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Osnúmeroseo historiadornão-quantitativo Numbers and the Non-Quantitative Historian Richard Graham* Artigo recebido e aprovado em março de 2008 Resumo: Valiosas percepções podem ser extraídas de dados quantitativos,mesmoporhistoriadoresnão-quantitativos.Isto éparticularmenteverdadeiroporquetaisdadosfreqüentemente sugerempadrõescomunsdecomportamentonemsemprevistos e muito menos compreendidos a seu tempo, bem como porque precisamente tais padrões gerais mostram a importância de desvios particulares. A informação quantitativa também pode levarospesquisadoresaformularquestõesque,deoutraforma, não pensariam em levantar, especialmente quando ela é sujeita àanálisecomparativa.Nesteartigo,ofereçoexemplosextraídos dasminhasprópriasexperiênciasaoestudartemascomoafamília escrava, o número de escravos nas embarcações que abasteciam Salvador com alimento e seu papel na guerra de Independência na Bahia, o consumo per capita de farinha de mandioca em Salvador na primeira metade do século XIX, a cultura política do clientelismo durante a segunda metade do mesmo século e o poder aquisitivo do mil-réis de 1780 a 1860. Palavras-chave: Escravidão;Famíliaescrava;Farinhademandioca;Independência; Culturapolítica;Clientelismo;Taxadecâmbio;Salvador;Bahia; Fazenda Santa Cruz. Abstract: Valuable insights can be derived from quantitative data, even bynon-quantitativehistorians.Thisisparticularlytruebecause such data often suggest common patterns of behavior not * Professor Emérito de História na Universidade do Texas em Austin, autor de vários livrossobreoBrasilcomoseja,ClientelismoepolíticanoBrasildoséculoXIX(Editora UFRJ),Escravidão,reformaeimperialismo(Perspectiva),eAGrã-Bretanhaeoinício da modernização no Brasil, 1850-1914 (Brasiliense), alem de outros sobre a América Latina.

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O s n ú m e r o s e oh i s t o r i a d o r n ã o - q u a n t i t a t i v o

Numbers and the Non-Quantitative Historian

Richard Graham*

Artigo recebido e aprovado em março de 2008

Resumo:

Valiosas percepções podem ser extraídas de dadosquantitativos,mesmoporhistoriadoresnão-quantitativos.Istoéparticularmenteverdadeiroporquetaisdadosfreqüentementesugerempadrõescomunsdecomportamentonemsemprevistose muito menos compreendidos a seu tempo, bem como porqueprecisamente tais padrões gerais mostram a importância dedesvios particulares. A informação quantitativa também podelevarospesquisadores a formularquestões que,deoutra forma,não pensariam em levantar, especialmente quando ela é sujeitaàanálisecomparativa.Nesteartigo,ofereçoexemplosextraídosdasminhasprópriasexperiênciasaoestudartemascomoafamíliaescrava, o número de escravos nas embarcações queabasteciamSalvador com alimento e seu papel na guerra de Independênciana Bahia, o consumo per capita de farinha de mandioca emSalvador na primeira metade do século XIX, a cultura políticado clientelismo durante a segunda metade do mesmo século e opoder aquisitivo do mil-réis de 1780 a 1860.

Palavras-chave:

Escravidão;Famíliaescrava;Farinhademandioca;Independência;Culturapolítica;Clientelismo;Taxadecâmbio;Salvador;Bahia;Fazenda Santa Cruz.

Abstract:

Valuable insights can be derived from quantitative data, evenbynon-quantitativehistorians. Thisisparticularlytruebecausesuch data often suggest common patterns of behavior not

* Professor Emérito de História na Universidade do Texas em Austin, autor de várioslivrossobreoBrasilcomoseja,ClientelismoepolíticanoBrasildoséculoXIX(EditoraUFRJ),Escravidão,reformaeimperialismo(Perspectiva),eAGrã-Bretanhaeoinícioda modernização no Brasil, 1850-1914 (Brasiliense), alem de outros sobre a AméricaLatina.

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even seen and much less understood at the time, and becausesuch general patterns show the importance of particulardeviations. Quantitative information canalso lead researchersto ask questionstheywouldnototherwisehave thought to ask,especially when they are subjected to comparative analysis. InthisarticleIprovideexamplesdrawnfrommyownexperiencesinstudyingsuchmattersastheslavefamily,thenumberofslaveson vessels that supplied Salvador with food and their role inthe Independence war in Bahia, the per-capita consumption offarinha de mandioca in Salvador in the first half of the 19thcentury,thepolitical cultureofpatronageduringthe latterhalfof the same century and the purchasing power of the milréisfrom 1780 to 1860.

Keywords:

slavery; slave family; Salvador; Bahia; Fazenda Santa Cruz;farinha de mandioca; patronage; exchange rate.

