© Nomos Editora e Produtora Ltda, 2018

Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem autorização, por escrito, da editora.

Coordenação editorial - Rodrigo Duque EstradaDiagramação e arte da capa - Rafael Padilha LobatoCrédito da foto - João LaetRevisão técnica - Rodrigo Duque Estrada

1ª edição, 2018

Nomos

Av. Borges de Medeiros 1042, apto.84Centro, Porto Alegre, 90020-024

Contato: 51 982158018 / 55 981331775www.projetonomos.com

Facebook: @editoranomosInstagram: nomos.editora.produtora

B478f

Bento, Fábio RégioFreiBettoeosocialismopós-ateísta/FábioRégioBento.–

1. ed.–PortoAlegre:Nomos,2018.162p.

ISBN978-85-53164-05-9

1. Betto,Frei,1944-(Crhisto,CarlosAlbertoLibâneo,1944-).2. Socialismoereligião.3.Socialismoeigrejacatólica.I.Bento,FábioRégio.II.Título.

RCBI8-9097 CDD320.5315

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Fábio Régio Bento

- Porto Alegre - 2018

Obrigado

Anna,Catarina,Monique,Fábiopelaleitura,comentáriosesugestões.

AosdominicanosdaALN

Éprecisofugirdaideiaeconomicistadeprogresso.

Frei Betto

Índice

Prefácio ........................................................................... 09

Introdução ...................................................................... 12

PARTE I – O CONTEXTO DO TEXTO ............................. 20

Capítulo 1 - Origens exógenas e influência internacional do ateísmo soviético . ........................................................................ 21

1.1. Socialismo soviético e religião ..................................... 27 1.1.1. Lenin, socialismo e religião .................................... 291.2. Origens exógenas do ateísmo soviético ....................... 351.3. Sobre a persistência de uma tese exógena ................... 431.4. Marx e Lenin: aproximação que não foi criada por Marx ............................................................................. 451.5. Rosa Luxemburgo: Socialismo, movimento e religião . 51 1.5.1. Centralidade do movimento ................................... 51 1.5.2. Socialismo e religião ............................................... 55

PARTE II – O TEXTO NO CONTEXTO ............................ 61

Capítulo 2 - Frei Betto e o socialismo pós-ateísta ......................................................................... 62

2.1.Socialismoelaicidade...................................................632.1.1.TudocomeçouemManágua...................................642.2.FideleaReligião:repercussãodeumlivrosubversivo..692.2.1.PapasemCuba........................................................78

Capítulo 3 - Frei Betto e o socialismo popular .........................................................................82

3.1.Bettoeoscomitêsgestores...........................................853.2.Centralidadedabase.....................................................973.3.Sujeitosdaprojetaçãodautopia.................................1033.4.Sentidoleigoepolítico-teológicodacentralidadedabaseemFreiBetto.......................................................................110

Capítulo 4 - Aliado inesperado......................................................................118

4.1.Umpapaantissistêmicoepelacentralidadedabase.1204.1.1.IºEncontrocomosmovimentospopulares..........1204.1.2.MovimentospopulareseFrancisconaBolívia.....1234.2.BettoeFrancisco.........................................................130

Capítulo 5 - Fé e alfabetização política ......................................................................133

5.1.Agentepastoralealfabetizaçãopolítica.....................138

Conclusão ......................................................................146

Referências bibliográficas ....................................155

9

Prefácio

Qual é a função da religião e da religiosidade para arevolução? O quão autêntico, autônomo e inevitável é opapeldoateísmoparaopensamentomarxista?Dequeformaossoviéticosabsorverame,decertaforma,realizaramumaautofagia da relação entre a religião e a luta de classes?Quais pensamentos foram preteridos e obscurecidos nesseprocesso,ecomoopensamentoleigo,ateu,masnãoateísta,sobreviveuaosanosdeglóriadoateísmosoviético?AobradeFábioRégioBentotentaresponderalgumasdessasquestões.

Tendocomopontodepartidaanoçãodequeoateísmodo socialismo soviético não deriva do marxismo, mas defonteexternaaomarxismo,adotadaporLeninelevadaporeledentrodosocialismosoviético,oprofessorBentodissecao desenvolvimento dessa relação falaciosa entre ateísmo esocialismo.Eénessepontoqueapresenteobraoferecesuamaisintensaefascinantecontribuição,opapeldobrasileiroFreiBetto,emsuasandanças,falaseescritos,nainterpelaçãoentreoscatólicos,suaigreja,eosregimessocialistasporondepassou.Betto,uminternacionalistaporessência,muitoantesque o campo das Relações Internacionais fosse pensado eexecutadonoBrasil,atuounumaáreadadiplomaciadasmaisdelicadas,apaziguando,mas jamaispacificando,asrelaçõesentreaspartes.Bettoésinônimodeaçãoemovimento,porconseguinteagindopormeiodeprovocaçõesintelectuaisque

10

forçaramareflexãosobreateísmoesocialismoemHavana,PragaemesmoMoscou.

Bettoéopensamentoacadêmicoquenãosedesprendeda realidade, e o professor Bento retrata o peso de suasideiasnãosónareflexão,masnas transformaçõespolíticasenumarevoluçãodarevoluçãoporondepassou.ÉatravésdeBettoquepodemosentenderoconjuntoderitos, íconese mitos do socialismo soviético, ora exportado, como umsistemaconfessional, tãoreligiosoquantoa IgrejaCatólica,por exemplo. É através de Betto que compreendemos queoateísmodeMarxeraindividual,nãoproselitista.EécomBettoenasuaangústia,queacompanhamosodistanciamentodogovernoLuladasmesmasespecificidadesqueoprimeiroreforçouporondepassou,acentralidadedabase.Essabase,quedeveriaestarnocentroeemmovimento,foiabandonadaà letargia,pelaausênciadaalfabetizaçãopolíticaque tantoqueriaBetto.

Esseéoponto,aliás,queconectaFreiBettoaosocialismoemsuaessência,masnãoosocialismoateísta(confessional)dossoviéticos,osocialismodabasenotopo,queencontracoronaobradeRosaLuxemburgo,tambémdissecadacomcuidadonapresenteobra.EmRosa,viveepulsaoqueentendocomoum “antagonismo inevitável” com os socialistas soviéticos.Nãoresidenofocoafiguradolíderilustradoqueconduzamassa, mas a própria massa, com suas peculiaridades quedevemseraglutinadasàrevolução,talqualareligiosidade.

Enquanto religiosos e socialistas, tanto Betto quantoBento encontramumaliado inesperadonoPapaFrancisco.

11

Bergoglioéargentino,esuaposiçãoantissistêmicanomapa,reflete-seematuaçãoantissistêmicanapolíticainternacional.ÉFranciscoquerevisaopapeldaigrejaemrelaçãoaosistemacapitalistaeéFranciscoquerenovaopapeldabasenaigrejaeparaaigreja.Ondeantecessoresapontavamapossibilidadede transformação do capitalismo, Francisco aponta suairreversívelnecessidadedesubstituição.

Colocandoemfocoosmovimentospopulares,Franciscofala diretamente com Betto, e fala com Rosa Luxemburgo,e dialoga comquemespera o que o professor FábioBentochama de mudanças de ordem estrutural, pela superaçãode um sistema gerador da negação prática, cotidiana, dafraternidadeinter-humana.Dessaforma,aobraemquestãonãoafastaoscrentesdasuafénavidaeterna,masreforçaseupapelnatransformaçãodavidaterrena.

Fábio Nobre

Professor de Relações Internacionais na UniversidadeEstadual da Paraíba. Membro do Centro de Estudos emPolítica,RelaçõesInternacionaiseReligião(CEPRIR).

12

Introdução

Em2017,foramrealizadosvárioseventosparacelebraro primeiro centenário da Revolução Russa. Dessa forma,dadanossaparticipaçãonoCEPRIR-CentrodeEstudosemPolítica,RelaçõesInternacionaiseReligião,foi-nossolicitadauma palestra sobre Religião e Socialismo no contexto daRevoluçãode1917.

Noturbilhãodeleiturasevídeos-aulasobreaRevoluçãode 1917, associado aos dados obtidos empesquisa anterior(BENTO,2016),emergiuahipótesede trabalhodocapítuloprimeiro da presente pesquisa, a saber, que o ateísmo dosocialismosoviéticonãoderivadomarxismo,masde fonteexterna ao marxismo, adotada por Lenin e levada por eleparadentrodosocialismosoviético.Emseguida,talateísmosoviético foi exportado para os movimentos socialistasinternacionais como se fosse tese-dogma do marxismopara os movimentos e Estados socialistas. E tal equívocohermenêutico foi se popularizando internacionalmentepor obra dos movimentos anticomunistas que, no afã decombater o ateísmo, responsabilizavam-no a Marx, umpensador revolucionário sem nenhuma responsabilidadepelasinterpretaçõesdeLeninedoseusocialismosoviético.

A briga entre comunistas ateus de linha soviéticae católicos anticomunistas foi uma briga fundada num

13

equívocohermenêuticoatribuídoaMarx,masquedeMarxnãoé.Aliás,quandoMarxmorreu,Lenineraummeninode13anos.Assim,aduplaMarxeLeninnãofoiumacriaçãodeMarx,masdosleninistas.

Entretanto, emergiu a contestação intelectual desseateísmoleninista-soviéticoapartirdoladodedentromesmodomarxismo,naobradarevolucionáriaRosaLuxemburgo,contemporânea de Lenin, cuja interpretação das relaçõesentre socialismo e religião é radicalmente diferente dainterpretação leninista-soviética. Portanto, no capítuloprimeiro, trataremos sobre as origens do ateísmo soviéticoe sua contestação a partir do própriomarxismo, por RosaLuxemburgo,umarevolucionáriaateia,masnãoateísta.

Estáaquiocontextodonossotexto(capítuloprimeiro).Qual é, porém, o texto? A contestação prático-teórica daassociação entre socialismo e ateísmo pelo brasileiro FreiBetto,conhecidointernacionalmenteporsuasaçõespolíticaslocaiseinternacionaisesuavastaobraliterária.

OpensamentopolíticodeFreiBettoéoobjetocentraldessanossapesquisa,mastalpensamentonãosemanifestacomo tese academicista separada da realidade. O seupensamento se manifesta em suas ações e suas ações sedesenvolvem no contexto de conflitos históricos, políticosespecíficos.

Em Frei Betto fica ainda mais evidente que a brigaentre o comunismo - que seria ateu, por ser marxista,“materialista” - e as religiões, tratadas tout court como

14

resquíciodeirracionalidadedahumanidadepelospositivistasburgueses e pelos positivistas socialistas, é uma históriamuitomalcontadapeloscontendentesdessarinhairracionaldegaloscrenteseateusdispostosalutaratéaúltimapena.OmaterialismodeMarx, por exemplo, não ématerialismoconfessional (ateu), mas materialismo metodológico, laico.Elenão“prega”aexistêncianemanegaçãodaexistênciadeummundoespiritual.

Dessa forma, no capítulo segundo, trataremos sobrea crítica desenvolvida por Frei Betto à confessionalidade(ateísmo)dosocialismoe,nocasodosocialismocubano,suacolaboraçãodiretanadesconstruçãodessaconfessionalidadee substituição pela laicidade do socialismo cubano, como abandono também jurídico do ateísmo de Estado.Mas oque significa, para Betto, socialismo? Essa é a perguntade fundo do terceiro capítulo da presente pesquisa, sobreas características de sua posição antissistêmica e pelacentralidade da base. Depois, no quarto capítulo, veremosa proximidade involuntária de posições entre Frei Betto eum aliado inesperado, o argentino Jorge Bergoglio. Enfim,no quinto capítulo, no contexto da posição de Betto pelacentralidade da base, trataremos sobre as relações entre fécríticaealfabetizaçãopolítica.

