sua atuação reorientada para uma postura
seletiva, centrada na focalização, nas condicionalidades e no localismo, que doravante
devem, crescentemente, pautar o social e suas ações.
Em resumo, a crise do social perpassa diferentes âmbitos. Compreende, em última
instância, a crise da própria sociedade salarial onde as raízes da função social do Estado
foram plantadas. Diante das dificuldades que esta crise impõe e das novas exigências que
passam a figurar no ideário dominante e na conformação das sociedades, o Estado Social é
impingido a adaptar-se, assumindo gradativamente novas premissas para sua atuação. Não
obstante, nessa adaptação acaba por alterar muito de sua própria natureza.
1.5. O social na América Latina
O Estado Social, tal qual o construído historicamente nas sociedades europeias
ocidentais, não alcançou idêntica conformação nas sociedades em desenvolvimento,
inclusive na América Latina, objeto deste estudo. Por isso, não se pode dizer que se
consolidou um Estado Social nos países deste continente. Nestes países, os sistemas de
proteção social têm sua implantação e sua estrutura muito recentes e frágeis, quando
52
cotejados ao modelo europeu. Há, porém, nos países latino-americanos instituições sociais
especializadas e um nível relativamente elevado de desenvolvimento do social; como não o
há, por exemplo, segundo Castel (2010), em alguns países do continente africano ainda nos
dias atuais. Como o autor alega (2011b, p.279), a diferença entre a proteção social na
América Latina e o Estado Social na Europa Ocidental parece ser mais de grau do que de
natureza. Por conseguinte, a apreciação do Estado Social europeu se presta como
fundamento à compreensão e à análise do caso latino, pois os sistemas de proteção social na
Europa Ocidental e na América Latina são diferentes, mas não incongruentes.
Há distinções importantes no que concerne à construção histórica da proteção social
nas sociedades europeias e nas latinas. Nas sociedades europeias, o Estado Social nasce, em
última instância, do compromisso social estabelecido entre capital e trabalho, como produto
das pressões políticas exercidas pela organização trabalhista via sindicatos e partidos e
consolidado no pós-Guerra com o intuito de reconstruir socioeconômica e politicamente as
sociedades, confrontando-se à questão social que as ameaçava de fratura. Constituiu-se, no
decorrer do tempo, em um Estado forte e autônomo, que opera por meio de instrumentos e
aparatos legais, através do estatuto do emprego e da institucionalização da proteção social.
Por outro lado, nas sociedades latino-americanas, a questão social fundante teve sua
base na colonização e o pacto colonial foi a resposta para manter a coesão da sociedade. A
questão social nas sociedades latinas apenas se assemelhará à questão social europeia com o
advento da industrialização na América Latina (WANDERLEY, 2011). Contudo, o próprio
processo industrial se dá tardiamente neste continente, apresentando vigor real somente após
a Segunda Guerra, quando um franco movimento de internacionalização do capital, em
seguida à recuperação da Europa no pós-guerra, passa a se direcionar para as economias
periféricas. A industrialização na maioria dos países latinos ocorrerá, portanto, de forma
associada ao capital estrangeiro. A presença deste capital, assim como a atração dele para
tais países, impõe como pré-condição a exigência de estabilidade e de uma conjuntura
econômica favorável a esses investimentos. Pressupõe-se, assim, “a prévia cristalização de
uma ordem capitalista regulada por um Estado nacional estável” (LESSA & DAIN, 1984,
p.221). Em consequência, o Estado passa a ter um papel econômico crescente, enquanto
dinamizador da expansão desse capitalismo industrial, nas sociedades latino-americanas.
Deste modo, o Estado nestas sociedades vai se assemelhando à configuração do Estado
Social europeu, no que se refere ao caráter de provedor e articulador do desenvolvimento
53
socioeconômico, porém, sob outro embasamento e origem, pois na América Latina esse
Estado primeiro se configura sob regimes ditatoriais, enquanto que na Europa fundou-se, em
sua maioria, sobre instituições democráticas. Neste processo, a própria questão social latino-
americana se metamorfoseia, aproximando-se da questão europeia. Como explicita
Wanderley (2011, p.65-66):
A questão social latino-americana põe-se, no espaço e no tempo, diferentemente
da realidade europeia (...). Poder-se-ia ainda dizer que, convergindo com a
concepção clássica elaborada nas latitudes da Europa, ela assumirá na América
Latina características semelhantes às de lá a partir da efetivação da
industrialização e da implementação do capitalismo tardio em nosso continente;
com a presente fase da mundialização do capitalismo (...), ela vai identificar-se de
forma crescente, em diversos aspectos, com o formato de sua constituição nos
países do chamado Primeiro Mundo.
Assim, para responder às demandas colocadas pela questão social que se
transmutara em função do advento desse “capitalismo tardio”, o Estado, na maioria dos
países latino-americanos, engendra um aparato legal de garantias, proteções e serviços
sociais semelhantes, embora não equiparáveis, ao modelo europeu. Longe de representar
uma sorte de benevolência do Estado para com sua população, porém, a construção e
desenvolvimento da proteção social nas sociedades latinas foi antes um resultado da pressão
política que a organização dos trabalhadores exerceu. À semelhança do processo histórico
de construção e institucionalização das proteções sociais na Europa Ocidental, também na
América Latina os primeiros instrumentos de proteção social coletiva foram desenvolvidos
pelos próprios trabalhadores (MARQUES, 1997). Logo, o crescimento e avanço desses
mecanismos foram cruciais para torná-los objeto de regulação estatal, quando então
migraram para o âmbito do direito.
Contudo, cabe destacar que na América Latina os sistemas de proteção construídos
voltam-se para o mercado formal, relegando o acesso ao social a todos os trabalhadores em
informalidade. Isso é uma diferença crucial entre os sistemas latinos e o europeu. Na Europa,
a sociedade salarial consolidou-se através da extensão do assalariamento a todos os setores
de atividades, o que não aconteceu na América Latina. Neste continente, o que se conformou
foi a existência estrutural de um mercado informal de trabalho, cujos trabalhadores não
tinham (e ainda não têm) qualquer acesso à proteção e tampouco, qualquer direito.
Posteriormente, os processos de redemocratização, pelos quais muitos países
latinos passaram, principalmente a partir dos anos de 1980, e as lutas sociais que tais
54
processos instigaram, concorreram diretamente para a configuração atual que o social
alcança no continente. Entretanto, como destacam Silva, Yazbek e Giovanni (2012, p.20-
21), referindo-se ao caso brasileiro, mas que é perfeitamente aplicável à América Latina em
sua quase totalidade:
(...) mesmo com a redemocratização da sociedade, a possibilidade de
constituição de um Estado de Bem-Estar Social, orientado pela cidadania, é
colocada na contramão da história, com o estabelecimento da hegemonia do
projeto neoliberal. Chega-se, portanto, ao século XXI, com um Sistema de
Proteção Social marcado pelos traços da reforma dos programas sociais, sob
orientação de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, expresso pela descentralização,
privatização [uma face da mercantilização] e focalização dos programas sociais.
Portanto, a edificação de um Estado Social pleno, na América Latina, foi malograda
pela emergência da hegemonia das políticas neoliberais no continente, como também pela
própria inexistência de uma sociedade salarial consolidada. O que acabou se construindo
nesta região foi uma espécie de Welfare State às avessas, onde a meritocracia prevalece sobre
a universalidade.
Sabe-se que os países da América Latina têm um passado histórico de domínio e
exploração, sob a égide da colonização ibérica. Eles compartilham o aprofundamento da
pobreza, o desmonte de seus Estados e a degradação de suas economias, decorrente das
décadas de hegemonia neoliberal, nos anos de 1980 e 1990 principalmente. Por estes fatores,
tais países possuem hoje um legado de mazelas sociais, de dependência econômica e de
atraso tecnológico.
Contudo, é importante considerar que a “realidade latino-americana é una e
diversa” (WANDERLEY, 2011, p.56), por isso:
Se [a realidade latino-americana] comporta características comuns, (...) ela se
compõe simultaneamente de um mosaico diferenciado de elementos derivados dos
modos como os povos construíram e estão construindo suas trajetórias de vida.
(WANDERLEY, 2011, p.56)
Desta forma, o social que emerge na América Latina, apesar de possuir certas
características gerais paralelas às de seu predecessor europeu, conserva especificidades
próprias nos diferentes países em que se estabeleceu. Isto posto, corrobora-se a importância
de manter ressalvas às “generalizações que sejam aplicáveis a esta parte da América, tendo
em vista a diversidade de espaços, tempos e forças sociais em cada Estado-nação”, como
frisa Wanderley (2011, p.56).
55
Cumpre salientar que, por um lado, se o sistema de proteção social na América
Latina instaura-se de maneira tardia em relação ao europeu, por outro, ele se degrada mais
rapidamente (CASTEL, 2011b). Em consequência, este modelo de Estado e seu papel social
nos países latinos logo acomodam-se aos novos parâmetros do social, que se fundam na
focalização, nas condicionalidades e no localismo. Estes parâmetros decorrem da
reorientação da função social do Estado, exigida pela configuração contemporânea das
sociedades capitalistas, que se alicerçam sobre os pilares da doutrina neoliberal e do processo
de individualização.
Um então singular gênero de políticas sociais, pautado nos novos parâmetros do
social, terá lugar no continente latino-americano, a partir da década de 1990, expandindo-se
consideravelmente a partir dos anos 2000. Antes de conformarem o desenho institucional
que virão a ter, o debate inicial em torno destas políticas envolveu, em alguma medida, as
propostas de renda mínima garantida (RMG), que já era uma pauta madura nos debates
europeus. Contudo, enquanto que na Europa a RMG perpassava uma discussão profunda
sobre a própria desconstrução ou destruição do papel social do Estado (embora isto não tenha
se efetivado), no contexto latino-americano a RMG advinha do diagnóstico de profunda
pobreza e desigualdade que afetava o continente e da necessidade de enfrentá-las com
instrumentos mais eficazes e menos dispendiosos que as políticas então vigentes. Em um
primeiro momento, as propostas de RMG aventavam a universalidade de sua concessão ao
conjunto da sociedade, constituindo-se em benefícios incondicionais. Todavia, o desenho
que estas políticas assumirão, por fim, será uma amálgama dos fundamentos de combate à
pobreza preconizados pela RMG, somados aos novos parâmetros do social, quais sejam,
focalização, condicionalidades e descentralização (que pode ser considerada um gênero de
localismo). Em alguns programas desse novo gênero de política perdurarão certos elementos
do caráter incondicional da RMG12.
As raízes históricas dessas políticas datam de 1980 e residem na própria conjuntura
socioeconômica do continente, bem como na sua posição subsidiária em relação às
economias avançadas e aos organismos multilaterais. Na década de 1980, os países latino-
americanos enfrentaram graves turbulências econômicas, consubstanciadas na crise da
dívida externa e no agravamento do processo inflacionário. Para promover o ajustamento
12 Como se verá nos capítulos 2 e 3.
56
estrutural e a estabilização de suas economias, foram adotadas nestes países, nas décadas de
1980 e 1990 (e a partir dos anos noventa sob forte “recomendação” do Consenso de
Washington13), políticas neoliberais amplamente embasadas na redução de gastos públicos
e sociais. Contudo, a estabilização monetária que ao fim foi alcançada teve um alto custo.
Ao contrário da retomada do crescimento econômico e da redução das desigualdades, como
previam seus defensores, as políticas neoliberais resultaram na persistência (e mesmo no
aumento) da miséria e da pobreza na América Latina (MATTEI, 2010; MARQUES, 2013).
Em outras palavras, as políticas neoliberais de estabilização, ao recrudescer a pobreza e a
indigência no continente, aprofundaram a questão social.
Além disso, na década de 1990, a proposta neoliberal no âmbito da proteção era a
de privatizar a saúde e a previdência, deixando a encargo do Estado, a concessão de cobertura
para os mais pobres. Juntamente a isso, desenvolveram-se políticas focalizadas no campo
assistencial.
Porém, diante do cenário de agravamento da pobreza – decorrente das políticas
recessivas aplicadas desde os anos de 1980 – a partir de 2000, os próprios organismos
proponentes das políticas neoliberais (quais sejam, o Fundo Monetário Internacional (FMI)
e o Banco Mundial, principalmente), sob a pressão de órgãos como a CEPAL e outros,
passam a admitir a ineficácia das políticas neoliberais quanto ao tratamento da pobreza. Não
que reconhecessem que tais políticas agravaram a pobreza, mas sim que elas eram ineficazes
ou insuficientes para reduzi-la, ou mesmo para controlá-la.
Assim, políticas específicas de enfrentamento à pobreza passaram a ser necessárias.
Nesse momento, a discussão sobre a RMG já está colocada. No entanto, ao invés da RMG,
13 “Conjunto de trabalhos e resultados de reuniões e economistas do FMI, do BIRD e do Tesouro dos Estados
Unidos realizadas em Washington D.C. no início dos anos 90. Dessas reuniões surgiram recomendações dos
países desenvolvidos para que os demais, especialmente aqueles em desenvolvimento, adotassem políticas de
abertura de seus mercados e o ‘Estado Mínimo’, isto é, um Estado com um mínimo de atribuições (privatizando
as atividades produtivas) e, portanto, com um mínimo de despesas como forma de solucionar os problemas
relacionados com a crise fiscal: inflação intensa, déficits em conta corrente no balanço de pagamentos,
crescimento econômico insuficiente e distorções na distribuição da renda funcional e regional. O resultado
mais importante dessas políticas (pelo menos no que se refere à América Latina) tem sido o êxito no combate
à inflação nos países em que, durante os anos 80 e mesmo no início dos anos 90, ela atingia níveis intoleráveis.
Além disso, o livre funcionamento dos mercados, com a eliminação de regulamentações e intervenções
governamentais, também tem sido uma das molas mestras dessas recomendações. Embora os países que
seguiram tal receituário tenham sido bem-sucedidos no combate à inflação, no plano social as consequências
foram desalentadoras: um misto de desemprego, recessão e baixos salários, conjugado com um crescimento
econômico insuficiente, revela a outra face dessa moeda (...)” (SANDRONI, 2007, p.179).
57
o que se conformará serão políticas que mesclam algumas preocupações da RMG com os
novos imperativos da atuação social do Estado. Estas novas políticas vão se consubstanciar
nos Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCR). O desenho desses
programas para a redução da pobreza será então sugerido pelos mesmos organismos
multilaterais promotores das políticas neoliberais que agravaram a pobreza.
As novas políticas de enfrentamento à pobreza passam a se fundamentar na
concentração dos gastos sociais, a partir da focalização destes gastos na parcela mais pobre
da população. Como explicitam Brown e Pérez (2013, p.4), “entendendo que atender a
problemática social com os sistemas clássicos na América Latina [em certa medida
universais] comprometem grande parte dos recursos públicos, os organismos internacionais
recomendam focalizar-se nos mais pobres (...)”14. Assim, tais políticas diferem
substancialmente daquelas empregadas no período anterior, no qual se procurou construir
um sistema de proteção social universal (MATTEI, 2010, p.3).
A partir de meados da década de 1990, portanto, alguns países latino-americanos
começaram a implantar programas focalizados de transferência de renda. Em um primeiro
momento, os programas focalizados possuíam um caráter restritivo, atendendo a segmentos
populacionais específicos. Todavia, a partir dos anos 2000, advém uma segunda geração
destes programas, tornando-os políticas sociais massivas, isto é, de abrangência nacional
(SOLANO, 2009, Apud. MARQUES, 2013).
Estes programas são impulsionados e, em alguns casos, financiados por organismos
multilaterais, como FMI e Banco Mundial, e tendem a exigir algum tipo de contrapartida por
parte de seus beneficiários, enquanto contraprestação para o recebimento das prestações
monetárias (BROWN & PÉREZ, 2013, p.2)15. As políticas focalizadas possuem, portanto,
um caráter condicional, que implica o cumprimento de contraprestações por parte de seus
14 Tradução nossa.
15 A critério de informação, cabe aqui distinguir os conceitos de condicionalidade e contraprestação, como os
definem Brown e Pérez (2013, p.3): “As condicionalidades se vinculam a certas características dos
beneficiários: ser pobres, desempregados, informais, etc., enquanto que as contraprestações fazem referência a
atividades que estes têm que realizar como contrapartida do subsídio recebido". Apesar desta distinção formal
dos conceitos, o termo “condicionalidade” é frequentemente empregado com o sentido de contraprestação, na
literatura afim. Neste trabalho, condicionalidade é também utilizada, em diversas passagens, como sinônimo
de contraprestação. Ademais, são empregados, alternativa e indistintamente, outros sinônimos constantes na
literatura, tais como: contrapartidas e corresponsabilidades.
58
beneficiários como requisito para receberem o benefício. Este caráter condicional constitui-
se como um componente basilar dos Programas de Transferência Condicionada de Renda
(PTCR).
Os PTCR representam, atualmente, em vários países da América Latina, um
elemento importante (quando não fundamental ou mesmo central) de suas políticas sociais.
Tais programas diferem quanto a seus desenhos, formas de operacionalidade, critérios de
acesso, nível de benefícios e cobertura, grau de institucionalidade e quanto à legislação que
os embasa. Contudo, eles se assemelham em seus objetivos principais, além de possuírem
alguns elementos essenciais que os caracterizam.
Como objetivos precípuos, os PTCR pretendem: i) promover a diminuição dos
níveis de pobreza e de indigência e ii) romper com a transmissão intergeracional da pobreza,
através do fomento à acumulação de “capital humano”16 (BROWN & PÉREZ, 2013). Para
realizar tais objetivos, estes programas têm como elementos característicos três
componentes: i) a focalização nas famílias pobres e extremamente pobres, ii) a concessão de
prestações em dinheiro e iii) a exigência de condicionalidades, que impõem contrapartidas a
serem cumpridas pelos beneficiários e suas famílias. Segundo seus proponentes, as
condicionalidades consistem, justamente, no meio através do qual os PTCR pretendem
operar a acumulação e o desenvolvimento de capital humano nos membros das famílias
assistidas, especificamente, nas crianças e adolescentes destas famílias.
Portanto, enquanto instrumento de política social, os PTCR caracterizam-se por
objetivar a diminuição dos níveis de pobreza e de indigência – o que se faz através da
transferência monetária – e o rompimento da transmissão intergeracional da pobreza,
mediante o estímulo à acumulação de “capital humano” – o que se busca realizar por meio
das condicionalidades. Assim, pode-se inferir que existe uma dicotomia temporal quanto ao
tratamento da condição de pobreza dos beneficiários: sua condição atual e sua condição
futura. Por um lado, combate-se a pobreza em busca de resultados presentes, isto é, a redução
do contingente populacional sob pobreza e indigência. Trata-se, pois, de uma abordagem
imediata: reduzir os níveis de pobreza e miséria vigentes. De outro lado, enfrenta-se a
pobreza em seu componente basilar, naquilo que se acredita ser o seu elemento
16 Capital humano é o termo que os próprios organismos proponentes dos PTCR empregam para designar o
nível de escolaridade e qualificação profissional de um indivíduo.
59
fundamentador e reprodutor, qual seja, a baixa escolaridade característica dessa população.
Trata-se, pois, de uma abordagem futura: o aumento da escolaridade das crianças e jovens
pobres, para que, a médio ou longo prazo, elas possam superar a pobreza.
À vista disto, é possível apreender a existência de um “diagnóstico” implícito
quanto à condição de pobreza do público-alvo destes programas. Tal condição seria derivada
da pouca ou nenhuma escolaridade dos membros-chefes das famílias pobres. Assume-se,
por conseguinte, a renda como uma função crescente do nível de instrução do indivíduo.
Logo, fomentar a acumulação de capital humano nas crianças e adolescentes destas famílias,
de acordo com a referida visão, é possibilitar que no futuro, com maior nível de instrução,
elas venham a ter melhor inserção laboral, logo maior renda e, consequentemente, superem
a pobreza. A quebra de sua transmissão intergeracional será consequência da melhor
condição educacional, pois parte-se da premissa de que o nível de educação que os pais têm
é o “piso” do nível de educação que os filhos terão. Desta maneira, aumentando o nível
educacional das crianças hoje, ao se tornarem chefes de família amanhã, seus filhos no futuro
terão um nível educacional superior, uma vez que será pelo menos igual ao dos pais (que
foram as crianças e adolescentes beneficiárias dos PTCR). Assim, quebrar-se-ia
definitivamente a transmissão intergeracional da pobreza.
Considera-se, aqui, que tal abordagem, ao entender que a pobreza resulta do baixo
nível de instrução, na verdade inverte a causação do problema, uma vez que a experiência e
a história mostram que não se é pobre porque se estuda pouco, mas se estuda pouco porque
se é pobre. Contudo, esta abordagem constitui-se como contemporaneamente hegemônica e
embasa o desenho institucional deste gênero de política. Tal visão é consistente com o
pensamento predominante, decorrente do processo de individualização da sociedade, no qual
o indivíduo é responsabilizado por sua condição pessoal, social, econômica e também
profissional. Porém, o que se pretere neste pensamento, como dissertam Rego e Pinzani
(2013, p.81-82), é o fato de que:
(...) nenhum membro da sociedade é uma ilha. Sua personalidade, inclusive suas
capacidades e seus talentos, só se desenvolvem no contexto social no qual está
inserido. Nada do que alcança é completamente fruto de ação individual, mas
depende sempre do espaço de manobra que o contexto social lhe deixa. O exercício
da atividade profissional, o desenvolvimento de certo estilo de vida, o cultivo dos
gostos pessoais: tudo isso depende de tal contexto. (...) Um dos maiores êxitos da
ideologia neoliberal consiste precisamente em ter ocultado esses aspectos,
exaltando o mito do sujeito que é capaz de dominar plenamente sua vida sozinho
e que, portanto, é responsável por tudo o que obtém nela.
60
Em função da dominância de tal pensamento, cobra-se do beneficiário da política
social um papel ativo no seu processo de “recuperação”, através do cumprimento de
condicionalidades. A condicionalidade imposta ao beneficiário revela-se como um processo
de permuta, de uma lógica mercantil, um gênero de mercantilização que se insere no
funcionamento da política social. O social coaduna-se ao raciocínio de mercado, a um
sistema de “toma lá, dá cá”, como pontifica Castel (2010). Ao mercantilizar desta forma a
promoção de suas proteções, o social desloca a cidadania, enquanto base de seu atendimento,
em favor da meritocracia. Os beneficiários devem fazer valer o auxílio que recebem,
precisam mostrar-se responsáveis e assumir responsabilidades no processo de “melhoria” de
sua condição. Contudo, como ressalta Castel (2010), exigir do beneficiário a
responsabilidade por seu próprio processo de recuperação, pode significar muitas vezes pedir
muito a quem nada tem. A promoção do social deve, antes, tratar o indivíduo como cidadão,
como sujeito de direito, que possui deveres e direitos incondicionais (como o de ser
“socorrido” em sua necessidade), sendo, assim, digno de receber auxílio mesmo que não
possa dar nada em troca.
Como outra característica fundamental desses programas, a focalização é acentuada
em prejuízo da universalidade. Destarte, de acordo com Silva, Yazbek e Giovanni (2012,
p.229), a luta pela universalização de direitos sociais vai sendo enfraquecida, pois “o
movimento pela universalização cede lugar à implantação de programas focalizados na
pobreza e na extrema pobreza”.
Enfim, diante do deslocamento da cidadania para o mérito e da universalidade para
a focalização, que em certa medida as políticas focalizadas e condicionadas acabam por
promover no social, a indagação que surge é se a introdução dos PTCR, a partir da década
de 1990 na América Latina, altera a lógica da proteção social no continente. A resposta a
este questionamento perpassa a base sobre a qual está cimentada a origem dos PTCR.
Pode-se considerar que os PTCR têm seu fundamento nos debates acerca da RMG,
inicialmente colocados nos países de economia avançada. Contudo, há diferenças cruciais
entre os debates nos países avançados e nos latinos. Nos avançados, a justificativa para a
RMG residia no diagnóstico de um inelutável fim da sociedade salarial e na consequente
necessidade de substituição dos sistemas de proteção social tal como existentes. No caso da
América Latina, a RMG surgia como opção, mais viável e eficaz, de combate ao
61
recrudescimento da pobreza e desigualdade vigentes, frente aos efeitos sociais nocivos
gerados pelas políticas neoliberais de estabilização implantadas desde a década de 1980 e
também diante das alterações promovidas nos sistemas de proteção social de alguns países,
sob o mesmo contexto neoliberal. Deste modo, na América Latina, a concepção dos PTCR
não se colocava, a priori, como uma opção substitutiva dos sistemas de proteção social em
si, mas como uma estratégia de enfrentamento ao elevado patamar de pobreza. Por isso, o
que se conformou, ao fim, foi um gênero de política que miscigena elementos de uma
garantia de renda mínima com os novos parâmetros que a doutrina ortodoxa tem receitado
para o social, resultando em um tipo de política “híbrida” que constituem os PTCR.
Porém, a partir da década de 1990, concomitantemente a esses debates, alguns
países latino-americanos implantaram reformas de cunho neoliberal em seus sistemas de
proteção social. Como descreve Marques (2014, p.1-2):
Durante os anos de 1990 e início dos 2000, o pensamento neoliberal em matéria
previdenciária - divulgado principalmente pelo Banco Mundial - teve eco na
América Latina, de modo que em diversos países foram promovidas reformas de
seus sistemas, substituindo no todo ou em parte os regimes públicos de repartição
por regimes privados de capitalização. Depois da reforma chilena, em 1981, que
serviu de experiência para as reformas que se seguiram, foi a vez do Peru (junho
de 1993) e da Colômbia (abril de 1994), que introduziram um regime privado de
capitalização em paralelo ao público, com contribuição definida e benefício
indefinido. A seguir, houve a reforma na Argentina (1994) e no Uruguai (1996),
com a introdução de um sistema misto. Na sequência, a Bolívia (1997), o México
(1997) e El Salvador (1998) introduziram a aposentadoria privada e de
capitalização, o que tomou o lugar da aposentadoria pública. Para finalizar a onda
de reformas, em maio de 2001, Costa Rica introduz um sistema misto; em 2003, a
República Dominicana substitui o regime público pelo privado, de capitalização;
em 2004 o mesmo é feito na Nicarágua e, em janeiro de 2004, o Equador cria um
sistema misto. Nos demais países da América Latina, as mudanças realizadas nos
regimes de aposentadoria, embora tenham alterado as condições de acesso à
aposentadoria, não deram lugar à substituição do regime público pelo privado,
mesmo que parcialmente. De todos os países da região que seguiram os preceitos
do Banco Mundial, somente a Argentina voltou atrás, extinguindo o regime
privado de capitalização que havia criado em 1994.
Diante dessas reformas, alguns dos países referidos passaram a adotar os PTCR
como forma substitutiva aos instrumentos clássicos de proteção social, uma vez que a
proteção fora mercantilizada e restringia, em grande medida, o acesso à população mais
pauperizada desses países. Neste caso, os PTCR operam como instrumentos de garantia de
um nível básico de proteção social à essa população. Porém, no que diz respeito aos países
tratados nesta dissertação (Brasil, Argentina e Chile), a inserção dos PTCR não terá os
mesmos efeitos.
62
Logo, a resposta ao questionamento inicialmente colocado – se a introdução dos
PTCR altera a natureza da proteção social na América Latina – parece não ser unânime.
Buscando-se instrumentos de análise de permitam uma inferência acerca desta questão, cabe
realizar uma descrição, comparação e análise dos PTCR (que será realizada nos capítulos 2
e 3), bem como proceder uma breve explanação a respeito dos sistemas de proteção social
latino-americanos, para favorecer o exame da questão levantada. Como já ressaltado, na
impossibilidade de investigar o conjunto dos países do continente, por isso serão
considerados aqui apenas três, e no intuito de fornecer maiores elementos a esta análise,
apresenta-se, na próxima seção, uma descrição sucinta dos sistemas de proteção social do
Brasil, Argentina e Chile, escolhidos como “amostra” para este estudo, por razões já
anteriormente apontadas.
1.6. Os sistemas de proteção social no Brasil, Argentina e Chile17
A presente seção tem a finalidade de esboçar os principais traços dos sistemas de
proteção social dos três países considerados nesta dissertação – Brasil, Argentina e Chile.
Uma vez que se coloca o questionamento sobre a existência (ou não) de uma mudança
consistente na lógica de tais sistemas (a partir da introdução dos PTCR) é oportuno descrevê-
los, ainda que sucintamente, de modo a elucidar a configuração que possuem.
Esta seção, não por acaso, antepõe-se ao capítulo que descreve os PTCR, com o
intuito de esclarecer a conformação que os sistemas de proteção assumem com a inserção
dos programas condicionados, levando-se em conta o lugar que esses programas ocupam nos
referidos sistemas. Desta maneira, são descritos os sistemas de proteção social do Brasil,
Argentina e Chile, respectivamente.
17 Esta parte se beneficiou da pesquisa Análise dos Sistemas de Proteção Social em países da América Latina
- 034/2013 - Capes (período 2013-2015), pois integro a equipe do Programa de Estudos Pós-graduados em
Economia Política da PUC-SP que participa do projeto, com outras instituições brasileiras e estrangeiras.
63
2.1. O sistema de proteção social brasileiro
No Brasil, o sistema de proteção social compreende a Seguridade Social (SS), que
– como tipificado na Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 2001, Art.194) – está
cimentada sobre três ramos: previdência, saúde e assistência social públicas. A SS tem como
objetivo a prevenção e a cobertura dos riscos à saúde, a substituição de renda no caso de
morte, invalidez, doença, velhice, entre outros – para os segurados do mercado formal de
trabalho – e a garantia de uma renda a portadores de deficiência incapacitante ao trabalho e
a idosos de baixa renda.
Assumindo-se um conceito mais amplo de seguridade, pode-se considerar ainda
outro componente da SS brasileira que, apesar de não a compor constitucionalmente, é
fundamental a uma proteção social integradora, como é o caso do seguro-desemprego, que
por sua vez pertence ao rol de “direitos previstos nos sistemas de proteção social na maioria
dos países desenvolvidos” (MARQUES et al, 2014, p.4). O seguro desemprego, voltado aos
trabalhadores do mercado formal, não está incluído na SS, embora seja tratado pelos
especialistas como integrante do corpo da proteção social brasileira.
Segundo a CF, a organização da SS, por parte do Poder Público, deve fundamentar-
se nos seguintes objetivos: a) universalidade da cobertura e do atendimento; b) uniformidade
e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; c) seletividade e
distributividade na prestação dos benefícios e serviços; d) irredutibilidade do valor dos
benefícios; e) equidade na forma de participação no custeio; f) diversidade da base de
financiamento; g) caráter democrático e descentralizado da administração, com participação
dos trabalhadores, empregadores, aposentados e governo (BRASIL, 2001). Contudo, como
observam Marques et al (2014), esses objetivos não são globalmente observados em todos
os ramos da SS.
A) Previdência
O ramo previdência da SS abrange dois subsistemas, o Regime Geral de
Previdência Social (RGPS) e os Regimes Próprios de Previdência Social, sendo o primeiro
direcionado exclusivamente a trabalhadores formais do setor privado e os últimos, a
64
servidores públicos e militares, da União, dos estados e dos municípios. Nota-se, portanto,
que a universalidade de acesso não se aplica aos beneficiários dos subsistemas da
Previdência Social, pois seu acesso destina-se unicamente a trabalhadores inseridos no
mercado formal de trabalho e exige contribuição prévia. Ambos os subsistemas possuem
caráter contributivo, de filiação obrigatória e operam sob o regime de repartição simples, no
qual as contribuições dos ativos custeiam os benefícios dos aposentados e demais
beneficiários.
O RGPS e os Regimes Próprios garantem uma renda de substituição em casos de
velhice, morte, doença, acidente de trabalho, maternidade e reclusão para os trabalhadores
do mercado formal. Para ter direito a essa proteção é necessário estar inscrito no Instituto
Nacional de Seguro Social (INSS). Os benefícios, por seu turno, agrupam-se em três grandes
categorias, a saber: aposentadorias, pensões e auxílios. Na sua maioria, tais benefícios são
calculados pela média aritmética simples dos 80% maiores salários de contribuição, mas há
um piso de valor igual ao salário mínimo. Para ter acesso aos benefícios, é exigido em geral
um período mínimo de contribuições (período de carência). Em 2014, o máximo a ser
recebido equivalia a R$ 4.159,00, correspondendo a 6,3 salários mínimos.
As aposentadorias são pagamentos mensais vitalícios, realizados ao segurado por
motivo de idade, tempo de contribuição, invalidez ou insalubridade. No caso da
aposentadoria por idade, cumprida a carência, é concedida ao segurado que alcançar a idade
mínima de 60 anos, se mulher, e 65 anos, se homem. Os trabalhadores rurais têm direito ao
benefício cinco anos mais cedo. O tempo mínimo de contribuição é de 15 anos, se inscrito a
partir de 25 de julho de 1991, e de 13 anos e 6 meses, no ano de 2008, para os inscritos até
24 de julho de 1991. A grande maioria das aposentadorias por idade é concedida a
trabalhadores rurais.
A aposentadoria por tempo de contribuição, por sua vez, é concedida ao segurado
que contribuir por 35 anos, se homem, e 30 anos, se mulher. Os professores da educação
infantil e do ensino fundamental e médio têm o seu tempo de contribuição reduzido em cinco
anos. A partir de 1999, houve alteração na fórmula de cálculo do valor do benefício,
passando a ser aplicado um fator redutor em função da expectativa de sobrevida do
trabalhador.
65
Já a aposentadoria por invalidez é concedida ao segurado incapacitado para o
trabalho que tenha contribuído pelo menos por 12 meses. Há exceção no caso do trabalhador
ter sofrido acidente ou ser acometido por doença de qualquer natureza.
As pensões são concedidas aos dependentes do segurado por motivo de
falecimento. Já os auxílios são concedidos aos segurados em caso de doença (auxílio
doença), quando há comprometimento físico ou mental que os impeçam de trabalhar. Em
caso de reclusão ou prisão, o benefício é pago aos dependentes do segurado; de acidente, é
pago quando o segurado perde a capacidade de trabalhar; e de maternidade, a mulher
segurada tem direito ao salário-maternidade por 120 dias.
A tabela 1 apresenta a quantidade de benefícios previdenciários (previdenciários
propriamente ditos e acidentários) emitidos em dezembro de 2013. Pode-se ver na referida
tabela que as aposentadorias abrangem mais de 66% do total de benefícios. O peso das
aposentadorias no total do gasto é similar a outros sistemas previdenciários maduros, que
existem há razoável tempo. No ano, o valor médio dos benefícios concedidos foi de R$
899,30, isto é, 1,24 salário mínimo.
Tabela 1
Benefícios previdenciários emitidos (dez./2013)
Benefícios Quantidade %
Aposentadorias 17.351.730 66,35
Idade 9.165.014 35,05
Invalidez 3.122.374 11,94
Tempo de contribuição
p
5.064.342 19,37
Pensão por morte 7.159.242 27,38
Auxílio-doença 1.457.433 5,57
Salário-maternidade 91.448 0,35
Outros 91.106 0,35
Acidentários 858.052 3,28
Total 26.150.959 100
Fonte: MPAS, 2014.