Não me considero um historiador quantitativo, embora achequedadoseanálisesquantitativossejamumcomponenteimportantedaminhapesquisaeescrita.Conheçopoucodeestatística,menosain-da sobre testes para sua validade, e certamente nada sobre regressõesmúltiplas.Soumaisgeralmenteinteressadonoparticulareexcepcionaldoque no típico, poisquea amplitude evariedadeda experiência hu-mana sãodeslumbrantes epensoqueé precisamente este alcancequetorna o estudo do passado mais excitante e esclarecedor. Mas não hádúvida que valiosas percepções podem ser extraídos de dados quan-titativos,particularmenteporqueelesgeralmenteindicampadrõesdecomportamentonemsemprevistosemuitomenoscompreendidosaseutempo.Defato,éprecisamenteopadrãogeralquefreqüentementetornanotáveleimportanteodesvioparticular.Ea informaçãoquan-titativapode levarospesquisadores a formular questõesquedeoutraforma não pensariam em fazer, especialmente quando ela é sujeita aanálise comparativa.

Meu propósito aqui é dizer algo sobre o uso de dados quanti-tativosporumhistoriador estatisticamentenãosofisticado,baseadoemalgumasdasminhasprópriasexperiências.Porqueoshistoriadoresfreqüentemente estudam períodos durante os quais faltam os dadosseriais,nóspodemossertentadosadesistirdatentativadequantificar.Isto seria umerro.Masesta faltade séries apenas requeradiminuiçãode nossas expectativas e concentração no factível, o que às vezes sig-nifica fazer nada mais do que contar.E, como é verdadeiro para todatécnica de pesquisa, a tarefa deve ser focada no alargamento da nossacompreensãodopassadohumano,aexploraçãododesconhecido,ou

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a identificação de causas e efeitos, e nunca, jamais, levada a efeito sópelo amor de fazer história quantitativa.

Nos princípios dos anos 1970, eu estava correndo os olhos so-breváriostiposdematerialnoArquivoNacionaldoRiodeJaneiroparamefamiliarizarcomoscontornosdoseuacervosobreofimdoséculoXVIII e início do XIX. Ali me deparei com os arquivos da FazendaSanta Cruz, a qual, embora tendo sido uma propriedade dos jesuítas,passou para as mãos régias quando a Sociedade de Jesus foi expulsadosterritóriosportuguesesem1759.Nomeiodaquelespapéisestavaminventários setecentistas de escravos daquela propriedade rural.

Em virtude do meu interesse anterior pela escravidão e de al-gumconhecimentodasuanaturezanoutroslugares,fuisurpreendidopelo fato de que, em um daqueles inventários, os escravoseram lista-dosporgruposfamiliares1.OeminentehistoriadorStanleyStein,emsua obra magistral sobre Vassouras, tinha descrito como os escravosnoBrasileramsegregadosporgêneroeabrigadosemquartéis.Arari-dadedocasamento,argumentava,explicavaparcialmenteabaixataxadecrescimentodapopulaçãoescrava.Mesmoescravoscasadosviviamseparados,encontrando-seapenasbrevemente.Eleaceitouotestemu-nhodeLouisCouty,viajantedoséculoXIX,quediziaque “amaioriadascriançasescravastêmsóumdospais,amãe”2 .EmíliaViottidaCostatinhanotadoque “ossenhores...nãoestimulavamoscasamentosentreescravos,preferindoasligaçõespassageiras.”Referindo-seàs“uniõesdosescravos,”comentouque “raramenteeramconfirmadosporatoreligioso,”concluindoqueosescravosviviamnuma“promiscuidadesexual.”3 Em1965,umsociólogonorte-americano,DanielP.Moynihan,publicouumensaioextremamente influente sobre aestrutura das famíliasnegrasnosEs-tadosUnidos,sustentandoqueelastinhamsidototalmentedestruídaspelaescravidãoequeosnegrostinham,porconseguinte,perdidomes-mooconceitodefamília.Se,emmeadosdoséculovinte,amaioriadascriançasnegras cresciamsemapresençadeumpai, este fatopodia seratribuídoà herança daescravidão.4 As autoridades ea imprensaacei-

1 Inventário dos escravos pertencentes a Real Fazenda de Santa Crus [sic] que o Sargto

Myr Manoel Joaqm da Sa entregou e ficão em cargaa Joaquim Henriques Guerra, CabodaEsquadradoRegmtodeArtilharia,em12dejunhode1791,ArquivoNacional,Cód.808, Vol. 4, fols. 165-84.

2 StanleyJ.Stein,Vassouras:ABrazilianCoffeeCounty,1850–1900(Cambridge,Mass.:Harvard University Press, 1958), pp. 43-44 e esp. 155.