A metodologia que utilizamos é a da compreensãohistórico-dialética das relações entre luta de classes eideologias confessionais de sujeitos coletivos específicosque se situam dentro e não fora dos conflitos estruturaisde classe, atuando como força teórico-prática confessionallegitimadoraoucontestadoradadesordemdeclassesfundada

15

napropriedadeprivadadosmeiosdeprodução.

Sobrearecorrentequestão:emqualdisciplinaacadêmicase insere nossa pesquisa? Vamos responder citando umepisódiode2016,umseminário internacionaldesociologiadareligiãonoqualumsociólogobrasileiroqueseapresentoucomo weberiano “pós-marxista”, reclamou, ao término desuaexposição,doquechamoude“hipertrofiadopolíticonoestudodareligiãopelasciênciassociaisnoBrasil”.

Com o intuito de verificar a autenticidade de talafirmação, folheando eletronicamente várias revistasacadêmicas brasileiras de antropologia, ciência política esociologia,tal“hipertrofiadopolíticonoestudodasreligiõesnas ciências sociais noBrasil” não foi pornós encontrada.Aocontrário.Emergiaumasituaçãodeatrofiadopolíticonoestudodas religiõespelas ciências sociaisnoBrasil.Váriosartigossobre religiãosomenteemrevistasdeantropologia,como“gêneroereligião”,“sexualidadeereligião”,outroscomtemáticas como “a importância do incenso de alecrim nasconexões entre as comunidades religiosas do lugar tal”, ousobre “a procissão tal e o incremento do turismo religiosonomunicípio tal”, “religião na terceira idade”, “religião namúsicadoartistafulanodetal”.

Muitopouco,porém,sobrepolíticaereligiãoe,quandohavia algo, era de tipopolítico-eleitoral: “o papel da igrejatal nas eleiçõesmunicipais do ano x na cidade tal”, ou “oimagináriopolíticodacomunidadeevangélicatalnaeleiçãodopastorfulanodetal”,o“usopolíticodatelevisãonapregaçãodaigrejatal”.Portanto,poucapolíticanoestudodareligião

16

e, quando havia algo, apenas com foco em microconflitos(conjunturais),quasenadasobremacroconflitos(estruturais).

Fenômenosemelhanteencontramostambémnoâmbitodepublicaçõeseletrônicasdecursosconfessionaisdeteologiaecursosleigosdeciênciasdareligião.Nocasodosprimeiros,váriaspublicaçõessobrequestõesdeordeminternadogrupodepertencimentodocursoconfessionalespecíficodeteologia.Em suma, em vez de hipertrofia, encontramos atrofia dopolíticonoestudodasreligiõesnasciênciassociaise,quandoemergiaopolítico,eradeformamaisconjuntural,comoseosmacroconflitospolíticos,estruturais,locais-internacionaisestivessemdeixadosdelado.

Entretanto,nessecontextoderelativaatrofiadopolíticonoestudodareligiãonasciênciassociaisnoBrasil,aexceçãoé,anossoaviso,MichaelLöwy,brasileiroresidentenaFrançacomumavastaproduçãoemlínguaportuguesanoterritórioinvestigativo de sua já decenal pesquisa sobre sociologiamarxistadareligião(QUERIDO,2016).

E,talvez,nossapesquisaseinsiranorastrodasociologiamarxistadareligiãodeLöwy,semresponsabilizá-lo,porém,pelascontradiçõesdenossainvestigação.

Todavia, mesmo considerando esta pesquisa comosituada no território epistemológico da sociologia políticada religião de Löwy, destacamos que ela não nasceu e sedesenvolveu num curso de Sociologia, mas de RelaçõesInternacionais.

17

Nasceu no contexto acadêmico (ensino, pesquisa,extensão)docursodegraduaçãoemRelaçõesInternacionaisdaUniversidadeFederaldoPampa,maisespecificamentenoâmbito da disciplina de Política, Relações Internacionais eReligião.

NoscursosdeRelaçõesInternacionaisdoBrasil,estudarRelaçõesInternacionaiseReligiãonãoéregrageral,masjáhá oferta da disciplina, como obrigatória ou optativa, emalgunscursosbrasileiros(CARLETTI,2017).

A temática já conta com a publicação de umlivro específico no Brasil, intitulado Religião e Relações Internacionais, publicado em 2016 pela Editora Juruá(Curitiba), organizado pela professora Anna Carletti, docurso de Relações Internacionais da Universidade Federaldo Pampa, e pelo professor Marcos Alan Ferreira, daUniversidade Federal da Paraíba, cujo quinto capítulo é denossaautoria.

Odebatesobreoencaixedossaberesnosfazpensarquevivemosumaespéciedeconflitoentreoreconhecimentodomultidisciplinarcomovaloreoapegosectáriopeloespecíficonoâmbitodaclassificaçãoerelaçãodesaberes.

Com essa pesquisa, em suma, o que queremos éclareza intelectual movidos pela tese segundo a qual aclareza intelectual ajuda a realizar também clareza factual.Escolhemos o pensamento político de Frei Betto comoobjetodeinvestigaçãoporque,pelasualinearidadeefirmeza(coerênciaideológica),nosparecerelevantetantodopontode

18

vistaacadêmicoquantopolítico.Bettoentrouemterritóriosantes considerados intransitáveis carregando as bagagensaxiológicasdeCristoedeMarx-consideradasincompatíveispelos positivistas socialistas e pelos reacionários católicos-, manifestando a incongruência de certos antagonismosquesãomuitomaisartificiaisdoquefáticos.Bettodesatouem vez de atarmais nós. E desatar os nós, no âmbito dascomplexas relações entre marxismo, socialismo e religião,podeajudaraevitarsofrimentosinúteisparacrenteseateusrevolucionáriosnassuasrelaçõespolíticascotidianas.

Autorde60livros,editadosnoBrasilenoexterior,FreiBetto nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1944. Estudoujornalismo,antropologia,filosofiaeteologia.

Fradedominicanoeescritor,ganhouem1982oJabuti,principalprêmioliteráriodoBrasil,concedidopelaCâmaraBrasileira do Livro, por seu livro dememórias Batismo deSangue(Rocco).Em1982,foieleitoIntelectualdoAnopelosescritores filiados àUnião Brasileira de Escritores, que lhederamoPrêmioJucaPatoporsuaobra“FideleaReligião”.

FoicoordenadordaANAMPOS(ArticulaçãoNacionaldeMovimentosPopulareseSindicais),participouda fundaçãodaCUT(CentralÚnicadosTrabalhadores)edaCMP(Centralde Movimentos Populares). Prestou assessoria à PastoralOperária do ABC (São Paulo), ao Instituto Cidadania (SãoPaulo) e às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). FoitambémconsultordoMovimentodosTrabalhadoresRuraisSemTerra(MST).

19

Em 2003 e 2004, atuou como Assessor Especial doPresidente da República durante o governo Lula, e comocoordenador de Mobilização Social do Programa FomeZero. Desde 2007, é membro do Conselho Consultivo daComissão Justiça e Paz de São Paulo. É sócio-fundador doProgramaTodospelaEducação.

PARTE I

O CONTEXTO DO TEXTO

21

Capítulo 1

Origens exógenas e influência internacional do ateísmo soviético

Nesteprimeirocapítulo,estudaremosasrelaçõesentrereligiãoesocialismosoviéticocomoobjetivodeidentificaras características e origens da posição ateísta, em vez delaica, adotada pela URSS. Tal escolha do ateísmo comoposição confessional do socialismo soviético promoveua desqualificação moral e exclusão profissional dosrevolucionários crentes no âmbito das políticas públicaslocais e exportou tal política de exclusão para os paísessob a área de influência política da URSS. Sustentaremosque tal posição adotada pelo socialismo soviético é deorigem exógena ao marxismo. Mesmo sendo Karl Marxateu,omaterialismomarxistaématerialismo leigo, focadona análise das relaçõesmateriais de produção, não sendo,portanto,materialismoconfessional(ateuoucrente).

Oateísmosoviético,conformeexplicaremosaolongodocapítulo,foiumaconstruçãojáleninistaqueseráseguidaporliderançassucessivascomosubsistemadosistemasoviético.

A temática das relações práticas e teóricas entresocialismo, marxismo e religião, frequentemente tratadade formapanfletáriapelosamigose inimigosdas religiões,

22

condicionados por suas simpatias e antipatias, gostos edesgostos,é,defato,multifacetária.

Certamente,umdospesquisadoresdestacadosnotemadoestudocientíficodasrelaçõesentrereligiãoemarxismoéosociólogoMichaelLöwy,comamplaproduçãodeartigos,aulasregistradasemvídeosobreatemáticaelivros,umdelesMarxismo e Teologia da Libertação (1991), no qual analisao surgimento, desenvolvimento e características dessemovimentodecristãosdeesquerdaconhecidocomoTeologiadaLibertação. As mudanças de lugar social praticadas por setoresda IgrejaCatólicano âmbito latino-americanodas lutasdeclasse geraram certa perturbação intelectual entre aquelesmarxistas habituados a repetir o mantra não-marxista,mesmosecitadoporMarx, segundooquala religiãoseriasempreeemqualquercircunstânciaópiodopovo.SegundoLöwy(1991,p.08),“jáétempodosmarxistassedaremcontadequequalquercoisadenovoestáocorrendo”.

Afrase“areligiãoéoópiodopovo”nãoédeMarx,mascitada porMarx em 1843. Segundo Löwy (1998, p.157), talafirmaçãoéanterioràMarx,comdiferentesgradações“emKant,Herder,Feuerbach,BrunoBaueremuitosoutros”.Alémdisso,continuaLöwy(Ibidem,p.158),emMarxelarefere-seàreligiãoem“seuduplocaráter”,contraditório,dialético,“àsvezes legitimaçãoda sociedade existente, às vezesprotestocontratalsociedade”,ouseja,nãoapenasópio.Defato,notextoCrítica da filosofia do Direito de Hegel, de 1843, KarlMarx(2010,p.145)escreveuliteralmenteque

23

amisériareligiosaconstituiaomesmotempoaexpressãodamisériarealeoprotestocontraamisériareal.Areligiãoéosuspirodacriaturaoprimida,oânimodeummundosemcoração,assim como o espírito de estados de coisasembrutecidos.Elaéoópiodopovo.

Ópioouprotesto,portanto.AposiçãoanalíticamarxistaemrelaçãoàreligiãoéaquecomeçaaemergiremA Ideologia Alemã(1846).Nele,areligiãoéinterpretadacomoideologia,nessecaso,confessional,ao ladododireito,dafilosofia,noâmbito da superestrutura, com a finalidade de conservaras relações materiais de produção, a hegemonia da classedominante, ou, no caso das ideologias revolucionárias, desubvertertaisrelações(BENTO,2015-16,p.18-20).

Aquestão é complexaenos impõeumapergunta:noamploediversificadouniversoclassificadocomo“marxista”,predominaaatualizaçãodavisãosobreareligião,comoofezLöwy,ouaindapersisteatese-dogmadareligiãocomoópio?

EmA Guerra dos deuses – Religião e Política na América Latina,Löwy(2000,p.120)sustentouque“omarxismodeixoude ser um sistema fechado e rígido sujeito à autoridadeideológicadeMoscouesetornouumavezmaisumaculturapluralista, uma forma dinâmica de pensamento, aberta aváriasopiniõese,portanto,acessívelaumanovainterpretaçãocristã”.

