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    Esboo de balano da etnomusicologia no Brasil1

    Elizabeth Travassos

    Resumo: A partir da constatao de que est em curso a institucionalizao daetnomusicologia, no Brasil, comento quatro aspectos do contexto cultural eintelectual em que tal processo vem ocorrendo: (a) deslocamento do paradigma daevoluo nacional, que dominou a produo musicolgica brasileira; (b)crescimento da disciplina simultaneamente s discusses sobre a crise doconceito de cultura; (c) renovao das preocupaes com a ciso entre discursosonoro-musical e discurso verbal; (d) renovao das preocupaes com a indstriacultural e com a mercantilizao das prticas culturais.Palavras-chave: Etnomusicologia. Brasil.

    Abstract: This article deals with the Brazilian ethnomusicological studies. Mystarting point is the ongoing process of institutionalization of the Ethnomusicologyin our universities. I mention four aspects of the contemporary intellectual andcultural context in which this process occurs: (a) the displacement of thenationalization paradigm, previously hegemonic in the musicological production;(b) the recent discussion about the concept of culture; (c) the concern with thetension between music making and writing about music; (d) the concern with theindustry of culture and the commodification of the cultural practices.Keywords: Ethnomusicology. Brazil.

    Neste texto, reuno algumas observaes sobre a produo etnomusicolgicano contexto brasileiro. Menos do que um balano capaz de dar conta docampo, o texto expe algumas idias acerca das eventuais novidades que aetnomusicologia traz aos saberes sobre a cultura e a msica no Brasil eacerca das dificuldades que enfrenta no momento de sua institucionalizao.Trata-se, necessariamente, de um balano parcial, limitado pelos lugaresinstitucional, disciplinar e geogrfico que ocupo. Se cada vez mais difcilacompanhar a totalidade da produo oriunda dos Programas de Ps-Graduao em Msica, quem pode enfrentar o desafio de manter-se em diacom a totalidade da produo acadmica no Brasil que, de um modo ou deoutro, fala de msica?

    Alm das 608 dissertaes e teses listadas pela ANPPOM at 2002 (emMsica, Artes-Msica, Educao e Comunicao & Semitica), a rea de

    1 Agradeo aos organizadores da XV Reunio da Associao Nacional de

    Pesquisa e Ps-Graduao em Msica o convite para participar da Mesa-redondaMusicologia.

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    Msica conta com alguns peridicos estveis. Numa pesquisa no Banco deTeses da CAPES usando a palavra-chave msica como filtro, e considerandosomente a dcada compreendida entre 1992 e 2001, foram listadas 664dissertaes e teses distribudas nas mais diversas reas, da Educao Fsica

    Informtica, Psicologia, Odontologia... Do total, 177 originaram-se nosProgramas de Ps-Graduao em Msica, 78 nos Programas de Ps-Graduao em Letras, 60 em Artes (Teatro, Cinema, TV), 48 em Educao, 46em Comunicao (incluindo Comunicao & Semitica, Comunicao &Cultura Contempornea), 43 em Histria, 23 em Antropologia para citarmosapenas as disciplinas e campos de conhecimento que parecem ser os maisatrados pelas numerosas dimenses do vasto tema da msica.2 Nem preciso dizer que a busca linear a partir de uma palavra-chave pode incluirtrabalhos em que o tema figura como mera ilustrao, tanto quanto pode

    deixar escapar itens importantes para o balano da produo acadmica. Masa lista vale como evidncia de que a sub-rea da Msica (para usar aterminologia das reas do conhecimento adotada pelas agncias de fomento)no monopoliza a produo intelectual sobre esse tema que ,tradicionalmente, foco de discursos sobre a cultura brasileira. As instituiesacadmicas, alis, no detm o monoplio da produo intelectual sobremsica e concorrem com os estudiosos de msica popular, colecionadores,jornalistas, ONGs.

    Um balano do campo de estudos musicais no Brasil deve registrar, nosltimos anos, os passos importantes que foram dados para ainstitucionalizao da etnomusicologia entre ns: fundao da AssociaoBrasileira de Etnomusicologia (ABET), em julho de 2001 (no mbito do 36Conferncia Geral do International Council for Traditional Music, ocorrida noRio de J aneiro); realizao do I Encontro Nacional da ABET, em novembro de2002, em Recife; criao de Laboratrios de Etnomusicologia na UFRJ eUFMG. Esses passos reforam os ncleos de estudos etnomusicolgicosexistentes em Florianpolis, Porto Alegre, Salvador, com produo expressiva.

