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Os Navios da Esperança A Marinha na Amazônia

Os Navios da Esperança do 9º Distrito Naval - Marinha do Brasil

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São 4,5 milhões de quilômetros quadrados – mais da metade do território nacional. Na maior floresta tropical do mundo, a natureza assume proporções incomparáveis. Tudo é grandioso: o verde, a água, a miséria. Debaixo das árvores gigantescas, esconde-se o Brasil sem médicos. Um outro país, refém da pobreza, das doenças, da fome. Quem vive na mais cobiçada das florestas não tem acesso a um direito básico: assistência médica rápida e eficiente. Ao homem amazônico, restaram ervas, raízes e troncos, chás e infusões para a cura de todos os males. Mas, pelo menos uma vez a cada ano, a esperança chega de barco. Tempo de alegria na floresta. É a chegada da "lancha", nome que os caboclos dão ao o Navio-Hospital Carlos Chagas. Um barco salva-vidas que tem a bordo médicos, dentistas, farmacêuticos e muita vontade de ajudar. O Carlos Chagas é um dos três navios da Marinha brasileira que prestam assistência médica às comunidades que vivem às margens dos rios da Amazônia.......

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Índice

Páginas 02/03: Em início de comissão o NAsH U-19 Carlos Chagas segue pelo Paraná do Ramos. O convoo está liberado à espera da aeronave orgânica, que está fora em missão de reconhecimento aéreo. O helicóptero também é empregado para localizar várias comunidades ribeirinhas. Páginas 04/05: Os NAsH contam com consultórios odontológicos modernos e bem equipados, permitindo que seja dada total atenção à saúde bucal das crianças, um dos grandes desafios assumidos pelos profissionais de saúde da Marinha. Páginas 06/07: A proa reta do U-16 Doutor Montenegro permite que ele “abarranque” com extrema facilidade pelas ribeiras da Amazônia. Em muitas localidades não se pode contar com instalações adequadas para a atracação. Assim, abarrancado em frente à comunidade, basta instalar uma prancha e receber os pacientes. Páginas 08/09: O Tucano 7086 do 3o Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3) aparece aqui com sua configuração de combate. No entanto, quando opera como aeronave orgânica nos NAsH, o Helibras Esquilo deixa seus lança-foguetes na base do esquadrão, em Manaus, e voa em benefício da saúde. Página 10: Dois pequenos moradores de Vila Augusto Montenegro (AM) observam o Carlos Chagas fundeado em frente à sua comunidade. Provavelmente, momentos mais tarde os dois deverão assistir às palestras de higiene bucal e passar pela cadeira do dentista. Tudo em benefício de um belo sorriso. Página 12: Um marinheiro hasteia o Cruzeiro na proa de um navio de assistência hospitalar em algum ponto da Amazônia. Em todas as águas interiores e em todo o litoral deste país continente, esse é o indicativo de que a embarcação pertence à Marinha do Brasil.

19 | Amazônia Gigante, Selvagem, Inóspita

33 | O Ribeirinho da Amazônia Raça de Corajosos

47 | Missão: Salvar Vidas! A História do Auxílio ao Brasileiro da Selva

63 | Cinco Vidas de Dedicação Os Homens que dão Nome aos Navios

75 | A Flotilha Os Navios que Singram os Rios da Amazônia

91 | Poucos Fazendo Muito As Tripulações dos Navios da Esperança

103 | Comissão Rio Acima Acompanhando a Marinha em Suas Missões

131 | O Navio Veio... e me Salvou Histórias e Relatos dos Ribeirinhos da Amazônia

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Prefácio

O Brasil tem a maior reserva de água doce e algumas das maiores bacias hidro-gráficas do mundo. Nesse imenso manancial, estima-se que tenhamos 60 mil quilômetros de rios, dos quais 42 são navegáveis. Entretanto, na comparação

com outras nações de dimensões continentais, nosso sistema hidroviário permanece subutilizado, pois apenas 10 mil desses quilômetros são explorados economicamente.

A matriz de transporte é concentrada. De tudo o que é transportado no Brasil, 60% está no modal rodoviário, 33%, no ferroviário e 7%, no hidroviário. Na transição da economia rural para a industrial, na segunda metade do século XX, milhões de brasileiros migraram do campo para as cidades. Com a implantação da indústria au-tomobilística, a população e a produção passaram a viajar sobre rodas. Em 50 anos, foram implantados 196 mil quilômetros de rodovias pavimentadas.

Historicamente, o transporte aquaviário está ligado a nossas origens. Fomos “descobertos” por navegadores europeus que, quando chegaram com suas caravelas à costa baiana, encontraram indígenas flutuando sobre canoas. No período colonial, nossa madeira, ouro, diamante e borracha foram extraídos do solo e do subsolo e embarcados para a Coroa Portuguesa, através dos meios fluviais e marítimos. Podemos dizer que a vocação natural de nossas hidrovias é o transporte de commodities, em grandes quantidades e a longas distâncias.

Atualmente, as vantagens do transporte aquaviário vão da economia de com-bustível à menor emissão de poluentes na atmosfera, passando pela maior eficiência energética. O modal hidroviário exige menor aporte de recursos, viabilizando retorno mais rápido do investimento na comparação com os outros modais. A longa vida útil dos equipamentos de sinalização e das embarcações redunda em custos de operação e manutenção mais baixos. Do ponto de vista ambiental, a implantação de hidrovias produz impacto irrelevante, devido à menor utilização do solo e à leve interferência na flora e na fauna nativas. Representa, ainda, risco menor de acidentes, pela descon-centração das rodovias que levam aos portos.

A estratégia de recuperação da infraestrutura do País, executada por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, estimula a multimodalidade do sistema de transportes. Em relação às hidrovias, entre os gargalos a serem superados está a garantia de navegabilidade permanente nos cursos d’água, seja pela conservação dos canais, seja pela instalação de eclusas junto às usinas hid-relétricas. O PAC está investindo R$ 1,5 bilhão na construção de duas eclusas no complexo de Tucuruí, na dragagem e no derrocamento nas hidrovias Paraná-Paraguai, do São Francisco e do Tocantins, além da construção de 39 terminais fluviais na região amazônica.

A integração entre os modais na circulação das riquezas estimulará a expansão do agronegócio e da extração mineral. O escoamento da produção a custo e distân-cia menores aumentará a competitividade dos produtos brasileiros nos mercados internacionais. Os corredores de navegação irão fortalecer nossa integração com os

Nome do ComandanteComandante da Marinha do Brasil

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Páginas 16/17: O Doutor Montenegro encontra um pequeno espaço para “abarrancar”. Nem sempre é fácil localizar as comunidades que se embrenham na selva fechada, mas logo se forma uma pequena multidão de ribeirinhos, que buscam alento para suas dores nos conveses do Navio da Esperança. Página 18: Quanto mais se conhece a Amazônia mais ela causa espanto e admiração. Quanto mais se procura palavras para descrevê-la mais ela parece fugir dos conceitos comuns. Grandeza e mistério que precisam de proteção e estudo.

Esse trecho inesquecível, e constantemente lembrado, do Hino Nacional Brasileiro, parece talhado para a Amazônia. Da mesma forma, a grande área verde que toma nossa bandeira, nos faz voltar os pensamentos ao fenômeno exube-rante com que à natureza brindou esta terra. Um colosso, que durante muito tempo se manteve impávido devido ao

desinteresse dos descobridores, e que agora, em tempos de exploração predatória, espera ser estudado, entendido e protegido, para que seu futuro espelhe fielmente toda aquela grandeza. A Amazônia é sim um patrimônio da humanidade, da qual nós, brasileiros, somos fiéis depositários.

Mas afinal o que é este pedaço de Brasil tão desconhecido pela maioria de seus filhos; esse lugar de intensos contrastes que nós brasileiros admiramos com espanto na tela da TV; esse mundo que, de tão plural e diverso, não cabe em definições simplistas? Gigante ninguém tem dúvida. A Amazônia brasileira representa mais da metade dos 8.500.000 quilômetros quadrados do território brasileiro. Uma fronteira verde tão poderosa que ultrapassa os limites nacionais. Países como a Guiana, Guina Francesa e Suriname, têm a maior parte de seus territórios cobertos por ela. Já na Venezuela e na Colômbia essa cobertura gira em torno dos 40%. Peru e Bolívia não ficam muito atrás. Naqueles países, a floresta recebe a moldura da cordilheira andina, nascedouro de muitos rios que drenam a floresta. Por outro lado, no Equador, que como sabemos não possui fronteiras com o Brasil, é onde se verifica o menor avanço da floresta.

Em extensão, a área da Amazônia brasileira equivale, por exemplo, a soma dos territórios da Índia, do Reino Unido, da Alemanha, da Suécia, da Itália e do Japão. Para se ter uma idéia do gigantismo, apenas Marajó, a maior ilha fluvial do mundo, localizada na foz do rio Amazonas, possui uma área equivalente ao território da Bélgica ou da Suíça.

Politicamente, essa imensidão de terras se insere na Região Norte, constituída desde a promulgação da Constituição de 1988, pelos estados do Amazonas, Pará, Tocantins, Roraima, Amapá, Rondônia e Acre. São mais de 15 mil quilômetros de frontei-ras com nossos vizinhos, formando uma região de grande importância estratégica para a segurança e a soberania nacional. Hoje, muitos terão dificuldades em lembrar que alguns estados da região passaram a fazer parte da federação como simples territórios, alguns desmembrados de estados como o Amazonas e o Pará. O Acre foi o primeiro, em 1903. A área do atual estado foi alvo de uma acirrada disputa entre brasileiros e bolivianos durante o auge da exploração da borracha. A pendência foi resolvida através de um acordo negociado pelo Barão do Rio Branco. Pelo Tratado de Petrópolis, o Brasil incorporou os 191 mil quilômetros quadrados do território e a Bolívia foi indenizada em dois milhões de libras esterlinas, além de receber a promessa de que seria construída uma ferrovia para escoar a produção boliviana. Aquela pendência deixou claro às autoridades brasileiras, que numa região de limites tão vastos, e de rarefeita ocupação, as regras deveriam ser outras. Os territórios federais não tinham autonomia executiva, legislativa e judiciária. Seus dirigentes eram nomeados pelo Poder Federal, que assim, tinha liberdade de ação quando alguma ameaça se apresen-tava nas fronteiras. Ameaça como a que passou a representar a zona fronteiriça com a Guiana Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Atento, o governo de Getúlio Vargas tratou de criar os territórios do Rio Branco (atual Roraima), Amapá e Guaporé (atual Rondônia), na seqüência do conflito.

A Força da Floresta

Poucos lugares deste planeta estão deitados eternamente num berço tão esplêndido quanto a Amazônia. Aliás, ela é um dos mais lindos, verdejantes e imensos jardins que a natureza criou em todo o planeta e, a despeito de todas as agressões que tem recebido, ainda é considerado o mais importante ecossistema terrestre, tanto em extensão, quanto pela variedade de espécies animais e vegetais. Adjetivar a Amazônia de modo ufanista e pomposo parece uma obviedade, mas é exatamente isso que vem a mente de qualquer pessoa que mantenha contato com a região. É muito comum, e necessário, que as estatísticas apresentem comparações entre o que foi a Amazônia e o que ela está se tornando. Aquela metade verde do Brasil precisa de constante cuidado, estudo e vigilância. Os números são apenas um alerta de que algo está acontecendo. Um lembrete de que possuímos um patrimônio de incalculável valor, um sistema complexo, que a natureza criou lenta e engenhosamente, e do qual começamos a ler as primeiras páginas do manual de instruções.

As primeiras linhas nos contam que a floresta amazônica, e a bacia do rio Amazonas, resultam de fenômenos geológicos que começaram a ocorrer no planeta há cerca de 100 milhões de anos, no Período Carbonífero. Toda aquela região era, originariamente,

Amazônia Gigante, Selvagem, Inóspita

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como uma imensa baía, que apresentava uma vasta abertura em seu lado oeste, e se encaixava entre duas plataformas, o Escudo das Guianas, ao norte, e o Escudo do Brasil Central, ao sul. Ao longo de um processo que durou milhões de anos, todo esse conjunto se elevou acima dos oceanos, e a antiga baía tornou-se uma gigantesca depressão que passou a funcionar como uma calha, recebendo a água que drenava por todo o continente. Todo esse volume de água encontrava saída até o Oceano Pacífico, vale dizer, que o rio Amazonas que hoje conhecemos, corria de leste para oeste. Isso começou a mudar há 70 milhões de anos. O continente terrestre, até então único e íntegro, começou a se desmembrar, formando vários outros continentes menores. Um deles, o africano, destacou-se, abrindo uma saída para as águas a leste. Na seqüência, há 12 milhões de anos, a Cordilheira dos Andes se eleva de norte a sul do continente, bloqueando em definitivo a saída para o Pacífico, e o Amazonas começa a correr para o lado certo, desaguando e empurrando o Atlântico com a toda a sua magnitude. Outro período de tempo inimaginável se esgota, até que o leito do rio possa se estabilizar, permitindo que, lentamente, as áreas em suas margens sequem. Então, com o aparecimento das primeiras espécies vegetais, a natureza começa a formar aquele jardim que tanto admiramos.

Esse éden idílico, que já foi chamado de “Inferno Verde” e, atualmente, carrega sobre seus ombros a respon-sabilidade de ser o “pulmão do mundo”, abriga uma coleção de espécies vegetais cuja avaliação gera polêmica entre os es-tudiosos. Estima-se algo em torno de 60 mil espécies, número que é constantemente corrigido e ampliado pelas pesquisas. Pode parecer exagero, mas há quem sustente a tese de que, em apenas um quilômetro quadrado de floresta amazônica, podem ser encontrados mais espécies que em toda a Europa.

A parte mais visível desse sistema é o grande manto verde que cobre toda a região. As gigantescas árvores que o formam tem sido alvo constante da ambição desmedida dos ma-deireiros, da falta de planejamento e do descaso. O modo como a região amazônica sempre foi olhada, como fonte inesgotável de recursos vegetais, vem se configurando como uma balela irresponsável, pois a floresta não tem conseguido se recuperar na mesma velocidade em que é derrubada. O alerta que vinha sendo feito por ecologistas e demais estudiosos, aparece agora de forma escandalosa nas imagens feitas a partir de satélites. A Amazônia está sendo derrubada e queimada num ritmo nunca visto. Registra-se há décadas uma intensa exploração predatória, que provocou danos incalculáveis, de difícil e custosa recupera-ção. As várias e mal-sucedidas tentativas de implantar projetos agrícolas nas áreas devastadas, acabaram por revelar uma lei natural irrefutável que vigora em todo o sistema amazônico. Em seu parágrafo único, essa lei determina que a exuberância da floresta se apóia num delicado equilíbrio, e que a manutenção deste depende da interação entre inúmeras formas de vida. A incalculável quantidade de matéria orgânica produzida pelos vegetais é ininterruptamente decomposta, reciclada, e rein-corporada ao solo por uma imensa gama de organismos, que trabalham para fornecer as plantas os elementos químicos que elas necessitam para crescer e se reproduzir. Exatamente, é uma cadeia simbiótica, que quando se desequilibra, ou é quebrada, perde sua capacidade de produzir vida.

Página 21: Um mundo de verde e água. Para navegar na Amazônia é preciso conhecer e respeitar o regime das águas. Durante meses grande parte da floresta fica inundada formando verdadeiros labirintos. Em outras épocas os níveis dos rios ficam tão baixos que só permitem a navegação de pequenas embarcações.

Voando em meio a todo esse verde que ainda se mantém, encontramos a mais rica avefauna do planeta. Nada menos do que 10% de todas as espécies de aves identificadas no mundo vivem na região, enchendo a floresta de sons e co-res. Sob as águas há outro tesouro, que fez a fama da culinária amazônica e despertou o interesse de aquariofilistas em todo o mundo. São cerca de duas mil espécies de peixes, uns prestando favores ao paladar, outros mantendo o Brasil na lista dos maio-res exportadores de peixes decorativos, muita vezes de forma ilegal e predatória. Entre os entomologistas o deslumbre é ainda maior. Poucos desses pesquisadores se arriscariam a quantificar o número de espécies de insetos, mas calculam, modestamente, que eles devem representar 80% de toda a fauna local. Mamí-feros também marcam na sua presença na Amazônia, apesar da perseguição que fez com que muitos tenham sido incluídos nas listas de animais ameaçados de extinção. Um deles, o peixe-boi amazônico tornou-se um símbolo da luta preservacionista. Outro, o boto cor de rosa, ou tucuxi, é praticamente um símbolo da própria Amazônia, incorporado que foi às lendas e contos populares. Entre os primatas a coleção é das mais extensas e estudadas, e o número de espécies só fica a dever ao continente africano. Por outro lado, grandes felinos como a onça-pintada, antes extensamente disseminada pela região, vem enfrentan-do grande perseguição em virtude do avanço das fronteiras agrícolas, e da introdução do gado em seu ambiente. Por fim, répteis, anfíbios e quelônios, que ali existem em quantidades e variedades impressionantes, ajudam a formar um enorme contingente de animais diretamente ligados ao sistema hídrico.

Para alimentar todo esse imenso e rico sistema, nada mais apropriado que um rio igualmente majestoso. O Amazo-nas forma a maior bacia hidrográfica do Brasil, e do mundo. São quase sete milhões de quilômetros quadrados de terras drenadas pelo rio principal, por seus afluentes e subafluentes. São mais de sete mil cursos d’água que unem forças para formar aquela grandeza. Durante muito tempo, a exata localização da nascente do Amazonas constituiu um grande mistério geográfi-co. Hoje, sabemos que tem sua origem nos Andes peruanos, a mais de cinco mil metros de altitude, de onde vem descendo e ganhando volume, sem respeitar limites nacionais ou dar crédito às divisões impostas pela geografia. Desde a nascente até entrar em território brasileiro, ele é chamado de Marañon. Ao deixar para trás as fronteiras com o Peru e Colômbia, toma o nome de Solimões e, após o famoso encontro com as águas escuras do rio Negro, ele passa finalmente a se chamar Amazonas. Da nascente a foz são 6.868 quilômetros de extensão, deixando para trás concorrentes de peso como o Congo e o Mississipi. Em volume de água também não perde para ninguém. Sua vazão é de 180 milhões de litros por segundo, ou seja, ele lança no Atlântico um Mississipi a cada dez dias. O Amazonas faz um rio como o Tâmisa, o maior da Inglaterra, parecer um filete de água, pois a vazão de um ano inteiro do rio inglês representa o fluxo de apenas um dia do nosso gigante. E é tal força com ele invade o mar, que por centenas de quilômetros o Atlântico apresenta sedimentos e se conforma em ter suas águas adoçadas. Bem ao fim do século XV, ao navegar por essas águas salobras, foi que os navegadores do Velho Mundo tiveram a ventura de conhecer o maior rio do mundo.

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Páginas 22 e 23: O “Carlos Chagas” sobe o rio Trombetas. A beleza exuberante dos rios amazônicos encobre por vezes as carências da popula-ção. Todavia, com a grande experiência adquirida na região, as tripulações dos NAsH sabem exatamente onde encontrar o alvo de sua missão.

A Partilha de um mundo novo

Ao longo da história, o traçado das fronteiras políticas da região amazônica foi tão volátil quanto os desejos e sonhos dos poderosos. Em 1494, portanto, seis anos antes da descoberta de Pedro Álvares Cabral, Portugal e Espanha, as duas maiores po-tências ultramarinas do século XVI, fizeram a partilha das ainda “desconhecidas” terras americanas. O Tratado de Tordesilhas estabelecia um meridiano situado a 370 léguas (aproximadamen-te 2.000 km) a oeste de Cabo Verde, definindo que os domínios espanhóis ficariam a oeste deste limite imaginário. Aceitando essa partilha, Portugal concordava em entregar a sua grande rival uma área de seis milhões de quilômetros quadrados, que incluía praticamente toda a atual Amazônia. Todavia, o tempo acabou demonstrando que ambas as partes nunca tiveram as melhores intenções, e que o tal tratado seria constantemente desrespeitado.

Inicialmente, a Coroa espanhola mostrou-se mais inte-ressada em reforçar sua presença na América e, através da “mão-pesada” de Francisco Pizarro e Diogo Almagran, que atuavam na Bolívia e no Peru, e do tristemente lendário Hernán Cortez, no México, arrancar dos indígenas todo o ouro e a prata que pudesse ser levada para Madri. Por seu lado, Portugal também encontrou muito o quê fazer na longa faixa litorânea que lhe coube. A exploração do pau-brasil capitaneou o primeiro ciclo econômico da nova colônia, e segundo estimativas recentes, calcula-se que tenham sido retiradas da matas brasileiras 70 milhões de árvores em três séculos de extração predatória. Muito antes de se exaurirem as reservas de pau-brasil, uma outra planta passou a atrair a atenção da Corte: a cana-de-açúcar. Trazida da Ilha da Madeira, onde já era um comprovado sucesso, foi implantada com excelentes resultados no nordeste brasileiro, e logo se tornou o principal produto de exportação da colônia e fonte inesgotável de renda para a Corte. Estagnado pelo lucro fácil, Portugal só começaria a empurrar com mais firmeza os limites do Tratado de Tordesilhas quando o brilho do ouro das Minas Gerais e do Mato Grosso chegou a seus olhos, já no final do século XVII.

Pioneiros de Espanha

Enquanto isso, a Amazônia era uma terra aberta à investida de espanhóis, ingleses e franceses. Para aquilatar o inte-resse que despertava aquele mundo verde e desconhecido, basta lembrar que, entre 1499 e 1570, a Coroa espanhola patrocinou nada menos que 22 expedições à região. A primeira delas ocor-reu poucos meses antes da chegada de Cabral à costa brasileira. Comandada por Vicente Yanez Pinzon, a pequena frota chegou a Ilha de Marajó em janeiro de 1500. Após percorrer um curto trecho da costa nordestina, Pinzon retornou ao ponto inicial, ali encontrando à foz de um grande rio que o impressionou vivamente. Era o Amazonas, ao qual batizou, aliás com muita propriedade, como Santa Maria de La Dulce Mar.

Já Francisco de Orellana, outro espanhol, não foi tão prudente. Cabe a ele a primazia de ter realizado a primeira travessia do rio Amazonas. A viagem foi motivada por interesse comercial, pois Orellana, assim como Gonçalo Pizarro, que o

Páginas 22/23: O Carlos Chagas sobe o rio Trombetas. A beleza exuberante dos rios amazônicos encobre por vezes as carências da população. Todavia, com a grande experiência adquirida na região, as tripulações dos NAsH sabem exatamente onde encontrar o alvo de sua missão. Página 25: Duas lendas se cruzam. Após deixar a sede da Flotilha do Amazonas, em Manaus, o Carlos Chagas chega ao encontro das águas do rio Negro com o rio Solimões. Daí para frente o já lendário navio seguirá pelas águas do maior rio do mundo.

acompanhava, estavam à procura das especiarias indígenas, como o guaraná, o urucum e a castanha, conhecidas naquele tempo como “drogas do sertão” e, obviamente, do ouro. Em 1539, a expedição saiu de Quito, no Equador, seguindo por terra durante sessenta extenuantes dias até encontrar o rio de los Omáguas, atual rio Napo. A descida deste rio frustrou aqueles homens acossados pela fome e pelas doenças. Dos indígenas, a única coisa que receberam foram flechadas. A essa altura, Gonçalo Pizarro decide abandonar a expedição e retorna a Quito. Orellana, convencido de que seria impossível enfrentar a correnteza do rio, resolve continuar a descida do Napo em companhia de 57 homens, entre eles o Frei Gaspar de Carvajal, a quem se deve os registros da viagem. A descida rio abaixo até a foz do Amazonas exigiu daqueles homens oito longos meses de penoso esforço. Segundo Carvajal, a fome chegou a tal ponto, que os obrigou a comer seus próprios cintos e sapatos de couro, tornados mais “palatáveis” após longa fervura. Talvez, como reconhecem muitos historiadores, o relato do frei dominicano esteja carregado de exageros e fantasias. Seja como for, em um dos trechos mais conhecidos de sua crônica, Carvajal descreve o ataque das índias amazonas, mulheres altas, brancas e ferozes. Isso foi o bastante para reavivar uma antiga lenda, e promover a denominação do Rio das Amazonas.

Presença portuguesa

Oficialmente, a farra naquele El Dorado amazônico acabaria em 1750, quando Portugal e Espanha voltaram à mesa de negociações e assinaram o Tratado de Madri. Dessa vez, não se tratava de arbitrar uma linha imaginária, mas determinar o que cabia a cada Coroa, pelo direito adquirido com ocupação efetiva da terra. Naturalmente, levou ainda muito tempo para que espanhóis, ingleses, holandeses e franceses, reconhecessem a nova realidade imposta pelo Tratado, mesmo porque, as autoridades portuguesas tinham poucos meios de impor regras sobre aqueles vastos e atraentes domínios. Mesmo assim, entre generosos lapsos de tempo, a Coroa portuguesa pode contar com os esforços de dois desbravadores notáveis que, com grandes sacrifícios pessoais, concorreram para a ocupação da terra brasileira.

O primeiro deles foi Pedro Teixeira que comandou a primeira expedição a subir o Amazonas. Ele não era um nova-to em seu ofício, já possuindo considerável conhecimento da região, onde era destacado para dar caça a invasores e a índios. Não fazia muito tempo, os franceses e sua França Equinocial tinham sido expulsos da costa maranhense, e através daquela expedição, Portugal pretendia mostrar à concorrência que novas tentativas de colonização não seriam bem-vindas. Em 28 de outubro de 1637, por ordem do governador da Província do Maranhão, Pedro Teixeira partiu de Cametá, no Pará, tendo sob seu comando 70 soldados e 1.200 índios, todos embarcados em meia centena de grandes canoas. Bem equipada e planejada, a frota teve a rara ventura de encontrar poucos percalços pelo caminho. Passado quase um ano, a expedição alcançou Quito, no então Vice-Reinado do Peru, onde Teixeira toma posse das terras, ainda que, oficialmente, elas fizessem parte da Coroa espanhola. A bem dizer, a expedição comandada por Pedro

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Página 27: Cercado de água por todos os lados, os ribeirinhos logo aprendem a conviver com os habitantes da mata. Alguns são sua fonte básica de alimento, como os peixes. Outros, como esse jacaré, são um perigo constante.

Teixeira acontecia pouco tempo antes do fim da União Ibérica. Desde 1578, quando do falecimento de Dom Sebastião, que não deixou descendentes diretos, instalou-se uma crise sucessória que permitiu a Espanha incorporar o Reino português. Em 1640, essa situação seria revertida graças a Dom João IV, que apoiado pela Holanda e pela Inglaterra, recuperou a autonomia portu-guesa. Como se pode imaginar, durante mais de sessenta anos a existência da União Ibérica proporcionou aos portugueses o livre acesso as terras espanholas. Pedro Teixeira apenas se antecipou ao fato histórico, e fez história. Na volta a Belém, trouxe um enviado do Vice-Rei do Peru, o padre Cristóvão de Acuña, que passou a se responsabilizar pelos registros de viagem que seriam despachados para Felipe III, rei de Espanha. Ao minuciosas anotações de Acuña foram reunidas numa publicação intitulada Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas, que foi rapidamente retirada de circulação pelo governo espanhol, temeroso em não inflamar as pretensões territoriais portuguesas, e a cobiça pelas ricas minas peruanas. Pedro Teixeira, que não viveria para testemunhar a autonomia de Portugal, traria em sua bagagem ainda uma última e inestimável contribuição: o primeiro mapa da Amazônia.

Cerca de uma década depois partia para a região Raposo Tavares, um conhecido bandeirante que alcançou grande renome como caçador de índios. Em 1648, convocado pela Corte, ele partiu de São Paulo a frente de dois mil homens com a missão de explorar as terras a oeste da linha do Tratado de Tordesilhas. A bandeira desceu o rio Tietê e adentrou o rio Aquidauana, já em Mato Grosso, aquela época uma terra ainda intocada pelo homem branco. No final daquele ano atingiram o rio Paraguai, seguindo daí até a embocadura do Guapaí, porta de entrada para Potosi, na Bolívia, uma terra quase lendária para os caçadores de ouro. Naqueles domínios espanhóis, Ra-poso Tavares e seus homens enfrentaram tantas dificuldades, que as douradas promessas de Potosi pareciam um insuportável castigo divino. Quando se viram reduzidos a poucas dezenas de homens debilitados, decidiram retornar, empreendendo a difícil travessia do rio Madeira, de onde, num esforço final, atingiram o rio Amazonas. Raposo Tavares e os poucos companheiros que retornaram, eram pálidas lembranças daqueles homens que há quatro anos tinham largado das margens do Tietê, carregados de sonhos e expectativas. Se não retornaram com as riquezas esperadas, puderam contribuir em muito para a afirmação do domínio português, através de descobertas geográficas e conhe-cimentos insuspeitados sobre a região amazônica.

Atraindo os olhares do mundo científico

Hoje, quando tanto se fala do interesse estrangeiro pelos inúmeros recursos naturais da Amazônia, quando a comunidade científica mundial rende homenagens à biodiversidade da região, e que, tudo que ali parece grande, majestoso e infindável, ainda carece de uma avaliação mais apurada, devemos olhar criticamente o passado e entender que este interesse não é novo, nem descabido. A grandeza e a riqueza da região vêm, há séculos, povoando os sonhos de botânicos, zoólogos, geógrafos, comerciantes, artistas, aventureiros, conquistadores e aristocratas. Enfim, uma gama infindável de seres humanos que foram conquistados pelo de-safio daquele pedaço inóspito do Brasil. A Amazônia foi palco

JACARÉe patíbulo de homens e mulheres, que deixaram seus países de origem, e ali teceram históricas memoráveis. Via de regra, a sa-bedoria de mensurar os riscos envolvidos fez a diferença entre o sucesso e o trágico. Certamente, não se deve entender que todo o olhar estrangeiro sobre a imensidão amazônica venha acom-panhado de um movimento dominador ou predatório. É fato, que boa parte do conhecimento que hoje temos daquele mundo fascinante, deve-se ao trabalho de pesquisadores estrangeiros verdadeiramente imbuídos do espírito científico.

Um desses grandes pesquisadores foi Alexandre Ro-drigues Ferreira, um baiano. Sua viagem se reveste de uma importância ímpar, pois foi a primeira oficialmente enviada pela Corte de Lisboa, à época sob o reinado de D. Maria I, para fazer o reconhecimento dos recursos naturais da colônia. O ponto de partida da expedição foi Belém, no Pará. Em outubro de 1783, Ferreira, acompanhado de desenhistas e de um botânico, parte dali para cumprir uma missão de múltiplos objetivos. Naqueles tempos, seria impensável fazer alguém atravessar um oceano com o simplório objetivo de coletar plantas e desenhar aves. Havia uma demanda por informações preciosas que a expedição precisava atender. Assim, além de fazer um levantamento dos aspectos naturais, era necessário avaliar o potencial agrícola da região e, além de tudo, identificar possíveis marcos naturais que permitissem demarcar uma linha de fronteira entre o território da colônia e as terras espanholas da Colômbia e da Venezuela. Não era pouco trabalho. Alexandre Ferreira começou por fazer um levantamento da costa do Pará, da Ilha de Marajó e, chegou até a foz do Tocantins, de onde pretendia atingir o rio Negro. Para tanto, foi preciso enfrentar por cinco meses a força do rio Amazonas. Uma ninharia, comparando-se que a expedição precisou de quase um ano para chegar as partes mais altas do rio Negro, já na zona de fronteira entre domínios portugueses e espanhóis. Naquele tempo, uma terra de ninguém franqueada aos mais ousados. Durante suas longas travessias fluviais, Ale-xandre Rodrigues fez detalhadas observações das comunidades indígenas, dos aspectos naturais da região e ampliou o conhe-cimento dos rios da região. A importância de seu trabalho foi reconhecida devido aos criteriosos e detalhados relatórios de viagem que redigia, e que enviava a corte, acompanhados das mais variadas espécies de aves, plantas e minerais. Nada escapava a seu olhar atento, que abriu os olhos da Corte para as riquezas de sua distante colônia.