Löwy é um marxista não-dogmático em relação àhermenêuticadareligião,comosuaspublicaçõesnosindicam,mas será que podemos afirmar que essa seja a tendência

24

geral?PorocasiãodaFestadaLiberaçãodoNazifascismonaItália,nodia25deabrilde2017,forampornósentrevistados,emRoma(PortaSanPaolo),algunsmembrosjovenseadultosde partidos e correntes comunistas sobre as relações entrereligiãoemarxismo.Osqueforamentrevistadosconheciamo movimento da Teologia da Libertação, reconheciam quehouve experiências de colaboração prática entremarxistasleigosereligiososnaAméricaLatina,masaindasustentavama tese da desqualificação intelectual da epistemologia dasreligiões.Anossoaviso,emergiaainterpretaçãodareligiãocomo resquício de irracionalidade da humanidade, a sereliminadocomasubstituiçãodaracionalidadereligiosapelaracionalidadecientífica.Éevidentequeessanãoéaposiçãode todos osmarxistas leigos hodiernos. Citamos esse casoapenascomocontrapontoemrelaçãoaooutrodado,tambémreal, da aberturade setoresmarxistas leigos em relaçãoaoreconhecimento intelectual e político das potencialidadesrevolucionáriasdealgumasreligiões.

Qual a origem dessa posição que sustenta a tese daincompatibilidade constitutiva entre marxismo, socialismoe religiãomesmoquando a ideologia confessional fosse decaráter revolucionário? Vejamos três possíveis hipóteseshermenêuticas de trabalho candidatas a explicar essaassociaçãoentresocialismoeateísmo:

Hipótese 1:

Religiãoópio.AtesedaassociaçãoentrereligiãocomoópioeMarxjáfoiexplicadaecontestadaporLöwy,conformepode ser visto na pesquisa supracitada de nossa autoria

25

(BENTO,2015).Emsíntese,areligiãopodeserópio,quandoéinstrumentalizadaealiena,diretaouindiretamente,parafinsdemanutençãodaestrutura,maspodeser,também,alavancarevolucionária, conforme ocorreu nas “revoluções com fé”na Nicarágua e em El Salvador (Ibidem). Assim, a teoriamarxista da religiãonão é a da religião reduzida sempre aópio,masadareligiãocomoideologiaconfessional,situadanasuperestruturacomoobjetivodejustificarasdominaçõesdeclasse,mas,também,comapossibilidaderealdecondenara dominação de classe e promover, com hermenêuticasteológicasdarevolução,processoshistóricosdeemancipaçãopopular(Ibidem).

Hipótese 2:

Internacionalanticomunistacatólica.DesdeasegundametadedoséculoXIX,váriospapasepreladosdoaltocleropromoveramteóricaepraticamenteposiçõesanticomunistasqueforamdifundidaspelomundo,etalanticomunismocatólicointernacional influenciou intelectualmente movimentosanticomunistas leigos e católicos no Chile, na Argentina,noVietnã,noBrasil.Porém,se,deumlado,houveeaindaexiste esse movimento anticomunista de matriz católicaconservadora,deoutrolado,apartirdoConcílioVaticanoII,váriasteologiaspolíticascríticas,católicasedeevangélicoshistóricos, como a Teologia Política de Metz, a Teologiada Esperança, deMoltmann, a Teologia da Revolução, deComblin, e a Teologia da Libertação ganharam espaço nomundo.NocasodaTeologiadaLibertação,teremosnãoapenasummovimento intelectualde teólogos antissistêmicos emrelação ao capitalismo, mas um vasto movimento social

26

que, a partir daAmérica do Sul eCentral influenciaránosprocessoshistóricosdeemancipaçãopopular,criandoassimumaespéciedeInternacionalCristãdaLibertação(BENTO,2016). Dessa forma, assim como existe essa internacionalcatólicada religiãoópio,paraa conservaçãodo statusquocapitalista(internacionalanticomunista),poroutroladohá,também, esse movimento local e internacional da religião“urtiga”,religiãocríticaemrelaçãoaocapitalismoque,hoje(2018),contacomoapoiotambémdeumpapa,Francisco,quedesdeosprimeirosanosdeseupontificadosurpreendeucomsuacríticamordazdosistemainternacionalcapitalista:

A causa principal da pobreza é um sistemaeconômico que deslocou a pessoa do centroe ali colocou o deus dinheiro; um sistemaeconômicoqueexclui,excluisempre:excluiascrianças,osidosos,osjovens,semtrabalho...equecriaaculturadodescarteemquevivemos(PAPAFRANCISCO,2015).

Descartamos,assim,ashipóteses1e2.

Hipótese 3:

A terceira hipótese é a que nos acompanhará nessepercurso investigativo: a identificação e adoção doateísmo como posição constitutiva do socialismo foi umaconstruçãodosocialismosoviéticoenãodeMarx,divulgadainternacionalmente como se fosse tese marxista sobre asrelaçõesentremarxismoereligião.Omaterialismomarxista,porém,nãoéteológiconemfilosófico,nãoéateunemcrente,maslaico,sociológico.

27

1.1. Socialismo soviético e religião

Iniciaremos citando dois relatos históricos, sobreNicarágua e Cuba, que emergiram no final da pesquisaprecedente(BENTO,2016).

Nicarágua

Nodia11deabrilde2014,umasexta-feira,ementrevistaque nos concedeu pela manhã, em Manágua, na sede doMovimiento Fe y Alegria, o sacerdote jesuíta FernandoCardenal,quefoiministrodeEstadodajuntarevolucionáriasandinista, nos explicou que, em 1975, Carlos FonsecaAmador, fundador da Frente Sandinista de LibertaçãoNacional, o convidou para uma reunião clandestina, juntoa seu irmão Ernesto Cardenal, também ele sacerdote. Ocomandante Carlos Fonseca, que seria assassinado algunsanosdepois,explicou-lhesomotivodareunião.NorelatodepadreFernando,disse-lhesFonseca:

AquinaNicaráguavamosfazerumarevolução.Precisamos de vocês, sacerdotes. Lá emMoscouelesnãoentendemqueonossopovoéreligiosoerevolucionário.Aquinósvamosfazerumarevoluçãopopular.Umarevoluçãocom fé. E precisamos de vocês, sacerdotes”.Fonsecacompreendeuafépopular.Disseque“essa fé precisa de sacerdotes como vocês.O povo não precisa deixar de ser cristãopara ser revolucionário”. Na Nicarágua, a fénão era ópio somente,mas urtiga, fé urtiga,revolucionária. Nós, sacerdotes, não fomos

28

combater diretamente, pois nos disseramqueosjovensguerrilheirossabiamfazerissomelhor do que nós. Atuamos nas relaçõesinternacionais, promovendo a revolução.Somente eu visitei mais de 80 cidades daEuropaexplicandonossarevolução.PaísesdaAméricaCentraledoSulqueapoiavamnossarevoluçãoaajudavamcomarmas,dinheiroetransportedearmas1.

Percebe-se,portanto,pelorelato,quehouveum“choquefilosófico” entreMoscou e Carlos Fonseca sobre a questãoreligiosa,queoptoupelainculturaçãodomarxismoemterraslatino-americanasemvezdeseguiracartilhaateístafixadapelosocialismosoviético.

Cuba

EmsuavisitaaCuba,emsetembrode1985,aconvitedo próprio governo socialista cubano, o teólogo brasileiroClodovis Boff (1989, p.35) destacou que “um pontoproblemático para a Igreja emCuba” é a educação que seministra nas escolas, com o ensinamento de “postuladosateus”:

Tive nas mãos um livro de “filosofiamaterialista”, usado nas escolas, onde seensinacom todasas letrasque Jesuseraummitoinventandonosprimeirosséculosequeserviuaospobresparaseconsolaremdesua

1 OutrosdetalhessobreessareuniãoclandestinaentreCarlosFonsecaAmadoreosirmãossacerdotespodemserverificadosnolivrodememóriasdeCardenal:FernandoCardenalSJ. Juntoamipueblo,consurevolución-Memorias(2009).

29

condiçãooprimida...FalamosdissoaoMinistrodaEducação,dizendoquetalsituaçãonãoédemodoalgumsustentávelnemmesmodopontodevistadacríticahistórica.Elenosdisseque,por falta de literatura educativa própria, oslivros de formação ideológica que usam nasescolas são, em sua maioria, traduzidos dorussoedeoutraslínguas.

Cuba,conformeocomentáriodoMinistrodaEducação,havia,porém,adotado tal livrodematrizsoviéticanãoporrazõesdeconvicçãofilosófica,masdenecessidadeeconômica.Moscouestava,portanto,exportandoateísmocomosefosseconstitutivodosocialismoemarxismo.

1.1.1. Lenin, socialismo e religião

ARússiaImperialpré-revolucionáriatinhaaseuserviço“a burocracia civil, a polícia política, as Forças Armadase a Igreja Ortodoxa” (REIS FILHO, 2003, p.16). Todavia, odesprezo pela religião no socialismo soviético não é merareaçãoaoconservadorismopolíticodaIgrejaOrtodoxaRussa.

SegundoasíntesedeReisFilho(Ibidem,p.18),

Paraconsolidaraordem,o tsarismocontavacom a Igreja Ortodoxa. Ela conservavauma certa autonomia, não podendo serconsiderada ummero instrumento de podertsarista.Seriatambémumequívocoimaginá-la como um todo monolítico. Havia umagrande diversidade entre os altos hierarcasimersosnavidamundanadosgrandescentros

30

urbanos, os monges recolhidos em oraçõesnos mosteiros fechados, e os párocos (ospopes) de aldeia compartilhando com osfiéisasagruraseascircunstânciasdavidademiséria,de lamaedevodca,nosconfinsdoscampos russos. Entretanto, era uma Igrejacomprometida, emgrandemedida, comumareligiosidade cristã conformista e resignada,subserviente, subordinada funcionalmenteaopoder tsarista,dependentedele (subsídiose emolumentos), supervisionada nos altosescalões pelo procurador do Santo Sínodo,nomeadopelotsar.Adivisaoficialdoimpério–umTsar,umaNação,umaFéeaconvicçãodequeMoscoueraaencarnaçãodaTerceiraRoma,sededeumcristianismoíntegro,aindanãocorrompidopelastentaçõesdomundo–faziadaOrtodoxiaumareligiãooficial,mesmoporque o tsar era um soberano de direitodivino, o que trazia óbvias implicações nasrelaçõesentreoPodereaReligião.

Essa posição hegemônica da Igreja Ortodoxa e o usopolítico dela pelo tsarismo manifestou-se também apósos conflitos de 1905, ou revolução de 1905, quando, comoforma de aumentar a repressão e impedir a dispersão naRússia Imperial, o tsarismo “inclinou-se por uma políticaultrachauvinista de russificação”, substituindo as políticasde integraçãopela“imposiçãoda línguarussaedareligiãoortodoxacomolínguaereligiãooficiaisdoEstado”(Ibidem,p.49).Foram,assim,represadososelementosconsideradosdesubversãopelaRússiaImperialpormeiodareligiãoortodoxaeidiomacomoformadepadronizaçãoparafinsdeunidadepolíticadosistemapré-revolucionário.