    Tudo isso somado, possvel afirmar que estamos testemunhando nosomente a atrao que a disciplina exerce sobre estudantes, mas tambm umreconhecimento mais efetivo da singularidade de sua contribuio ao conjuntode saberes sobre a cultura. Do ponto de vista da institucionalizao e,conseqentemente, da legitimao da disciplina no ambiente universitrio,houve um crescimento importante da etnomusicologia.

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    Agradeo a Edilberto J os de Macedo Fonseca a pesquisa no Banco de Tesesda CAPES.

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    Por um lado, os avanos na institucionalizao refletem a expanso do campoe os aspectos favorveis da conjuntura, dentre os quais destaco o retorno aopas de pesquisadores que estavam em formao no exterior e sua absoropelas Universidades. Em decorrncia, a disciplina conquistar, a mdio prazo,

    autonomia para reproduzir seus pesquisadores (espero que isso nosacrifique o dilogo com as disciplinas afins, saudvel e necessrio, dada aligao visceral que a etnomusicologia mantm com a teorizao naantropologia). Por outro lado, os avanos vm ocorrendo em contextosintelectual e cultural especficos, sobre os quais necessrio refletir. Como sesabe, os contextos no so dados, e sim delimitados a partir das perguntas doobservador, as quais pem em relevo algumas dimenses do fenmenoobservado. o que desejo fazer, tentando ir um pouco alm do ponto de vistainstitucional para considerar as novidades que a pesquisa etnomusicolgica

    traz.No mbito nacional, a implantao acadmica da etnomusicologiacorresponde superao do paradigma da nacionalizao que orientou asabordagens da msica desde o incio do sculo XX. Os saberes sobre amsica nasceram, no Brasil, sob o duplo signo dos ideais de progresso enao, os quais guiaram as indagaes da pioneira histria da msica feita noBrasil. Tratava-se de encontrar os fatos que comprovassem o percurso damsica brasileira em direo emancipao dos moldes europeus e

    aquisio de um perfil prprio uma histria teleolgica que se escrevia apartir dos valores e preocupaes do presente do historiador.3

    Esse paradigma deixou de ser hegemnico h algumas dcadas. De ordemnatural das coisas, passou a uma perspectiva possvel, propcia iluminaode determinados aspectos da vida musical e ao esquecimento de outros.Note-se que os grandes panoramas histricos da gnese e evoluo damsica nacional abrangiam a msica popular.4 Nas primeiras dcadas dosculo XX, a palavra folclore ainda no se consagrara entre ns paradesignar as tradies orais que se transmitem em circuitos independentes do

    mercado. O estudo da ento chamada msica popular girava em torno daidentificao das contribuies de cada uma das raas formadoras comose dizia para a sntese nacional.5 Havia, pois, coerncia terico-conceitual

    3 Ver os comentrios convergentes de Suzel Ana Reily (2001).4 Por exemplo, os de Renato Almeida (1929, 1942) e Mrio de Andrade (1972 e1991).5 A crtica ao paradigma da nacionalizao musical pode ser encontrada em

    numerosos autores (v., por exemplo, Wisnik 1982 e 1983, Vianna 1995, Mattos1993, Travassos 1997).

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    entre as pesquisas da histria da msica e do folclore musical. Asmetodologias de produo dos dados empricos em arquivos documentaisou em campo eram muito pouco discutidas, com algumas raras excees. 6As metodologias de anlise da msica incluindo-se a a notao de msicas

    de tradio oral tambm eram pouco problematizadas.Da mesma forma como os historiadores j no se aventuram nas narrativaspanormicas, os etnomusiclogos que herdam a rea temtica do Folclore no elegem a busca das origens tnicas de determinados traos culturais-musicais como seu problema mais importante. Alm disso, entrou em crise opostulado da complementaridade ideal entre msicas folk e erudita, aprimeira fornecendo o material ou o esprito da msica brasileira, a segunda aforma ou a tcnica que a elevariam a um patamar efetivamente artstico. Umadas decorrncias da especializao dos conhecimentos sobre cada uma dasdimenses das msicas produzidas no Brasil o menor trnsito entre histriada msica (com ntida separao entre historiadores da msica erudita ehistoriadores do campo da msica popular), etnomusicologia, teoria e anliseda msica (que tambm emergiu, no interregno, como disciplinamusicolgica).