66
Em 2013, o RGPS foi financiado largamente com recursos provenientes das
contribuições de empregados e empregadores, calculadas sobre a folha de pagamentos e
outros rendimentos do trabalho; mas também com recursos originários do Sistema Integrado
de Pagamentos de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno
Porte (SIMPLES), calculado sobre o faturamento, com recursos da Contribuição Social
sobre Lucro Líquido, entre outros recursos. No entanto, desde 14 de dezembro de 2011,
mediante a Lei 12.546 e por iniciativa da presidente Dilma, iniciou-se o processo de
desoneração da folha de pagamento de setores da economia brasileira. Essa desoneração
implica a eliminação da atual contribuição previdenciária dos empregadores (20% sobre a
massa salarial) e sua substituição por uma nova contribuição sobre a receita bruta das
empresas (descontando as receitas de exportação) com duas alíquotas: de 1 ou 2 %. Em
termos de valores pagos, a substituição não é completa, pois “contempla uma redução da
carga tributária (...), porque a alíquota sobre a receita bruta foi fixada em um patamar inferior
àquela alíquota que manteria inalterada a arrecadação – a chamada a alíquota neutra” (MF,
2012, p.1).
A gestão participativa, democrática e descentralizada é garantida pela existência do
Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) e dos Conselhos de Previdência Social
(no âmbito dos municípios, de caráter consultivo e de assessoramento ao CNPS). O CNPS é
um órgão superior de deliberação colegiada, composto por seis representantes do governo
federal e nove da sociedade civil, sendo três aposentados e pensionistas, três trabalhadores
ativos e três empregadores. Sua principal função é atuar no acompanhamento e na avaliação
dos planos e programas que são realizados pela administração. Quaisquer alterações no plano
de benefícios e de custeio necessita ser aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela
presidência da República.
B) Saúde
No que concerne à saúde pública, o Art.196 da CF declara-a como um “direito de
todos e dever do Estado”, de acesso universal, igualitário e gratuito. Ainda segundo a CF,
em seu artigo 198, “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada
e hierarquizada e constituem um sistema único”. Desta forma, em 1990, pela Lei Orgânica
8.080, foi regulamentado o Sistema Único de Saúde (SUS), entidade que responde pela
67
política nacional de saúde no Brasil (MARQUES & PIOLA, 2014). A organização do SUS
embasa-se em três diretrizes constitucionais, a saber, i) descentralização: distribuição das
responsabilidades de oferta dos serviços de saúde entre todas as esferas de governo; ii)
integralidade do atendimento: garantia de atendimento em diferentes níveis de
complexidade, priorizando, porém, as atividades preventivas mas sem prejuízo dos serviços
assistenciais; iii) participação comunitária: garantia de participação populacional, na
formulação bem como no controle de execução das políticas de saúde.
A participação da comunidade é garantida nos conselhos: Conselho Nacional de
Saúde; Conselhos Estaduais (27) e Conselhos Municipais (5.569). Os conselhos deliberam,
vigiam e monitoram as políticas de saúde pública. Pertencem às suas atribuições, dentre
outras, aprovar o orçamento de saúde, acompanhar a execução orçamentária e aprovar, a
cada quatro anos, os Planos Nacional, Estadual e Municipal, de acordo com seus âmbitos.
A composição dos conselhos é de 50% de representantes dos usuários, 25% dos
trabalhadores e 25% dos provedores de serviços e gestores.
A cada quatro anos é realizada uma Conferência Nacional de Saúde (precedida por
Conferências estaduais e municipais, realizadas em todo o país), com o objetivo de avaliar a
situação do SUS e propor diretrizes para a formulação de políticas de saúde. A Conferência
é convocada pelo Executivo (MS) ou pelo Conselho Nacional de Saúde.
Com o objetivo de pactuar a organização e o funcionamento das ações e serviços
de saúde entre os entes federados, o SUS conta com as Comissões Intergestores Bipartite
(CIB), na esfera dos estados e vinculadas às Secretarias de Saúde, e com a Comissão
Intergestores Tripartite (CIT), no âmbito federal. As CIB são constituídas paritariamente por
representantes do governo estadual, indicados pelo Secretário do Estado da Saúde, e dos
secretários municipais de Saúde, indicados pelo órgão de representação conjunta dos
municípios do estado (Conselho de Secretários Municipais de Saúde – Cosems). A CIT é
integrada por gestores do SUS das três esferas de governo - União, estados, DF e municípios.
Ela detém composição paritária formada por 15 membros, sendo cinco indicados pelo
Ministério da Saúde (MS), cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde
(CONASS) e cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
(CONASEMS). A representação de estados e municípios nessa Comissão é regional, sendo
68
um representante para cada uma das cinco regiões do país. Nesse espaço, as decisões são
tomadas por consenso e não por votação. A CIT está vinculada à direção nacional do SUS.
O financiamento do SUS é realizado mediante recursos de contribuições sociais, na
esfera federal, e de impostos, nas esferas estadual e municipal. Em 2011, a participação dos
Estados e Municípios representou 55% do total do gasto. De acordo com a Lei
Complementar nº 141/2012, que regulamentou a Emenda Complementar nº 29, os estados e
o Distrito Federal devem aplicar em ações e serviços públicos de saúde no mínimo 12% de
sua receita disponível, isto é, dos recursos arrecadados e das transferências constitucionais
recebidas; os municípios, por sua vez, devem aplicar 15%. A União deve aplicar montante
correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no
mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB)
ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual. Tendo em vista que o SUS é regido
pela diretriz da descentralização, os recursos federais são transferidos aos governos
subnacionais.
Cumpre ressaltar que, embora exista a garantia constitucional de acesso universal e
gratuito aos serviços do SUS e a possibilidade de participação complementar no sistema de
saúde por entidades privadas sem fins lucrativos (mediante contratos e convênios com entes
federados), há no Brasil uma concorrência, e não apenas uma complementação, dos serviços
do setor privado, através dos planos e seguros de saúde, em relação ao público. Em 2010,
apesar da existência do SUS, a participação do gasto público no total do gasto com saúde no
país era de apenas 47%. Nesse mesmo ano, o gasto privado direto, isto é, out off pocket,
representou 57,8% do gasto privado em saúde (30,6% do gasto total com saúde, sendo o
gasto com Planos e Seguros de Saúde de 21,4%)18 (OMS, 2013). Assim, no Brasil, os planos
e seguros de saúde não são complementares e sim se duplicam em relação ao SUS. Em 1998,
segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), na pesquisa suplementar
Saúde, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 24,5% da
população estava coberta por um plano de saúde, seja privado (operadoras comerciais e
empresas com plano de autogestão), seja organização como assistência ao servidor público
civil e militar.
18 O total do gasto público com o privado não atinge 100% por problemas de arredondamento.
69
Dessa forma, em que pese a universalidade garantida pelo SUS, é bastante
significativo o segmento privado da saúde no Brasil. Em 2011, segundo Ocké-Reis (2013,
Apud MARQUES & PIOLA, 2014), a renúncia fiscal empreendida, seja nas deduções do
imposto de renda de pessoa física e jurídica, seja com instituições sem finalidade lucrativa,
entre outros, atingiu R$15.807 milhões, o equivalente a 22,55% do gasto realizado pelo
governo federal com o SUS.
C) Assistência Social
A assistência social, bem como os serviços e prestações que são promovidos em
seu âmbito, possui caráter não contributivo e se constitui como um dever do Estado e direito
de todo cidadão que dela precise. Logo, o acesso às ações e serviços da Assistência pressupõe
a necessidade por parte do indivíduo requerente, seja esta velhice, incapacidade, pobreza,
etc. À semelhança da Saúde, através do SUS, a Assistência também está estruturada sobre
um sistema único, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que se trata de um modelo
de gestão organizado de forma descentralizada e participativa com foco nos serviços
socioassistenciais19. Sua forma compartilhada de gestão é composta pelo poder público e
pela sociedade civil. Este sistema organiza-se a partir das diretrizes constitucionais de
descentralização político-administrativa e de participação popular, tanto no que diz respeito
à formulação das políticas quanto ao controle das ações. Ademais, os marcos regulatórios
constitutivos da política de assistência social brasileira são, além da Constituição Federal de
1988, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993, atualizada e alterada pela Lei
nº 12.435, de 2011, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), de 2004, a Norma
Operacional Básica de Assistência Social, de 2012, e a Norma Operacional Básica de
Recursos Humanos, de 2006 (MDS, 2013).
Os objetivos em torno dos quais a Assistência Social se orienta visam: i) à proteção
da família, da maternidade, da infância, da adolescência e da velhice; ii) ao amparo de
menores carentes; iii) à integração ao mercado laboral; iv) à habilitação e reabilitação dos
portadores de deficiência e à sua integração na vida comunitária; e, v) à garantia de um
19 Em dezembro de 2013, 99,8% dos municípios brasileiros estavam habilitados em um dos níveis de gestão
do SUAS.
70
salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que
comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família (BRASIL, 2001, Art.203).
A PNAS e o SUAS estabelecem para a assistência três funções: a Defesa dos
direitos, a Vigilância socioassistencial e a Proteção social. Esta última divide-se em Proteção
Básica e Especial. A primeira, de caráter preventivo, tem como equipamento principal os
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Já a segunda se divide em ações de
média e alta complexidade, tendo como principal equipamento os Centros de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), que atendem as situações de violações de
direitos.
A Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) é a unidade do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)20, organizada por meio do SUAS, que
responde pela gestão da PNAS. O SUAS estabeleceu uma ruptura com o modelo
assistencialista, ancorado na filantropia e benemerência, que até então havia caracterizado a
assistência social no país.
Entre os órgãos colegiados que contam com maior participação do MDS estão o
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e o Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consea). A participação da comunidade é garantida nos conselhos:
CNAS; Conselhos Estaduais (27) e Conselhos Municipais (5.565). Entre as suas
competências destacam-se: aprovar a PNAS, regular a prestação de serviços públicos e
privados de assistência social, zelar pela efetivação do sistema descentralizado e
participativo de assistência social e convocar ordinariamente a Conferência de Assistência
Social. É de responsabilidade do Conselho nas três esferas, entre outros, aprovar o orçamento
da assistência social, acompanhar a execução orçamentária e aprovar, a cada quatro anos, os
Planos Nacional, Estadual e Municipal, de acordo com seus âmbitos. A composição dos
conselhos é de 50% de representantes da sociedade civil e 50% de representação
20 As políticas de Assistência Social, de Segurança Alimentar e Nutricional e de Renda de Cidadania integram
a estrutura do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) organizado em seis secretarias,
além do Gabinete da Ministra: Secretaria Executiva (SE), Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS),
Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (SESAN), Secretaria Extraordinária de Superação da Extrema Pobreza (SESEP) e Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação (SAGI).
71
governamental. Em 2013, o CNAS compunha-se por 18 membros, sendo nove
representantes governamentais e nove da sociedade civil. O órgão é sempre presidido por
um de seus integrantes, eleito pelos próprios membros do Conselho, com mandato de um
ano e possibilidade de estendê-lo por mais um.
De quadro em quatro anos21 é realizada uma Conferência Nacional de Assistência
Social (precedida por Conferências estaduais e municipais, realizadas em todo o país), com
o objetivo de avaliar a situação do SUAS e propor diretrizes para a formulação de políticas
de assistência social. A Conferência é convocada pelo Executivo (MDS) ou pelo CNAS.
A fim de que sejam pactuadas a organização e o funcionamento das ações e serviços
de assistência social entre os entes federados, o SUAS conta com as Comissões Intergestores
Bipartite (CIB), no âmbito dos estados e vinculadas às Secretarias de Assistência Social, e
com a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), no âmbito federal. As CIB são constituídas
paritariamente por representantes do governo estadual, indicados pelo Secretário do Estado
da Assistência Social, e dos secretários municipais de Saúde, indicados pelo Colegiado
Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social (COEGEMAS).
A CIT é integrada por gestores do SUAS das três esferas de governo – União,
estados, DF e municípios. Ela tem composição paritária formada por representantes do MDS,
pelo Fórum Nacional de Secretários de Estado de Assistência Social (FONSEAS) e pelo
Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS).
A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei 8.742/93) estabelece que o
financiamento à Assistência, de responsabilidade da União, seja feito com os recursos
aportados no Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS (BRASIL, 1993, Art. 28). A
LOAS define que as transferências de recursos da União para estados, DF e municípios
sejam feitas mediante prévia comprovação de efetiva instituição e funcionamento de: i)
conselhos de assistência social de composição paritária entre governo e sociedade civil; ii)
fundos de assistência social com orientação e controle dos respectivos conselhos de
assistência social; iii) planos de assistência social; e, iv) comprovação de aporte de recursos
próprios alocadas nos respectivos fundos de assistência social (BRASIL, 1993, Art.30).
21 Excepcionalmente poderão ser convocadas Conferências extraordinárias a cada 02 (dois) anos.
72
As receitas do FNAS podem ser compostas por recursos da União; eventuais
doações de pessoas jurídicas ou pessoas físicas; contribuição social dos empregadores;
recursos provenientes de concursos, sorteios e loterias, no âmbito do Governo Federal;
receitas de aplicações financeiras de recursos do Fundo; receitas provenientes da alienação
de bens móveis da União, no âmbito da assistência social e transferências de outros fundos.
O FNAS foi regulamentado pelo Decreto 1.605/95, e atualizado pelo Decreto 7.788, de 2012.
Seus recursos são aplicados no pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC); no
apoio técnico e financeiro aos serviços e programas de assistência social aprovados pelo
CNAS; no atendimento de ações socioassistenciais de caráter emergencial, em conjunto com
o Distrito Federal, os estados e os municípios; na capacitação de recursos humanos e no
desenvolvimento de estudos e pesquisas relativos à área de assistência social.
Quanto aos benefícios e ações promovidos pela Assistência Social, há diversas
iniciativas implementadas nos diferentes âmbitos de governo, voltadas principalmente para
o atendimento a riscos biológicos, como velhice e incapacidade mental ou motora, como
também a riscos sociais, como pobreza e indigência. No âmbito federal, há duas grandes
políticas de assistência, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Programa Bolsa
Família (PBF). O BPC é um benefício de caráter não contributivo e de valor igual ao salário
mínimo. Ele é concedido a pessoas com deficiência, de qualquer idade, incapacitadas para a
vida independente e para o trabalho, e aos idosos com 65 anos ou mais, cuja renda familiar
per capita bruta seja inferior a 25% do salário mínimo vigente. Em março de 2012, o BPC
beneficiou 1,9 milhões de pessoas com deficiência e 1,7 milhões de idosos (MDS, 2014f).
Este benefício não se trata de um programa social, tampouco de uma mera política, mas de
um direito previsto constitucionalmente, cuja concessão a qualquer cidadão elegível é
obrigatória. O PBF, por outro lado, é um Programa de Transferência Condicionada de Renda
(PTCR), que possui critérios de elegibilidade e condicionalidades específicos. Sua concessão
está vinculada não apenas à elegibilidade do demandante, como também à disponibilidade
de recursos orçamentários, não se constituindo, portanto, em um direito.
D) Considerações gerais sobre a Proteção Social no Brasil
O Brasil, por meio da promulgação da Constituição Federal de 1988, indicava uma
tendência universalizante no campo das políticas sociais, demonstrando uma tentativa
73
similar às experiências europeias. Não obstante à nova constituição, o país adotou medidas
neoliberais preconizadas pelo Consenso de Washington, processo que incentivou a
ampliação do setor privado na cobertura de riscos sociais. O resultado disso foi o
crescimento, no campo da Saúde, dos planos e seguros de saúde e dos fundos de pensão
abertos, na área previdenciária. Embora esses últimos não tenham sido tratados nas partes
anteriores, sabe-se que parcelas cada vez maiores de trabalhadores, principalmente daqueles
vinculados a sindicatos mais organizados, participam de fundos de pensão fechados ou
aderem às modalidades abertas.
No caso da saúde, ao lado do sistema público (e em seu prejuízo), floresce o
privado, principalmente na forma de planos e seguros de saúde. Sua expansão, que beneficia
principalmente segmentos populacionais de renda mais elevada, é significativamente
financiada mediante renúncia fiscal. Essa e outras práticas que vigoram no país indicam que,
de fato, não houve a opção do público em matéria de saúde.
Na área previdenciária, responsável pela organização e concessão de
aposentadorias, à parte os grandes avanços introduzidos no momento da elaboração da
Constituição de 1988 (introdução do piso de valor igual ao salário mínimo e eliminação das
desigualdades de acesso entre os trabalhadores rurais e urbanos), não houve avanços
posteriores. Em grande parte, isso se deve ao fato de o mercado de trabalho brasileiro
continuar segmentado, no qual a presença da informalidade permanece alta. Isso porque,
como a Previdência Social é financiada por contribuições e não por impostos, a expansão de
sua cobertura é função do aumento da formalização do mercado de trabalho e não de uma
política previdenciária. Além disso, é digna de nota a introdução do fator previdenciário
como elemento inibidor da demanda de aposentadoria: uma vez que ele funciona como um
redutor do valor da aposentadoria, o segurado é incentivado a continuar trabalhando. Em
consequência, em que pese a existência do BPC, na Assistência, parcela significativa da
população brasileira não tem, na velhice, nenhum tipo de renda de substituição garantido
pelo Estado. Desta forma, conquanto os constituintes realizassem esforços em construírem
uma proteção social que garantisse direitos ao conjunto da população, ela permanece parcial
e não universal.
74
O quadro 1 sintetiza, de forma esquemática, os componentes da SS brasileira a
partir de algumas de suas características, como forma de acesso e caráter do benefício ou
ação, bem como lista genericamente os benefícios e programas que lhes correspondem.
Quadro 1
Sistema de Proteção Social – Brasil
Seguridade Social Acesso Caráter Regimes/Sistemas Benefícios/Programas
Previdência Social Meritocrático Contributivo
RGPS
Regimes Próprios
Aposentadorias
Pensões
Auxílios
Saúde Pública Universal Não contributivo SUS
Atendimento integral
Assistência Social Seletivo Não contributivo SUAS
Ações assistenciais
BPC
PBF
Fonte: BRASIL, 2001; MARQUES et al, 2014.
Elaboração própria.
1.6.2. O sistema de proteção social argentino
O sistema de proteção social na Argentina, segundo documento da Organização
Internacional do Trabalho – OIT (2012, p.2), “conta com uma complexa matriz de estruturas
e programas que cobrem os diversos riscos sociais de grande parte da população, embora
não de forma universal: velhice, invalidez, falecimento e acesso a serviços de saúde,
desemprego, maternidade, riscos de trabalho e enfermidades profissionais”22 (tradução
22 “La protección social cuenta con una compleja matriz de esquemas y programas que cubren los diversos
riesgos sociales de gran parte de la población aunque no en forma universal: vejez, invalidez, fallecimiento y
75
nossa). Ainda segundo o referido documento, os riscos velhice, invalidez e falecimento são
cobertos por programas previdenciários, já a cobertura de saúde vincula-se à seguridade
social e a sistemas públicos dos governos locais.
A) Previdência
A previdência constitui um subsistema da seguridade social e é regulada pelo
Sistema Integrado Previsional Argentino (SIPA). Este órgão foi criado em novembro de
2008, através da Lei 26.425, para unificar os dois regimes previdenciários (público de
repartição e privado de capitalização) que existiam na Argentina desde a reforma da
previdência promovida pelo governo Menem em 1993. A criação da SIPA, pelo governo de
Néstor Kirchner, funcionou como uma “reforma da reforma” e (re)estatizou a previdência
no país. Assim, com a instituição da SIPA o regime previdenciário argentino torna-se único,
público e de repartição, em oposição ao regime misto que funcionara entre os anos de 1993
e 2008 (MARQUES, 2014; ANSES, 2010).
Tal como em vários países, junto a SIPA coexistem regimes especiais (militares,
policiais, serviços penitenciários, entre outros), caixas previdenciárias profissionais, caixas
de empregados municipais e 13 caixas de empregados públicos dos Estados não transferidos
ao governo central (SABAÍNI, CETRANGÓLO & MORÁN, 2014).
O SIPA é um sistema de repartição, de adesão obrigatória para todos os
trabalhadores do setor formal (privado e público)23 e é administrado pela Administración
Nacional de la Seguridad Social (ANSES). É financiado mediante recursos de contribuições
(de 10,17% a 12,71% para os trabalhadores; de 27% para os autônomos e “monotributistas”
– uma modalidade de inserção tributária que se assemelha ao SIMPLES; e de valor fixo para
os trabalhadores domésticos) e de impostos de destinação específica. Entre estes, destacam-
se o IVA (percentual de sua arrecadação) e o imposto sobre a renda. Vale dizer, ainda, que
o Estado também transfere recursos do Tesouro Nacional como coparticipante (de 15% sobre
acceso a servicios de cuidados de salud, desempleo, maternidad, riesgos de trabajo y enfermedades
profesionales” (OIT, 2012, p.2).
23 Nisso difere do sistema brasileiro, pois os servidores públicos não integram o RGPS, bem como os militares.
76
a arrecadação bruta livre, isto é, sem vinculação. A arrecadação bruta refere-se a impostos
internos e ao lucro mínimo presumido).
Os benefícios são formados de uma Prestación Básica Universal (PBU), de valor
igual a todos que tenham direito à aposentadoria, e de uma Prestación Adicional por
Permanencia (PAP), determinada pela média das remunerações durante os últimos 10 anos.
As condições de acesso são 30 anos de contribuição e 60 anos, mulheres, e 65, homens.
Antes mesmo da unificação do regime privado e do público, e principalmente devido
à situação social provocada pela desestruturação do mercado de trabalho durante o auge da
aplicação das políticas neoliberais e pela crise de 2001, o governo Néstor introduziu uma
série de “reformas” que permitiu o acesso a quem não pode contribuir devidamente nos anos
anteriores (as contribuições faltantes são deduzidas dos benefícios recebidos, em até 60
parcelas).
O SIPA também concede benefícios por crianças e adolescentes, tanto para as
famílias de contribuintes como para famílias de desempregados ou que exerçam trabalhos
domésticos ou atividade junto ao setor informal. Assim, parte das ações de assistência estão
incorporadas nas atividades previdenciárias.
B) Saúde
O sistema de saúde argentino é descentralizado, cabendo a cada estado (comunas)
a decisão de suas diretrizes. É um sistema bastante segmentado e heterogêneo na sua forma
de organização, financiamento e acesso. Baseia-se em seguros de saúde (obra social), de
caráter privado ou público, onde os usuários realizam contribuições para financiar o sistema,
com cobertura garantida ao contribuinte e ao seu grupo familiar. Todo cidadão do país deve,
por lei, estar vinculado a alguma obra social, mas para aqueles que não possuem nenhum
seguro de saúde é possível o acesso a serviços públicos, através de planos e programas
específicos, como, por exemplo o Programa SUMAR, entre outros. Este programa é uma
estratégia federal que visa melhorar o atendimento em saúde nas instituições públicas dos
estados (comunas) para os segurados do setor público, mas também oferece atendimento e
acesso a serviços de saúde para pessoas em situação de vulnerabilidade e que não tenham
uma obra social que lhes assista (MSAL, 2014; MSAL, 2013; OIT, 2012). Ao fim, a
77
cobertura atinge o conjunto da população, pois todos têm direito ao serviço público,
independentemente de terem vínculo com uma Obra Social ou acesso a um serviço privado.
A Obra Social não é, a princípio, um plano de saúde, pois de início essa instituição
não exigia que o segurado optasse por um nível de atendimento. Na verdade, a Obra Social
guarda relação, na sua origem, com as Associações de Ajuda Mútua e não por acaso os
sindicatos estão envolvidos em sua organização e administração. O vínculo a uma Obra
Social tradicionalmente é dado por sua inserção profissional. Todavia, durante os anos de
1990, quando a presença da medicina pré-paga e privada se ampliou fortemente, as normas
de filiação a uma ou outra Obra Social se flexibilizaram, permitindo maior liberdade de
eleição. Atualmente, no entanto, a fronteira entre a Obra Social e os planos de saúde está
muito tênue, pois as primeiras estão oferecendo cada vez mais um serviço básico, e, mediante
novos aportes, serviços mais complexos.
Às Obras Sociais, instituições nacionais, estão vinculados os trabalhadores do
mercado formal e os servidores públicos de âmbito nacional, bem como seus dependentes.
Elas são financiadas por contribuições (3% paga pelo trabalhador e 6% paga pelo
empregador; valores fixos no caso de monotributistas e trabalhadores domésticos, não
havendo obrigatoriedade de contribuição no caso dos trabalhadores autônomos). Parte
desses recursos se destina ao Fondo Solidario de Redistribución, com o objetivo de financiar
doenças de alto custo e baixa incidência, e visando redistribuir recursos para Obras Sociais
de menor capacidade financeira.
Os servidores dos estados não estão aí incluídos, sendo cobertos por instituições
estaduais. Já os aposentados são cobertos pelo Instituto Nacional de Servicios Sociales para
Jubilados y Pensionados (conhecido por PAMI).
O financiamento da saúde pública, que é descentralizada em todos os sentidos,
provém das receitas gerais de cada jurisdição.
C) Asignaciones Familiares
Outro elemento importante que compõe a proteção social argentina são as
Asignaciones Familiares, que constituem um regime de prestações monetárias destinados às
78
famílias que possuam menores ou incapacitados de qualquer idade, sob sua dependência. O
regime de Asignaciones Familiares24 faz parte da seguridade social e está a cargo da
Administración Nacional de la Seguridad Social (ANSES), órgão também responsável pela
previdência e pela SIPA. Tal regime possui dois subsistemas, um contributivo e outro não
contributivo, com pretensão a atender universalmente a todas os menores e incapacitados do
país. O subsistema contributivo de Asignaciones Familiares (AAFF) é voltado a famílias de
trabalhadores formais do mercado laboral. Por outro lado, o subsistema não contributivo é
direcionado a famílias de trabalhadores do mercado informal, do setor doméstico,
desempregados e ainda a gestantes em situação de vulnerabilidade social. Este subsistema é
composto por duas políticas específicas, a Asignación Universal por Hijo (AUH) e a
Asignación por Embarazo (AEPS). Ambas as políticas realizam transferências monetárias
às famílias atendidas, contudo, possuem condicionalidades para o recebimento integral das
prestações.
D) Considerações gerais sobre a Proteção Social na Argentina
Do ponto de vista da organização do sistema, das normas de acesso e da cobertura,
a proteção social argentina é mais fragmentada, quando cotejada à brasileira. No campo
previdenciário, nota-se a manutenção de regimes de funcionários públicos, a despeito do
SIPA propor-se a contemplar todo os servidores, além dos trabalhadores do mercado formal.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento da desestruturação e da precarização do mercado de
trabalho, efetuado durante os anos 1990 e na crise do início dos anos 2000, permitiu que as
regras de acesso fossem flexibilizadas para dar conta daqueles que estiveram desempregados
por longa período ou em atividade sem garantia de direitos. Igualmente, cabe notar o cuidado
em relação às crianças e adolescentes, garantindo a todas, independentemente da situação
laboral de seus pais, uma renda mensal. Como se verá mais adiante, esse benefício, ao
contrário do que ocorre no Brasil com o Programa Bolsa Família, constitui um direito.
A fragmentação é bem mais sentida no campo da Saúde. Diferentemente do Brasil,
que unificou as instituições (Institutos) ligadas aos sindicatos, que, entre outros benefícios,
garantiam a cobertura do risco doença, a Argentina manteve as Obras Sociais, de modo que
24 Este regime será tratado em mais pormenores na seção 2.2, do próximo capítulo.
79
os serviços e ações oferecidos não são homogêneos, dependendo da capacidade financeira
da respectiva Obra Social. Ao mesmo tempo, o serviço público se desenvolveu em paralelo.
Mais recentemente, principalmente durante os anos 1990, desenvolveram-se os planos de
saúde e a saúde privada, a tal ponto que atualmente muitas Obras Sociais se organizam como
se fossem planos, oferecendo níveis diferentes de atenção mediante aportes maiores.
O quadro 2 esboça a estrutura da proteção social argentina.
Quadro 2
Sistema de Proteção Social – Argentina
Seguridade Social Acesso Caráter Regimes/Sistemas Benefícios/Programas
Previdência Social Meritocrático Contributivo SIPA
Aposentadorias
Pensões
Auxílios
Saúde
Privado: seletivo
Público: universal
Contributivo Seguro social
Atendimento integral
Asignaciones
Familiares Universal Híbrido
Contributivo
Não contributivo
AAFF
AUH e AEPS
Fonte: ANSES, 2010; OIT, 2012; MSAL, 2013; MSAL, 2014; MARQUES, 2014.
Elaboração própria.
1.6.3. O sistema de proteção social chileno
No Chile, segundo Farías (2013, p.13), o sistema de proteção social “consiste em
uma rede de serviços e políticas contributivas e não contributivas desenhada para ofertar
proteção estatal ao longo da vida para diferentes grupos socioeconômicos”. Ainda em
consonância com a autora, este sistema engloba políticas relacionadas à seguridade social, à
80
saúde, à educação e à assistência social, que abarca as transferências monetárias e em espécie
realizadas pelo Estado (direcionadas à população sob pobreza e vulnerabilidade), além de
outras ações sociais.
A proteção social no Chile articula um rol de políticas sociais, voltadas a diferentes
públicos e geridas, em sua maioria, pelo Ministerio de Desarrollo Social (MDS-Ch). Esta
articulação é permitida pelo Sistema Intersectorial de Protección Social, entidade criada em
2009 através da Lei 20.379, e composta por distintos subsistemas, dentre os quais se
encontram o Sistema Chile Solidario e o Sistema de Protección Integral a la Infancia Chile
Crece Contigo, que operam como sistemas de gestão para um conjunto de ações
assistenciais. Com o objetivo de promover esta articulação, como destaca Farías (2013,
p.13), foi criada a Secretaría Ejecutiva de Protección Social, órgão pertencente ao MDS-
Ch, cuja responsabilidade é coordenar as atividades entre os diferentes ministérios e
instituições promotores de ações e programas sociais, como o Ministerio de Salud
(MINSAL), Ministerio de Educación (MINEDUC), Ministerio de Vivienda y Urbanismo
(MINVU) y Ministerio del Trabajo y Previsión Social (MINTRAB).
A) Previdência
Quanto ao sistema previdenciário chileno, trata-se de um sistema privado de
capitalização individual. Este modelo substituiu o então sistema público de repartição, na
reforma neoliberal empreendida no país, em 1981. A administração das contribuições
recebidas, bem como dos benefícios concedidos, fica a cargo das Administradoras de
Fondos de Pensiones (AFP). No entanto, como esclarece Farías (2013, p.21):
Os resultados da reforma de 1981 geraram uma série de críticas quanto às lacunas
resultantes em termos de equidade, de rentabilidade e na taxa final de substituição
das rendas. Em 2006, mais de 33% do total de ocupados não quotizavam no
sistema de seguridade social e se estimava que a metade dos quotistas não
conseguiriam financiar uma aposentadoria mínima ao término de sua vida laboral.
Devido a isso, nesse ano se iniciou uma série de discussões para reformar o
sistema.25 (Tradução nossa)
25 “(...) los resultados de la reforma de 1981 generaron una serie de críticas en cuanto a las brechas resultantes
de equidad, de rentabilidad y en la tasa final de sustitución de los ingresos. En 2006, más del 33% del total de
ocupados no cotizaba en el sistema de seguridad social y se estimaba que la mitad de los cotizantes no iban a
81
Deste modo, em 2008, o sistema previdenciário chileno sofreu uma “reforma da
reforma”. Em conformidade com Farías (2013, p.21), a partir desta reforma, o sistema
passou a se estruturar sobre três componentes, que perfazem pilares específicos: i)
capitalização individual compulsória – pilar contributivo; ii) Ahorro Previsional Voluntario
(APV)26 – pilar voluntário; e iii) Sistema de Pensiones Solidarias (SPS) – pilar solidário. Os
objetivos almejados na reforma contemplam a articulação entre os elementos contributivos
e não contributivos da proteção social, assim como a melhora em sua cobertura e em seu
acesso.
No sistema de capitalização individual, a reforma de 2008 operou modificações,
dentre as quais destacam-se: a responsabilidade do Seguro de Invalidez y Sobrevivencia, que
deixou de ser do empregado e passou ao empregador; a eliminação da comissão fixa das
AFP cobrada dos filiados, como forma de aumentar a concorrência entre elas; o
aperfeiçoamento do marco regulatório e a criação de instituições voltadas a melhorar a
informação disponível aos filiados para favorecer suas decisões previdências.
O pilar voluntário, por seu turno, busca fomentar a poupança previdenciária
voluntária, mediante uma política de incentivo à criação e à ampliação de APV, de natureza
individual ou coletiva, permitindo também a contribuição do empregador.
O Estado passa, no pilar solidário, a se responsabilizar pelo financiamento e a
concessão de uma aposentadoria básica, de nome Pensión Básica Solidaria (PBS), não
contributiva e dirigida à população sem meios, e pelo Aporte Previsional Solidario (APS),
voltado à velhice e invalidez do mesmo segmento populacional.
B) Saúde
A cobertura do risco doença no Chile é garantida pelo Estado e por empresas
privadas, isto é, constitui um sistema misto. O primeiro está organizado no Fondo Nacional
de Salud (FONASA), cujo financiamento é sustentado por recursos fiscais e por
alcanzar a financiar una pensión mínima al final de su vida laboral. Debido a ello, en ese año se inició una serie
de discusiones para reformar el sistema”.
26 Fundo previdenciário voluntário (tradução nossa).
82
contribuições dos segurados (7% da renda, mediante um teto); o segundo é formado pelas
Instituciones de Salud Previsional (ISAPRE)27, para as quais as pessoas contribuem em
média com 7% de sua renda. A adesão dos trabalhadores e dos inativos é obrigatória, ao
FONASA ou a uma ISAPRE.
As duas modalidades constituem um seguro, mas o FONASA trabalha com um
sistema de repartição, isto é, não há diferenciação de ações e serviços em decorrência do
nível de contribuição efetuada e do número de dependentes. Já no caso das ISAPRES, o
seguro de saúde é baseado em contratos individuais firmados com os seguros, de modo que
as ações e serviços dependem diretamente do montante aportado. É interessante registrar que
serviços privados como hospitais, clínicas e profissionais independentes atendem tanto os
segurados do FONASA como das ISAPRE.
Segundo Lara e Silva (2014b), os contribuintes ao FONASA podem escolher entre
duas modalidades de atenção: institucional (atenção fechada) e de livre escolha (atenção
aberta). Tanto em uma modalidade como em outra, o segurado efetua, no momento da
prestação do serviço, um copagamento que varia de acordo com o nível de sua renda. No
caso da renda ser inferior a um mínimo definido, as pessoas estão isentas desse copagamento.
Os indigentes e não contribuintes que integram o FONASA não têm direito à modalidade de
livre escolha. Além disso, em 2004, foi definida uma lista de patologias a que todos os
chilenos têm garantido acesso universal. Tanto o FONASA como as ISAPRE devem prestar
os serviços necessários, nesse caso.
C) Assistência Social
Na Assistência estão compreendidos diversos programas e ações que fazem parte
das políticas de combate à pobreza e de atendimento à infância, dentre outros. Neste ramo,
encontram-se o Sistema Chile Solidario (SCS)28, o Sistema Chile Crece Contigo, o Ingreso
27 Foram instituídas em 1980, praticamente junto com a reforma previdenciária. Entre os argumentos então
utilizados, destaca-se a liberdade de escolha do serviço a ser buscado, principalmente hospitalar.
28 O Chile Solidario, que inicialmente realizava transferências monetárias, atualmente funciona como um
sistema de gerenciamento de algumas ações assistenciais. Agora, as transferências são feitas exclusivamente
pelo IEF.
83
Ético Familiar (IEF)29 e demais programas e subsídios estatais voltados a populações em
indigência, pobreza ou vulnerabilidade.
Diversos programas, pertencentes ao âmbito da Assistência, compartilham uma
arquitetura semelhante, na qual tem relevo o componente de apoio psicossocial e laboral aos
domicílios, com destacada ênfase na reinserção produtiva dos membros da família.