A mesma sorte não teve um dos maiores naturalistas de todos os tempos. O alemão Alexander Von Humboldt bem que tentou conhecer a Amazônia brasileira, mas nossas fronteiras se fecharam para sua expedição. As autoridades portuguesas sediadas em Belém, desconfiadas das intenções do naturalista, impediram sua entrada na região. Em contraponto, recebeu permissão de livre trânsito nos territórios que pertenciam a Coroa espanhola. Em vista disso, as pesquisas de Humboldt ficaram restritas à Ilha de Cuba, ao Peru, ao Equador, a Colômbia e a Venezuela. Mesmo assim, entre 1799 e 1804, período em que es-teve pela América, pode realizar extensas investigações científicas, sobremaneira na área da geografia, o que lhe permitiu afirmar categoricamente, que havia, como de fato há, uma ligação entre as bacias dos rios Orenoco e Amazonas. Feito impressionante para quem sonhava atravessar o continente americano, entran-do por aquele mesmo Orenoco e navegando pelo Amazonas

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até alcançar o Atlântico. Em tempos anteriores à abertura dos Portos por D. João VI, Humboldt teve que se contentar com sua teoria, pois a prova cabal morreu nas mãos da burocracia portuguesa da época.

Todavia, o sonho do sábio alemão tinha sido realizado não havia muito, mas por um francês. Charles-Marie de La Condamine era integrante de uma expedição enviada pela Academia de Ciências de Paris, que deveria comprovar, ou não, a teoria lançada por Sir Isaac Newton. Dizia o eminente físico e astrônomo inglês, cuja genialidade o levaria à glória, que a Terra teria a forma de uma elipse, e que apresentaria os pólos achatados. Newton estava coberto de razão, mas nosso pobre Charles-Marie, por conta de seu particular empenhado nas medições físicas, e a mercê de uma série de contratempos, ficou por essas plagas nada menos que dez longos anos. Tempo suficiente para que vários membros abandonassem a expedi-ção. Coube a La Condamine, em companhia de um jesuíta, a honra de empreender a descida do rio Amazonas. Eles par-tiram do Peru em maio de 1743 e chegaram à Belém quatro meses depois. Nessa época, a teoria de Newton já tinha sido comprovada por um colega de La Condamine, mas nem isso empanou o brilho de seu trabalho. Deve-se a ele um excelente trabalho de cartografia do rio Amazonas, e a coleção de inú-meras espécies de animais e vegetais, até então desconhecidas do meio científico.

Mas quando o assunto é botânica, não houve presença mais marcante em terras amazônicas que a de Karl Friedrich Philipp Von Martius. Aos 23 anos, o botânico alemão, chegou ao Brasil como integrante da comitiva austríaca que acom-panhava a Princesa Leopoldina, futura esposa de Dom Pedro I. Entre 1817 e 1820, em companhia de seu compatriota, o zoólogo Johann Baptiste Von Spix, percorreu cerca de 10 mil quilômetros pelo interior do Brasil imperial, coletando informa-ções sobre todos os aspectos da terra brasileira. Suas impressões ficaram registradas numa obra em três volumes intitulada Viagem pelo Brasil, na qual dedica especial atenção à Região Norte. No entanto, o trabalho mais colossal empreendido por Von Martius ainda levaria 66 para ser finalizado, e teve que contar com a colaboração de 65 pesquisadores que assumiram o trabalho após a morte do botânico, ocorrida em 1868. Flora Brasiliensis é uma coleção de 40 volumes, onde se encontram catalogadas 22.767 espécies vegetais brasileiras, coletadas por Von Martius durante os anos de permanência no Brasil. Até hoje, é considerada a mais completa obra sobre nossa flora.

Jean Louis Rodolphe Agassiz nasceu na Suíça, em 1807. Teve uma sólida formação científica dentro da carreira de medicina, doutorando-se ainda muito jovem pela Univer-sidade de Munique. Aos 19 anos sua carreira sofreria uma reviravolta marcante. Após o retorno a Europa, Von Martius se vê em dificuldades para catalogar toda a imensa coleção de espécies trazidas do Brasil por conta do prematuro falecimento de Johann Spix, seu grande colaborador. Grande parte dessa coleção é constituída de peixes coletados no rio Amazonas. Sob orientação de Von Martius, Agassiz assume a tarefa que o tor-naria um dos maiores ictiólogos da época. Paralelamente a esse trabalho, Agassiz passa a colaborar com o grande paleontólogo Georges Cuvier na classificação de fósseis de peixes coletados

Página 29: Bela e perigosa. Muitos animais do habitat amazônico, como essa jararaca verde, são de uma beleza deslumbrante que encanta os estudiosos e atrai a lente dos fotógrafos. No entanto, para os ribeirinhos ela é apenas mais um perigo que ronda nas matas.

em pela Europa. Em 1846, transfere-se para os Estados Unidos onde assume a cátedra de zoologia na renomada Universidade de Harvard, o que só faz aumentar sua fama. Menos de vinte anos depois, vivamente impressionado pela obra intitulada “Pei-xes do Brasil”, Dom Pedro II convida Agassiz para uma visita ao Brasil. Entre 1865 e 1866, em companhia de sua mulher Elisabeth Cary, Agassiz comanda uma expedição que atravessa o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Nordeste e Amazônia. Durante a viagem foram coletadas mais de trezentas espécies de peixes, além de anotações sobre botânica, geologia, hábitos, costumes, formação e miscigenação étnica das regiões visitadas. Em 1868, Agassiz lança o livro “Viagem ao Brasil”, um dos mais ricos e detalhados relatos de viagem já feitos sobre a Amazônia.

A lista de visitantes é extensa, mas não pode ser finaliza-da sem o registro da presença de dois cientistas notáveis em terras amazônicas. Em 1848, desembarcaram na região os ingleses Alfred Russell Wallace e Henry Walter Bates, para empreender uma série de investigações que amparassem uma teoria desenvol-vida por Wallace. Ele vinha buscando evidências de um princípio que denominava como seleção natural. A tese, que causaria uma polêmica incendiária no meio científico, e daria notoriedade mundial a Charles Darwin, vinha sendo desenvolvida em paralelo pelos dois cientistas, sem que eles praticamente se conhecessem. Em 1858, Wallace e Darwin, apresentaram suas conclusões aos colegas da Linnean Society, em Londres. Fiel à grandeza de seu caráter, Wallace reconheceu a qualidade do trabalho de Darwin e, coube a este, a autoria da obra que passaria a ser conhecida como Teoria da Evolução.

Bates, que havia se separado de Wallace, em 1850, permaneceu por onze anos explorando a região amazônica, ilustrando e coletando material botânico e zoológico para o Museu de História Natural de Londres. A coleção de espécies animais, principalmente insetos, é ainda hoje a maior já reu-nida por um só pesquisador. O interesse que a exuberância da Amazônia despertou em Bates, é flagrante nas páginas de seu famoso livro, Um Naturalista no Rio Amazonas, onde expõe suas experiências naqueles anos em que conviveu entre os indígenas.

Conta-se que Bates, estimulado pelas inebriantes descobertas nesse Novo Mundo e, com toda certeza, pelo calor equatorial, teria deixado de lado toda a fleuma britânica, assim como as inadequadas roupas européias, para se integrar de vez aos costumes de seus anfitriões. Foi um exemplo de integração poucas vezes seguido. Através de seus relatos de viagem, muitos estudiosos passaram ao Velho Mundo uma visão estereotipa-da dos primitivos brasileiros que aqui encontraram. Parte da intelectualidade européia dos séculos XVIII e XIX chegava ao Brasil na expectativa de encontrar o “bom selvagem”, um modelo de homem perfeitamente integrado ao seu ambiente, pacífico e generoso. Em contrapartida, os conquistadores viam nos indígenas uma fonte abundante de mão-de-obra escrava, seres inferiores que deviam ser submetidos pela catequese e pela espada. Naturalmente, essas visões distorcidas acarretaram sofrimentos e o extermínio de muitas populações indígenas. Revendo a história de nossa colonização, chega a causar espanto que a cultura daqueles primeiros brasileiros tenha resistido e encontrado forças para se integrar à formação de um povo corajoso como poucos.

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Páginas 30/31: Porto de Parintins (AM) numa tarde de sexta-feira. O U-19 encerra sua primeira semana de trabalho e vai descansar junto ao colorido dos “re-gionais”. A cada comissão, novos conhecimentos e conquistas se somam no histórico da Flotilha de Saúde, confirmando o acerto da decisão que a Marinha do Brasil tomou há 25 anos. Página 32: Nem bola nem carrinho. No meio da Amazônia não tem brinquedo a pilha, nem internet e nem videogame. São macacos, maritacas, papagaios e araras que enchem de vida as brincadeiras da criançada.

Como podemos ver a esmagadora maioria das missões de estudo que chegaram à Amazônia naqueles tempos, era formada por ingleses, alemães e franceses. A expedição de Alexandre Ferreira foi um mo-mento solitário na história da investigação de nossos recursos naturais, patrocinada pela Corte de Lisboa.

Portugal, desde os tempos do achamento da terra brasileira, ora demonstrava desinteresse pela colônia ultramarina, ora reagia às investidas dos concorrentes mais ousados. Assim, as expedições portuguesas que chegavam até aqui tinham antes de tudo um caráter militar, missões de força que deveriam assegurar o domínio português sobre os cobiçados recursos do Brasil colonial.

Os verdadeiros donos da terra brasileira, os milhões de indígenas que habitavam as vastidões desconhecidas que o Tratado de Tordesilhas partilhou entre espanhóis e portugueses, e que Pedro Álvares Cabral veio a conhecer em 1500, participaram de todo o processo de descoberta e colonização como meros coadjuvantes. Percebidos a princípio como uma verdadeira curiosidade, os primeiros nativos a ter contato com os brancos não tiveram como prever as alterações que surgiam no horizonte, e que seu recanto do Novo Mundo jamais voltaria a ser o mesmo. A época da conquista e da colonização exigiria um posicionamento dos indígenas. Ou se colocavam ao lado dos conquistadores, ou seriam subju-gados por eles. Como se diz, ficaram entre a cruz e a espada. Quando escolheram a parceria com franceses, holandeses e ingleses, concorrentes dos portugueses, acabaram traídos e derrotados; quando ficaram ao lado dos lusos acabaram escravizados.

As estimativas feitas ao longo da história dão conta de que nos primórdios da colonização, habitavam em todo o território brasileiro cerca de dois milhões de indígenas. Talvez seja um exagero, ou por outro lado uma depreciação, mas o fato é que já no final do século XIX seu número não chegava ao meio milhão. Uma devastação causada pela perseguição, pela exploração escravista, pelas doenças trazidas pelo branco e pela destruição do ambiente e tomada das terras em que viviam. Hoje eles estão reduzidos a cerca de 300 mil indivíduos, mas a contribuição dessa raça e de suas inúmeras etnias foi decisiva na formação do homem ribeirinho. Sua presença é tão forte, que qualquer pessoa ao tentar definir os traços de um habitante típico das margens dos rios amazônicos, acaba descrevendo um perfil indígena.

As três principais correntes de pesquisa, que tentam explicar a origem do homem americano, concordam num ponto: ele não é autóctone, ou seja, não surgiu aqui e teria vindo de outras terras. Isso posto, vejamos as teorias que se desenvolveram. A primeira diz que o homem aqui chegou atravessando o Estreito de Bhering. Segundo os estudiosos, essa migração deve ter ocorrido no período compreendido entre 50 mil e 12 mil anos atrás, quando um istmo de gelo unia os continentes Asiático e Americano, entre as atuais regiões da Sibéria e do Alasca. As duas outras correntes acreditam que o homem tenha chegado as Américas a bordo de embarcações. Elas apenas diferem nos pontos de partida e chegada. A Teoria Australiana aceita que o homem tenha vindo da Oceania e desembarcado na Terra do Fogo; já os que defendem a Teoria Malaio Polinésia acreditam que ele partiu das ilhas do Pacífico, chegando nas praias da América Central.

Até hoje há controvérsias quanto a datas, locais e itinerários e, como a arqueóloga brasileira Niéde Guidon, que realiza pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, já detectou vestígios da presença humana com mais de 30 mil anos, melhor deixar a polêmica para os especialistas e nos prendermos as evidências. As mais reconhe-cidas nos contam que as margens dos rios da Região Amazônica foram lar de algumas sociedades indígenas com certo grau de organização. Entre elas, a mais exuberante foi a Civilização Marajoara, cuja trajetória histórica foi desvendada pelos pesquisadores a partir de sua requintada cerâmica. Ao que parece, a civilização que habitava a Ilha de Marajó congregava várias etnias, e desapareceu pouco antes da chegada dos europeus as terras americanas.

Talvez o destino dos Marajoara não tenha sido um caso isolado, mas o fato é que várias etnias se distribuíram por toda a Amazônia. Ali, muitos povos sobreviveram devido à dificuldade de acesso encontrada pelo branco, razão pela qual, até hoje, alguns grupos indígenas ainda permaneçam isolados. Gente muito rara, pois desde os primórdios do

Raça de Corajosos

O Ribeirinho da Amazônia

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Página 35: Entre amigos. Essa imagem é recorrente nas ribeiras da Amazônia, pois os enfermeiros da Marinha, profissionais dedicados e queridos, estão sempre cercados pela atenção de seus pequenos pacientes.

Brasil colonial se tentou dar solução para o problema que o indígena representava. Aos colonizadores não-portugueses interessava apenas e tão somente tê-los como aliados na luta contra os lusos ou, através deles, explorar as riquezas da terra ainda virgem. Por seu lado, vendo a colônia ser tomada por invasores que aqui entravam sem a menor cerimônia, os portugueses trataram de pacificar os nativos. A corte envia para cá aqueles verdadeiros soldados da fé. Os jesuítas são sem dúvida os mais lembrados, sobretudo pelos nomes de Manoel da Nóbrega, que chefiou a primeira missão jesuíta a desembarcar em terras brasileiras, isso em 1549, como também por Anchieta e Antônio Vieira, dois literatos a serviço da religião. Mas foram os franciscanos os primeiros a chegar a Amazônia, em 1618. Os carme-litas chegaram em 1627, e os Mercedários em 1639, com a expedição de Pedro Teixeira. Os jesuítas só chegariam à região em 1636. O que parecia uma solução acabou se transformando num problema. A concorrência entre as missões para catequizar os nativos amazônicos chegou a tal ponto, que a Corte teve que intervir através de Cartas Régias, definindo a área de atuação de cada ordem reli-giosa. Após essa real solução, os missionários trataram de enquadrar os indígenas sob os estreitos padrões exigidos pela Igreja e pela Corte. A partir daí os indígenas não teriam mais sossego.

Os religiosos passaram a se organizar em expedi-ções, os “Descimentos”, nas quais tentavam convencer os nativos a descer para os aldeamentos. Aqueles que ouviam as falsas promessas eram alojados nas chamadas “aldeias de repartição”, para então serem entregues sob aluguel aos colonos. Ingenuamente, muitas tribos eram exploradas pelos próprios religiosos que os faziam extrair da mata as cobiçadas “drogas do sertão”, além de madeiras e produ-tos de origem animal. Tudo isso era enviado para o Velho Mundo gerando bons lucros para as ordens. Como se não bastasse, em 1611, a Corte instituiu uma conjunto de leis que permitia as tais “Guerras Justas”. Nada mais eram do que expedições militares que tinham o único objetivo de escravizar índios, todos eles, incluídos aí mulheres e crian-ças. Em seus reduzidos artigos, a lei definia que a guerra era justa quando os índios fossem contra o cristianismo, ou impedissem a pregação do evangelho; quando se negassem a ajudar os portugueses na luta contra outras tribos ou na defesa de suas vidas (a dos portugueses, claro); quando atacassem ou roubassem os colonos; ou ainda, se fizessem aliança com outros europeus.

Apenas uma nação muito numerosa e espalhada pela vastidão da Amazônia poderia suportar tal perse-guição. A violência empregada era de tal monta que um religioso da época, o Padre João Daniel, assim se expressou, em 1750: “Os homens os matam como se fossem mosquitos, e tratam com mais caridade seu animais domésticos do que os índios.”

Tal situação perdurou por quase um século e meio e, pelo menos na Amazônia, a colônia se desenvolvia à custa da mão-de-obra escrava do índio. Essa situação só começaria a mudar a partir de 1770, quando o Marques de

Pombal foi empossado como Primeiro Ministro da Corte de Dom José I. Entre as medidas que ele logo adotou, es-tavam a expulsão dos jesuítas e o confisco de todas as suas terras em território brasileiro, e a reformulação de toda a política de escravidão indígena. Pelo Diretório dos Indos, que vigoraria até o fim do século XVIII, a escravidão dos nativos era legalmente extinta. Na prática, isso não causou grandes alterações no quadro, posto que o índio continuou a ser o combustível da máquina, não importando muito quem a comandasse.

O início do século XIX, que traria profundas alterações na vida da colônia, principalmente pela che-gada da Família Imperial, em 1808, e pela Declaração da Independência, em 1822, não indicava nenhuma grande mudança na relação entre conquistadores e índios. Os primeiros continuavam aferrados à idéia de transformar a Amazônia num grande celeiro agrícola, aplicando técnicas incompatíveis com a região e explorando o índio; e estes, mantinham sua postura inicial de revolta contra a imposição do trabalho e da invasão de suas terras. Esse conflito mais que secular, faria com que os índios passassem a radicalizar sua posição e, pouco a pouco ganhassem a liberdade que, na prática, lhes era negada. Há registros de que a revolta dos índios se estenderia até meados do século XIX, inclusive com participação na Cabanagem, um dos mais importantes movimentos revolucionários do Brasil Imperial, que sacudiu a Província do Pará e a Capitania de São José do Rio Negro, onde hoje se insere parte do Estado do Amazonas. Durante a revolta, grande parcela da população local, formada por índios, negros e mestiços que viviam em cabanas à margem dos rios, explodiu contra os exploradores portugueses. Isso ocorreu em 1835, ou seja, mais de uma década após Dom Pedro I ter declarado a Independência do Brasil.

Mesmo esse atraso histórico não pode conter as mudanças que se insinuavam. A partir da década de 1850 já se viam embarcações a vapor navegando pelo Amazonas. Em 1866, os portos da região amazônica foram abertos à navegação estrangeira e, em 1884, antecipando-se a assinatura da Lei Áurea, todos os escravos negros foram declarados livres em Manaus. Aliás, é preciso lembrar que os negros representaram uma parcela minoritária na mão-de-obra escrava empregada. Menos que 13 mil negros foram introduzidos na região, que se baseava prin-cipalmente no extrativismo, atividade para a qual o índio estava mais capacitado.

Os novos tempos, a luta e o sacrifício dos indíge-nas abriram caminho para sua emancipação. Os prejuízos causados pela escravidão e pela destruição de sua cultura ficaram evidentes na redução das populações originais. Por décadas eles procuraram a proteção da selva e se mantiveram afastados do homem branco, de tão triste memória. Porém, a grande maioria desses primeiros brasileiros se integrou lentamente, e não sem percalços, à sociedade brasileira. A forte miscigenação que se pro-moveu na região amazônica, à exemplo de todo o país,

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Páginas 36/37: À primeira vista, as casas ribeirinhas aparentam uma total fragilidade e carência de conforto. Mas quando se observa o ambiente e o clima da região logo se vê o quanto elas são bem adaptadas às necessidades da população local. Páginas 38/39: A canoa está para a pequena ribeirinha como a bicicleta está para as crianças das grandes cidades. Aquele meio de transporte, tão comum na Amazônia, é que a leva a todos os lugares, inclusive ao atendimento médico-odontológico que está acontecendo na comunidade de Paraná do Albano, onde ela mora. Página 40: O perfil da população amazônica foi formado em séculos de repetidas e continuadas migrações e miscigenações. A fórmula inclui boas doses de sangue indígena, europeu e uma minoritária participação negra. A exploração da borracha fez com que levas de nordestinos chegassem à área em etapas mais recentes. O resultado é um tipo humano bem adaptado às difíceis condições de uma Amazônia inóspita e exigente.

produziu tipos como o mulato, mestiço do branco com o negro; o caboclo ou mameluco, que se origina do branco com o índio; e o cafuso, mestiço do negro com o índio. Este último, como primeiro habitante da terra, juntou-se a dois elementos estrangeiros para formar o perfil do ribeirinho amazônico.

A fortuna da selva

Os indígenas lidavam há muito tempo com uma árvore da qual extraíam uma seiva leitosa, aquela que seria conhecida como seringueira. Para eles, ela não teria mais utilidade do que fornecer matéria-prima para a confecção de alguns utensílios. Porém, o homem branco descobriu outras finalidades naquele produto elástico que chegou como curiosidade à Europa. Em 1770, o inglês Joseph Priestley conseguiu dar ao látex um uso que se tornaria popular em todo o mundo, mas que à época parecia quase um milagre: apagar a escrita feita a lápis. A novidade che-gou aos Estados Unidos, onde Charles Goodyear descobriu o processo de vulcanização da borracha, que consistia na combinação do látex com o enxofre, dando ao produto final uma grande flexibilidade e resistência as alterações de temperatura. Aproveitando-se desse desenvolvimento, John Dunlop, um veterinário irlandês, criou o primeiro aro pneumático, o protótipo dos pneus que equipam os veículos de todo o mundo.

E foi aí que a floresta amazônica começou a ser invadida por exploradores ávidos pela riqueza branca. A febre da borracha não atingiria apenas o Brasil, mas em maior ou menor escala toda a região tropical onde a seringueira era nativa. No Congo, então colônia Belga, a corrida pela borracha levou a morte milhares de africanos. Em terras brasileiras a extração do látex gerou o chamado Ciclo da Borracha. A busca por áreas de seringueiras nati-vas criou pólos de extração e fortes movimentos migrató-rios. O primeiro desses pólos foi Belém, que era a cidade portuária mais importante da Região Norte do Império brasileiro. Em seguida a exploração chegou ao Amazonas e, por fim, ao Acre, ainda pertencente à vizinha Bolívia. Lentamente preciosa seiva da hévea foi sendo tirada da floresta e enviada para os mercados da Europa e Estados Unidos. Em 1827, a modéstia das primeiras exportações mal passava de 30 toneladas. Pouco mais de meio século se passaram e o montante alcançava as sete mil toneladas. E não parou de crescer até a primeira década do século XX, quando atingiu a média anual de 34.500 toneladas.

A borracha não chegou a desbancar o café do topo da pauta de exportações mas, em 1910, chegou a bater em seus calcanhares com um rendimento de 377 mil contos de réis. Uma fortuna que havia engordado os cofres do

Império, e agora ajudava a manter as finanças da jovem República. No apogeu do ciclo exploratório, Manaus teve um desenvolvimento fantástico patrocinado pela riqueza acumulada pelos Barões da Borracha, que transformaram a capital amazonense numa metrópole calcada em padrões europeus, com todos os requintes e comodidades que a elite local almejava.

A mão-de-obra, que vivia no lado obscuro desse momento de riqueza e ostentação, estava extraindo o látex nos corredores da floresta fechada. Ele se fazia representar pelo imenso contingente de migrantes nordestinos, levados até ali em razão das terríveis secas que devastaram suas regiões de origem, entre 1877 e 1880. O nordeste brasi-leiro era, desde tempos imemoriais, palco de secas que desafiaram gerações de estudiosos e ações governamentais e, por isso mesmo, “exportava” sua gente para todo o país. O problema se registra desde a época das Capitanias Hereditárias, quando malograram os primeiros esforços para tirar algum proveito das terras inseridas no chamado polígono das secas. Os naturalistas alemães Von Martius e Johan Von Spix, que tão belas palavras deixaram sobre a floresta amazônica quando a conheceram na expedição que realizaram, entre 1817 e 1820, ao passarem pelas terras do nordeste brasileiro registraram assim o quadro que se apresentava: “A terra rasga-se então em grandes fendas, a vegetação morre completamente, as feras do mato e inúmeras boiadas são vítimas da fome e da sede, e os habitantes são forçados a exilar-se.” Sem alternativas, era o que faziam os nordestinos.

O crescimento da demanda pela borracha fez com que os extrativistas partissem em busca de mais áreas de seringueiras, penetrando continuamente num território que era reclamado pela Bolívia. O conflito com o país vizinho não tardaria, e ele se anunciava há tempos. Segundo os termos do Tratado de Ayacucho, firmado por Brasil e Bolívia, em 1867, ficava estabelecida um fronteira descrita por uma linha traçada entre as nascentes do rio Javari e a confluência dos rios Beni e Mamoré. Essa linha imaginária era uma mera formalidade que, na prática, foi ignorada pelos brasileiros que buscavam o látex. Incon-formados, os bolivianos exigiram a demarcação definitiva das terras por uma comissão de limites binacional. No entanto, os enviados brasileiros se recusaram a executar a tarefa, considerando-a como uma afronta aos interes-ses de seu país. A situação ficou indefinida por algum tempo, até que uma associação de interesses europeus e norte-americanos, cobiçosos pela borracha da região, se aproximou do governo da Bolívia, na intenção de formar uma entidade denominada The Bolivian Syndicate. Foi o estopim de dois movimentos que tencionavam anexar o Acre ao território brasileiro.

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O primeiro foi encabeçado pelo espanhol Luís Galvez Rodrigues de Arias. Patrocinado pelo governador do Amazonas, Ramalho Junior, Galvez partiu para a região em disputa, onde em 14 de junho de 1899, proclamou o Estado Livre do Acre. Sua ação logo foi abafada pelo Go-verno Federal, que enviou uma flotilha da Marinha para apaziguar os ânimos mais exaltados.

Quando o delírio de Galvez começava a desapa-recer de cena, o governo boliviano finalmente assina um acordo com o Bolivian Syndicate, dando a seus sócios plenos poderes sobre a região do Acre. As cláusulas desse contrato previam que os sócios da Bolívia poderiam dispor de forças militares e poder fiscal para administrar o terri-tório acreano, bem como livre trânsito nos rios da região. Ademais, lhes seria facultado o direito de comprar todos os seringais produtivos da gigantesca área de concessão.

A notícia caiu como uma bomba nos ouvidos da população brasileira. Incomodou particularmente um certo gaúcho, que trabalhava na região como agrimensor. Seu nome era Plácido de Castro e, apesar de jovem, tinha em seu currículo a participação na Revolução Federalista ocor-rida no Rio Grande do Sul. Em meados de 1902, a frente de três dezenas de companheiros que conseguira arregimentar, partiu para a cidade de Xapuri, então governada por bo-livianos, prendeu o Prefeito local e declarou pela segunda vez a independência do Estado do Acre. Em pouco mais de um mês a revolução já tomava todos os seringais, e as tropas contavam com mais de dois mil homens. As vitórias de Plácido de Castro foram se sucedendo em várias frentes, tomando cidades e obrigando o governo boliviano a ceder terreno. As hostilidades só tiveram fim quando foi assinado o Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903. Por ele, o Brasil tomava posse definitiva do território do Acre. Em contrapartida, pagava a Bolívia uma indenização de 2 milhões de libras e assumia ainda o compromisso de finalizar as obras da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, uma antiga exigência dos bolivianos.

Em 1912, portanto menos de dez anos após a anexação do Acre, os embarques de borracha para o exterior chegam a 42 mil toneladas, o que representava então 40% de todas as exportações brasileiras. Em moeda corrente, isso significava uma soma de quase 25 milhões de libras. E foi tudo. Começava um desastre anunciado há quase quarenta anos passados, quando 70 mil sementes de seringueira foram contrabandeadas por Henry Wickman e levadas para o Jardim Botânico de Kew, em Londres. Elas deram origem as extensas plantações que os ingleses estabeleceram em suas colônias em Cingapura, Ceilão e Malásia. Em 1919, estas plantações já desbancavam a borracha brasileira, levando caos aos seringais brasileiros. A febre da borracha tinha deflagrado um intenso movimento migratório para a Amazônia. A densidade demográfica se adensou de forma nunca vista. Sua população, que em 1872, somava 337.000 habitantes, chegou a 1.100.000 em

1906. Gente de todos os cantos e principalmente do nor-deste, que chegara ali para o encontro com o índio, com o negro, e com a terra que ele não mais deixaria.

Epílogo de um sonho

A febre da borracha ainda teria uma recaída na Amazônia, provocada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, melhor dizendo, pela queda nas mãos dos ja-poneses dos vastos seringais do Extremo Oriente. De um momento para o outro quase toda a produção mundial de borracha passava para as mãos do Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão. Os Aliados rapidamente lem-braram de seus antigos fornecedores. Em 1942, o governo dos Estados Unidos propõe ao Brasil, então sob a ditadura de Getúlio Vargas, um acordo para que seja reiniciada a produção de borracha em terras amazônicas. Pelo Acordo de Washington, os norte-americanos financiariam a pro-dução, a compra e a venda do produto, além de contribuir na melhoria dos sistemas de transporte e de saúde. Por seu lado, o Brasil arcaria com a mão-de-obra e se comprometia a manter um preço fixo do quilo da borracha, que não deve-ria ser superior a 25% do preço praticado pelos bolivianos.

Começava aquela que passaria a história como a Guerra da Borracha. Os soldados recrutados já eram bem conhecidos nos seringais para onde foram enviados. Nos três anos que durou o sonho, acredita-se que o contingente de nordestinos que seguiram para a Região Amazônica tenha chegado a 100 mil pessoas.

“Quando as grandes secas flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população adventícia de famintos assombrosos, devorados de febres e bexigas, a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se as carreiras os vapores com aqueles fardos agitantes, consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia, vastíssima, despovoada, quase ignota, o que valia a expatriá-los dentro da própria Pátria...” Essas palavras de Euclides da Cunha foram escritas décadas antes daqueles milhares de nordestinos partirem novamente em busca de uma nova esperança. O enredo se mantinha e os persona-gens eram os mesmos.

Infelizmente, a Guerra da Borracha foi perdida apesar de todas as promessas. Ao fim do conflito os Aliados retomaram os seringais da Indonésia, do Ceilão, de Singa-pura. O fluxo de produção foi retomado e a borracha que vinha do Brasil deixou de ser interessante. Dos milhares de nordestinos que haviam seguido para a Amazônia, muitos se fixaram, formando famílias e se adaptaram a um novo ambiente e a uma nova vida. É provável, que seus descen-dentes pouco saibam da saga vivida por seus antepassados, que desterrados de sua terra natal, levaram para a Amazônia toda a força e determinação que aquele mesmo Euclides da Cunha enaltecia ao dizer: “o sertanejo é antes de tudo um forte.”

Página 43: Casa conjugada com local de trabalho. Nessa típica habitação à beira do rio Acará, no Pará, o ribeirinho vive com sua família e ainda tira seu sustento no açaizeiro que frutifica na porta dos fundos.