3 COSTA,EmíliaViottida.Dasenzalaàcolônia,CorpoeAlmadoBrasilno.19.SãoPaulo:DIFEL, 1966, pp. 268-269.

4 MOYNIHAN,DanielP.TheNegroFamily:TheCaseforNationalAction.Washington,DC: U.S. Dept. of Labor, Office of Policy Planning and Research, 1965.

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taram suas conclusões sem levantar dúvidas, mas alguns acadêmicosnorte-americanosquestionaramvigorosamentesuasasserções.Oas-suntoeracontroverso:Moynihanrecorreuaumaobraescritanosanos1930porE.FranklinFrazier,umprofessornegroquelecionavasocio-logia na Universidade deChicago, e eu tinha vistoumacrítica severadaobradeFrazier pelohistoriadoramericanoHerbertG.Gutman.5

Gutmanmaistardepublicouumaobrabemfundamentadamostrandocomoasfamíliasescravaspodiamserfortes,mesmosobrevivendoaosrigores de longas separações.6

Estaleiturapréviahabilitou-meaveraspossibilidadesdosdadosàminhafrente.Registreiosnúmerosmanualmenteeuseiumacalculado-raparasomarcolunasecalcularporcentagens–nãohaviaPCsnaquelesdias. Alguns dos resultados são apresentados nos gráficos 1 e 2.

Gráfico 1:Filhoscomesempais,poridade,fazendaSantaCruz,1791(em %).

Asfamíliasnuclearesconstituíamamaioriadoconjuntode377emenosdeumquartodosescravosviviaemunidadesnão familiares.Mais de três quartos de todas as crianças até os 14 anos tinham mãee pai presentes e viviam com seus pais durante todo o tempo. Este éumexemplodecomoumpesquisadorpodeserendipicamentedesco-brirdadosquantitativoseentão,baseadoemseuconhecimentogeralpré-existente,decidircomoelespodemserusadosparaavançarnossoconhecimento do passado.

5 FRAZIER. E. Franklin. TheNegro Slave Family. Journal of Negro History 15 (1930):198–259;GUTMAN,HerbertG.Lephénomeneinvisible:LacompositiondelafamilleedufoyernoiraprèslaGuerredeSécession,Annales:Économies,Sociétés,Civlizations27 (1972): 1197–1218.

6 GUTMAN,HerbertG.TheBlackFamilyinSlaveryandFreedom,1750–1925.NewYork:Pantheon, 1976.

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Gráfico 2: Famílias na Fazenda de Santa Cruz em 1791 por tipo (emnúmeros absolutos e %).

Abreviaturas: H: homens; M: mulheres

Na época em que fiz essa pesquisa pensava que este resultadofosse certamente excepcional. No artigo resultante, tentei anteciparas críticasdeste tipo,reconhecendoqueoregimeescravonaFazendaSanta Cruz, em razão de seu passado jesuítico e por ser uma pro-priedadepública,provavelmentediferianitidamentedaspropriedadesnormais.7 Apesquisasubseqüenteporoutrosmostrou,contudo,queestes resultados não eram de modo algum incomuns, como pode servistonográfico3.8 Fazercomparações éumatarefa importante paraaquelesquetrabalhamcommateriaisquantitativos,oqueé,aliás,ver-dadeiro para todos os historiadores.9

7 GRAHRAM,Richard.SlaveFamiliesonaRuralEstateinColonialBrazil.JournalofSocialHistory9,no.3(1976):382–402,traduzidoemGRAHAM,Richard.Escravidão,reformaeimperialismo. Coleção Debates no. 146 São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 41-57.

8 SobreSantanadeParnaíbavejaosdadosemMETCALF,AlidaC.FamilyandFrontierinColonialBrazil:SantanadeParnaíba,1580–1822.Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1992,p.170;sobreGuaratinguetá,Itú,eParaibunavejaosdadosemGRAHAM,SandraLauderdale.Caetanadiznão:Históriasdemulheresdasociedadeescravistabrasileira.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2005,pp.51-58,easfontesaí citadasqueelagentilmenteme mostrou.

9 Desde a publicação da minha obra sobre aFazendaSanta Cruz, têm aparecido muitosestudos reiterando a freqüência do casamento escravo e a conseqüente estabilidadedas famílias escravos, muito especialmente SLENES, Robert W. Na senzala uma flor:Esperanças e recordações na formação da família escrava--Brasil sudeste, século XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 69-130. Veja também SLENES, Robert W.Lares negros, olhares brancos: Histórias da família escrava no século XIX. RevistaBrasileira de História 8, no. 16 Número Especial (1988): 189–203; PAIVA, Eduardo

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Gráfico 3:Porcentagemdosescravosadultoscasadosemvárioslugares

Aimportânciadas comparações tambémemergiudasminhasmais recentes obras no campo da história social dos envolvidos como comércio de alimentos em Salvador nos fins do século XVIII atéaproximadamente1860.Eraimportanteconhecermaissobreatripu-laçãodasinumeráveisembarcaçõesquetraziamalimentodoRecônca-vo e da costa meridional da Bahia para a cidade. Por sorte, encontreiumrelatóriopreparadopelaCapitaniadosPortosqueespecificavaseunúmeroe condição jurídica (escravo ou livre).10 Isto tornoupossívelprepararográfico4,mostrandoquenegrosepardosconstituíamtrêsquartos das tripulações, e escravos um terço daqueles.