Para além dos benefícios monetários vinculados a alguns programas (como o Bono
de Protección e os bonos condicionados do IEF), existem subsídios estatais destinados a
famílias em situação de vulnerabilidade e pobreza e que atendem a diferentes demandas e
necessidades, como, por exemplo, o Subsidio Único Familiar (SUF) – pago às famílias
pertencentes aos 40% mais pobres da população total – e o Subsidio de Discapacidad Mental
– que outorga uma prestação mensal a sujeitos maiores de 18 anos e que tenham distúrbios
mentais – dentre outros (FARÍAS, 2013).
O financiamento de todas as prestações e subsídios estatais concedidos na esfera da
Assistência advém de recursos do orçamento nacional. Essas prestações monetárias são
entendidas como altamente progressivas, posto que beneficiam, em geral, populações de
baixa renda, pertencentes aos segmentos mais pauperizados do país.
D) Considerações gerais sobre a Proteção Social no Chile
A proteção social chilena apresenta um maior grau de mercantilização, quando
confrontada aos respectivos sistemas de proteção social do Brasil e da Argentina. Mesmo
após a “reforma da reforma” no setor previdenciário, empreendida em 2008, a natureza
privada do sistema não mudou, tampouco alterá-la era o intuito pretendido. Antes, tal
reforma foi realizada visando agregar quotistas ao sistema de capitalização, mesmo aqueles
que não possuíssem poder contributivo suficiente, colocando-se o Estado como
complementador dessas contribuições, através do pilar solidário.
De modo geral, tanto a área da Saúde quanto a da Previdência mantêm os traços
fundamentais da reforma neoliberal promovida no país do início da década de 1980. A partir
29 Tanto o SCS quanto o IEF serão tratados na parte 3 do capítulo 2.
84
daí, o país tem assistido a uma profusão de programas, ações e subsídios assistenciais
diversos, direcionados a populações sob indigência, pobreza ou vulnerabilidade, justamente
aquelas mais atingidas pelos efeitos recessivos das políticas neoliberais, bem como aquelas
que menos acesso podem ter aos serviços privados de proteção. Deste modo, a Assistência
chilena reflete um enfoque muito mais “compensatório” do que propriamente “cidadão” em
sua atuação social. Este último aspecto é mais desenvolvido adiante.
O quadro 3 delineia, em traços gerais, a proteção social chilena.
Quadro 3
Sistema de Proteção Social – Chile
Seguridade Social Acesso Caráter Regimes/Siste
mas
Benefícios/Programas
Previdência Social:
Pilar contributivo
Pilar voluntário
Pilar solidário
Meritocrático Contributivo AFP
Aposentadorias
Pensões
Auxílios
Saúde Privado: seletivo
Público: universal
Contributivo FONASA
ISAPRES
Atendimento integral
Assistência Social Universal Não
contributivo
Chile Solidario
IEF
Subsídios estatais
Bono de Proteção
Bonos condicionados
Fonte: LARA & FLORES, 2014b; FARÍAS, 2013.
Elaboração própria.
85
2. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE RENDA NA
AMÉRICA LATINA: A EXPERIÊNCIA DO BRASIL, ARGENTINA E CHILE
Este capítulo dedica-se a descrever os Programas de Transferência Condicionada
de Renda (PTCR), no intento de fornecer elementos concretos para a discussão acerca da
configuração vigente dos sistemas de proteção social na América Latina. Deste modo, são
descritos os principais programas do gênero de determinados países latino-americanos.
Examinam-se os PTCR do Brasil, Argentina e Chile. A saber, o Programa Bolsa Família
(PBF) do Brasil; a Asignación Universal por Hijo para Protección Social (AUH) e a
Asignación por Embarazo para Protección Social (AEPS), dentro do regime de
Asignaciones Familiares da Argentina, além do subsistema contributivo do referido regime;
e os programas Chile Solidario e Ingreso Ético Familiar (IEF), do Chile. Estes três países
foram escolhidos como tipos exemplares dos PTCR, implantados em diversos países latinos
sob diferentes configurações, embora assemelhados em seus elementos constitutivos
fundamentais.
Alguns critérios fundamentam a opção pelos três países referidos. Para o Brasil, a
escolha é praticamente autoexplicativa, pois, na atualidade, o PBF é o maior PTCR não
apenas do país, como do continente e mesmo do mundo, considerando-se tanto o contingente
de beneficiários abrangidos, quanto a extensão territorial alcançada, dentre outros critérios
possíveis. Quanto ao Chile, sua escolha orienta-se por ter sido o primeiro país latino-
americano a adotar o modelo neoliberal, na esfera econômica e também na social,
mercantilizando sua proteção social e assistência à população. Quanto à Argentina, a opção
se fundamenta no contraponto que sua política de transferência coloca frente às políticas dos
outros dois países, pois, ao contrário daqueles, o PTCR argentino constitui-se como um
direito e não uma ação de assistência, pontual ou continuada, não possuindo, em tese,
restrições de vínculo político ou orçamentário, motivo pelo qual considera-se relevante
cotejá-lo aos demais.
O capítulo é composto por três seções, de maneira que cada uma corresponde a um
dos países ora tratados. Cada seção, por sua vez, divide-se em subseções, onde se procura
apresentar e descrever alguns elementos importantes dos PTCR. Os elementos referentes a
cada PTCR que se buscou contemplar neste trabalho são: i) os antecedentes históricos e/ou
86
os elementos explicativos de sua origem; ii) aspectos legais e estruturas de
operacionalização; iii) público-alvo e tipos de benefícios concedidos e, finalmente, iv) as
condicionalidades exigidas. Além disso, realizou-se um esforço para apresentar a dimensão
e “tamanho” dos programas nesses países, quanto ao contingente de beneficiários, à
cobertura territorial e ao volume de gastos fiscais implicados. Por fim, procurou-se mostrar
alguns resultados alcançados por, ou com, a contribuição desses programas, no que se refere
principalmente à redução da pobreza, da desigualdade e a aspectos relacionados à saúde,
educação e mercado laboral. Entretanto, em função da escassez ou mesmo da inexistência
de alguns dados importantes, em certos casos, foi inviável realizar a descrição de cada
elemento arrolado para todos os programas aqui considerados, como será possível perceber
ao longo do capítulo. Particularmente, a descrição dos programas chilenos foi a mais
prejudicada, pois muitos dados e informações importantes sobre tais programas ou são de
acesso restrito ou inexistem. O PBF é o que mostra melhor apresentação, uma vez que há
fácil acesso às informações e existem diversas instituições que disponibilizam seus dados.
A Argentina encontra-se no meio termo, pois possui certa quantidade de dados e o acesso a
eles não é restrito, na maioria das vezes.
Cabe ressaltar que este capítulo centra-se em expor os componentes constitutivos,
como também alguns dados relacionados aos programas, mas não se ocupa de analisá-los ou
compará-los, pois esta é a tarefa que se persegue no capítulo seguinte, o terceiro e último
deste trabalho, no qual procurou-se empreender uma análise comparativa entre os programas
e os países tratados.
2.1. Programa Bolsa Família – Brasil
Esta seção apresenta e descreve o Programa Bolsa Família (PBF). Parte-se de uma
breve explanação sobre seus antecedentes históricos e sua construção. Em seguida, são
apresentados elementos de seu desenho institucional: marco legal, operacionalidade,
público-alvo, benefícios e condicionalidades. Ademais, acrescentam-se à exposição alguns
dados acerca da dimensão do programa, bem como determinados impactos sociais por ele
gerados ao longo de sua implementação.
87
2.1.1. Antecedentes históricos e origem
O Programa Bolsa Família (PBF) denota a consolidação, no Brasil, do novo modelo
de política de enfrentamento à pobreza, introduzido na América Latina a partir da década de
1990. Principalmente a partir dos anos 2000, essas políticas disseminam-se fortemente na
região. Este novo modelo de política social de combate à pobreza consiste nos programas de
transferência condicionada de renda (PTCR).
Tais programas surgem no país derivados diretamente da discussão e da proposta
acerca da renda mínima garantida (RMG), apresentada pelo Senador Eduardo Suplicy. Em
1991, foi aprovado o Projeto de Lei propondo o Programa de Garantia de Renda Mínima
(PGRM), “destinado a todos os brasileiros residentes no país, maiores de 25 anos de idade e
que auferissem uma renda que corresponda, a cerca de três salários-mínimos nos valores de
2007” (SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2012, p.17). Como explica Marques (1997, p.184),
já no ano de 1996, apesar da proposta de Suplicy não ter sido até então apreciada pela Câmara
dos deputados, ela havia sofrido diversas alterações e acabara por inspirar diversos outros
programas que foram implantados à época. Assim, a partir da segunda metade da década de
1990, vários programas de transferência de renda de iniciativa municipal tiveram início no
país, inspirados no PGRM. Muitos deles, porém, continham condicionalidades, o que se
opunha à proposta da RMG, que pontificava, em última instância, um benefício
incondicional e universal.
Em 2004, contudo, como resultado do debate em torno dos programas
condicionados e da persistência da proposta de Suplicy, foi sancionado pelo Presidente o
Programa Renda de Cidadania, que prevê a concessão de um benefício para atender às
necessidades basilares com alimentação, saúde e educação de cada pessoa, destinado a todos
os brasileiros e estrangeiros residentes legais no país há mais de cinco anos. Portanto, o
Programa Renda de Cidadania trata-se de um benefício incondicional. Embora, em tese,
incondicional, sua implantação ficou condicionada a iniciar-se pelos mais pobres (SILVA,
YAZBEK e GIOVANNI, 2012, p.7). Mais de uma década após ter sido sancionado, porém,
este programa não foi, até o momento, implantado.
Ao contrário do fundamento inicial de uma renda mínima garantida (RMG), que se
baseava na incondicionalidade e universalidade, o que de fato se concretizou no país foram
iniciativas de programas essencialmente focalizados e condicionados. Estes programas
88
tiveram início no Brasil a partir de 1995. Primeiramente, ocorreram como experiências
municipais e somente em um segundo momento começam a se desenvolver também em
âmbito federal. Segundo Soares (2010) e Silva, Yazbek e Giovanni (2012), as primeiras
experiências desse tipo de política foram desenvolvidas nas cidades paulistas de Campinas,
Santos e Ribeirão Preto e também no Distrito Federal.
O primeiro programa em nível federal foi criado em 1996, denominado Programa
para a Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Todavia, sua abrangência era restrita, pois
fora implantado somente em alguns municípios do país. No entanto, no início da década
seguinte, especificamente em 2001, os PTCR ganharam maior abrangência nacional (mas
ainda não uma cobertura universal), através da implantação do Bolsa Escola. Pouco tempo
depois, surgiu também, na esfera federal, o Bolsa Alimentação. A esses programas seguiram-
se outros, nos diferentes níveis de governo. De modo que, como argumentam Soares e Sátyro
(2010, p.31), “a situação dos programas de transferência de renda condicionada em 2003
[ano de criação do PBF] era simples: o caos”, considerando-se que os diferentes programas
possuíam distintas formas de operacionalidade, conflitavam quanto aos seus objetivos e
superpunham-se quanto ao público que visavam. Além disso, não havia comunicação entre
os diferentes sistemas de informação dos programas federais, tampouco dos municipais.
Estes problemas engendravam dificuldades imensas na focalização adequada da população
a ser atendida, levando a que algumas famílias fossem beneficiadas por diferentes
programas, enquanto outras em situação similar não dispusessem de nenhum benefício.
Em 2003, foi criado o PBF, tendo por finalidade, como consta na lei que o
regulamenta, “a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de
transferência de renda do Governo Federal e do Cadastramento Único do Governo Federal”
(BRASIL, 2004b, Art.3º). Assim, de acordo com Silva, Yazbek e Giovanni (2012), a
instituição do PBF prestou-se a unificar as ações federais de assistência social de caráter não
contributivo, que, no início da década de 2000, caracterizavam-se por serem fragmentadas e
superpostas, tanto no que concerne aos seus objetivos, quanto ao público-alvo e, ainda, aos
mecanismos de operacionalização, representando, portanto, desperdício de recursos e má
focalização. Por esta razão, quatro programas federais de transferência de renda, os
chamados programas remanescentes, foram unificados sob a égide do PBF, a saber: o Bolsa-
Escola e o Bolsa-Alimentação, ambos condicionais; o Auxílio-Gás e o Programa Cartão-
89
Alimentação (PCA), que não exigiam condicionalidades de seus beneficiários. O PBF
herdou as condicionalidades dos programas remanescentes.
Ademais, como destacam os autores referidos, as iniciativas de programas de
transferências de renda em nível municipal e estadual, que tiveram lugar em algumas
localidades do país nos anos de 1990 e início dos 2000, anteriores (e algumas concomitantes)
às ações federais do gênero, também foram sendo desativadas ou incorporadas ao PBF, a
partir de sua implantação em 2003. De fato, “a proposta de unificação teve como propósito
mais amplo manter um único Programa de Transferência de Renda, articulando programas
nacionais, estaduais e municipais em implementação” (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI.
2012, p.142). Destarte, a unificação dos programas federais, assim como a desativação ou
incorporação dos programas precursores municipais e estaduais, sob a égide do Bolsa
Família, conformaram-no como o cerne da política focalizada de transferência condicionada
de renda no Brasil.
2.1.2. Aspectos legais e operacionalização
O PBF foi criado pela Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003.
Posteriormente, a MP 132 foi convertida na Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Esta lei
foi, então, regulamentada pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004, o qual rege,
atualmente, o Bolsa Família. Como consta no parágrafo único do Art.1º da Lei 10.836/2004,
a criação do PBF teve por finalidade “a unificação dos procedimentos de gestão e execução
das ações de transferência de renda do Governo Federal” (BRASIL, 2004).
Quanto aos seus objetivos básicos, conforme tipificado no Art.4º da Lei 5.209/2004
(BRASIL, 2004b), o PBF almeja:
i) promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial, de saúde, educação
e assistência social; ii) combater a fome e promover a segurança alimentar e
nutricional; iii) estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em
situação de pobreza e extrema pobreza; iv) combater a pobreza; e v) promover a
intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do Poder
Público.
No domínio gerencial, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) responde pela coordenação e gestão global do programa. Entretanto, sua implantação
e operacionalização são descentralizadas, realizadas no âmbito dos municípios, junto aos
90
gestores estaduais e municipais. Uma das atribuições do MDS consiste em promover a
articulação entre a esfera federal e as demais esferas do poder público na gestão global e
local do PBF, além de acompanhar e fiscalizar o Programa em todas as esferas (MDS,
2014b).
As operações de pagamento dos benefícios às famílias assistidas, assim como as
operações de processamento de dados cadastrais dos beneficiários (enviados pelos
municípios) são efetuadas pela Caixa Econômica Federal (CEF), que atua como agente
pagador e operador do PBF.
Quanto ao seu financiamento, o PBF consta como uma rubrica do Orçamento
Público Federal. Seus recursos provêm da receita tributária da Seguridade Social, no âmbito
da execução do Orçamento destinada à função Assistência Social, tendo como Unidade
Orçamentária (UO) o MDS. Segundo Salvador (2011, p.16), para o período de 2001 a 2011,
a fonte com maior participação no financiamento da função Assistência Social foi a
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), respondendo por mais
de 77% do montante total de recursos no período considerado.
2.1.3. Público-alvo e benefícios
No que se refere ao público-alvo do PBF, constitui-se em famílias30 classificadas
como pobres, detentoras de renda mensal31 per capita entre R$154,00 e R$77,01, e que
possuam crianças de até 15 anos, gestantes ou nutrizes, ou, ainda, adolescentes de 16 ou 17
anos; e famílias classificadas como extremamente pobres, que possuam renda per capita de
30 A Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o PBF, considera família, para efeitos de elegibilidade ao
programa, como “a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços
de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém
pela contribuição de seus membros” (BRASIL, 2004, Art. 2º, § 1º, inciso I). Este conceito de família aplicava-
se também aos programas remanescentes que foram unificados ao PBF.
31 O inciso III, do § 1º do Art. 2º da Lei 10.836/2004, define renda mensal familiar como “a soma dos
rendimentos brutos auferidos mensalmente pela totalidade dos membros da família, excluindo-se os
rendimentos concedidos por programas oficiais de transferência de renda” (BRASIL, 2004).
91
até R$77,00, independentemente da composição familiar. Estes valores passaram a vigorar
a partir de abril de 201432 (BRASIL, 2014).
Para participar do PBF, além do critério de renda, é preciso que todos os membros
das famílias a serem assistidas possuam registro no Cadastro Único (CadÚnico). O Cadastro
Único é um banco de dados de âmbito federal, coordenado pelo MDS, que identifica e
caracteriza as famílias de baixa renda, isto é, aquelas que detenham renda mensal de até meio
salário mínimo por pessoa ou renda mensal total de até três salários mínimos. Constitui-se
obrigatoriamente no instrumento empregado para a seleção de beneficiários das ações de
política social federais, como o PBF (MDS, 2014c). A partir do perfil da família registrado
no CadÚnico é que se embasa a concessão dos benefícios, pois consideram-se as
informações sobre renda mensal per capita e composição familiar, constantes no referido
perfil. Cumpre frisar, no entanto, que apesar da obrigatoriedade de toda família beneficiária
do Bolsa Família, assim como cada um de seus membros, estar registrada no Cadastro Único,
nem toda família constante neste Cadastro é beneficiária do PBF, pois o CadÚnico é um
sistema abrangente, no qual há outros programas e ações sociais que o utilizam como
instrumento para seleção de seus beneficiários. A seleção dos beneficiários do Bolsa Família
é feita pelo MDS de maneira automática através de um software especialmente desenvolvido
para esta finalidade, respeitando-se o critério da renda per capita, a partir das informações
constantes no CadÚnico e que são inseridas, pela CEF, através dos setores responsáveis pelo
programa nos municípios.
Os benefícios do PBF são de diversos tipos e valores distintos. Sua concessão
vincula-se aos critérios de renda familiar per capita e de composição das famílias. De
maneira que a soma dos diferentes benefícios concedidos, em função da renda e composição
familiar, constitui a prestação mensal outorgada às famílias assistidas. Por este motivo, as
famílias beneficiárias do PBF não recebem prestações monetárias idênticas, pois estas
variam em função das características de cada família.
Às famílias extremamente pobres destinam-se dois tipos de benefícios exclusivos a
elas, ou seja, que não são outorgados às famílias classificadas como pobres. Estes são o
32 Os valores apresentados, para os benefícios e faixas de renda, passaram a viger em função da Lei nº 8.232,
de 30 de abril de 2014, que altera o Decreto 5.209/2004, que regula o PBF.
92
Benefício Básico e o Benefício para Superação da Extrema Pobreza (BSP). Ambos os
benefícios independem da composição familiar, isto é, são transferidos ainda que a família
não possua crianças, jovens, nutrizes ou gestantes. O Benefício Básico é de R$77,00,
limitando-se a um benefício por família. Tal valor equivale a 10,6% do valor do salário
mínimo brasileiro, que corresponde a R$724,00, para o ano de 2014. Já o BSP é concedido
quando, mesmo após receber todos os outros benefícios pertinentes à sua situação, a família
continua abaixo da linha de extrema pobreza. No caso deste benefício, seu valor varia em
conformidade com a condição familiar, pois seu cálculo compreende o montante necessário
para que a família em questão ultrapasse a linha monetária definidora de extrema pobreza.
Logo, o BSP trata-se de um mecanismo para extinguir a extrema pobreza no país, pelo menos
no que concerne ao critério de renda considerado no PBF.
O terceiro tipo de benefício do Bolsa Família é o Benefício Variável que, como seu
nome sugere, varia em função da composição familiar. Este benefício é concedido tanto às
famílias classificadas como extremamente pobres quanto às famílias pobres. Ele se divide
em quatro tipos, de acordo com o membro familiar ao qual esteja vinculado. Assim, o
Benefício Variável vincula-se: i) à criança de 0 a 15 anos; ii) à gestante; iii) à nutriz e iv) ao
adolescente de 16 ou 17 anos. Aos três primeiros corresponde o valor de R$35,00 por
benefício, que equivale a 4,8% do valor salário mínimo, restringindo-se a cinco benefícios
no total por família. Já o benefício vinculado ao adolescente, denominado Benefício Variável
Jovem (BVJ), consiste em R$42,00, equivalente a 5,8% do salário mínimo, atendo-se ao
máximo de dois benefícios deste tipo por família. O quadro 4 sintetiza o tipo e a quantidade
de benefícios atribuíveis às famílias, conforme a composição familiar e sua situação quanto
à renda per capita.
Como é possível apreender do quadro 4, as famílias em condição de pobreza podem
receber transferências que variam de um mínimo de R$35,00 (se tiverem uma criança, ou
uma gestante, ou uma nutriz) até o máximo de RS259,00 (se tiverem pelo menos cinco
membros entre crianças, gestantes e nutrizes, mais dois adolescentes de 16 ou 17 anos).
Logo, para as famílias classificadas como pobres, o benefício total concedido pelo PBF não
ultrapassa 36% do valor do salário mínimo brasileiro. Para as famílias extremamente pobres,
porém, as transferências do PBF oscilam entre o mínimo de R$77,00 (Benefício Básico) e o
máximo de R$336,00 (Benefício Básico somado ao valor máximo atribuível à composição
familiar), correspondente a 46,4% do valor do salário mínimo, desde que tais famílias
93
superem a linha da extrema pobreza a partir destas transferências. Do contrário, cada família,
em função de sua necessidade, recebe um acréscimo de renda (correspondente ao BSP) para
ultrapassar tal linha.
Quadro 4
Valores dos benefícios do Programa Bolsa Família
Tipo de benefício Valor por benefício
(R$)
Regra para concessão
Benefício básico 77,00
Máximo por família: 1 Apenas famílias extremamente
pobres, independentemente da
composição familiar
Benefício para superação da extrema pobreza Caso a caso
Benefício
variável
vinculado
À criança de 0 a 15 anos
35,00
Máximo por família: 5
Famílias extremamente pobres
e famílias pobres
À gestante
À nutriz
Ao adolescente de 16 ou 17 anos 42,00
Máximo por família: 2
Fonte: MDS, 2014d.
Elaboração própria.
O tempo de concessão dos benefícios monetários outorgados às famílias assistidas
pelo PBF é de, no mínimo, dois anos. No entanto, a continuidade do vínculo da família
beneficiária ao programa e o acesso às prestações monetárias condicionam-se a uma
avaliação, realizada a cada dois anos, da condição socioeconômica da família. De maneira
94
que o vínculo ao programa e a concessão33 dos benefícios são garantidos enquanto a
condição da família assistida for compatível com os requisitos, de composição familiar e
renda, exigidos pelo PBF. Este sistema de avaliação bienal permite que as famílias
mantenham-se ligadas ao PBF, pelo menos, durante o período mínimo estabelecido, sem
prejuízo de seu vínculo ao programa em função da volatilidade monetária característica de
famílias sob pobreza (SOARES, 2010, p.185). Considerando-se este aspecto, pode-se
argumentar que o PBF também atende a famílias não se encontram todo o tempo abaixo da
linha de pobreza, mas que gravitam ao seu redor.
2.1.4. Condicionalidades
“O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda com
condicionalidades”, tal como o define o próprio MDS (2014d). As condicionalidades são
algumas contrapartidas exigidas das famílias assistidas pelo programa. Elas funcionam como
contraprestações, pois o recebimento dos benefícios monetários condiciona-se ao seu
cumprimento. Tais condicionalidades centram-se nas áreas de educação, saúde e assistência
social e variam segundo o perfil dos beneficiários da família.
Na área de educação, exige-se que as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos estejam
matriculados em estabelecimento regular de ensino e que apresentem frequência mensal
mínima de 85% das horas-aula. Para os adolescentes de 16 e 17 anos, tal exigência é de 75%.
Quanto à área de saúde, as condicionalidades estabelecidas concernem ao
acompanhamento do cartão de vacinação, do crescimento e do desenvolvimento de crianças
menores de 7 anos, da saúde de gestantes, nutrizes e de seus bebês.
Na esfera da assistência social, as contrapartidas que são dispostas dizem respeito
às crianças e adolescente de até 15 anos de idade, que estejam em risco de trabalhar ou que
tenham sido retiradas do trabalho pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
Estas devem participar de atividades socioeducativas, oferecidas pelos Serviços de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do PETI, obtendo a frequência mínima
33 Note-se que se trata da garantia de concessão, não de recebimento do benefício, pois o recebimento somente
é garantido mediante o cumprimento das condicionalidades do programa.
95
de 85% da carga horária mensal. O quadro 5 lista e descreve as condicionalidades, segundo
cada área, impostas às famílias assistidas pelo programa.
Quadro 5
Condicionalidades do Programa Bolsa Família
Educação
Crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem estar devidamente matriculados e com
frequência escolar mensal mínima de 85% da carga horária. Já os estudantes entre 16 e 17
anos devem ter frequência de, no mínimo, 75%.
Saúde
Acompanhamento do calendário vacinal, do crescimento e desenvolvimento das crianças
menores de sete anos. Acompanhamento da saúde de gestantes (que devem fazer o pré-
natal), nutrizes e de seus bebês.
Assistência
social
Crianças e adolescentes de até 15 anos, em risco de trabalhar ou retiradas do trabalho infantil
pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), devem participar dos Serviços
de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do PETI e obter frequência mínima
de 85% da carga horária mensal.
Fonte: MDS, 2014e.
A gestão e controle das condicionalidades são realizados articuladamente pelo
MDS, o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Saúde (MS), através de sistemas
alimentados pelos setores responsáveis pelo Programa nos municípios. Quando se identifica
o não cumprimento de alguma condicionalidade, por parte da família, isto pode acarretar
inicialmente o bloqueio, posteriormente a suspensão e, persistindo a reincidência do não
cumprimento, até mesmo o cancelamento do benefício. Este processo é denominado, na
literatura, de “repercussão gradual” e impede que a família seja punida com a perda imediata
do benefício em função do não cumprimento de alguma condicionalidade. Como alega
Soares (2010, p.185), quando se identifica que determinada família não cumpriu certa
contrapartida, o desenho do PBF prescreve que deve ser designado um profissional da
96
assistência social do município para verificar os motivos pelos quais o descumprimento
ocorreu, atuando, pois, diretamente no auxílio à família.
Parece haver uma natureza dual nas condicionalidades, uma vez que, como
destacado pelo MDS (2014e), elas são impostas às famílias, mas, concomitantemente,
também impelem e responsabilizam o poder público a promover os serviços necessários aos
beneficiários, para que tenham meios de cumprir as devidas contrapartidas. No entanto, não
há um sistema de controle e gestão das condicionalidades no que concerne à
responsabilidade da oferta de tais serviços por parte do poder público, tal qual há para o
monitoramento das famílias assistidas.
Por fim, mais um importante aspecto do PBF é a articulação que ele desenvolve
com outros ministérios e organismos (para além daqueles pertinentes à sua gestão e
operacionalização) no intuito de garantir aos seus beneficiários acesso a ações e programas
complementares, como alfabetização de adultos e capacitação profissional. A participação
nos programas complementares não constitui uma contrapartida obrigatória do PBF, não se
constituindo, portanto, em uma ação direta do Programa, tampouco em uma
condicionalidade (SOARES, 2010, p.185).
2.1.5. O Programa Bolsa Família em números
A dimensão do PBF pode ser mensurada através de alguns de seus números
representativos. Em 2013, ano de seu decênio, o Bolsa Família ultrapassou o montante de
14 milhões de famílias assistidas, em um total exato de 14.086.199, em dezembro do referido
ano. Assumindo-se, à semelhança de Marques (2013) e outros autores, uma média de quatro
membros por família, é possível estimar um público total superior a 56 milhões de pessoas
abrangidas. Logo, cerca de 28% da população brasileira depende em certa medida das
transferências de renda promovidas pelo Programa. A região Nordeste concentra o maior
percentual de famílias atendidas pelo Programa, com 50% do volume total de famílias. O
estado com maior número de famílias assistidas também se localiza no Nordeste, é a Bahia,
com mais de um milhão e oitocentas mil famílias beneficiárias. A cobertura do PBF abrange,
atualmente, a totalidade do território nacional, alcançando todos os 5.570 municípios
brasileiros. A tabela 2 expõe o número de famílias beneficiárias do PBF, por região e unidade
97
federativa (UF), apontando também a participação percentual de cada região no volume total
de benefícios concedidos pelo Programa, em dezembro de 2013.
Tabela 2
Número de famílias beneficiárias do PBF, por região e UF (dez./2013)
Região/UF Nº de famílias %
Sul 1.030.254 7
Paraná 430.182
Rio Grande do Sul 455.421
Santa Catarina 144.651
Sudeste 3.598.035 26
Espírito Santo 201.671
Minas Gerais 1.177.574
Rio de Janeiro 852.237
São Paulo 1.366.553
Norte 1.655.676 12
Acre 78.050
Amazonas 358.836
Amapá 53.608
Pará 860.572
Rondônia 117.832
Roraima 46.713
Tocantins 140.065
Nordeste 7.033.597 50
Alagoas 438.656
Bahia 1.800.055
Ceará 1.095.316
Maranhão 962.011
Paraíba 506.450
Pernambuco 1.147.423
Piauí 451.195
Rio Grande do Norte 361.550
Sergipe 270.941
Centro-Oeste 768.637 5
Distrito Federal 93.272
Goiás 340.341
Mato Grosso do Sul 147.021
Mato Grosso 188.003
Brasil 14.086.199 100
Fonte: MARQUES, 2013; MDS, 2014.
98
Ao longo dos dez anos desde sua implementação, o PBF foi sendo ampliado
progressivamente, seja por questões orçamentárias e de operacionalidade, seja quanto ao
contingente de beneficiários e ao volume de recursos destinados ao pagamento de benefícios.
A tabela 3 apresenta a evolução do Programa, no que concerne ao número de famílias
assistidas e ao volume de gastos fiscais com os benefícios concedidos, para os valores
referentes ao mês de dezembro de cada ano, de 2004 a 2013.
Tabela 3
Evolução do PBF – 2004 a 2013
Ano
Nº de
famílias
(dezembro
de cada ano)
Contingente
de pessoas
assistidas*
Percentual da
população
total
Gasto anual** com
benefícios (R$) –
valores correntes
Percentual
do PIB
2004 6.571.839 26.287.356 14,4 3.791.785.038,00 0,19
2005 8.700.445 34.801.780 18,9 5.691.667.041,00 0,26
2006 10.965.810 43.863.240 23,4 7.524.661.322,00 0,32
2007 11.043.076 44.172.304 23,2 8.965.499.608,00 0,34
2008 10.557.996 42.231.984 22,2 10.606.500.193,00 0,35
2009 12.370.915 49.483.660 25,8 12.454.702.501,00 0,38
2010 12.778.220 51.112.880 26,8 14.372.702.865,00 0,38
2011 13.352.306 53.409.224 27,3 17.360.387.445,00 0,42
2012 13.902.155 55.608.620 28,2 21.156.744.695,00 0,48
2013 14.086.199 56.344.796 28,0 24.890.107.091,00 0,51
* Considerando-se uma média de quatro membros por família.
**SAGI, 2014b.
Fonte: SAGI, 2014; IPEADATA, 2014; IBGE, 2014.
Elaboração própria.
99
A tabela 3 evidencia que o PBF tem sido paulatinamente expandido, tanto na
quantidade de benefícios outorgados quanto ao montante despendido com os benefícios, o
que implica uma maior abrangência de cobertura à população pobre, extremamente pobre e
sob vulnerabilidade. Note-se que apesar de haver duplicado, entre 2004 e 2013, o percentual
da população assistida, em termos de gastos o PBF representou um pouco mais que 0,5% do
PIB do país, em 2013. Portanto, o Bolsa Família se mantém como uma política de custo
fiscal relativamente baixo, a despeito da grande expansão que apresentou em sua cobertura.
O volume de gastos do PBF com o pagamento de benefícios foi multiplicado por
cerca de 4,8, desde sua implantação, como pode ser verificado no gráfico 1, que exibe o
valor total corrente, em bilhões, repassado às famílias, no período de janeiro de 2004 a julho
de 2014. Observe-se que mesmo com este importante aumento no gasto fiscal com
benefícios, ele se mantém baixo, enquanto percentual do PIB.
Gráfico 1
Evolução do gasto fiscal total com benefícios do PBF (2004-2014) – valores correntes
Fonte: SAGI, 2014b.
R$ 0,00
R$ 0,40
R$ 0,80
R$ 1,20
R$ 1,60
R$ 2,00
R$ 2,40
jan
/04
jul/
04
jan
/05
jul/
05
jan
/06
jul/
06
jan
/07
jul/
07
jan
/08
jul/
08
jan
/09
jul/
09
jan
/10
jul/
10
jan
/11
jul/
11
jan
/12
jul/
12
jan
/13
jul/
13
jan
/14
jul/
14
Bil
hõ
es
100
Outro dado que também dimensiona o PBF é o valor máximo mensal do benefício
que uma família pode receber, em função de sua renda e composição familiar. A evolução
do “teto” do PBF acompanha a inclusão de alguns benefícios, bem como a expansão de
outros, refletindo as alterações ocorridas em seu desenho institucional ao longo de seu
funcionamento. A inclusão corresponde ao benefício vinculado aos adolescentes de 16 e 17
anos, o Benefício Variável Jovem (BVJ), que foi criado apenas em dezembro de 2007
(SOARES et al, 2010, p.28). Quanto à expansão, como explicam Silva, Yazbek e Giovanni
(2012, p.145), trata-se da ampliação de três para cinco do número-limite de benefícios
vinculados aos menores de 16 anos, às gestantes e/ou nutrizes, por família, a partir de 2011.
Estas alterações concorreram para o aumento do valor máximo do benefício total que pode
ser pago mensalmente às famílias assistidas. Tais valores são apresentados no gráfico 2.
Gráfico 2
Valor máximo do benefício mensal (R$) – valores correntes
Fonte: CESTARI, 2014.
Elaboração própria.
Em vista disso, o quadro que se tem para o PBF é de um programa que, desde sua
criação em 2003, vem evoluindo e se expandindo de diferentes maneiras. Já em 2005, o PBF
alcançou a totalidade dos municípios brasileiros, com 100% de cobertura nacional. Contudo,
continuou a estender sua cobertura por meio de alterações em seu desenho institucional,
95,00 95,00 95,00112,00
182,00200,00 200,00
306,00 306,00 306,00
336,00
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
101
como a criação do BVJ e o aumento do número-limite, por família, de benefícios vinculados
à criança e ao adolescente de até 15 anos, acima referidos. Estes fatores, além da criação (em
2013) do BSP, explicam a progressiva expansão dos gastos fiscais com benefícios, assim
como o aumento de seu valor máximo mensal atribuível por família.
2.1.6. Impactos do Bolsa Família
O Bolsa Família vem sendo, ao longo de seus dez anos de implementação, um dos
principais objetos de estudo e análise na área de políticas sociais no Brasil. Dentre as
inúmeras análises das quais tem sido alvo, aquelas que se debruçam sobre seus impactos são
de especial relevância, pois permitem averiguar e, em certa medida, mensurar os efeitos do
PBF nas famílias beneficiárias, como também na população em geral.
Por inserir-se no gênero de políticas sociais enquanto um PTCR, pode-se dizer que
os objetivos precípuos do PBF equivalem à redução da pobreza e indigência vigentes, assim
como à quebra de sua transmissão intergeracional. Sendo assim, cumpre averiguar os efeitos
obtidos na queda do contingente de pobres e extremamente pobres, assim como os resultados
nas áreas de educação e saúde, potencialmente derivados das condicionalidades do
Programa. Ademais, há resultados atribuíveis ao Bolsa Família no que concerne à queda da
desigualdade, fecundidade, entre outros.