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Toda essa gente que chegou a Amazônia, os milhares de nordestinos, que ali se encontraram com os primeiros e mais bem adaptados homens da selva, formaram um massa colonizadora que seria responsável, ao longo de décadas, pela ocupação legítima e permanente das margens dos rios e das terras adventícias. Sem o saber, mas

levados pela necessidade ou por promessas que desapareciam logo que chegavam as ribeiras, se comportaram como novos bandei-rantes de um Brasil que despertava o interesse de muitos. Pela sua grandeza, pela sua riqueza, e pelo pouco que se fazia no sentido de ocupá-la de forma organizada e não destrutiva, a Amazônia mais parecia um projeto de porvir que uma realidade exeqüível.

Pouco antes de começar a segunda grande migração de nordestinos, os exércitos que lutariam na Guerra da Borracha, uma Comissão Mista de Problemas da Região Amazônica, elaborou um formulário que seria encaminhado ao Governo Federal. Em interessantes trechos do trabalho, é possível perceber a visão de momento das autoridades e certo alheamento da realidade. O alto valor do movimento migratório e da ocupação agrícola era colocado nestes termos: “A agricultura na Amazônia será uma das fontes de sua riqueza no futuro, tanto mais próximo quanto forem as migrações naquela região. Condiciona-se, portanto, a questão agrícola, propriamente dita e com significação econômica, à questão demográfica.” Mais a frente é notável um certo idealismo, mais que desejável, mas que, na atualidade, ainda exige empenho: “O recrutamento de trabalhadores, tratando-se de qualquer região, na condições normais de vida, não pode ser compulsório. O interesse é que desperta a vontade de emigrar. Por sobre isso, o desejo de melhor ambiente – clima mais favorável, facilidades de educação, assistência social, em todas as suas formas.”

Tanto quanto os indígenas que não encontraram junto aos brancos senão problemas e desesperança, os nordestinos que chegavam logo aprenderam que teriam que contar apenas com seu braço e seu instinto de sobrevivência. E ele foi vitorioso contra todas as intempéries do destino. Afinal, como disse um estudioso das secas, o professor cearense Joaquim Alves: “As reserva de raça, armazenadas no decurso de gerações, permitiu ao sertanejo uma capacidade de trabalho que hoje não é mais possível.” Estava coberto de razão. Poucos seriam tão capazes de enfrentar os desafios de ocupar uma região tão inóspita quanto a Amazônia brasileira.

Problemas de ocupação

Se todas as promessas de apoio e assistência tivessem acontecido de fato, a região amazônica estaria em outro patamar de desenvolvimento. Com toda a certeza não seria o paraíso idílico de muitos que se aventuraram por lá, ou o jardim organizado e produtivo que alguns técnicos de gabinete chegaram a propor. Mas poderia, e pode, ser um gigante mais justo e próspero com seus filhos. Por outro lado, há uma corrente já encanecida, que se baseia em pressuposições e conceitos trazidos de fora para apregoar nossa incompetência para gerir aquele pedaço do Brasil. Em uma de suas obras, Samuel Murgel Branco, um estudioso dos problemas amazônicos, cita frases proferidas por dois grandes cientistas que estiveram na Amazônia em meados do século XIX. Louis Agassiz, um eminente ictiólogo, que veio ao Brasil como convidado de Dom Pedro II, afirmou: “... se anteviam os tempos em que, sobre as margens do Amazonas, florescerá uma população mais ativa e vigorosa do que aquela que até agora tem aí tem vivido, em que todas as nações do globo terão sua parte nessas riquezas.” Já Alfred Russel Wallace, que disputaria com Darwin o privilégio da autoria da Teoria da Evolução, diria: “Dá até vontade de reunir meia dúzia de amigos, entusiasmados e diligentes, e vir para cá tirar desta terra tudo aquilo que ela nos pode propiciar com fartura. Juntos, mostraríamos a gente do país como seria possível criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo, abrindo-lhes os olhos para uma realidade que eles até então jamais conceberam que fosse capaz de existir.” Na época, esse tipo de preconceito, bem formulado por doutos e lapidares da ciência do Velho Mundo, parecia demonstrar nossa incapacidade frente a um desafio tão imenso como aparentava ser a Amazônia. Existe ali um grande potencial, que foi durante muito tempo relegado ao plano das especulações e aberto a iniciativa dos audazes. O problema era que algumas vezes essa audácia partia de estrangeiros.

No tempo das grandes navegações, quando o mundo parecia uma caixa de surpresas a ser descoberta, os soberanos eram pródigos com os súditos que se arriscavam a atravessar os mares. Mesmo quando o Brasil já havia sido descoberto pelos portu-gueses, não foram poucos os navegadores que chegaram até o rio Amazonas e receberam a posse daquele desconhecido mar de

Páginas 44/45: O interior dessa casa ribeirinha expõe uma carência a que a maioria de nós está pouco acostumada, mas que não tem nada de excepcional na Amazônia. No entanto, a falta do conforto corriqueiro é menos preocupante que a carência de assistência médico-social contra a qual lutam as tripulações dos NAsH. Página 46: A caminho do trabalho. É lama, é barranco, é chuva e é sol. As profissionais da Marinha se superam nas missões a elas designadas. A Amazônia é forte, mas essas militares não são nada frágeis quando o atendimento deve chegar a quem precisa, seja onde for.

Missão: Salvar Vidas!A História do Auxílio ao Brasileiro da Selva

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água doce. O espanhol Francisco Orellana recebeu a doação do rei Carlos V. O mesmo se deu com os ingleses Thomas Roe e Robert Harcourt, que receberam as terras descobertas por ordem de Jaime I. Favor igual coube ao francês Daniel de La Touche, que recebeu sua conquista das mãos da rainha Maria de Médicis. Através dessas reais ordenações, o rio Amazonas e as terras que ele banhava, eram batizados de acordo com o idioma de seu descobridor. Não tardou para que holandeses e franceses passassem a levantar fortes e feitorias pelas margens do Amazonas, dando início a ocupação das terras e ao comér-cio com os indígenas. Em 1616, as coisas começaram a mudar quando Francisco Caldeira Castelo Branco chegou à baía de Guajará com três navios e 150 homens enviados pela Corte portuguesa. Tratou logo de erguer o Forte do Presépio de Santa Maria de Belém, semente do que se tornaria a atual capital pa-raense. Partindo desse ponto, saiu à caça dos invasores, tomou posse da terra, e empenhou-se em conhecer aquela enormidade que Portugal havia descoberto há pouco mais de um século, mas que até então só lhe havia trazido despesas e atritos com os concorrentes europeus. As lutas e as conquistas de Francisco Caldeira Castelo Branco marcam o início da efetiva ocupação da região amazônica pelos portugueses. Ao menos, até onde as embarcações podiam chegar e a vista pudesse alcançar. Havia muito mais Amazônia a ser desbravada, tomada e conhecida. De certa forma essa empreitada continua até hoje, e teve muitos heróis, conhecidos e anônimos. Os estrangeiros que haviam partido retornariam com outro discurso, mas com o mesmo interesse que a Amazônia sempre despertou.

Um Brasil apartado do futuro

A colônia deu lugar ao Império, e este a República. Nós séculos em que transcorreram tantas mudanças, a Ama-zônia passou da cobiça à obscuridade, do paraíso ao inferno verde, do estorvo ao ufanismo, e houve até quem propusesse que deixando de ser brasileira passasse as mãos do mundo, a tal internacionalização que gerou planos mirabolantes e pouco dignos de consideração. No entanto, poucas idéias e propostas colocavam em foco privilegiado o homem. Na Amazônia tudo era grandioso, assustador, espantoso. Os números sempre foram avantajados e os projetos pareciam pequenos para enfrentar tamanho desafio. Muito partiam para enfrentar a grandeza da região como se ela fosse um inimigo a ser batido. O homem amazônico ficava a margem de tudo que se decidia sobre os des-tinos do mundo em que ele vivia, e tão bem conhecia. O índio, já muito reduzido em sua população, continuava enraizado na única terra que lhe pertencia de fato. O nordestino, trazido à moda de guerreiro, embrenhara-se na selva depois que passou a febre da borracha, formou família, espalhou descendentes pelas margens dos rios.

Sentado no banco comprido do Posto de Saúde Raul Alves, o rapaz conta o que consegue relembrar da história recente da família: “Raul Alves era meu avô, sim, mas não conheci de lembrar. Minha mãe ainda lembra que ele veio para cá, de Quixadá, no Ceará. Disse que veio tirar madeira daqui e depois arranjou trabalho numa fazenda. Quando pode chamou minha vó. Era minha mãe e mais cinco. Uns meus tios voltaram depois para o Ceará, mas o resto ficou. Eu

Página 49: Em 1985, quando a Marinha do Brasil lançou os Navios da Esperança, ela oficializava uma ação espontânea de suas tripulações que navegavam pela Amazônia. O quadro de carência da população ribeirinha sempre emocionou o pessoal embarcado nas corvetas, como a que aparece nesta foto.

já nasci ali em Barreirinha, do outro lado do rio, depois mudamos para cá quando meu avô tinha levantado a primeira casa da vila. Agora aqui é só Alves e Barros.” Esses últimos devem ter outra história, não muito diferente da saga da maioria dos nordestinos que deixavam o ressequido torrão natal.

Ao longo do tempo a ocupação da Amazônia sofreu variações que foram do desprezível ao preocupante. Se na virada do século XIX para o XX, viviam na região quase 700 mil habitantes, a corrida pelos seringais fez esse número do-brar, uma situação alarmante dada à precária situação a que viviam entregues as condições de saúde, alimentação, moradia, transporte e educação. Porém, nas duas décadas que seguem entre 1920 e 1940, ou seja, entre os dois ciclos da borracha, o crescimento demográfico pisa com firmeza no freio, e apenas se verifica um acréscimo de pouco mais de 20 mil almas naquelas paragens abandonadas.

Não há nenhuma novidade nestes números. O pro-cesso de fluxo e refluxo de gente procurando oportunidade sempre foi uma constante na região, sempre vivendo a mercê do grandioso, da fortuna, do El Dorado que nunca se encontrou. Procurava-se continuamente uma solução na Amazônia, nunca para a Amazônia. Tirava-se dali para o mundo. Exploradores de todas as épocas levaram a madeira, as especiarias, amostras de plantas, de insetos e de aves, conhecimento. A borracha gerou um milagre econômico que, não planejado, acabou em desastre humano. Não poucos empresários estrangeiros apostaram suas fichas por ali. Henry Ford, numa de suas poucas falhas de avaliação, perdeu uma fortuna ao investir na produção de látex as margens do rio Tapajós. Saiu de lá deixando para trás alguns milhões de pés de hévea, e uma enorme dívida social que foi assumida pelo Governo Federal. O também norte-americano Percival Farquhar, que já domi-nava boa parte do transporte fluvial e da operação dos portos na região amazônica, empenhou-se na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré, que teve sua vida abreviada pela queda das exportações da borracha brasileira. Como sempre, na esteira de tudo, continua chegando gente.

Segundo contam, seu Romão é o habitante mais idoso de Vila Augusto Montenegro. Na verdade não parecia, muito menos pela lucidez que demonstrava ao lembrar do pai: “Ele foi pra lá tirar borracha e deixou a gente em Baturité. Disse que tinha ganho dinheiro mas depois largou de onde estava e veio para Belém trabalhar no porto. A família chegou de vaporzão. Eu queria ir tirar borracha também mas ele não deixou. Acabei trabalhando com ele carregando os regional. Depois conheci em Santarém uma moça que era daqui. Acabei vindo. Só voltei a Belém duas vezes. Meu pai já tinha morrido e lá só ficou uma irmã que cuidava da mãe.” Seu Romão não demonstrava muito incomodo ao fazer as contas com o tempo. O que é compre-ensível, pois se hoje em muitas localidades da Amazônia ainda não é possível contar com certas facilidades de transporte e comunicação, imagine-se a situação há trinta, quarenta ou cinqüenta anos passados.

Oswaldo Cruz, nosso maior sanitarista, não pre-cisou imaginar, pois esteve lá. Entre setembro de 1905 e dezembro 1906, a bordo do República, um pequeno rebo-cador, Oswaldo Cruz empreendeu uma longa viagem de inspeção aos portos brasileiros. Na primeira etapa, subindo

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nosso extenso litoral, foi de Cabo Frio a Manaus, com lon-gas e demoradas escalas em vários portos. Já na segunda, seguiu até Santos, adentrou a Bacia do Prata e seguiu pelo rio Paraguai até Corumbá. Nos dois trechos, pode cons-tatar a precariedade das condições de defesa sanitária em todo a costa brasileira. A viagem, apesar de extremamente desgastante, serviu para que Oswaldo Cruz compreendesse a grandeza do problema sanitário que o país enfrentava. O Brasil era um país de portas abertas para as doenças exóticas, como se já não bastassem as endêmicas. Quando de seu retorno, Oswaldo Cruz elaborou e encaminhou ao Governo um plano em que privilegiava a reaparelhamento dos portos, para que funcionassem como barreiras sanitá-rias, e um intenso trabalho de combate às doenças que se alastravam pelo interior do norte e nordeste, chegando a minúcias de indicar atenção à higiene infantil, à fiscalização de gêneros alimentícios e às doenças venéreas. Recomendou ainda a instalação de hospitais e a profilaxia rural contra a febre amarela e a peste bubônica, que ladeavam com a incontrolável malária no quadro de males que afligiam a gente do interior. Em 1910, Oswaldo Cruz ainda retornou a Amazônia. Esteve envolvido no atendimento aos debilitados funcionários da ferrovia de Percival Farquhar e, na volta por Belém, o governo local o convoca para enfrentar mais uma vez a malária. Sempre ela. Na capital paraense, Oswaldo Cruz instala uma verdadeira equipe de combate, que conta com muitos colegas vindos do Rio de Janeiro, além de mé-dicos locais. Alcança novo sucesso. As estatísticas mostram que os casos de malária passam a decrescer, até que, em maio de 1911, estão reduzidos à zero.

Naturalmente, não podemos nos esquecer daquele plano proposto por Oswaldo Cruz. Bem, o sanitarista faleceu pouco mais de dez anos após sua peregrinação sem que seu plano tivesse qualquer resposta das autoridades.

Assim como aquele, muitos foram os planos para o desenvolvimento da Amazônia. E vinham de longa data. Nos tempos do Império algumas propostas viárias pretenderam integrar as províncias do norte ao resto do território brasileiro, mas pouco aconteceu de fato. As ferrovias que iriam rasgar a selva encontravam adversários ferozes entre os índios, a terra, o clima e as doenças. De resto a monarquia dava sua contribuição ao mundo científico autorizando várias expedições, principal-mente estrangeiras. No tempo da República, a necessidade de consolidar a federação fez com que Rondon atravessasse boa parte do Centro-Oeste instalando linhas telegráficas, e seguisse para o Norte ainda pouco conhecido. No caminho travou con-tato com inúmeras tribos indígenas, sobre as quais lançou, pela primeira vez, o manto protetor do estado brasileiro.

Em tempos mais recentes a região amazônica se tornou, com graves prejuízos ao meio ambiente, uma das maiores fornecedoras de madeiras nobres para consumo interno e para exportação. Onde não há mais o que tirar avança a fronteira agrícola num ritmo nunca antes imagina-do. Desde os anos 50 do século XX a exploração de minérios vem abrindo espaço no seio da floresta. O gigantismo da região e as riquezas que se espera tirar do solo amazônico alavancam investimentos vultosos. O interesse geral privile-

Páginas 50/51: Quando saíram da carreira do Arsenal de Marinha, os navios de assistência hospitalar apresentavam um padrão de pintura em branco com cruzes vermelhas no costado. Posteriormente, adotaram o padrão cinza usado em toda a Marinha do Brasil. Página 52: Corredor verde. O Oswaldo Cruz navega por um estreito igarapé durante uma comissão. Os milhares de milhas navegadas nestes 25 anos deram aos Navios da Esperança um conhecimento incomparável sobre os rios amazônicos.

gia os projetos de grande porte em detrimento dos trabalhos de intervenção pontual, como o extrativismo. O problema é que tudo vem sendo feito num ritmo acelerado, sem que se possa calcular com justeza a direção e a força das ações. Tudo tem acontecido com excessiva rapidez no meio da mata e longe dos olhares do resto do país. O questionamento sobre as benesses e os males causados por tantas e tão rápidas mudanças, pode ser respondido por técnicos. Todavia, se as comunidades que vivem na Amazônia não puderem receber os benefícios do tão desejado progresso, será preciso reava-liar o projeto para que essa gente se integre definitivamente nele. Afinal, se sempre apregoamos que o progresso é bom, melhor ainda quando é para todos.

A Flotilha do Amazonas

Se essa gente precisa de ajuda, alguém tinha que chegar até eles. Os homens das nossas Forças Armadas sem-pre estiveram envolvidos na defesa das fronteiras brasileiras e no atendimento aos brasileiros espalhados por aqueles fins de mundo. Desde remotas épocas a Marinha do Brasil está envolvida nesse processo. A façanha de Pedro Teixeira abrira caminho para que a Amazônia fosse incorporada em definitivo ao Brasil Colônia. Os rios da região sempre foram o caminho certo e seguro para desbravar o território. As margens deles eram construídos fortes, missões religiosas e estimulava-se o povoamento. Em 1640, com o fim da União Ibérica, Portugal recupera sua autonomia e as fronteiras com os domínios es-panhóis são empurradas mais para oeste. No correr do século XVIII, os novos acordos que viriam derrubar o desmoralizado Tratado de Tordesilhas, assegurariam a Coroa portuguesa, por Utis Possidetis, o domínio daquele infinito manto verde. Num mundo de tantas águas era preciso ter meios de nave-gar. Vinham de Portugal as grandes naus que adentravam o Amazonas, posto que aqui só se faziam reparos e construções de menor porte. Em 1761, portanto quase meio século antes da chegada de Dom João VI à sua mais importante colônia ultramarina, foi estabelecido em Belém o Arsenal de Marinha do Pará, unidade naval encarregada de construir embarcações de guerra para a Marinha portuguesa.

Um século mais tarde, as obras dos mestres carpin-teiros daquele Arsenal iriam guarnecer a Flotilha do Ama-zonas, criada em dois de julho de 1868, por ordem de Sua Majestade Dom Pedro II. Nosso Imperador teve bons mo-tivos para aplicar sua assinatura naquele Aviso Imperial. As hostilidades entre Brasil e Paraguai começaram em novem-bro de 1864, quando as tropas de Solano Lopez invadiram as terras mato-grossenses e foi apresado o navio brasileiro Marquês de Olinda. A Marinha Imperial logo foi posta em ação, conseguindo bloquear as águas do rio Paraguai, rota de fundamental importância para o suprimento das forças guaranis. De forma oportunista, a Bolívia, que pendia para o lado paraguaio, passou a exigir a abertura de negociações para o estabelecimento de fronteiras, uma questão antiga, que só seria solucionada quase quarenta anos mais tarde pelo Tratado de Petrópolis. O país andino, a exemplo de outras repúblicas vizinhas, ainda pleiteava que seus navios

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tivessem livre trânsito pelos rios amazônicos. Como se diz, Dom Pedro II tomou suas decisões com um olho na missa e outro no padre. Em dezembro de 1866, para não exaltar ainda mais os ânimos, fez por bem franquear o rio Amazonas e seus afluentes à navegação de navios mercantes de todas as bandeiras. Ato contínuo mandou lançar de Manaus, capital da recém-criada Província do Amazonas, uma flotilha de doze lanchas a vapor tripuladas por 192 praças do Corpo de Imperiais Marinheiros com a tarefa de patrulhar as extensas fronteiras que o Brasil possuía com seus vizinhos.

Estendendo a mão

No entanto, o maior entre os méritos da Flotilha do Amazonas, foi ter se tornado a base sobre a qual a Marinha do Brasil implantou uma estratégica de ocupação e vigilância de toda a Amazônia. A Guerra do Paraguai e a questão do Acre que a sucedeu, evidenciaram ainda mais o interesse que aquele pedaço desguarnecido gerava em todo o mundo. A tal internacionalização da Amazônia, que parecia nunca perder fôlego, mostrava suas garras ainda naquele início de século XX, como mostram trechos de algumas notícias que circulavam nos gabinetes. Em 1902, o Barão do Rio Branco, em entrevista com o Ministro do Interior da Alemanha, ouviu a seguinte declaração: “Seria conveniente que o Brasil não privasse o mundo das riquezas naturais da Amazônia.” Por sua vez, nosso embaixador nos Estados Unidos, Ministro Assis Brasil, recebeu do Secretário de Estado norte-americano John Hay uma diplomática recomendação: “Não vejo perigo, Senhor Ministro, para a soberania das nações americanas, no fato de companhias industriais se instalarem para o desenvolvimento das terras que jazem incultas.” Era nesse espírito que a máquina mundial operava.

Ao Brasil cabia se preparar para defender o que era seu, dotando a Marinha do Brasil de meios operati-vos adaptados as funções fluviais. A Flotilha cresceu e se modernizou. Desde os tempos das lanchas a vapor e da Canhoneira Mista “Mearim”, veterana da Batalha Naval do Riachuelo, a evolução técnica e a adaptação ao meio fluvial vêm agregando maiores capacidades às embarcações. Hoje, o nível de nacionalização dos Navios-Patrulha Fluvial e das embarcações da Flotilha de Saúde é alto, proporcionando uma desejável independência tecnológica. Da mesma forma, a profissionalização de suas equipagens tem recebido grande atenção, já que as exigências operativas não são pequenas. A área de atuação básica da Flotilha compreende os rios da bacia amazônica que se espalham pelos Estados do Ama-zonas, Acre, Rondônia e Roraima. Mas, em virtude das ne-cessidades sempre crescentes, a Flotilha foi desdobrada, em 1974, quando foi criado o Grupamento Naval do Norte, com sede em Belém (PA). Atualmente, o Comando da Flotilha do Amazonas – ComFlotAm encontra-se subordinada ao Comando do 9º Distrito Naval, sediado em Manaus (AM).

Página 55: O U-18 foi o primeiro navio da Marinha do Brasil batizado com o nome Oswaldo Cruz, uma justa homenagem ao reconhecido sanitarista, que tanto lutou pela saúde do povo brasileiro. Há 25 anos, todos que chegam para servir neste navio parecem incorporar a causa do ilustre médico. Páginas 56/57: Itinerário do dia a dia. O Doutor Montenegro segue pelos rios que tão bem conhece e onde é muito querido e esperado. Perto de completar 10 anos de vida, o U-16 vem dando uma inestimável contribuição à saúde da região amazônica e honrando o nome do médico acreano Manoel Braga Montenegro. Páginas 58/59: Toda a dedicação e esforço das tripulações e das equipes de saúde são plenamente recompensados por um sorriso agradecido e pelo bem-estar do povo ribeirinho. A cada comissão os bons resultados do trabalho da Marinha ficam mais evidentes e confirmam que ela está na proa certa.

Oswaldo Cruz

Criada inicialmente como uma força dissuasória, policial e fiscalizadora, a Flotilha do Amazonas, à medida que ganhava experiência em seu teatro de operações foi agregando outras tarefas à sua missão. Dentre elas, uma das mais recompensadoras tem sido a assistência hospita-lar as populações ribeirinhas. Esse trabalho, empreendido pelos homens e mulheres da Marinha, tem contribuindo imensamente para a integração territorial e o desenvolvi-mento sócio-econômico de toda a região amazônica. Para as comunidades atendidas é o resgate da saúde, da vida e da esperança. Para a Marinha ele é mais que um dever, é uma obra de gratidão por aquela gente que permaneceu e lutou por um pedaço tão esquecido do Brasil.

Em tempos idos, aqueles que cruzavam as lonjuras da Amazônia, contam que não poucos navios da Marinha faziam atendimentos nas ribeiras, distribuíam comida e, vez por outra, resgatando um doente. Antes da chegada dos Na-PaFlu, na década de 70, eram as corvetas da Marinha que faziam a vigilância daquela imensidão. Era uma dedicação espontânea, sem compromisso com a missão original dos militares. Algumas embarcações seguiam para dar apoio a batalhões de fronteira do Exército Brasileiro, aqueles heróis que mantém posição junto aos limites extremos do nosso imenso território. Tendo a bordo um médico ou um dentis-ta para atender nossos bravos soldados, não se furtavam a socorrer da mesma forma os ribeirinhos necessitados.

Nas memórias que reuniu em livro, o então Capitão-Tenente Aécio Pereira de Souza, que navegou pela Amazônia entre 1949 e 1954, relembra: “...a Marinha embarcaria nos navios da patrulha de fronteiras dois médicos e um dentista,e utilizaria todas as econo-mias do rancho na compra de remédios mais usados no combate às doenças tropicais, inclusive a lepra, e faria a partir da próxima viagem, a assistência médica e medicamentosa às populações ribeirinhas. Este inestimável serviço começado naquela época, continua sem alarde nem ajuda, até hoje.”

Como que registrado numa profecia otimista, aquele inestimável serviço continua até hoje. Sem alarde, mas com determinação, e muita ajuda. Um trabalho que partiu daqueles que testemunharam, e jamais puderam se conformar, com a situação de abandono em que vivam as populações ribeirinhas da Amazônia. No começo dos anos 80, como porta-voz do trabalho voluntário e anônimo de seus quadros, a Marinha assumiu o projeto de construir embarcações dedicadas exclusivamente à assistência hos-pitalar. Subvencionada pelo Ministério da Saúde, partiu decididamente do projeto para a execução, e logo desciam das carreiras do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro os Navios de Assistência Hospitalar Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. O trabalho, que agora completa 25 anos, está apenas começando, pois a missão é muito maior que as limitações do tempo. A Flotilha de Saúde é um marinheiro novato, voluntarioso e cheio de ânimo para continuar estendendo a mão a todos os necessitados que aguardam nas ribeiras da Amazônia a chegada dos Navios da Esperança.

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Mapa da Comissões

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Nos primeiros anos do século XX, a febre amarela era um problema de calamidade pública no Brasil. Nem o Rio de Janeiro, capital federal, escapava da sanha perversa da moléstia. A bem da verdade, aquela que um dia seria chamada de cidade maravilhosa, tornara-se um foco conhecido e evitado pelos navios que

chegavam a costa brasileira. A simples menção da doença causava arrepios nos governantes da época. Em 1902, quando o paulista Rodrigues Alves foi empossado na Presidência da República a situação era gravíssima,

ainda mais que as ofensivas contra a doença partiam de órgãos desarticulados, repartições de saúde desconectados, des-providas de um plano geral. Um caos completo onde Rodrigues Alves não encontrava sequer uma perspectiva animadora.

Certo dia, durante um despacho rotineiro, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. José Joaquim Seabra, apresentou ao Presidente o nome de um certo médico para ocupar o cargo de Diretor de Saúde Pública. Rodrigues Alves não deve ter aparentado muito entusiasmo, pois esperava ouvir o nome de algum expoente da medicina, um médico cheio de galardões que pudesse enfrentar a aflitiva situação. Assim, desesperançado, questionou seu ministro:

- Doutor Seabra, quem é esse Oswaldo Cruz?A resposta não diminuiu seus anseios.- Senhor Presidente, também não o conheço. Um amigo em quem confio indicou-o como higienista consumado,

capaz de extinguir a febre amarela através de um novo processo americano. No dia 23 de março de 1903, Oswaldo Gonçalves Cruz era nomeado como Diretor Geral de Saúde Pública, um

cargo que, nos dias de hoje, equivaleria ao de Ministro da Saúde. Nas conversas que havia mantido com o Presidente, expusera seus planos de trabalho, demonstrando perfeita coesão de pensamento e ação. Seu preparo e competência eram notáveis. Quando de sua indicação, prometera ao Presidente debelar a febre amarela no prazo de três anos, caso tivesse a sua disposição os recursos necessários.

O filho do médico da roça

A casa onde nasceu Oswaldo Gonçalves Cruz ainda está de pé. Fica na cidade de São Luís do Paraitinga, no in-terior paulista. Hoje é um bem conservado centro cultural, localizado na parte alta da cidade. Porém, em 1872, quando nasceu nosso maior sanitarista, era apenas o lar do Dr. Bento Gonçalves Cruz e de Dona Amália de Bulhões Cruz. O pai de Oswaldo mudara-se há pouco. Vinha do Rio de Janeiro, onde nascera e se formara em medicina enfrentando muitas dificuldades. Havia servido como aluno pensionista do Exército durante a Guerra do Paraguai e, mais tarde, foi nomeado cirurgião da Armada Imperial. Com o fim das hostilidades, pode finalmente defender sua tese de doutorado e partiu para o interior em busca de melhores oportunidades. Tornou-se um verdadeiro médico da roça, uma tradição que hoje se encontra praticamente esquecida.

Quando o pequeno Oswaldo estava perto de completar cinco anos, a família volta ao Rio de Janeiro, onde o pai vinha assumir o modesto cargo de médico na Fábrica de Tecidos Corcovado. Na capital, a carreira do Dr. Bento Cruz segue então numa ascendente laboriosa, até que veio a falecer prematuramente, em 1892, no cargo de Diretor Geral de Saúde, deixando esposa e um filho de 20 anos que, em breve, estará seguindo os passos do pai na carreira médica.

Oswaldo Cruz não foi, como se poderia supor, um aluno brilhante. Na faculdade de medicina era tido como um tipo retraído, desses que passam despercebidos aos olhos de todos. Era, todavia, assíduo e dedicado aos estudos, aplicando-se com vigor a leitura e aos exercícios práticos. O que lhe empatava a vida era o jeito introspectivo. Mostrava capacidade com a pena e o papel, mas era um “Deus nos acuda” quando precisava enfrentar as provas orais. Mesmo assim, conseguiu completar o curso de medicina em quatro anos e, em sua tese de doutoramento intitulada “Veiculação Microbiana pela Água”, podia-se vislumbrar precocemente a veia do pesquisador.

Naquele período os acontecimentos se sucederam com grande rapidez na vida do jovem médico. Com a morte do pai, e recém formado, Oswaldo Cruz assume o cargo deixado vago na fábrica de tecidos. O que se mostra muito conveniente, pois, em 1893, casa-se com Emília Fonseca, que já no ano seguinte lhe dá a primeira filha. Premido pelas responsabilidades da casa e da vida profissional, o rapaz encontra estímulo entre os aparelhos do pequeno laboratório que mantém em casa, e junto

Páginas 60/61: Pólos de saúde atendidos pela Marinha do Brasil. Página 62: O perfil do “castelinho”, onde funciona um dos maiores centros de pesquisa médica do mundo, é conhecido por todos. Sua história começou humildemente, em 1900, sob a denominação de Instituto Soroterápico Federal e tendo Oswaldo Cruz, um talentoso médico de apenas 28 anos, como seu primeiro diretor.

Cinco Vidas de DedicaçãoOs Homens que dão Nome aos Navios

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aos amigos que o apóiam. Salles Guerra e Silva Araújo, que logo ganhariam notoriedade na medicina carioca, estão entre eles. Reconhecendo o talento do jovem Oswaldo Cruz, os dois o convidam para assumir o laboratório de análises clínicas que haviam instalado na Policlínica Geral do Rio de Janeiro.