31

É desse período o texto de Vladimir Lenin intituladoSocialismoeReligião(SotsializmiReligia),publicadoem03dedezembrode1905nonúmero28darevistaNovaia Zhizn (NovaVida),ondeencontramosumLenin(1905)que,deumlado, sustenta o “ateísmo científico” e, de outro, permite apresençadecrentesrevolucionáriosnopartido:

Aunidadedessalutarealmenterevolucionáriada classe oprimida pela criação do paraísona terra émais importante para nós do quea unidade de opiniões dos proletários sobreoparaísonocéu.Eisporquenãodeclaramosnem devemos declarar nosso ateísmo emnosso programa; eis por que não proibimosnem devemos proibir aos proletários queconservaramvestígiosdosvelhospreconceitosde aproximar-se de nosso partido. Semprepregaremosaconcepçãocientíficadomundo,e é indispensável que lutemos contra aincoerência dos “cristãos”, mas isso nãosignifica de modo algum que se deva pôr aquestão religiosa em primeiro lugar, o qualdemaneiraalgumalhepertence,nemquesedeva permitir a dispersão das forças da lutaeconômicaepolíticarealmenterevolucionáriaporcausadeopiniõesoudelíriosinsignificantesque perdem rapidamente todo significadopolíticoe são rapidamente jogadosno ferro-velhopeloprópriocursododesenvolvimentoeconômico.

A acolhida dos crentes indicada por Lenin manifestasentidoinstrumental:devemseracolhidoscomseus“delíriosinsignificantes”,porissoarejeiçãodoateísmonoprograma,oqueafastariaaprioriossocialistascrentes,masissoporque

32

Lenin acreditava que com o “curso do desenvolvimentoeconômico” os crentes socialistas continuariam sendosocialistasmasjogariamno“ferro-velho”osseus“vestígiosdosvelhospreconceitos”.

Lenin reproduz a velha condenação liberal-burguesa,positivista,dareligiãodestinadaaodeclínioporserresíduode irracionalidade da humanidade. Para o materialismoburguês,defato,a“irracionalidade”religiosatípicadeumaetapa“primitiva”dahistóriadahumanidadeseriasuperadacom o advento da ciência positivista. Esta libertaria ahumanidade das trevas dessa ignorância pré-positivista,conforme a teoria comtiana da Lei dos Três Estados,apresentadaquandotratasobrea“superioridademental”doespíritopositivoemseulivrointituladoDiscurso preliminar sobre o espírito positivo(COMTE,1848).

Segundo Lenin, o “progresso econômico” e a luzda ciência libertariam também os socialistas crentes dastrevas irracionais da superstição (religião como ilusão),ou seja, ele não se dissocia da avaliação que a burguesialiberaladotouparacombaterareligiãotradicionalquedavasuporte ideológico ao poder monárquico. Pelo contrário,adere aomaterialismoburguês como se fosse primo-irmãodomaterialismomarxista,assumeojulgamentoburguêsdareligiãocomopróprio, interpretandoosocialismocientíficocomo socialismo iluminista-positivista. Portanto, não setratou apenas de condenar politicamente a religião comoópio dopovo, situadahistoricamente como cola ideológicaconfessional legitimadora da hegemonia das classesdominantes.Leninnãofezapenasacríticapolítica,histórica,

33

da“religiãoópio”,masarejeiçãocientificistatout courtdela.Tolerou o ingresso de socialistas crentes, não permitindoa oficializaçãodo ateísmonoprogramadopartido, porqueacreditavaqueacrençanoateísmocientíficotomariaolugarentãoocupadopelascrençasreligiosas.

ParaLenin(1905,s/p),“ooperárioconscientemoderno,formadopelagrandeindústriafabrileesclarecidopelavidaurbana, repele com desprezo os preconceitos religiosos”. Eainda:“Oproletariadomodernopõe-seaoladodosocialismo,que se vale da ciência na luta contra o nevoeiro religiosoe libertaosoperáriosda fénavidaapósamortepormeiode sua arregimentação para uma verdadeira luta por umavidaterrenamelhor”(Ibidem).Emsuma,percebemosaquiatransposiçãodoateísmocientificistaburguêsparaoâmbitodosocialismo.

Lenineraateu,comoMarxtambémo foi,oqueéumdado biográfico, descritivo. Porém, transformar o ateísmoemdoutrinafilosóficadosocialismosoviético,comoocorreudesdeLenin,jáéumdadoprescritivo,dematriziluminista-positivista, com consequências político-institucionais deexclusão por razões de crença no âmbito do socialismosoviéticoesuaáreainternacionaldeinfluência.

Emseutextode1905,Leninnãoapenassustentouqueareligião“deveserdeclaradaumassuntoprivado”(Ibidem),aliás, outra tese típica da burguesia liberal revolucionária,masdeclarouqueo“nevoeiroreligioso”deveriasercombatido.Permite, de um lado, que socialistas crentes ingressem nopartidoesustenta,deoutro,que“nósfundamosnossopartido,

34

o POSDR (Partido Operário Social-Democrata da Rússia),entre outras coisas, precisamente para essa luta contra oentontecimento religioso dos operários” (Ibidem). Ou seja,emvezdeanalisarareligiãoapenasdopontodevistadesualocalizaçãohistórico-políticanalutadeclasses,aanatemizado ponto de vista de sua existência como racionalidade epertencimentoespecíficos.Alémdisso,quandoafirmouque“nossoprogramabaseia-setodonumaconcepçãocientífica,asaber,materialistadomundo”(Ibidem),misturouaanálisedas relações histórico-materiais de produção (materialismomarxista)comessasuametafísicadoateísmo(materialismoconfessional,ateu).

Lenin (1905) destacou, em relação aoprogramaqueopartidodeveriaseguir,que“nossapropagandatambémincluinecessariamenteapropagandadoateísmo” (Ibidem).Dessaforma, não exigiu a renúncia à fé religiosa dos socialistascrentes, mas, paradoxalmente, sustentou que deveriamadotar, como regra de partido, a “propaganda do ateísmo”,recorrendo,nodecorrerdessasuareflexãoiluministaaEngelsparajustificarsuaposição:

Teremos agora, provavelmente, de seguiro conselho que Engels deu certa vez aossocialistas alemães: traduzir e difundirmaciçamente a literatura iluminista e ateístafrancesadoséculoXVIII(Ibidem).

Portanto,aquiéexplicitadooquejáaparecedeformaimplícitaemoutraspartesdoseutexto:oateísmomilitantedeLenin,queeleapresentacomoprogramadepropagandade partido, deriva da sua adesão ao ateísmo da burguesiailuminista, ingrediente típico da ideologia burguesa do

35

progresso, que considera a racionalidade religiosa comosuperstição irracionalquedesapareceriagradualmentecomoprogressodaciência.Ejustificaessasuaoperaçãopolítico-intelectual recorrendo à autoridade intelectual de Engels.Dessaforma,Lenininsereoateísmoiluministaburguêscomofundamentodosocialismosoviético.

1.2. Origens exógenas do ateísmo soviético

Osprocessosdesecularizaçãodasociedadeelaicizaçãodos Estados e escolas foram capitaneados pela burguesiarevolucionária emergente em luta contra o antigo regimemonárquico-clerical, que se sustentava ideologicamenteem bases confessionais. Era preciso derrubar a construçãoculturalsegundoaqualoreiestariavinculadoaDeus,oqueeraimportanteemtermosdeadesãodossúditosaosistemamonárquico.Aburguesia,dessaforma,nadisputadepodercomoreiprecisavadesconstruirtalassociaçãoentreDeusnocéuereinaterrae,quemsabe,assumirelamesmaaposiçãodeabençoada(legitimada)porDeuscomonovaclassedirigente,revolucionária,portadoradeprogressoeprosperidadegeral.

Para derrubar a monarquia, portanto, seria precisoderrubartambémaideologiaconfessionalqueasustentava.Ou seja, o iluminismo (francês) antes e o positivismodepois não propunham a negação da religião como meraquestão metafísica de intelectuais de academia, mas comoquestão política voltada para a substituição da hegemoniamonárquico-clerical pela hegemonia burguesa: substituiçãodo poder dos reis e clérigos pelo poder dos industriais ecientistasburgueses.

36

O terreno da luta se dava no âmbito do modo deprodução e, também, no âmbito da reprodução ideológicavoltadaàmanutençãodessemododeprodução.Dessaforma,laicizaçãodoEstadoesecularizaçãodasociedadenãoforamobrasda“humanidade”nemdoacaso,nemda“ciência”,masuma necessidade da revolução burguesa na construção desuahegemonia.Somentecomaderrubadadoantigoregimeocorrerá certa reconciliação entre burguesia e religião, porobra de parte do protestantismo calvinista, que legitimoureligiosamenteo“homemdenegócios”,dandoaoburguêsesuas atividades capitalistas, antes consideradas abjetas, umsignificado ético-religioso, conforme constatouMaxWeber(2004)emA Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Na sua luta contra a hegemonia monárquico-clerical,porém, a burguesia revolucionária fechou conventos,suprimiu ordens e congregações religiosas, apropriou-se de bens eclesiásticos, passou freiras e padres na lâminada guilhotina, e celebrou, na Catedral de Notre-Dame, emnovembro de 1793, a Festa da Deusa Razão, que libertariaa “humanidade”das trevasda religião (MARTINA,1995,p.15-17).Açõesquefaziampartedo“sonhodeRobespierrededescristianizaraFrança”(Ibidem,p.21).

Segundo Lönne (1991, p. 95), a “hostilidade contra aigrejaecontraapráticareligiosa,defato,partiadaburguesiae, sobretudo, daquela burguesia liberal-profissional queestavanalinhadefrentenarevolução”.Assim,comoEstadoliberal-burguês,sepassadaconfessionalidadedeEstado,dosséculosanteriores,aoEstadolaicista,maisantirreligiosodoquelaico(SPINELLI,1988,p.59-63).

37

Sendoassim,quandoLeninafirmouqueos socialistasdeveriam dar continuidade à luta ateísta do iluminismofrancês,ficoumanifestaaausênciaderupturadelecomesseingredientetípicodaideologiaburguesadoprogressoqueéo“ateísmocientífico”.

A respeito dessa ausência de ruptura entre socialistase valores da burguesia, no livro Capitalismo histórico e civilização capitalista, tratando sobre o futuro dosmovimentos antissistêmicos internacionais, ImmanuelWallerstein(2007,p.84)destacouque“aadesãomarxistaaomodelo evolucionário de progresso tem sido uma enormearmadilha,daqualossocialistassócomeçaramadesconfiarrecentemente”.Eainda:“Atéagora,a ‘revoluçãoproletária’tem se inspirado, emmaior oumenor grau, na ‘revoluçãoburguesa’” (Ibidem, p.91). Onde se insere também areproduçãodoateísmoburguês.

SeguindocomWallerstein(Ibidem,p.75-76),

Desde o começo, a variante socialista dosmovimentos antissistêmicos sempre foicomprometida com o progresso científico.Desejoso de se distinguir de outros que elemesmocriticoucomo‘utópicos’,Marxafirmouestar defendendo o ‘socialismo científico’.Seus escritos enfatizaram as maneiras comoo capitalismo era ‘progressista’. O conceitode que o socialismo surgiria primeiro nospaísesmais‘avançados’sugeriaumprogressomedianteoqualosocialismosedesenvolveriaapartirdo(eemcontraposiçãoao)avançodocapitalismo.Arevoluçãosocialistaemulariae

38

viria depois da ‘revolução burguesa’.Algunsteóricos posteriores chegaram a argumentarqueeradeverdossocialistasapoiararevoluçãoburguesa naqueles países em que ela aindanãotivesseocorrido.