A) Redução da pobreza e indigência
A redução do contingente populacional em condição de pobreza e extrema pobreza
(ou indigência) é um dado verificável a partir de diferentes metodologias de determinação
das respectivas linhas definidoras dessas condições. Um tipo de metodologia para mensurar
pobres e extremamente pobres é a adotada pelo Ipeadata. Segundo esta metodologia, a linha
de extrema pobreza corresponde a uma estimativa do valor de uma cesta de alimentos com
o mínimo de calorias necessárias para suprir adequadamente uma pessoa, com base em
recomendações da FAO (Food and Agriculture Organization – Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e da OMS (Organização Mundial de Saúde). A
linha de pobreza, por sua vez, é o dobro da linha de extrema pobreza (IPEADATA, 2014b).
102
O gráfico 3 apresenta o número de pessoas pobres e extremamente pobres, a partir da referida
metodologia. No gráfico em questão, nota-se que, a partir de 2003, há uma queda mais
acentuada no contingente de pessoas pobres e também de extremamente pobres. A população
sob pobreza extrema reduziu-se em 59,1%, entre 2003 e 2013. Já o contingente populacional
sob pobreza apresentou queda de 51,1%, no mesmo período.
Gráfico 3
Número de pessoas pobres e extremamente pobres
Fonte: IPEADATA, 2014b.
Sob outra metodologia de mensuração do contingente de pobres e extremamente
pobres, adotada pelo IBGE, a queda observada a partir de 2003 é igualmente notória, como
pode ser observado no gráfico 4. Neste gráfico, apresentam-se os números de pessoas
residentes em domicílios pobres e extremamente pobres, definidos a partir de critérios de
renda familiar per capita: i) domicílios extremamente pobres, de R$0,00 a R$70,00 e ii)
domicílios pobres, de R$70,01 a R$140,00. À semelhança do gráfico anterior, pode-se notar
que a partir de 2003 o declínio no número de pobres e extremamente pobres se acentua.
Entre 2003 e 2012, o número de pessoas residentes em domicílios pobres apresentou uma
queda de 62,5%, enquanto o de residentes em domicílios extremamente pobres a queda
correspondeu a 55,3%.
9
19
29
39
49
59
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011 2012 2013
Mil
hõ
es d
e p
esso
as
Nº pobres Nº extremamente pobres
103
Gráfico 4
Número de residentes em domicílios pobres e extremamente pobres
Fonte: SAGI, 2014c.
Ambas as metodologias para a obtenção das linhas de pobreza e extrema pobreza,
do Ipeadata e do IBGE, empregam a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
dos respectivos anos. A diferença entre elas é importante, pois a primeira consiste em uma
metodologia que privilegia a questão nutricional, enquanto a segunda considera o aspecto da
renda. São, portanto, duas abordagens sobre a pobreza, embora ambas estejam sobre a
perspectiva da subsistência; a primeira, do mínimo nutricional requerido para sobreviver; a
segunda, do mínimo de renda requerido para adquirir o necessário para subsistir. Em ambas,
contudo, a redução do contingente populacional vivendo em condição de pobreza e extrema
pobreza é inconteste.
Trabalho de Souza e Osorio (2013), a partir de dados da PNAD de 2003 e 2011,
comparou as características de estratos sociais definidos como extremamente pobres, pobres,
vulneráveis e não pobres, categorizados pelos próprios autores para efeitos de seu estudo.
Tais estratos foram classificados por renda familiar per capita, sendo os extremamente
pobres aqueles que possuem renda inferior a R$70,00; os pobres, entre R$70,00 e R$140; os
vulneráveis, entre R$140,00 e R$560,00; e os não pobres, renda superior a R$560,00. O
estudo mostra que não apenas houve queda no contingente de pobres e extremamente pobres,
0
5
10
15
20
25
30
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011 2012
Mil
hõ
es d
e p
esso
as
Nº de pobres Nº de extremamente pobres
104
com simultâneo aumento dos não pobres, como também seu perfil mudou quando
comparados os dois anos referidos. Na tabela 4 é possível observar a queda no percentual de
pobres e pobres extremos, assim como o aumento dos não pobres, segundo o método
aplicado pelos autores referidos. O percentual de pessoas em situação de pobreza foi o que
apresentou a maior queda, equivalente a 9,6 pontos percentuais (p.p.) entre os dois anos
considerados. Outro notório resultado consiste no aumento da participação das famílias
brasileiras entre os não pobres, que foi de 16,2 pontos percentuais. Segundo a análise dos
autores, esses resultados derivam do aumento da renda per capita brasileira no período
retratado, assim como da queda da desigualdade que ocorreu no mesmo período. Ambos os
processos decorrem, em diferentes medidas, da valorização real do salário mínimo, do
crescimento econômico, da geração de empregos e do aumento do gasto social,
principalmente através do PBF.
Tabela 4
População por estratos de renda – Brasil (2003 e 2011)
Pessoas Famílias
Estratos 2003(%) 2011(%) Variação(p.p.) 2003(%) 2011(%) Variação(p.p.)
Extremamente pobres 8,0 3,4 -4,7 5,5 2,6 -2,9
Pobres 15,9 6,3 -9,6 12,0 4,4 -7,7
Vulneráveis 50,3 49,1 -1,2 50,5 44,8 -5,6
Não pobres 25,9 41,3 15,4 32,00 48,2 16,2
Total 100,0 100,0 - 100,00 100,00 -
Fonte: SOUZA & OSORIO, 2013.
No período analisado, de acordo com os autores, a participação da renda do trabalho
para os extremamente pobres decresceu e aumentou a participação das transferências,
destacadamente o Bolsa Família. Esse decréscimo explica-se, primeiramente, pela própria
redução dos extremamente pobres e pobres que se deslocaram para estratos mais elevados,
em função tanto do crescimento do mercado de trabalho quanto da valorização do salário
mínimo. Contudo, aqueles “cujas conexões com o mundo do trabalho são muito precárias”
(SOUZA & OSORIO, 2013, p.145) e que não conseguiram inserir-se laboralmente, tiveram
105
renda assegurada pelo PBF. Assim, o Bolsa Família é um dos elementos, dentre outros (como
crescimento econômico, geração de empregos, ganhos reais no salário mínimo, queda da
desigualdade), que concorreu para a redução da pobreza e extrema pobreza, assim como para
o aumento dos não pobres no período. Porém, ele é o principal elemento a aliviar a miséria
daqueles que não conseguiram se beneficiar dos demais elementos de crescimento.
B) Perfil da população pobre e composição familiar
Ao alterar o nível de pobreza, altera-se o próprio perfil da população pobre, pois a
diminuição da pobreza ocorre por meio da, e implica, modificação em seus determinantes.
Deste modo, o perfil da população em pobreza e extrema pobreza apresentou importantes
mudanças ao longo do período de implantação do PBF, concomitantemente ao processo de
redução pelo qual tem passado.
Segundo Souza e Osorio (2013), houve aumento da participação dos segmentos
mais pauperizados da população em todos os níveis de escolaridade, principalmente no
ensino fundamental e médio. A própria composição familiar desses segmentos também tem
se alterado, apresentando redução tanto no tamanho médio das famílias quanto no número
de crianças por família, além de ter aumentado o percentual de famílias sem crianças,
principalmente entre os extremamente pobres. Note-se que são os extremamente pobres que
apresentam maior redução no tamanho médio das famílias, embora todos os demais estratos
também apresentem diminuição nesse critério. Novamente são os extremamente pobres que
detêm maior queda no número de crianças por família e no percentual de famílias com quatro
crianças ou mais, bem como possuem o maior aumento percentual na participação de
famílias sem crianças. Estes dados podem ser visualizados na tabela 5, que apresenta a
composição familiar por estrato de renda para os dois anos (2003 e 2011) tratados no referido
estudo.
106
Tabela 5
Composição familiar por estrato de renda – Brasil (2003 e 2011)
Estratos de renda
Tamanho médio
das famílias
Crianças por
família
Famílias sem
crianças (%)
Famílias com 4
crianças ou mais (%)
2003 2011 2003 2011 2003 2011 2003 2011
Extremamente pobres 5,1 4,1 2,7 1,9 10,3 21,9 27,9 13,9
Pobres 4,6 4,5 2,0 2,1 12,0 14,2 12,5 15,6
Vulneráveis 3,5 3,4 1,0 1,0 41,6 39,6 2,1 2,5
Não pobres 2,8 2,7 0,5 0,4 65,9 70,2 0,2 0,1
Total 3,5 3,1 1,0 0,8 44,1 52,8 4,2 2,2
Fonte: SOUZA & OSORIO, 2013.
C) Fecundidade
Um importante aspecto, bastante polêmico em programas como o Bolsa Família,
consiste no seu desenho potencialmente pró-natalista. Alves e Cavenaghi (2013) realizam
uma revisão da literatura dedicada a estudar os potenciais impactos do PBF sobre a
fecundidade e, consequentemente, sobre a composição familiar. Os autores demonstram que
apesar de possuir um desenho pró-natalista, pois o valor do benefício concedido aumenta na
medida em que é maior o número de filhos, o PBF não aumentou a natalidade nas famílias
beneficiárias. Ao contrário, mesmo nas famílias pobres a taxa de fecundidade tem decrescido
(principalmente nas famílias extremamente pobres), como ocorre com as famílias de maior
renda. A diferença é que a taxa de fecundidade é, ainda, mais alta nas famílias pobres, porém,
passa por igual processo de redução como nas demais famílias, o que se deve ao fato de que
está em curso no país um processo de transição demográfica, “que não é um fenômeno
exclusivo da população rica” (ALVES & CAVENAGHI, 2013, p.237). Como ressaltam os
autores, tal transição é favorecida pelo crescimento da urbanização, pelo acesso às políticas
públicas de educação e saúde e pelo aumento da inclusão social. Sob estes aspectos, cabe
considerar o PBF como favorecedor da queda na fecundidade e não o contrário. Assim, os
107
diferenciais de fecundidade tende a convergir e a se reduzir progressivamente, como tem
ocorrido. O gráfico 5 mostra a trajetória da taxa de fecundidade total no Brasil, nos últimos
50 anos, de acordo com dados dos Censos Demográficos, elaborados pelo IBGE.
Gráfico 5
Taxa de fecundidade total – Brasil (1960-2010)
Fonte: ALVES & CAVENAGHI, 2013.
Na última década, a taxa de fecundidade permaneceu em trajetória declinante,
assumindo, hodiernamente, um valor abaixo da taxa de reposição populacional (que é de
2,1). Em particular, no período correspondente ao funcionamento do PBF, a fecundidade
declinou de 2,2 para 1,7, entre 2003 e 2014. As taxas de fecundidade referentes ao período
em questão, disponibilizadas pelo IBGE, constam no gráfico 6.
Gráfico 6
Taxa de fecundidade durante a década de implantação do PBF (2003-2014)
Fonte: IBGE, 2014b.
6,35,8
4,4
2,92,4
1,9
1960 1970 1980 1991 2000 2010
2,20 2,14 2,09 2,04 1,99 1,95 1,91 1,87 1,83 1,80 1,77 1,74
0,00
0,50
1,00
1,50
2,00
2,50
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
108
Desta forma, tem-se que o desenho pró-natalista do PBF não favoreceu um aumento
da fecundidade, como muitos imaginavam. Na verdade, desde a implementação do
Programa, a fecundidade tem caído tanto quanto nos demais períodos da história recente do
país, refletindo um processo espontâneo de transição demográfica, presente em todas as
classes sociais.
D) Saúde
Os impactos do PBF são destacados no trabalho de Jannuzzi e Pinto (2013), no qual
os autores apresentam uma síntese dos principais resultados obtidos na segunda rodada da
pesquisa de Avaliação de Impactos do Bolsa Família (AIBF II), realizada entre 2009 e 2012.
Trata-se de uma pesquisa específica, desenhada para medir os resultados socioeconômicos
atribuíveis às ações do Programa e cuja primeira rodada foi realizada em 2005.
Na área de saúde, os autores salientam, como observado na AIBF II, que o
Programa implicou melhorias concretas na saúde das crianças beneficiárias, pois promoveu
melhor acesso à alimentação, o que, em consequência, reduziu o patamar de desnutrição
infantil. Como resultado das condicionalidades impostas, garantiu-se ainda que o calendário
vacinal fosse mais regularmente observado e que o contingente de crianças acompanhadas
pelo SUS crescesse progressivamente. O gráfico 7 apresenta a evolução do percentual de
crianças beneficiárias acompanhadas pelo SUS e com controle de vacinação em dia, para o
período de 2005 a 2013. Note-se o salto quantitativo no acompanhamento das crianças,
durante o período. Como o acompanhamento da saúde infantil e o controle vacinal das
crianças são condicionalidades impostas pelo PBF, seu cumprimento está diretamente
relacionado à própria manutenção no Programa, o que explica, em grande medida, os
expressivos resultados alcançados neste âmbito.
Estes fatores concorreram positivamente, como demonstram Rasella et al. (2013),
para a diminuição da taxa de mortalidade infantil – principalmente, quando associada à causa
desnutrição – entre menores de 5 anos, como também reduziu drasticamente a taxa de
hospitalização em crianças nessa faixa etária.
109
Gráfico 7
Percentual de crianças com vacinação em dia e acompanhas pelo SUS
– condicionalidades de saúde
Fonte: CESTARI, 2014.
Ainda no que tange à saúde infantil, a AIBF II mostrou que bebês de mães
beneficiárias apresentaram maior peso ao nascer que aqueles de mães não beneficiárias,
3,26kg e 3,22kg, respectivamente. Este fato, como frisam Jannuzzi e Pinto (2013, p.185),
deriva em boa parte da maior realização de visitas de pré-natal (1,6 visitas a mais) das mães
beneficiárias do que das não beneficiárias (em situação socioeconômica semelhante),
resultado da queda de 19% para 5% das gestantes beneficiárias que não recebiam cuidados
pré-natais.
E) Educação
Para a área de educação, um dos impactos do Bolsa Família, identificados pela
AIBF II e apontados por Jannuzzi e Pinto (2013, p.184), compreende a maior progressão
escolar, da ordem de 6 p.p., das crianças beneficiárias em relação às não beneficiárias de
mesmo perfil socioeconômico. Também são destacados impactos positivos no aumento da
frequência escolar das crianças beneficiárias, principalmente no Nordeste. Além disso, os
autores apontam resultados do PBF sobre a diminuição da probabilidade de repetência por
3,443,1
51,1
62,7
68,7
69,0
71,0
73,1
73,0
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Percentual de crianças
110
parte de alunos beneficiários, quando comparados a não beneficiários de mesma condição
socioeconômica, tendo aqueles 11% menos chances de reprovação do que esses.
Quanto à condicionalidade de frequência escolar mínima de 85% para os menores
de até 15 anos, os dados disponibilizados pela Secretaria de Avaliação e Gestão da
Informação (SAGI), do MDS, apontam elevado percentual das crianças beneficiárias com
frequência escolar adequada, como ilustrado no gráfico 8.
Gráfico 8
Percentual de crianças, de 6 a 15, com acompanhamento de frequência escolar
– condicionalidade de educação
Fonte: SAGI, 2014d.
O gráfico 8 revela um fato que contraria (ou, no mínimo, constrange), de certa
maneira, uma das justificativas das condicionalidades de educação, qual seja, a de que as
crianças pobres trocariam as salas de aula por trabalhos precários como forma de
complementar a renda familiar, de maneira que ter seus filhos estudando seria um grande
custo de oportunidade para as famílias. Opostamente à condicionalidade de saúde – que
85
,6
84
,5 85
,7
87
,7
89
,7
82
,7 83
,5
85
,7
89
,4
89
,6
85
,5 86
,4 87
,6
88
,2
88
,1
88
,7
87
,7 89
,2
89
,5
89
,3
87
,7
86
,2 87
,4
92
,4 93
,9
mar
/09
mai
/09
jul/
09
set/
09
no
v/0
9
jan/1
0
mar
/10
mai
/10
jul/
10
set/
10
no
v/1
0
jan/1
1
mar
/11
mai
/11
jul/
11
set/
11
no
v/1
1
jan/1
2
mar
/12
mai
/12
jul/
12
set/
12
no
v/1
2
jan/1
3
mar
/13
mai
/13
jul/
13
set/
13
no
v/1
3
Percentual de crianças
111
promovera um aumento superior a vinte vezes (mais de 2.000%) no controle da saúde infantil
(entre 2005 e 2013) – no caso da educação, este aumento foi da ordem de 9% apenas, ao
longo do período retratado. Isto porque já havia um percentual elevado de crianças pobres
com taxa de frequência escolar adequada.
F) Trabalho
Jannuzzi e Pinto expõem os efeitos do Bolsa Família, identificados na AIBF II,
sobre a oferta de trabalho e o mercado laboral. Segundo os autores, o PBF não provoca o
“efeito preguiça” que lhe foi atribuído desde sua implantação pela crítica conservadora, de
que promoveria algum tipo de desestímulo à procura de trabalho por parte dos beneficiários
em idade ativa. Os resultados indicam que “os chefes de famílias beneficiárias, de 30 a 55
anos de idade, apresentam nível de atividade, ocupação e jornada muito próximos aos de
chefes de nível socioeconômico equivalente” (JACCUZZI & PINTO, 2013, p. 186). Há, na
verdade, como ressaltam os autores, um aumento de participação no mercado laboral para
os beneficiários adultos, principalmente as mulheres. O estudo de Tavares (2008), citado
pelos referidos autores, alega que ocorre não apenas o aumento da participação de mães
beneficiárias do PBF no mercado laboral, mas que também este aumento é acompanhado de
uma elevação da jornada trabalhada.
Portanto, o PBF não provoca qualquer tipo de enfraquecimento da oferta de
trabalho, como sugere certo estigma que persegue seus beneficiários. Ao contrário, o
Programa tem uma contribuição importante para o dinamismo da economia do país, pois ao
transferir renda a populações pobres promove e estimula o consumo dessas populações, o
que, consequentemente, fomenta o comércio e investimento, principalmente, em seu
entorno, favorecendo em certo nível tanto a oferta quanto a demanda de trabalho. Isto ocorre
em função da alta propensão marginal a consumir, próxima ou igual a um, característica de
populações mais pobres (JACCUZZI & PINTO, 2013; KEYNES, 2012). Ademais, no caso
do PBF, as transferências realizadas pelo programa são extremamente importantes para
diversos municípios, principalmente os menores e mais pobres do Norte e Nordeste do país.
As transferências do PBF superam, em muitos casos, os recursos correspondentes ao Fundo
de Participação dos Municípios (FPM), bem como de outras fontes. Foi mostrado que quanto
menos desenvolvido o município, maior é a importância relativa das transferências do PBF
112
no nível de recursos e de atividade econômica de tais cidades (MARQUES, 2005). Estes
fatos evidenciam o impacto das transferências monetárias do Bolsa Família no consumo das
famílias beneficiadas, bem como na economia local.
G) Desigualdade de renda
Por fim, cabe destacar o papel do Bolsa Família no que concerne à queda da
desigualdade de renda observada desde o início da década de 2000. Embora o tratamento da
desigualdade não pertença aos objetivos específicos e diretos do PBF, ele acaba por inserir-
se quase que naturalmente em seu contexto, pois a condição de pobreza, objeto do Programa,
é uma função (dentre diversas outras) do grau de desigualdade existente. O gráfico 9 expõe
a trajetória do grau de desigualdade no país, mensurado pelo Coeficiente de Gini. É possível
observar no gráfico a aceleração no declínio desse coeficiente, a partir de 2003.
A importância do PBF sobre a queda da desigualdade constitui-se em um dos pontos
mais pacíficos na literatura afim. Há um elevado número de trabalhos dedicados à análise da
contribuição do Bolsa Família na queda da desigualdade. São destacados dois aqui. Em
estudo realizado em 2010, Soares et al. já identificavam a contribuição do Programa no
processo de declínio da desigualdade de renda que se desenvolvia desde o princípio da
década de 2000. Segundo os autores, o PBF respondia por 16% da redução global observada
no coeficiente de Gini durante a década de 2000, o que surpreende posto que o programa
não atingia 0,8% da renda das famílias (2010, p.41). A relevância do PBF para a queda do
grau da desigualdade de renda, medida pelo Gini, também é atestada em estudo de Hoffmann
(2013). Nesse trabalho, o autor argumenta que as rendas associadas a programas sociais
federais possuem razão de concentração negativa e, por isso, elevada progressividade.
Dentre os programas que o autor considera em seu estudo, o Bolsa Família é o que detém a
maior medida de progressividade, motivo pelo qual é o programa de transferência de caráter
não contributivo que mais concorre para a redução da concentração de renda (HOFFMANN,
2013, p.209).
113
Gráfico 9
Evolução do grau de desigualdade – Coeficiente de Gini
Fonte: IPEADATA, 2014c.
Em síntese, ao longo de sua implementação, o PBF gerou, e tem gerado, impactos
diversos em diferentes âmbitos da vida social e pessoal de seus beneficiários, mas também
de outros segmentos da população. O Programa engendrou efeitos positivos nas áreas de
saúde e educação, bem como no mercado laboral e no âmbito macroeconômico.
2.2. Asignación Universal: Familiar e para Protección Social – Argentina
Nesta segunda seção é exposto e descrito o Regime de Asignaciones Familiares da
Argentina, em seus dois subsistemas: o contributivo e o não contributivo. Ambos os
subsistemas são apresentados para favorecer a compreensão da totalidade do regime. À
semelhança do percurso estabelecido na seção anterior, buscou-se para as Asignaciones
Familiares apresentar e delinear os elementos de seu desenho institucional: marco legal e
operacionalização, público-alvo, tipos de benefícios concedidos e condicionalidades
exigidas. Contudo, interessa à discussão aqui proposta analisar essencialmente o subsistema
não contributivo, particularmente a Asignación Universal por Hijo para Protección Social
(AUH), que é um dos programas que compõem este subsistema. Por isso, são apresentados
alguns dados sobre a dimensão e cobertura desse programa. Por fim, procurou-se identificar
0,50
0,52
0,54
0,56
0,58
0,60
0,62
0,64
0,66
198
1
198
2
198
3
198
4
198
5
198
6
198
7
198
8
198
9
199
0
199
2
199
3
199
5
199
6
199
7
199
8
199
9
200
1
200
2
200
3
200
4
200
5
200
6
200
7
200
8
200
9
201
1
201
2
114
alguns efeitos atribuíveis à AUH, no que tange aos seus beneficiários. Adicionalmente,
procurou-se também apresentar alguns dados (sempre que disponíveis, tendo em vista a
escassez de estudos e pesquisas afins) relativos à Asignación por Embarazo para Protección
Social (AEPS), segundo componente do subsistema não contributivo.
2.2.1. Aspectos preliminares e origem
Na Argentina, há um amplo sistema de transferências, voltado para o auxílio às
famílias. Tal sistema consiste em um regime universal de Asignaciones Familiares (abonos-
família) e compõe-se, basicamente, de dois subsistemas: um contributivo e um não
contributivo.
O subsistema contributivo teve origem em 1996 e é voltado para atender a famílias
dependentes de trabalhadores do mercado formal de trabalho. Somente treze anos depois,
em 2009, o regime foi estendido, quando o subsistema não contributivo foi então adotado,
visando assistir as famílias de trabalhadores não formalizados do mercado laboral, com foco
em seus dependentes menores. A adoção do subsistema não contributivo – que se deu pela
criação em 2009 da AUH (seu primeiro componente) – enquadra-se no contexto de
“retomada pelo Estado da responsabilização da proteção social, cujo marco maior foi a
(re)estatização34 das aposentadorias, pensões e demais benefícios, em dezembro de 2008”
(MARQUES, 2013, p.306).
O subsistema não contributivo constitui-se como uma extensão do direito
concedido aos trabalhadores formais e seus dependentes, almejando favorecer segmentos
34 Para contextualizar, cumpre esclarecer que a medida de reestatização da proteção social na Argentina foi
tomada diante da grave situação que o país enfrentava na época. “Quando se inicia o governo Néstor, o mercado
de trabalho argentino apresentava elevado nível de desocupação e de trabalho informal, resultado de décadas
de aplicação das políticas neoliberais no país e da crise de 2001. Ao mesmo tempo, o número de aposentados
havia se reduzido, pois os trabalhadores não conseguiam cumprir com o tempo exigido de contribuição:
enquanto, em 1996, havia 2,36 milhões de aposentados e pensionistas, em 2004, eram apenas 1,652 milhão.
Além disso, o regime público amargava há anos dificuldades financeiras, decorrentes da redução de recursos
provocada pela transferência de 75% dos contribuintes para o regime de capitalização e pela redução das
contribuições dos empregadores. [Após uma série de medidas para fazer frente a essas situações e recuperar o
contingente de contribuintes] (...) Em 20 de novembro de 2008, o Senado argentino sancionou o projeto de lei
enviado pelo executivo (aprovado pela Câmara de deputados com algumas emendas), dando origem a Lei
26.425. Dessa forma, foi criado o Sistema Integrado Previsional Argentino (SIPA), que eliminou as AFJP e
unificou os dois regimes (público e privado) em um único, público e de repartição”. (MARQUES, 2014)
115
sociais antes não cobertos pelo regime de asignaciones. Tal extensão fundamenta-se na
concepção de uma proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes, estabelecida
pela Lei 26.061/2005, a qual passou a impor aos órgãos governamentais do Estado o dever
de observar e garantir tais direitos (ARGENTINA, 2005). Deste modo, a incorparação dos
menores de idade (assim como dos incapacitados, sem restrição etária), cujos responsáveis
legais não estejam inseridos no mercado formal de trabalho, ao regime de asignaciones
familiares, constitui uma forma concreta de efetivação dos direitos sociais da infância e
adolescência, formalmente reconhecidos e tipificados na Lei 26.061. É possível, assim,
entender tal incorporação como uma abordagem de “universalização”, inserida na
focalização. Focalizam-se os responsáveis legais em situação de desemprego, informalidade
ou trabalho no setor doméstico, para, com isso, abranger a todas as crianças e adolescentes
(natos, naturalizados ou residentes no país), antes apenas parcialmente abarcados pelas
asignaciones. Esta concepção de “universalidade” aparece explicitamente colocada em
documentos da própria ANSES:
É tarefa intransferível do Estado, de acordo com esta ideia de universalidade,
garantir a todos os cidadãos o acesso às prestaões sociais que asseguram um nível
e uma qualidade de vida considerados básicos, em virtude do caráter universal da
cidadania. A AUH é a expressão concreta deste conceito no âmbito definido dos
direitos das crianças e adolescente menores de dezoito anos.35 (ANSES, 2011, p.3)
Além disso, o reconhecimento de que “(...) subsistem situações de exclusão de
diversos setores da população que se mostra necessário atender”36 (ARGENTINA, 2009,
Preâmbulo), atesta que um grande contingente populacional encontra-se tolhido em seus
direitos e excluído de assistência quando esta impõe o emprego formal como critério de
elegibilidade.
Portanto, sobre estes fundamentos alicerça-se a ampliação do regime de
asignaciones familiares, segundo um subsistema de caráter não contributivo, visando à
35 Tradução nossa. “Es tarea indelegable del Estado, de acuerdo com esta idea de universalidad, garantizar para
todos los ciudadanos el acceso a las prestaciones sociales que aseguran un nivel y una calidad de vida
considerados básicos, en virtud del carácter universal de la ciudadanía. La AUH es la expresión concreta de
este concepto en el ámbito definido de los derechos de los niños, niñas y adolescentes menores de dieciocho
años”.
36 Tradução nossa.
116
integralidade da proteção dos direitos das crianças e adolescentes, assim como de seus
responsáveis legais, ainda que estes não estejam vinculados ao mercado formal de trabalho.
2.2.2. Subsistema contributivo
A) Marco legal e operacionalização
O subsistema contributivo, denominado Asignación Familiar por Trabajador
(AAFF), foi implementado pela Lei 24.714/1996. Sua gestão e operacionalização são
essencialmente centralizadas e, assim como o subsistema não contributivo, estão a cargo da
Administración Nacional de la Seguridad Social (ANSES), órgão criado em 1991, pelo
Decreto 2.741 daquele ano, ligado ao Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social
(MTEySS).
Os benefícios pagos por este subsistema são financiados por recursos de
contribuições patronais, no montante de 9,0% do total da remuneração de cada trabalhador
registrado. Desses 9,0%, 7,5% são destinados exclusivamente para o financiamento das
asignaciones, enquanto que os 1,5% restantes são direcionados para o Fondo Nacional del
Empleo (ARGENTINA, 1996, Art.5º). O pagamento das asignaciones é realizado
diretamente pela ANSES através do Sistema Único de Asignaciones Familiares (SUAF),
que possibilita que os pagamentos sejam efetivados por meio de “bancos, correios ou
mediante crédito em contas bancárias ou contas-salário. Os empregados recebem, assim, as
Asignaciones Familiares sem intermediários”37 (ANSES, 2014b).
B) Público-alvo e benefícios
A AAFF é direcionada a famílias de trabalhadores formalmente empregados. Além
disso, este subsistema também abrange e beneficia os aposentados e pensionistas, vinculados
ao Sistema Integrado Previsional Argentino (SIPA), e aos afastados do trabalho por
37 Tradução nossa.
117
invalidez, sem caráter contributivo para quaisquer destes (ARGENTINA, 1996, Art. 1º,
alínea b).
Por seu caráter contributivo, a AAFF não impõe condicionalidades ou limite de
dependentes para o seu recebimento. O benefício pode ser concedido sob diferentes formas:
i) mensal: a trabalhadores com filhos ou dependentes legais (menores de 18 anos) ou
incapacitados (sem restrição de idade); ii) anual: a beneficiários que tenham dependentes
matriculados em estabelecimentos oficiais, públicos ou privados, de ensino, a critério de
ajuda escolar; iii) pagamento único: concernente a algumas circunstâncias da vida familiar
do trabalhador. Tais circunstâncias funcionam como um fato-gerador do direito a estes
benefícios específicos e são: o pré-natal, a matermidade, o nascimento ou a adoção de um
filho e o matrimônio.
Os valores concedidos variam em função da faixa de rendimento da família do
trabalhador beneficiário, do número de dependentes sob sua tutela e da zona geográfica em
que resida. As faixas de rendimento, elegíveis ao recebimento do benefício, foram ampliadas
pelo Decreto 614/2013, do Poder Ejecutivo Nacional (PEN), e alterado pelo Decreto
1.282/2013, passando a vigorar os limites mínimo e máximo de $200,0038 e $30.000,00,
respectivamente, que – em termos do salário mínimo argentino (Salario Mínimo Vital y
Móvil39 - SMVM), equivalente a $3.600,00 (em 2014) – correspondem a 5,5% e 833%.
Além disso, um novo critério de exclusão também foi adicionado, consistindo na
eliminação ou na não inclusão do grupo familiar no recebimento das asignaciones familiares
se um de seus membros perceber renda superior a $15.000,00, ainda que a renda familiar
agregada não ultrapasse o limite máximo da faixa estabelecida (ARGENTINA, 2013,
Art.2º). A tabela 5 relaciona os benefícios e seus valores por dependente, para cada tipo de
fato-gerador, com a periodicidade dos pagamentos.
38 Nesta seção, os valores monetários são expressos em termos de Pesos ($) argentinos.
39 Seu valor foi estabelecido em $3.600,00, pela Resolução 4/2013 do Ministerio de Economía y Finanzas
(MECON), para o ano de 2014, passando a vigorar em 1º de janeiro.
118
Quanto à distribuição espacial, há um valor geral, pago nacionalmente, e outros
valores definidos para áreas específicas40, distribuídas em quatro zonas geográficas, para
fins de pagamento dos benefícios. Em algumas categorias, esses valores são mais elevados
que o valor geral. Esta distinção pecuniária almeja, precipuamente, amenizar as disparidades
regionais do país. Contudo, para os fins pretendidos neste trabalho, faz-se referência apenas
ao valor geral.
O benefício por dependente menor de 18 anos possui caráter mensal e subdivide-se
em quatro faixas de rendimento, assumindo valores crescentes para faixas de menor renda.
Assim, o valor mais elevado do benefício41, que é de $644,00 (17,9% do SMVM) por
dependente menor, destina-se à faixa de menor renda, qual seja, entre $200,00 e $5.300,00
(147,2% do SMVM). Por outro lado, à faixa de maior renda, entre $8.600,01 (238,9% do
SMVM) e $30.000,00, compreende o benefício de menor valor, que corresponde a $132,00
(3,7% do SMVM), por dependente menor de idade.
De modo semelhante, o benefício por dependente com incapacidade, também pago
mensalmente, encontra-se alocado segundo três faixas de rendimento. A faixa inferior
compreende rendas familiares42 de até $5.300,00, cujo valor do benefício é de $2.100,00
(58,3% do SMVM), por dependente incapacitado. Já a faixa superior abrange rendas
familiares acima de $6.600,00 (183,3% do SMVM), correspondendo a uma prestação de
$936,00 (26% do SMVM), por dependente com incapacidade.
A prestação referente ao pré-natal é concedida às gestantes durante o período que
engloba da concepção ao nascimento. A gestação deve ser comprovada, mediante atestado
médico, entre o terceiro e quarto mês de gravidez. É exigido da gestante uma anterioridade
de, no mínimo, três meses no emprego; assim como, sua permanência no referido emprego,
40 Tais áreas correspondem às províncias de: Chubut, Neuquen, Rio Negro, Santa Cruz, Terra do Fogo,
Antártida e Ilhas do Atlântico Sul, Pampas e o Partido de Carmen dos Patagões da Província de Buenos Aires.
41 Todos os valores referentes às asignaciones (Familar e para Protección Social) aqui reportados referem-se à
vigência de 01/06/2014 a 30/09/2014, pois tais valores são reajustados periodicamente.
42 A noção de renda familiar empregada para a concessão desses benefícios é a de IGF – Ingreso del Grupo
Familiar (Renda do Grupo Familiar), que compreende a soma das rendas de todos os trabalhadores formais da
família, inclusive a asignación por maternidade e as demais prestações assistenciais ou previdenciárias que,
porventura, recebam.
119
por pelo menos três meses após o parto. As faixas de rendimento, como também os valores
concedidos, são os mesmos daqueles atribuídos ao benefício por dependente menor.
A asignación por maternidade, por seu turno, não imponhe qualquer restrição de
rendimento por faixas, não havendo limites de renda para a percepção deste benefício. Ele é
pago durante o intervalo que corresponde à licença legal, equivalendo ao montante da
remuneração bruta que a gestante receberia caso estivesse em atividade.
Os benefícios referentes tanto à adoção quanto ao nascimento de um filho, como
também ao matrimônio, são pagos em parcela única, no mês em que o trabalhador
beneficiado comprovar, junto ao seu empregador, o fato-gerador do benefício. Os montantes
concedidos cifram-se em $1.125,00, $4.500,00 e $750,00 para o matrimônio, a adoção e,
ainda, o nascimento de um filho, respectivamente. Estes valores, em termos de salário
mínimo argentino, correspondem a 31,25%, 125% e 20,8%. Tais benefícios são atribuíveis
a trabalhadores cuja renda familiar se encontre entre $200,00 e $30.000,00.
Finalmente, a asignación para ajuda escolar concede uma soma, no valor de
$510,00, igual a 14,2% do SMVM, por dependente menor ou incapacitado, cujo pagamento
é realizado anualmente no mês de março. Para o recebimento da ajuda escolar por
dependente menor, a renda familiar deve estar entre $200,00 e $30.000,00. No caso da ajuda
escolar por dependente incapacitado, não há restrição ou limite de renda. O benefício é
concedido apenas por dependente menor que frequente, de forma regular, estabelecimentos
de ensino de educação básica ou polimodal43, ou, ainda, estabelecimentos de educação
especial no caso de dependente incapacitado, sem critério de idade (ARGENTINA, 1999,
Art. 3º).
A tabela 6 sintetiza e lista os diferentes tipos de benefícios concernentes à AAFF,
assim como as respectivas faixas de renda, os valores e periodicidade dos pagamentos.