Mas a roda do destino precisava seguir em frente, e não haveria de permitir que aquele médico promissor passasse o resto de seus dias entre amostras de sangue e urina. O res-ponsável pela nova mudança de rumo chamava-se Francisco de Castro, um amigo e colega de profissão, que o aconselhou a continuar seus estudos no renomado Instituto Pasteur, em Paris. Em 1896, a despeito das dificuldades, Oswaldo Cruz tomou um transatlântico com a família, as bagagens, sua insaciável vontade de aprender, e seguiu para a França.

Vai um promessa, volta uma certeza

Em 1899, retorna ao Brasil como um consumado bacteriologista. Enquanto esteve fora, as condições sanitárias das cidades brasileiras não haviam melhorado muito. Foi então que a peste bubônica voltou a assombrar o mundo. Em 1894, um novo surto apareceu nas cidades costeiras na China. Dali, através do crescente movimento de navios que cruzavam os oceanos, a peste chegou ao Porto de Santos. Alarmado, o Governo de São Paulo envia a Santos os mé-dicos Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz e Vital Brazil. Após os exames realizados fica confirmada a presença da doença em terras brasileiras. Em total consenso, a solução proposta pelos técnicos era de que se deveria dar início à produção do soro e da vacina dentro do menor prazo possível. Uma tarefa de fácil proposição, mas de difícil realização, posto que até então aqueles medicamento eram importados.

Em fins desse mesmo ano, Oswaldo Cruz recebeu com certo espanto um convite para assumir a direção téc-nica do recentemente criado Instituto Vacínico Municipal, obra pleiteada pelo Barão de Pedro Afonso junto ao Prefeito Cesário Alvim. O Barão via naquela empreitada uma so-lução para enfrentar a contaminação da cidade pela peste. O instituto seria instalado numa propriedade cedida pelo município, a Fazenda Manguinhos, a mesma que alcançaria renome mundial rebatizada como Instituto Oswaldo Cruz.

Naqueles tempos o bacteriologista ainda vivia no anonimato. Na falta de um técnico especializado para comandar os trabalhos em Manguinhos, o Barão de Pedro Afonso havia escrito ao Dr. Émile Roux, diretor do Instituto Pasteur, pedindo-lhe uma indicação. O Barão aguardou aquela resposta como se esperasse a vinda do próprio Mes-sias. Entretanto, a resposta que chegou da França foi breve e conclusiva:“Entre o pessoal técnico que tive a honra de dirigir, ninguém possui mais competência que o Dr. Oswaldo Cruz, cuja capacidade e idoneidade científica pessoalmente conheci durante o tempo em que lidou em nosso instituto.” Ou seja, a solução estava em casa. A atuação de Oswaldo Cruz foi decisiva. Apesar da exigüi-dade de recursos humanos e materiais, o primeiro ano do século XX mal terminara com Manguinhos já produzindo soro e vacina anti-bubônica. Dessa maneira, a capital fede-ral estava resguardada da peste. Oswaldo Cruz conseguira apagar temporariamente o pavio da bomba. Todavia, sua

Página 65: A vida de Oswaldo Cruz foi curta, mas cheia de missões às quais ele nunca negou seu empenho. Lutou contra a peste bubônica, a febre amarela, a malária, a tuberculose e, principalmente, contra a incompreensão de seus contemporâneos. Faleceu prematuramente, em 1917, e vitorioso em quase todas as lutas.

fama continuava restrita às paredes dos laboratórios e repar-tições públicas de saúde, mas, em pouco tempo, a catástrofe da febre amarela jogaria seu nome na mesa do Presidente Rodrigues Alves.

Defendendo a vida entre o amor e o ódio

Quando aceitou o convite de Rodrigues Alves, sabia que sofreria todo tipo de pressão. O cargo de Diretor Geral de Saúde Pública, em geral, era ocupado por médicos ligados a uma forte tradição, aferrados ao poder e a antigos procedimentos médicos. Oswaldo Cruz representava a mo-dernidade, e ela incomodava. Teve que enfrentar a astúcia das elites letradas e a ignorância das massas populares.

Em 26 de março de 1903, assumia oficialmente suas funções. Começava a correr o prazo de três anos em que prometera ao Presidente eliminar a febre amarela. E assim, atacou o problema atuando pelos modernos métodos propostos por Finlay. Esse médico norte-americano havia conseguido eliminar a moléstia em Cuba, atacando sem tré-gua o vetor da doença: o mosquito. Oswaldo Cruz confiava na sua proposta, mas logo teve que enfrentar hostilidades. A imprensa começou a veicular artigos virulentos antevendo o fracasso do trabalho, denunciando a inutilidade dos esforços, e os males a que a população seria exposta.

Oswaldo Cruz não esmoreceu. Lançou às ruas pelotões de funcionários, os conhecidos “mata-mosquitos”, que atacavam diariamente os focos do mosquito transmis-sor. Vistoriavam casa por casa, intimando os proprietários a sanar as condições insalubres em que a maioria delas se encontrava. Notificavam a presença de doentes e distribuíam folhetos com os “Conselhos ao Povo”, onde a Diretoria de Saúde Pública expunha todas as medidas que a população deveria atender para controlar a doença.

Apesar de provocar contrariedades, mesmo entre seus pares, e lutando com a má vontade da população que se sentia ultrajada, a campanha começou a apresentar resul-tados. Enquanto no primeiro semestre de 1903, haviam sido registrados 469 óbitos, no mesmo período do ano posterior eles despencaram para apenas 39 casos. Uma vitória, sem dúvida, mas não o fim da guerra. Oswaldo Cruz haveria de considerar o Rio de Janeiro livre da doença apenas em 1906. Já então, estaria se envolvendo em outra luta, mais insidiosa e acirrada.

A Revolta da Vacina

A varíola é um mal milenar. Foi devastadora en-quanto existiu e estima-se em muitos milhões o número de vítimas. A humanidade só encontrou paz a partir de 1796, quando Edward Jenner, um médico inglês, descobriu uma vacina para o mal. Passado mais de um século desde a des-coberta de Jenner, a varíola ainda fazia pouco das autorida-des de saúde brasileiras. Em março de 1904 instala-se uma epidemia. Entretanto, Oswaldo Cruz está determinado a eliminar mais este inimigo, e conta com o aval do Presiden-te Rodrigues Alves. O sanitarista sabe que a única solução possível é a vacinação em massa da população.

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A Comissão de Saúde Pública do Senado chega a propor a vacinação obrigatória em todo o território na-cional, mas, o projeto é engavetado em nome da liberdade individual. Ocorre, que desde as campanhas contra a febre amarela, a opinião pública se mostrava descontente com os métodos oficiais. Aproveitando-se disso, muitos políticos incomodados aproveitavam o momento para inflamar o povo e boa parte da imprensa ajudava na missão incendiária. En-tre boletins e jornais que circulavam na época, era comum encontrar textos desse teor: “...charlatães sem clínica pretendem fazer a Pátria retrogradar para além do regime colonial, para além do tempo das feitorias, transformando o povo em um viveiro de cobaias”.

Tais barbaridades sem qualquer fundamento não desviaram Oswaldo Cruz de seu intento. A pressão foi au-mentando, a ponto de ameaçar até mesmo a permanência de Rodrigues Alves no cargo. Entrementes, em meio a toda essa celeuma, a varíola continuava a fazer vítimas. Só na epidemia de 1904, contava-se 130 falecimentos por semana na Capital Federal.

Os comícios eram corriqueiros, as classes operárias se mobilizavam. Nem os quartéis e as escolas militares tinham sossego. Afinal, a proposta da lei de vacinação obrigatória seguiu para o plenário da Câmara dos Deputados. A sessão foi tensa e longa, mas, após muita discussão, a lei foi aprovada em 31 de outubro. Porém, sem uma regulamentação específica. Por inépcia, ou pela torpeza de algum parlamentar, o texto vazou para a imprensa. Foi a faísca que faltava para atear fogo aquela fogueira de interesses escusos e brados da ignorância. A desordem irrompeu pela capital da república.

Nas ruas o povo demonstrava seu descontentamento provocando destruição. O motivo, obviamente, não era ape-nas a lei da vacina. Havia o desemprego, havia a carestia, e as reformas urbanas capitaneadas pelo Prefeito Pereira Passos, que incomodavam a muitos. Tudo isso se avolumando pelo pouco esclarecimento que o governo passou a opinião pública. As cenas de vandalismo aconteciam por toda a cida-de. Bondes eram arrancados dos trilhos e depredados, lojas eram saqueadas, ruas foram bloqueadas. Alunos da Escola Militar, cerca de duzentos, marcharam sobre o Palácio do Catete, mas foram contidos por forças do Exército leais a Rodrigues Alves. O Presidente, refém de uma situação que parecia incontrolável, acabou decretando o estado de sítio.

Na manhã seguinte a situação começou a serenar, mas só no dia 17 de novembro a revolta foi completamente dominada.

Após todo esse episódio lamentável, Oswaldo Cruz permaneceu firme em sua crença no poder da vacina, e indiferente à opinião daqueles que chegaram a recomendar sua exoneração. No entanto, a resposta que Rodrigues Alves deu a esta proposta insensata, cairia como um bálsamo nos ouvidos do sanitarista. Assim disse o Presidente: “Oswaldo não é funcionário a quem se exonere; ademais, a vacina obrigatória é apenas um pretexto”.

Muito a fazer em pouco tempo

Em 1907, Oswaldo Cruz sofre a primeira crise de insuficiência renal, que daí a dez anos ceifaria sua

Página 66: Um pequeno grande problema de saúde. Os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz travam uma luta sem tréguas contra os mosquitos transmissores de algumas doenças muito conhecidas. Muitas batalhas foram vencidas, mas doenças como a malária ainda causam danos à saúde humana, principalmente entre a população da região amazônica.

vida. Neste mesmo ano, uma grande esquadra dos Esta-dos Unidos, a caminho do Cabo Horn, fundeia na Baía de Guanabara. O embaixador norte-americano consulta Oswaldo Cruz acerca do perigo que representava a febre amarela. O lamentável caso da fragata Lombardia ainda o inquietava. Em resposta, Cruz lhe garantiu que a febre amarela estava erradicada no Rio de Janeiro. E foi o que se viu. Entre os 18 mil tripulantes que desceram em terra, não houve um só caso da doença.

A varíola, essa sim retornou, em 1908. A lei conti-nuava carente de regulamentação e Oswaldo Cruz insistia na tese da obrigatoriedade. Por aquele tempo, a imprensa havia amenizado o tom, e já estimulava a vacinação. O povo, vendo que só os não vacinados morriam, passa a aderir espontaneamente. Assim, a moléstia faz menos estragos.

Ainda neste ano, Afonso Pena, que havia sucedido a Rodrigues Alves na Presidência, rebatiza o Instituto de Manguinhos, que passa a se chamar Instituto Oswaldo Cruz. Tocado por essa gentileza, e já desgastado pelo acúmulo de funções, o sanitarista demiti-se do cargo de Diretor Geral de Saúde Pública e passa a se dedicar com exclusividade à casa que agora leva seu nome.

Isso, no entanto, não faz com que o ritmo de tra-balho se reduza. Pelo contrário. Os resultados conquistados nas campanhas que Oswaldo Cruz capitaneou, espalham seu nome pelo país e pelo mundo. Em 1910, parte para a Região Amazônica. Segue para Porto Velho a pedido da empresa que constrói a famosa Estrada de Ferro Madeira-Mamóre. Instala-se no Hospital da Candelária, onde são tratados os funcionários da ferrovia, gente vinda de todas as partes do mundo e que ali tombavam. Muitos para sempre. A malá-ria era a grande vilã que devastava as frentes de trabalho, atacando quase 90% dos trabalhadores.

Impressionado, mas não estagnado, Oswaldo Cruz partiu para o trabalho e dentro de algum tempo conseguiu minorar as condições epidêmicas. Conhecia de cor a equação simples que solucionava as altas taxas de malária: quinina e mosquiteiro. Como bem sabia, remédio existia, o que custava era implantar as medidas profiláticas.

Toda essa dedicação teve um alto preço, que nem as inúmeras homenagens que lhe foram prestadas, seriam capazes de justificar. Minado pela insuficiência renal, a saúde de Oswaldo Cruz piorava seguidamente. A falta de descanso e as seguidas viagens a que ele não se furtava, concorriam para piorar o quadro. A família e os amigos, preocupados com seu estado, manobraram para que ele se afastasse de Manguinhos.

Em meados de 1916, Oswaldo Cruz assume a Prefeitura de Petrópolis, a cidade serrana em que D. Pedro II veraneava. A contragosto, afastou-se do Instituto a que dedicara a maior parte da vida. Mas não consegue se afas-tar do trabalho. Propõe uma série de reformas urbanísticas que jamais realizaria. Meses depois é obrigado a pedir seu afastamento do cargo, pois seu quadro clínico piora sensivel-mente. A doença o imobilizava e o cega. Durante o carnaval de 1917, enquanto o povo brincava pelas ruas da Cidade Imperial, Oswaldo Cruz falecia aos 44 anos. Entre as valiosas

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heranças deixadas por obra de sua mente privilegiada, está uma frase que se eternizou:

“O saber contra a ignorância, a saúde contra a doença, a vida contra a morte... mil reflexos da batalha permanente em que estamos envolvidos...”

Que outros se envolvam nesta batalha pela vida com a mesma dedicação com que ele o fez.

Carlos Chagas e a descoberta de uma vida

São Gonçalo das Tabocas é hoje um nome esque-cido. Até o início do século XX nomeava uma localidade do interior de Minas Gerais, que foi rebatizada, em 1908, como Lassance. Foi uma homenagem ao Dr. Ernesto Antonio Lassance Cunha, engenheiro que comandava, na região, os trabalhos de instalação dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil. O governo republicano, presidido à época por Afonso Pena, pretendia integrar o país por ferrovias, lançando trilhos que ligariam o Rio de Janeiro, então ca-pital federal, a Belém. Todavia, a empreitada precisou ser paralisada nas proximidades de Lassance por conta de um pequeno, mas poderoso empecilho: o mosquito transmissor da malária. O mal atacava em toda a região do rio das Ve-lhas, local onde se concentravam os trabalhos da ferrovia.

Vendo sua força de trabalho ser derrubada pela doença, a Central do Brasil buscou socorro junto a Oswal-do Cruz. O eminente sanitarista conhecia muito bem as qualidades de um jovem médico chamado Carlos Chagas, a quem havia orientado em sua tese de doutoramento, e reconhecia nele a capacidade para debelar o surto que se instalara em Lassance.

Carlos Chagas parte para a região, aonde chega em junho de 1907, e logo acomoda seu laboratório num vagão inoperante e passa a atender os doentes. Pretende adotar os mesmos procedimentos que o fizeram ter êxito numa re-cente campanha contra a malária, para assim, combatendo sem tréguas o mosquito transmissor, ser possível controlar a epidemia em poucos meses.

No entanto, sua permanência em Lassance o levaria a uma descoberta que marcaria para sempre sua vida e a história da medicina brasileira e mundial.

Aos olhos de um pesquisador devotado como Carlos Chagas, o acaso representa sempre mais que um simples incidente cotidiano. Foi assim, que entre os atendimentos realizados em Lassance, Carlos Chagas identificou muitos casos de uma doença cujos sintomas nada tinham a ver com a malária. As alterações patológicas eram visíveis. Os doentes apresentavam um quadro de insuficiência cardíaca, por vezes grave e, em alguns casos, levando a morte súbita. O que causava ainda mais estranheza era o fato de que o mal atingia em grande número os moradores da localidade e nenhum dos operários da estrada de ferro.

Quase ao mesmo tempo, um engenheiro da ferrovia chamou a atenção do médico para um inseto que infestava as casas da região. O “barbeiro” é um inseto hematófago de hábitos noturnos. Permanece escondido durante o dia nas frestas das paredes das casas rústicas, construídas no antigo sistema de pau-a-pique. A noite sai para se alimentar de

Página 69: Ainda jovem Carlos Chagas alcançou a glória ao descobrir a moléstia que eternizaria seu nome. A cura para a doença de Chagas ainda é alvo de pesquisas, mas a descoberta do médico mineiro permitiu que a profilaxia salvasse inúmeras vidas.

sangue humano, picando suas vítimas no rosto, hábito pelo qual recebeu a merecida denominação popular.

Não eram poucas as doenças em que os insetos desempenhavam o papel de agente transmissor. Seguindo essa linha de raciocínio, Chagas preparou uma lâmina com o conteúdo do tubo digestivo de um “barbeiro” e a levou ao microscópio. Logo identificou a presença de um tripanosso-mo ainda desconhecido da ciência, e julgou que o parasita pudesse ser a causa da desconhecida doença. A necessidade de comprovar essa possibilidade fez com despachasse para o Instituto de Manguinhos alguns exemplares do inseto, pedindo a Oswaldo Cruz que tentasse infectar com o tri-panossomo alguns macacos do laboratório. Assim foi feito, e um dos animais realmente adoeceu. A resposta positiva encheu Carlos Chagas de expectativas. Ele tomou o trem e retornou ao Rio de Janeiro para ver com os próprios olhos o animal adoentado. O exame realizado no sangue do macaco comprovou a presença do tripanossomo, que seria batizado por Carlos Chagas como Trypanosoma cruzi, em homenagem a seu grande mestre.

Em pouco tempo lograra descobrir o parasita e o agente transmissor. Sabia, ademais, que o mal era capaz de infectar mamíferos. Agora, restava ao pesquisador compro-var a presença do tripanosomo em seres humanos para que a ciência médica tomasse conhecimento de uma nova doença.

De volta à pequena Lassance, e a seus doentes, Carlos Chagas viu a resposta ansiosamente aguardada ca-minhar até ele numa manhã de fevereiro de 1909. A menina Berenice chegou até o consultório apresentando os sintomas já conhecidos da doença que tanto intrigava o médico. Após comprovar a febre alta e os inchaços que tomavam a face e o corpo da pequena paciente, Chagas resolveu coletar uma amostra de sangue para exame. Momentos após, ao tirar os olhos do microscópio, tinha a comprovação, de forma definitiva, da presença do Trypanosoma cruzi num ser humano.

O grande filho da pequena Oliveira

Carlos Justiniano Ribeiro Chagas nasceu a nove de julho de 1879, no município de Oliveira, em Minas Gerais. Muito cedo o pequeno Carlos Chagas perdeu seu pai, ficando aos cuidados de sua mãe, Mariana Cândida, uma mulher rigorosa e de forte personalidade. A família Chagas era muito conceituada na região, sobretudo pela importância que dava a cultura e a instrução. Assim, aos oito anos, seguindo o ca-minho já trilhado por alguns de seus tios e primos, o menino deixou sua terra natal e foi enviado para Itu, no interior paulista, onde foi matriculado num internato dirigido por jesuítas. Em 1888, quando da assinatura da Lei Áurea, que deu fim a escravidão no Brasil, passaram a circular boatos dando conta de que fazendas estavam sendo atacadas por escravos. Carlos Chagas, então com dez anos, preocupado que estava com sua família que deixara em Oliveira, fugiu do internato e voltou para casa. A atitude intempestiva lhe custou a expulsão do Colégio São Luís.

Parecia que a carreira escolar do filho de Dona Mariana Cândida começava de uma maneira nada auspi-ciosa, mas o destino se encarregaria de direcionar o talento

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do jovem Carlos Chagas. Seguindo para São João del Rey, onde deveria completar os estudos no Colégio São Francisco, o menino ficou sob os cuidados de um religioso que teria marcante influência no direcionamento de sua vocação. O Padre Sacramento ministrava aulas de uma matéria que, no final do século XIX, ainda era denominada pelo abrangente título de Ciências Naturais. Englobava um pouco tudo que tivesse relação com a natureza que nos envolve. Aprendia-se um pouco de zoologia, de botânica, de biologia geral, de química. Ademais, Padre Sacramento tinha um método peculiar de passar seus ensinamentos. Ao invés de manter os garotos presos a sala de aula, preferia levá-los para o campo, onde teriam um contato direto com o tema a ser estudado.

Anos mais tarde, o adolescente voltou para casa cheio de sonhos, e com a firme determinação de se tornar médico. Na época, a medicina não era apenas uma carreira de prestígio, mas também aquela que tinha relação mais estreita com as ciências naturais, foco de interesse do estu-dante. No entanto, ao chegar a casa, aquela determinação que parecia inabalável, esmoreceu frente à autoridade de Dona Mariana Cândida. Ela queria que o filho seguisse a carreira de engenheiro, pois não via futuro nesse trabalho de tratar gente doente. Obediente, o filho cedeu à escolha materna e se inscreveu para as provas de admissão ao curso de engenharia. Como era de esperar, o fracasso foi completo. De volta a casa da fazenda, em Oliveira, o abalado Carlos Chagas recebeu a ajuda de um tio médico e do avô, que encheram os ouvidos da matriarca para que atendesse o desejo sincero do filho. Pelo bem da medicina brasileira, e de tantos que seriam beneficiados pelo trabalho que Carlos Chagas chegaria a desenvolver, a história deve reconhecer que a compreensão daquela mãe tão austera, permitiu o desabrochar de um imenso talento.

Enfim, médico

Em 1897, Carlos Chagas chegou Faculdade de Me-dicina do Rio de Janeiro para iniciar sua carreira de médico. Naquela época, dois professores foram determinantes na formação do futuro sanitarista. Um deles, Miguel Couto, foi um dos maiores clínicos de seu tempo. Era um grande conhecedor da língua portuguesa, e defensor ferrenho da educação. O outro, Francisco Fajardo, foi um dos pioneiros da microbiologia em nosso país, e renomado especialista em malária, que, reconhecendo a dedicação e o conhecimento de Carlos Chagas, tomou-o como discípulo. Com o apoio de tais baluartes, a carreira daquele promissor estudante parecia caminhar seguramente para o sucesso. E assim o foi. Mesmo porque, quase ao término do curso, Fajardo orientou seu discípulo para que tomasse como orientador de sua tese de doutoramento nada menos que Oswaldo Cruz. Naquela época, o sanitarista já era diretor do Instituto de Mangui-nhos e ficou verdadeiramente impressionado com o perfil daquele doutorando, a quem recomendou que se dedicasse ao estudo da malária. Chagas assim o fez e, em 1902, com apenas 23 anos, defendeu sua tese. Não demorou muito para que Oswaldo Cruz o convidasse para integrar o seu quadro de pesquisadores. Para seu espanto Chagas declinou

Página 71: O “barbeiro” ou “chupança” é o vetor que transmite a doença de Chagas ao ser humano. Felizmente a melhoria das condições sanitárias e habitacionais vem permitindo que muitas localidades fiquem livres da moléstia.

o convite, alegando que desejava se dedicar a clínica médica. Aquela época, mesmo sendo um jovem e sonhador médico, precisava ter coragem, ou ser um alienado, para recusar tal proposta. Mas a sorte o perseguiria.

Então, enquanto Chagas passava por dificuldades como clínico do Hospital de Jurujuba e num modesto con-sultório particular, irrompe um violento surto de malária em Itatinga, no litoral paulista. Os trabalhos numa obra portuária da Companhia Doca de Santos foram paralisados porque os operários estavam completamente incapacitados pela doença. Procurado pela empresa, Oswaldo Cruz in-dica Carlos Chagas para debelar o surto, pois tinha plena confiança na capacidade do jovem médico. Como se sabe, Chagas foi extremamente bem sucedido nesse caso, e de retorno ao Rio de Janeiro, recebe novo convite de Oswaldo Cruz. Convite que desta feita foi prontamente aceito.

Em 1907, Oswaldo Cruz o designa para novamente enfrentar a malária. Porém, desta vez seu destino é outro. Segue para o interior da sua Minas Gerais, para a pequena Lassance, a esquecida São Gonçalo das Tabocas, que faria o nome de Carlos Chagas entrar para a história.

Pela saúde do Brasil

A descoberta de uma nova doença repercutiu pelo país e mundo afora. Chagas foi agraciado com prêmios e as homenagens se sucediam. Em 1921, chegou a ser indi-cado ao Prêmio Nobel de Medicina e, neste mesmo ano, tornou-se o primeiro brasileiro a receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Harvard. Por outro lado, manobrava uma vertente que procurava empanar o brilho da descoberta. Chagas e o próprio Instituto de Manguinhos eram acusados da divulgação de uma doença inventada. A polêmica, criada por um grupo de médicos de pouca ex-pressão, tinha um claro viés político, uma disputa de poder dentro da Academia Nacional de Medicina, para a qual Carlos Chagas tinha sido eleito em caráter extraordinário.

Em 1912, o governo federal, em função da crise que atingia o setor de extração da borracha e, desejando elaborar um plano de exploração dos recursos naturais da Região Amazônica, firma um acordo com o agora denomi-nado Instituto Oswaldo Cruz, que deveria organizar várias expedições científicas pelos sertões do Brasil. Na primeira delas, entre outubro de 1912 e março de 1913, Chagas per-corre o rio Solimões, o rio Purus e o rio Negro fazendo um completo levantamento das condições de vida da população, e observando clinicamente as diversas doenças que afligiam aquela gente. Os resultados dessa expedição foram apresen-tados na Conferência Nacional da Borracha, onde Chagas expôs as condições de abandono social em que viviam os povos ribeirinhos, e alerta o governo para a necessidade urgente de implantar medidas sanitárias.

Em 1917, ao retornar de uma viagem a Argentina, Carlos Chagas recebe a notícia de que Oswaldo Cruz, há muito adoentado, tinha falecido. Em poucos dias assume a direção em Manguinhos onde dá seqüência as diretrizes traçadas por seu grande mestre e amigo. A gestão de Carlos Chagas, durante os 17 anos que esteve a frente do Instituto

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Oswaldo Cruz foi marcada por importantes reestruturações internas e a ampliação da gama de atribuições. À frente daquela casa, Chagas se tornaria uma figura extremamente requisitada em todo o país quando o assunto era saúde.

Isso logo seria comprovado em 1918. Nos últimos meses desse ano, a gripe espanhola, que vinha assolando o mundo e, que em sua trajetória deixaria um saldo de mi-lhões de vítimas, chegou ao Brasil pelo porto de Recife. Em poucas semanas a epidemia atinge as principais cidades do país, inclusive a cidade do Rio de Janeiro. Chagas assume a organização dos postos de atendimento onde, apenas na capital, são registrados mais 600 mil casos da doença, e o número de óbitos chegou a 11 mil. Esse número impressio-nante, que não se ampliou em função do trabalho dirigido por Chagas, revelava de forma cabal a desatenção das esfe-ras governamentais em relação às necessidades básicas de saneamento e higiene públicas.

O estrago causado pela gripe espanhola abriu os olhos de Epitácio Pessoa, que assumiu a Presidência da República, em 1919. Reconhecendo o excelente trabalho de Carlos Chagas durante a crise, Pessoa o convida para ficar a frente da recém-criada Diretoria Geral de Saúde Pública, responsável pela reorganização dos serviços de saúde pública em todo o país. No ano seguinte, seria criado o Departamen-to Nacional de Saúde Pública, órgão que ampliava o poder de intervenção e regulação do governo federal no setor de saúde pública. À frente daquele Departamento, Chagas pode levar em frente uma ampla reforma dos serviços de saúde.

Entre as paredes do Instituto Oswaldo Cruz, ao qual dedicou todo seu talento e fez honra ao nome de seu fundador, Carlos Chagas teve a oportunidade de acompa-nhar grandes transformações. Muitas delas foram obra de seu empenho pessoal, como também da visão de futuro que tinha para a casa que o acolheu, e pela qual alcançou fama internacional através da descoberta da doença que leva seu nome.

Carlos Chagas faleceu subitamente, em oito de novembro de 1934, deixando estabelecidas as bases que transformariam o Instituto Oswaldo Cruz num dos maiores centros de pesquisa, ensino e produção de medicamentos de todo o mundo. A glória que cruzou seu caminho, em 1909, na pequena Lassance, jamais destemperou seu caráter. Todavia, por mais incrível que possa parecer, a polêmica que envolveu seu nome e sua descoberta continuou mesmo após a sua morte. De um lado os detratores, os invejosos, os inexpressivos, ávidos por obscurecer o brilho de Chagas. De outro, seus amigos, colegas, e os próprios filhos, médicos como o pai, que se empenharam na defesa do pesquisador. No entanto, a polêmica agiu positivamente, atraindo o inte-resse de pesquisadores de todo o mundo pelo estudo do Mal de Chagas. Dessa forma, pelo bem da ciência, a história se encarregou de mostrar onde estava a verdade. Ela estava, e sempre esteve, com Carlos Chagas.

Garotada experiente

A incorporação de novas unidades a Flotilha de Saúde vem reforçar a equipe de trabalho em favor dos nos-

Página 73: Tudo é beleza nessa imagem, o visual e a missão. As paisagens encontradas na região amazônica são um cenário ideal para captar cenas como essa. Inspi-radora como o destino do Doutor Montenegro: levar saúde e salvar vidas.

sos irmãos das ribeiras. Em 2000, chega um novo NAsH, o “Doutor Montenegro”, cujo nome de batismo presta uma justa homenagem ao médico acreano Manoel Braga Mon-tenegro. Em 1956, ele se diplomou pela primeira turma da Faculdade de Ciências Médicas de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Orientado por um professor, Montenegro se dedicou aos estudos da hanseníase, que naqueles tempos fazia muitas vítimas e atendia pelo temido nome de lepra. Prestes a completar 30 anos, volta à terra natal e assume o posto de médico “pau pra toda obra” no hospital de Cruzeiro do Sul, as margens do Juruá. É o início de uma longa folha corrida de ajuda aos necessitados. Ele mesmo relembra aqueles tempos:“Mesmo sendo filho de Cruzeiro do Sul não conhecia a realidade da região. Exercer a medicina naquela época era muito mais do que medicar ou identificar doenças. Tínhamos que chegar às pessoas, convencê-las da importância do tratamento e de que não seriam prejudicadas. Também não tínhamos as condições necessárias, faltava muita coisa, mas tinha muita disposição e desejo de ajudar o próximo”

A disposição de Montenegro o fez sobrepujar inú-meras dificuldades. Passando por cima da falta de recursos ele atendia seus pacientes onde suas pernas e uma canoa o pudesse levar. Contava apenas com seu conhecimento e com a experiência que ia ganhando pelas ribeiras do Juruá. A necessidade era tão extrema que durante muito tempo uma cozinheira teve que fazer o papel de auxiliar nas cirurgias.

Todavia, nada era mais gratificante que a luta con-tra a hanseníase. Montenegro era movido por uma vontade imbatível de ajudar aqueles doentes que se isolavam do contato humano. Não raro os encontrava enterrados em buracos, e tinha que travar uma batalha para convencê-los a aceitar o tratamento. Em geral a vitória o bafejava.

Em julho de 2008 o Doutor Montenegro deixou os consultórios daquele mesmo hospital de Cruzeiro do Sul e foi descansar. Tinha exercido o sagrado ofício da medicina por mais de 50 anos e suas palavras parecem soar como um incentivo aos tripulantes de toda a Flotilha de Saúde: “sempre procurei trabalhar com amor, mesmo em meio às dificuldades.”