Dessa forma, em algumas situações, o socialismo deMarx,científico,masnãopositivista, foi interpretadocomosocialismo positivista, continuidade da ideologia burguesado progresso que vincula a revolução socialista ao sistemade acumulação incessante de capital e outros ingredientesburguesescorrelatos,comooateísmoiluminista,queLeninsustentoucomovalortambémparaosmovimentossocialistas.Emtaiscasos,emvezderevolucionária,“aestratégiaclássicada esquerda foi parte do cimento integrador da civilizaçãocapitalista”(WALLERSTEIN,2007,p.131).

Wallerstein,aocontrário,criticaocapitalismohistóricoesuaideologiadoprogressoporque,aseuaviso,osistemadaacumulaçãopermanenteeincessantedecapitalpiorouomundoemvezdemelhorá-lo(Ibidem,p.82).Paraele,“mesmoumcrítico tão resolutodo capitalismohistórico comoKarlMarx deu grande ênfase ao seu papel historicamenteprogressista. Eu não acredito nisso, a menos que por‘progressista’, queiramos dizer que ele é historicamenteposterior” (Ibidem, p.38). Por isso, sua consideração porMarxcomosendouma“figuramonumental”,asertratado,:asertratado,porém,“comoumcamaradadelutas”quesabiatantoquantopoderiasabercomasinformaçõesdeseutempo(Ibidem,p.10,11).

Essa ausência de ruptura com a ideologia burguesado progresso, no que se refere ao pensamento deMarx, é

39

temáticapolêmicacarregadadecontrapontos.EmrelaçãoaLenin,porém,oateísmocientificistaburguêscomoexpressãodeprogressoestáali,noseutextode1905sobreSocialismoeReligião.Orevolucionáriorussolevou,defato,paradentrodosocialismosoviético,eemnomedeEngels,ateseiluministada religião como “entontecimento” coletivo (LENIN, 1905).Tese-previsãopropagandística infundadadopontodevistahistórico-científico,dadoqueasreligiõesnãodesapareceramnemdeixaramdeinfluenciar,masmodificaramsuaformadeinfluenciar Estados e organizações locais e internacionaiscontemporâneas(CARLETTI;FERREIRA,2016).

Dessaforma,asmedidasdecombateàreligiãoqueforamdesenvolvidas ao longodos anosnaURSS enosEstados epartidossobsuainfluênciaforamcoerentescomessalógicaadotadaporLenindoduplocombatedareligião:pormeioda“ciência”iluminista-positivista,assimiladaagorapelaciênciasocialista(positivismosocialista)edaeliminaçãodapobrezavia“progresso”econômico.

Foiessainterpretaçãodematriziluministadofenômenoreligioso,impostacomodecisãodevanguardadirigista,quesetornoudogmaconstitutivoeincontestesobreasreligiõesnosocialismosoviético,apesardaforteambivalênciavalorativacontida nas palavras “atraso” e “progresso” associadas àciência e religião. Ambivalência, porém, que foi assumidacomosefossetesecientíficapelopositivismosoviético.

Defato,segundoReisFilho(2003,p.82),

Entre os bolcheviques, formara-se muitocedo o consenso, vinculado à ortodoxia

40

social-democrata, de que o Partido detinhaa verdade científica do processo histórico.Assim, não havia alternativa às formulaçõesoficiais do Partido, pois ninguém podia terrazão contra ele. Essas ideias, ancoradasem profundas convicções, atribuíam àpolítica um caráter científico, autorizandoe legitimando tendências autoritárias,agrilhoando as discussões: quem poderiaquestionar uma decisão científica, quempoderia ousar contrariar o Partido, únicointérpretequalificadodosinteresseshistóricosdo proletariado? Tratava-se de concepçõescompartilhadas por todos os discípulos deLenin...

Publicações como a revista mensal ilustrada O Bezbozhnik (SemDeus),queapareceupelaprimeiraveznaURSS no Natal de 1922, e que foi largamente distribuída,moviamalutacontraareligiãonãoporrazõespolíticas,masemnomeda“ciência”,espéciededeusaleigaquepositivistasburguesesesoviéticostinhamemcomum.

Oirônicodopositivismosocialistaéqueareligiãonãofoi reduzida à esfera privada, como recomendava Lenin,nemeliminadapelo“progressodaciência”,nemmeramenteseparadadoEstado.Naverdade,opositivismosoviéticofoiseapropriando,comojáofizeraantesopositivismoburguês,de rituais constitutivos da religião, ressignificando-os ecriando“cultossocialistas”deEstado.Exemplosdissosãoamumificação de Lenin, as peregrinações-procissões ao seumausoléu, e a transformação, na sequência, de Stalin em“GuiaSupremo,oGrandeChefe,oMaquinistadaLocomotivada História” (Ibidem, p.102), “pai do mundo do trabalho,

41

corifeudasciências”(Ibidem,p.118),a“maisaltaautoridadecientífica do mundo” (LÖWY, 2013, p.215). O positivismosoviético criou ritos, heróis, liturgia e iconoclastia própria,comoofizeraantesoEstadopositivista-burguês.

Depois, em fevereiro de 1956, com os informes sobreStalin apresentados por Kruchov durante o XX CongressodoPartidoComunistadaUniãoSoviética, a ressignificaçãoreligiosacontinuou,mas,agora,“osemideusviravademônio”(REISFILHO,2003,p.122).Assim,namodificaçãocontinuadadesseprocessodeateísmocomcultodeEstado, “retirou-seocorpodeStalindomausoléuondedescansavaao ladodeLenin; rebatizou-se Stalingrado, símbolo maior da GrandeGuerraPátria,atribuindo-lheoprosaiconomedeVolgogrado”(Ibidem,p.127).

Emsuma,levandoparadentrodosocialismosoviéticoa hermenêutica cientificista do positivismo burguês,cravou-se nele o prego do preconceitometafísico. Trocou-se omaterialismo histórico deMarx por ummaterialismoconfessional (ateísmo). Substituiu-se a crítica política dopapeldossujeitoscoletivosdotadosdeideologiaconfessionalpelacríticaepistemológico-burguesaquecombateareligiãoemsi.Efoiissoquegerousituaçõespermanentesdeexclusãoda religiãonaURSSpormotivos externos aomaterialismolaicodomarxismo.DeacordocomMilhazes(2012,p.69),

Entre1929e1934,cercade40milsacerdotesemonges foramvítimas de repressão, tendocinco mil sido assassinados, o número detemplosabertosdesceude28.500para10mil(em 1914, o número de igrejas ativas era de

42

67.100). Em 1932, as autoridades comunistassoviéticas anunciaram a realização do‘quinquénioantirreligioso’,quecolocoucomoobjetivodestruirtodosostemplose‘opróprioconceito de Deus’. Esta nova campanhaprovocou prisões emmassa e desterro entreo clero ortodoxo. O número de detençõesde bispos foi tão grande que obrigou ometropolita Serguei a dissolver o Sínodo daIgreja Ortodoxa Russa (órgão máximo destaIgreja)a18deMaiode1935

De fato, no contexto da Segunda Guerra, quando sebuscouaunidadepatriotarussatambémpormeiodaIgrejaOrtodoxa-comoobservouEnricoVigna(2015)emseuartigosobreO Papel da Igreja Ortodoxa Russa na Grande Guerra Patriótica e na vitória sobre o nazifascismo-,atesedoateísmocontinuoufirmecomodogmaoficialdosocialismosoviéticomesmocomoreconhecimentodaboaatuaçãodosortodoxossoviéticos na guerra. Assim, no outono de 1944 o comitêcentraldopartidocomunistadeclarouquefossem“evitadasaçõesrepressivascontraareligiãoeaIgreja”,recomendando,porém,que“alutaantirreligiosa”continuassesendoconduzida“noplanoideológico”,noâmbitoda“propagandacientífico-educativa”.Emoutraspalavras,oscrentessoviéticos foramàs trincheirascombateronazifascismo,emnomedapátriarussa,mascontinuaramcomidentidadecivildepatriotasdesegundacategoriaapenaspelofatodeseremcrentes,segundoadogmáticaateístadosocialismosoviético,tese-crençaquecontinuaráemvigornaURSSatéseudeclíniofinal,conformeo relato que veremos a seguir feito pelo teólogo ClodovisBoff.

43

1.3. Sobre a persistência de uma tese exógena

O teólogo brasileiro Clodovis Boff fez parte de umadelegação de pesquisadores que esteve na União Soviéticaduranteduassemanas,entrejunhoejulhode1987,emviagemde estudos e debates a convite da Igreja Ortodoxa Russa.Naquelaocasião,odirigentesoviéticoKonstantinKhartchev,presidentedoConselhoparaAssuntosReligiososdaUniãoSoviética,explicou-lhesque,sendoo“Partidoideologicamenteateu”,“oscrentesnãopodempertenceraseusquadros,nãochegandoaocuparpostosdedireçãonasociedade” (BOFF,1989, p.66). Isso confirma, portanto, a persistência datese apriorística da luta contra a racionalidade religiosa,independentementedaposiçãohistórico-políticadossujeitoscoletivosconfessionaisnalutadeclasses.KhartchevdefendeuoateísmocomosendoconstitutivodoPartido,recorrendoaargumentoscientificistassemelhantesaosusadosporLeninem1905: “É ateuporque representa a vanguardahistórica,a frentemais avançada da consciência de um povo” (apudBOFF,1989,p.77).

Questionado porClodovis Boff a respeito da aberturaaos socialistas crentes praticada por outros partidoscomunistas, em outros lugares do mundo, Khartchevrespondeu: “Respeitamos o caminho dos partidos irmãos,mas nossa posição é outra” (Ibidem, p.77). Ora, em umEstado cuja Constituição conferia ao Partido a funçãode guia, competindo-lhe “definir a perspectiva geral dodesenvolvimentodasociedade”(art.06),esseconfessionalismo(ateísmo) de partido acabava sendo, também, na prática,partedoEstado,assegurandoinstitucionalmenteaexclusão

44

profissional,pormotivodefé,dosrevolucionárioscrentesnosocialismosoviético.

Em suma, a desqualificação em si da religião,mesmoquando dotada de posições políticas progressistas,permaneceucomodogmasoviéticodesdesuaorigemleninistaatéseudeclínio,sustentadacomosefossetesemarxista.

DuranteessasuaestadanaentãoURSS,ClodovisBoff(Ibidem,p.79)constatoutambémque

Os homens do Partido, com efeito, estãoconvencidosdequeaposiçãoateiarepresentao nível mais avançado de consciência. Adiscussão que tivemos com intelectuais daAcademia de Ciências de Moscou o deixouclaro.(...)Agente,porém,podeperguntarseaquestão(dequaléoestágiomaisavançadoda consciência: a religião ou o ateísmo) sedecide politicamente, comosmeios de forçade que dispõe todo Estado, ou se não deveantes ser resolvida por via própria, ou seja,pela expressão livre e confronto público dasprópriasideias.

Econcluiu:

NaUnião Soviética, o leninismo, para quemoateísmoéessencialaomarxismo,tornou-sedogmaa crer enãomaisdiretivaa se testarna prática. E se a prática protesta contra aideologia? É a prática que está errada. Hoje(1987)areligiãonãorepresentamaisnaUniãoSoviéticarealmenteumaforçaantissocialista,nem mesmo talvez uma verdadeira ameaça

45

antissoviética.Contudo, surpreendentementeaideologiaateiafica,passandoosfatosparaosegundoplano(Ibidem,p.79).