Fiquei surpreso ao ver a quantidade de escravos que eram ma-rinheiros(25.2%),masquandocomparei estesnúmeroscomestima-tivas da composição da população da cidade em 1835 preparadas porJoãoJoséReis,pudeverqueaproporçãodeescravosnasembarcaçõeseraconsideravelmentemenordoquesuaparticipaçãonapopulaçãodacidade como um todo (gráfico 5).11

França.Escravidãoeuniversoculturalnacolônia:MinasGerais,1716–1789.BeloHorizonte:EditoraUFMG, 2001, pp. 155, 159-161; eREIS, IsabelCristinaFerreirados.HistóriasdavidafamiliareafetivadeescravosnaBahiadoséculoXIX.Salvador:CentrodeEstudosBaianos, 2001, pp. 31-32, 36-38, 104-105, 115-116, 122-123.

10 Capitania dos Portos da Bahia, Mapa demonstrativo das embarcações nacionaes danavegação de longo curso e cabotagem bem como do trafico dos portos . . . e dosindividuos que n’ellas trabalhão ou se empregão, 31 dez. 1856, In: Diogo IgnacioTavares (chefe da capitania do porto) ao Ministro da Marinha, Salvador, 20 fev. 1857,AN, SPE, XM-183.

11 REIS,JoãoJosé.RebeliãoescravanoBrasil:Ahistóriadolevantedosmalêsem1835,2aed.São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 24.

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Gráfico 4: Cor e condição das tripulações na baía de Salvador, 1856.

Gráfico 5: Cor e condição da população de Salvador em 1835, em %

Escravosurbanos,comosabemos,eramcontroladospormeiosmuito diferentes em relação àqueles das plantations, pois tinham ha-bilidades especiais e maior mobilidade que exigiam sua cooperaçãonotrabalho.Assimtambémcomosescravos-marinheiros,algunsdosquaiscapitaneavamasembarcaçõesqueelespilotavam.Umavezmais,acomparaçãotornou-seumaparteimportantedaavaliaçãodestapro-va numérica.

Opesquisadoràsvezestemdeconverterainformaçãonão-nu-méricaemdadosquantificáveis.Nosanos1980 eubuscavadescobrirasbasespolíticasdaquelespolíticosquetrabalharamafavoroucontra

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as leisqueafetavamaposiçãodosescravos, tais comoa Lei do VentreLivre, a Lei Saraiva-Cotegipe (Sexagenários), e a Lei Áurea. No co-meço eu me empolguei por ver que os arquivos pessoais de algumasfiguraspolíticasimportantesnoBrasilestavamdisponíveis,eambicio-navausá-lasparaaquelefim.Fiqueientãodecepcionado, aodescobrirqueamaioriadestas cartaspessoais enão-oficiaiseramsimplesmentepedidos, istoé,cartasquepediamfavoresouindicaçõesparaposiçõesnogoverno.Finalmente, contudo,percebi queestapráticadebuscare conceder constituía a mola-mestra da vida política e que este com-portamento merecia atenção por si mesmo. Fiz, então, uma análisequantitativade676pedidos(577antesde1889) dirigidosao Marquêsde Olinda, ao Barãode Loreto, aoMarquêsde Paranaguá, ea AfonsoPena.12 Após ter examinado uma amostra bastante ampla destas car-tas, preparei um modelo de questionário que uma assistente poderiapreencher à medida que ela examinasse cada carta.13

Astécnicasusadasparamanipulardadosquantitativostinhammelhoradomuito,maseramaindamuitomaisdifíceisdoqueseriamhoje.Construímanualmenteumacodificaçãonaqualascolunascor-respondiama variáveis e os númerosem cadacoluna indicavam o es-pecífico.Porexemplo,duascolunastratavamdoprincipalfundamentooferecidopeloremetentepararecomendarumcandidatoparaaposi-ção, o que me fornecia 99 números disponíveis para as entradas taiscomo “idoneidade” ou “lealdade política”. Por esta época podia mevoltar para o uso do computador central, embora ainda dependentedesoftwares extremamente incômodoscomumprogramadeediçãoterrível.Aousarestes instrumentosintroduzipenosamenteosdadosno computador.