    A institucionalizao da etnomusicologia no Brasil ocorre, pois, ao fim dahegemonia esttica do nacional-popular e num outro registro como um dosfrutos de uma redefinio do panorama dos saberes sobre a msica, mais

    especializados e mais independentes entre si. A disciplina interage ativamentecom esse panorama, aprofundando talvez sua redefinio. Um outro aspecto aser considerado o crescimento dos estudos acadmicos sobre msicasmediatizadas da era industrial e ps-industrial. Trata-se de temas fortementemarcados pela tradio das biografias e historiografias, que passa a serabordado com recursos da etnografia e de vrias vertentes da semitica.

    Trs livros recentemente publicados Feitio decente, de Carlos Sandroni

    (2001), Os sons do Rosrio, de Glaura Lucas (2002) e Voices of the Magi, deSuzel Ana Reily (2003) podem ser considerados exemplos dos rumos daetnomusicologia na medida em que se identificam com a disciplina, tm naetnografia um recurso importante e inspiram-se nas teorias e mtodosdesenvolvidos por etnomusiclogos. Os dois primeiros atestam odesenvolvimento da disciplina no Brasil; o terceiro, embora escrito por uma

    6 Entre elas, a preocupao de Mrio de Andrade com os procedimentos de coleta

    de msica, em campo, e com a socializao de metodologias de investigao dofolclore, nos anos 1930 (v. Andrade, 1983).

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    professora e pesquisadora da Queens University, em Belfast (Irlanda doNorte), tem origem, em parte, na tese de doutorado que a mesma defendeu naUniversidade de So Paulo, situando-se, pois, nos fluxos transnacionais daproduo acadmica. Menciono os trs livros por serem recentes, sem

    reincidir no preconceito evolucionista que os supe melhores por serem maisrecentes. Trata-se, efetivamente, de trabalhos de alta qualidade, mas poroutras razes.

    Convm lembrar que a literatura etnomusicolgica rarefeita, no Brasil, masdispe de ttulos importantes que no mencionarei porque a inteno no fazer, aqui, um inventrio comentado de obras. Mas quero deixar claro que ocomentrio dos ttulos recentes no implica nenhum esquecimento daimportncia que tm para a disciplina o aparecimento de A musicolgicaKamayur, de Rafael J os de Menezes Bastos ([1978]1999), Ubatuba noscantos das praias, de Kilza Setti (1985), publicados numa poca em quepoucas pessoas conheciam a palavra etnomusicologia. Talvez se possa incluirtambm nos fluxos transnacionais que cruzam o Brasil os livros Why Suysing, de Anthony Seeger (1987) no tanto porque trata de uma sociedadefisicamente localizada no territrio brasileiro, mas porque seu autor lecionoudurante alguns anos no Museu Nacional da UFRJ , instituio na qual formouantroplogos e Contribuio bantu na msica popular brasileira, de Kazadiwa Mukuna (2000) no tanto porque trata da identificao dos elementos de

    origem bantu na msica brasileira, mas porque seu autor esteve ligado, comodoutorando em Sociologia, Universidade de So Paulo. Alm desses, aproduo etnomusicolgica registra artigos e ensaios de alta qualidade,veiculados em peridicos ou coletneas, nacionais e internacionais, alm deCDs etnogrficos lamentavelmente, em pequeno nmero com fartacontextualizao analtica dos fonogramas.7

    H algumas dcadas, os temas das obras de Carlos Sandroni, Glaura Lucas eSuzel Reily respectivamente samba, reinados de Nossa Senhora do Rosrioe folias de reis s eram abordados seriamente por folcloristas e, no caso do

    samba, por estudiosos de msica popular trabalhando em espaos no-acadmicos. Sandroni rev o complexo da sncope com instrumentosconceituais da Etnomusicologia africanista. Alm de contribuir para aatualizao bibliogrfica, sempre importante, sua reviso incide sobre umelemento que ocupava lugar importante no paradigma da evoluo nacional (asncope, ndice sonoro do carter nacional da msica feita no Brasil). Glaura

    7 A Revista Latino Americana de Msica (editada pelo Prof. Gerard Bhague, da

    Universidade do Texas em Austin) um dos espaos que veiculam regularmente aproduo etnomusicolgica sobre o Brasil e oriunda do Brasil.