Osocialismosoviético,portanto,inseriunacompreensãoleiga do materialismo histórico a metafísica do ateísmoontológicoapriorístico.Etalinterpretaçãonãotevesomenteconsequênciasacadêmicas,mashistórico-políticas.Produziusofrimento entre os revolucionários crentes, tratados comosocialistas “atrasados”, de segunda categoria apenas porrazãodesuascrençasreligiosas.

O ateísmo como tese-dogma do socialismo soviéticoforneceu também munição desnecessária aos movimentosanticomunistasdetipoconfessional,e“desacreditouoprojetosocialista e o movimento revolucionário junto às massaspopulares do mundo, majoritariamente religiosas” (BOFF,1989,p.81).Tudoisso,porém,nãofoiproduçãodeMarx,masdeLeninedosocialismosoviético.

1.4. Marx e Lenin: aproximação que não foi criada por Marx

Entre o materialismo histórico-crítico de Marx e o“materialismocontemplativo”deFeuerbach(9ªTese),Lenin,por algummotivo que desconhecemos, posicionou-semaisparaosegundodoqueparaodeMarxnoqueserefereaoquesito de interpretação das ideologias confessionais noâmbito da luta de classes. Lenin não citou Feuerbach emseu texto de 1905, mas seu “materialismo contemplativo”estáimplicitamentealinoqueserefereàreligião.Quemele

46

citouexplicitamente,comovimos,foiEngels,parajustificaradefesadamilitânciaateístailuministadaburguesiafrancesacomoparteconstitutivadopacotedevaloresdosocialismosoviético.

Ora, recorrer aEngelspara justificar essa sua escolhanosparece forade lugar.Engelseraateu,porém,dopontode vista analítico, conforme emerge em suaCarta a Bloch (21/09/1890),elesustentaatese(marxista)daconexãoentrerelações materiais de produção e reproduções ideológicas(inclusiveasconfessionais):

Segundoaconcepçãomaterialistadahistória,o fator que emúltima instânciadetermina ahistóriaéaproduçãoeareproduçãodavidareal. Nem Marx nem eu nunca afirmamosmais do que isso. Se alguém tergiversadizendo que o fator econômico é o únicodeterminante, converte aquela tese numafrase vazia, abstrata, absurda. A situaçãoeconômica é a base,mas os diversos fatoresdasuperestrutura–asformaspolíticasdalutadeclasseseseusresultados,asConstituiçõesque, uma vez ganha uma batalha, sãoredigidaspelaclassevitoriosaetc.,asformasjurídicas,emesmoosreflexosde todasestaslutas reais no cérebro dos participantes, asteoriaspolíticas,jurídicas,filosóficas,asideiasreligiosaseoseudesenvolvimentoulterioratéserem convertidas em sistemas dogmáticos– exercem igualmente a sua ação sobre ocursodaslutashistóricase,emmuitoscasos,determinam predominantemente sua forma(ENGELS,1975,p.520-521).

47

A responsabilidade pelo ateísmo do socialismosoviético, portanto, não é de Engels, mas de Lenin. FoiLenin quem sustentou documentalmente que os socialistasdeveriam combater a religião em si, dando continuidade àmilitânciaateístadoiluminismofrancês.

No textosupracitado,vemosqueEngels,aocontrário,sustentaqueasideiasreligiosas,aoladodeoutroselementosideológicosdasuperestrutura,funcionaisàmanutençãodasrelações de produção, não são apenas reflexo, mas podemser,também,causa.Dequalquerforma,causaoureflexo,oucausaereflexo(conexão),atesedeEngelséadacompreensãohistórico-científica de um fenômeno complexo (religião)que apenas em bate-papo de botequim poderia ser (des)classificadocomo“ferro-velho”ou“bolormedieval”(LENIN,1905)enãonumtextocomaresdedocumento,comoodeLenin(1905),sobreasrelaçõesentresocialismoereligião.

Engels não tratou de forma panfletária essa temáticacomplexa nem mesmo em seus textos de juventude. Defato,emA Ideologia Alemã (1846)MarxeEngels(2007,p.47)explicaramque

as ideias da classe dominante são, em cadaépoca, as ideias dominantes, isto é, a classequeéaforçamaterialdominantedasociedadeé, ao mesmo tempo, sua força espiritualdominante.Aclassequetemàsuadisposiçãoosmeiosdaproduçãomaterialdispõetambémdosmeiosdaproduçãoespiritual,demodoquea ela estão submetidos aproximadamente aomesmo tempo os pensamentos daqueles aosquaisfaltamosmeiosdaproduçãoespiritual.

48

Ideologias confessionais podem ser parceirasconservadoras das classes dominantes, mas podem ser,também, parceiras subversivas das classes dominadas.ConformedestacouMichaelLöwy(1998,p.161),

aprincipalcontribuiçãodeMarxàsociologiada religião foi a de que esta, a religião, erasimplesmente uma das formas da ‘produçãoespiritual’, cuja história não pode serdesvinculadadodesenvolvimentoeconômicoesocialglobaldasociedade.

MarxeEngelsnãoforammilitantesdoproselitismodoateísmo,masateuscriadoresde“umnovomododeanálisedareligião,baseadonoestudodosvínculosentrealteraçõeseconômicas,conflitosdeclasseetransformaçõesreligiosas”(Ibidem,p.170).

NocasodeMarx,outrodado relevanteéque, emsuacartade23novembrode1871aFriedrichBolte,elerejeitoufirmementeoqueclassificoucomo“programadeproposiçõespequeno-burguesas” deMikhail Bakunin (1814-1876), ondeorussosustentou,entreoutrasproposições,quedeveriaserimposto, de antemão, “o ateísmo como dogma obrigatórioparaosmembrosdaInternacional”(MARX,2003,s/p).

Alémdisso,nosEstatutosdaAssociaçãoInternacionaldosTrabalhadores,desuaautoria,Marx(1982,s/p)sustentouque

todas as sociedades e indivíduos a elafiliados reconhecerão a verdade, a justiça,e a moral como base de suas relações

49

recíprocas e para com a humanidade emgeral, independentemente de cor, credo ounacionalidade(Ibidem).

Nadademilitânciaateísta,portanto,nostextosdoateuMarx, ao contrário dosmilitantes russos Lenin e Bakunin.Nãovemos,portanto,relaçãodecontinuidadeentreLenineMarxnamaneiradeinterpretarideologiasconfessionais,masdiferenças significativas de metodologia e conteúdo entreelesnessatemáticafática.

Aliás,oacoplamentoMarxeLeninnão foicriaçãodoprimeiro.Aexpressãomarxismo-leninismofoiumacriaçãodos leninistas. E a leninista é uma entre as interpretaçõesdo marxismo. A mais famosa, mas não necessariamentevinculante.QuandoMarxmorreu,em14demarçode1883,Lenineraumadolescentede13anos.

Marx,portanto,nãoinventouoleninismo.Apesardisso,algunseventosrealizadosem2017nocontextodocentenárioda Revolução Russa de 1917 pareciam compreender omarxismo como propriedade intelectual desse pacotesoviético-leninistaqueenvolveasdivergênciaseconfluênciasentreleninismo,trotskismo,stalinismo,comoseomarxismofosseprisioneiroperpétuodojáfalecidosocialismosoviético. Emsuma,hávidaforadojáfindosovietismo.Hávidamarxista forado leninismoedo trotskismo.Nesse sentido,noquedizrespeitoàsrelaçõesentresocialismoereligião,orumodaprimeirarevoluçãosocialistapoderiatersidooutrose o pensamento crítico da revolucionária marxista RosaLuxemburgo (1871–1919), contemporânea de Lenin (1870

50

–1924),tivessesidolevadoemconsideração.Emvezdelida,porém,elafoicensurada.

O socialismo soviético censurou as reflexões deRosa Luxemburgo durante o longo período de duração dahegemonialeninistanomovimentosocialistainternacional.E a exaltação de Rosa Luxemburgo como revolucionáriadeterminadaserviaparafinsmenosnobres,comoodeimpediroconhecimentodesuateoriamarxistarevolucionáriatípica,divergente em relação a Lenin e bolcheviques e, por isso,consideradas erráticas pelos leninistas. Em Moscou, o seutexto considerado “maldito”,A Revolução Russa, censuradodurantedécadas,foipublicadopelaprimeiravezsóem1990.

ComodestacouIsabelLoureiro(2011,p.VI),haviaumaespéciedeobrigatoriedadedesecombaterosassimchamados“erroshermenêuticosdoluxemburguismo”,eesse

silênciosófoirompidonofimdosanos1960.As rebeliões estudantis varreram o mundoem 1968 e a luta por reformas nos paísese nos partidos comunistas, em rejeição aomodelosoviético,foramdeterminantesparaaredescobertadasideiasdeRosaLuxemburgo.

Emrelaçãoàreligião,aposiçãodeRosafoibemdiferentedaquelaadotadaporLeninepelosocialismosoviético.

51

1.5. Rosa Luxemburgo: Socialismo, movimento e religião

Rosa Luxemburgo fez seus estudos e apresentou suaposiçãosobresocialismoereligiãosemreferênciasaoutrossocialistas. A referência crítica dela a Lenin diz respeitoà sua posição contrária ao centralismo de vanguarda – amolduradogmáticadoleninismo–quemantevesobcustódiacarcerária a rejeição também da fé religiosa, impondo oateísmo como dogma dirigista até o final da URSS. Porisso, veremos antes a posição crítica de Rosa Luxemburgoem relação ao centralismo leninista para depois entrarmosem sua visão sobre as relações entre religião e socialismo,tambémessaradicalmentediferentedaleninista.Aimposiçãodo ateísmo pelo leninismo se situa, em suma, no contextometodológicomaisamplodeseucentralismodevanguarda.Tantoamoldura(centralismodevanguarda)quantoapinturado ateísmo produzidas pelo leninismo foram criticadasresolutamente pela revolucionária Rosa Luxemburgo desdeumpontodevistaestritamentelaico-marxista.

1.5.1. Centralidade do movimento

EmQuestões de Organização da Social-democracia Russa, publicadoem1903-1904,RosaLuxemburgo(apudLOUREIRO,2011a,p.158)destacouque

oestabelecimentodacentralizaçãonasocial-democraciasobreestesdoisprincípios–acegasubordinação, até nos menores detalhes, daatividadedetodasasorganizaçõespartidárias

52

a um poder central, que sozinho pensa, criae decide por todos, assim como a rigorosaseparação entre o núcleo organizado dopartidoeomeio revolucionárioqueocerca,talcomoédefendidoporLênin–parece-nosuma transposição mecânica dos princípiosorganizativos do movimento blanquista decírculos de conspiradores para omovimentosocial-democratadasmassasoperárias.

A corrente do movimento socialista francês dirigidapor Louis-Auguste Blanquí (1805-1881) sustentava quea emancipação do proletariado seria obra conspiratóriade minorias de intelectuais e não resultado da ação dosmovimentos. Ao contestar tal centralismo, Luxemburgo(Ibidem, p.158) quer, de fato, destacar que nos processosrevolucionários, “a social-democracia não está ligada àorganizaçãodaclasseoperária,elaéoprópriomovimentodaclasseoperária”.Dessaforma,paraela

o ultracentralismo preconizado por Lêninparece-nos, em toda a sua essência, serportador,nãodeumespíritopositivoecriador,masdoespíritoestérildoguarda-noturno.Suapreocupaçãoconsiste,sobretudo,emcontrolaraatividadepartidáriaenãoemfecundá-la,emrestringiromovimentoenãoemdesenvolvê-lo, em importuná-lo e não em unificá-lo(Ibidem,p.163).