Osresultadosjustificaramoesforço.Mesmoapresençadetan-tos pedidos indica um aspecto do comportamento político que nãose percebe na correspondência oficial. E, segundo o padrão mais co-mum, o autor da carta não escrevia em seu próprio favor, mas sim afavor de um terceiro que buscava alguma vantagem ou emprego. Só12% dos missivistas escreveram para assegurar alguma coisa para simesmos. Aliás, em 10% dos casos, as cartas revelam ainda mais umacamada das relações clientelísticas, pois seus autores não pediam poralguémqueoshouvesse procuradodiretamente,maspara um amigo

12 Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Latas 171-174, 207-209, 213-214; Arquivo Nacional, Seção de Arquivos Particulares, Afonso Pena; Arquivo doMuseu Imperial de Petrópolis, I-DPP.

13 Agradeço aassistêncianestetrabalho,aliásbempenoso,deFernandaMariaMonteldeBatissaco.

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deumparente,umparentedeumamigo, ouumamigodeumamigo.O padrão predominante é demonstrado na figura 1.

Figura 1: Correspondência trocada entre pretendentes a cargos eautoridades do Império.

Colhimuitosoutrosfrutosdestaanálise.Porexemplo,fuicapazdeidentificar asposiçõesmaisprocuradas eosargumentosprincipais apre-sentados pelos remetentes a respeito dos interessados (gráficos 6 e 7).

Gráfico 6: Cargos requisitados (em %).

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Gráfico 7: Justificativas apresentadas a favordoscandidatos acargosou favores

Osnúmerosmostraramcomclarezaquenãoeraparaassegurara votação de uma lei ou encorajar alguma mudança napolítica que aspessoas escreviamtantas cartas, certamentenãopara insistir ouopormedidasconcernentesàescravidão,adespeitodofatoqueoshistoria-dores já a muito tempo consideraram a abolição como um ponto deinflexão crucial no passado do Brasil. A maioria dos pedidos estavarelacionada ao desejo do aspirante ao cargo ou do seu patrono poradquirir, exercer oudemonstrar autoridadesobre outros.Amaioriadas justificações apresentadas em favor de alguém não eram aquelaspublicamenteaceitasnumsistemaburocrático,maseramaquelasqueeramefetivasnasvidasparticularesdoscorrespondentes.Tal análisequantitativapermitiu-meadquirirconhecimentoquantoaosvaloressubjacentes da sociedade. Dir-se-ia que descobri a chave da culturapolítica do Brasil.14

Osdadosquantitativospodemàsvezesserusadosparadesafiaro saber convencional. As narrativas do esforço pela independênciabrasileira geralmente se concentram nos papéisdesempenhados porgeneraiseviscondesdeambososlados.Masquandoasforçasbrasilei-rassitiaramacidadedeSalvadoremuitosbarcosbrasileiroscontinua-ramatrazersuprimentos,descumprindoasregrasetornandopossívelparaosportuguesessobreviverempormeses,eranamaioriadasvezesescravosquetripulavamestesbarcos.Seopartidopró-brasileiroapre-

14 GRAHAM,Richard.ClientelismoepolíticanoBrasildoséculoXIX.RiodeJaneiro:EditoraUFRJ, 1997, pp. 271-338.

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endesse alguma destas embarcações, eles as confiscavam juntamentecom a tripulação escrava. A quem estes escravos pertenciam então?Foi um fato muito discutido à época mesmo entre os escravos, que ogeneralLabatut,olíderdoexércitobrasileiro,confiscavaescravosdeproprietáriosruraisqueapoiavamoladoportuguêseosalistavamemseu exército com a promessa implícita de liberdade eventual – “emoutracoisanãofalavam”.15 Certamenteomesmoeraverdadenocasode um “português inimigo” cujo barco foi tomado juntamente comos “três pretos escravos e marinheiros” in 1823.16 Imagino que osescravosnosbarcostivessemsentidoumaumentonoseupoder,poisestavam em posição de denunciar os proprietários e capitães que co-merciassemcomoinimigo.17 Deoutrolado,pode-sesorrirumpoucocom o alarme com o qual os brasileiros reportavam que o generalportuguêsMadeiratinha“tripuladobarcoscomescravos.”18 Claroqueele tinha,poisquemaiselepodiafazer?Osescravosconstituíamumaamplaproporçãodecadatripulaçãoemcadabarconaregião.Emtodoocaso,parececlaroqueosescravosdesempenharamumpapelmuitomaior na luta pela independência do que o registrado nas crônicastradicionais.

Aprenditambémquãoimportanteécolocarosdadosquantita-tivosemcontexto.Porexemplo,aoestudarocomérciodealimentosde Salvador, busquei saber o total de farinha de mandioca negociadopeloceleiropúblicoda cidade.Ográfico8 demonstrao volume cres-centedestegênerodeprimeiranecessidadedadietabaiananoperíodode 1785-1848.19

15 VejaKRAAY,Hendrik.Emoutracoisanãofalavamospardos,cabras,ecrioulos:O‘recrutamento’deescravos naguerrada Independênciana Bahia.RevistaBrasileiradeHistória 22, n°.43(2002):109–26,esp.p.110,eREIS,João José.eSILVA, Eduardo.Negociaçãoeconflito:Aresistêncianegrano Brasil escravista. São Paulo: Companhiadas Letras, 1989, pp. 92-98.