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    Lucas, por sua vez, descreve os estilos musicais das guardas do Reinado doRosrio (em duas comunidades mineiras) e correlaciona a configuraortmica de cada uma com suas funes rituais, ancoradas no relato mtico daapario da Nossa Senhora.8 O emprego do mtodo elaborado por Simha

    Arom e a microanlise do ritmo com os recursos da tecnologia digital devemser destacados pelo carter de novidade, entre ns. Suzel Reily, finalmente,descreve e analisa os estilos musicais reconhecidos pelos folies dascompanhias de reis na regio do ABC paulista, onde fez sua pesquisa decampo. A autora elabora um denso argumento sobre as possveis origenshistricas dos estilos mineiro e paulista, sobre as razes de suapermanncia e suas ressonncias para os folies que os praticam atualmente.A polifonia vocal do estilo mineiro, em que at 8 vozes se acumulam, ementradas progressivas, desencadeia associaes e emoes relacionadas

    com a ordenao moral da vida social assim, as vozes encantamritualmente, a cada performance, uma utopia de harmonia e integrao social.

    Os trabalhos vo muito alm dos aspectos que mencionei para ilustrar odeslocamento das indagaes dos estudiosos. Na medida em que elegemcomo problema a coerncia entre diferentes instncias da cultura coernciaentre estilos ou sistemas musicais, por um lado, e sistemas de valores,sociabilidades e rituais, por outro , Glaura Lucas e Suzel Reily alinham-secom vertentes importantes da etnomusicologia moderna (basicamente a que

    se institucionalizou nos Estados Unidos, nos anos 1950).

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    O dilogo com aantropologia norte-americana culturalista e funcionalista deu o tom dasteorizaes naquele momento e a disciplina constituiu-se no solo daspreocupaes com o carter sistmico da cultura, entendida como totalidade.Tornou-se imperativo, para o etnomusiclogo, demonstrar como a msicaespelha a cultura ou logo criticada esta formulao como a msica produze reproduz valores, identidades e grupos sociais.

    Numa frase feliz, Claude Lvi-Strauss (sem ser etnomusiclogo e semparticipar dos debates de que falo) sintetizou a perspectiva da cultura como

    totalidade estruturada, numa entrevista aos editores de Inharmoniques:

    ... h muitos ngulos de ataque e [...] todos eles nosconduzem ao conhecimento da sociedade. Pode-se serantroplogo social e comear pelos sistemas de parentesco,

    8 V. tambm Lucas (2002a).9

    V. as observaes de Bohlman (1992) sobre a histria da Etnomusicologia nosEUA.

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    pode-se ser lingista e comear pela lngua, pode-se serbotnico e comear pelas plantas, musiclogo e comearpela msica. Eu diria que todos esses caminhos levam aRoma 10

    Talvez o etnomusiclogo prefira dizer que sua Roma a msica, onde elechega tendo comeado pelo ritual, pela lngua, ou mesmo pelos pssaros(como Feld, 1982). Mas isso seria somente um jogo de palavras, pois aetnomusicologia nos ensina a desconfiar da universalidade daquilo que osenso comum ocidental chama de msica h algum tempo. Assim comoexercita continuamente a relativizao dos hbitos de escuta e dos critrios devalorao em nome da necessidade de compreender outras escalas de valor,

    o etnomusiclogo costuma dessubstancializar a idia de msica.11

    Os trabalhos recentemente produzidos trilham caminhos prprios, mas soargumentaes convincentes a favor da coerncia entre concepes eprticas musicais, por um lado, e sociabilidades, vises de mundo e rituais,por outro. Eles aparecem num momento em que se discute a crise doconceito sistmico de cultura (v. os comentrios de Sahlins 1997, Geertz2001) e podemos inclu-los nesse debate. A etnomusicologia institucionaliza-