Tal centralismo, que reprime omovimento no afã decontrolá-lo,nãoseria,segundoela,marxista,mascontrárioao “método de pensamento histórico-dialético” (Ibidem,p.166), e, ainda, “os erros cometidos por um movimentooperário verdadeiramente revolucionário são, do ponto de

53

vistahistórico,infinitamentemaisfecundosevaliososqueainfalibilidadedomelhor‘comitêcentral’”(Ibidem,p.175).

RosaLuxemburgo(Ibidem,p.166)classificaessapolíticadocomitêcentraldesecriar“modelosabstratosdevalidadegeral e absoluta”, como “omaior pecado contra o ‘espíritosanto’ do marxismo, contra o seu método de pensamentohistórico-dialético”.

EmA Revolução Russa, textode1918,arevolucionáriaafirmou compreender as razões de “Lênin e seuscompanheiros”nocontextodifícildoprocessorevolucionário,destacando, porém que “o perigo começa quando queremfazerdanecessidadevirtude”,recomendandoaoproletariadointernacional “os equívocos introduzidos na Rússia pornecessidade e coerção” como “modelo da tática socialista”,prestandoassim“ummauserviçoaosocialismointernacional,por amor do qual lutaram e sofreram” (apud LOUREIRO,2011b,p.211).

Nesse seu textode 1918, Luxemburgo associaLenin eTrotsky como partidários do mesmo modelo centralista,destacandoque “opressuposto tácitoda teoriadaditaduranosentidoLênin-Trotskyédequeatransformaçãosocialistaseriaumacoisaparaaqualopartidorevolucionáriotemnobolsoumareceitapronta,quesóprecisadeenergiaparaserrealizada”(Ibidem,p.206).

Aseuaviso,porém,aenergianecessáriaàconstruçãohistórica do socialismo não está na vanguarda, mas nomovimento revolucionário: Em vez de “prender o partido

54

nas malhas de uma ditadura intelectual do órgão central”(apudLOUREIRO,2011a,p.431),“éprecisoquetodaamassapopularparticipe.Senãoosocialismoédecretado,outorgadoporumadúziadeintelectuaisfechadosnumgabinete”(apudLOUREIRO,2011b,p.207).

A crítica de Rosa Luxemburgo ao centralismo devanguardaé,defato,mordaz:“Osocialismo,porsuapróprianatureza, não pode ser outorgado nem introduzido pordecreto. Ele pressupõe uma série de medidas coercitivas– contra a propriedade etc. Pode-se decretar o negativo, adestruição,masnãoopositivo,aconstrução”(Ibidem,p.206-207),pois “sóumavida fervilhanteesementraveschegaamil formasnovas, improvisações,mantéma forçacriadora,corrigeelamesmaseuserros”(Ibidem,p.207).

A argumentação segundo a qual a construção dosocialismo depende da energia criativa, revolucionária queseencontranomovimento,remeteopensamentoaMarxeEngels(2007,p.38)que,emA Ideologia Alemã,destacaram:

O comunismo não é para nós um estado decoisas que deve ser instaurado, um Idealparaoqual a realidadedeverá sedirecionar.Chamamosdecomunismoomovimentorealquesuperaoestadodecoisasatual.

Eénessemovimentodebasequeestão,alémdasenergiasleigas, também as potenciais energias revolucionárias dematriz confessional que atuam em sentido mobilizador,como ocorreu nas “revoluções com fé” na Nicarágua e ElSalvador(BENTO,2016).

55

1.5.2. Socialismo e religião

Em A Igreja e o Socialismo, texto de 1905, RosaLuxemburgosedissociadomaterialismovulgar (metafísicoe dogmático) e analisa a religião desde um ponto de vistahistórico-crítico,nocontextointrafísicodalutadeclasses.

Apartirde sua interpretaçãopeculiardo cristianismoprimitivo, a revolucionária sustentou que o discursoreacionário pregado desde os púlpitos por clérigosconservadoresnãoderivadocristianismo,masdasuanegação(apud LOUREIRO, 2011a, p. 177-178). E, para justificarsua posição, apresenta uma série de citações de teólogosclássicos,fundadoresdaéticasocialcristã,sobreatemáticada comunhão de bens como característica constitutiva docristianismo primitivo (Ibidem, p.188-191). Entretanto,mesmoreconhecendoaradicalidadecontidanessaformadecomunhãodebens:“acomunhãodeusoeralevadatãolongequeentreasprimeirascomunidadescristãsasrefeiçõeseramrealizadas comunitariamente” (Ibidem, p.185), Luxemburgo(Ibidem,p.183)sugereoquepodemoschamardequalificaçãoestruturaldacomunhãodebensdocristianismoprimitivo:

A exigência da propriedade comumproclamada pelos cristãos não se referia aosmeios de produção, mas apenas aos bensde consumo, isto é, eles não reivindicavamque a terra e os instrumentos de trabalhopertencessema todos,masapenasque todosrepartissementre si casas, roupas, alimentose produtos para o consumo humano. Deonde surgiam essas riquezas, os comunistascristãos não se preocupavam. O trabalho

56

continuava a ser obrigação dos escravos. Opovo cristão reivindicava apenas que os quepossuíam a riqueza distribuíssem para usocomum,aderindoassimàreligiãocristã,equetodos desfrutassem dela fraternamente e emigualdade.

Ouseja,acomunhãodebensdocristianismoprimitivonãoatingiraoníveldosmeiosdeproduçãocomoformadese superar estruturalmente as desigualdades entre ricos epobres:

Nósqueremosnãoqueosricosdividamcomospobres,masquedeixemdeexistir ricosepobres. E isso somente é possível quandoa fontede toda a riqueza, a terra e todososoutros meios e instrumentos de trabalho,for propriedade coletiva de todo o povotrabalhador,queiráproduzirparasipróprioosobjetosindispensáveissegundoanecessidadedetodos(Ibidem,p.186-187).

Rosa Luxemburgo reconhece a legitimidade doensinamento social dos “comunistas-cristãos” (Ibidem,p.186), com o qual os clérigos que critica não estariamsendo coerentes. Ela sugere, porém, a qualificação desse“comunismo”dosprimeiroscristãos(Ibidem,p.188)pormeiodacoletivizaçãonãodequalquerformadepropriedade,masdapropriedadeprivadadosmeiosdeprodução.

Essa lacuna na comunhão de bens do cristianismoprimitivo não fora intencional, mas por ausência, ainda,naquele período histórico, da compreensão das razõesestruturaisdasdesigualdadessociais:“Ocristianismodesde

57

o início não tentou, e não tinha como, realizar a aboliçãodadesigualdadenotrabalhoenapropriedadedosmeiosdetrabalho” (Ibidem, p.191). Assim como naquele tempo nãohaviaacompreensãodascausasdedeterminadasdoençaspelaausênciadeestudosdemedicina,tambémnãohaviaaindaacompreensão histórico-científica das causas estruturais dasdesigualdadessociais.Posteriormente,segundoLuxemburgo,a clericalização do cristianismo das origens o afastará atémesmo desse comunismo primitivo da partilha dos bensproduzidos.

Mesmonãosendocristã,emalgunstrechosdeseutextoRosa Luxemburgo parece endossar o cristianismo como sefosseumasuaconvicção:rejeitaateseconservadorasegundoa qual as desigualdades sociais teriam sido “ocasionadaspela ‘Providência’”, destacando que com seus discursosreacionários a “Igrejamata o espírito dopovo trabalhador,matanele a vontade e a esperança emum futuromelhor”,“matanopovoavontadeeaenergiaparasairdamisériaedaignorância”(Ibidem,p.202,203).Alémdisso,classificaosclérigosreacionárioscomo“servidoresdoBezerrodeOuro”,“servidores de Nero”, afirmando que “se Cristo aparecessehojena terra”, tais clérigos seriamexpulsosdo temploporele“comumavara”como“fezoutroracomosnegociantes”(Ibidem,p.204).

Arevolucionáriateceobservaçõescríticasemrelaçãoàideiadereligiãocomoópio,sem,porém,anatemizarareligiãoemsi:

58

A social-democracia2 não retira a fé deninguém e não combate a religião. Aocontrário, exige a completa liberdade deconsciência para cada um e o respeito aqualquer confissão e convicção. Mas se ospadres se aproveitam do púlpito comomeiode luta política contra a classe trabalhadora,ostrabalhadoresdevemsevoltarcontraeles,comocontratodososinimigosdeseusdireitosedesua libertação.Porquequemdefendeosexploradores e opressores e deseja eternizaresta ordem social abjeta é propriamente oinimigomortaldopovo,quervistaumabatinadepadreouumuniformedepolícia(Ibidem,p.206).

Asua,portanto,nãoéumacríticareligiosadasreligiões,masumacríticapolítica,dadoque,paraela,“cadaumélivreparatersuaféeopinião,quelhedêtranquilidadedeespírito;eaninguémédadaaliberdadeparaperseguirouofenderaconvicçãoreligiosadasoutraspessoas.Éistoquedefendemossocial-democratas”(Ibidem,p.178).

Um ano depois, em O Que Queremos? (1906), RosaLuxemburgo, no 9º item desse texto sustentará que aliberdade religiosa é parte constitutiva do programasocialista-revolucionáriodoseupartidosocial-democrata,eumaquestãodecivilização:“Asocial-democraciaconsideraqueperseguiçãopelaféoupelafaltadelaéumabarbaridade,

2 NaépocadeRosaLuxemburgo,aexpressão“social-democra-cia”nãotinhaaindaocaráterreformistaemrelaçãoaocapitalismoqueassumiuapartirde1959,nareuniãodasocial-democraciaalemãemBadGodesberg.

59

indigna da liberdade cidadã e da civilização” (apudLOUREIRO,2011a,p.240-241).

Luxemburgo não privilegia os crentes em relação aosateus, nem o contrário. Para ela, “a completa liberdade deconsciêncianãoexisteondealgumafééconsideradacomodoEstado”(Ibidem,p.241).Dessaforma,rejeitatantoolaicismoantirreligiosodaburguesiarevolucionária(confessionalismoburguês),quantooateísmoadotadopelosocialismosoviético(confessionalismosoviético).

Suavisãosobrealiberdadedecredoemergequasecomoummanifesto:

Cada pessoa adulta deve ter uma completaliberdadedecredo,emqueecomodeseja.Acrençareligiosaouoateísmoéumaquestãode convencimento, da consciência da pessoaedesuafelicidadeespiritual.Ninguémtemodireitodeespiaraconsciênciadeumapessoae dar-lhe ordens para que acredite destaforma,enãodeoutra.Éporissoqueasocial-democraciaexigequeasleisdopaísgarantama todos o direito à completa liberdade deconsciência. Isso significa que precisam serderrubadas quaisquer leis que sejam criadaspara o prejuízo de qualquer crença ou dosateus. Pessoas de qualquer religião (...) ouateusdevemsertratadosnopaísexatamentecomo iguais, ter os mesmos direitos, serigualmente aceitos para quaisquer cargos edignidades(Ibidem,p.241).

Emumacivilizaçãosocialista, emsuma,haveria lugarparaateusereligiosos,desdequenãosejamreacionários.