16 ManoelDiogo deSáBarretoeAragão ao ConselhoInterino,SãoFranciscodoConde,13 June 1823, BN/SM, II-33, 36, 19.

17 GRAHAM,Richard.‘Aomesmotempositiantesesituados’:AlutapelasubsistênciaemSalvador(1822–1823).In:JANCSÓ,István(org).Independência:Históriaehistoriografia.São Paulo: HUCITEC, 2005, 411–45.

18 Commissão da CaixaMilitar ao [Conselho Interino],Nazaré,6 jan. 1823,BN/SM, II--31, 35, 1, Doc. 5. Assim tambem pensava o Conselho Interino, Conselho Interino aFranciscoGomesBrandãoMontezumaeSimãoGomesFerreiraVelloso,Cachoeira,16Dec. 1822, inAlexandreJoséMello Moraes(pai), Historiado Brasil-Reino edo Brasil-Imperio, 2 vols. (Rio de Janeiro: Typ. Pinheiro, 1871–73), 2: 42.

19 BaseadonoMappademonstrativo donúmerodealqueiresdosdifferentesgênerosquepagarão acontribuição,eo rendimento,adespeza, eolíquido,e teveprincípio em 9desetembro de 1785 até 31 de maio de 1849, Arquivo Público do Estado da Bahia, SeçãoColonial e Provincial, M.1611 (Celeiro Público).

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Gráfico 8: Farinha descarregada no celeiro público de Salvador, emarrobas.

Porém, o número de consumidores deve também ter aumen-tado. Dispomos de dados censitários limitados nos quais nosapoiar,mas Kátia de Queiroz Mattoso calculou a população da cidade paracada ano de 1805 a 1847 (gráfico 9).20

Gráfico 9: População da cidade de Salvador, l805-1847.

Paracompreenderadequadamenteosignificadodestegráfico,precisei considerarquantosalqueiresde farinhaestavamdisponíveispor pessoa por ano, mesmo que um bebê, por exemplo, obviamentenãoconsumissetantoquantoumadultodosexomasculino.Apresen-to o resultado deste cálculo no gráfico 10.

20 MATTOSO,KátiaM.deQueirós.Bahia:AcidadedeSalvadoreseumercadonoséculoXIX.ColeçãoEstudosBrasileiros,nº.12.SãoPauloeSalvador:HUCITECeSecretariaMunicipal de Educação e Cultura, 1978, p. 138.

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Gráfico 10: Média qüinqüenal por pessoa dos alqueires de farinhadescarregados no Celeiro Publico de Salvador, 1805-1847.

O consumo por pessoa permaneceu virtualmente estável até1820, sofreu um declínio quando a cidade estava sitiada durante aGuerra da Independência, recuperou-se no final dos anos 1820, masdeclinou decididamente nas décadas de 1830 e 1840, anos de instabi-lidade política e de seca.

Um exemplo final dos usos dos dados quantitativos tambémprovém da minha pesquisa sobre a história social de Salvador para aqual precisei achar um jeito para estimar o poder de compra da mo-eda através de várias décadas. Os historiadores sociais muitas vezesdependemnos inventáriospost-mortem,umafonteinestimável.Elasnos contam muita coisa sobre relações familiares, cultura material,práticas de herança, padrões de negócio, assim como a compreensãoda religião, da morte e do bom comportamento. Mas para pôr estesinventáriosemperspectivadeve-seconhecerafortunarelativadosfa-lecidos.Emboratodososinventáriostenhamoinconvenientedesósereferiràquelescomalgumapropriedade,muitosdelescorrespondema propriedades muito modestas, enquanto outros se referem aos ex-tremamentebemafortunados.Assim,antesdetirarconclusõessobrealgumasdasinformaçõesqueuminventáriorevela,éimportantelevaremconta ovalor total da fortuna. Se, contudo,o poder decompradamoeda variou consideravelmente através dos anos,, uma fortuna demuitoscontospodeserumsinalderiquezaextraordináriaaumtempoeserrelativamentecomumentrepessoasdetipomedianoalgumasdé-cadas mais tarde. Comoestabeleceríamoso valor da moeda na épocaem que o inventário foi produzido?