Há ainda uma asignación por cônjuge, para os beneficiários vinculados à SIPA. O
valor desta asignación é de $100,00 (2,8% do salário mínimo argentino) e é paga a
43 Educação polimodal: equivale ao ensino médio, no caso do Brasil.
120
beneficiários cuja IGF esteja entre $200,00 e $30.000,00 (ARGENTINA, 1996, Art.15,
alínea a; ANSES, 2014).
Tabela 6
Valores da AAFF – subsistema contributivo
Asignaciones Familiares – AAFF Faixa de renda – IGF Valor geral Pagamento do
benefício
Dependente menor
Entre $200,00 e $5.300,00 $644,00
Mensal Entre $5.300,01 e $6.600,00 $432,00
Entre $6.600,01 e $8.600,00 $260,00
Entre $8.600,01 e $30.000,00 $132,00
Dependente com incapacidade
Até $5.300.00 $2.100,00
Mensal Entre $5.300,00 e $6.600,00 $1.485,00
Superior a $6.600,00 $936,00
Pré-natal
Entre $200,00 e $5.300,00 $644,00
Da concepção
ao nascimento
Entre $5.300,01 e $6.600,00 $432,00
Entre $6.600,01 e $8.600,00 $260,00
Entre $8.600,01 e $30.000,00 $132,00
Maternidade Sem limite Remuneração
bruta
Durante a
licença legal
Nascimento Entre $200,00 e $30.000,00 $750,00 Único
Adoção Entre $200,00 e $30.000,00 $4.500,00 Único
Matrimônio Entre $200,00 e $30.000,00 $1.125,00 Único
Ajuda escolar Entre $200,00 e $30.000,00 $510,00 Anual
Ajuda escolar (filho com incapacidade) Sem limite $510,00 Anual
Fonte: ANSES, 2014.
121
2.2.3. Subsistema não contributivo
A) Marco legal e operacionalização
O subsistema não contributivo foi concebido como uma extensão do direito de
recebimento das asignaciones, até então concedido apenas às famílias dos trabalhadores
formais. Segundo a ANSES (2013, p.3), esta “política social reconhece a seus titulares como
sujeitos portadores de certos direitos humanos básicos e ao Estado como responsável de
torná-los efetivos”44. Buscou-se com a criação deste subsistema universalizar a cobertura da
proteção social às crianças e adolescentes, tornando-a consonante à Lei 26.061/2005, que
estabelece a proteção integral dos direitos da infância e adolescência no país. Contudo,
apesar de sua concepção perfazer um direito, este subsistema impõe condicionalidades (para
o recebimento integral da transferência monetária) e limite de beneficiários, diferentemente
do subsistema contributivo. Deste modo, uma distinção fundamental entre os benefícios
concedidos por ambos os subsistemas é o caráter condicionado assumido pelo subsistema
não contributivo.
Este subsistema compõe-se de dois tipos de políticas: a Asignación Universal por
Hijo para Protección Social (AUH) e a Asignación por Embarazo para Protección Social
(AEPS). A AUH foi criada em 2009, através do Decreto 1.602 do PEN, e está em vigência
na Argentina desde novembro do referido ano, quando foi incorporado ao Regime Universal
de Asignaciones. A AEPS, por sua vez, foi implementada pelo Decreto 446/2011, passando
a vigorar a partir de maio daquele ano.
Ambas as políticas não contributivas são financiadas pela ANSES, através das
mesmas fontes de recursos do subsistema contributivo, com o acréscimo dos rendimentos
anuais do Fondo de Garantía de Sustentabilidad (FGS).
Inicialmente, o subsistema não contributivo compunha-se apenas pela AUH, sobre
o fundamento da efetivação da proteção integral à infância e à adolescência. Posteriormente,
a AEPS foi incluída a esse subsistema, tendo por alicerce diversas considerações expostas
44 Tradução nossa.
122
no preâmbulo do Decreto que lhe deu origem. Estas considerações reconhecem, entre outros
apontamentos:
Que é obrigação do Estado Nacional adotar políticas públicas que permitam
melhorar a situação dos grupos familiares em situação de vulnerabilidade social.
(...) Que no marco da política social que o governo está levando a cabo e
considerando os resultados positivos que gerou a incorporação da citada
Asignación Universal por Hijo para Protección Social no que concerne à redução
da pobreza, resulta conveniente continuar ampliando a cobertura das asignaciones
familiares, otimizando progressivamente os benefícios que oferece o Sistema de
Seguridade Social. (...) Que a mortalidade materna é um indicador da injustiça
social, da iniquidade de gênero e da pobreza, já que o problema se vincula
estreitamente às dificuldades de acesso à educação e aos serviços de atenção
médica especializados.45 (ARGENTINA, 2011, Preâmbulo).
Deste modo, a AEPS surge como uma política específica de combate à pobreza,
diferentemente da AUH cujo fundamento primário é a extensão do direito às asignaciones a
todas as crianças e adolescentes do país, antes não cobertos pelo subsistema contributivo,
visando à integralidade de sua proteção.
B) Público-alvo e benefícios
Asignación Universal por Hijo – AUH
A AUH tem por público-alvo crianças e adolescentes menores de 18 anos ou
incapacitados, sem restrição de idade, dependentes de pais ou outros responsáveis legais que
sejam trabalhadores informais, do serviço doméstico ou que estejam desempregados. Para
fazer jus ao benefício, os trabalhadores desempregados não podem estar recebendo o seguro
desemprego e os demais não podem perceber um rendimento superior a um salário mínimo,
que na Argentina chama-se Salario Mínimo Vital y Móvil (SMVM) e equivale a $3.600,00,
em 2014 (MECON, 2013). Tanto os dependentes quanto seus responsáveis devem ser
45 Tradução nossa. “Que es obligación del Estado Nacional adoptar políticas públicas que permitan mejorar la
situación de los grupos familiares en situación de vulnerabilidad social. (...) Que en el marco de la política
social que está llevando a cabo el gobierno y considerando los resultados positivos que ha generado la
incorporación de la citada Asignación Universal por Hijo para Protección Social en lo concerniente a la
reducción de la pobreza, resulta conveniente continuar ampliando la cobertura de las asignaciones familiares,
optimizando progresivamente los beneficios que brinda el Sistema de Seguridad Social. (...) Que la mortalidad
materna es un indicador de la injusticia social, la inequidad de género y la pobreza, ya que el problema se
vincula estrechamente con las dificultades de acceso a la educación y a los servicios de atención médica
especializados”.
123
residentes na Argentina, ser natos ou naturalizados ou possuir residência legal no país não
inferior a 3 anos.
Este benefício é pago mensalmente a um dos responsáveis (de preferência, a mãe)
pela criança, adolescente ou incapacitado assistido, até o limite de cinco dependentes por
família. O valor46 do benefício é de $644,00 por cada filho menor de 18 anos e $2.100,00
por filho com incapacidade. Em termos de SMVM, estes valores correspondem a 17,9%, no
caso do benefício de dependente menor de idade, e a 58,3%, no caso do benefício
direcionado aos dependentes incapacitados. Dessa maneira, uma família beneficiária pode
receber desde o mínimo de $644,00 (se tiver um dependente menor de idade), até o máximo
de $3.220,00 (se tiver até cinco dependentes menores), valor que corresponde a 89,4% do
SMVM. Caso haja algum dependente incapacitado, esse valor será maior, respeitando-se o
limite de cinco dependentes (entre menores e incapacitados) por grupo familiar beneficiário.
A prestação é dividida em duas partes: 80% do valor do benefício mensal são pagos
diretamente ao responsável e os 20% restantes são mantidos em uma conta bancária,
podendo ser retirados somente uma vez ao ano, sob o critério de cumprimento de algumas
condicionalidades exigidas nas áreas de educação e saúde. Os pagamentos mensais,
referentes aos 80% do valor da prestação, são de atribuição da própria ANSES, realizados
através do SUAF. Já os pagamentos dos outros 20%, acumulados ao longo do ano, estão sob
incumbência do Banco de la Nación Argentina (BNA).
Asignación por Embarazo – AEPS
A AEPS foca-se no atendimento a gestantes em situação de vulnerabilidade social.
Para pleitear o benefício, a gestante deve ser residente no território argentino, ser nascida ou
naturalizada no país, ou, ainda, caso estrangeira, possuir residência legal no país de, no
mínimo, três anos.
46 Valores vigentes de 01/06/2014 a 30/09/2014.
124
O pagamento deste benefício é mensal, no montante47 de $644,00, sendo realizado
durante o período que compreende da décima segunda semana de gestação até o nascimento
ou a interrupção da gravidez, o que compreende, em geral, um período de seis meses ou,
ainda, seis parcelas a serem pagas. A gestante recebe o valor referente a apenas um benefício,
ainda que esteja grávida de mais de um filho. Por outro lado, a beneficiada pode acumular
dois benefícios referentes à AEPS, caso ela esteja vinculada a duas atividades distintas de
trabalho. A AEPS é compatível com o recebimento da AUH, o que significa que a gestante
beneficiária pode receber as prestações referentes a ambas as políticas. Isto posto, tem-se
que uma gestante beneficiada pelo AEPS e simultaneamente pela AUH, em razão de seus
dependentes, pode receber desde um mínimo de $1.288,00 (01 benefício da AUH para
dependente menor, mais 01 benefício da AEPS), que corresponde a 35,8% do SMVM, até
um máximo de $4.508,00 (05 benefícios da AUH para dependente menor, mais 02 benefícios
da AEPS), valor superior ao SMVM em 25,2%. Obviamente, havendo dependentes
incapacitados os valores concedidos serão maiores.
Similarmente às prestações da AUH, o pagamento das prestações da AEPS também
é dividido em duas partes. São pagos mensalmente 80% do valor do benefício, da décima
segunda à última semana de gestação, isto é, durante seis meses. Os 20% restantes são
acumulados e pagos, em única parcela, apenas ao término da gravidez, quando do parto ou
por interrupção. Contudo, o recebimento do montante acumulado, a partir dos 20% do valor
da prestação mensal, condiciona-se ao cumprimento de condicionalidades na área de saúde,
que exigem o seguimento dos controles médicos preconizados pelo Programa SUMAR
(antigo Plan Nacer), do Ministerio de Salud (MSAL).
C) Condicionalidades
Asignación Universal por Hijo – AUH
No caso da AUH, para que o titular do benefício resgate o montante dos 20% de
cada prestação mensal retido e acumulado durante o ano é preciso que ele e sua família
executem as contrapartidas impostas pelo programa. São exigidas condicionalidades nas
47 Valor vigente de 01/06/2014 a 30/09/2014.
125
áreas de saúde e educação, que correspondem: i) ao cumprimento dos controles sanitários e
de vacinação, para os dependentes de até quatro anos de idade, e ii) à comprovação de
frequência em estabelecimentos públicos de ensino, para os dependentes de cinco a dezoito
anos de idade.
Asignación por Embarazo – AEPS
A AEPS impõe condicionalidades na área de saúde para o recebimento integral do
benefício. Contudo, a primeira condicionalidade diz respeito à própria inclusão na AEPS,
pois para ser incluída é preciso que a grávida esteja previamente inscrita no Programa
SUMAR, um programa federal de atenção à saúde voltado, principalmente, para gestantes,
parturientes e crianças. Em agosto de 2012, o Programa SUMAR surgiu como expansão do
Plan Nacer, ao qual as beneficiárias da AEPS estavam previamente vinculadas. Através do
Programa SUMAR, e somente por ele, a gestante recebe o atestado médico48 que comprova
e situa temporalmente sua gestação, para que ela seja, então, incluída na AEPS.
A gestante assistida pela AEPS deverá cumprir o rol de controles médicos
estabelecidos pelo Programa SUMAR, para fazer jus ao recebimento integral do benefício
concedido pela AEPS. Tais controles incluem consultas regulares de pré-natal, participação
em seções de orientação de saúde sexual e de cuidados com sua saúde e a do recém-nascido
e, também, exames diversos e um roteiro de vacinação, para si e para seu filho.
O quadro 6 sintetiza o conjunto de informações referentes aos valores, público-alvo
e condicionalidades exigidas tanto pela AUH quanto pela AEPS.
Para além dos subsistemas contributivo e não contributivo, há um mecanismo
indireto de assistência (que não integra o sistema de Seguridad Social), em vigor desde
março de 2013, concedido aos responsáveis por menores de 18 anos. Este “benefício” é
direcionado a favorecer os dependentes legais dos contribuintes do imposto de renda, cujos
rendimentos anuais superem o valor mínimo não tributável (CURCIO & BECCARIA, 2013,
p.10). Concede-se uma dedução no imposto de renda no valor de $8.640,00 anuais por
48 Este atestado (chamado “alta”) é, unicamente, concedido pelos médicos vinculados ao Programa SUMAR
(Plan Nacer), como requisito indispensável para a inclusão da gestante na AEPS.
126
dependente menor, isto é, $720,00 mensais. Neste caso, a gestão do benefíco não pertence à
ANSES, mas está sob encargo da Administración Federal de Ingresos Públicos (AFIP).
Quadro 6
Valores, público-alvo e condicionalidades da AUH e da AEPS
AUH
Público-alvo
Crianças e/ou adolescentes menores de 18 anos ou incapacitados (sem
restrição de idade), dependentes de pais ou outros responsáveis legais que
sejam trabalhadores informais, do serviço doméstico (cujos rendimentos
não sejam superiores a 01 SMVM) ou que estejam desempregados (e sem
receber seguro-desemprego)
Valores
Dependente menor $644,00 Máximo de 05
dependentes
por família Dependente com incapacidade $2.100,00
Condicionalidades
Educação: Comprovação de frequência em estabelecimentos públicos de
ensino, para os dependentes de 05 a 18 anos de idade
Saúde: Cumprimento dos controles sanitários e de vacinação, para os
dependentes de até 04 anos de idade
AEPS
Público-alvo
Gestantes em situação de vulnerabilidade social, vinculadas a alguma
atividade de trabalho, previamente inscritas no Programa SUMAR (antigo
Plan Nacer) do Ministerio de Salud
Valores Gestante, por vínculo de trabalho: $644
Condicionalidades
Saúde: Estabelecidas pelo Programa SUMAR:
Inscrever o récem-nascido no Programa SUMAR e também todos
os menores de 06 anos
Receber todos os controles e cuidados de saúde durante a
gravidez (inclusive, consultas regulares de pré-natal)
Acompanhar e manter em dia o esquema vacinal para todos os
menores de 18 anos
Acompanhar os controles de saúde de crianças e adolescentes
Fonte: ANSES, 2013; ANSES, 2014; ANSES, 2014c; MSAL, 2013.
Elaboração própria.
127
2.2.4. O subsistema não contributivo em números – AUH e AEPS
Para dimensionar o tamanho e alcance da AUH e da AEPS, apresentam-se alguns
dados e números alcançados por esses programas ao longo de sua implementação.
Asignación Universal por Hijo – AUH
Segundo o Boletín Cuatrimestral49, edição 2014-I (ANSES, 2014d), no mês de abril
de 2014 a AUH abrangia o contingente de 3.348.032 beneficiários, número apenas 2% maior
que o alcançado no mesmo mês do ano anterior (abril/2013), quando foram beneficiados
3.283.656 dentre menores e incapacitados, cujos responsáveis legais enquadram-se nos
critérios do programa. A faixa etária com maior participação de dependentes beneficiários é
a que compreende crianças entre 0 e 5 anos, com 41,3%. Por outro lado, os dependentes de
18 anos ou mais de idade compreendem apenas 0,4% dos benefícios da AUH. Estes dados
podem ser observados na tabela 7, que apresenta a distribuição da AUH, para quatro distintas
faixas de idade.
Tabela 7
Distribuição da AUH, por faixas de idade (abril/2014)
Faixa etária Número de
beneficiários %
0 – 5 1.381.624 41,3
6 – 11 1.098.998 32,8
12 – 17 853.995 25,5
18 em diante 13.415 0,4
Total 3.348.032 100
Fonte: ANSES, 2014d.
Elaboração própria.
49 Informativo publicado quadrimestralmente pela ANSES, desde o terceiro quadrimestre de 2010.
128
No que tange à cobertura do programa, segundo o Boletín Cuatrimestral, edições
de 2011 a 2014, do total de menores de dezoito anos na Argentina constantes no
Administrador de Datos de Personas (ADP) – uma espécie de cadastro único da seguridade
social – em 2014, 27% desses menores encontravam-se cobertos pela AUH. Ademais, 6%
do total de menores não estavam cobertos pelo regime de asignaciones, como apresentado
na tabela 8.
Tabela 8
Cobertura dos menores de 18 anos (2011-2014)
Menores de 18 anos (no ADP) 2011 % 2012 % 2013 % 2014 %
Total 11.466.481 100 11.663.016 100 12.088.598 100 12.252.190 100
Outras Asignaciones Familiares 3.530.669 31 3.337.172 29 4.386.645 36 4.393.402 36
AUH 3.507.223 30 3.314.179 28 3.478.267 29 3.348.032 27
Não elegíveis 3.542.555 30 4.258.399 37 3.561.938 30 3.832.117 31
Sem cobertura 886.034 8 753.266 6 661.748 5 678.639 6
Fonte: ANSES, 2011, 2012b, 2013b, 2014d.
Elaboração própria.
Quanto à distribuição regional da AUH, considerando cinco grandes regiões50,
estudo da ANSES (2012), com base em dados censitários do Instituto Nacional de
Estadística y Censos (INDEC), para dezembro de 2011, registra que mais de 55% dos
beneficiários encontram-se na região do Centro y Buenos Aires, perfazendo à epoca quase 2
milhões de beneficios apenas nessa região. Esse resultado é tal como seria esperado, pois
50 O referido estudo considera as regiões: i) NOA - Noroeste Argentino; ii) NEA - Nordeste Argentino; iii)
Nuevo Cuyo; Patagónica; Centro y Buenos Aires. Esta regionalização corresponde à classificação adotada pela
Dirección de Información y Análisis Regional do MECON, conforme nota constante em ANSES (2012).
129
45,8% da população argentina está concentrada nessa região (UNFPA, 2009). A tabela 9
reproduz os dados do referido estudo.
Tabela 9
Distribuição territorial da AUH, por região (dez./2011)
Região
Beneficiários População menor de 18 anos Cobertura
Quantidade Percentual Quantidade Percentual Percentual
NOA 555.676 15,0 1.407.406 11,4 39,5
NEA 524.609 15,8 1.131.272 9,2 46,4
Nuevo Cuyo 296.166 8,4 979.496 7,9 30,2
Patagónica 160.122 4,6 743.749 6,0 21,5
Centro y Buenos Aires 1.943.027 55,4 8.071.823 65,4 24,1
Sem identificação 27.623 0,8 - - -
Total 3.507.223 100,0 12.333.747 100,0 28,4
Fonte: ANSES, 2012.
No que concerne ao gasto fiscal com pagamento de benefícios, o Boletín
Cuatrimestral (ANSES, 2014d), edição 2014-I, apresenta a evolução do montante
despendido. Como o gráfico 10 evidencia, considerado o período de agosto de 2010 a abril
de 2014, o volume de dispêndio fiscal tem aumentado progressivamente, tanto com
benefícios para dependentes menores de idade quanto para dependentes com incapacidade.
Ao longo do período considerado, o gasto com benefícios para dependentes menores
aumentou em 155%, enquanto o gasto com dependentes com incapacidade expandiu-se em
260%.
130
Gráfico 10
Gasto total, em Pesos, com pagamento de benefício da AUH, segundo tipo de prestação
Fonte: ANSES, 2014d.
Elaboração própria.
Quanto aos valores pagos pela AUH, é possível verificar a trajetória dos aumentos
concedidos anualmente, por tipo de benefício. Esta trajetória pode ser observada no gráfico
11. Entre 2009 e 2010, tanto o benefício por dependente menor de idade quanto o benefício
por dependente com incapacidade tiveram aumento de 22% em seus valores. No ano
seguinte, 2011, ambos os tipos de benefício também sofreram variação idêntica, de 23%.
Contudo, em 2012 e 2013, o benefício por dependente incapacitado apresentou menores
reajustes em relação ao benefício por dependente menor. Em 2012, seu reajuste foi de 11%,
enquanto o benefício por dependente menor de idade foi da ordem de 26%. No ano seguinte,
2013, o benefício por dependente menor apresentou aumento de 35% e o benefício por
incapacitado, de 25%. O último reajuste, de 2014, foi de 40% para ambos os tipos de
benefícios.
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
0,00
200,00
400,00
600,00
800,00
1.000,00
1.200,00
1.400,00
Mil
har
es
Mil
har
es
Menor de idade Com incapacidade
131
Gráfico 11
Evolução dos valores da AUH, por tipo de benefício
Fonte: ANSES, 2012; ANSES, 2014; CIFRA, 2012.
Asignación por Embarazo – AEPS
Acerca da AEPS, em estudo realizado em 2012, a ANSES apresenta a expansão da
inserção de beneficiárias no programa ao longo do ano de 2011, primeiro ano de sua
implementação. Essa trajetória corresponde ao aumento da participação de gestantes,
nutrizes, parturientes e de seus filhos menores de seis anos no Plan Nacer, uma vez que
apenas pela prévia inscrição nesse plano é que a usuária pode inserir-se na AEPS.
Atualmente, o Plan Nacer foi estendido, passando a constituir o Programa SUMAR. Quando
teve início sua implementação, em maio de 2011, a AEPS contava com 5.170 beneficiárias.
Em dezembro do mesmo ano, isto é, sete meses após, o programa já contava com 68.580
gestantes beneficiárias, representando uma ampliação de mais de doze vezes no contingente
de assistidas. Esse resultado muito se deveu à busca ativa realizada no âmbito do Plan Nacer.
O gráfico 12 reproduz a trajetória de ampliação do número de gestantes beneficiárias na
AEPS, em 2011, seu primeiro ano de funcionamento.
A expansão do contingente de beneficiárias na AEPS não cessou nos anos
seguintes. Como resultado da política de busca ativa de populações vulneráveis e sem obra
0
500
1000
1500
2000
nov/09 nov/10 nov/11 nov/12 nov/13 nov/14
180 220 270 340460
644720
8801.080 1.200
1.500
2.100
Pes
os
($)
Dependente menor Dependente com incapacidade
132
social (seguro social de saúde) – realizada no âmbito do Plan Nacer e, posteriormente, no
Programa SUMAR, seu substituto – o número de gestantes inscritas no programa e
beneficiadas pela AEPS, desde sua criação, atingia, em 2013, a cifra de 450 mil mulheres
(MSAL, 2013, p.15).
Gráfico 12
Evolução da quantidade de beneficiárias na AEPS – mar./2011 a dez./2011
Fonte: ANSES, 2012.
2.2.5. Impactos da AUH e AEPS
Apesar de seu período relativamente curto de implementação – 5 anos da AUH e 3
anos da AEPS – os programas do subsistema não contributivo de asignaciones familiares da
Argentina já possuem certos impactos a eles atribuíveis. São apontados alguns desses efeitos.
O tratamento da pobreza, bem como o rompimento de sua transmissão
intergeracional, mediante o fomento ao acúmulo de capital humano das crianças e jovens
beneficiários, são os objetivos precípuos perseguidos pelos PTCR. A AUH insere-se nesse
gênero de políticas sociais, como descrito pela ANSES (2012, p.20):
A AUH apresenta as características de um conjunto de programas conhecidos
como Transferências Monetárias Condicionadas, cujas modalidades de pagamento
5.170
36.191
48.805
54.743
59.282
63.576
67.527
68.580
0 10.000 20.000 30.000 40.000 50.000 60.000 70.000
mai/11
jun/11
jul/11
ago/11
set/11
out/11
nov/11
dez/11
133
se ajustam ao cumprimento por parte dos pais de certos requisitos que atuam como
incentivos para o investimento no capital humano de seus filhos
(fundamentalmente, educação e saúde).51 (Tradução nossa).
Sendo assim, a redução da pobreza e indigência vigentes, assim como quebra de
sua transmissão intergeracional são objetivos perseguidos pelos programas do subsistema
não contributivo de asignaciones familiares. Deste modo, importa apontar seus efeitos na
redução da pobreza e indigência, como também os resultados potencialmente derivados das
condicionalidades nas áreas de educação e saúde. Podem ser também apontados impactos
atribuíveis à AUH no domínio macroeconômico e sobre a concentração de renda.
Os impactos da AUH sobre o nível de pobreza e indigência foram estimados em
trabalho do MECON (2009). Segundo o referido trabalho, a partir de dados da Encuesta
Permanente de Hogares (EPH), realizada pelo INDEC, a incidência da pobreza sobre o
contingente populacional dos aglomerados urbanos se reduziria em 32,6% com a
participação da AUH, declinando de um patamar de 14,1% para 9,5% de pessoas sob
pobreza, considerando a linha de pobreza definida pelo INDEC. Outrossim, quanto à
incidência de pessoas em condição de extrema pobreza (ou indigência), o estudo defende
que o impacto da AUH implicaria uma queda de 3,8% para 1,2% na proporção de indigentes,
perfazendo uma redução de 68,4%.
Quanto aos efeitos da AUH sobre o nível de desigualdade, Curcio e Beccaria (2013,
p.22) mensuraram o Coeficiente de Gini, relativo à renda per capita familiar (Ingreso Per
Capita Familiar – IPCF), sob dois cenários: ausência e presença da AUH, para o período de
2007 a 2012. A partir desse exercício contrafactual, os autores mostram que o valor do Gini
é sempre maior na ausência da AUH. Logo, pode-se inferir que a presença desta transferência
concorre, em alguma medida, para que o grau de desigualdade decline. O gráfico 13 reproduz
os resultados obtidos pelos autores.
51 “La AUH presenta las características de un conjunto de programas conocidos como de Transferencias
Monetarias Condicionadas, cuyas modalidades de pago se ajustan al cumplimiento por parte de los padres de
ciertos requisitos que actúan como incentivos para la inversión en el capital humano de sus hijos
(fundamentalmente, educación y salud)”.
134
Gráfico 13
Influência da AUH na distribuição de renda:
Coeficiente de Gini do IPCF, com e sem AUH (2007-2012)
Fonte: CURCIO & BECCARIA, 2013.
No que tange à AUH e à AEPS, cabe frisar que há certa escassez de trabalhos
voltados à análise de seus impactos, quando cotejados ao volume de publicações dedicadas
a descrever os referidos programas, particularmente a AUH. Esses programas contam com
relativo pouco tempo de implementação, o que dificulta análises mais aprofundadas acerca
de seus efeitos. Por isso, apresentaram-se aqui apenas algumas estimativas dos potenciais
efeitos dessas políticas.
135
2.3. Sistema Chile Solidário e Ingreso Ético Familiar – Chile
Esta terceira seção do capítulo 2 é dedicada a tratar os PTCR chilenos. Consideram-
se, para efeitos deste estudo, o Sistema Chile Solidario (SCS) e o programa Ingreso Ético
Familiar (IEF). Semelhantemente às duas seções anteriores, foram empreendidos esforços
para debuxar e expor o desenho institucional desses programas, procurando observar seus
elementos constitutivos fundamentais, como: marco legal e operacionalização, público-alvo,
tipos de benefícios concedidos e condicionalidades exigidas. Também se pretendeu
apresentar dados acerca da dimensão e cobertura dos programas considerados, assim como
alguns impactos a eles atribuíveis. No caso do Chile, no entanto, como se verá ao longo da
seção, o acesso e mesmo a existência de dados e informações adequados revelaram-se
bastante restritos, quando cotejados à Argentina e, principalmente, ao Brasil.
2.3.1. Aspectos preliminares e origem
Os PTCR chilenos surgem no contexto de uma busca do Estado por políticas
específicas para o enfrentamento à extrema pobreza, no início dos anos 2000. Segundo
Larrañaga (2010, p.203), diante do estancamento da queda da extrema pobreza na segunda
metade da década de 1990 que, após ter se reduzido de 12,9% a 5,7% entre 1990 e 1996,
permanecera praticamente inalterada entre 1996 e 2000, elaborou-se uma conjetura de que
existiria um núcleo-duro de pobreza no país, que não conseguia responder ao crescimento
econômico, tampouco às políticas sociais então vigentes. A busca por uma nova estratégia
de enfrentamento à extrema pobreza foi dirigida pelo Ministerio de Planificación
(MIDEPLAN) e seu desenho proposto pela Dirección de Presupuestos, com assessoria do
Banco Mundial.
No início da década de 2000, havia no Chile diversos programas e ações de
assistência social, que se caracterizavam por serem dispersos e segmentados, cuja
implantação e operacionalização cabia a diferentes ministérios e órgãos públicos. Ainda
segundo Larrañaga (2010, p.204), a dispersão dos programas e ações sociais teria sido um
dos empecilhos a um melhor acesso dessas políticas por parte da população extremamente
pobre, concorrendo para a estagnação observada na queda da extrema pobreza, durante a
segunda metade dos anos noventa. Deste modo, concluía-se que havendo um melhor acesso
136
da população mais pobre ao sistema de proteção social existente, seria possível reduzir a
extrema pobreza. Assim, partindo das experiências de políticas já existentes no país,
estruturou-se um programa que pretendia superar a dispersão das ações sociais, buscando
“oferecer um sistema interconectado de prestações sociais dirigido aos mais pobres”
(LARRAÑAGA, 2010, p.204). Este programa seria o Chile Solidario, que, segundo o
referido autor, não se trata propriamente de um programa, mas de um sistema que articula
um conjunto de ações sociais.
Além disso, no cenário de predomínio das políticas neoliberais que, desde a década
de 1980, enfatizavam a redução dos gastos públicos e sociais, a dispersão de diferentes
programas representava desperdício de recursos, não alcançando a população indigente. Por
isso, a focalização do atendimento à população mais pobre e a concentração das políticas
vigentes, sob uma “janela única”52 tornaram-se uma estratégia predominante.
Uma década mais tarde, em 2012, será implantado no país o programa Ingreso Ético
Familiar, que, ao contrário do Chile Solidario, constitui-se como um PTCR propriamente
dito.
2.3.2. Sistema Chile Solidario
A) Marco legal e operacionalização
No Chile é implantado, em 2002, o Chile Solidario, iniciativa que consiste em um
sistema de proteção social cujo objetivo é, como definido na lei que o regulamenta,
“promover a incorporação a redes sociais e acesso a melhores condições de vida para as
famílias em situação de pobreza extrema”53 (CHILE, 2004, Preâmbulo).
Criado e instituído em maio de 2002, o Chile Solidario somente foi regulamentado
por legislação específica em maio de 2004, com a Lei 19.949. Como alega Larrañaga (2010,
p.204), o funcionamento do Chile Solidario não dependia de sua tipificação em termos
52 “Ventanilla única” (LARRAÑAGA, 2010, p.204).
53 Tradução nossa. “(...) la ley Nº 19.949, que crea el sistema de protección social denominado “Chile
Solidario”, dirigido a las familias y sus integrantes en situación de extrema pobreza, cuyo objetivo es promover
su incorporación a las redes sociales y su acceso a mejores condiciones de vida”.
137
legais, posto que já operava há dois anos, mas, além de lhe conceder maior legitimidade, a
legislação favorece uma maior estabilidade política, temporal e conjuntural para a ação.
O Chile Solidario foi constituído como um sistema, englobando diversas ações
sociais, antes desvinculadas, buscando criar um sistema interconectado de serviços sociais,
focado nos mais pobres (ou extremamente pobres). Deste modo, o sistema Chile Solidario
consiste, como o define Larrañaga (2010, p.201), em uma estrutura que “articula o acesso
dos participantes a um numeroso conjunto de programas e benefícios sociais, adstritos a
diferentes ministérios e serviços públicos”54. Trata-se, portanto, de um sistema que pretende
vincular os beneficiários à oferta pública de serviços, através da articulação de diversos
programas e ações de proteção social.
A gestão e coordenção central do Sistema Chile Solidario (SCS) eram, inicialmente,
de incumbência do MIDEPLAN. Em outubro de 2011, através da Lei 20.530, este órgão foi
substituído pelo Ministerio de Desarrollo Social (MDS-Ch), que então passa a responder
pela coordenação do SCS. Sua operacionalização, porém, é descentralizada e realizada em
nível local, nos municípios, através das Unidades de Intervención Familiar (UIF).
B) Estrutura
Como afirmam Lara e Flores (2014b), quatro componentes cimentavam o SCS, a
saber: i) o apoio psicossocial; ii) o acesso preferencial à rede de serviços e ações sociais; iii)
a garantia de acesso aos subsídios monetários estatais pertinentes e iv) a transferência
monetária através do Bono de Protección. A partir de 2012, porém, a configuração do Chile
Solidario muda, pois ele deixa de ter o componente de transferência, que migrará para o IEF.
O apoio psicossocial estabelece um trabalho direto com as famílias assistidas.
Realizam-se visitas periódicas aos lares, através de monitores profissionais específicos. Sua
função é realizar um diagnóstico da situação familiar, no que tange às suas condições
socioeconômicas; definir estratégias e metas que os membros da família devem perseguir
para melhorar sua situação de extrema pobreza, construindo o contrato familiar; ajudar na
54 Tradução nossa.
138
reorganização familiar; auxiliar à família na vinculação com as redes de serviços públicos e
ações sociais disponíveis e, ainda, avaliar os êxitos obtidos ao término do período de
intervenção. Este acompanhamento é realizado durante dois anos, tempo no qual a família
permanece vinculada ao programa. Após este período, a família ainda é acompanhada
durante três anos, para avaliação de seus resultados. (LARA & FLORES, 2014b;
LARRAÑAGA, 2010).
O segundo componente do Chile Solidario promove o acesso prioritário aos
programas e ações sociais do Estado como também a serviços públicos, principalmente nos
âmbitos de saúde, educação, moradia, emprego e renda, entre outros. Através do Chile
Solidario, os beneficiários também podem acessar programas de intervenção e ajuda
psicossocial, como o Programa Puente, dirigido a famílias em situação de extrema pobreza;
o Programa Vínculos, voltado a adultos em vulnerabilidade ou pobreza; o Programa Calle,
direcionado a adultos moradores de rua e o Programa Camino, que tem como público
crianças cujas famílias possuam algum membro encarcerado.
O componente seguinte do SCS visa garantir às famílias assistidas o acesso rápido
aos subsídios monetários estatais, que lhes sejam pertinentes. Segundo Lara e Flores (2014b,
p.6), tais subsídios compreendem: Subsidio Único Familiar (SUF); Subsidio de
Discapacidad Mental; Subsidio Cédula de Identidad; Subsidio al Consumo de Agua Potable
y Servicio de Alcantarillado de Aguas Servidas (SAP); Subvención Preferencial y Pro-
Retención Escolar e Pensión Básica Solidaria.
Por fim, o quarto componente do Chile Solidario era a transferência de renda
realizada através do pagamento do Bono de Protección, que de 2012 em diante tem sido
paga no âmbito do IEF. Este bono é uma prestação monetária condicional, paga em valor
decrescente às famílias assistidas, durante um período total de dois anos. O recebimento
desta prestação condiciona-se ao cumprimento, por parte da família, do contrato familiar,
isto é, das estratégias e metas estabelecidas, através do apoio psicossocial, para a melhora da
situação de extrema pobreza na qual a família atendida se encontra.
De acordo com Larrañaga (2010), o Chile Solidario não é propriamente um
programa, tampouco um PTCR, justamente por seu componente de transferência de renda
ser secundário dentro de seu desenho institucional, principalmente quando comparado a
139
outras políticas do gênero. A figura 1 expõe esquematicamente a estrutura do Sistema Chile
Solidario, a partir de seus quatro componentes.
Figura 1
Estrutra do Sistema Chile Solidario
Fonte: LARA & FLORES, 2014b; LARRAÑAGA, 2010.
Elaboração própria.