    se no Brasil num momento em que se aponta seguidamente o mal-estar daps-modernidade no terreno das cincias humanas e as vicissitudes doconceito que a espinha dorsal da antropologia. Num mundo maiscompletamente interligado e mais intrincadamente compartimentalizado, emque o catlogo de identificaes disponveis se expande, contrai-se, muda deforma diz Clifford Geertz (2001:197) a viso do planeta repleto deunidades chamadas culturas expe sua inadequao. Nem preciso dizerque a crise repercutiu na etnomusicologia norte-americana: um longo artigo

    10 ...il y a une quantit dangles dattaque et [...] tous ces angles nous conduisent la connaissance de la socit. On peut tre anthropologue social et commencerpar les systmes de parent, on peut tre linguiste et commencer par la langue, onpeut tre botaniste et commencer par les plantes, musicologue et commencer parla musique. Et je dirais que tous ces chemins mnent Rome (Lvi-Strauss,1987:12).11 V., por exemplo, a definio de msica proposta por Seeger (1992): umainteno de fazer algo chamado msica, em oposio a outros tipos de sons, oconsenso de um grupo social acerca da musicalidade dos sons, a construo e

    uso de instrumentos, determinados usos do corpo, as emoes que acompanhamuma performance.

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    de Mark Slobin sobre as micromsicas do Ocidente fez soar o alarma: Noh nenhum sentido geral no sistema, nenhuma fora oculta que controle o fluirda cultura....12

    A etnomusicologia do catolicismo popular e dos reinados negros no Brasil

    contemporneo confirma a fecundidade daquela idia mestra de estabelecernexos entre idias, valores, ethos, relaes sociais e modos particulares deconceber e de praticar msica, sem incorrer na idealizao das culturas folkcomo unidades isoladas, ntegras e autnomas. Tanto Suzel Reily quantoGlaura Lucas trabalharam com habitantes das periferias metropolitanas eCarlos Sandroni ps a mo na massa da indstria cultural nascente no Rio deJ aneiro. Suzel lanou mo de Antonio Gramsci para pensar a cultura popularcomo cultura subalterna numa sociedade de classes os folies de reis comquem ela conviveu no habitam uma aldeia isolada. Sandroni faz uma anlisecuidados das vrias dices no clebre Pelo Telefone (retomando, conformereconhece, sugestes mais ou menos esquecidas de uma tese de doutoradode Flvio Silva), portanto das vrias vozes sociais que se entrecruzam notecido da cano: no uma anlise externalista de contextos histrico-sociais, mas uma demonstrao inspiradora do modo como o externo, osocial, se faz interno ao objeto musical analisado.13

    Apesar dos aspectos inovadores com relao bibliografia em portugus, aetnomusicologia produzida no Brasil continua dedicada s msicas pensadas

    como brasileiras. Esse confinamento temtico traduz a posio subordinadado pas na diviso do trabalho intelectual internacional e, talvez, resduos docomprometimento com o processo de construo nacional. A limitaotemtica, aliada posio marginal da lngua portuguesa no quadrointernacional da bibliografia cientfica e acadmica, tem como decorrncia arestrio do nmero de leitores potenciais.

    Outro aspecto do contexto intelectual a renovao das insatisfaes com aciso entre escrever/falar sobre msica e fazer msica. Devotado a uma

    msica que, em princpio, ele no pratica e sequer aprecia adequadamente, oetnomusiclogo estaria condenado, por definio, a falar sobre outras msicas mesmo aps seu perodo de imerso, durante o qual se torna aprendiz ecandidato eventual a uma bi-musicalidade. A ampliao efetiva do leque de

    12 There is no overall sense to the system, no hidden agency which controls theflow of culture... (Slobin, 1992:5).13 Estou usando as palavras de Antnio Cndido, escritas originalmente a

    propsito da relao entre literatura e sociedade, mas perfeitamente aplicveis srelaes entre outras produes simblicas e sociedade (1976).