O caçula da turma é um senhor que viveu nada me-nos que 113 anos. A escolha do nome do Navio de Assitência Hospitalar “Tenente Maximiano” homenageia um valente voluntário que se engajou na Marinha, em 1913, aos vinte anos de idade. Maximiano José dos Santos, pernambucano de Bom Conselho, permaneceu nos quadros da Marinha por mais de 35 anos. Nesse tempo, participou da Primeira Guerra Mundial a bordo Encouraçado São Paulo, como também nos navios South Carolina e Nebraska da Marinha norte-americana. Durante a Segunda Guerra Mundial, já baseado em Ladário (MS), serviu no lendário Monitor Par-naíba, uma das quinze embarcações em que esteve como tripulante. Durante sua longa vida recebeu várias medalhas, condecorações, elogios e títulos de cidadão honorário. Me-recedor de todos eles, sempre foi grato aquela que foi sua Pátria sobre as águas, e com um sorriso largo reconhecia: “Tudo que sei e tudo que sou, devo à Marinha. A Marinha de Guerra do Brasil foi minha segunda mãe. Deixei-a, olhando para trás. E se ainda hoje a Marinha me chamasse, voltaria com muito orgulho e recomeçaria tudo outra vez”.

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A Flotilha

A Guerra do Paraguai, que abalou a América do Sul desde fins de 1864 até março de 1870, testemunharia a coragem e o destemor de dois grandes comandantes militares. Um deles, Joaquim Marques Lisboa, o Almirante Tamandaré, a Marinha do Brasil elegeria como seu Patrono. O outro, o Brigadeiro Antônio de Sampaio, foi escolhido como

Patrono da Infantaria do Exército Brasileiro. Durante a Batalha de Tuiuti, considerada como a mais violenta daquela guerra, Sam-paio comandava a 3ª Divisão do Exército Imperial, conhecida como “A Encouraçada”, quando foi ferido por três vezes. Apesar da gravidade de seu estado, ele só deixou o campo de luta quando percebeu a retração das tropas paraguaias, que caminhavam para a derrota. Recolhido a um hospital argentino, resistiu aos ferimentos por um mês. Findo esse prazo, como seu estado se agravasse, solicitou que o transferissem para um hospital brasileiro localizado em Buenos Aires. No dia seis de julho de 1866, nas proximidades da capital argentina, Sampaio veio a falecer. Todo o furor dos acontecimentos e o brilho daquele herói, às vezes empurram para o esquecimento certos detalhes. Está registrado nos livros, mas poucos hão de se lembrar que foi a bordo de um navio-hospital que Sampaio entrou definitivamente para a história. Eponina era o nome daquela embarcação. Decorridos exatos seis meses, ela foi destruída por um incêndio devastador e afundou com muitos enfermos e feridos a bordo. De certa forma ela também entrava para a história. Talvez, sem o brilho de um Sampaio, mas com a mesma dignidade daquele guerreiro.

Podemos ver que não é de hoje, nem exclusividade do Brasil, a manutenção de navios-hospitais. Essas embarcações partici-param de inúmeros conflitos e foram responsáveis pelo socorro a legiões de combatentes em todo o mundo. Atualmente, incorporam quase todas as Marinhas do mundo. Da mesma forma, ações de atendimento à saúde também vem sendo realizadas há bastante tempo. Em nosso território, esse trabalho já acontece durante as Ações-Cívico Sociais, as ACISO, em que regularmente a Mari-nha do Brasil envolve seus meios operativos, com especial destaque na Região Amazônica através de seus Navios-Patrulha Fluvial (NaPaFlu). São operações, geralmente em caráter temporário, que atendem às carências mais prementes das comunidades. Muitas vezes, essas operações visam socorrer vítimas de calamidades naturais, como as cheias que regularmente assolam as áreas ribeirinhas do Norte e Nordeste brasileiro, quando as embarcações da Marinha transformam-se em verdadeiros pólos de atendimento médico, vacinação, resgate, distribuição de víveres e medicamentos. Em períodos menos críticos, as ACISO cumprem um valoroso papel de disseminadoras da cidadania e de comprometimento com a vida humana. Trabalhando em atendimento a diversas Prefeituras, leva a efeito campanhas de vacinação, de doação de alimentos, de prevenção de doenças e procura interferir positivamente nas áreas onde são detectados altos índices de mortalidade maternal e infantil. Atuando pelo lado sócio-educacional, promove palestras sobre saúde, prevenção de acidentes na navegação e, em parceria com órgãos governamentais, realiza campanhas para expedição de títulos de eleitor, carteira de identidade e de trabalho, além do registro civil de muito brasileiros como nós, que legalmente permaneciam à margem de nossa sociedade.

Sem dúvida, um trabalho soberbo, indispensável e meritório sob todos os aspectos. Mas a Marinha do Brasil sabia que era necessário fazer mais, e que tinha capacidade para tanto.

Um projeto de saúde para a Amazônia

Um rápido levantamento sobre as condições de saúde no Brasil mostra que é obra de gigantes o empreendimento a ser feito para minorar o sofrimento de muitos brasileiros. Mormente em regiões desprovidas das condições mais elementares para a manu-tenção da vida, da saúde e da cidadania, esse quadro se apresenta ainda mais grave. Tudo isso não é uma novidade para nós, nem é um problema restrito às fronteiras do Brasil. É sim um problema a ser enfrentado por brasileiros em benefício de todos, pois não há grandeza que se estabeleça sobre a doença, a carência e a miséria. Essa situação formou-se ao longo da história, e uma longa luta vem sendo travada apresentando muitas vítimas e fracassos, mas também com brilhantes vitórias conquistadas por heróis inspiradores.

Quando a Marinha do Brasil percebeu a necessidade de incrementar suas ações em prol das comunidades da Região Ama-zônica, tratou de buscar dentro de casa um projeto que atendesse a seus anseios. Foi encontrá-lo junto ao Arsenal de Marinha, que desenvolveu e executou um dos mais bem-sucedidos projetos de embarcação, que se tornou um modelo de adaptação ao meio fluvial e de atendimento as missões de assistência hospitalar. O nome de Oswaldo Cruz, o eminente sanitarista que tantas vitórias alcançou sobre a doença, foi escolhido para inaugurar uma nova classe de navios que surgia na Marinha do Brasil.

A idéia era dispor de um navio que atendesse a especificações bem definidas. Teria que apresentar uma grande autonomia para poder transitar pelas grandes extensões da Amazônia, alcançando assim as comunidades mais distantes. Quando se fala nestes

Página 74: A equipe do convoo forma durante uma passagem do Tucano 89, enquanto o sol doura as águas do rio Trombetas, no Pará. Sempre há grande movimentação a bordo durante as operações aéreas, já que o apoio da aeronave é de fundamental importância, mas envolve riscos que precisam ser acompanhados de perto.

Os Navios que Singram os Rios da Amazônia

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termos não é simples retórica, pois as distâncias naquela região configuram um desafio para quem se dispõe a percorrer mais de 20 mil quilômetros de águas fluviais, em condições adversas de temperatura e umidade. Precisaria ser compacto e altamente manobrável para enfrentar o traçado nem sempre confiável dos rios, bem como ter pouco calado, para uma melhor estabilidade, e fundo chato para escapar dos baixios. Essas características também permitem que o navio abarranque nas ribeiras quando não é possível contar com outros meios de atracação, algo muito comum nas comunidades visitadas. Deveria também ser provido de um convoo que permitisse as operações de uma aeronave orgânica, papel atualmente desempenhado pelos Esquilos do 3° Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3), Esqua-drão Tucano, também sediado em Manaus, e fundamental nas missões de deslocamento das equipes de AssHop. Por fim, deveria ser dotado de uma ampla, completa e eficiente área hospitalar, que tivesse capacidade de atender à maioria dos problemas de saúde que são encontrados entre as comunidades ribeirinhas. Assim, o projeto original apresentava dois ambulatórios, dois gabinetes odontológicos, um laboratório, uma farmácia, uma sala de raios X, duas enfermarias e uma sala de cirurgia.

O ano de 1980 se iniciava, quando o então Presidente da República João Baptista de Oliveira Figueiredo, em despacho datado em dois de janeiro, autorizava o projeto e a construção pelo Arsenal de Marinha de dois navios de assistência hospitalar. A aprovação da Presidência atendia a uma exposição de motivos enviada pelos titulares as pastas da Marinha, dos Transportes, da Saúde, da Previdência Social e do Ministro-Chefe da Secretaria de Planejamento. Por este ato, era dada a largada para que a Marinha passasse a dispor de meios para o cumprimento da tarefa humanitária a que se propunha. O Oswaldo Cruz foi o primeiro a entrar na carreira, um projeto único, que comprovava a capacidade da engenharia e da indústria naval brasileira, res-ponsáveis pelo elevado índice de nacionalização da empreitada. Em nove de julho de 1982 ocorreu o batimento de sua quilha e, passado pouco mais de um ano, ele já era lançado ao mar. Realizou as prova de mar finais em maio de 1984, quando seus motores mostraram que estavam prontos para encarar as duras exigências de qualquer mar e de qualquer rio. Na seqüência, passou pela Mostra de Armamento quando foi incorporada à Armada e entregue a seu primeiro Comandante, o então Capitão-de-Corveta Odolfo Hermano de Carvalho Franco, que finalmente o conduziria a seu verdadeiro ambiente de trabalho. No final de 1984, o U18 Oswaldo Cruz seguiu para Manaus, onde se incorporou a Flotilha do Amazonas (FlotAm), e não de-morou muito para que realizasse a primeira de muitas comissões de assistência hospitalar. Desde então ele nunca mais parou, e os ribeirinhos esperam que continue assim por longos anos.

Em atendimento ao seu projeto, o Navio de Assistência Hospitalar Oswaldo Cruz apresenta as seguintes características: deslocamento padrão de 360 toneladas, que se eleva a 450 to-neladas quando carregado. Dimensões básicas: 47,18 metros de comprimento, 8,45 metros de boca e, 1,75 metros de calado má-ximo. A propulsão é fornecida por dois motores principais Scania DSI 14 74M 41-5, com potência de 552 HP, que funcionam num

Página 77: No caso de falha nas comunicações internas o telégrafo da máquina ainda é usado para comandar o seguimento da embarcação. Apesar dos NAsH Oswaldo Cruz e Carlos Chagas estarem completando seu jubileu de prata os equipamentos de bordo têm sido constantemente modernizados e atualizados. Páginas 78/79: Um UH-12 Esquilo do Esquadrão Tucano se aproxima para pouso enquanto o U-19 segue pelo rio Amazonas. O piloto segue a orientação do OLP, que estende seu braço esquerdo instruindo para que a aeronave se desloque a boreste e alinhe com a embarcação. Operação como essa é corriqueira, mas exige grande adestramento dos pilotos e das tripulações para que o helicóptero toque o convoo em total segurança.

giro de 1.800 RPM, e dotam a embarcação desde julho de 1999. Como motores auxiliares encontram-se dois motores Scania DSI 11M-01, apresentando uma potência nominal de 270 HP, que foram instalados por ocasião da construção do navio. Em regi-me de emergência, opera um gerador movido a diesel, modelo MWM D221-6, com potência de 180 HP. A capacidade de 70 mil litros de óleo permite que a embarcação desenvolva uma boa velocidade, principalmente quando aproveita a correntada. Mas, independente do fluxo do rio, em velocidade de cruzeiro o raio de ação se estende a cerca de três mil milhas. Os conveses são em número de cinco, abrindo espaço para oito camarotes de oficiais e outros quinze para os praças, capazes de acomodar confortavelmente toda a tripulação e mais os oficiais destacados, que sempre vem a bordo durante as comissões. Vale lembrar, que todas as dependências do navio são interligadas por via telefô-nica e rede digital. A Praça d’Armas, que apesar de modesta é bem dimensionada para atender a oficialidade, permite que se disponha de conforto e algumas facilidades de lazer.

Na parte operacional, o navio dispõe de duas lanchas para transporte de pessoal, imprescindíveis nos deslocamentos pela ribeira, nas operações de resgate e nas manobras de abar-rancagem. Como já citado anteriormente, o NAsH recebe o apoio de uma aeronave orgânica, o Helibras Eurocopter HB 350 Esquilo (UH-12). Este helicóptero é equipado com uma turbina Turbomeca Arriel 1B de 680 HP, e seu peso total de decolagem é da ordem de 2.100 kg, incluindo dois pilotos e até três passageiros. Com um raio de ação de até 150 milhas náuticas, ou mais de três horas de autonomia, ele se torna extremamente eficiente na introdução das equipes de atendimento e na retirada de vítimas, na qual é configurado para receber uma maca.

Logo abaixo do convoo encontra-se a área hospitalar, um verdadeiro oásis de saúde flutuante. Em suas dependências é possível atender um grande número de pacientes nos consul-tórios médicos e nos gabinetes odontológicos, que contam com modernos equipamentos e toda a estrutura, a mesma usada em procedimentos básicos de enfermagem. Em casos mais graves o navio dispõe também de uma bem aparelhada sala de cirurgia que, não raro, já foi palco de inúmeros partos. Na farmácia encontramos uma completa relação de medicamentos, disponi-bilizados pela própria Marinha e pelo Ministério da Saúde, que atendem a uma ampla gama de enfermidades, que são objeto de estatística apuradas que se renovam a cada comissão. Anexo a ela está o laboratório, capaz de realizar as diversas análises clínicas solicitadas pela equipe médica. Visto que, a grande maioria das doenças que atacam as populações ribeirinhas está relacionada à má qualidade da água, ou o seu tratamento ineficaz, à falta de saneamento, e ainda, a transmissão por vetores endêmicos, os serviços dos laboratórios são vitais para o diagnóstico e trata-mento dos pacientes.

As operações de AssHop adotam padrões que tem sido aperfeiçoados ao longo desses 25 anos de atividades ininterruptas. A prática e a observação tem sido as melhores diretrizes para o trabalho dos NAsH, pois são tantas as variáveis encontradas que é preciso formatar padrões que direcionem as operações. Tudo isso sendo registrado e debatido para ser incorporado a

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futuras comissões. O modo de atendimento varia conforme a localização e as possibilidades de acesso à comunidade. Se for possível abarrancar na ribeira ou atracar num pequeno porto, o atendimento se torna mais ágil e produtivo, visto que os pa-cientes podem ser recebidos a bordo pelas entradas laterais do costado e da popa. Caso contrário é preciso estabelecer uma base em terra e uma equipe de médicos, dentistas e enfermeiros é transportada até o local por lancha, juntamente com seus equipamentos e medicamentos. Para instalar um posto de atendimento provisório bastam poucas salas de escola ou de um centro comunitário. Na falta desses, qualquer área aberta ou a própria beira de um rio podem servir. Vulgarmente se podem encontrar os profissionais de saúde atendendo embaixo de árvores ou sob barracas de campanha, tão eficientes como se estivessem nas dependências de um hospital. Como diz o ditado: a necessidade é a mãe da criatividade. Em casos extremos, mas bem comuns em se tratando da Amazônia, as comunidades que não possuem acesso por terra ou por rio, exigem que as equipes de AssHop cheguem a bordo da aeronave orgânica embarcada no NAsH. Para tanto, basta que o local disponha de uma área aberta, como um pequeno campo de futebol, área mais que suficiente para os habilidosos pilotos da Marinha. Na verdade, o que importa é que a ajuda chegue aos mais necessitados. No cumprimento dessa missão, qualquer sacrifício é pequeno para não deixar uma comunidade sem atendimento.

Em boa companhia

Como vimos, o Oswaldo Cruz, havia sido concebido num projeto que lhe daria em breve um irmão de igual estirpe. Em dezembro de 1984, esse seu par foi também incorporado a Armada brasileira e, em seu batismo a sorte também o havia premiado. Chamava-se Carlos Chagas, nome de outro ilustre mé-dico sanitarista, herdeiro espiritual e sucessor da obra humanista de Oswaldo Cruz. Em 23 de janeiro de 1985, o U19 deixou as águas do Rio de Janeiro e seguiu para Manaus, onde, em março daquele ano, foi igualmente incorporado a Flotilha do Amazonas. O “Peixe-boi da Amazônia”, como é carinhosamente conheci-do, não difere em nada do Oswaldo Cruz Sua configuração é a mesma, e o destinos dos dois estão ligados pela mesma missão: levar saúde aos povos ribeirinhos. Apenas ela os faz deixar a Estação Naval do Rio Negro e partir para infinitas distâncias.

No ano de 2000, a Flotilha de Saúde ganhava um re-forço inesperado, mas muito bem-vindo. Em 19 de maio daquele ano era incorporado à Marinha o Navio de Assistência Hospitalar Doutor Montenegro (U-16). Essa embarcação, que homenageia um ilustre médico acreano, o Dr. Manoel Braga Montenegro, foi construída num estaleiro da capital amazonense e durante alguns anos operou sob a coordenação do Governo do Estado do Acre. No entanto, um pequeno e incontornável detalhe in-viabilizou sua utilização continuada em benefício das populações ribeirinhas daquele Estado. O período de vazante dos principais rios que banham o território do Acre acabou impossibilitando o deslocamento da embarcação. Durante vários meses do ano o Doutor Montenegro ficava retido no porto a espera de melhores condições para navegar. Não demorou muito para que o Governo do Estado percebesse que o melhor caminho para dar fim aquela

Páginas 80/81: Na cadeira de comando senta quem tem competência e sensibilidade. Comandar um NAsH é honra disputada por muitos e merecida por aqueles que demonstram alto nível de profissionalização e tato para lidar com questões sociais e humanas por vezes críticas. Página 82: Apesar de ainda estar dando seus primeiros passos o Tenente Maximiano vai ganhando reconhecimento junto às comunidades ribeirinhas do Pantanal. Em breve o currículo da embarcação estará carregado de histórias comoventes e vitoriosas. Um incentivo maior para que a missão continue sem esmorecer.

subutilização seria firmar um convênio com a Marinha do Brasil, que possuía nesta época uma boa experiência na operação de navios-hospitalares. Celebrado o acordo, a embarcação seguiu para reparos e obras de adaptação que o colocariam em condi-ções de ser incorporado, como de fato aconteceu, em 19 de maio de 2000. Desde então, está sediado na FlotAm, em Manaus, a disposição da Flotilha de Saúde.

Quando se observa o Doutor Montenegro próximo aos outros NAsH da Flotilha de Saúde, a primeira coisa que salta aos olhos é seu perfil diferenciado. Enquanto o Oswaldo Cruz e o Carlos Chagas assemelham uma embarcação como o NaPaFlu da Classe Roraima, no qual se baseou o projeto daqueles navios-hospital, as linhas do Doutor Montenegro lembram as linhas de um catamarã, ou de um barco de turismo. No entanto, sua configuração o diferencia em muito dessas em-barcações. Hoje, ele está muito bem adaptado as exigências que encontra durante as AssHop e, excetuando a ausência de um convôo que o impede de receber aeronaves, sua produtividade durante as comissões não deixa nada a desejar.

O Doutor Montenegro apresenta um comprimento total de 42 metros, e uma boca moldada de 11 metros. Seu calado máximo, razão de seus infortúnios no passado, alcança os dois metros e quarenta centímetros. A embarcação desloca 400 toneladas com a força de dois motores diesel Cummins NT 8554-300HP. Como motores auxiliares estão instalados dois motores diesel geradores Cummins Stemaq de 135 KVA cada. Mantendo uma velocidade média de cinco nós, o navio apresenta um raio de ação de 3.200 milhas náuticas, mais que suficiente para atender a totalidade de suas missões.

O passadiço do “Doutor Montenegro” é dos mais bem equipados da Flotilha. Ali estão instalados dois radares de navegação Furuno, modelos 1942 MK 2 e 1505 MK 3, um GPS modelo GP80 e dois ecobatímetros LS 6000, também do mesmo fabricante, e uma agulha giroscópica Sperry MK-25. Navegar com segurança não é problema a bordo. E, muito menos fornecimento de água potável, já que o navio conta com uma estação de tratamento de água capaz de suprir todas as necessidades da tripulação.

Sobre a coberta, existem três berços alojando lanchas rápidas e dotadas de potentes motores de popa, que fazem o transporte de pessoal durante as operações. Mas a razão de ser do “Doutor Montenegro” ocupa uma grande área da embarca-ção, alguns conveses abaixo. As instalações hospitalares contam com uma enfermaria que abriga quatro leitos para adultos e dois infantis, um centro cirúrgico, sala de parto, unidade de terapia intensiva, sala de raios-X, laboratório de análises clí-nicas, farmácia, dois gabinetes odontológicos, um consultório clínico, um consultório pediátrico, e ainda outro dedicado ao atendimento ginecológico e obstétrico.

Dá para imaginar a enorme quantidade de gente que passa por aquelas instalações. Em média, são 27 mil atendi-mentos a cada ano, fazendo com que o Doutor Montenegro já tenha ultrapassado a impressionante marca de 100 mil milhas navegadas. Grande parte desses atendimentos são realizados em favor da população carente do Acre, “estado natal” do NAsH, que para lá se desloca anualmente durante a comissão ao Pólo Juruá “C”-Acre. Para comandar toda essa obra assistencial, são

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AD

embarcados 50 tripulantes, estando incluídos nesse número médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros. Uma turma determinada, que a cada comissão incorpora com maior con-vicção o espírito do bom “Tracajá do Juruá”, aquele que segue sem pressa, mas com a certeza de quem vai cumprir sua missão.

Um novo reforço, e a mesma produtividade

Recentemente, no dia 17 de março deste ano de 2009, em cerimônia ocorrida na Base Naval de Ladário (MS), foi incorporado à Marinha do Brasil o Navio de Assistência Hospitalar Tenente Maximiano, que vem se juntar à Flotilha do Mato Grosso, sediada no 6º Distrito Naval. Naquela Base, ombreando com embarcações carregadas de história, como o Navio Monitor Parnaíba, que permanece em serviço ativo há mais de 70 anos, o Tenente Maximiano chega para dar uma subs-tancial colaboração aos programas de assistência à população ribeirinha da fronteira oeste do país. Em tempo, o 6º DN decidiu ampliar a sua participação junto às comunidades já atendidas pelas Ações Cívico-Sociais, as ACISO. Para tanto, no início de 2008, adquiriu uma embarcação de recreio, que foi inteiramente reformada, modernizada e preparada para as atividades de assistência médica, odontológica e sanitária. As comunidades que vivem às margens da bacia do rio Paraguai dispõem agora de um verdadeiro hospital flutuante, equipado com consultórios médicos e odontológicos, centro cirúrgico, laboratório, farmácia, enfermaria e sala de Raios-X.

A chegada do Tenente Maximiano vem corroborar a sábia decisão tomada pela Marinha do Brasil há mais de 25 anos. Logo que percebidas as necessidades prementes da uma parcela importante do povo brasileiro, a Marinha não tardou a dar resposta com a construção e lançamento de seus navios de assistência hospitalar. Lentamente, essa iniciativa vem se replican-do, pois que o exemplo é positivo e seus resultados o comprovam. Alguns números espelham essa realidade e estimulam todos os envolvidos na luta pela vida.

A atuação dos NAsH em rios da Amazônia e, agora também, na fronteira oeste, tem sido tão intensa, que os números crescem de maneira vertiginosa. O novato Tenente Maximiano está apenas começando sua carreira, que se espera seja tão longa quanto a do homenageado, o 2° Tenente da Marinha Maximiano José dos Santos, que faleceu aos 113 anos, deixando como herança e exemplo a ser seguido uma folha de serviços das mais elogiáveis. Mas, apenas como mostra de sua capacidade, na viagem inaugural, ocorrida entre 10 de junho e 12 de julho deste ano, foram realizados a bordo e nas ribeiras, mais de dois mil atendimentos e distribuídos 23 mil medicamentos para o tratamento de diversas doenças que atingem as populações que vivem às margens dos rios Paraguai e Cuiabá. Imagine-se quando ele atingir a respeitável idade de um Oswaldo Cruz ou Carlos Chagas. O “Tenente” promete vida longa e profícua.

Próximo de completar sua primeira década de bons serviços, o Doutor Montenegro há muito deixou de ser uma promessa para se tornar uma feliz realidade, que os dados fi-nalizados do ano de 2008 o comprovam. Ao término daqueles doze meses, o navio tinha levado saúde a 222 comunidades, nas

Página 85: O sistema interno de som do navio anuncia: “Carlos Chagas, o navio vai abarrancar”. O mestre, calejado tripulante, comanda sua equipe nas manobras junto à margem do Paraná do Ramos (AM). Essa turma que trabalha no convés é boa de braço, de laço e de nó, e depende dela a segurança do navio quando atracado, fundeado ou abarrancado. Páginas 86/87: O inconfundível perfil do Doutor Montenegro cruza as águas do rio Amazonas. Na proa, as equipes manobram os cabos, prontas para mais uma parada do navio. Em cada escala mais números vão se juntando às estatísticas crescentes do U-16. Do total de atendimentos, 64% acontecem em benefício da população do Acre. É o “Tracajá do Juruá” levando saúde ao seu povo.

quais ocorreram mais de 71 mil atendimentos, entre consultas médicas, odontológicas, vacinações, cirurgias e evacuações ae-romédicas, entre outros procedimentos. Parece muito, mas não chega nem perto dos impressionantes recordes registrados em anos anteriores. Somando mais de 1.500 dias de mar, mas ainda um “menino” em águas amazônicas, o Doutor Montenegro vai conquistando sua maioridade operacional.

Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, dois veteranos da região amazônica, seguem enviando números sempre auspiciosos para a sede da Flotilha de Saúde, no 9° Distrito Naval, em Manaus. Nesses 25 anos de atividades que se completam em 2009, esses dois navios já percorreram inúmeras vezes os mais de 16 mil quilômetros de rios que banham os 12 Pólos de Saúde espalhados pela vastidão da Amazônia brasileira. Os dois já realizaram mais de 600 comissões, levando saúde a localidades que, muitas vezes, nem aparecem nos mapas. Na década que medeia entre 1998 e 2008, o “Candiru” e o “Peixe-Boi” foram responsáveis pela maior parte dos 1.408.210 atendimentos realizados naquelas paragens que, como se diz vulgarmente foram “esquecidas pela sorte”. À vista destes números, se vê que jamais foram esquecidas pelos navios de assistência hospitalar da Marinha do Brasil.

Apoiando operações militares

Assim como o valente “Eponina” que ilustrou o começo deste capítulo, os Navios de Assistência Hospitalar baseados na Flotilha do Amazonas, subordinada ao 9º Distrito Naval, fazem parte de um contingente que participa como força de apoio nas operações que a Marinha do Brasil realiza rotineiramente. Ainda que as operações de cunho humanitário dêem mais visibilidade ao trabalho dos NAsH, nunca se deve esquecer o lado militar que desempenham numa região tão estratégica como a Amazônia, que apresenta acesso fluvial a vários países vizinhos fronteiriços, determinando uma constante vigilância e prontidão. Assim, no cumprimento de sua missão de salvaguardar o território nacional a Marinha dotou o 9º Distrito Naval com meios operativos efi-cientes e adaptados as condições fluviais. Nos anos 70, chegaram à Estação Naval do Rio Negro os Navios-Patrulha Fluvial (Classe Pedro Teixeira) P-20 Pedro Teixeira e P-21 Raposo Tavares e, logo a seguir, os NaPaFlu (Classe Roraima), P-30 Roraima, P-31 Rondônia e P-32 Amapá, embarcações totalmente projetadas e construídas no Brasil. Entre suas funções estão as missões de patrulha fluvial, fiscalização de portos, controlar as atividades de segurança da navegação fluvial, socorro e salvamento nas vias interiores, que marcam a presença dos poderes constituídos nos mais longínquos pontos do nosso território.

Terra que de tão vasta e tão rica, exige o melhor de seus guardiões. Nesse sentido, a Marinha, visando o preparo e o adestramento das Unidades Navais, Aeronavais e Anfíbias, realiza diversos exercícios em rios amazônicos envolvendo seus meios operativos, fundamentais para manter a prontidão ope-rativa de material e de pessoal. Nessas ocasiões, a Força Tarefa que é formada conta com o apoio dos NAsH, que ficam posicio-nados na retaguarda da área das ações em curso, servindo como verdadeiros hospitais de campanha. Um trabalho que dignifica ainda mais a história de um “Eponina”

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O navegador inglês Ernest Shackleton entrou para a história como um dos maiores exploradores de todos os tempos. Era considerado um homem voluntarioso, experiente e ousado. Em agosto de 1914, poucos dias após o início da Primeira Guerra Mundial, ele partiu da Inglaterra no comando do navio Endurance, um navio

polar que levava a bordo uma tripulação de 27 homens, dezenas de cães polares e uma gata. A missão era das mais espetaculares, já que Shackleton pretendia cruzar todo o continente antártico passando pelo Pólo Sul, numa caminhada de mais de três mil quilômetros. Ele, como todo o povo inglês, esperava ver sobrepujada a glória alcançada pelo norueguês Roald Amundsen que, em 14 de dezembro de 1911, fincou no Pólo Sul a bandeira de seu país, vencendo uma disputa com o inglês Robert Scott. Mas Shackleton jamais alcançaria seu objetivo. O Endurance acabou aprisionado pela calota polar, vindo a naufragar após resistir durante meses à monstruosa pressão do gelo. Entregues a uma situação desesperadora, a tripulação enfrentou aquela que é con-siderada uma das maiores aventuras da chamada Era Heróica da Exploração Antártica. Shackleton e seus homens conseguiram retornar a Inglaterra em maio de 1917, sendo recebidos como heróis, apesar do insucesso. Nem uma vida foi perdida e o crédito dessa façanha deve-se em grande parte ao espírito de liderança e ao carisma do comandante Ernest Shackleton. Ele era capaz de tirar o máximo de sua tripulação apesar de ter um modo muito peculiar de escolher seus comandados. Fazia questão de entrevistar pessoalmente os candidatos a enfrentar as duras condições a bordo do Endurance. Não se detinha nas qualificações profissionais de alguns de seus homens, parecendo dar mais valor ao que captava na conversa cara-a-cara. Exceto pelos problemas causados por poucos tripulantes, o tino de Shackleton foi de uma correção impressionante.

Ainda que as aventuras vividas pela tripulação do Endurance despertem uma viva admiração, devemos considerar que os padrões de escolha pessoal usados por Shackleton não configuram uma regra a ser seguida, mesmo na época em que ele viveu. A marinha inglesa da primeira década do século XX, a muito tinha abandonado a prática de arrastar “voluntários” para dentro de suas embarcações, sempre esvaziadas por deserções e motins. A formação de seus quadros já era então muito mais profissional. Desse modo, a despeito dos acertos de Shackleton, podemos considerar seus parâmetros de avaliação como uma excentricidade.

Em nossos dias, a formação dos quadros da Marinha do Brasil, atende a rigorosos padrões de seleção e capacitação pessoal. Foi um processo longo, onde o Poder Naval foi sintonizando suas necessidades de mão-de-obra qualificada com um forte investimento em seus centros de formação e aplicação de tecnologia. O resultado vem se comprovando no alto grau de profissio-nalismo alcançado em todas as atividades em que as unidades da Marinha do Brasil se envolvem.

A bordo de seus meios flutuantes essa realidade se mostra ainda mais verdadeira. Durante séculos de desenvolvimento e observação, as forças navais de todo o mundo entenderam que a operação a bordo das embarcações envolve riscos e níveis de desgaste que precisam ser monitorados, estudados, controlados e minimizados. Todos aqueles que precisam enfrentar longos períodos de mar, sob condições adversas, expostos a riscos e confinados em espaços limitados, precisam atender a estritas espe-cificações e receber preparação adequada. Em suma, o homem do mar precisa ter um perfil determinado e ser trabalhado para que saiba explorar suas melhores qualidades em benefício de todos.