Chile Solidario
Apoio psicossocial
Diagnóstico familiar
Contrato familiar
Vinculação com redes de serviços públicos e ações
sociais
Acesso preferencial
Programas e ações sociais do Estado
Serviços públicos
Subsídios monetários
Subsidio Único Familiar
Subsidio de Discapacidad Mental
Subsidio Cédula de Identidad
Subsidio al Consumo de Agua Potable
Pro-Retención Escolar
Pensión Básica Solidaria
Transferência de renda
Bono de Protección
140
Em 2009, através da Lei 20.379, são criados o Sistema Intersectorial de Protección
Social e o Subsistema de Protección Integral a la Infancia Chile Crece Contigo. O Chile
Solidario é, então, incorporado ao Sistema Intersectorial de Protección Social, passando a
constituir, juntamente com o Chile Crece Contigo, um de seus subsistemas.
Lara e Flores (2014b, p.7) frisam que, ainda no ano de 2009, quando da crise
econômica que abalou o Chile (reflexo da crise financeira mundial de 2008), o governo
implementou transferências extraordinárias de renda, que integravam o Plan de Estimulo
Económico e visavam conter o aumento da pobreza. Estas transferências denominavam-se
Bono de Apoyo a la Familia e focavam as famílias com rendas médias e baixas (no caso,
rendas mensais inferiores a US$845,47), beneficiárias de Asignación Familiar ou do Chile
Solidario. Todavia, apesar de sua natureza excepcional, estas transferências foram,
posteriormente (em 2012), convertidas em um programa regular de prestações monetárias
de caráter não contributivo, denominado Ingreso Ético Familiar.
2.3.3. Ingreso Ético Familiar
A) Marco legal e operacionalização
Em maio de 2012, com a promulgação da Lei 20.595, o programa Ingreso Ético
Familiar (IEF) é criado. O IEF compõe-se de um conjunto diversificado de transferências
monetárias, tanto de caráter condicionado como não condicionado. As transferências
condicionadas vinculam-se à obtenção de êxitos e/ou ao cumprimento de deveres, nas áreas
de educação, saúde e trabalho.
A estrutura e a operacionalização do IEF herdaram os traços gerais de seu
predecessor, o Chile Solidario. Ademais, o Ingreso Ético substitui o Chile Solidario no
componente de transferência de renda, passando a responder pelo pagamento do Bono de
Protección, como também de outras transferências.
A gestão do Ingreso Ético Familiar, como das demais políticas e ações sociais do
Estado, está a cargo do Ministerio de Desarrollo Social do Chile (MDS-Ch).
141
B) Público-alvo e benefícios
O programa Ingreso Ético Familiar volta-se ao atendimento de famílias
extremamente pobres, como também de populações sob vulnerabilidade, ainda que não
estejam, necessariamente, em situação de pobreza extrema. Tais populações vulneráveis55
correspondem a: i) idosos, em situação de pobreza, vivendo sozinhos ou com uma pessoa;
ii) menores, cujo adulto responsável seja presidiário; iii) moradores de rua.
A identificação das famílias beneficiárias do Ingreso Ético é realizada pelo MDS-
Ch, através da Ficha de Protección Social (FPS). A partir da identificação e seleção das
famílias a serem assistidas, é designado um gestor familiar, que irá até à residência da família
para elaborar, junto com ela, o respectivo Plan de Intervención, que se trata de um
documento no qual se estabelecem metas e deveres que a família deverá cumprir para fazer
jus aos benefícios monetários oferecidos pelo programa.
Este programa se estrutura sobre três pilares fundamentais: o pilar da dignidade, o
dos deveres e o dos êxitos. Cada pilar estabelece dois tipos de benefícios distintos. O pilar
da dignidade, de caráter não condicionado, concede benefícios monetários a todas as famílias
em situação de pobreza extrema. Estes são os benefícios-base, ou básicos, para as famílias
assistidas, compreendendo o bono56 base familiar e o bono de proteção (antes concedido no
âmbito do Chile Solidario). O segundo pilar, o dos deveres, confere prestações a famílias
sob pobreza extrema e lhes impõe como condicionalidades o cumprimento dos controles de
saúde da criança e a observância da frequência escolar de 85%. Para cada condicionalidade
cumprida neste pilar, a família faz jus, respectivamente, ao bono de controle da saúde da
criança e ao bono de frequência escolar. Finalmente, o terceiro pilar, referente aos êxitos,
direciona-se aos 30% das famílias de renda mais baixa da população chilena e condiciona o
recebimento dos benefícios ao sucesso escolar, para as famílas de alunos que obtenham nota
igual ou superior a 7,0, e ao trabalho da mulher, ambos entendidos como êxitos pessoais.
Estes últimos benefícios funcionam como um tipo de estímulo e prêmio pelo sucesso. A
55 Nota-se que as ditas populações vulneráveis equivalem, em grande medida, àquelas antes atendidas na esfera
do Chile Solidario pelos programas Vinculos, Camino e Calle, respectivamente.
56 “Bono” equivale a benefício, para fins deste trabalho.
142
figura 2 apresenta o público-alvo e os benefícios. Em seguida, a figura 3 exibe os três pilares
e sintetiza os tipos de transferências monetárias, em função das condicionalidades.
Figura 2
Infográfico do Ingreso Ético Familiar: público-alvo e benefícios
Fonte: MDS-Ch, 2014.
143
Figura 3
Pilares e caráter das transferências do Ingreso Ético Familiar
Fonte: LARA & FLORES, 2014.
Elaboração própria.
Os benefícios monetários concedidos às famílias beneficiadas pelo IEF têm duração
de 12 a 24 meses, dependendo da situação da família, não podendo estender-se por mais
tempo. Os montantes recebidos por cada família variam em função de sua composição, do
cumprimento dos deveres e da obtenção dos êxitos, condicionantes ao recebimento de alguns
dos benefícios. Além disso, as famílias assistidas por este programa podem receber outros
auxílios monetários do Estado.
Os valores dos diferentes benefícios (bonos) possuem diversos critérios para sua
determinação. Segundo informações do MDS-Ch (2014), os bonos do pilar dignidade (bono
base familiar e bono de proteção), de caráter incondicional, são pagos mensalmente. O bono
base familiar não possui valor específico, pois seu cálculo engloba dados relativos aos
subsídios percebidos pela família, além de dados da Pesquisa CASEN e da FPS, o que
determina diferentes valores para cada família assistida. O bono de proteção, por sua vez, é
pago durante o período de execução do apoio psicossocial, por no máximo 24 meses, e
Ingreso Ético Familiar
1º pilar
Dignidade
Transferências não condicionadas:
A todas as famílias sob extrema pobreza
Bono base familiar
Bono de proteção
2º pilar
Deveres
Transferências condicionadas:
A famílias extremamente pobres, cujos filhos estejam com controle de saúde e frequência escolar em dia
Bono de saúde da criança
Bono de frequência escolar
3º pilar
Sucessos
Transferências condicionadas:
Aos 30% das famílias com menores rendas
Rendimento escolar
Trabalho da mulher
144
obedece a quatro faixas temporais e de valores. Assim, nos seis primeiros meses a família
recebe um montante mensal no valor de $14.834,0057; nos seis meses seguintes, $11.303,00;
entre o 13º e 18º mês, $7.770,00; e, nos últimos seis meses, $8.426,00. Em termos de salário
mínimo58, esses valores representam, respectivamente: 6,6%, 5%, 3,4% e 3,7%.
Por outro lado, os bonos do pilar dos deveres (saúde da criança e presença escolar),
de caráter condicionado, são destinados a famílias que participem do apoio psicossocial e
que possuam entre seus integrantes menores de 18 anos. O bono de saúde da criança é
direcionado a crianças menores de 6 anos de idade, sendo concedido somente mediante a
comprovação do cumprimento dos controles de saúde do menor. Já o bono de frequência
escolar destina-se aos membros da família, entre 6 e 18 anos de idade, que frequentem
estabelecimentos de ensino oficialmente reconhecidos e que comprovem frequência mínima
de 85% da carga horária escolar. Ambos os bonos têm periodicidade de pagamento mensal
e seus valores são de $7.000,00 por menor. Como percentual do salário mínimo chileno, em
2014, esse valor corresponde a 3,1%.
O terceiro pilar, o dos sucessos, outorga dois tipos de bonos de valorização do
esforço individual, o bono de rendimento escolar e o bono ao trabalho da mulher. De acordo
com o MDS-Ch (2014), o primeiro bono volta-se para famílias que tenham em sua
composição pessoas cursando entre o 5º ano básico e o 4º médio (do ensino chileno), que
pertençam aos 30% mais vulneráveis da população (de acordo com a Ficha de Protección
Social – FPS) e que se encontrem entre os 30% de melhor desempenho escolar. Este
benefício é pago uma vez ao ano e seu valor varia em função do referido desempenho. Deste
modo, do total de alunos, dentre os 30% mais vulneráveis da população, à metade com
melhor rendimento escolar cabe o benefício no valor de $51.500,00; à outra metade, o de
$30.900,00. Esses valores representam 22,9% e 13,7% do salário mínimo chileno,
respectivamente.
O bono ao trabalho da mulher, por seu turno, visa atender a mulheres inseridas no
mercado laboral, compreendidas na faixa etária de 25 a 59 anos e que se encontrem entre as
57 Pesos chilenos, em 2014.
58 O salário mínimo no Chile, referente ao segundo semestre de 2014, equivale a $225.000 (pesos chilenos).
Fonte: Luís Nassif Online (http://jornalggn.com.br/blog/frederico-fuellgraf/com-aumento-de-7-chile-paga-
segundo-melhor-salario-minimo-na-america-do-sul).
145
30 % mais vulneráveis da população, segundo a FPS. O valor deste bono não é fixo e seu
cálculo considera o nível de rendimentos da trabalhadora e o tempo proporcional a partir da
solicitação do benefício. Este benefício também abrange um subsídio que é concedido ao
empregador, com o intuito de estimular a contratação de mulheres pertencentes a segmentos
populacionais de maior vulnerabilidade social. A trabalhadora beneficiária pode perceber
este bono por até 4 anos consecutivos. O empregador, por outro lado, pode receber o subsídio
correspondente por no máximo 24 meses. O quadro 7 sintetiza os tipos de bonos e seus
valores correspondentes, bem como os critérios de concessão.
Quadro 7
Valores dos benefícios do Ingreso Ético Familiar – 2014
Pilar Bono Critério Valor
Dignidade
Base familiar Por família Variável
Proteção
Mês 1 a 6 $14.834,00
Mês 7 a 12 $11.303,00
Mês 13 a 18 $7.770,00
Mês 19 a 24 $8.426,00
Deveres
Saúde da criança Por criança menor de
6 anos de idade $7.000,00
Frequência escolar Por estudante menor
entre 6 e 18 anos $7.000,00
Sucessos Rendimento escolar
Primeira metade dos
alunos com melhor
rendimento
$51.500,00
Segunda metade dos
alunos com melhor
rendimento
$30.900,00
Trabalho da mulher Por trabalhadora Variável
Fonte: MDS-Ch, 2014.
Elaboração própria.
146
C) Condicionalidades
O IEF impõe condicionalidades para a concessão das transferências monetárias às
famílias em dois de seus pilares, o pilar dos deveres e o dos sucessos. O pilar da dignidade,
por sua vez, é incondicional, ou seja, as famílias não precisam cumprir qualquer
contrapartida para receber as prestações monetárias que lhes são correspondentes.
O quadro 8 apresenta esquematicamente as condicionalidades exigidas, em cada
pilar, como contraprestações no programa Ingreso Ético Familiar.
Quadro 8
Condicionalidades do Ingreso Ético Familiar
Pilar Benefício Condicionalidade
Dignidade
Bono base familiar Nenhuma
Bono de proteção Nenhuma
Deveres
Bono de saúde da
criança
Comprovação dos controles de saúde das crianças menores de 6
anos, mediante carnê de saúde em dia
Bono de frequência
escolar
Frequência mensal mínima de 85% da carga horária escolar, para os
menores de 6 a 18 anos
Sucessos
Bono de rendimento
escolar
Desempenho escolar com nota igual ou superior a 7,0, para
estudantes do 5º ano básico ao 4º médio e pertencentes aos 30%
mais vulneráveis da população
Bono ao trabalho da
mulher
Inserção no mercado de trabalho, para mulheres pertencentes às
30% mais vulneráveis da população
Fonte: MDS-Ch, 2014.
Elaboração própria.
147
As condicionalidades referentes ao pilar dos deveres centram-se nas áreas de
eduação e saúde do menor. Na área de educação, os menores entre 6 e 18 anos, das famílias
assistidas, devem possuir frequência mensal de 85% ou mais da carga horária escolar. No
âmbito da saúde, exige-se que a família atendida comprove, na esfera de seu município e
dentro dos períodos estabelecidos pelo MDS-Ch, os controles de saúde para os dependentes
menores de 6 anos, mediante a apresentação do carnê de saúde da criança em dia.
No pilar dos sucessos, para fazer jus às prestações monetárias equivalentes, as
condicionalidades requeridas concernem às áreas de educação e trabalho e direcionam-se
impreterivelmente às mulheres e aos estudantes pertencentes à parcela dos 30% mais
vulneráveis da população chilena. No campo da educação, exigem-se dos estudantes notas
iguais ou superiores a 7,0. No âmbito laboral, por seu turno, o requisito para concessão do
bono correspondente é a inserção no mercado de trabalho por parte da beneficiária.
2.3.4. Chile Solidario e Ingreso Ético Familiar em números
No que concerne à cobertura dos programas, segundo Larrañaga (2010), o Chile
Solidario alcançava, em 2008, um total de 309.388 famílias, podendo-se estimar um
contingente superior a 1,2 milhões de pessoas assistidas, se considerada uma média de quatro
membros por família. Ainda no âmbito do Chile Solidario, de acordo com Farías (2013),
foram pagos, no ano de 2010, 217 mil Bonos de Protección, sem contar com os subsídios
estatais a que os beneficiários do programa têm acesso prioritário. Podem-se observar, no
gráfico 14, a quantidade de Bonos de Protección pagos entre 2006 e 2010, no domínio do
Chile Solidario. Vale ressaltar que a partir de 2012, este bono passou a ser outorgado no
âmbito do programa Ingreso Ético.
O IEF, por sua vez, atingia, em 2012, o contingente de 640.000 pessoas
beneficiárias, que corresponde a cerca de 80% da população que vive em condição de
extrama pobreza no país (FARÍAS, 2013).
Conquanto não haja muitos dados disponíveis nos sítios oficiais do país acerca dos
programas chilenos, realizou-se aqui um esforço para dimensioná-los. Não raramente, as
148
informações empregadas a respeito do Chile e seus programas advêm de fontes não
domésticas ou de estudos empreendidos por organizações multilaterais.
Gráfico 14
Bonos de protección – Chile Solidario (2006-2010)
Fonte: FARÍAS, 2013.
2.3.5. Impactos dos programas chilenos
Semelhantemente à subseção anterior, também, e principalmente, quanto aos
impactos dos programas, a disponibilidade de informações é exígua. O trabalho de Farías
(2013), contudo, apresenta alguns dados acerca da condição de pobreza e indigência da
população e, ainda, acerca do potencial efeito dos programas no grau de desigualdade. Esses
dados estão sintetizados no gráfico 15.
Neste gráfico, é possível notar uma aceleração no declínio do percentual da
população sob pobreza, implicando uma queda de 38,5%, entre 2003 e 2009. O percentual
de indigentes também declinou no mesmo período, mas foi uma redução mais modesta, da
ordem de 23,4%. O referido período corresponde à implementação do Chile Solidario e
pode-se considerar que este programa operou efeitos positivos nesse processo de redução da
pobreza, posto que à época alcançava mais de um milhão de beneficiários, dos quais cerca
de 58% pertenciam aos 20% mais pobres da população total (FARÍAS, 2013). Obviamente,
o IEF não está retratado nos dados, uma vez que fora implantado somente em 2012, enquanto
os dados se limitam a 2009.
183
202 205
218 217
2006 2007 2008 2009 2010
Em milhares
149
Gráfico 15
População em condição de pobreza e indigência e Coeficiente de Gini (1990-2009)
Fonte: FARÍAS, 2013.
Quanto à desigualdade, o gráfico mostra que o Gini sofreu um importante declínio
entre 2000 e 2006. Porém, o Coeficiente de Gini de renda primária (Gini ingreso primario)
voltou a aumentar, a partir de 2006. Como Farías (2013, p.11) esclarece, este coeficiente não
considera as transferências e subsídios sociais estatais. Por outro lado, o Coeficiente de Gini
de renda total – que engloba todas as rendas, inclusive as transferências e subsídios pagos
pelo Estado – não sofreu aumento a partir de 2006. Isto significa que as transferências sociais
do governo, mediante os bonos do Chile Solidario e os subsídios sociais, impediram um
agravamento da desigualdade de renda no período.
Enfim, à semelhança do Brasil e da Argentina, a despeito dos efeitos percebidos
quanto à redução da pobreza e dos impactos em alguns de seus determinantes, também o
Chile possui um longo caminho a percorrer. Esses países ainda detêm um elevado percentual
de suas populações sob pobreza, alto grau de desigualdade de renda e disparidades regionais,
assim como falhas no acesso pleno aos serviços e instrumentos de proteção social.
150
3. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE RENDA SOB
PERSPECTIVA COMPARADA
O objetivo deste terceiro capítulo é realizar uma análise comparativa dos PTCR
apresentados ao longo deste estudo. Busca-se cotejar os diferentes aspectos dos programas
considerados, bem como os contextos específicos sob os quais emergiram e as trajetórias
diversas que eles seguiram desde sua implantação. Além disso, pretende-se embasar a
discussão e análise a respeito da nova configuração que estes programas tenham potencial
ou efetivamente incitado na proteção social latino-americana.
Para alcançar as pretensões expostas, o capítulo foi organizado em duas seções. Na
primeira seção, realizam-se comparações entre diversos elementos dos PTCR do Brasil,
Argentina e Chile, descritos no capítulo 2, identificando e analisando as similitudes e
divergências existentes entre eles. A saber, os elementos cotejados são: ano e motivação da
criação, marco legal, abrangência territorial, caráter das transferências, natureza legal, órgão
responsável e lugar ocupado no sistema de proteção, mecanismos e critérios de seleção,
operacionalidade, maior ou menor foco na infância, tempo de permanência, objetivo
principal enfatizado, público-alvo, valores das transferências, valor do benefício como
percentual do salário mínimo de cada país, condicionalidades, existência ou ausência de
componentes não condicionados de transferência monetária, gasto fiscal com o programa
em relação ao PIB e, finalmente, cobertura.
Na seção seguinte, busca-se discutir e cotejar a introdução dos PTCR nos três países
em estudo e seus impactos sobre os respectivos sistemas de proteção social. Procura-se
identificar a ocorrência, ou a falta dela, de uma mudança substantiva na lógica dos referidos
sistemas. Uma vez que já se tenham apresentado os sistemas de proteção social (capítulo 1
– seção 6), assim como os PTCR de cada país (capítulo 2) e que também já se tenha operado
uma análise comparativa entre eles (capítulo 3 – seção 1), é lícito realizar uma discussão
acerca desses aspectos, no intuito de responder à pergunta inicialmente formulada nesta
dissertação.
151
3.1. Análise Comparativa
Após a descrição dos PTCR dos países em exame, realizada no capítulo 2, convém
empreender uma análise comparativa pormenorizada, embora não exaustiva, entre tais
programas, na tentativa de esboçar um panorama acerca de sua situação e deste tipo de
política pública no contexto contemporâneo da América Latina. Deste modo, analisam-se,
nesta parte, os programas59 Bolsa Família (PBF), Asignación Universal por Hijo (AUH) e
Ingreso Ético Familiar (IEF), para o Brasil, Argentina e Chile, respectivamente.
Hodiernamente, os PTCR constituem, em diversos países latino-americanos, um
componente fundamental de suas políticas sociais. Esses programas são distintos em alguns
de seus elementos, como desenho institucional, operacionalização, critérios de acesso e
elegibilidade, nível de benefícios e cobertura, grau de institucionalidade e quanto à
legislação que os fundamenta. Por outro lado, eles se aproximam em função de seus
objetivos principais e detêm certos elementos cruciais que os caracterizam.
Como elucida Soares (2010, p.174), os PTCR:
(...) são claramente identificados por seus dois objetivos – alívio da pobreza em
curto prazo e quebra da transmissão intergeracional da pobreza em longo prazo –
e por três características básicas: i) a existência de mecanismos de focalização; ii)
a exigência de contrapartidas, por parte das famílias, para que possam receber o
benefício, as chamadas corresponsabilidades, mormente nas áreas de saúde e
educação, para estimular a acumulação de capital humano das crianças; e iii) o
fato do benefício ser pago em dinheiro e não em espécie. A esse conjunto de
características podem-se somar as seguintes especificidades que estão inter-
relacionadas: o fato do titular do benefício ser, em geral, a mãe ou a mulher
responsável pela criança e um foco no bem-estar das crianças.
O PBF, a AUH e o IEF emergem no contexto do que se pode chamar de segunda
geração dos PTCR, vigente a partir dos anos 2000, quando esse tipo de política angaria um
caráter massivo em oposição à natureza segmentada e restritiva que a maioria dos PTCR
então existentes possuíam na década de 1990.
Dentre os três programas ora considerados, o PBF é o precursor, sendo criado em
2003, pela Medida Provisória 132, convertida na Lei 10.836 em 2004. Sua criação prestou-
59 No caso da Argentina, optou-se, nesta parte, pela AUH em detrimento da AEPS, por ser o primeiro um
programa mais representativo dentro do subsistema de asignaciones no qual ambos estão inseridos. Já no caso
chileno, escolheu-se o IEF em detrimento do Chile Solidario, em função deste último não se constituir em um
PTCR propriamente dito, como já salientado na terceira seção do capítulo 2.
152
se a unificar quatro programas federais de transferência de renda então existentes, que eram
segmentados ou coincidentes tanto em sua operacionalização quanto no atendimento do
público-alvo, ocorrendo muitas vezes sobreposição de objetivos, má focalização e, em
consequência, desperdício de recursos. Como já destacado anteriomente na dissertação, o
intento mais amplo da unificação operada pelo PBF foi o de conservar um PTCR único no
país, apto a articular as ações e programas sociais então implantados nas diferentes esferas
de governo (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2012, p.142). Porém, merece relevo o fato de
que a criação do PBF promoveu muito mais do que apenas a unificação dos remanescentes,
pois ele, além de unificar esses programas, estendeu a cobertura a todo o país. Ademais,
através do PBF foi introduzido um componente de transferência sem condicionalidade, o
Benefício Básico. Outro aspecto extremamente relevante é que o PBF não determina o
destino que a família deve dar ao dinheiro recebido – como acontecia com o Auxílio Gás,
por exemplo; a família tem autonomia para gastar o benefício da maneira que melhor lhe
atender.
No caso argentino, a AUH foi criada em 2009, pela Lei 1.602, mas sob outra
motivação. Inserida no contexto de retomada pelo Estado da responsabilidade de promover
a proteção social, a partir de fins de 2008, a criação da AUH tem seu fundamento em uma
concepção de direito. Este programa constitui-se como uma extensão do direito ao
recebimento de um benefício estatal a todas as crianças e adolescentes do país, de maneira a
efetivar a proteção integral aos direitos da infância, preconizada pela Lei 26.061, instituída
no país em 2005. O regime de Asignaciones Familiares até então existente privilegiava
apenas os dependentes menores ou incapacitados de responsáveis inseridos no mercado
formal de trabalho, relegando tal direito a todas as crianças cujos pais não se encontrassem
nessa situação. A partir da criação da AUH, os dependentes menores ou incapacitados, cujos
responsáveis estejam desempregados, trabalhem no setor doméstico ou atuem no mercado
informal de trabalho (desde que não detenham rendimento mensal superior a 1 salário
mínimo argentino), passaram a ter também direito à asignación. Deste modo, ao estender o
direito de recebimento da asignación aos menores dependentes de pais não inseridos no
mercado formal, a Argentina forjou uma universalidade na assistência à infância no país,
ainda que sob uma política focalizada.
O Ingreso Ético Familiar, por seu turno, foi criado em 2012 através da Lei 20.595.
Este programa é derivado de uma política de transferência de renda de caráter excepcional,
153
denominada Bono de Apoyo a la Familia, que teve lugar no Chile em 2009, como forma de
amenizar o recrudescimento da pobreza diante do abalo econômico que estremecera o país,
em função da crise financeira mundial iniciada no ano anterior. Ademais, o IEF absorveu o
componente de transferência monetária do Chile Solidario, o Bono de Protección, que
passou a ser realizado em seu âmbito, junto com outros benefícios que compõem o programa.
O IEF, em relação ao Chile Solidario, amplia significativamente o tipo e o valor das
transferências monetárias (CECCHINI; FARÍAS; VARGAS, 2012).
Todos os três programas em questão – PBF, AUH e IEF – constituem políticas
focalizadas em segmentos pauperizados da população e impõem algumas condicionalidades,
que funcionam como contraprestações para o recebimento integral das transferências
monetárias. Outrossim, eles possuem abrangência nacional e são políticas sociais de caráter
não contributivo. Para além dessas características, esses três programas, enquanto programas
de transferência condicionada de renda, apresentam dois objetivos precípuos, como
previamente destacado, segundo Soares (2010), quais sejam, promover o alívio (ou redução)
da pobreza vigente, no curto prazo, e favorecer a quebra do círculo vicioso da pobreza (ou
sua transmissão intergeracional), mediante o fomento ao acúmulo de capital humano das
crianças pobres, no longo prazo. Contudo, cada programa pode conceder maior ênfase a
determinado objetivo, o que é possível verificar através das diferenças em seus desenhos
institucionais.
Quanto à gestão dos programas, tanto o PBF quanto o IEF estão inseridos no âmbito
dos respectivos ministérios de desenvolvimento social de seus países. Esses ministérios são
responsáveis pelas políticas e ações socioassistenciais implantadas em nível federal pelos
respectivos governos brasileiro e chileno. Logo, os referidos programas integram o domínio
da Assistência Social, dentro do sistema de proteção social vigente em cada país. A AUH,
contudo, difere neste ponto, pois sua gestão cabe à ANSES, órgão responsável pela
seguridade social e previdência na Argentina. Portanto, a AUH está situada na esfera
previdenciária dentro da proteção social do país. Esta localização dos programas é relevante,
pois indica a natureza que eles possuem na proteção social. Por um lado, o PBF e o IEF,
vinculados à Assistência, são políticas sociais que não constituem um direito exigível por
todos aqueles que se enquadrem nos critérios de elegibilidade, pois esse programas
dependem de adesão, seleção e recursos orçamentários por parte do ente promotor/gestor.
154
Por outro, a AUH, enleada à Previdência, constitui-se em um direito que, consequentemente,
é passível de ser exigido por todos que atendam aos critérios de elegibilidade.
Uma vez que o PBF e o IEF não são direitos, mas políticas de assistência e que
dependem de recursos orçamentários para seu funcionamento, seus beneficiários efetivos
são selecionados dentre os indivíduos ou famílias elegíveis. Para o PBF, a seleção ocorre por
intermédio do Cadastro Único (CadÚnico), um banco de dados federal onde famílias em
situação de vulnerabilidade são identificadas e registradas para fins de atendimento em
programas e ações socioassistenciais diversas. No caso do IEF, o instrumento pelo qual
ocorre a seleção de beneficiários é a Ficha de Protección Social (FPS), que, à semelhança
do CadÚnico, também presta-se a identificar e registrar as famílias e indivíduos socialmente
vulneráveis do país. Distinta é a situação quanto ao acesso à AUH. Como se trata de um
direito, todos aqueles elegíveis podem solicitar o recebimento do benefício, bastando para
isso que estejam com seus dados familiares e domiciliares atualizados junto à ANSES.
No que concerne à operacionalização dos programas, o PBF e o IEF assemelham-
se. Ambos os programas são operacionalizados de forma descentralizada, em nível dos
municípios. A AUH, opostamente, tem sua operacionalização centralizada, em âmbito
federal pela ANSES.
O público-alvo desses programas não são exatemente os mesmos, embora integrem
ou constituam os segmentos mais pauperizados da população. O PBF e o IEF enfatizam os
critérios de renda e de condição socioeconômica para delimitar sua assistência, atendendo a
públicos sob indigência, pobreza ou vulnerabilidade. Já a AUH considera a condição laboral
como balizador de seu público, abrangendo desempregados e trabalhadores do setor
doméstico ou em informalidade. Todos os programas são voltados às famílias, enquanto
categoria de assistência. Todavia, o IEF também considera o indivíduo como categoria.
Há, enquanto característica adicional de grande parte dos PTCR atualmente
existentes na América Latina, conforme assinalado anteriormente, um foco no atendimento
à infância. O PBF e a AUH possuem este foco claramente exposto, enquanto o IEF, por outro
lado, não o enfatiza, apesar de também assistir crianças e adolescentes. O foco no
atendimento à infância indica uma maior preocupação com o objetivo de romper a
transmissão intergeracional da pobreza, ou o seu círculo vicioso, mediante a acumulação de
capital humano, que se pretende operar nas crianças e adolescentes através das
155
condicionalidades, principalmente em educação. Deste modo, pode-se considerar que tanto
o PBF quanto a AUH enfatizam este objetivo em seus desenhos institucionais. Além disso,
outro elemento importante de seus desenhos aponta para esta preocupação. Trata-se do
tempo de permanência no programa, que é de no mínimo 2 anos para o PBF (renováveis por
outros iguais períodos) e indeterminado para a AUH, evidenciando uma ênfase de mais
longo prazo em suas estratégias de combate à pobreza. O IEF, ao contrário, não possui um
foco explícito no atendimento à infância, embora almeje estimular o acúmulo de capital
humano nas crianças através de suas condicionalidades na área de educação. Porém, o tempo
de permanência no programa, que é de no máximo 2 anos, é exíguo para pautar uma
estratégia de longo prazo como a requerida a uma pretensa “quebra” da transmissão
intergeracional da pobreza. Ademais, o principal elemento do programa compreende um
plano de estratégias e metas – o Plan de Intervención – pelo qual as famílias devem realizar
“por si mesmas” os esforços para a melhoria de sua situação socioeconômica. Este plano
constitui um elemento de relativo curto prazo, com foco na (re)inserção produtiva e laboral
dos membros da família. Por conseguinte, o IEF afigura-se como um programa cuja
preocupação maior parece ser o auxílio imediato às famílias durante o período no qual elas
estejam se “recuperando” ou buscando esta recuperação.
Obviamente, a existência de uma maior ênfase em determinado objetivo não exclui
a preocupação com o outro. Os PTCR caracterizam-se justamente por possuírem esses dois
objetivos precípuos – alívio/redução da pobreza vigente e quebra de sua transmissão
intergeracional. Contudo, pode ocorrer, e a opinião ora exposta é de que ocorre, certa
prioridade ou ênfase em um desses objetivos, sem prejuízo absoluto do outro, o que se
evidencia por alguns elementos do desenho institucional dos programas, como apontado.
Os valores dos benefícios concedidos não são idênticos para todas as famílias
assistidas pelos programas em questão. No caso do PBF e da AUH, o benefício total pago à
família beneficiária relaciona-se diretamente à sua composição familiar e também à sua
renda. Outrossim, o IEF também considera a composição familiar e a renda para a formação
do montante a ser pago. No entanto, este programa “bonifica” ainda os méritos (ou
êxitos/sucessos) obtidos pelas famílias, de maneira que o valor final do benefício possui um
determinante a mais em relação aos outros programas. De modo geral, para os três programas
ora tratados, quanto maior for a quantidade de filhos menores dependentes (até certo
156
número-limite) e quanto menor for a renda familiar, maior será o montante transferido à
família.
No que concerne ao valor relativo dos benefícios, a Argentina lidera, pois outorga
prestações monetárias cujos montantes são superiores aos concedidos pelo Brasil e Chile.
Considerando-se, por exemplo, o benefício mínimo que uma família pode receber em cada
programa, o PBF outorgaria o valor de R$35,00 (equivalente a 01 Benefício Varíavel,
vinculado à criança de até 15 anos, à gestante ou à nutriz); a AUH, $644,0060 (correspondente
a 01 benefício por dependente menor); e o IEF, $7.000,0061 (relativo a 01 benefício por
frequência escolar ou 01 benefício por controle da saúde da criança). Como proporção do
salário mínimo vigente (em 2014) em cada país, esses valores correspondem a 4,8% (salário
mínimo equivalente a R$724,00), no caso do Brasil; 17,9% (salário mínimo equivalente a
$3.600,00), no caso da Argentina; e 3,1% (salário mínimo equivalente a $225.000,00), no
caso do Chile. Em dólares, os referidos valores equivalem a US$13,48 (PBF), US$74,78
(AUH) e US$11,14 (IEF). Se a taxa de inflação nesses países fosse idêntica, obviamente, o
programa argentino seria o de maior influência na redução e alívio da pobreza, o que só
ratifica a importância da conjuntura macroeconômica. Porém, à parte esta questão (ainda que
importante, mas que exigiria uma análise distinta da que aqui se propõe), a superioridade
relativa do valor dos benefícios da AUH parece indicar uma maior preocupação em outorgar
às famílias beneficiárias uma renda mais próxima de uma renda de cidadania, menos distante
do mínimo atribuível a qualquer trabalhador do país. Enquanto que no PBF o máximo que
uma família beneficiária pode receber corresponde a 46% do salário mínimo brasileiro, na
AUH, este valor é de quase 90% do salário mínimo argentino, podendo mesmo ultrapassá-
lo se houver dependente incapacitado na família.
Os benefícios pagos, em geral, estão associados ao cumprimento de algumas
condicionalidades, as quais desempenham o ofício de contraprestações, pois precisam ser
devidamente realizadas e comprovadas para que o usuário faça jus ao recebimento integral
da prestação monetária. As condicionalidades exigidas pelos três programas em exame
centram-se nos campos de educação e saúde, conquanto haja outras áreas contempladas,
como a assistência social, no caso do PBF, e trabalho, para o IEF. Entretanto, nos três
60 Pesos argentinos.
61 Pesos chilenos.
157
programas existe um componente não condicionado de transferência, ou seja, que não requer
o cumprimento de uma contraprestação. Este componente designa-se às famílias em extrema
pobreza, tanto no PBF quanto no IEF. Já para a AUH, este componente não condicionado
está inserido na própria prestação, uma vez que 20% do valor mensal do benefício devido
aos usuários, são retidos e somente podem ser recebidos sob comprovação das
condicionalidades exigidas. Assim, 80% do valor do benefício da AUH é incondicional.
Cabe frisar, todavia, que as condicionalidades em alguns programas sujeitam não apenas o
recebimento da prestação monetária como também a própria permanência no programa,
como é o caso do PBF.
Enfim, o quadro 9 sintetiza os elementos dos programas discutidos nesta parte,
procurando oferecer um panorama geral a respeito deste tipo de política pública, na América
Latina. Certamente, esses programas não encerram as diferentes arquiteturas que os PTCR
podem assumir, e assumem, nos vários países da região onde estão implantados, mas
expressam modelos diferentes de uma mesma categoria ou instrumento de política social,
favorecendo o reconhecimento de seus elementos característicos e a identificação das formas
distintas como eles podem estar relacionados no sistema de proteção social dos países.
Além dos elementos basilares constitutivos de seus desenhos institucionais, outros
aspectos relevantes que devem ser incorporados à análise comparativa concernem ao
tamanho e à cobertura dos programas tratados. Em seu relatório sobre a proteção social no
mundo, para o biênio 2014/2015, a OIT (2014, p.20) apresenta o nível de gasto (como
percentual do PIB) e a proporção da população (em percentual de indivíduos e de lares)
assistida por algum PTCR de caráter não contributivo, para determinados países latino-
americanos. A OIT empregou informações disponibilizadas na base de dados da CEPAL,
utilizando as informações para os últimos anos disponíveis. Sendo assim, no que interessa à
análise ora realizada, os dados do Brasil e da Argentina referem-se ao ano de 2012 e do
Chile, aos anos de 2011 e 2012. Tais informações são expostas no gráfico 16. Destacam-se,
em amarelo, os países ora examinados – Brasil, Argentina e Chile – e seus PTCR.