Uma técnica comum é simplesmente converter a moeda emqualquer ano à de uma economia mais estável, por exemplo, a libraesterlinaouodólaramericano.Muitosproblemasdecorremdestemé-todo, contudo:primeiramente, opoder de compra damoedaestran-

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geira pode sofrer alguma mudança mesmo no país que a cunhou.21

Em segundo lugar, num país como o Brasil, commarcadasvariaçõeseconômicas regionais, a taxa de câmbio em um porto não era sem-pre equivalente à de outro.22 Em terceiro lugar, os dados sobre taxade câmbio referem-se principalmente ao período posterior a 1808,aopassoquemuitoshistoriadores,euincluído,estudamperíodosan-teriorestambém(umartigorecentenoBoletimdeHistóriaDemográficapor Nelson Nozoe e outros listam muitos estudos sobre a taxa decâmbio,masnenhumcobrindooperíodocolonial).23 Masaindamaisimportante, pode-se legitimamente questionar se a taxa de câmbio éo melhor guia para o poder de compra local, dado que muitos daspessoas no extremo mais baixo da escala sócio-econômica, nunca ouraramentecompravambensimportadosnemdependiamdiretamentedeexportaçõesparaganharsuasubsistência.Paraestes,oalimentoeramais importante, e comoregra geral o preço dos bensproduzidos lo-calmentetendeaolongodotempoamover-separalelamenteaopreçodo alimento.

Como proceder? Não busquei levar em conta somente a taxade câmbio em Salvador para avaliar a riqueza total dos falecidospelasrazões antes mencionadas. Mas o que fazer sobre o alimento? EuláliaLahmeyer Lobo, em seu clássico estudo da economia do Rio de Ja-neiro de meados do século XIX até 1945, desenvolve um quadro noqual o custo dos gêneros alimentícios de 1820 a 1930 é indexado aosvaloresde1820.Elaponderaváriosalimentosporsua importâncianadietade três classes– trabalhadoresnãoespecializados, trabalhadoresespecializadoseassalariados, eos ricos (emboranãoestejaclarocomoela determine o peso adequado para cada item, exceto para a classedos trabalhadores especializadoseassalariados,poisela sebaseianumestudo de 1949 levado a efeito pela Fundação Getúlio Vargas acercados trabalhadores na metade do século XX). Ela calcula que a farinhademandioca representava38%dosgastos comalimentodeumtraba-lhador não especializado, os feijões, 21% e a carne-seca 17% (não sãoapresentadascifrasparacarnefresca).AAutoracrêqueestestrês itens

21 Veja,e.g.,DERKS,Scott.TheValueofaDollar:PricesandIncomesintheUnitedStates,1860–1999, 2d ed. Lakeville, CT: Grey House Publishing, 1999.

22 Poresta razãoescolhi levaremcontaosdadosparaSalvadoremMATTOSO.Bahia:Acidade de Salvador, p. 243n.

23 NOZOE, Nelson, et al., Brasil: Breves comentários sobre algumas séries referentes àtaxadecâmbio.BoletimdeHistóriaDemográfica(www.brnuede.com).AnoXI,no.32(maiode 2004).Paraumaintrodução aos vários modos de estudaro poderde compraatravésdotempovejaLEFF,NathanielH.UnderdevelopmentandDevelopmentinBrazil,Vol.I:EconomicStructureandChange,1822–1947London:Allen&Unwin,1982,pp.97-130.

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eramosmais importantes eque chegavamatrêsquartosdosgastosdequalquerumnestaclasse.24 EmSalvador,contudo,ondepraticamentetodas asvendas legaisde farinha,arroz,milhoe feijõeseramcarreadaspara o Celeiro Público criadoem 1785, dispomos de estatísticas deta-lhadas sobre o volume destes quatro itens de 1785 a 1849; e a farinhademandiocarespondiapor87.44%dototal,enquantoosfeijõesrepre-sentavam apenas 1.35 %.25 Assim, entre estes quatro itens, opreço dafarinhapareciaomaisimportanteparaosmeuspropósitos.E,conside-randoqueminha intençãoeraavaliar ariquezadosquemorriamcomalguma propriedade, decidi que não consideraria a carne-seca mas sócarnefresca,preferidaporaquelesquepodiampagarporela.Felizmen-te para mim, Kátia de Queirós Mattoso fizera o trabalho de sapadorem calcular o preço da farinha e da carne em Salvador de 1789 a 1908,e estes dados têm a vantagem adicional de incluir os últimos anos doséculoXVIII.Por suavez,elanão foicapazde fornecerpreçosparaosgêneros alimentícios por dez anos, de 1833 a 1842.26

Praticamente todo inventário em Salvador de 1780 a 1860 in-cluía escravos, mesmo aqueles de pessoas que dispunham de poucosbens. É bem conhecido o fato de que o preço dos escravos aumentoudramaticamenteduranteoperíodoqueeuestavaestudando,apesardehaverperíodosnosquaiselesdeclinaram.27 Poressarazão,dispus-mea levar em conta seu preço no cálculo do valor real do conjunto debensdoinventariado.Paraconstruirasériecomosdadosparaamaiorparte do período que me interessava, voltei-me para a obra de MariaJosé de Souza Andrade, baseada no exame de1.269 inventários e quetem dados quase contínuos de escravos africanos moços sadios comofício, de 1811 a 1860.28

Escolhi então o ano de 1824 como o ano base para estabelecerumíndice,pormuitas razões.Ele se situaameiocaminhodoperíodo

24 LOBO, Eulália Maria Lahhmeyer. História do Rio de Janeiro (do capital comercial aocapital industrial e financeiro), 2vols. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978,pp.504, 748-751,958-960.