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    objetos de estudo todas as msicas podem ser estudadas pelaetnomusicologia, afirmam os expoentes da disciplina abole aquela fatalidadee a reivindicao de unio das perspectivas terica e prtica comea a ganharmais sentido na medida mesmo em que a acelerao dos fluxos culturais pe

    em xeque qualquer iluso de culturas como unidades estanques, emcorrespondncia estrita com um grupo social e um territrio.

    Veja-se o libelo contra a fratura entre conhecimento, arte e ao poltica doetnomusiclogo Charles Keil, num debate que ocupou as pginas daEthnomusicology. O modelo para sua utopia de derrubada das barreiras entrefaculdades humanas (intelecto, intuio, emoo, anlise, sntese etc.) dadopelos estudos da performance (Performance Studies), um campotransdisciplinar do meio acadmico norte-americano. Na definio do prprioCharles Keil (parafraseando Richard Schechner, patrono dos estudos daperformance), trata-se de uma teoria integradora e ampla do jogo [play], ritual,artes e poltica14, que prope uma nova agenda etnomusicologia. No sproduzir conhecimento, mas intervir pela restaurao de capacidadeshumanas afogadas em tdio, ansiedade, consumismo (Keil, 1998:309). E eledescreve as vantagens da ampliao de escopo terico simultaneamente interveno poltica:

    Um melhor conhecimento cientfico do fazer musical(sociomusicologia) pode facilmente informar nosso fazer

    musical igualitrio (sociomusicologia aplicada) de tal formaque no iremos comprar o produto da indstria culturalporque no precisaremos dele, estaremos ocupados demaiscom a performance de cerimnias e o planejamento decelebraes. [...] Os estudos da performance prometemrecuperar o dramatismo de Burke [ contra a nfase no texto,atribuda a Clifford Geertz], reconduzem a ateno para omundo-como-acontecimento, mais do que para o mundo-como-vista, urgem-nos a atuar nossas crenas e ver que tipo

    de conhecimento emerge dessa atuao, fazem perguntasontolgicas tanto quanto epistemolgicas, e podem nosajudar a recolocar [....] as artes a servio dos fins dacomunidade (Keil, 1998:307-08).15

    14 ...an integrative, broad-spectrum theory of play, ritual, arts, and politics (Keil,1998:303).

    15 Better sciencing about musicking (sociomusicology) can easily inform our own

    egalitarian musicking (applied sociomusicology) so that we wont buy the cultureindustrys product because we wont need it, well be too busy performing

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    Ouvem-se ecos desse anseio holstico, entre ns, no movimento de recriaode espetculos e celebraes tradicionais por jovens citadinos, nonecessariamente de maneira articulada com discursos acadmicos sobre o

    painel disciplinar contemporneo, mas certamente tendo repercusses sobreele.16 Talvez uma das conquistas desse movimento seja a incorporao maisefetiva das vantagens de uma bi-musicalidade, tornada prtica corriqueirados ativistas de movimentos sociais e artistas interessados na pesquisa demsicas tradicionais.

    Da fala exaltada de Keil sobressai tambm a meno indstria da cultura,um tpico praticamente inescapvel quando se trata de estudar msica, masque reaparece com novas roupagens. Ainda que seja consenso, entre

    estudiosos, que demonizar a indstria cultural no faz avanar oconhecimento que se tem dela, e ainda que se saiba, tambm, que astradies antepem barreiras sua penetrao homognea, a indstria dacultura permanece como uma interrogao. Atualizando o debate entreapocalpticos e integrados, enfrentam-se velhos legitimistas (defensores dasculturas tradicionais, clssica e populares) e neo-populistas de mercado(que celebram as virtudes democrticas e liberadoras da civilizao industrial),nas palavras de Beatriz Sarlo (1997).