158
Quadro 9
Panorama dos PTCR do Brasil, Argentina e Chile
País Brasil Argentina Chile
Programa PBF AUH IEF
Criação 2003 2009 2012
Marco legal MP 132/2003
Lei 10.836/2004
Lei 1.602/2009 Lei 20.595/2012
Abrangência Nacional Nacional Nacional
Caráter Não contributivo Não contributivo Não contributivo
Natureza Não direito Direito Não direito
Órgão responsável MDS ANSES MDS-Ch
Seleção CadÚnico Não há FPS
Operacionalização Descentralizada, em nível
dos municípios
Centralizada, em nível
federal
Descentralizada, em nível
dos municípios
Público-alvo Famílias pobres e
extremamente pobres,
segundo as linhas de
pobreza e extrema
pobreza definida para o
PBF
Famílias que possuam
menores ou
incapacitados
dependentes de
trabalhadores
desempregados, do setor
doméstico ou do
mercado informal de
trabalho
Famílias extremamente
pobres, pessoas e
famílias sob
vulnerabilidade
Foco na infância Sim Sim Não
Tempo de
permanência
Mínimo de 2 anos Não definido Máximo de 2 anos
Objetivo
enfatizado
Quebra do círculo vicioso Quebra do círculo vicioso Alívio da pobreza
Valores dos
benefícios
Variam de acordo com a
renda e a composição
familiar
Variam de acordo com a
renda e a composição
familiar
Variam de acordo com a
renda, a composição
familiar e a obtenção de
“êxitos”
Condicionalidades
Áreas de educação, saúde
e assistência social
Áreas de educação e
saúde
Áreas de educação, saúde
e trabalho
Componente
incondicional
Sim – Benefício Básico Sim – 80% do benefício Sim – Pilar Dignidade
Fonte: MDS, 2014d; MDS, 2014e; BRASIL, 2003; BRASIL, 2004; ANSES, 2013; ANSES, 2014; ANSES,
2014c; ARGENTINA, 2009; MSAL, 2013; LARA & FLORES, 2014; LARA & FLORES, 2014b;
LARRAÑAGA, 2010; MDS-Ch, 2014; CHILE, 2012.
Elaboração própria.
159
Gráfico 16
Nível de gasto e proporção da população atendida por PTCR não contributivo, em países
selecionados da América Latina – 2012*
*No caso do Chile, os dados são referentes aos anos de 2011 e 2012.
Fonte: OIT, 2014.
Segundo o gráfico 16, o nível de gasto empreendido pelo PBF foi de 0,47% do PIB
brasileiro. A esse nível de gasto, o PBF conseguiu atender, no mesmo ano considerado, cerca
de 30% da população total e de 25% dos domicílios do país. A Argentina, por sua vez, possui
um gasto relativo à AUH de 0,54% de seu PIB, contra uma cobertura que se aproxima a 9%
da população e a cerca de 15% das residências do país. Essa diferença – maior nível de gasto
em relação ao PIB associado a uma cobertura menor da população – entre o PBF e a AUH
explica-se pelo valor monetário superior dos benefícios relativos à AUH e a um percentual
menor da população dentro dos critérios de elegibilidade. Enquanto uma família beneficiária
da AUH pode perceber um benefício total de até $3.220,0062 (se possuir o número-limite de
62 Pesos argentinos.
160
5 dependentes menores, não considerando incapacitados, o que perfaria um montante maior),
valor que corresponde a 89,4% do SMVM (Salario Mínimo Vital y Móvil – o salário mínimo
argentino) em 2014, uma família beneficiária do PBF contaria com um benefício máximo
de R$336,00 (desde que classificada como extremamente pobre, montante equivalente ao
Benefício Básico somado ao valor máximo atribuível à composição familiar – pelo menos 5
membros entre crianças, gestantes e nutrizes, mais 2 adolescentes de 16 ou 17 anos), valor
total correspondente a 46,4% do salário mínimo brasileiro, em 2014 (caso tais famílias
superem a linha de extrema pobreza a partir destas transferências, do contrário, cada família
recebe um acréscimo de renda, correspondente ao BSP, para ultrapassar tal linha). Em
dólares, o valor máximo referente à AUH equivale a US$376,00 e o referente ao PBF, a
US$124,00, o que perfaz um montante mais de três vezes inferior ao primeiro.
O IEF está representado junto com o Chile Solidario, nos dados referentes ao gasto
dos programas e à cobertura. Assim, o Chile apresenta, para essas duas políticas somadas,
um de 0,29% de seu PIB e uma cobertura que compreende cerca de 9% dos domicílios e
11% da população. Dentre os três países ora tratados, é o Chile que detém o menor dispêndio
(como proporção do PIB) com seus programas de transferência condicionada, mas também
é aquele que exibe a menor cobertura. O Brasil é o país que apresenta a melhor relação gasto
x cobertura, exibindo um bom equilíbrio entre ambos os elementos.
Em síntese, o rol de elementos apontados e cotejados dos programas em foco –
PBF, AUH e IEF – evidencia que eles detêm diferentes conformações e divergem em certos
aspectos de seus desenhos institucionais. Entretanto, eles possuem os componentes
constitutivos fundamentais característicos deste gênero de política, que são: a focalização na
parcela mais pauperizada da população, as transferências monetárias e as condicionalidades
em educação e saúde para o recebimento das prestações e, em certos casos, a permanência
no programa. Ademais, também evidenciam-se importantes pontos de similitude entre eles,
como o caráter não contributivo de seus benefícios e a existência de um componente não
condicionado de transferência.
161
3.2. A proteção social e a inserção dos PTCR
Embora não tenha chegado à edificação de um Estado Social na América Latina
análogo ao modelo europeu, a proteção social que emergiu no continente latino vocacionava-
se nos parâmetros do referido modelo, quais sejam, universalidade e incondicionalidade,
pois, como lembrava Castel (2011b), já referido no capítulo 1, a diferença entre os sistemas
europeu e latino-americano parecia ser mais de grau do que de natureza.
Segundo Mattei (2010), procurou-se construir na América Latina uma proteção de
caráter universal e incondicional. Apesar dessa aspiração, o que acabou se constituindo foi
uma proteção parcial, que não alcançou verdadeiramente a universalidade. Isto porque, na
América Latina, ao contrário da Europa Ocidental, não se formou uma sociedade salarial
plena. Considerando-se que o Welfare State fundamentara-se sobre as bases do estatuto do
emprego, de uma sociedade onde o assalariamento se consolidou, isto é, onde se estruturou
uma sociedade salarial de fato, é nítido o porquê da distância entre a proteção aqui construída
e o seu modelo “ideal”. No continente latino, como característica estrutural, o mundo do
trabalho sempre foi segmentado e marcado por altas taxas de informalidade e desocupação.
A proteção social nas sociedades latino-americanas foi erigida para o mercado formal de
trabalho, do qual grande parte da população do continente não fazia e não faz parte. Em vista
disso, o social na América Latina nunca conseguiu ser efetivamente universal.
Persistia a aspiração à universalidade, porém, como argumentam Silva, Yazbek e
Giovanni (2012), tal pretensão foi colocada de lado, quando do assentamento da doutrina
neoliberal no continente, a partir da década de 1980, mas, principalmente, nos anos de 1990.
Em muitos países latinos, o social era ainda bastante embrionário quando o afluxo neoliberal
de privatização se fez sentir. Os sistemas mais frágeis cederam à mercantilização de suas
proteções. Nesses sistemas, quando os PTCR são introduzidos (a partir de meados da década
de 1990, mas principalmente nos anos 2000), como instrumento de combate à pobreza, eles
assumem um papel destacado como política pública e impõem sua conformação como nova
configuração do social. Há, portanto, uma alteração da lógica da proteção nesses países, onde
o social é parcial ou totalmente mercantil. Ao Estado cabe voltar-se aos cuidados com os
inválidos, se miseráveis, e aos miseráveis, se válidos, mas a estes últimos o fará por meio
dos PTCR, condicionando a concessão de seus benefícios.
162
A introdução dos PTCR equivale à inserção de uma outra lógica na concessão das
proteções na América Latina. Enquanto que a lógica prévia, a do Estado Social, tem por
parâmetros a universalidade, incondicionalidade e cidadania; esta outra lógica, a dos PTCR,
pauta-se na focalização, condicionalidade e necessidade. O ponto é se a introdução desta
outra lógica anula, altera ou apenas coabita com a lógica precedente. Como já indicado, no
caso de alguns países do continente, a introdução da nova lógica altera a antiga. Entretanto,
esse não é o caso dos países aqui examinados.
Para o Brasil, Argentina e Chile, a inclusão dos PTCR não determinou uma
substituição de outros componentes do social; ao contrário, esse tipo de programa opera de
maneira complementar aos sistemas. No caso do Brasil, o PBF abrange populações que
geralmente não são contempladas pela proteção clássica, uma vez que esta, como já
ressaltado, direciona-se essencialmente a trabalhadores com vínculos formais ou
contributivos. Trabalhadores informais ou precarizados, assim como suas famílias, não têm
acesso a rendas substitutivas. Neste sentido, programas de transferência não contributiva,
como o PBF, promovem uma garantia de renda mínima de subsistência. Mesmo se
considerada a área da Saúde, sendo de acesso universal e gratuito, com frequência seus
serviços não chegam a certas populações muito pauperizadas e residentes em regiões pobres.
No entanto, através do PBF pode ser possibilitado um melhor acesso a essas populações,
posto que um de seus componentes fundamentais trata-se justamente das condicionalidades
em saúde, que exigem contrapartidas das famílias, bem como, o que é crucial para a
ampliação da oferta, a responsabilização do poder público em promover as condições
necessárias para que as famílias tenham acesso ao sistema e possam realizar as
condicionalidades requeridas. O social no Brasil permanece pautado sobre um sistema
essencialmente público, com participação privada complementar ou concorrencial,
atendendo nos ramos de previdência, saúde e assistência. Com a introdução de um
instrumento de transferência condicionada, representado pelo PBF, adiciona-se ao sistema
de proteção um componente de assistência a famílias não cobertas, ou com acesso precário,
aos demais componentes do social. Portanto, não há uma mudança na natureza própria do
sistema.
De modo similar, o programa argentino, a AUH, também funciona como um
complemento ao sistema de proteção social do país. Tal programa é voltado especificamente
para aquelas famílias desvinculadas do mercado formal e que, por isso, não tinham acesso a
163
determinados mecanismos de proteção. Também neste caso, à semelhança do Brasil, a AUH
é complementar ao sistema e não substitutiva. No entanto, há uma diferença fundamental
entre o PBF e a AUH. O primeiro está inserido no ramo da Assistência e sua natureza legal
é de um não direito, funcionando como uma política pública não contributiva. O segundo,
diferentemente, consiste em um direito exigível e está configurado no ramo previdenciário.
Desta forma, a AUH, vis-à-vis o PBF, encontra-se melhor institucionalizada no sistema de
proteção social de seu país. Assim, nota-se que a introdução de um PTCR na Argentina, a
AUH no caso, não alterou a natureza do social em si. A proteção no país manteve sua
estrutura e seus parâmetros gerais, muitos deles recuperados com a (re)estatização de parte
do sistema operada em 2008.
Quanto ao Chile, sua proteção social é distinta em relação aos outros dois países
tratados, pois é de caráter misto, isto é, com simultânea promoção estatal e privada de
mecanismos de proteção. O Estado oferta proteções principalmente às populações mais
pauperizadas e também àquelas que não têm acesso aos meios e serviços oferecidos pelo
mercado. Neste sentido, o PTCR existente no país – o IEF, no caso – efetiva mais um tipo
de política estatal focalizada nessas populações. É, portanto, um complemento ao sistema,
não alterando substancialmente sua natureza. Se houve alteração na natureza da proteção
chilena, esta foi operada antes da introdução dos PTCR, quando da privatização de parte de
seu sistema, na década de 1980, pela reforma neoliberal então realizada.
Há, portanto, uma coexistência, no caso dos três países tratados, entre políticas de
caráter universal e políticas de caráter focalizado. A inclusão dos PTCR não significou uma
mudança substantiva na natureza do social nesses países. Configurou, de fato, um tipo de
proteção híbrida, mesclando-se o público e o privado, o universal e o focalizado, o
incondicional e a contraprestação, o direito e o obséquio.
Por outro lado, pode-se considerar que, concernente a uma outra considerável parte
da região latino-americana (principalmente, nos países mais pobres onde os sistemas de
proteção social, mesmo antes das reformas, eram muito embrionários e frágeis) tal alteração
ocorreu ou é mais pronunciada.
164
4. AS CONDICIONALIDADES E OS OBJETIVOS DOS PTCR: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
Neste último capítulo, discorre-se acerca das condicionalidades – enquanto
característica medular da arquitetura dos PTCR – e dos dois objetivos principais que este
tipo de programa almeja. O objetivo, então, é realizar uma análise adicional, pontuando
algumas considerações acerca desses elementos (condicionalidades e objetivos principais),
por considerá-los de crucial relevância no desenho dos PTCR.
Duas seções compõem o presente capítulo. A primeira é dedicada ao debate a
respeito das condicionalidades exigidas pelos PTCR, no papel que desempenham como
contraprestações obrigatórias para o recebimento do benefício monetário. A partir das
condicionalidades, impõe-se a discussão acerca do processo de permuta que a
contraprestação determina, uma vez que por ela se estabelece uma espécie de
mercantilização do social, onde a lógica de mercado insere-se em seu domínio, sob um
sistema de “toma lá, dá cá”. Por outro lado, discute-se também o objetivo perseguido pelas
condicionalidades (segundo a concepção de seus proponentes), qual seja, romper a
transmissão intergeracional da pobreza, ou o seu “círculo vicioso”, mediante o acúmulo de
capital humano nas crianças e adolescentes das famílias assistidas, de forma que, no futuro,
elas superem a condição de pobreza na qual suas famílias se encontram hodiernamente. Esta
concepção entende que a pobreza é determinada pela baixa escolaridade dos chefes das
famílias pobres e que o aumento da escolaridade das crianças de hoje permitiria que elas se
tornassem adultos não pobres amanhã. Em suma, as condicionalidades nos PTCR enfatizam
a educação como um determinante da pobreza e o mérito, no lugar da cidadania, como
condição para recebimento integral do benefício.
A seção seguinte apresenta e analisa dados sobre os dois principais objetivos
almejados pelos PTCR, que são a diminuição da pobreza vigente e sua superação
intergeracional. Discutem-se esses objetivos a partir do enfoque temporal que pressupõem:
de curto prazo, no intuito de promover a diminuição da pobreza vigente; e de longo prazo,
no intento de alcançar a superação da pobreza, através do rompimento de sua transmissão
entre gerações.
165
4.1. As condicionalidades e a mercantilização do social
Uma das características fundamentais dos PTCR – além da focalização nos
segmentos mais pauperizados da população e das transferências em dinheiro – consiste
justamente na existência de condicionalidades enleadas ao pagamento das prestações
pecuniárias. As condicionalidades correspondem a certas contrapartidas impostas às famílias
atendidas, cujo cumprimento é compulsório para o recebimento da transferência e, em alguns
casos, também para a permanência no programa. Como já explicitado em diversas
oportunidades ao longo do trabalho, as condicionalidades desempenham o papel de
contraprestações, pois a percepção (parcial ou integral) do benefício condiciona-se ao
cumprimento e comprovação dessas “corresponsabilidades” ante os órgãos encarregados de
controlá-las.
De acordo com a noção admitida por seus idealizadores, as condicionalidades nos
PTCR almejam promover a quebra da transmissão intergeracional da pobreza – o que
corresponde a um dos objetivos cruciais desses programas – rompendo seu círculo vicioso e
alcançando, enfim, sua superação, através do fomento ao acúmulo de capital humano nas
crianças e adolescentes das famílias beneficiárias. O entendimento por trás dessa pretensão
considera a pobreza como determinada pelo baixo grau de escolaridade dos chefes das
famílias, uma vez que supõe a renda como função crescente do nível de instrução formal.
Assim, a atenção dedicada às crianças pobres de hoje, através das condicionalidades
(principalmente em educação), para que tenham maior escolaridade quando adultos amanhã
e consigam (como pontifica tal premissa) uma melhor inserção laboral (vis-à-vis seus pais),
possibilitar-lhes-á a superação da pobreza, no futuro. A educação, portanto, emerge nesse
contexto como um determinante da condição de pobreza.
Ademais, o mérito, o esforço e a responsabilidade individual ascendem à posição
de dever para fazer jus ao auxílio da política social, em detrimento da cidadania e da
solidariedade como seus determinantes de outrora. Esta conformação do social é congruente
com o pensamento atualmente hegemônico, resultante do processo de crescente
individualização da sociedade, onde o sujeito é responsável e responsabilizado por sua
situação nos diferentes âmbitos da vida, como o pessoal, o socioeconômico e o laboral.
Sob este cenário, ao atuarem como contraprestações aos benefícios monetários dos
programas, as condicionalidades acarretam um tipo de transação entre a necessidade do
166
usuário e a assistência do social. O que previamente encontrava-se, não sem conflitos e
conquistas árduas, no domínio do direito e da solidariedade transfere-se para o campo da
permuta, da lógica mercantil; mercantiliza-se, assim, o social.
No que tange aos PTCR considerados neste trabalho, a lógica mercantil das
condicionalidades se afirma. No caso da AUH, o deslocamento do campo do direito para o
da permuta é nítido. Este programa pertence ao subsistema não contributivo do regime de
Asignaciones Familiares argentino, o qual também realiza transferências de caráter
contributivo em seu outro subsistema. As transferências de ambos os subsistemas
constituem-se em direitos exigíveis pelo público elegível. Todavia, aqueles que se encontram
sob o subsistema não contributivo, conquanto possuam o direito às prestações integrais (à
semelhança dos usuários do outro subsistema), devem cumprir as condicionalidades
determinadas para “merecerem” o recebimento integral do benefício.
O PBF e o IEF, embora não conformem direitos, exigem igualmente o
“merecimento” por parte dos beneficiários para fazer jus às transferências monetárias. Este
merecimento exprime-se pela obrigatoriedade no cumprimento das contrapartidas em
educação e saúde das crianças e mediante o esforço individual expresso por bom rendimento
escolar e iniciativa de trabalho, especificamente no caso do IEF. Uma vez que estes
programas abrangem famílias e indivíduos não incapacitados e, em geral, em idade laboral,
com exceção dos menores, a assistência a eles não se encontra socialmente legitimada, ao
contrário da assistência aos deficientes, idosos e enfermos. Desse modo, há um gênero de
pensamento social que condena o auxílio “gratuito” a pessoas que poderiam, ou deveriam,
estar trabalhando. Logo, as condicionalidades representam também este esforço, ou
“retribuição”, que certa ideologia social exige como justificativa para a assistência estatal
válidos pobres ou socioeconomicamente vulneráveis.
O papel de retribuição ou de compensação – em outras palavras, de “moeda de
troca” – pelo benefício estatal concedido é habilmente desempenhado pelas
condicionalidades. Elas conseguem justificar e legitimar socialmente (embora não sem
resistências) a concessão do auxílio monetário, à medida em que se propõem não somente
como tarefa a ser cumprida pelos beneficiários mas também, e principalmente (consoante ao
pensamento de seus idealizadores), como tratamento ao suposto imo da condição de pobreza,
167
qual seria, a pouca instrução que caracteriza os chefes das famílias pobres e que condena
seus filhos a um ciclo inexorável de carências.
Conquanto o papel (pode-se dizer acessório) de “moeda de troca” seja bem operado
pelas condicionalidades, seu objetivo fundamental – romper a transmissão intergeracional
da pobreza – não é passível de um julgamento de mesma espécie, até o momento. Isto porque
a própria natureza desse objetivo impõe uma estratégia de longo prazo aos programas e, em
consequência, à atuação das condicionalidades sobre as famílias e indivíduos beneficiários.
Em vista disso, como os programas ora tratados são políticas relativamente jovens, torna-se
ínvio avaliá-los nessa esfera.
4.2. Diminuição e superação da pobreza
Esta seção pretende analisar e discutir os dois objetivos cruciais perseguidos pelo
PBF, AUH e IEF e que são característicos dos PTCR, enquanto gênero de política social.
Tais objetivos consistem na redução da pobreza vigente e na sua superação, através do
rompimento de sua transmissão intergeracional. A redução da pobreza configura uma
preocupação de curto prazo, almejando o alívio da intensidade da pobreza bem como sua
diminuição em termos de contingente populacional. Contrariamente, sua superação
representa uma meta de médio a longo prazo, pois implica um processo de acúmulo de
capital humano nas crianças beneficiárias dos programas. Em vista disso, evidencia-se uma
bifurcação temporal no que diz respeito à estratégia de enfrentamento da condição de
pobreza que afeta os beneficiários. Como anteriormente exposto neste trabalho, tem-se que,
de um lado, combate-se à pobreza, através das prestações pecuniárias outorgadas às famílias,
visando ao declínio do contingente populacional sob pobreza e indigência. De outro,
procura-se confrontar, mediante as condicionalidades, a raiz e fonte de reprodução da
pobreza, que consistiria na baixa escolaridade caracterizadora dessa população.
Sob este contexto, busca-se avaliar os objetivos perseguidos pelos PTCR, partindo-
se de seu enfoque temporal, através de uma breve exposição de alguns dados afins, bem
como de um ensaio de discussão e análise em torno dos objetivos, premissas e estratégias
empreendidas, para os três países considerados bem como para os programas ora tratados.
168
4.2.1. O curto prazo: diminuição e alívio da pobreza vigente
O enfoque de curto prazo dos PTCR reside no objetivo de alívio imediato da
pobreza vigente, buscando-se elevar o orçamento da família assistida, mediante a
transferência monetária. Conquanto o valor dos benefícios varie bastante, não apenas de país
para país como também entre as famílias beneficiárias, o valor médio das prestações
concedidas é, em geral, baixo quando cotejado à renda média das famílias não pobres, como
observa Mattei (2010, p.14).
Nos últimos trinta anos, segundo o referido autor (2010, p.18), principalmente como
produto das políticas neoliberais implantadas na década de 1980, a América Latina enfrentou
frequentes crises econômicas, associadas a baixo crescimento, aumento da precarização e do
desemprego, etc.; são aspectos conjunturais que se somam ao componente estrutural da
pobreza marcante e histórica do continente. Esse cenário afetou profundamente a condição
social da região, recrudescendo a pobreza e indigência nos países latino-americanos.
Em consonância ao que já fora exposto na seção 6 do capítulo 1, a partir dos anos
de 1980, os sistemas de proteção social na América Latina, em diversos de seus países,
começaram a sofrer processos de mercantilização, tendo sido privatizados, em parte ou
totalmente, ou ainda abertos à participação do mercado (MARQUES, 2014). Quase que
invariavelmente, tais processos produziram uma massa populacional desprotegida, sem
acesso – ou com acesso insuficiente – a serviços básicos de saúde e previdência, agravando
sobremaneira a pobreza e indigência na região. Diante desse cenário, na década de 1990, os
primeiros PTCR emergem em alguns países da América Latina, porém, com um caráter
fortemente segmentado e compensatório, para minimizar as mazelas que a adoção de
políticas neoliberais, tanto de cunho econômico quanto social, já faziam sentir no continente.
A partir da década de 2000, porém, esse gênero de programas adquiriu um caráter massivo,
abrangendo não apenas segmentos populacionais pauperizados, mas contingentes cada vez
maiores da população pobre e vulnerável. Em vista disso, em diversos países latinos, os
PTCR passaram a representar uma forma de garantir minimamente o acesso a serviços
básicos de proteção social (saúde e educação, principalmente), por meio das
condicionalidades e outras ações vinculadas aos programas.
Sob esse quadro conjuntural, consoante a Mattei (2010, p.19), no início do século
XXI, a América Latina experimenta um novo ciclo de expansão econômica e passa a
169
vivenciar reduções no contingente populacional sob pobreza e indigência. No entanto, como
pondera o autor, a diminuição observada no patamar de pobres e indigentes não deve ser
unicamente creditada ao crescimento experimentado, uma vez que diversos PTCR já
operavam desde a década de 1990. Esses programas constituíram-se em elementos
importantes nesse processo de redução da pobreza e indigência no continente. Ao que parece,
a existência desses programas não apenas colaborou, em alguma medida, para a redução da
pobreza ao longo da década, como também, concorreu para que não houvesse piores
agravamentos da pobreza, quando das crises econômicas que alguns países latino-
americanos enfrentaram no início dos anos 2000.
Dados dos últimos anos da década de 2000 corroboram o processo de diminuição
no patamar de pobreza na América Latina. Segundo Mattei (2010), em termos de população
e espaço, em 2008 os PTCR alcançavam aproximadamente 28,5 milhões de famílias, ou
cerca de 114 milhões de pessoas, nos 18 países latino-americanos onde estavam então
implantados. Sendo a população da América Latina, naquele ano, da ordem de 564 milhões
de habitantes (WORLD BANK, 2014), infere-se que mais de 20% da população encontrava-
se vinculada a algum programa de transferência condicionada de renda. Desse ano até o
presente, muitos PTCR ampliaram sua cobertura e abrangência, alcançando um número cada
vez maior de famílias elegíveis. Este é o caso, por exemplo, do PBF que, como exposto em
sua descrição no capítulo 2, abarca atualmente (2014) mais de 14 milhões de famílias,
quando em 2008 (dezembro) esse número era da ordem de 10,5 milhões. Logo, no contexto
recente da América Latina, os PTCR mostram-se uma realidade presente na vida de milhões
de pessoas em estado de indigência, precariedade e pobreza, que deles dependem de maneira
vital.
Como destacado por Mattei (2010) e Cecchini & Madariaga (2011), esses
programas têm importante participação no processo recente de redução dos níveis de pobreza
e indigência observados na América Latina e Caribe, na última década. Podem-se observar
no gráfico 17 tanto a taxa de incidência de extrema pobreza quanto a população
extremamente pobre (ou indigente), que diminuíram em 62% e 48%, respectivamente,
durante o período de 1990 a 2011, atingindo o patamar (para o último ano disponível) de
4,6% e 27,6 milhões de pessoas sob extrema pobreza no continente, segundo dados do Banco
Mundial.
170
Gráfico 17
América Latina e Caribe: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014.
Gráfico 18
América Latina e Caribe: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014.
Semelhantemente à indigência na região, o patamar de pobreza também apresentou
declínio, ao longo do período de 1990 a 2011, considerando a linha de US$2,50 ao dia por
53,4 52,5 53,660,1 62,7
47,6
36,932,3
27,6
12,211,4 11,1
11,9 11,9
8,7
6,5
5,5
4,6
0
2
4
6
8
10
12
14
0
10
20
30
40
50
60
70
1990 1993 1996 1999 2002 2005 2008 2010 2011
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e ex
trem
a
po
bre
za
(in
dig
ênci
a)
Mil
hõ
es
Milhões de pobres extremos (indigentes) Percentual de pobres extremos (indigentes)
128,3 128,5 132,4 139,4 143,6
116,4
90,5 83,2 79,4
29,427,9 27,4 27,5 27,2
21,2
15,914,3
13,3
0
5
10
15
20
25
30
35
0
20
40
60
80
100
120
140
160
1990 1993 1996 1999 2002 2005 2008 2010 2011
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e p
ob
reza
Mil
hõ
es
Milhões de pobres Percentual de pobres
171
pessoa, preconizada pelo Banco Mundial. O gráfico 18 expõe os dados. No período retratado,
a queda no percentual de pobres foi em torno de 55%, enquanto que a queda na quantidade
de pessoas em pobreza foi da ordem de 38%.
Tais processos de redução nos contingentes populacionais vivendo sob indigência ou
pobreza (considerando as linhas de US$1,25 e US$2,50, respectivamente, empregadas pelo
Banco Mundial), na América Latina, são similarmente notados nos três países analisados
neste trabalho, como se pode observar nos gráficos 19 a 24. Apresentam-se os gráficos
relativos à Argentina, Chile e, por fim, ao Brasil.
Gráfico 19
Argentina: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014b.
0,0
2,0
4,0
6,0
8,0
10,0
12,0
14,0
0,0
0,5
1,0
1,5
2,0
2,5
3,0
3,5
4,0
4,5
5,0
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e ex
trem
a p
ob
reza
(in
dig
ênci
a)
Mil
hõ
es
Milhões de pobres extremos (indigentes) Percentual de pobres extremos (indigentes)
172
Gráfico 20
Argentina: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014b.
Gráfico 21
Chile: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014c.
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
0,0
2,0
4,0
6,0
8,0
10,0
12,0
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e p
ob
reza
Mil
hõ
es
Milhões de pobres Percentual de pobres
0,0
1,0
2,0
3,0
4,0
5,0
6,0
0,0
0,1
0,2
0,3
0,4
0,5
0,6
0,7
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2003 2006 2009 2011 Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e ex
trem
a p
ob
reza
(in
dig
ênci
a)
Mil
hõ
es
Milhões de pobres extremos (indigentes) Percentual de pobres extremos (indigentes)
173
Gráfico 22
Chile: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014c.
Gráfico 23
Brasil: incidência de extrema pobreza a US$1,25 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014d.
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
0,0
0,5
1,0
1,5
2,0
2,5
3,0
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2003 2006 2009 2011
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e p
ob
reza
Mil
hõ
es
Milhões de pobres Percentual de pobres
0,0
2,0
4,0
6,0
8,0
10,0
12,0
14,0
16,0
18,0
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e ex
trem
a p
ob
reza
(in
dig
ênci
a)
Mil
hõ
es
Milhões de pobres extremos (indigentes) Percentual de pobres extremos (indigentes)
174
Gráfico 24
Brasil: incidência de pobreza a US$2,50 dia/pessoa
Fonte: WORLD BANK, 2014d.
Diante das considerações colocadas e dos dados apresentados, pode-se afiançar que
o enfoque de curto prazo dos PTCR aponta para resultados positivos, no que tange ao seu
propósito de alívio imediato da pobreza vigente pela via das transferências monetárias às
famílias atendidas. Este objetivo constitui-se em uma meta de curto prazo viável e já tangível
em diversos países onde esse tipo de programa funciona. Outrossim, os três países
examinados nesta dissertação apresentam importantes declínios na pobreza e indigência,
para os quais os PTCR existentes contribuíram.
4.2.2. O longo prazo: superação da pobreza
Na esfera temporal de longo prazo, os PTCR possuem um objetivo que pode ser
adjetivado como “ambicioso”. Eles pretendem alcançar a superação da pobreza,
desenvolvendo o capital humano das famílias assistidas, principalmente de seus membros
menores de idade. Como afirmado em trechos anteriores deste trabalho, busca-se operar tal
desenvolvimento através das condicionalidades exigidas pelos programas, precipuamente
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
Ta
xa
de
inci
dên
cia
(%
) d
e p
ob
reza
Mil
hõ
es
Milhões de pobres Percentual de pobres
175
daquelas pertencentes à área de educação. Sustenta este objetivo a premissa de que a renda
seria uma função crescente do nível de instrução do indivíduo e que, em consequência, a
pobreza derivaria da pouca ou nenhuma formação educacional dos sujeitos pobres e
vulneráveis, pois, impossibilitar-lhes-ia uma boa inserção no mercado laboral. Havendo o
pressuposto de que o nível educacional dos filhos tem como um de seus determinantes o
respectivo nível dos pais, o que implica a transmissão da pobreza entre gerações, engendra-
se a necessidade de quebrar tal transmissão. O rompimento da transmissão intergeracional
da pobreza ocorrerá uma vez que as crianças pobres assistidas hoje, ao acumular capital
humano e maior grau de escolaridade, tornar-se-ão adultos com melhor condição
educacional, em oposição aos seus pais, tendo acesso a melhores colocações no mercado de
trabalho e, consequentemente, a maiores rendas, superando a pobreza. Por esta fórmula é
que se pretende quebrar a transmissão da pobreza entre as gerações, superando-a de maneira
definitiva.
Não obstante, para além da prevalência da educação, enquanto determinante da
pobreza (segundo a referida abordagem), o objetivo de longo prazo dos PTCR pressupõe o
esforço e o mérito individual como motores da condição socioeconômica do indivíduo. Esta
perspectiva é concorde ao pensamento hodiernamente dominante – cujo alicerce está
cimentado no processo corrente de individualização da sociedade e na preponderância da
doutrina (neo)liberal – o qual postula que o indivíduo deve ser responsável (e também
responsabilizado) por sua condição pessoal, socioeconômica e ainda profissional.
Não se pretende negar ou inabilitar os impactos que os PTCR, efetiva e
potencialmente, possuem ou exercem (via condicionalidades), precipuamente, nos aspectos
relacionados à saúde e à educação das famílias atendidas. Além disso, esses programas
tendem não apenas a ampliar a participação das famílias nessas áreas, como também a
expandir a própria oferta de serviços públicos de saúde e educação, garantindo, em certa
medida, o acesso à proteção social para a parcela mais pauperizada da população. Isto
porque, frequentemente, a operacionalização desses programas impõe aos municípios ou
províncias a responsabilidade pela concessão dos serviços referidos.
No entanto, o postulado assumido pelo enfoque de longo prazo dos PTCR é
insuficiente para alcançar o objetivo “ambicioso” a que esses programas se propõem, pois
passa ao largo de aspectos estruturais da pobreza no continente latino-americano, como a
176
própria constituição histórica da região e a questão da concentração de renda. A América
Latina possui como legado comum um passado histórico de exploração colonial, sujeita por
longo período ao domínio ibérico. Desde seu limiar, a pobreza instala-se no continente em
oposição à opulência dos colonizadores e proporcionalmente à exploração metropolitana.
No decorrer do tempo, a pobreza apenas foi evidenciando seu caráter estrutural,
confirmando-se na paisagem da região sob os diferentes modos de produção, regimes
políticos, tipos de Estado, conjunturas econômicas e mesmo graus de institucionalização do
social pelos quais passara o continente.
Outrossim, a concentração de renda coloca-se como característica estrutural (e
também um legado histórico) da América Latina, região que possui algumas das mais
elevadas taxas de desigualdade do mundo, ainda atualmente. A desigualdade de renda em
alto patamar é um determinante substancial da pobreza, na medida em que reflete a má
distribuição da riqueza gerada e a estrutura tributária regressiva (marcantes nesses países),
em prejuízo dos mais pobres.
Isto posto, parece escapar aos adeptos da doutrina (neo)liberal e aos proponentes
dos PTCR que as raízes da pobreza constituem-se em elementos histórico e socialmente
incrustados nas estruturas mesmas das sociedades latino-americanas. Ademais, as direções
de políticas, tanto as econômicas quanto as sociais, ao longo das três últimas décadas
particularmente, concorreram sobremaneira para o recrudescimento ou no mínimo para a
manutenção da pobreza, enquanto um traço distintivo do continente. Deste modo, o aspecto
conjuntural também é importante na determinação da magnitude da pobreza. Ambos os
aspectos da pobreza, o estrutural e o conjuntural, associam-se de maneira fundamental em
sua determinação, para além do que possa representar uma suposta incapacidade individual
ou carência de capital humano. A ordem de causação é justamente a oposta da sugerida pelo
discurso prevalente. A falta ou escassez de capitais humanos, característica dos pobres, não
é o fator que determina sua condição de pobreza. Ao contrário, é a pobreza do pobre que lhe
impede, ou lhe dificulta, acumular tais capitais e fazer frente às exigências que o capital “não
humano” impõe. Portanto, infere-se que a superação da pobreza pela via das
condicionalidades, responsabilizando unicamente os sujeitos por sua condição, é um
objetivo pretencioso e distante de ser efetivado, pois desconsidera as causas mais
elementares e profundas que determinam o status de instituição que a pobreza e a miséria
desfrutam na América Latina.