25 Mappa demonstrativo do numero d’alqueires dos differentes generos que pagarão acontribuição . . . e teve principio em 9 de setembro de 1785 até 31 de maio de 1849,Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, Maço 1611.

26 MATTOSO,KátiaM.deQueirós.Aunouveaumonde:Uneprovinced’unnouvelempire:BahiaauXIXesiècle.1986.Tesededoutorado.UniversitédeParis-Sorbonne,pp.447-458.

27 MATTOSO,KátiaM.deQueirós.KLEIN,HerbertS.ENGERMAN,StanleyL.TrendsandPatternsinthePricesofManumittedSlaves:Bahia,1819–1888.SlaveryandAbolition7, no. 1. maio de 1986. p. 59–67.

28 MANDRADE,Maria Joséde Souza. Amão deobra escrava em Salvador, 1811–1860.Baianada, 8. São Paulo e Brasília: Corrupio e CNPq, 1988, pp. 207-208.

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emestudo.Nessemomento, alémdisto, aguerra pela independênciabrasileiratinhaterminadomasainstabilidadepolíticaqueaseguiunãotinhaaindacomeçado;assimosvalorescontinuavamarefletiracom-preensãocolonialdasrealidadeseconômicas.Aeconomiadeexporta-çãodaregiãoaindaprosperava.E por esse tempo podia incluir dadospara todos os quatro itens da minha investigação. Destarte, prepareium índice geral, baseado nos preços de 1824 da farinha, carne, escra-vos, e a libra esterlina (ou melhor, o pence).

Adecisãomaisdifícil,porém,foisedeviadarmaispesoaalgunsdestes itens do que a outros. Ao ler a obra do economista NathanielLeff, surpreendi-me com a facilidade com a qual este sofisticado eco-nometristaecuidadosoacadêmico,emseuestudosobreoBrasil,con-feriu peso igual a gêneros alimentícios e a moeda estrangeira, apesardedividirosprimeirosemdoismercados,RiodeJaneiroeSalvador.29

Concluíque,dadoquemeupropósitoeraavaliarariquezarelativadosquelegavambensemSalvador,omelhorcursoa tomareradamesmaforma dar peso igual aos quatro fatores escolhidos (farinha, carne,escravos, e moeda estrangeira).Os resultadosda minha investigaçãoestão na tabela 1. Na última coluna apresento um multiplicador queconverteráqualquerquantidadedemoedaparaoequivalenteempoderde compraem 1824 paraSalvador.Estesnúmeros tornarampossívelque eu avaliasse melhor a riqueza relativa daqueles cujos inventáriosencontrei no arquivo. Isto se mostrou um instrumento valioso.

29 LEFF. Underdevelopment and Development in Brazil, Vol. I, p. 124.

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Embora eu não seja um historiador quantitativo, muitasvezes usei dados numéricos em meu trabalho e aprendi muitosprincípios que tentei lembrar (pobremente, sem dúvida). Outroshistoriadores têm frequentemente feito o trabalho que pude usarcomo matéria-prima enquanto buscava respostas para questõesespecíficas. Isto foi certamente verdadeiro quando quis avaliar opoder de compra das cifras em inventários post mortem. Descobritambém a importância de situar dados em seu contexto. Saberquanta farinha era descarregada nas docas em Salvador foi só umprimeiro passo: uma consideração importante foi quanto haviapor pessoa. Os dados quantitativos sobre o número de escravosnos barcos do Recôncavo auxiliaram-me a revisar a crônica tra-dicional da luta pela independência brasileira. Vim igualmente aconceber como informações de outro tipo, isto é, tirados da cor-respondência particular, podem ser computados, e que este traba-lho pode conduzir a novas visões relativos ao passado, neste caso,sobre o clientelismo. Fazer comparações é sempre importante,seja ao se julgar se a proporção de escravos nas embarcações émaior ou menor do que na população geral, seja ao se considerara estrutura das famílias escravas numa propriedade rural. Mais quetudo, descobri que fazer este tipo de análise pode trazer quase tan-ta satisfação quanto experimento quando leio documentos em umarquivo que não tenham sido examinados por outra pessoa desdeque foram arquivados décadas atrás.