Isso não difere quando se passa da água salgada para a água doce. O Brasil dispõe de um sistema fluvial privilegiado e a maior bacia hidrográfica do mundo está na Amazônia. As travessias pelos rios da região amazônica podem durar semanas ou meses. É comum que os navios de assistência hospitalar, os NAsH, se desloquem por dias sem tocar em terra, e não custa lembrar, que eles atravessam longos trechos desabitados e desprovidos de recursos que são facilmente encontrados junto aos grandes centros urbanos. O navio precisa dispor de uma razoável auto-suficiência para enfrentar sua missão. Por isso mesmo, seu deslocamento é chamado “escoteiro”, o que significa dizer que ele dispõe de uma grande autonomia operacional. Afastados dos centros decisórios superiores, os Comandantes dos NAsH são soberanos ao enfrentar qualquer situação. Não poucas desafiam o sentido humanitário e sensibilizam os oficiais mais experimentados. Há que ter sensibilidade, tato e pulso para comandar dentro das condições críticas que a região exige.

Por tradição, a bordo de um navio, apenas duas pessoas recebem o tratamento de Senhor. Uma, naturalmente, é o Comandante. O comando dos NAsH é, em geral, exercido por um capitão-de-corveta, que permanece no cargo por um ano. Nesse período, ele ganha uma experiência única em toda a Marinha brasileira, ao participar de várias comissões que o levam à

Páginas 88/89: Uma visão saudável. É com esperança que os ribeirinhos recebem a chegada dos NAsH da Marinha do Brasil. Pelo menos duas vezes por ano as comunidades recebem a visita das equipes de saúde, permitindo que, efetivamente, se observe a melhoria do quadro geral das populações assistidas. Página 90: Macacão cinza, boné da Marinha, estetoscópio no pescoço, receituário na mão e olhar atento. Esses são os traços gerais da turma que encara o trabalho nas ribeiras. Gente jovem e cheia de disposição para ajudar quem mais precisa. Gente com conhecimento e competência que causa admiração aos mais experientes.

Poucos Fazendo MuitoAs Tripulações dos Navios da Esperança

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regiões pouco conhecidas pela maioria de nós brasileiros. Ele vê e participa de uma realidade que carece de ajuda e proteção, navega num mundo que é Brasil, mas está longe de ser o país que merecemos dada a carência muitas vezes extrema. O que o ampara é a sólida formação ética e moral que lhe foi incutida durante os anos de engajamento militar. Os oficiais da Marinha do Brasil tem a oportunidade, dada a poucos brasileiros, de conhecer sua própria terra, com as grandezas e os problemas que só um país tão vasto e plural pode possuir. Nesse sentido, as palavras de um comandante da Flotilha de Saúde, são escla-recedoras: “Eu pedi minha transferência para Manaus após os primeiros contatos que tive com a região, quando constatei a situação precária em que vivia o povo daqui, o isolamento e a necessidade de quase tudo.”

A responsabilidade de comandar um NAsH é muito amenizada pela atitude de toda a tripulação, que se irmana no trabalho de assistência ao ribeirinho. É uma missão humanitária das mais louváveis, da qual todos guardam boas lembranças. Nesse contexto, cabe ao comando usar de toda a sua experiência e discernimento para levar a missão a bom termo. A respon-sabilidade é grande, mas é para assumi-la que o Comandante se prepara durante os anos de estudo no Colégio e na Escola Naval. Dentro do rio, toda a teoria vai se aplicar na prática, ao conduzir com segurança mais de sessenta vidas embarcadas num navio da Marinha do Brasil.

A segunda pessoa a ser chamada de senhor é o Mestre do Navio. O tratamento não se deve a sua posição hierárquica, pois trata-se de um tripulante subordinado aos oficiais embar-cados. O que se reconhece nele é a comprovada experiência, adquirida ao longo de muitos anos como marinheiro que, gra-dativamente, se eleva na carreira a custa de esforço e dedicação profissional. Em geral, esses sub-oficiais especializam-se em manobras, reparos e equipamentos de convés, em cujas fainas vão sendo calejados e adquirem o respeito de subalternos e superiores. O Mestre é responsável pela manobras de fundeio, atracação e desatracação. Quando de uma manobra de fun-deio, é a sensibilidade do Mestre que permite saber quando a âncora “unhou”, ou seja, o momento em que ela efetivamente agarrou no fundo, travando o andamento da embarcação. Por fim, cabe a ele manter o aspecto marinheiro do navio, aquela boa apresentação da embarcação que impressiona tão favora-velmente todos que vão a bordo.

Na escala de comando, a segunda posição mais im-portante é assumida pelo Imediato. Nas telas do cinema e da TV muitos deles se tornaram familiares a todos nós, tomando o comando quando capitães tresloucados e caricatos ameaça-vam levar o navio a ruína, ou quando encabeçavam violentos motins. Toda essa aura de fantasia tem pouca relação com a realidade de nossos dias. Esse oficial se configura no braço direito do Comandante, seu grande apoio nas operações e no trato com a tripulação, seu substituto imediato. Daí o título. A bordo dos NAsH, capitães-tenente assumem esse cargo e, sobre seus ombros, recaem um bocado de trabalho e de responsabi-lidade. Por conta disso, ele é uma das figuras mais requisitadas e visíveis em todos os conveses da embarcação. Poucas são as manobras e fainas em que não esteja envolvido. Qualquer demanda que tenha que ser levada ao Comandante precisa

Página 93: Navegar pelos rios da Amazônia não é tarefa para leigos. O labirinto formado por rios, paranás, igarapés e furos impressiona os novatos, que precisam ganhar estofo sob a orientação de tripulantes mais safos. Páginas 94/95: Enquanto faz a aproximação por bombordo, o piloto de um Tucano do HU-3 observa o NaPaFlu P-21 Raposo Tavares, em seguimento por um rio amazônico. Esses navios formam a linha de frente de vigilância das fronteiras fluviais entre Brasil e seus vizinhos sul-americanos.

passar necessariamente por ele. Seu posto o transforma num verdadeiro centro de triagem das informações que circulam verticalmente. Cabe ao Imediato formalizar e transmitir aquelas que partem do Comando e, no caminho inverso, repassar ao seu oficial superior as necessidades e reivindicações do pessoal e da embarcação. É nos ouvidos do Imediato que chega toda e qualquer sugestão ou reclamação, da mais simples a mais complexa. Isso sem falar na enorme carga burocrática que lhe toma um bom tempo, e uma boa parte de seu camarote. Não espanta, que ao fim de seu período como Imediato, qualquer oficial apresente condições ideais para assumir o comando.

Subordinada ao Comando, o restante da oficialidade assume variadas funções a bordo. Uma das mais abrangentes é exercida pelo Encarregado do Convés. O título não espelha a quantidade de trabalho que precisa ser desenvolvido por esse oficial. Cabe a ele zelar, em detalhes, pelo bom aspecto do navio. Verifica o estado geral dos cabos, sua arrumação e conservação, da pintura da embarcação, da organização do convés, e da manutenção do armamento. No caso dos NasH, que se valem de uma aeronave, é costumeiro que o Encarregado do Convés assuma também a função de Agente de Segurança de Aviação, cargo que o responsabiliza pela segurança das operações aéreas, desde a qualidade do combustível empregado até a elaboração dos relatórios que são repassados ao Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aéreos da Marinha – SIPAERM. Esse oficial, realmente se desdobra para dar conta do recado.

Mas como ninguém é de ferro, e a bordo o tempo passa devagar, o Encarregado do Convés aproveita as horas menos ocupadas para planejar as comissões em que o NAsH se envolve. Mal acaba uma comissão e a próxima já começa a ser delineada. Afinal, o intervalo entre as comissões é curto e precisa ser aproveitado na preparação do navio. O proces-so é complexo e analisa uma infinidade de variáveis, mas os ingredientes da receita o oficial conhece bem. Coloca a sua frente cartas náuticas, previsões meteorológicas, relatórios do reconhecimento aéreo das comunidades, dados disponíveis por outras embarcações da Flotilha de Saúde, além de informações vindas de fontes externas, como: Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, Fundação Nacional de Saúde, Fundação Nacional do Índio e, da imprensa. Quando finalizar essa coa-lizão de dados, precisa levantar os custos relativos ao consumo de combustíveis, peças, alimentação e material hospitalar. Fechado o pacote, ele o encaminha ao Imediato que, por sua vez, o apresenta ao Comandante. Ao fim da análise interna, o planejamento segue para a sede da Flotilha de Saúde onde aguarda aprovação. Não parece simples, e realmente não é. To-davia, a experiência adquirida pelo oficial que assume o cargo de Encarregado do Convés, permite que as comissões atendam a um rigoroso planejamento de datas, custos e objetivos. Todos cumpridos com rigor.

Ainda que extremamente ocupado, a situação desse oficial não difere muito da “garotada” que freqüenta a Praça D’Armas de um NAsH. A oficialidade a bordo é completada por Primeiros e Segundos Tenentes, jovens que optaram por conhecer a realidade de um outro Brasil, que vai muito além dos mapas e das estatísticas oficiais. A maioria provem de grandes

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centros, ou de cidades do interior das Regiões Sul e Sudeste. Navegar nos grandes rios da Amazônia é uma oportunidade única que se abre em suas carreiras. Pelo testemunho que se ouve de muitos que já passaram por essa experiência, as águas dos rios amazônicos tem um fascínio quase inescapável, e, quando chega a hora de optarem por uma nova Unidade da Marinha, não são poucos os que solicitam a permanência em Manaus e, adotando a cidade como sua, formam família e tornam-se verdadeiros ribeirinhos.

Aliás, o tema família é recorrente nas conversas a bor-do, e causa freqüente de comoção. O trabalho embarcado exige mais que dedicação. Exige uma boa dose de sacrifício. Não apenas dos oficiais e praças, como também de esposas, filhos, mães e pais daqueles militares que permanecem semanas a fio longe dos seus. Quem segue uma rotina normal de trabalho terá dificuldades para imaginar o sentimento que impregna cada partida e cada chegada de uma comissão. Talvez as palavras de um jovem 1° Tenente, servindo a bordo de um NAsh como Encarregado da Divisão de Apoio, casado e recém empossado no cargo de pai, sirvam de alento para muitos companheiros de carreira: “É sempre difícil o afastamento da família. Tivemos um filho a pouco e minha mulher ainda está se adaptando em Manaus. Mas essa é a carreira que escolhi e de qualquer modo ela me apóia. A missão que recebemos é esta e temos que cumpri-la.”

Esse não é um caso isolado. A bordo, muitos têm que deixar de lado seus problemas pessoais e persistir na tarefa que assumiram. Independente da função que ocupem, a dedicação de todos é que faz com que o navio funcione bem “azeitado”. O ronco ininterrupto que sobe da Praça de Máquinas, e as luzes que nunca se apagam no passadiço, são o testemunho vivo dessa entrega à missão. A saúde do coração do navio fica nas mãos de dois jovens oficiais da Divisão de Máquinas. Todo o funcionamento da embarcação está ligado à força e a energia que se produz abaixo do convés. Portanto, a responsabilidade não é pequena e sobra trabalho. Do mesmo modo, as tarefas de abastecimento, planejamento do consumo e aferição da qualidade dos combustíveis usados no navio, também fazem parte das funções da Divisão de Máquinas. Durante as vinte quatro horas do dia é essa turma que mete a mão na graxa para manter firme o pulso da máquina.

No outro extremo da embarcação, alguns conveses acima, fica o cérebro que comanda toda aquela força. O passadiço concentra todos os equipamentos de comando e controle da embarcação, bem como a sala de rádio e a estação de comunicação e monitoramento das operações aéreas. Em regime de quartos de serviço, os oficiais de bordo se revezam nas operações que transcorrem naquela sala, ganhando mais prática nas manobras usuais e proficiência ao lidar com rada-res, ecobatímetros, programas informatizados de navegação e sistemas de governo. Ademais, esses períodos são aproveitados na supervisão do trabalho dos subalternos, um exercício fun-damental para a formação de futuros comandantes. As turmas que se formam na Escola Naval do Rio de Janeiro trazem al-guma experiência adquirida nos Avisos de Instrução, mas nada que possa se comparar à navegação pelos rios amazônicos. A

Páginas 96/97: Na ribeira, banco escolar vira cadeira de dentista, e árvore serve de telhado para o consultório improvisado. Vale tudo para que a ajuda chegue a todos os cantos da Amazônia. Os problemas odontológicos têm sido o grande vilão da saúde naquela região. Assim, não dá para negar atendimento por falta de instalações adequadas. Página 98: Um sargento sinaleiro sobe acima do tijupá para ajeitar com carinho a bandeira brasileira. Uma das inesquecíveis lembranças de quem embarca nos navios da Marinha do Brasil é o cerimonial da bandeira que acontece duas vezes por dia, pela manhã às 8h, e à tarde, no exato momento do pôr do sol. Coisa linda de se ver navegando pelos rios da Amazônia.

natureza daqueles cursos d’água é cheia de peculiaridades e imprevistos, obrigando os oficiais a manter uma permanente prontidão, e afiados com todos os conhecimentos teóricos. No passadiço dos NAsh eles podem mostrar que valeu tudo que estudaram. Outra importante tarefa exercida pelos oficiais em seus quartos de serviço é o cumprimento de uma determinação da Marinha, que exige o contato via rádio para a identificação de todas as embarcações que cruzem com os navios da Armada brasileira em rios brasileiros. Todos esses dados são registrados, checados e, posteriormente, enviados ao Comando do 9° Dis-trito Naval, em Manaus. No contexto da Região Amazônica, que concentra tantos problemas relacionados a invasões do território brasileiro, ao tráfico de drogas, ao contrabando de armas e ao desrespeito às normas de navegação, deve-se reco-nhecer a justeza dessa diretriz imposta pela Marinha do Brasil. Em síntese, ainda que não disponham de armamento, todos os navios da Armada são considerados embarcações de combate, mesmo os Navios de Assistência Hospitalar.

Gente de saúde

A bordo todos estão preparados para toda e qualquer missão. Principalmente aquela para a qual os NAsH foram de-senvolvidos: levar saúde às populações ribeirinhas. Para tanto, além dos oficiais da área de saúde que incorporam a tripulação, os NAsH recebem a bordo um grupo de médicos, odontologistas e farmacêuticos que constituem formalmente as equipes de As-sHop. Essa turma está subordinada ao Encarregado da Divisão Hospitalar, cargo geralmente ocupado por um oficial-médico pertencente ao quadro complementar da Marinha, que vem ganhando capacitação no decorrer de comissões anteriores. Entre os oficiais destacados para as AssHop encontramos muitas mulheres, que com sua habitual competência e trato delicado, colaboram com o bom andamento dos trabalhos e dão um toque mais ameno ao ambiente militar. A despeito de sua propalada fragilidade, as meninas da Marinha encaram qualquer desafio e não deixam missão por cumprir. Suportam o desconforto das viagens e a restrição de muitos recursos com uma boa vontade contagiante. Se bem que não dispensem o capricho na aparência, na prática, essa turma deixa de lado o salto alto para por o pé no chão. Cabe lembrar, que a mulher marca sua presença na Flotilha de Saúde desde 1997, quando a 1ª Tenente Cirurgiã-Dentista Virgínia de Oliveira Aragão subiu a bordo de um NAsH. Desde então, o elemento feminino tornou-se parte insubstituível das comissões, sendo sua presença saudada com admiração por tripulação e ribeirinhos.

Independente do gênero, o que o Corpo de Saúde da Marinha do Brasil mais preza é a capacidade de trabalho e a en-trega à missão. Levar atendimento e dar conforto a populações que vivem em condições tão precárias como as encontradas nas ribeiras, não é tarefa que seja enfrentada por qualquer pessoa. Há limitações em vários níveis, e mesmo assim o atendimento tem que seguir em frente, pois os reclames daqueles brasileiros precisam ter pronta resposta. Quase nunca se consegue alcançar o ideal, mas é necessário fazer sempre o melhor. Isso requer

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pessoal gabaritado e, assim, pode causar estranheza a presença de elementos tão jovens nas equipes de AssHop. Mas nesse caso, não se deve julgar a capacidade pela aparência. A Marinha recebe e seleciona anualmente inúmeras solicitações de enga-jamento, que chegam de profissionais de saúde egressos das melhores instituições de ensino superior do país. Esses rapazes e moças demonstram uma capacitação acima da média e, como traço comum, buscam um aprimoramento profissional atuando junto às condições extremas da região amazônica. O contato com doenças endêmicas e problemas específicos, só encontrados em locais tão desprovidos de qualquer suporte, proporcionam uma experiência ímpar, impossível de ser adquirida em outro ponto do país. Não raro, muitos desses jovens são gente da terra, estando ali para dar uma significativa contribuição em favor de seu próprio povo. É o caso de um médico de 25 anos, nascido em Manaus, que se integrou voluntariamente aos quadros de saúde da Marinha, e explica como a bordo dos NAsH: “Eu cursava o último ano da Universidade Estadual de Manaus quando ofi-ciais da Marinha deram uma série de palestras explicando o que era feito durante as operações de ASSHop. Fiquei empolgado com a oportunidade de conhecer melhor as condições de saúde do meu povo. Uma coisa é você conhecer a situação nas salas de aula, outra é ver a realidade. Acho que, além dos atendimentos, um dos aspectos que devem ser mais cultivados é a orientação de saúde, as pessoas precisam saber como manter sua saúde a partir de cuidados básicos.” Em resumo, o que todos esse jovens talentos querem é meter a mão na massa, pois o que não falta é trabalho naquelas paragens.

Dentro desse espírito, os médicos e dentistas enga-jados nas AssHop contam com a inestimável colaboração de uma equipe de enfermeiros. Algumas qualidades necessárias, e certamente encontradas entre a turma de enfermagem dos NAsH, são a dedicação, a solicitude e a paciência infinita. Sem isso o trabalho nas ribeiras se torna inviável. Lidar como o povo das comunidades, em meio às condições mais adversas, nem sempre é uma tarefa fácil. Os ribeirinhos são ariscos e reservados. Às vezes, para tirar deles alguma informação tem que ter uma boa lábia, demandando um bom tempo de atendimento, o que nem sempre isso é possível já que existem horários e um calendário a ser seguido. Por outro lado existe a questão cultural. Implantar bons hábitos de higiene e prin-cípios básicos de educação num prazo curto exige um esforço continuado. Após uma longa manhã de consultas na ribeira, um médico foi conciso ao definir a situação que as equipes de AssHop enfrentam diariamente: “O bem mais fundamental não conseguimos dar a eles em apenas um dia. Esse bem se chama educação.” Todavia, longe de ser um empecilho, essa dificuldade torna-se um estímulo. A turma da enfermagem enfrenta a maratona de trabalho com uma disposição invejável. Envolvem-se no transporte dos medicamentos, na instalação dos postos de atendimento, na distribuição de senhas e na organização das filas, apóiam as consultas, e ainda saem em campo no socorro aos pacientes incapacitados. Não poucas vezes, quando o mé-dico chega para uma consulta domiciliar, encontra a situação do paciente muito bem encaminhada em função da perícia dos enfermeiros. A bordo dos NAsH é possível encontrar profissionais de alto gabarito e extrema dedicação. Exemplo disso é um 2° Sargento-Enfermeiro, cearense, casado e pai de

Página 101: Após um dia de trabalho intenso em uma comunidade ribeirinha, esse jovem médico paraense dedica seu tempo livre a esses escandalosos e emplumados habitantes amazônicos. Por mais que se esforçasse, nenhum deles conseguiu falar o nome do navio Carlos Chagas. Já entre os ribeirinhos a lembrança desse nome é eterna.

um menino. Engajado na Marinha há 17 anos, ganhou uma inestimável experiência em Unidades de Terapia Intensiva no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, como podemos entender por suas palavras: “Eu me especializei no atendimento em UTI, o que requer muita determinação, pois ali a batalha nunca está perdida. Já vi pacientes em estado terminal, desenganados pelos médicos, terem uma melhora impressionante. Certa vez, um desses pacientes fez questão de voltar ao hospital para fazer um agradecimento a toda à equipe que o havia recuperado. Essas coisas gratificam nosso trabalho.” São assim os integrantes do Corpo de Enfermeiros da Marinha, figuras bem-vindas, queridas e respeitadas em toda a ribeira.

O sustentáculo

Frequentemente, a maioria de nós se esquece de elo-giar a arrumação da casa ou qualquer detalhe mais caprichado que, mesmo escapando a nossa embotada percepção, torna o ambiente mais acolhedor. No caminho inverso, basta aparecer algo fora do lugar que logo nos vem à mente uma palavra mais crítica. Felizmente, ela fica por lá mesmo e não permite que cometamos uma terrível injustiça. Andando pelos conveses de um navio da Flotilha de Saúde, podemos avaliar o quanto esse erro é comum a todos nós. A turma de praças assume sua tarefa com valentia, e fica difícil encontrar motivo de repreensão. O que chega do Comando são elogios, e são mais que justificados. Afinal, essa turma, que cumpre uma missão quase anônima, forma a estrutura do navio, faz com que as operações sejam levadas a bom termo e, tudo isso, baseado na estrita noção de cumprimento do dever. Se bem, que pareça muito mais que isso. Em decorrência do escopo da missão, é visível o envolvimento de todos num espírito de fraterna cumplicidade e extremada dedicação. Em alguns NAsH, é comum encontrar praças que já ultrapassaram os quinze anos de serviços prestados, acumu-lando em seu currículo mais de mil dias de mar. Gente lutadora que veio de pontos distantes do país para se engajar na Escola de Aprendizes Marinheiros. Jovens com menos de vinte anos, que vão aprender um profissão, descobrir um talento, ganhar especialização e dedicar uma vida à serviço da Marinha e do Brasil e pelo bem de seus conterrâneos.

A bordo, os Praças assumem as mais diversas tarefas e, não raro, acumulam algumas. Há aqueles que se internam no Rancho, e a melhor lembrança de seus talentos vem à mesa com um aroma e um paladar excelentes. Alguns, como os NatSalv, mergulhadores exaustivamente treinados nas missões de resgate, são indispensáveis nas operações aéreas, se bem que todos façam torcida para que seus serviços nunca sejam requisitados. Por outro lado, os Patrões das Lanchas trabalham sem descanso, pois a maioria dos deslocamentos para terra depende dos meios que eles comandam. Podemos ainda encontrar nessas pequenas cidades flutuantes barbeiros, eletricistas, encarregados de refrigeração, eletricistas, sina-leiros, escreventes, técnicos em eletrônica e comunicação e arrumadores. São representantes de todas as raças, gente de todas as regiões, que encontram na missão assumida a resposta para as gigantescas necessidades de uma Nação continental como o Brasil. Entre essa turma, o difícil é não encontrar alguém disposto a colaborar para o bem deste país.

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Comissão Rio Acima

Os efeitos da maior cheia já registrada nos rios da Amazônia ainda se faziam sentir quando o Navio de Assistência Hospitalar Carlos Chagas desatracou do cais da Estação Naval do Rio Negro, em Manaus (AM). Exatamente às nove da manhã, 24 de agosto de 2009. Um dia que amanheceu com uma pequena nebulosidade, logo desfeita

pelo sol equatorial que dominaria soberano os 22 dias da Comissão Tapajós, Trombetas, Nhamundá, Paraná do Ramos, a de número 308 da longa e produtiva carreira do Carlos Chagas. No ano anterior, o navio havia percorrido nada menos que 23.700 quilômetros, prestando atendimento médico e odontológico, e levando esperança e cidadania às populações ribeirinhas na imensidão da Amazônia. Em 2009, ano em que completava 25 anos de incorporação à esquadra da Marinha do Brasil, havia a certeza de que aquela marca seria batida no cumprimento do lema que lhe servia de diretriz magna: “Saúde onde houver vida”.

Manaus é lentamente deixada para trás enquanto a embarcação avança sobre o encontro das águas. Descendo 1.700 quilômetros desde sua nascente no Planalto colombiano, as águas escuras do rio Negro encontram as águas barrentas do Solimões. Dessa improvável união surge o mais caudaloso rio do mundo: o Amazonas. Aproveitando a corrente favorável, o Carlos Chagas segue para sua primeira parada, a Vila de Itapeaçu, uma pequena localidade na margem direita do Paraná do Ramos. Os menos acostumados à terminologia amazônica merecem uma explicação. Um paraná não é um afluente, um tributário de um rio principal. É como um atalho, um curso d’água secundário que liga dois pontos de um mesmo rio. E, ainda que o porte de muitos desses paranás seja impressionante, nos mapas hidrográficos da Amazônia eles não passam de uma tênue linha.

Às 18h30 o navio deixou a cidade de Itacoatiara por seu través de bombordo, e enquanto as últimas luzes da cidade desa-pareciam na escuridão da floresta, o alto-falante de bordo, o conhecido “boca de ferro”, fez a convocação: “Carlos Chagas, oficiais à Praça D’Armas.” Eram 19h00 quando o Comandante chega para a reunião com seus oficiais e dá início ao primeiro briefing da missão. Nesses encontros diários, essenciais para todos os envolvidos nas operações de assistência hospitalar, são colocadas em pauta todas as informações sobre a comunidade a ser atendida, tais como: nome, número provável de habitantes e de domicílios, milhagem do rio, latitude e longitude, e em qual margem do rio se localiza. Também fica estabelecido a formação das equipes que seguirão para terra, em que horário o farão, e por qual meio. Da mesma forma, esse pessoal fica ciente das opções disponíveis para estabelecer suas bases de operações, já que em algumas localidades é possível contar com postos de saúde, escolas ou centros comunitários. Caso isso não seja viável, lança-se mão de um grande talento brasileiro: o improviso. Afinal, como todos a bordo reconhecem, o importante é dar atendimento aos necessitados, ainda que as condições não sejam as melhores.

Enquanto o briefing prosseguia na Praça D’Armas, o navio entrou pelo Paraná do Ramos. Nessa noite, a lua estava entrando na fase crescente, e sua luz ainda era muito fraca para romper a pesada escuridão da mata. Quem estivesse no convés, teria muita dificuldade de enxergar a margem do rio, que deveria estar a menos de cinqüenta metros do costado do navio. Naquele momento, não fosse pelo ronco surdo dos motores o navio estaria mergulhado no mais absoluto silêncio. Era o som das máquinas que nos trazia a lembrança de uma civilização que tínhamos deixado há poucas horas. No mais, navegávamos num tapete negro que parecia não ter fim.

Eram 21h40 quando as luzes de Vila Itapeaçu apareceram na margem direita, varando a copa de algumas árvores. Tínha-mos a impressão de que alguns barcos estavam se movimentando no que parecia ser um trapiche, ou um pequeno porto. Algumas luzes de bordo foram acessas e imediatamente os insetos se atiraram contra elas. Sob a luz baixa do passadiço, o Comandante seguia orientando as manobras de aproximação, mantendo o navio numa velocidade segura, tateando as águas escuras do Paraná do Ramos. Os profissionais que lidam em nossos rios, sabem que esses elementos são extremamente dinâmicos e que as alterações de traçado são constantes. Ainda que se possa contar com toda a tecnologia disponível, a prudência recomenda que olhos e ouvidos sejam mantidos em prontidão.

O Senhor Mestre havia sido convocado e neste momento estava reunido à proa com sua equipe. Havia uma névoa fraca que se dissipava aos poucos, permitindo que algumas estrelas escapassem na escuridão do céu. À luz fraca do cais próximo era possível distinguir algumas figuras que se agitavam sob uma cobertura, parecendo prontas para receber os cabos que estavam alinhados no convés de nossa embarcação. Quando o sino de bordo assinalou as 22h00, as defensas rangeram entre as tábuas grossas do pequeno porto de Vila Itapeaçu e o aço do Carlos Chagas.

Vilas da Amazônia

Pela manhã, foi necessário reavaliar o número de habitantes de Vila Itapeaçu. Não parecia que a povoação pudesse abrigar os 1.250 habitantes que nos foi passado no briefing da noite anterior. Na Amazônia, lugar de constantes migrações internas, isso não causa

Página 102: O U-19 cruza o rio Amazonas durante sua sexta comissão em 2009. Ainda faltam duas para fechar o calendário anual. Navegando assim dá para imaginar as enormes distâncias percorridas nesses 25 anos de atividades. Descanso só a cada quatro anos, quando os navios passam por uma revisão geral, em um programado período de reparos.

Acompanhando a Marinha em Suas Missões

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ADespanto a ninguém. Como mostram os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a ocupação da Re-gião Amazônica é muito esparsa. No norte do Brasil a densidade demográfica não chega a três habitantes por quilômetro quadrado, a menor do país. Numa comparação extrema, no Distrito Federal esse número sobe para quase 365 habitantes dividindo o mesmo quilômetro. A mercê das cheias, e na busca de melhores oportu-nidades, os ribeirinhos são os mestres da mobilidade.

Vila Itapeaçu era uma rua principal que se perdia, à direita e a esquerda no meio da mata. Atrás da comunidade, emoldurando o casario antigo que se misturava com algumas construções mais recentes, mais mata. De todo aquele verde subia a umidade que ajudava a aumentar o calor já sufocante. As equipes de atendimento seguiram em busca da escola e do posto de saúde mantidos pela Prefeitura de Uricurituba.

Na escola, os alunos interromperam os ensaios para as comemorações da Semana da Pátria, e se reuniram no grande refeitório para assistir a palestra de higiene bucal. A Marinha do Brasil considera que as ações preventivas são fundamentais para enfrentar o grave quadro de saúde bucal, principalmente entre as crianças. Um trabalho educativo bem realizado pode ajudar a conter o crescente número de atendimentos odontológicos que são realizados durante as AssHop. Problemas graves, como os verificados nas comunidades atendidas, podem ser evitados, ou ao menos minorados, quando os bons hábitos de higiene bucal começam cedo. No meio da manhã, cada criança deixa a escola com escova e pasta de dentes nas mãos, instrumentos para por em prática a idéia que ficou naquelas cabeçinhas.

Uma outra frente de trabalho operava no Posto de Saúde de Vila Itapeaçu, que apresentava uma boa estrutura e um pequeno quadro médico que visitava regularmente a loca-lidade. Quando isso se verifica, o que não é comum na maioria das pequenas comunidades atendidas durante as AssHop, as equipes da Marinha trabalham em paralelo com seus colegas e disponibilizam uma ampla gama de medicamentos.

A hora do almoço já estava sendo esquecida pelas equipes de terra do “Carlos Chagas”, a todo instante convo-cadas pela população ribeirinha, ansiosa por aproveitar aquela oportunidade. Em determinados casos os médicos e enfermeiros não se furtam a fazer atendimentos domiciliares. Foi o caso de uma senhora de 57 anos, que impossibilitada de sair de casa, foi atendida na varanda de sua casa. Uma típica construção ribeirinha, com colunas altas de madeira, que durante as cheias mantém o piso acima das águas e, na seca, abrem espaço para a criação de galinhas, patos e tartatugas, que vivem em meio à infinidade de plantas de que a Amazônia é rica. Dentro de casa muitos parentes que convivem ou visitam a doente. Em meio a toda essa exuberância de vida, destoava a saúde da matriarca. Apesar da falta de recursos para um diagnóstico mais apurado, tudo levava a crer que o estado da paciente era grave e irrever-sível. O médico a seu lado, um jovem de apenas 24 anos, que durante anos tinha queimado as pestanas nos livros de medicina, levava de Vila Itapeaçu a dura lição de que a luta pela vida é desigual, e mais difícil ainda para nossos irmãos brasileiros, esquecidos na imensidão da Amazônia.