177
CONCLUSÕES
Desde o orto das sociedades humanas, a proteção social está presente. Sob
diferentes formas e nas diversas épocas, as eventualidades e riscos de natureza biológica e
mesmo social – como a morte, a doença, a velhice, a miséria – sempre foram objeto de
alguma espécie de cuidado por parte do entorno social (seja este a tribo, a família, a
vizinhança, a igreja, etc.). De formas primitivas a formas sofisticadas, os sistemas de
proteção social foram se desenvolvendo juntamente com as sociedades nas quais emergiram.
O desenvolvimento desses sistemas levou-os a uma progressiva institucionalização, cuja
plenitude fora alcançada sob a configuração do Estado Social, nas sociedades europeias
ocidentais dos anos de ouro do capitalismo. A institucionalização do social, sob o Estado de
Bem-Estar, alçou-o ao patamar de direito, retirando-o do domínio da generosidade e da
dependência. Deste modo, o social passou a ter na cidadania o fundamento de sua atenção,
promovendo proteções universais e incondicionais.
Entretanto, desde a década de 1970, quando os anos gloriosos do capitalismo deram
lugar a uma crise sistêmica do próprio modo de produção – assim como à retomada da
hegemonia (neo)liberal e à paulatina desconstrução do “coletivo” (edificado no pacto social
do pós-Guerra) – o modelo de proteção social de caráter universal e incondicional,
conformado no Welfare State, passou a ser crescentemente questionado e ideologicamente
combatido.
A nova feição que o mundo do trabalho tem assumido desde então – caracterizada
por desemprego de longa duração, precarização laboral e informalidade – ao concorrer
diretamente contra a base contributiva que sustenta parte das proteções, coloca-se como um
empecilho concreto ante a natureza universalista do Estado Social. Ademais, acrescida a
dominância ideológica do neoliberalismo, tem-se como resultado o progressivo acirramento
do debate acerca do porvir dos sistemas de proteção social, bem como do próprio papel social
do Estado.
Em face das dificuldades impostas pela crise do sistema, das novas demandas que
se afiguram no ideário prevalente e do processo de individualização da sociedade, o social é
impelido a reorientar sua atuação. Novos parâmetros são, assim, colocados para o social. No
178
lugar da universalidade, a focalização; da incondicionalidade, a contrapartida; da cidadania,
a necessidade; e do direito, o obséquio.
Segundo a concepção neoliberal, há uma senda para viabilizar o social
contemporaneamente: mercantilizar sua atuação, via mercado, e focalizar suas ações apenas
naqueles indivíduos incapacitados para o trabalho e naqueles sob indigência, sendo que aos
últimos, deve condicionar os benefícios que lhes conceder.
Nesse quadro, emergiram e se propagaram as propostas de uma renda mínima
garantida, enquanto uma opção substitutiva (para a vertente neoliberal) ou complementar
(para a vertente progressista) ao conjunto de proteções, benefícios e serviços promovido pelo
Estado Social. Em um primeiro momento, as propostas de renda mínima apresentaram um
caráter universalista, mas logo voltaram-se à focalização nos mais pauperizados. Essa renda
mínima, uma vez focalizada nos indigentes, deve exigir uma contrapartida.
Nos países avançados, onde o Estado Social se consolidou fortemente, o social tem
mantido sua natureza universalizante, embora já não com a força de outrora e cada vez mais
circunvalado pelos novos imperativos que lhe são colocados. Nos países em
desenvolvimento, contudo, e na América Latina, particularmente, onde nem mesmo se
configurou um Estado de Bem-Estar propriamente dito, os apelos neoliberais à privatização
do social e à focalização são mais audíveis, bem como são menores as resistências. Por isso,
já na década de 1980, iniciou-se na América Latina um processo de privatização do social,
que se alastrou por diversos países da região nas duas décadas seguintes. Esses países
privatizaram parte ou a totalidade de seus sistemas de proteção social, reduzindo o papel
social do Estado, como bem ensina a doutrina neoliberal. Aos Estados “sobrou” o ofício de
atender aos incapacitados e aos miseráveis. Aos primeiros, a prestação do social é um
imperativo e um direito, pois são inaptos ao trabalho. Aos outros, a prestação do social é
uma opção política, uma “benesse” de governo, uma sorte de “cortesia”. Além disso, aos
não incapacitados qualquer benefício monetário deve ter uma contrapartida por parte do
beneficiado, toda prestação deve exigir uma contraprestação. O benefício, assim, constituirá
uma renda mínima de subsistência, enleada a certas condicionalidades para o seu
recebimento. Esse desenho de política conformará os PTCR, que já a partir da década de
1990 estarão presentes, mas principalmente a partir dos anos 2000, disseminar-se-ão por
diversos países do continente latino-americano.
179
Até a década de 1980, quando o pensamento neoliberal começou a se fazer
assentido na América Latina, havia-se procurado construir na região sistemas de proteção
social de cunho universalista. No entanto, a introdução dos PTCR, pautados na focalização
e nas condicionalidades, contradiz a natureza universal e incondicional dessa proteção que
se procurava edificar no continente. De onde deriva a preocupação em saber em que medida
a inserção dos PTCR, enquanto um gênero de polícia social, representa uma mudança na
natureza da proteção na América Latina.
Dada a impossibilidade de investigar os processos afins em todos os países da
região, optou-se por descrever, comparar e analisar neste trabalho os PTCR de três deles –
Brasil, Argentina e Chile, buscando-se entender se a inserção de tais programas opera ou
não uma alteração na natureza de seus sistemas de proteção social, pretendendo-se, ainda,
algum grau de generalização para o continente latino-americano quanto a essa questão.
Contudo, o que ficou nítido ao longo da pesquisa é a dificuldade de operar inferências mais
genéricas em relação ao continente.
Quanto aos PTCR tratados neste estudo, o processo de descrição e comparação
entre os programas considerados mostrou importantes similitudes entre eles, para além das
características fundamentais (focalização, condicionalidades e transferência monetária) e
objetivos precípuos (redução/alívio da pobreza vigente e quebra da transmissão
intergeracional da pobreza) que compartilham enquanto gênero de política. Similitudes tais
como a abrangência nacional, o caráter não contributivo e a existência de um componente
não condicionado de transferência.
Por outro lado, as divergências existentes não são menos importantes – como o foco
na infância, o tempo de permanência no programa e a sua natureza, ao constituir-se ou não
um direito. No tocante a estes aspectos, o programa argentino diverge sobremaneira daqueles
dos outros dois países. No caso da AUH, o benefício conforma um direito que visa à
integralidade da proteção à infância. Mesmo o lugar que tal programa ocupa no sistema de
proteção social do país é distinto, uma vez que pertence ao âmbito previdenciário, enquanto
os programas do Brasil e do Chile pertencem à esfera da Assistência e não constituem um
direito exigível, ainda que o indivíduo ou família atenda aos critérios de elegibilidade. Além
disso, outro aspecto que merece destaque é o fato de que o programa argentino, ao possuir
um tempo de permanência indeterminado, indica uma preocupação maior e uma estratégia
180
mais coerente para com o almejado rompimento do “círculo vicioso” da pobreza, uma vez
que esta pretensão pressupõe uma perspectiva de longo prazo. O Brasil adota uma estratégia
diferente mas que aponta para preocupação semelhante, estabelecendo um período de
permanência mínimo de 2 anos. O caso do Chile é bastante distinto, posto que adota um
tempo máximo de 2 anos. Essa diferença é fundamental, pois mostra claramente a maior ou
menor preocupação de cada programa com o longo prazo e, portanto, com a pretensão de
oferecer maiores subsídios à pretendida superação da pobreza.
No que concerne a uma possível mudança na natureza da proteção social na
América Latina decorrente da inserção dos PTCR no continente, revelou-se, ao longo dos
estudos aqui empreendidos, que é similarmente difícil elaborar generalizações para o
conjunto do continente acerca desse questionamento. Isto porque, para alguns países (mas
não para a totalidade do continente), a introdução dos PTCR parece ter alterado a natureza
de seus sistemas de proteção. Enquadram-se neste aspecto aqueles países cujos sistemas de
proteção social eram muito incipientes e onde o neoliberalismo alcançou êxito em privatizar
parte ou o conjunto da proteção, “deixando” para o Estado a função de atender aos inválidos
e aos miseráveis (a estes últimos através dos PTCR). Neste contexto, os PTCR impõem seus
parâmetros – focalização, condicionalidades, necessidade – como nova lógica para a
proteção social, em detrimento da universalidade, incondicionalidade e cidadania, enquanto
pilares vocacionais do social. A proteção social, nos referidos países, torna-se
essencialmente mercantil, praticamente inexistem proteções universais ou incondicionais e
os PTCR constituem a política estatal voltada aos mais pauperizados, como forma de
controlar, ou de amenizar, a pobreza.
Entretanto, no que diz respeito aos três países – Brasil, Argentina e Chile –
considerados nesta pesquisa, pode-se admitir que os PTCR não substituem os demais
componentes da proteção social, antes, complementa-os. No caso brasileiro e no argentino,
os PTCR atuam como complemento ao social, pois abrangem uma parcela da população que
frequentemente não é alcançada pelos mecanismos formais e clássicos de proteção. Nesses
dois países, o social mantém, em parte, uma vocação universal e incondicional, ainda que
efetivamente opere uma proteção parcial.
No caso do Chile, por outro lado, os PTCR são instrumentos voltados a assegurar o
acesso a uma proteção básica às populações mais pauperizadas que não dispõem de recursos
181
para utilizar os mecanismos mercantis de proteção. O social no Chile constitui um sistema
misto, uma vez que Estado e setor privado atuam na promoção das proteções. O Estado
assegura às populações mais pobres o acesso a certos serviços sociais. Parte desses serviços
são garantidos via sistema de proteção estatal, mas também outra parcela é promovida pelos
PTCR. Ademais, há um conjunto de políticas públicas sociais, de caráter não condicionado,
que compõem a assistência social e, portanto, fazem parte da proteção. Semelhante
configuração do social permite afirmar que os PTCR são complementares neste sistema.
Para os países examinados, portanto, pode-se inferir que coexistem políticas
universais, representadas pelos sistemas clássicos de proteção, e as focalizadas,
representadas pelos PTCR. A introdução dos PTCR nesses países não alterou de forma
substancial a natureza ou a lógica de seus sistemas de proteção. O que se conformou, na
verdade, parece ter sido uma espécie de proteção híbrida, onde coexistem no social o público
e o privado, a universalidade e a focalização, a incondicionalidade e a contrapartida, a
cidadania e a necessidade.
182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, José Eustáquio Diniz; CAVENAGHI, Suzana. “O Programa Bolsa Família e as
taxas de fecundidade no Brasil”. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo Côrtes (Org.).
Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: IPEA, 2013, p.233-
245. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_10anos
.pdf. Acesso em: junho/2014.
ANSES – Administración Nacional de la Seguridad Social. Montos de Asignaciones
Familiares y Asignaciones Universales para Protección Social. Argentina, 2014. Disponível
em: http://www.anses.gob.ar/archivos/seccion/montos_aaff_auh.pdf. Acesso em:
setembro/2014.
______. ANSES responde. 2014b. Disponível em:
http://ansesresponde.anses.gob.ar/suaf-sistema-unico-de-asignaciones-familiares/que-118.
Acesso em: novembro/2014.
______. Asignación por Embarazo. 2014c. Disponível em:
http://www.anses.gob.ar/asignacion-universal/asignacion-embarazo-149. Acesso em:
novembro/2014.
______. Asignación Universal por Hijo para Protección Social – Decreto 1602/09: Boletín
Cuatrimestral – I Cuatrimestre 2014. 2014d. Disponível em:
http://observatorio.anses.gob.ar/archivos/publicaciones/OBS-000254%20-
%20Bolet%C3%ADn%20Cuatrimestral%20de%20la%20Asignaci%C3%B3n%20Univers
al%20por%20Hijo%20para%20Protecci%C3%B3n%20Social.%20I%20Cuatrimestre%20
2013..pdf. Acesso em: outubro/2014.
______. Asignación Universal por Hijo para Protección Social. Argentina, 2013.
Disponível em:
http://www.anses.gob.ar/archivos/seccion/asignacion_universal_hijo_proteccion_social.pdf
______. La Asignación Universal por Hijo para Protección Social en perspectiva. 2012.
Disponível em: http://observatorio.anses.gob.ar/archivos/publicaciones/OBS-000255%20-
%20AUH%20en%20Perspectiva.pdf. Acesso em: outubro/2014.
183
______. Asignación Universal por Hijo para Protección Social – Decreto 1602/09: Boletín
Cuatrimestral – III Cuatrimestre 2012. 2012b. Disponível em:
http://observatorio.anses.gob.ar/archivos/documentos/PPT%20-
%20AUH%20III%20C%202012%20F.pdf. Acesso em: abril/2014.
______. Asignación Universal por Hijo para Protección Social – Decreto 1602/09: Boletín
Cuatrimestral – III Cuatrimestre 2011. Disponível em:
http://observatorio.anses.gob.ar/archivos/documentos/PPT%20-
%20AUH%20III%20C%202011_F.pdf. Acesso em: abril/2014.
______. Boletín Previsional y de la Seguridad Social. Buenos Aires, 2010. Disponível em:
http://observatorio.anses.gob.ar/archivos/documentos/Bolet%C3%ADn%20Anual%20201
0.pdf. Acesso em: dezembro/2014.
ARGENTINA. Decreto 2.741, de 26 de dezembro de 1991. Cria a ANSES. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/10000-14999/12368/norma.htm. Acesso
em: janeiro/2014.
______. Lei 24.714, de 02 de outubro de 1996. Institui o regime de Asignaciones Familiares.
Disponível em:
http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/35000-39999/39880/texact.htm. Acesso
em: janeiro/2014.
______. Lei 25.231, de 01 de dezembro de 1999. Modifica a Lei 24.714/1996. Disponível
em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/60000-64999/61779/norma.htm. Acesso
em: janeiro/2014.
______. Lei 26.061, de 28 de setembro de 2005. Institui o sistema de proteção integral dos
direitos da criança e do adolescente. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/110000-114999/110778/norma.htm.
Acesso em: fevereiro/2014.
______. Decreto 1.345, de 04 de outubro de 2007. Estabelece os valores da prestação e as
faixas de rendimento das Asignaciones Familiares, para as distintas zonas geográficas.
Disponível em:
184
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/130000-134999/133007/norma.htm.
Acesso em: abril/2014.
______. Decreto 1.602, de 29 de outubro de 2009. Incorpora o subsistema não contributivo,
criando a AUH. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/159466/norma.htm.
Acesso em: janeiro/2014.
______. Decreto 446, de 18 de abril de 2011. Cria a AEPS. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/180000-184999/181250/norma.htm.
Acesso em: março/2014.
______. Decreto 614, de 30 de maio de 2013. Altera os limites das faixas de rendimento
elegíveis ao recebimento das Asignaciones Familiares. Disponível em:
http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/215000-219999/215701/norma.htm.
Acesso em: junho/2014.
______. Decreto 1.282, de 29 de agosto de 2013. Altera o Decreto 614/2013, ampliando as
faixas de rendimento. Disponível em:
http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/215000-219999/219229/norma.htm.
Acesso em: junho/2014.
BARROS, Ricardo Paes de et al. Determinantes da queda na desigualdade de renda no
Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2010 (Texto para Discussão nº 1460). Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2572/1/TD_1460.pdf. Acesso em: abril/2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
______. Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993 – LOAS. Dispõe sobre a organização da
Assistência Social. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm.
Acesso em: janeiro/2015.
______. Medida Provisória 132, de 20 de outubro de 2003. Cria o Programa Bolsa Família.
Disponível em:
185
http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/legislacao/bolsafamilia/medidas-
provisorias/2003/Medida%20Provisoria%20no%20132.pdf. Acesso em: fevereiro/2014.
______. Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004. Converte em lei a MP 132/2003. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em:
junho/2013.
______. Decreto 5.209, de 17 de setembro de 2004(b). Regulamenta o Programa Bolsa
Família. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5209.htm. Acesso em:
junho/2013.
______. Lei 8.232.de 30 de abril de 2014. Altera o Decreto 5.209/2004 e o Decreto
7.492/2011. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8232.htm.
BROWN, Brenda; PÉREZ, Pablo. “¿La condicionalidad como nuevo paradigma de la
política social en América Latina?”. In: VI Jornada de Economía Crítica: economía política
y política económica. Facultad de Ciencias Económicas, Universidad Nacional de Cuyo,
Mendoza, 29-31 de agosto de 2013.
BURGINSKI, Vanda Micheli. “As recomendações da Cepal e a Política Social na América
Latina no século XXI”. In: SCHEFFER, Graziela; CARIAGA, Maria Helena; BURGINSKI,
Vanda Micheli (Org.). Políticas sociais, práticas e sujeitos: prismas da atualidade.
Campinas: Papel Social, 2013.
CASTEL, Robert. Les metamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat.
France: Fayard, 1995.
______. El ascenso de las incertidumbres: trabajo, protecciones, estatuto del individuo.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010.
______. “As armadilhas da exclusão”. In: BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela;
BÓGUS, Lucia; YAZBEK, Maria Carmelita. (Org.). Desigualdade e a questão social. São
Paulo: EDUC, 2011. p.21-54.
186
______. “As transformações da questão social”. In: BELFIORE-WANDERLEY,
Mariangela; BÓGUS, Lucia; YAZBEK, Maria Carmelita. (Org.). Desigualdade e a questão
social. São Paulo: EDUC, 2011b. p.277-306.
CECCHINI, Simone; MADARIAGA, Aldo. Programas de Transferencias Condicionadas:
balance de la experiencia reciente en América Latina y el Caribe. CEPAL: Santiago, 2011.
(Cuadernos de la CEPAL, n.95). Disponível em:
http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/27854/S2011032_es.pdf?sequence=1.
Acesso em: janeiro/2015.
CECCHINI, Simone; FARÍAS, Claudia Robles; VARGAS, Luis Hernán. “La ampliación de
las Transferencias Monetarias e sus desafios en Chile: el Ingreso Ético Familiar”. In:
Research Brief. International Policy Centre for Inclusive Growth, agosto/2012, n.26.
Disponível em: http://www.ipc-undp.org/pub/esp/IPCPolicyResearchBrief26.pdf. Acesso
em: janeiro/2015.
CESTARI, Adriana Ferreira. Políticas públicas sociais e o Programa Bolsa Família. São
Paulo, 2014. [Monografia – Graduação em Economia] – Faculdade de Economia,
Administração, Contabilidade e Atuária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP).
CHILE. Lei 19.949, de 17 de maio de 2004. Cria o Chile Solidario. Disponível em:
http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=226081. Acesso em: março/2014.
______. Lei 20.379, de 12 de setembro de 2009. Cria o Sistema Intersetorial de Protección
Social. Disponível em: http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1006044. Acesso em:
março/2014.
______. Lei 20.530, de 06 de outubro de 2011. Cria o Ministerio de Desarrollo Social.
Disponível em:
http://www.ministeriodesarrollosocial.gob.cl/btca/txtcompleto/ley_20.530_midesocial.pdf
______. Lei 20.595, de 11 de maio de 2012. Cria o Ingreso Ético Familiar. Disponível em:
http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1040157. Acesso em: março/2014.
187
CIFRA – Centro de Investigación y Formación de la República Argentina. El incremento
del monto de la Asignación Universal por Hijo y las modificaciones en el régimen de
asignaciones familiares. Buenos Aires: CTA, 2012. Disponível em:
http://www.centrocifra.org.ar/docs/El%20incremento%20del%20monto%20de%20la%20
Asignacion%20Universal.pdf. Acesso em: setembro/2014.
CODES, Ana Luíza Machado de. A trajetória do pensamento científico sobre pobreza: em
direção a uma visão complexa. Brasília: IPEA, 2008 (Texto para Discussão nº 1332).
Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1489/1/TD_1332.pdf. Acesso
em: junho/2013.
CUNHA, Edite da Penha; CUNHA, Eleonora Schettini M. “Políticas públicas sociais”. In:
CARVALHO, Alysson et al. (Org.). Políticas Públicas. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.11-
25.
CURCIO, Javier; BECCARIA, Alejandra. “Políticas de protección social y su impacto en la
situación de la niñez y de sus famílias. El caso de la Asignación Universal por Hijo pra
Protección Social a tres años de su implementación”. In: XI Congreso Nacional de Estudios
del Trabajo: El mundo del trabajo en discusión – avances y temas pendientes. Buenos Aires,
7-9 de agosto de 2013.
DRAIBE, Sônia Miriam. “As políticas sociais e o neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas
experiências latino-americanas”. In: Revista USP. São Paulo, EDUSP, n.17, p.86-101,
março/abril/maio, 1993. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25959/27690. Acesso em: novembro/2014.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1994.
ESPING-ANDERSEN, Gosta. “O futuro do Welfare State na nova ordem mundial”. In: Lua
Nova. São Paulo, CEDEC, n.35, p.73-111, 1995. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n35/a04n35.pdf. Acesso em: novembro/2014.
FARÍAS, Claudia Robles. Sistemas de protección social en América Latina y el Caribe:
Chile. CEPAL: Santiago, 2013. (Coleção “Documentos de Proyeto” – Série de estudos
“Sistemas de protección social en América Latina y el Caribe”). Disponível em:
http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/4046/S2013036_es.pdf?sequence=1.
Acesso em: novembro/2014.
188
GALLARDO, Julio López; ANYUL, Martín Puchet. “Apogeu e decadência das políticas
econômicas keynesianas”. In: SICSÚ, João; VIDOTTO, Carlos (Org.). Economia do
desenvolvimento: teoria e políticas keynesianas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.28-45.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD - Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (vários anos). 2014. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/.
Acesso em: outubro/2014.
______. Brasil em Síntese – taxas de fecundidade total (2000 a 2014). 2014b. Disponível
em: http://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/taxas-de-fecundidade-total. Acesso em:
janeiro/2015.
IPEADATA. Produto Interno Bruto (PIB). Séries de dados: Macroeconômico – Contas
Nacionais. 2014. Disponível em: ipeadata.gov.br. Acesso em: janeiro/2015.
______. Número de indivíduos pobres e extremamente pobres – linhas de pobreza baseadas
em necessidades calóricas. Séries de dados: Social – Renda. 2014b. Disponível em:
ipeadata.gov.br. Acesso em: outubro/2014.
______. Desigualdade – Coeficiente de Gini. Séries de dados: Social – Renda. 2014c.
Disponível em: ipeadata.gov.br. Acesso em: outubro/2014.
JANNUZZI, Paulo de Martino; PINTO, Alexandro Rodrigues. “Bolsa Família e seus
impactos nas condições de vida da população brasileira: uma síntese dos principais achados
da Pesquisa de Avaliação de Impacto do Bolsa Família II”. In: CAMPELLO, Tereza; NERI,
Marcelo Côrtes (Org.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania.
Brasília: IPEA, 2013, p. 179-192. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_10anos
.pdf. Acesso em: abril/2014.
KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de
Manuel Resende. São Paulo: Saraiva, 2013.
LARA, Claudio; FLORES, Consuelo. Informe de avance proyecto: análisis de los sistemas
de protección social en algunos países de América Latina: Brasil, Cuba y Chile. Universidad
189
ARCIS, Santiago, 2014. Relatório de pesquisa, 2014. Projeto: Análise dos Sistemas de
Proteção Social em países da América Latina - 034/2013 - Capes (período 2013-2015).
______. Revisión Informe: análisis de los sistemas de protección social en países de América
Latina: Parte Chile. Universidad ARCIS: Santiago, 2014b. Relatório de pesquisa, 2014.
Projeto: Análise dos Sistemas de Proteção Social em países da América Latina - 034/2013 -
Capes (período 2013-2015).
LARRAÑAGA, Osvaldo. “Chile Solidario”. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; MODESTO,
Lúcia (Org.). Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília: IPEA, 2010, v.2, p.
201-212. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_vol2.p
df. Acesso em: fevereiro/2014.
LENHARDT, Gero; OFFE, Claus. “Teoria do Estado e política social – Tentativas de
explicação político-sociológica para as funções e os processos inovadores da política social”.
In: OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
LESSA, Carlos; DAIN, Sulamis. “Capitalismo associado: algumas referências para o tema
Estado e Desenvolvimento”. In: BELLUZZO, Luiz Gonzaga M.; COUTINHO, Renata
(Org.). Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 214-228.
LIMA, Gilberto Tadeu; SICSÚ, João; PAULA, Luiz Fernando de (Org.). Macroeconomia
moderna: Keynes e a economia contemporânea. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
MARQUES, Rosa Maria. A proteção social e o mundo do trabalho. São Paulo: Bienal, 1997.
______. A importância do Bolsa Família nos municípios brasileiros. Brasília: MDS, 2005
(Cadernos de Estudo: desenvolvimento social em debate, n.1).
______. “Programas de transferência de renda no Brasil e na Argentina”. In: Revista de
Economia Política, vol.33, n.2 (131), p.298-314, abril-junho/2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rep/v33n2/a06v33n2.pdf. Acesso em: abril/2014.
190
______. “Da privatização à (re)estatização do sistema previdenciário argentino”. In: Ensaios
FEE, v.35, n.2, 2014. Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística.
MARQUES, Rosa Maria; PIOLA, Sérgio. “O Financiamento da saúde depois de 25 anos de
SUS”. In: 25 anos de direito universal à saúde. RIZOTTO, Maria Lúcia Frizon; COSTA,
Ana Maria (Org.). Rio de Janeiro: CEBES, 2014.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Sueli
Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2002.
MATTEI, Lauro. Notas sobre programas de transferência de renda na América Latina.
Santa Catarina: Instituto de Estudos Latinoamericanos – UFSC, 2010 (Texto para Discussão,
n.10). Disponível em:
http://www.iela.ufsc.br/uploads/docs/158_texto10.lauro.pdf. Acesso em: fevereiro/2014.
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. “Número de beneficiários
do PBF por município – dezembro de 2013”. 2014. Tabela Excel.
______. Bolsa Família – Gestão Descentralizada. 2014b. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/gestaodescentralizada. Acesso em: novembro/2014.
______. Bolsa Família – Cadastro Único. 2014c. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico. Acesso em: agosto/2014.
______. Bolsa Família – Benefícios. 2014d. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/beneficios. Acesso em: junho/2014.
______. Bolsa Família – Condicionalidades. 2014e. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/condicionalidades. Acesso em: junho/2014.
______. Benefício de Prestação Continuada (BPC). 2014f. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc. Acesso em:
janeiro/2015.
191
______. Loas: duas décadas assegurando direitos sociais à população mais pobre. Brasília,
2013. Disponível em: http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2013/dezembro/loas-
duas-decadas-assegurando-direitos-sociais-a-populacao-mais-pobre. Acesso em:
dezembro/2013.
______. Orientações Técnicas sobre o PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral
à Família. MDS/SNAS/SUAS. Brasília, 2012, v.1. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/Orientacoes%20Tecnicas%20sobr
e%20o%20PAIF%20-%20Tipificacao.pdf/view. Acesso em: janeiro/2015.
MECON – Ministerio de Economía y Finanzas Públicas. Resolução 4/2013, de 27 de julho
de 2013. Fixa o Salario Mínimo, Vital y Móvil. Disponível em:
http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/215000-219999/217815/norma.htm.
Acesso em: setembro/2014.
______. Asignación Universal por Hijo en Argentina (Nota Técnica n.23). 2009. Disponível
em:http://www.mecon.gov.ar/peconomica/informe/notas_tecnicas/23%20NOTA%20TEC
NICA%20Empleo%20e%20Ingresos%20inf%2070.pdf. Acesso em: novembro/2014.
MF – Ministério da Fazenda. Desoneração da Folha de Pagamentos. Brasília, 2012.
Disponível em:
http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2012/cartilhadesoneracao.pdf. Acesso
em: maio/2013.
MPAS – Ministério da Previdência Social. Informe de previdência social. Volume 26, n.1,
janeiro/2014. Brasília, MPAS, 2014. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/wp-
content/uploads/2013/05/Informe_janeiro_2014.pdf. Acesso em: janeiro/2015.
MSAL – Ministerio de Salud. Programa SUMAR 2013: Memoria anual. Disponível em:
http://www.msal.gov.ar/sumar/images/stories/pdf/memoria-anual-sumar-2013.pdf. Acesso
em: novembro/2014
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego. Salário mínimo. 2014. Disponível em:
http://portal.mte.gov.br/sal_min/. Acesso em: novembro/2014.
192
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de
saúde – 2003-2011. Nota Técnica, n.5, maio de 2013. Brasília, IPEA.
OIT – Organização Internacional do Trabalho. World social protection repport – 2014/15:
building economic recovery, inclusive development and social juste. Genebra, 2014.
Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---
dcomm/documents/publication/wcms_245201.pdf. Acesso em: outubro/2014.
______. “Avances en la consolidación de la protección social en Argentina”. In: Notas OIT:
Trabajo decente en Argentina. Buenos Aires, 2012. Disponível em:
http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-
buenos_aires/documents/publication/wcms_221702.pdf. Acesso em: janeiro/2015.
OLIVEIRA, Elizabeth Cardoso de. Os programas de transferência de renda de caráter não
contributivo e seus impactos sobre a desigualdade de renda e a pobreza. Seropédica, 2008.
[Monografia – Graduação em Ciências Econômicas] – Instituto de Ciências Humanas e
Sociais (ICHS), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
OLIVEIRA, Francisco Eduardo Barreto; MÉDICI, André Cezar; BELTRÃO, Kaizô. “O
sistema de saúde chileno: mitos e realidade”. Rio de Janeiro, IPEA, Relatório Interno, v.
02/92, 1992.
OMS – Organização Mundial de Saúde. Estadísticas sanitarias mundiales. 2013. Disponível
em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/82218/1/9789243564586_spa.pdf. Acesso em:
novembro/2013.
RAMOS, Lauro; REIS, Maurício. A escolaridade dos pais, os retornos à educação no
mercado de trabalho e a desigualdade de rendimentos. Rio de Janeiro: IPEA, 2009 (Texto
para Discussão n.1442). Disponível em:
http://www.en.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1442.pdf
RASELLA, Davide et al. “Efeitos do Programa Bolsa Família sobre a mortalidade em
crianças: uma análise nos municípios brasileiros”. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo
Côrtes (Org.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília:
IPEA, 2013, p.247-262. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_10anos
193
REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia,
dinheiro e cidadania. São Paulo: Unesp, 2013.
SABAÍNI, Juan Carlos Gómez; CETRANGÓLO, Oscar; MORÁN, Dalmiro. La evasión
contributiva en la protección social de salud y pensiones - Un análisis para la Argentina,
Colombia y el Perú. Serie Políticas Sociales, 208. Santiago, CEPAL, 2014.
SAGI – Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Painel Síntese do Plano Brasil sem
Miséria – Quantidade de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. 2014.
Disponível em:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/MONIB2/index_all_drop_down.php?p_id=539&p_ferra
mentas=1&p_sem_legenda=0&p_encontro=0. Acesso em: outubro/2014.
______. Repasses de valores do Governo Federal – Valor total repassado às famílias
beneficiárias do Programa Bolsa Família. 2014b. Disponível em:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/MONIB2/index_all_drop_down.php?p_id=379&p_globa
l_ibge=&p_ferramentas=1&p_sem_legenda=1. Acesso em: outubro/2014.
______. Renda – evolução da pobreza (PNAD). 2014c. Disponível em:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/MONIB2/index_all_drop_down.php?p_id=415&p_globa
l_ibge=&p_ferramentas=1&p_sem_legenda=1. Acesso em: outubro/2014.
______. Painel Síntese do Plano Brasil sem Miséria – Percentual de crianças e adolescentes
de 6 a 15 anos acompanhadas nas condicionalidades de educação. 2014d. disponível em:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/MONIB2/index_all_drop_down.php?p_id=539&p_globa
l_ibge=&p_ferramentas=1&p_sem_legenda=1. Acesso em: janeiro/2015.
SALVADOR, Evilásio. “Fundo público e o financiamento das políticas sociais no Brasil”.
In: Anais do I Simpósio de Orçamento Público e Políticas Sociais, Universidade Estadual de
Londrina, Paraná, 2012.
SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia do século XXI. 3ªed. Rio de Janeiro: Record,
2007.
194
SCHEFFER, Graziela; CARIAGA, Maria Helena; BURGINSKI, Vanda Micheli (Org.).
Políticas sociais, práticas e sujeitos: prismas da atualidade. Campinas: Papel Social, 2013.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SICSÚ, João. “Planejamento estratégico do desenvolvimento e as políticas
macroeconômicas”. In: SICSÚ, João; VIDOTTO, Carlos (Org.). Economia do
desenvolvimento: teoria e políticas keynesianas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.137-59.
SILVA, Maria Ozanira da Silva e; YAZBEK, Maria Carmelita; GIOVANNI, Geraldo di. A
política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de
renda. 6ªed. São Paulo: Cortez, 2012.
SOARES, Fábio Veras. “Para onde caminham os programas de transferência condicionada?
As experiências comparadas do Brasil, México, Chile e Uruguai”. In: CASTRO, Jorge
Abrahão de; MODESTO, Lúcia (Org.). Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios.
Brasília: IPEA, 2010, v.2, p.173-200. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_vol2.p
df
SOARES, Sergei; SÁTYRO, Natália. “O Programa Bolsa Família: desenho institucional,
impactos e possibilidades futuras”. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; MODESTO, Lúcia
(Org.). Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília: IPEA, 2010, v.1, p. 27-55.
Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_vol1.p
df
SOARES, Sergei et al. “Os impactos do benefício do Programa Bolsa Família sobre a
desigualdade e a pobreza”. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; MODESTO, Lúcia (Org.).
Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília: IPEA, 2010, v.2, p.27-52.
Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_vol2.p
df
SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de; OSORIO, Rafael Guerreiro. “O perfil da
pobreza no Brasil e suas mudanças entre 2003 e 2011”. In: CAMPELLO, Tereza; NERI,
195
Marcelo Côrtes (Org.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania.
Brasília: IPEA, 2013, p. 139-155. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_10anos
TAVARES, Priscilla Albuquerque. Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de
trabalho das mães. São Paulo: ANPEC, 2008. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ecos/v19n3/08.pdf. Acesso em: novembro/2014.
UNFPA – Fondo de población de las Naciones Unidas en Argentina. Situación de la
población en la Argentina. Buenos Aires: PNUD – UNFPA, 2009. Disponível em:
http://www.unfpa.org.ar/sitio/Publicaciones/situaciondelapoblacionenlaargentina.pdf.
Acesso em: janeiro/2015.
WANDERLEY, Luiz Eduardo W. “A questão social no contexto da globalização: o caso
latino-americano e o caribenho”. In: BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela; BÓGUS,
Lucia; YAZBEK, Maria Carmelita. (Org.). Desigualdade e a questão social. São Paulo:
EDUC, 2011, p.55-166.
WORLD BANK. Poverty and Equity – Latin America & Caribbean. 2014. Disponível em:
http://povertydata.worldbank.org/poverty/region/LAC. Acesso em: março/2014.
______. Poverty and Equity – Argentina. 2014b. Disponível em:
http://povertydata.worldbank.org/poverty/country/ARG. Acesso em: março/2014.
______. Poverty and Equity – Chile. 2014c. Disponível em:
http://povertydata.worldbank.org/poverty/country/CHL. Acesso em: março/2014.
______. Poverty and Equity – Brazil. 2014d. Disponível em:
http://povertydata.worldbank.org/poverty/country/BRA. Acesso em: março/2014.