    As preocupaes recrudesceram no cenrio norte-americano e europeu emfuno da visibilidade da chamada world music. Smbolo do mundosupostamente sem fronteiras oriundo da globalizao, o rtulo comercialrecente tambm o aspecto da indstria cultural que mais impacto tem tidosobre a etnomusicologia. Um balano superficial das posies dosetnomusiclogos revela que a maioria deles ansiosa (como disse SteveFeld, 2000) e encara a world music com ceticismo. Reina a desconfiana deque a heterogeneidade de superfcie os franceses dizem msicas domundo esconda apenas uma msica (one world music).17. Subitamente

    capturados pela voracidade do mercado, os sons mais remotos das vozes einstrumentos raros dos povos no-ocidentais (e dos grupos sociais perifricos,

    ceremonies and planning celebrations [...] Performance Studies promises toreclaim Burkes dramatism, refocuses attention on world-as-event rather thanworld-as-view, urges us to enact our beliefs and see what knowledge emerges fromthe enactment, asks ontological as well as epistemological questions, and can helpus playfully put the arts back together again for community-serving purposes (Keil,1998:307-08).16 V. tambm Travassos (2002a).17 Expresso usada por Steve Feld (2000).

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    minoritrios e subalternos das sociedades ocidentais) passaram a entrar emmosaicos e fuses, fragmentados e recompostos em combinaes inusitadas.Para assombro dos etnomusiclogos, as chamadas msicas do mundoaparecem envoltas na pureza das razes, nas virtudes do multiculturalismo, do

    pluralismo esttico, das preocupaes com o meio-ambiente, tudo malescondendo a acelerao do processo de transformao das prticasmusicais em mercadorias (v. Mentjes, 1990; Lysloff, 1997; Lortat-J acob, 2000;Feld, 2000, entre muitos outros. A bibliografia sobre o tema vasta).

    verdade que a world music no aportou entre ns com o mesmo impacto e acategoria no entrou em nosso vocabulrio corrente. Como expoentes danossa conhecida MPB so premiados como campees de world music noscertames do mercado norte-americano, a categoria desencadeiaambigidades anlogas do nativismo e do folclorismo, poca dosmovimentos romnticos e modernista: a msica popular comercial feita noBrasil pode ser apropriada como extica nos Estados Unidos e na Europa,ao mesmo tempo em que a diversidade social, tnica e religiosa interna fazcom que a experincia da alteridade cultural, para os artistas brasileiros,dispense as viagens a outros continentes.

    Por um lado, os debates sobre a world music acabam por ganhar outro tomquando alcanam a etnomusicologia no Brasil; por outro, estamos assistindo afenmenos locais que parecem ser parte de movimentos mais amplos, de

    globalizao da cultura e (globalizao das) reaes locais globalizao. Tal o caso, parece-me, da redescoberta das msicas tradicionais nos anos1990, que traz baila, como nos debates internacionais, as relaes entremsicos profissionais integrados ao mercado e herdeiros de tradies locais,os direitos sobre patrimnios culturais e a mercantilizao das tradies.Movimentos de recriao das culturas tradicionais no esto divorciados dofenmeno e muitos deles situam-se no espao que J ean-Pierre Warnier (2000)chama de zona de captao da indstria cultural. Da mesma forma como osetnomusiclogos esto discutindo as dimenses ticas e polticas da worldmusic inseparveis de sua dimenso esttica , as produes culturais emusicais calcadas no saber e nas formas de expresso tradicionais tambmdevem ser olhadas sob o prisma da tica e da poltica.

    Desse esboo de balano, saliento a necessidade de multiplicar os ncleosacadmicos da disciplina para assegurar a formao de pessoal qualificado eem nmeros proporcionais s demandas mltiplas e variadas da sociedadebrasileira. Desde os grupos sociais tradicionalmente visitados poretnomusiclogos ndios, comunidades rurais e comunidades afro-

    descendentes at as heterogneas tribos e subculturas urbanas,

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    passando por disporas, enclaves de migrantes, msicas brasileiras fora doBrasil etc., h muito mais territrios temticos do que etnomusiclogosfazendo pesquisa, formados e apoiados institucionalmente. E como osbalanos so forosamente efmeros, espero que esta ltima frase se torne

    obsoleta em pouco tempo.

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    Elizabeth Travassos Doutora em Antropologia (UFRJ ). professora do InstitutoVilla-Lobos e do Mestrado em Msica Brasileira da UNI-RIO. Trabalhou naCoordenao de Folclore e Cultura Popular da Funarte, editando a sriefonogrfica Documentrio sonoro do Folclore brasileiro. Publicou artigos sobre ogrupo indgena Kayabi e sobre msicas populares no Brasil.