A luta continuaria em Vila Alves, localizada no quilô-metro 120 do Paraná do Ramos. Uma localidade formada por

Página 105: Cuidados nos mínimos detalhes. A aeronave embarcada é checada regularmente e nada escapa ao olhar atento e experimentado deste sargento especialista. Há minuciosas inspeções diárias e, também, antes de cada decolagem e após cada pouso. Páginas 106/107: O sino é uma presença tradicional nas embarcações da Marinha. Ele é usado no período entre a alvorada e o toque de silêncio. Os toques são dados a cada meia hora para marcar os intervalos dos quartos de serviço.

duas famílias, os Barros e, naturalmente, os Alves. Toda essa gente poderia se acomodar com facilidade na igrejinha dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ao lado ficava o Posto de Saúde, que ficava fechado a maior parte do tempo por falta de médicos, medicamentos e equipamentos. Por falta de macas, os médicos tiveram que atender os pacientes no chão. A distri-buição de medicamentos foi feita sob uma cobertura de palha, improvisada como almoxarifado. A única coisa que funcionava razoavelmente era a escola, permitindo que as crianças, e não eram poucas, pudessem receber as palestras de higiene bucal.

As condições de vida em Vila Alves são muito precárias. As facilidades mínimas que encontramos nos grandes centros são um luxo inalcançável para aquela gente. O fornecimento de energia é feito por um gerador que, por economia, funciona por poucas horas após o anoitecer. Naquele calor uma bebida geladinha vai bem, certo? Errado, ali gelo é artigo raro, e vem de longe. Há um telefone público, um só, ao lado do posto de saúde, mas caso ele esteja funcionando, provavelmente não haverá cartão para fazer a ligação. Também não existem sistemas de distribuição de água e tratamento de esgotos. A água para uso domiciliar é tirada diretamente do rio, e para lá retorna levando todo tipo de dejetos. Ainda assim, é comum que as crianças se banhem no rio em meio a contaminação. Dentro desse quadro, comum a muitas localidades da região, pode-se imaginar que a saúde também não receba muita atenção. Isso é verdade, precisa mudar, e a Marinha do Brasil vem mostrando que a mudança é possível.

Pouco antes das 11h00 uma aeronave do 3° Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3), estava no visual. O Esquadrão Tucano, sediado em Manaus, é responsável pelo apoio aos navios da Flotilha do Amazonas, e seus helicópteros Esquilo monoturbina participam regularmente das operações ribeirinhas e das patrulhas fluviais. Em poucos instantes o Tucano 7089 pousou no convoo do Carlos Chagas, fundeado no Paraná do Ramos, em frente a Vila Alves. Como aeronave orgânica dos Flo-tilha de Saúde, ela é uma peça chave no conjunto das atividades que acontecem durante a comissão, atuando no reconhecimento aéreo (RECON), no transportes das equipes para regiões de difícil acesso, e nas operações de Evacuação Aeromédica (EVAM). A partir daquela manhã, contando com todos os seus recursos, o NAsh Carlos Chagas operaria com força total.

Próxima parada: Vila Augusto Montenegro. O atendi-mento nesta localidade foi feito numa escola municipal, o que não atrapalhou em nada as aulas. A razão era que não haveria aula naquela quinta-feira. E o motivo muito compreensível dentro do contexto amazônico. Uma vez por mês os professores são dispensados de suas atividades para que se desloquem de barco até Uricurituba ou Itacoatiara, onde recebem seus salários. Ida e volta são dois dias de viagem, portanto, eles tinham deixado seus alunos naquela manhã e retornariam no sábado seguinte. Esta situação está longe de ser uma raridade, e é preciso entender que as enormes distâncias, e as dificuldades de transporte ditam as regras por ali. Ademais, na Vila Augusto Montenegro não há sequer uma agência bancária.

As equipes de terra, sem saber da dispensa dos profes-sores, não tinham a quem atender. A folga forçada esvaziou a escola, mantendo mães e crianças em casa, escondidas do calor implacável que fazia àquela hora. Não fosse a pronta intervenção

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de duas tenentes, os registros de atendimento em Vila Augusto Montenegro ficariam zerados. Elas foram atrás das líderes co-munitárias e pegaram as mães no laço, convocando-as a tirar seus filhos de casa, aproveitando que a saúde batia a porta. Em pouco tempo a escola se encheu. As salas da frente viraram consultórios, que atenderam por toda a manhã. Nos fundos da escola aconteceram as costumeiras, e sempre necessárias, palestras de higiene bucal. Umas cinqüenta crianças deixaram a escola naquela manhã sabendo o que fazer para manter seus dentes saudáveis, e havia a grande e desejada possibilidade que eles passassem isso também a seus pais.

A parte da tarde foi reservada aos atendimentos domici-liares. E não foram poucos. De maleta e receituário na mão, dois médicos percorreram as ruas da comunidade. A todo momento eram chamados, e mal saíam de uma casa logo passavam a outra. Numa delas, atenderam uma senhora que dizia sofrer de diabetes. Fosse verdade estaria em maus lençóis, pois enquanto corria o exame preliminar, servia-se de um café fartamente adoçado. Com muito tato, e afastando a lata de açúcar, o doutor a convenceu a deixar certos hábitos. Trabalhando muitas vezes em condições precárias, e tendo que se desdobrar para entender as queixas de seus pacientes, pessoas arredias, desconfiadas e carentes de tudo, os médicos que participam das AssHop desenvolvem um forte sentimento de amor ao próximo e doação ao trabalho. Sabem que, além de ajudar, estão se tornando pessoas mais humanas e dignas de profissão que abraçaram.

A chuva começou a cair fininha enquanto as lanchas voltavam para bordo. Durante a noite ela ganhou força e o vento levantou as águas do rio, mas nada que perturbasse a marcha do Carlos Chagas, que enfim deixava o Paraná do Ramos. Se-guíamos em direção a Jurupari, uma cidadezinha na margem direita, milhagem 186 do grande rio Amazonas.

Quando se procura uma definição para a Amazônia acabamos por chegar a um impasse. Será uma floresta alagada, ou um rio tomado pela selva? A natureza encontrou a resposta nos igapós. Nesses ambientes especialíssimos, que as cheias mantêm submersos por meses, a flora adaptou-se perfeitamente as condições de prolongado alagamento. Por vezes, as águas avançam até vinte quilômetros sobre essas várzeas, formando-se verdadeiros labirintos por entre as imensas árvores, cujas copas formam uma cobertura quase impenetrável. Esse ambiente é extremamente favorável às espécies aquáticas, que ali encontram fartura de alimento e abrigo.

Bem, onde há fartura o homem consegue se adapta com facilidade. Os índios foram os pioneiros e mostraram ao homem branco como sobreviver nesse meio. A adaptação dos ribeirinhos vem de longa data e, nas localidades próximas a Jurupari isso pode ser visto, se bem que, às vezes, a invasão das águas cause um grande transtorno.

Foi isso que as equipes de AssHop encontraram. Desde 1953 não se registrava uma cheia como aquela. Os efeitos foram sentidos em toda a Amazônia. Na capital amazonense, o rio Ne-gro alcançou 29,71 metros no final de junho, batendo todos os recordes históricos, registrados, desde 1902, num livro guardado com muito carinho pela administração do Porto de Manaus. Mas os moradores da Vila do Paraná do Albano, uma povoação de

Páginas 108/109: As lanchas de transporte são o meio mais ágil para se alcançar a margem mais próxima. As equipes de atendimento partem preparadas para tudo, equipadas e supridas de grande quantidade de medicamentos. Todavia, podem sempre contar com o apoio logístico do NAsH e basta uma chamada-rádio para que ele seja acionado. Página 110: Para que possa melhor desenvolver seu trabalho junto às comunidades, a Marinha faz um completo e detalhado levantamento de todas as localidades por onde passa. Nada é deixado ao acaso pelos militares que cuidam da inteligência. Todos os dados coletados ajudam a traçar um perfil mais real das carências e possibilidades da região amazônica.

menos de quarenta casas espalhadas pela mata, pouco sabiam do que tinha acontecido em Manaus. Estavam mais preocupa-dos com a situação da Escola Nova Jeruzalém, que tinha sido invadida pelas águas e estava numa situação deplorável. As aulas foram interrompidas há meses, e os marimbondos, em número assustador, eram os únicos que ocupavam as salas de aula.

Mas nada disso impediu o atendimento à comunidade. Enquanto procuravam não incomodar os donos do espaço aéreo, as equipes montaram seus “consultórios’ na varanda, e nas salas abandonadas da escola. Naquela manhã foi grande o número de atendimentos odontológicos. Habituados a enfrentar todo tipo de situação, os dentistas precisam trabalhar sob condições que estão longe de serem ideais, mas encontram um poderoso lenitivo no reconhecimento das comunidades ribeirinhas. Por mais acanhadas que sejam, sempre havia um forte sentido de hospitalidade e gratidão pelo trabalho das equipes da Marinha do Brasil. Não era pequeno o esforço que muitos faziam para chegar até o local de atendimento. Mesmo assim, chegavam com disposição, mostrando um grande espírito de colaboração.

Havia passado pouco do meio-dia quando as lanchas retornaram ao Carlos Chagas, que seguia lentamente pelo rio Amazonas em direção a seu próximo objetivo, Boca do Cabori. O vento forte trazia chuva e esbarrava na poderosa corrente do rio, criando marolas por toda a superfície. Pior para as equipes das lanchas Tefé e Tapauá, que subiram a bordo de banho já tomado. Nada que uma boa refeição e algum descanso não resolvessem, pois a tarde precisavam estar prontos para voar.

A saúde ganha asas

A faina para que o Tucano 7089 estivesse pronto para as operações do dia começava cedo. A guarnição do Destacamento Aéreo Embarcado (DAE), a bordo do Carlos Chagas, é formada por dois pilotos, um fiel, um especialista em motores, outro en-carregado da aviônica e, o último, é responsável pela estrutura da aeronave. Às 6h00, antes mesmo de tomar seu desjejum, o fiel, um piauiense de 36 anos, segue para o convôo onde realiza uma rigorosa inspeção da aeronave. Verifica o nível do óleo, testa o combustível para detectar impurezas e a presença de água, inspeciona o motor, o cone de cauda, a estrutura da aeronave e os instrumentos da cabine. Nada escapa a seu olhar experiente e, com a competência conquistada em mais de 1.100 horas de vôo e 20 comissões de AssHop, registra em seu relatório que a aeronave está pronta para o vôo.

Como havia sido determinado no briefing do dia ante-rior, às 12h30m toca postos de vôo. Na meia hora seguinte uma grande movimentação toma conta do Carlos Chagas. É nesse momento que se prontifica a aeronave para o voo. Ela é “des-penteada”, ou seja, são desdobradas as pás do rotor principal, e abastecida de querosene. As redes de proteção do convoo são arriadas e a lancha de resgate é lançada. Essa embarcação, que leva a bordo um mergulhador e um médico, cumpre uma função de enorme importância, podendo prestar socorro imediato em caso de acidente durante as operações aéreas. No passadiço, em reunião com os oficiais do Carlos Chagas, os pilotos recebem o briefing final e pormenorizado da missão. Naquele momento se

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determina para onde devem seguir, a que distância fica, qual a função, a rota e o tempo do vôo, a freqüência-rádio a ser usada, a quantidade de carga e passageiros a serem embarcados e, em função disso, o peso de combustível que a aeronave precisa rece-ber. Ao chegar ao convoo, os pilotos encontram a aeronave pronta para voo, os demais passageiros já recebendo o indispensável briefing de segurança e a carga embarcada. Tomando assento na cabine fazem o checklist dos instrumentos antes de dar partida ao motor. Bem a sua frente, sobre o convoo, uma grande equipe de apoio está pronta para qualquer eventualidade. Entre eles, em seu vistoso macacão amarelo, o Oficial de Lançamento e Pouso (OLP) está pronto para orientar a decolagem. Enquanto em-bala o giro da hélice, o som da turbina vai quebrando o silêncio daquele trecho do rio. Em instantes ele se torna ensurdecedor e a comunicação só é possível pela fonia ou por gestos. O vento varia um pouco e o navio guina alguns graus a boreste para pegar pegá-lo de proa. O Tucano, aguardando a ordem de partida, vibra com a hélice em máxima rotação. A lancha de resgate está ao largo, saltando sobre as marolas e acompanhado pela fonia tudo que se passa a bordo. E é pela fonia que o piloto recebe o OK vindo do passadiço. Ele ergue o polegar para o OLP, que faz avançar as equipes que liberam os cabos que peiam a aeronave. O passo da hélice muda, o vento varre todo o convoo e parece que vai jogar toda a equipe de apoio nas águas acinzentadas do Amazonas. Seguindo as orientações do OLP, o Tucano deixa lentamente o Carlos Chagas por bombordo, se ergue em direção ao céu nublado daquela tarde e, enquanto desaparece atrás da muralha de árvores que escondem a comunidade de Boca do Cabori, ouve-se pelo alto-falante a mensagem exaustivamente repetida: “Carlos Chagas, navio em operação aérea. É proibido jogar lixo na água, fumo, uso de cobertura, trânsito e permanência de pessoal em todos os conveses abertos à ré da caverna 38”.

Em todas as rotinas de bordo a segurança é fator pri-mordial. Durante as operações aéreas essa preocupação é levada a níveis extremos, pois manter a integridade da tripulação, da embarcação e da aeronave é uma regra inquestionável. Ademais, apesar da faina, todos concordam que a presença do helicóptero amplia consideravelmente a gama de operações dos NAsH.

A manobrabilidade e a rapidez da aeronave permite que equipes médicas possam se deslocar para áreas remotas e de difícil acesso. Essa capacidade de deslocamento é ainda mais valorizada durante uma Evacuação Aeomédica (EVAM). Como em nenhuma outra missão, uma EVAM exige toda a perícia das equipagens envolvidas na retirada de vítimas, em meio a locais impraticáveis para qualquer outro meio de transporte. Dada à brevidade do socorro, tem sido possível salvar inúmeras vidas.

Em operações de reconhecimento aéreo, os helicópteros possibilitam a coleta de dados relevantes, que orientam as ativi-dades de assistência às comunidades estabelecidas em locais não acessíveis por terra ou pelo rio. Do alto, é possível ter uma visão abrangente da área, localizando os assentamentos, identificando possíveis locais de pouso e os acessos disponíveis. Toda uma gama de informações que ganham ainda mais importância na intrin-cada geografia da região. Mas, ainda que os pilotos desfrutem de uma visão privilegiada daquele aparentemente infinito manto

Páginas 112/113: “Xô cárie!” A turminha está sempre atenta durante as palestras de higiene bucal, uma rotina mais que necessária. A Marinha acredita que é preciso incutir bons hábitos entre os mais novos para que os problemas bucais se reduzam nas próximas gerações. Página 115: “Abre o bocão pra tia.” E a garotada abre mesmo. Apesar de ainda serem grandes os problemas odontológicos entre a população infantil, percebe-se uma maior aceitação do tratamento. Afinal, ninguém quer perder o sorriso bonito. Páginas 116/117: O acompanhamento da gestação e do desenvolvimento da criança são tarefas que ajudam a derrubar as taxas de mortalidade materno-infantil. Os números ainda não são ideais, mas tendem a declinar com a ajuda prestada pelos Navios da Esperança.

verde, todos são unânimes em reconhecer as dificuldades de voar sobre a Amazônia. Na pequena lista que os mais calejados passam aos novatos, estão relacionados três pesadelos que, cedo ou tarde, todos terão que enfrentar: a presença de pássaros; a angustiante ausência de um local de pouso e; o aru, aquele ne-voeiro matinal que, com uma rapidez assustadora, cobre a mata e obriga o piloto a confiar nos instrumentos de navegação e em todo o conhecimento adquirido na carreira militar.

Garantido, Caprichoso e o Oriente perdido na Amazônia

Por obra de dois bois, e de seus fanáticos admiradores, Parintins é hoje uma cidade conhecida internacionalmente. A história de Caprichoso, simbolizado pela estrela azul, e de seu rival, Garantido, que traz um coração vermelho no estandarte, remonta as primeiras décadas do século XX. Garantido foi fun-dado em 1913, por Lindolfo Monteverde, um afamado cantor da região. Caprichoso nasceu uma década mais tarde pelas mãos de dois irmãos cearenses. Ao que parece, a fé foi o mote para a criação dos bois. Adoentado, Lindolfo fez promessa para que São João lhe concedesse a cura. Por seu lado, os cearenses apelaram ao mesmo santo para que fossem bem-sucedidos na terra que haviam adotado. Seja como for, a festa protagonizada pelos bois ganhou uma grandeza insuspeitada. Desde 1964, quando adotou o formato que hoje conhecemos, passou a atrair a atenção de todo o país e, há poucos anos, de todo o mundo. Atualmente é considerada a segunda maior festa popular do Brasil.

Na tarde de uma sexta-feira, 28 de agosto, o “Carlos Chagas” conseguiu atracar sem dificuldades no porto de Parin-tins. O famoso festival que toma a cidade tinha acontecido havia dois meses. As ruas, agora tranqüilas e aliviadas da invasão de turistas que multiplicam por dez a população local, ofereciam uma oportunidade de descanso à tripulação. E seria um mereci-do descanso. Até ali tinham sido realizados entre atendimentos médicos, odontológicos, de enfermagem e vacinações, nada me-nos que 4.468 procedimentos. Nada mau para aquela primeira semana de trabalho.

A segunda semana de comissão começava sob o mesmo calor escaldante que nos acompanhava desde Manaus. Às 9h00 o Carlos Chagas deixou Parintins para trás e, não tinha navegado mais que meia-hora, quando o Mestre foi novamente convocado à proa. Fundeamos em frente a uma localidade chamada Vila Amazônia. Fora algumas ruínas um tanto deslocadas no cenário habitual, aparentava ser apenas mais uma entre tantas paradas. O que era um grande engano. Vila Amazônia foi um dos maiores pólos de colonização japonesa em todo o Brasil. A partir dos bons resultados obtidos pela primeira leva de imigrantes que chegou a São Paulo, em 1908, os governos do Amazonas e do Pará convidaram os japoneses a se estabelecerem na Amazônia. Em 1929, Tsukasa Uetsuka adquire 100 mil hectares de terras e estabelece 100 famílias japonesas em Vila Amazônia. A labo-riosa comunidade prosperou rapidamente. Aos poucos a mata nativa abriu espaço para serrarias, olarias e pequenas fábrica de farinha e beneficiamento de arroz, além de um engenho onde

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era produzida aguardente e mel de cana. Também ergueram um hospital, uma escola, um posto meteorológico, abriram estradas e estabeleceram um porto. Além do arroz e da mandioca, o produto que prosperou na região foi a juta. Após anos de traba-lho e pesquisa os agricultores conseguiram adaptar a planta na região e passaram a obter boas colheitas. Vila Amazônia, e as demais comunidades nipônicas estabelecidas na Região Norte, despontavam no cenário brasileiro. Quando, em 1940, Vila Ama-zônia recebeu a visita do Presidente Getúlio Vargas, parecia que todas as dificuldades enfrentadas desceriam rio abaixo, abrindo caminho para um futuro de prosperidade. Todavia, menos de um anos depois o sonhou desmoronou com o ataque das forças japonesas a Pearl Harbor. A campanha xenófoba chegou a extre-mos, denunciava-se como nociva aos interesses brasileiros aquela “invasão amarela”. Quase ao fim da Segunda Grande Guerra, um navio chegou a Parintins. Ironicamente, chamava-se Dom Pedro II, nome do imperador que havia sido um dos maiores incentivadores da vinda de imigrantes para o Brasil. Presos em seus porões seguiam mais de uma centena de japoneses. Em pouco mais de meio século a história e as obras daqueles colonos foram transformadas nas ruínas que hoje vemos.

A lancha Tefé, que levava as equipes de atendimento, abicou ao lado de uma ambulancha do Governo do estado do Amazonas. Ainda que estranho, o sentido do termo é óbvio. É uma lancha que serve de ambulância, e a necessidade dela se revela mais óbvia ainda numa região tão dependente das vias fluviais. Vila Amazônia também contava com um Posto de Saúde e com uma obra social e educacional mantida por religiosas. Na creche, ao lado da Igreja de São Francisco Xavier, as dentistas puderam encontrar um bom número de bocas carentes das palestras de higiene bucal. Ali, como de resto em todos os pólos atendidos pelos NAsH, os problemas dentários formam um quadro assus-tador, sobretudo entre a população infantil.

Os médicos do Carlos Chagas colocaram uma boa quan-tidade de medicamentos a disposição do Posto de Saúde local e voltaram para bordo. A razoável estrutura de atendimento que se verificou em Vila Amazônia deve-se a proximidade de um centro maior como Parintins. Mesmo assim, pode-se ouvir o testemunho preocupante de ribeirinhos que viviam em comunidades mais afastadas. Necessitados de assistência médica, muitos não tem como chegar até um posto de saúde, ou mesmo como solicitar atendimento pela absoluta falta de um meio de comunicação. Mesmo quando bafejados pela sorte, e tendo conseguido contatar algum órgão de saúde, precisam esperar que estes possam driblar a constante falta de recursos e as grandes distâncias para que o atendimento chegue até às comunidades. Essa é a dura realidade enfrentada por muitos brasileiros que, felizmente, há 25 anos vem contando com o apoio dos Navios da Esperança.

Em águas do Pará

O Carlos Chagas suspendeu as 19h00, e lentamente deixou para trás as luzes de Vila Amazônia. O perfil de uma grande construção em ruínas foi a última lembrança que ficou da próspera comunidade que chegou ali vinda do outro lado do mundo. Tinha coragem aquela gente. A lua quase cheia ilumi-nava o caminho pelo grande Amazonas. À noite, em meio ao

Páginas 118/119: É nessas horas que se vê a utilidade do helicóptero. Nenhum outro meio de transporte consegue recolher a vítima e levá-la até uma unidade hospitalar tão rapidamente. O tempo que se ganha pode ser o tênue limite entre a sobrevivência e o óbito. Página 120: O sorriso cativante é um bom recurso para ganhar a con-fiança dos arredios ribeirinhos. Depois da conquista basta atendê-los com a natural sensibilidade e a reconhecida competência que destacam as profissionais da Marinha.

rio, a paisagem se alterava em pequenos detalhes. O céu parecia um bloco pintado sobre as águas, carregado de estrelas, como não se vê em nenhuma cidade. Vez por outra uns maciços de nuvens clareadas por relâmpagos cruzavam o horizonte, e ri-bombavam tão baixinho que dava para imaginar a que enorme distância se encontrava. Pela madrugada entramos nas águas do rio Trombetas onde pretendíamos fundear, o que não foi possível devido a pouca profundidade. Pela manhã avistamos uma pequeníssima comunidade, São Sebastião, localidade de Boca dos Currais. Ali, uns poucos atendimentos odontológicos são realizados a bordo, enquanto a equipe médica segue para terra e comprova a razão de tanto abandono. A intensidade da cheia do rio havia obrigado a população a se deslocar para pontos mais altos. Poucos tinham ficado para trás e cuidavam do gado magro que comia os restos de uma pastagem alagada. Parecia que as enormes castanheiras a margem do Trombetas, eram os únicos seres vivos que não se incomodavam com a falta de cerimônia do rio. Nas paredes das construções era possível ver a absurda altura a que as águas tinham chegado e permanecido por meses. Ao fim daquela tarde, um enfermeiro do Carlos Chagas, um cearense de Itapipoca e profundo co-nhecedor da realidade enfrentada pelos ribeirinhos, voltou para bordo com poucos números para acrescentar ao seu relatório de atendimentos.

Melhor sorte teria no dia seguinte em outra São Sebastião, localizada poucas milhas a frente, já no rio Nha-mundá, um afluente do Trombetas. Esse curso d’água é um dos mais belos de toda a região amazônica. Apesar da cheia não ter sido menos intensa por ali, seus efeitos devastadores não eram facilmente observados. O rio é estreito e a mata que o envolve é poderosa, variada e exuberante. Em alguns trechos, parecia que navegávamos por entre ilhas dos mares tropicais, tal era a verdura da vegetação em contraste com o azul profundo da manhã.

Ás 8h40m a aeronave Tucano foi lançada para fazer o reconhecimento da região. Poucos minutos depois as lanchas Tefé e Tapauá partiram para atender a comunidade enquanto o navio manobrava para fundear em frente à Escola Municipal Laura Viana que serviria de base para as equipes de terra. O estabelecimento recebia uma quantidade de alunos como ainda não tínhamos visto em toda a comissão. Fazia pensar de onde surgia aquela criançada, pois em volta da escola víamos tão somente poucas moradias, uma igreja, um galpão que servia de quadra de esportes e um campo de futebol. Naturalmente, não havia mistério algum, e tudo se esclareceu ao fim das aulas ma-tinais. A partir desse momento não se achava um uniforme que fosse. A criançada debandara pelas ribeiras a bordo de qualquer coisa que flutuasse. Um transporte escolar eficiente como ele só.

Às 15h00, a exemplo dos alunos da Escola Laura Viana, o Carlos Chagas se afasta pela ribeira e retorna pelo Nhamundá. Passa em frente à cidade Oriximiná, na boca do rio Trombetas, e segue agora em direção ao Estreito de Óbidos, um trecho do rio Amazonas onde toda a sua poderosa vazão se vê estrangulada num aperto de apenas 1.500 metros. Em virtude desse estreitamento, é ali também que o rio atinge sua maior profundidade, nada menos que 100 metros. Naquele estreito o movimento de grandes navios é intenso durante todo o dia,

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as águas mais agitadas e o vento incansável, exigindo atenção dos oficiais a postos no passadiço. Exceto estes, poucos a bordo puderam sentir a passagem por Óbidos, pois o Carlos Chagas apresenta uma singradura confortável e o comando era suave e estável. Tão suave quanto à navegação foi a operação de fundeio. Às 21h30m estávamos ao largo da pequena Menino Deus de Ipaupixuna, uma comunidade ribeirinha situada na margem direita do Amazonas.

Bem, a verdade é que se não dispuséssemos da longitude, da latitude e da milhagem exatos, poderíamos ter passado pela comunidade sem dar pela coisa. Mesmo sob a luz do dia era difícil visualizar mais do que um ajuntamento ralo de construções que contava-se nos dedos, de uma mão. Na praia uma cobertura aberta servia de escola, já que a ori-ginal havia sido invadida pela cheia. A igrejinha ao lado não teve melhor sorte. Perto dali erguia-se a sede deserta do Santa Cruz Clube, onde se podia encontrar vestígios de uma festa recente. De resto, algumas casas esparsas e nada mais. Atra-vés do empenho de um Agente Comunitário de Saúde, dos médicos e dentistas, foi possível reunir nas salas de aula uma boa quantidade de pequenos ouvintes durante as rotineiras palestras. Contudo, foi durante os atendimentos domiciliares que a prontidão das equipes médicas e de toda a tripulação do Carlos Chagas se fez mais atuante. Numa visita preliminar, um enfermeiro pode constatar que uma grávida apresentava um quadro de saúde preocupante. O fato foi imediatamente comunicado via rádio ao navio, que alterou seu ponto de fundeio, ficando mais próximo ao local do evento. A aeronave Tucano e sua equipagem se prepararam para uma possível operação de Evacuação Aeromédica, aguardando apenas a solicitação que partiria, ou não, da equipe que atendia a paciente. A tensão permaneceu por algumas horas até que a perícia dos médicos pudesse reverter a situação desfavorável da grávida. A rotina de quem opera a bordo de um NAsH é pontilhada de episódio como esses. A bordo, a torcida pela saúde é forte, e o time está sempre pronto para entrar em campo, não importa quem seja o adversário.

No dia seguinte, navegando no encontro entre o Ama-zonas e o Tapajós, o “Carlos Chagas”, envia suas equipes para atender a comunidade de Aninduba. Conforme foi passado no briefing da noite anterior, o povoado possuía pouco mais de 80 domicílios e ficava na margem direita do rio Amazonas, na altura da milhagem 371. Só esqueceram um detalhe que se revelou esta-fante, principalmente para quem carregava as pesadas canastras de medicamentos: Aninduba ficava no alto de uma barranca altíssima, só alcançada por uma escadaria de 72 degraus. Mas foi válido o esforço, pois lá no alto a recepção foi reconfortante. A banda da escola municipal ensaiava para as comemorações do Dia da Independência. Os pequenos puxavam a fila, logo seguidos pela charanga, que atacava os couros sem piedade e com muita competência. Nos mastros panejavam as bandeiras do Brasil, do Pará e de Santarém, a sede do município. Enquanto a parte jovem da comunidade saía em desfile, os médicos aprovei-taram para atender a população de mais idade, mães e crianças de colo, ali mesmo nas salas da escola. Apesar de o atendimento ter acontecido apenas na parte da manhã, foi possível realizar nada menos que 461 procedimentos. Assim, a segunda semana de comissão se encerrava com números animadores. E, como

Página 123: O pequeno pantaneiro está em boas mãos a bordo do NAsH Tenente Maximiano. Assim como todas as equipes da Flotilha de Saúde, as equipes do U-28 estão capacitadas para atender a todas as demandas da população ribeirinha ao longo dos rios Paraguai e Cuiabá.

para descer todos os santos ajudam, lá fomos baixando das alturas de Aninduba para voltar ao Carlos Chagas.

Na proa de casa

Teríamos um fim-de-semana prolongado pelo feriado de Sete de Setembro. O Carlos Chagas atracou no Cais Turístico de Santarém, uma das maiores cidades portuárias do Pará e de toda a Região Norte. O local onde se encontra Santarém era um reduto de índios Tupaius, ou Tapajós, que não tiveram um bom relacionamento com os primeiros brancos que apareceram por lá. Em 1542, a passagem de Francisco Orellana não deixou boas lembranças. Promoveu um saque às plantações dos índios, que os espanhóis consideravam como selvagens hereges, que deviam ser amansados pela cruz e pela espada. Em 1626, foi a vez de Pedro Teixeira. O capitão português foi mais diplomático no contato com os donos da terra. Mas, como sua real intenção era comprar índios de tribos inimigas para usar como escravos, os Tapajós mais uma vez se decepcionaram com os brancos. Coube ao Padre Antonio Vieira, um jesuíta, a aproximação e o início da pacificação dos indígenas. Um processo longo que culminou com a instalação de uma missão religiosa em meio à aldeia Tapajó. Isso ocorreu em 1661, pelas mãos do Padre João Felipe Bettendorf. Nascia então aquela que seria conhecida como a “Pérola do Tapajós”.

Oficiais e praças se espalharam pela cidade e outras lo-calidades vizinhas. Alter-do-Chão foi o destino de muitos. Aquele pequeno distrito, que fica a 30 quilômetros de Santarém, recebeu de seus admiradores o título de “Caribe da Amazônia”. E não lhe faltam os méritos, como também a toda a região ribeirinha do Tapajós, que encanta desde os primeiros tempos da colonização.

Três dias de descanso foram suficientes para que a tripulação esticasse as pernas e o navio fosse reabastecido. Após duas semanas de comissão as reservas de água, combustível e víveres precisavam de reposição.

Pontualmente às 12h do dia 8 de setembro, uma terça-feira, o Carlos Chagas deixou Santarém e adentrou pelo Tapajós. Nosso destino era a comunidade de Aramanaí, em frente a qual fundeamos após uma hora de navegação. A paisagem era belís-sima. Nas duas margens pontilhavam inúmeras praias de areias claras, que se faziam ainda mais belas contra o verde da mata intocada. Naquela tarde, um pequeno grupo foi enviado a terra para avisar o povo local dos atendimentos que aconteceriam no dia seguinte.

Pela manhã, com o navio fundeado ao largo, as lanchas tiveram que percorrer uma considerável distância beirando às margens do Tapajós. Aramanaí logo apareceu na sua simplicida-de de vila de pescadores. A localidade era uma praia de recreio, um programa de fim-de-semana para os moradores de Santarém e de cidades vizinhas. Naquela terça-feira, a praia e as ruas de terra próximas, estavam desertas. Os únicos que viram o desem-barque das equipes do Carlos Chagas foram os japins, umas aves barulhentas que bicavam a fartura de alguns cajueiros. Àquela hora da manhã o povo de Aramanaí se concentrava em dois pontos. Os pequenos na Escola Pública, os adultos no Posto de Saúde. Por sorte, os dois pontos estavam separados por uns vinte passos. A turma pequena recebeu a costumeira prédica de bons hábitos higiênicos. Os donos de algumas bocas menos cuidadas

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levaram um carinhoso sermão. No Posto de Saúde, salas foram franqueadas ao trabalho dos médicos e o atendimento correu sem problemas por toda a manhã.

Aramanaí pertence à Belterra, um município que fez parte do sonho de transformar a região numa grande plantação de seringueiras. Sonho que começou em 1928, numa imensa área que foi batizada como Fordlândia, em homenagem ao em-presário norte-americano Henry Ford, que pretendia tirar dali a borracha para os pneus dos carros que produzia. Mas as terras escolhidas e as técnicas de plantio se revelaram incapazes de sus-tentar o projeto. Além disso, os conflitos entre os administradores norte-americanos e a mão-de-obra nativa chegaram ao ponto de exigir uma intervenção do Exército brasileiro. Assim, em menos de duas décadas o sonho virou um pesadelo, e coube ao Henry Ford II, neto e herdeiro de Ford, devolver as terras ao governo brasileiro. Fordlândia transformou-se numa cidade fantasma. Por sua vez, Belterra aplicou em seu brasão a imagem de uma seringueira e o símbolo da Ford, lembranças de um progresso que não teve bases para se desenvolver.

Às 11h deixamos Aramanaí, Belterra, Fordlândia, e todo o passado que pode servir de alerta aos que desejam explorar a Amazônia com desmedida ganância, e pouca consideração por sua gente e por sua terra. Passava pouco das 13h quando voltamos a águas do Amazonas. A intenção do Comandante era navegar sem escalas até Itacoatiara, no Amazonas. Isso não prejudicaria em nada o trabalho de atendimento às comunidades ribeirinhas, mas significava que as equipes teriam que chegar até elas voan-do. Ou seja, o Tucano 7089 viveria “despenteado” durante a viagem de volta a Manaus. Os pilotos do 6° Esquadrão ficaram exultantes. A função do piloto é voar, colocando em prática tudo que assimilou nas escolas de formação e nas centenas de horas com a mão no manete, e sabe que não há campo de treinamento como a Região Amazônica.

Os vôos começaram naquela tarde. O objetivo era localizar comunidades que estavam no roteiro de atendimento durante as 72 horas de navegação ininterrupta até Itacoatiara. A primeira a aparecer na visada do Tucano foi São Sebastião do Coró-Coró, uma comunidade de pouco mais de cem domi-cílios e nenhuma estrutura de saúde, ou seja, o perfil ideal para receber o atendimento de saúde da Marinha. A equipe médica, enfermeiros e uma sortida canastra de medicamentos seguiram nas próximas pernadas do helicóptero. Esse tipo de deslocamento era essencial para a cinemática da operação, pois permitia que o navio continuasse em andamento sem interromper o trabalho de assistência aos ribeirinhos. Chegando pelo ar, muitas milhas a frente do Carlos Chagas, as equipes de terra podiam trabalhar normalmente e, hora depois, eram recolhidas pelas lanchas.

Esse processo se repetiu no dia seguinte, 11 de setembro. Pela manhã em benefício da comunidade Paurá, que fica na Boca do Paraná do Mocambo, um dos tantos atalhos que cortam as águas do Amazonas. À tarde o Tucano levou as equipes até Santa Cruz do Amazonas, um ajuntamento de duas dezenas de casas modestas empinadas sobre palafitas. Em meados de setembro, as águas ainda estavam bem altas para aquela época do ano, mas pelo menos os ribeirinhos já conseguiam por o pé em terra firme quando desciam as escadas de casa. Entre junho e julho

Página 125: As últimas cheias causaram muitos prejuízos nas comunidades ribeirinhas amazônicas. As precárias condições das construções que se encontravam no Paraná do Albano (AM) obrigaram que a distribuição de medicamentos fosse feita na varanda da escolinha local. Um pequeno detalhe na grandeza da missão. Páginas 126/127:Sentindo o coração do Doutor Montenegro bater a 600 HP. A equipe da Praça de Máquinas não descuida de suas atribuições, esteja o navio navegando ou atracado num porto. A força da embarcação depende desse carinho cheio de conhecimento técnico.

não tinham muitas opções: ou subiam na canoa amarrada à entrada, ou da porta mergulhavam direto no rio.

A bordo do Carlos Chagas a situação era um tanto parecida. Exceto as equipes de atendimento, a maioria da tripu-lação já não colocava o pé em terra há quase três dias quando Itacoatiara apareceu por boreste. Com seus quase 90 mil habi-tantes, o município é, segundo o IBGE, o terceiro mais populoso município do estado do Amazonas. Isso dá uma boa idéia de quanto é rarefeita a ocupação demográfica na Amazônia. Em Itacoatiara registra-se menos de dez habitantes por quilômetro quadrado. Deve ser verdade. Pelo menos naquele fim-de-semana, em que a tripulação do Carlos Chagas tomou conta da cidade, era difícil encontrar muita gente pelas ruas. Certamente, o calor sufocante era outra boa razão. Em vista disso, muitos preferiram o aconchego refrescante do ar condicionado que tinham a bordo.

A segunda-feira chegou com um misto de melancolia e ansiedade. Faltavam pouco mais de cem milhas para chegada em Manaus, e isso era razão suficiente para que cada um a bordo fizesse seu balanço pessoal daquela comissão. Havia ali tripulantes que acumulavam em sua carreira quase dois mil dias de mar a bordo do Carlos Chagas, enquanto outros se iniciavam na vida marinheira navegando pela primeira vez num rio. A maioria era veterana em diversas comissões, e mesmo assim continuavam demonstrando um entusiasmo de novato. A razão era que o tempo entre a partida e a chegada se enchia de histó-rias inesquecíveis, de casos pessoais que tocavam o coração, de sorrisos agradecidos pelo muito que se podia fazer por quem tem tão pouco. Os relatórios de atendimento podem trazer números frios, mas o arquivo de boas lembranças devolvia o rosto e a voz a cada ribeirinho atendido por aquele navio.

Após o almoço o Tucano decolou para levar as equipes até duas comunidades ribeirinhas. Em São José do Amatari e Benjamim Constant seriam realizados os últimos atendimentos daquela comissão. A aeronave fez três pernadas antes de seguir definitivamente para Manaus, onde os outros Tucanos do HU-3 o esperavam. Após cumprirem com dedicação sua tarefa de apoio às operações do NAsH Carlos Chagas, os pilotos retornavam para casa. Infelizmente, não puderam ouvir as palavras de uma professora da escola pública de Benjamim Constant, que ao vê-los descer na comunidade, exclamou: “Este voo foi inesperado, quando eu vi pareciam anjos vindos do céu.” Pareciam mesmo, e que esses anjos continuem a voar sob os céus da Amazônia.

Manaus estava ali, a poucas milhas, mas o Carlos Chagas navegava sem pressa, como que descansando sobre os ombros do Amazonas, parecendo coma aquele peixe-boi que lhe serve de símbolo. Após 22 dias de comissão todos concordavam que o lema “Saúde aonde houver vida” havia sido aplicado com distinção. Navio e tripulação bem que faziam por merecer um “Bravo Zulu.”

Quando o sol se pôs naquela tarde, exatamente às 17h52m, o convoo vazio reunia toda a tripulação para o cerimo-nial da bandeira. O silêncio era profundo enquanto o Pavilhão Nacional era arriado, drapejando sobre as águas poderosas do Amazonas. Naquele momento, e nas cores de nossa bandeira, reuniam-se todas as grandezas deste país. Lá estava o verde das matas, o azul mais puro do céu, e o ouro mais rico que há sobre essa terra: a solidária, soberana e brava gente brasileira.

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Há dez anos, uma cabocla residente em Boca do Mineiroá, uma localidade perdida as margens do rio Solimões, virou notícia em todo o país. Em sua certidão de batismo consta o nome de Antonia Régia, mas sabe-se lá porque, era conhecida por todos como Elvira. E foi assim que o Brasil a conheceu, e torceu por ela. Tinha

24 anos à época, e era mãe de dois meninos pequenos. Em fins de outubro de 1999, durante uma comissão de atendimento ao Pólo Solimões “A”, os caminhos de Elvira e do NAsH Carlos Chagas iriam se cruzar de forma emocionante. Fundeado próximo a Tamanicurá, um povoado formado por 40 casas modestas, distante mais de 600 quilômetros da capital amazonense, o Carlos Chagas lançou suas lanchas com equipamentos, medicamentos e equipes médicas. Em consultórios improvisados no campo de futebol que ficava próximo, os clínicos começaram o atendimento aos ribeirinhos. As filas haviam se formado desde cedo e Elvira, senha na mão, esperava sua vez. Rotineiramente, os médicos fazem uma avaliação geral dos pacientes, procurando identificar a causa dos males relatados. Não é raro, devido à falta de recursos locais e à própria inibição dos ribeirinhos, que haja certa dificuldade em diagnosticar casos mais graves. No caso de Elvira, após um procedimento simples, o médico encontrou um caroço em seu seio e mostrou-se bastante preocupado pela possibilidade de ser um câncer de mama. O fato é que ali, e num raio de centenas de quilômetros, não havia meios de fazer uma melhor avaliação do caso da cabocla e, se necessário, dar início ao tratamento. Tudo indicava que o caso de Elvira caminhava para o mesmo calvário já conhecido por tantos brasileiros. Mas o fato chegou aos ouvidos de um jornalista que estava a bordo do Carlos Chagas fazendo a cobertura da comissão. Em pouco tempo a história da cabocla chegou aos gabinetes de Brasília, montou-se uma verdadeira “operação de guerra”, como manchetaram os jornais na época, e Elvira foi retirada da pequena Boca do Mineiroá de helicóptero e embarcada num navio-hospital. Em poucos dias estava internada no Hospital da Aeronáutica, em Manaus, onde os exames mostraram que o tumor, afortunadamente, não era maligno.

A história da pequena Elvira teve uma enorme repercussão, provocando um longo debate entre os que condenavam o uso de tão grande aparato em favor da ribeirinha, e aqueles que achavam plenamente justificável todos os esforços empreen-didos para ajudá-la. Todavia, o que as partes envolvidas na polêmica não sabiam, é que para a Marinha do Brasil aquele era apenas mais um entre tantos casos que exigiram o empenho profissional e humano de suas equipagens. A diferença naquele episódio tinha sido a divulgação, e a celeuma criada por alguns órgãos de imprensa. No mais, para as tripulações dos Navios da Esperança, aquela tinha sido mais uma missão cumprida.

Casos assim passam pela vida de médicos, dentistas e tripulantes dos NAsH da Flotilha de Saúde a cada momento. Difícil é participar de uma comissão em que algum caso em particular não cause apreensão e uma torcida ansiosa por um final feliz. A conta é bem simples: pegue três navios de assistência hospitalar navegando por milhares de milhas de rios, multiplique por milhares de atendimentos realizados a cada comissão. Como resultado teremos uma Elvira em cada ribeira. Acontece, que para todos os envolvidos nas missões de AssHop, qualquer vida humana vale o esforço para que o atendimento chegue até ela. Nunca se pode prever quando um caso será mais grave, mais dramático ou exigirá mais empenho. Portanto, o que vale é a prontidão e o empenho na função.

Ao anoitecer, quando findam as missões do dia, os convoos dos NAsH se transformam em ponto de encontro de tripulantes. À essa hora a aeronave já está penteada e coberta e, de tão acostumados, poucos se incomodam com o ronco dos motores do navio. Corre uma brisa fresca que empurra para o rio o resto de calor do dia. É o ambiente para lembrar da família e dos casos. Após dar a última olhada no Tucano ali quieto em seu ninho, um integrante do Destacamento Aéreo Embarcado (DAE), com mais de 60 comissões e quase 900 dias de mar, rememora: “Uma senhora um tanto aflita apareceu na barranca quando estávamos quase encerrando a faina da manhã. Pelo olhar dos enfermeiros que a atenderam dava para perceber que o caso era de certa gravidade. Só faltava o paciente. Depois entendemos que não era ela, mas seu filho. O rapaz, que devia ter uns quinze anos estava em casa, incapaz de chegar até o atendimento por conta de uma infecção que lhe tomava a perna. A causa segundo ela tinha sido um prego enferrujado. Foi preciso acompanhar a mãe até onde ele estava. Fomos eu e um médico, achando que seria possível resolver o caso. Chegamos na base de uma elevação e ela nos disse que o rapaz estava lá em cima. Me perguntei várias vezes porque alguém morava num lugar como aquele e jamais consegui uma resposta que me deixasse satisfeito. Mas, lá fomos nós morro acima até o casebre que ficava como que equilibrado no topo do morrote. O rapaz tinha a perna gangrenada pelo tétano e sentia dores horríveis. Não havia como retirá-lo dali por terra, ele não resistiria. O médico estava impotente. A solução foi chamar por rádio

Páginas 128/129: Um brinde à guarnição do Doutor Montenegro e a todos os tripulantes embarcados nos Navios da Esperança. Guerreiros que deixam o convívio de sua própria família para ajudar brasileiros que vivem no isolamento da maior floresta do planeta. Página 130: No convoo o oficial de lançamento e pouso (OLP) direciona a aeronave que parte para mais uma missão. As operações aéreas são uma constante na rotina de bordo, seja no reconhecimento aéreo, no transporte das equipes médicas ou durante uma Evacuação Aeromédica (EVAM).

O Navio Veio... e me SalvouHistórias e Relatos dos Ribeirinhos da Amazônia

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uma aeronave, e contar com a perícia do piloto para conseguir pousar num espaço menor que esse convôo. Enquanto o Tucano se aproximava, tivemos que enrolar o rapaz na colcha em que estava deitado e arrastá-lo para fora. O helicóptero hoverava na tentativa de encontrar um ponto de contato. Voava poeira, palha, galinha pra todo lado. O máximo que o piloto conseguiu foi apoiar um esqui sobre barranco e nos fez embarcar o mais rápido possível, pois a posição era crítica. Não deu para ter muito cuidado com a vítima. Umas pancadas e uns gritos de dor foram inevi-táveis. E lá fomos nós para o hospital de Belém. Soubemos dias depois que o garoto estava salvo, mas tinha perdido a perna. Na situação em que estava foi um lucro enorme.”

Tinha sido mesmo. Em se tratando da região amazô-nica, é comum que pequenos problemas se tornem casos graves de saúde. A razão disso muitas vezes está na dificuldade de encontrar atendimento médico e medicamentos, nas crenças populares, nos precários métodos de tratamento de água, na falta de saneamento, nos péssimos hábitos higiênicos ou na pura e simples falta de informação, ou seja, razão é que não falta.

O piloto de uma aeronave conta a situação deplorável em que um bebê chegou ao posto de tratamento instalado durante a Comissão Purus, considerada por todos como das mais difíceis de toda a programação da Flotilha de Saúde: “A mãe parecia muito jovem e muito pobre. Era um tipo bem ca-boclo. A criança que segurava no colo tinha a cabeça coberta de feridas. O médico que a atendeu não teve muito trabalho para identificar a causa do problema. O couro cabeludo do pobrezinho estava tomado por pediculose. Piolhos! Eles tinham causado tanto estrago que a pele era uma ferida só. Dava pena. E a razão era muito simples: a mãe nunca tinha lhe dado um banho. Olha o que a gente encontra por essas ribeiras?”

Em outro ponto da Amazônia, um médico de 24 anos, embarcado no NAsH Carlos Chagas, teve bons motivos para rir. Durante uma consulta a bordo a paciente já chega com o diagnóstico: “Ela me disse logo que estava na menopausa. Quando eu perguntei por que ela tinha certeza disso, me respondeu que sentia tudo o que as amigas mais velhas diziam que era coisa da me-nopausa, aqueles calores, inchaços e a falta de menstruação. Preenchi a ficha já não acreditando muito naquela história. A mulher tinha apenas 44 anos, e nada menos que 17 filhos. Para não decepcioná-la propus que fizéssemos um exame para averiguar a situação. À saída, não lhe dei a resposta que esperava, mas a única que o exame comprovava: nada de menopausa, mas o 18º filho estava a caminho.”

Nos 12 pólos atendidos durante as comissões, os problemas de saúde vão dos mais básicos aos mais complexos, passando por enormes variações. Os médicos e dentistas são unânimes em afirmar que muitos males que afetam quase todas as comunidades ribeirinhas estão relacionados à falta de educação. Os efeitos se revelam em problemas simples como conseguir ler uma receita ou manter cuidados básicos com a higiene pessoal. A turma da saúde vai improvisando para contornar a situação, passando receitas com desenhos substituindo palavras. Por exemplo, onde aparece o sol ao lado de um traço significa que o paciente deve tomar um comprimido durante o dia, já se aparece uma lua... bem, viu como é fácil? Vale tudo no esforço de se fazer entender, pois a luta pela saúde não admite trégua.

Nessa luta também estão engajados os agentes co-munitários de saúde. Quando os NAsH estão em comissão

Página 133: Não se espante: isso não é uma emergência. É apenas a realidade com que os médicos da Marinha se defrontam nas comunidades ribeirinhas por onde passam. A missão deve seguir em frente e não é a distância de um centro médico que vai atrapalhar o trabalho.

os agentes circulam pelas comunidades convocando as pes-soas, notificando as equipes de AssHop sobre pacientes que exigem uma consulta domiciliar e organizando os pontos de atendimento. Esse é uma trabalho silencioso, e não acontece apenas durante a presença dos Navios da Esperança, mas tem continuidade por todo o ano, pois é assim que o agente se mantém informado sobre as condições de saúde da comuni-dade. Em Menino Deus de Ipaupixuna, o agente comunitário informa sobre as dificuldades mais comuns que afligem sua gente: “Aqui nós enfrentamos muitos problemas mesmo. O que mais tem por aqui é desinteria, problemas com a água. Tem algum tempo que estamos usando um modelo de filtro fabricado em Santarém. As pessoas não podem usar a água do rio sem tratamento. As crianças são as mais prejudicadas, pegam verminose e para tratar é difícil e falta recurso. Para levar uma pessoa ao médico só de rabeta e a viagem é longa. Comprar um remédio é outra dificuldade. Quando a Marinha vem é uma grande ajuda, melhor se viesse mais vezes.”

O Agente Comunitário de Saúde também comentou sobre o aumento da incidência de diabetes entre os ribeirinhos, o que é facilmente comprovado pelos médicos. A doença vem campeando entre as comunidades, principalmente em função da mudança dos hábitos alimentares. Apesar das distâncias, o alimento industrializado tem chegado à mesa do ribeirinho e desbancado os produtos da terra, que eram a base da dieta. Quando o mal aparece, se agrava rapidamente por conta da falta de atendimento, de medicamentos, e da própria dificul-dade que tem o doente para entender e seguir o tratamento.

As doenças não fazem distinção de idade, gênero ou cor. Nem respeitam fronteiras, ainda mais num mundo onde tudo é verde e água. Onde as distâncias, as carências e as ne-cessidades irmanam a todos. Recentemente, a tripulação do NAsH Doutor Montenegro teve mais uma oportunidade de mostrar a solidariedade do brasileiro. Quem conta o episódio é o Comandante da embarcação: “É por isso que somos chamados de Navios da Esperança. Por tudo que vemos acontecendo nessas ribeiras, se o navio não estiver passando naquela hora e naquele local exato, é muito provável que um óbito ocorra. Estávamos navegando no rio Javari, que é o limite do Brasil com o Peru. Enquanto nossas equipes estavam atendendo nas localidades brasileiras, do outro lado do rio, na margem peruana, observei uma senhora que abanava uma camisa. Eu estava no passadiço vendo a cena pelo binóculo e ordenei que o navio retornasse. Alguma coisa acontecia na margem e queria averiguar. Por conta de acor-dos internacionais, não podíamos dar atendimento, nem mesmo atracar naquela margem. Mas afinal, eram seres humanos. Quando chegamos mais perto havia muita gente na ribeira, mas como a situação parecia calma, comandei que voltássemos a descer o rio. Foi quando duas grandes canoas abarrotadas de mulheres e crianças partiram da margem e vieram ao nosso encontro. Mandei parar o navio e embarquei aquela gente que vinha pedir atendimento. Pessoas com febre, com dores intensas e todo o tipo de problemas. Mas um caso nos marcou profundamente. Havia um garoto, de uns dez ou onze anos, de quem a mãe tinha tentado extrair um dente à força, na base da pancada. Isso tinha acontecido na noite anterior e a boca do garoto era um enorme abscesso. Nós demos atendimento, mas tínhamos que entender que na situação em que viviam, era a escolha entre a dor desesperada e a dor suportável. Não há opção para esse povo.”

O que fazer frente a situações como essas? Tenta-se o melhor, às vezes lutando contra dificuldades insuperáveis ou de difícil compreensão. No atendimento às comunidades

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indígenas, também alvo do trabalho da Flotilha de Saúde em apoio aos pólos da FUNAI, não poucas dificuldades precisam ser superadas. Quando se faz necessário remover um indígena o trabalho de convencimento nem sempre é bem sucedido. Na aldeia Manauai, em Roraima, uma menina de apenas dois anos sofria de hidrocefalia e sua remoção foi recomendada pelos médicos e apoiada pelos próprios funcionários do órgão federal que administrava o posto indígena. Só não foi possível demover a família da criança, que aferrada a seus costumes causaram uma grande frustração ao pessoal do NAsH e, involuntariamente, a própria criança.

Os Navios da Esperança seguem uma programação que tem sido ditada pela experiência e pela logística que en-volve toda a operação nos rios da bacia amazônica. Em geral, os 12 Pólos de Saúde são atendidos em duas oportunidades a cada ano, sendo, preferencialmente uma vez a cada semestre. Assim, há uma rotatividade entre os NAsH para que as comu-nidades programadas não fiquem sem atendimento durante um longo período. Em situações emergenciais a rotina precisa ser alterada. Isso ocorreu durante as últimas grandes cheias que afetaram a região. A calha principal do rio Amazonas, seus vários tributários, paranás e igarapés subiram a níveis elevadíssimos, registrando recordes que bateram as cheias de 1922, 1976, 1989 e a de 1953, até então considerada como a maior da história.

Em 2009, a Marinha do Brasil precisou deslocar seus meios operativos para socorrer as comunidades ribeirinhas, assoladas por uma tragédia sem precedentes. A Operação Marinha Solidária, vinculada a Operação SOS Enchente, prestou socorro às vítimas das enchentes no interior do Estado do Amazonas. Os municípios de Anamã, Borba, Barreirinhas, Manacapuru e Itacoatiara foram os principais focos do tra-balho dos NaPaFlu Pedro Teixeira, Amapá e Rondônia, que auxiliaram entre outras tantas atividades, na evacuação e no transporte das comunidades atingidas, nas distribuição de víveres e no controle do tráfego aquaviário, que ameaçava moradias e embarcações já em precário estado; e dos NAsH Doutor Montenegro, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, que se encarregaram do atendimento médico, odontológico, labo-ratorial e de vacinação. O apoio de todos esses meios foi de fundamental importância nas atividades da Defesa Civil, da Vigilância Sanitária e da Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas, que puderam usar as embarcações da Marinha como plataforma de trabalho.

A parceria da Marinha nessas situações é ponto de honra. Mesmo porque, os Comandos estão conscientes da realidade da região amazônica. Sabem que a participação do Poder Naval é quesito insubstituível na manutenção da integridade do nosso território, e que poucos conhecem aquele pedaço do Brasil tão bem, e há tanto tempo, como as

Página 135: Improviso cheio de sabedoria. Além das doenças, muitos ribeirinhos sofrem de um mal ainda presente na imensidão da Amazônia: a falta de educação básica. Os médicos então se viram como podem aviando receitas adaptadas aos poucos conhecimentos dos pacientes. Páginas 136/137: Lá vem o “novato”. O Tenente Maximiano é o mais novo Navio da Esperança a ser incorporado à Marinha do Brasil. Chegou com toda disposição para operar em benefício das populações ribeirinhas atendidas pelo 6o Distrito Naval, sediado em Ladário (MS). Páginas 138/139: Mobilidade, flexibilidade, adaptabilidade. Seja qual for o termo usado, estará bem escolhido para definir a aeronave orgânica que guarnece os NAsH. O Esquilo monoturbina é a melhor solução para operar dentro das condições que exige a região amazônica. Páginas 140/141: A noite cai dando novas cores ao céu da Amazônia. Com o Tucano 89 “peiado” e “penteado” em seu convoo, o Carlos Chagas encontra-se fundeado ao largo de Aramanaí, uma pequena comunidade localizada no rio Tapajós. Na manhã seguinte mais trabalho está à espera nas ribeiras. Páginas 142/143: O apito soa forte no convés de um Navio da Esperança. Para todas as tripulações que navegam por águas interiores brasileiras o sopro forte desse marinheiro faz lembrar a missão que se renova a cada dia: levar saúde à população ribeirinha. Página 144: O Sol vai caindo e a noite em breve irá imperar. Antes que a escuridão cubra totalmente as águas e as matas da Amazônia, a lancha de um NAsH segue para recolher uma equipe médica que encerra mais um dia de luta pela vida.

tripulações da Flotilha do Amazonas. Gente que vive para o rio e dá tudo pela Pátria.

Em geral, no passadiço dos NAsH não há muito tempo para conversa. Ali, atenção, prontidão e competência estão no topo da lista de prioridades. Mas de vez em quando, enquanto o navio cruza um trecho livre de rio e nenhuma operação está em andamento, pode ser ouvida aqui e ali uma história marcante. Aproveitando o tempo entre as marcações na carta náutica, um Cabo vai relatando o caso que testemu-nhou: “Nosso navio tinha deixado uma comunidade não fazia muito tempo e seguia para Manaus. Logo depois recebemos uma chamada pelo rádio de um regional. Tinha acontecido um acidente de moto naquele mesmo lugar, coisa feia, tinha gente muito ferida. Não sei como pode num lugar desses, mas parece que tinha batido com um carro. Colocamos a lancha na água para dar o primeiro atendimento enquanto o pessoal do DAE preparava o helicóptero para uma emergência. Reduzimos a marcha do navio para aguardar notícias da ribeira. O patrão da lancha avisou que estava voltando com duas vítimas que precisavam ser levadas para um hospital. Foi só encostar e embarcar as duas macas na aeronave. Era uma menina e o pai dela que estavam na moto. Depois ficamos sabendo que só ele tinha sobrevivido. A filha não suportou.”

O trabalho do pessoal a bordo dos Navios da Es-perança é assim: cheio de compensações e decepções, pois elas andam de mãos dadas no dia-a-dia de quem atende pelas ribeiras da Amazônia. As equipes da Marinha lutam sem descanso para que a vida saia sempre vitoriosa. Nem sempre o consegue, mas não desiste nunca, nunca se entrega enquanto vida houver. Por esse espírito, que impregna todas as comissões de todos os Navios de Assistência Hospitalar, as comunidades vêm reconhecendo que tem alguém que olha por elas, e que, onde estiverem, sempre haverá meios de fazer chegar esperança, saúde e cidadania.

Em abril de 1999, durante uma AssHop na localidade de Curralinho, no Pará, a equipe médica recebeu uma peque-na carta, escrita por uma ribeirinha de 13 anos. Em poucas linhas ela conseguiu expressar o sentimento de gratidão que as comunidades ribeirinhas alimentam pelo trabalho huma-nitário que a Marinha do Brasil desenvolve na Amazônia.

“Gostaria de dizer a todos vocês que eu nunca havia visto em toda minha vida um trabalho prestativo que ajudasse nossos velhinhos a ter de volta a sua visão. Eu pensava que era só Deus que ajuda as pessoas que há muito tempo não enxergavam, mas me enganei. Não é só Deus que ajuda as pessoas, mas sim seus filhos que são todos vocês, acho que quando vocês eram crianças não pensavam em nada, mas Deus mostrou o caminho certo e vocês o escutaram”.

A Marinha do Brasil, a Flotilha de Saúde e todas as equipes envolvidas nas operações de assistência hospitalar, crêem sinceramente que estão no caminho certo, pelo bem dos nossos irmãos da Amazônia e pelo progresso do Brasil..

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EditorCarlos Lorch

TextoJoão Augusto Rodrigues

FotografiasAlexandre Durão, Christian Knepper (pág. 21), Domingos Tadeu de Oliveira Pinto/PR (pág. 14), Margi Moss (págs. 26 e 30), Monica Lorch (pág. 25)

Acervo/coleção Bertolini (fotografia nas páginas: 130/131), Departamento Hidroviário da Secretaria de Transporte do Estado de São Paulo − DH-SP (fotografia na página: 64),Eletronorte (fotografias nas páginas: 45 e 57),Fundação Biblioteca Nacional - Brasil (Mapa de autor desco-nhecido “Mapa das Cortes”, de 1749, na página: 34),Grupo André Maggi (fotografia nas páginas: 66/67),Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais − INPE (imagem nas páginas: 16/17),Museu Histórico Nacional – MHN (Óleo sobre tela de Edoardo de Martino “Combate Naval do Riachuelo”, na página: 38),Reuters (fotografias nas páginas: 42, 84/85, 98/99, 102/103, 118/119 e 125),Tyba (fotografias nas páginas: 18, 32),Theodore Roosevelt Collection, Harvard College Library (foto-grafia na página: 41)

IlustraçõesAlexandre Argozino (págs. 22/23 e 80/81),Daniel Uhr (págs. 58/59)

Paginação EletrônicaTeófilo Luís do Nascimento

Action EditoraAv. das Américas, 3333 sala 817 - Barra da Tijuca Rio de Janeiro, RJ – CEP 22631-003 – Tel./Fax.: (21) 3325-7229e-mail: [email protected]

Copyright ©2009 Action Editora Ltda.Reservados todos os direitos. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição, no todo ou em parte, seja por meio eletrônico ou mecânico, sem a prévia autorização da editora.

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RodRigues, João Augusto, 1957- estRAdAs d’águA : As hidRoviAs do BRAsil / João Augusto Rod-Rigues. - Rio de JAneiRo : Action ed., 2009. 144p. : il. isBn 978-85- 1. Rios - BRAsil. 2. hidRoviAs - BRAsil. 3. nAvegAção inteRioR - BRAsil. 4. tRAnspoRtes em águAs inteRioRes - BRAsil. i. título. ii. título: As hidRoviAs do BRAsil. 09-4268. cdd: 386.30981 cdu: 656.62(81)21.08.09 31.08.09 014687

“Edições adicionais desta obra, no todo ou em parte, somente serão realizadas com a anuência prévia da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ.”

RevisãoMariflor Rocha e Andrea Bivar