60

Rosa Luxemburgo foi ateia, mas não ateísta. A suacompreensãosobresocialismoereligiãonãopediaprofissãodefénoateísmoporque,paraela,oateísmonãoéareligiãooficialdomarxismonemdosocialismo.Posiçãodiferentedapraticada no socialismo soviético e sua área internacionalde influência, onde se exigiu profissão de fé no ateísmoparaseingressarnasfileirasdopartidoe,assim,teracessoa carreiras políticas e profissionais que dependiam desseingresso (ateísmo como privilégio institucional). Ficaramexcluídos de “cargos e dignidades” os crentes, mesmo osrevolucionários,apenaspelo fatodenãoprofessaremfénocredoateístadopositivismosoviético.RosaLuxemburgo,aocontrário,rejeitouaexclusãopormotivodecredoreligioso,reivindicandoigualtratamentoparacrenteseateus.

PARTE II

O TEXTO DO CONTEXTO

62

Capítulo 2

Frei Betto e o socialismo pós-ateísta

No capítulo anterior afirmamos que a tese-dogma daassociaçãocoercitivaentreateísmo,socialismoemarxismo,teseviolentaqueproduziuexclusãoprofissionalehostilidadesistemática contra os crentes, mesmo os revolucionários -láonde foi adotadacomopolíticaoficialdeEstado -nãoéumatesedeMarx,nemdamarxistaRosaLuxemburgo.ÉdeLeninedoseujáfinitosocialismosoviético,quenasceu,sedesenvolveu e feneceupraticando e exportando a exclusãosocialporrazõesdecredo.

OqueRosaLuxemburgosustentou,comovimos,desdeumpontodevistaestritamentesecular,FreiBettoofaztantodopontodevistasecularcomo,também,político-teológico,conforme veremos neste capítulo e no próximo de nossapesquisa.

Bettoescreveuepublicoudezenasdelivrosecentenasdeartigos3.

3 Disponível em: http://www.freibetto.org/index.php. Sobresuatrajetória,destacamosarecenteBiografiadeFreiBetto,escritaporEvanizeSydoweAméricoFreire(2016),eseupremiadolivroBatismo

63

Nesta pesquisa, focaremos especificamente apenasneste duplo recorte do pensamento político de Frei Betto:socialismo-laicidadeecentralidadedabase,apartirdeseustextospolíticos.

2.1. Socialismo e laicidade

Em Frei Betto, a previsão positivista do declínioinelutável da religião pelo “progresso da ciência” ébiograficamente contestada, dado que se trata de umintelectual socialista crente, autor de dezenas de livrosque, com o passar dos anos continua crente, intelectual esocialista.

OpensamentopolíticodeFreiBettoépensamentoemação.E a sua,maisdoquemilitânciapartidária (nunca foifiliadoaqualquerpartido), émilitânciaemmovimentosdebase,tipificadanãopelobasismovulgardequemmitificaa

deSangue,quechegoutambémaocinema.Pode-se verificar também o posfácio do livro AGuerra dos deuses,ondeMichaelLöwy(2000,p.230-255)analisaacontribuiçãodaculturacatólicafrancesaparaagênesedocristianismodalibertaçãonoBrasil.Maisespecificamenteainfluênciadeintelectuaisfrancesesdaordemdosdominicanos, comunidade religiosadeBetto.Alémdisso,paraacompreensãodocontextohistóricoinicialdesuaexperiênciapolíticadejuventudenaJuventudeEstudantilCatólica(JEC),enaJuventudeUniversitáriaCatólica(JUC),pode-seconferirolivroHistóriadaAçãoPopular,daJUCaoPCdoB,deHaroldoLimaeAldoArantes(1984),apesquisadobrasilianistaScottMainwaring(2004),IgrejaCatólicaePolíticanoBrasil,sobretudooscapítulossobreaIgrejareformistaeaesquerdacatólica (2004,p.62-100), e apesquisadohistoriadorOscarBeozzo,CristãosnaUniversidadeenaPolítica–históriadaJUCedaAP(1984).

64

baseemsi.Aocontrário,écaracterizadapelavisãodequemconsideraabasecomoumaexperiênciaemautoconstruçãonosprocessosdetomadadeconsciência(educaçãopopular)dassituaçõesconstitutivasdedominaçãodeclasse,deraça,degênero,econtestaçãodessasformascoletivasestruturaisdesubordinação.

Dessaforma,emFreiBettoadefesadatesedalaicidadedosocialismoocorrenessasuatrajetóriaprático-teórica:eleviajaporpaísessocialistas,encontra-secomlíderespolíticos,contestaateseconfessionaldoateísmodeEstadodiantedeseus próprios sustentadores e reivindica, em tal contextoprático-dialético, a associação entre socialismo e laicidade.Assuasformulaçõesteóricassãoconstruídasnessesdiálogosfrancose,porisso,algumasvezestensos.

2.1.1. Tudo começou em Manágua

Quando entrevistei Fernando Cardenal, em abril de2014,emManágua,elerelatoutambémque

nacelebraçãodoprimeiroanodaRevoluçãoSandinista, em julho de 1980, Fidel veio nosvisitar. Felicitava-nos pela “aliança entrecristãos e marxistas na luta revolucionária”quando uma freira levantou o braço edisse que não tinha sido bem assim. “Puxa,deixamos uma freira reacionária entrar nareuniãocomFidel”,pensei.Maselaconcluiu:“Aqui não houve aliança entre cristãos emarxistas. Trabalhamos todos juntos naluta revolucionária”. Não era uma freira

65

reacionária,masmais revolucionária do quepensei.

NessacelebraçãodoprimeiroaniversáriodaRevoluçãoSandinista, estava também Frei Betto, que manteve umaconversa ousada com Fidel Castro, como veremos, dandoinício, assim, em Manágua, ao processo de construção dalaicidadedosocialismocubano.

Paraasfestividadesdesse1°aniversáriodaRevoluçãoSandinista,ogovernodaNicaráguaconvidara,doBrasil,domPauloEvaristoArns(quenãopôdeviajar),LuizInácioLuladaSilva,presidentedoPartidodosTrabalhadoreseFreiBetto.Doisreligiososeumcivil.Entreosconvidadosinternacionais,agrandeatraçãoeraFidelCastro.

NaPraça19deJulho,namanhãdodia19dejulhode1980, Fidel discursou para 600 mil pessoas. Após o ato, oministrodasRelaçõesExterioresdaNicarágua,o sacerdotesandinista,MiguelD’Escoto,deucaronaaBettoatéseuhoteleavisou-lhedeficaratentoaotelefone,poisqueriaqueviessecomeleàcasadeumamigonaquelamesmanoite.Defato,Betto foi depois levado à casa de Sérgio Ramirez, escritornicaraguense,membrodaJuntadeGoverno.Pelamediaçãodesse sacerdote católico revolucionário, quando os últimosconvidados se retiraram, por volta das 2h da madrugada,nabibliotecadacasadeSérgioRamirezocorreuoprimeiroencontroentreBettoeFidel.Obrasileiropensouquealémdeseroprimeiroseriatambémoúnico.Nãosabiaquedialogariacomorevolucionáriocubanodezenasdeoutrasvezes.

66

Naquela madrugada de julho, Frei Betto discorreusobre as Comunidades Eclesiais de Base e sobre a escolhaque considerava equivocada dos partidos comunistas queadotaramoateísmocomoprogramapolítico.Fidel,porsuavez,destacouqueemCuba,àsvésperasdaRevoluçãode1959,diversamentedaNicarágua,oclerocatólicoeraconservadoremesmo franquista. Depois, o diálogo entre eles tomou oseguinterumo:

-PorqueoEstadoeoPartidoComunistadeCubasãoconfessionais?–perguntouBetto.

- Como Confessionais?! – reagiu Fidel,surpreso.-Somosateus.

-Oateísmoéumaformadeconfessionalidade,assimcomooteísmo,poisprofessaanegaçãoda existência de Deus. Uma conquista damodernidade é o Estado e o partido laicos.UmEstadoateuétãoconfessionalquantoumEstadocristãooumuçulmano.

- Você tem razão – admitiu Fidel. – Estariadisposto a nos ajudar a conseguir um bomdiálogocomosbisposcubanos?

- Sim, comandante, desde que eles tambémestejamdispostosaisso(BETTO,2015,p.43).

Na biblioteca da casa de SérgioRamirez, em julho de1980, começou a construção da laicidade do socialismocubano por meio da influência exercida pelo religioso

67

brasileirojuntoaorevolucionáriocubano.

De fato, anos depois, durante o IV Congresso doPartido Comunista Cubano, em outubro de 1991, decidiu-sepela supressãodo caráter ateudopartido, quepassouaserconsideradolaico.ParaoPartidoComunistadeCuba,acrençareligiosanãoseriamaisobstáculoàfiliação.Osbisposcubanos,entretanto,doismesesdepois,proibiramoscatólicosdesefiliaremaopartido(Ibidem,p.126). No ano seguinte (1992), a Assembleia NacionalmodificouaConstituiçãoeconsiderouCubacomosendoumEstado laico,mesmosemusar essaexpressão (laicidadenoconteúdodalei):

EstaConstituciónproclamadael24defebrerode1976,contienelasreformasaprobadasporla Asamblea Nacional del Poder Popular enelXIPeríodoOrdinariodeSesionesde la IIILegislatura celebrada los días 10, 11 y 12 dejuliode1992.

Artículo 8° - El Estado reconoce, respeta ygarantizalalibertadreligiosa.EnlaRepúblicade Cuba, las instituciones religiosas estánseparadasdelEstado.Lasdistintascreenciasyreligionesgozandeigualconsideración.

Artículo55°-ElEstado,quereconoce,respetay garantiza la libertad de conciencia y dereligión,reconoce,respetaygarantizaalavezla libertad de cada ciudadanode cambiar decreencias religiosas o no tener ninguna, y a

68

profesar, dentrodel respeto a la ley, el cultoreligiosodesupreferencia4.

Questionadoporumjornalistasobreessapassagem,emCuba,daconfessionalidade (ateísmo)departidoeEstadoàlaicidade,oteólogobrasileiroLeonardoBoffexplicouque

OméritodessetrabalhoédeFreiBetto.Oquedefatomudouasituaçãofoiolivrodele[doFrei Betto] Fidel e a religião [1985]. O livrovendeu ummilhão de exemplares em Cuba.Agora saiu umanova edição, outra vez comuma tiragem de um milhão de exemplares.Então,opovopercebeuquenãohácontradiçãoentrecristianismoesocialismo.Apartirdisso,Fidel aceitou e convidou o papa João Paulo2º, depois o papa Bento 16, e agora o papaFrancisco,duasvezes5.

Entre o encontrona biblioteca de SérgioRamirez, em1980,easmudançasemrelaçãoàsconexõesentresocialismoereligiãoocorridasemCubaem1991e1992,estáFidel e a Religião(BETTO,1986b).

4 ConstitucióndelaRepúblicadeCuba(1992).Disponívelem:http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm.Acessoem:30/10/2017.

5 BOFF, Leonardo. Entrevista. Disponível em: http://www.dw.com/pt-br/cuba-precisa-de-revolu%C3%A7%C3%A3o-da-liberda-de/a-36574574.Acessoem:31/10/2017.

69

2.2. Fidel e a Religião: repercussão de um livro subversivo

FreiBettopisouemCubapelaprimeiravezemsetembrode1981,integrandoadelegaçãobrasileiradoIºEncontrodeIntelectuais pela Soberania dos Povos de nossa América.Entresetembrode1981atéoiníciodasentrevistascomFidel,em1985,oreligiosobrasileiroretornouváriasvezesà ilha.ApropostadeentrevistarFidelcomoobjetivodefazerumlivrosobrereligiãofoi-lhefeitaemfevereirode1985-BettoforaconvidadocomojuradodoprêmioliteráriodaCasa de las Americas - durante um jantar com Fidel, que aceitou,marcandoasentrevistasparamaiodomesmoano.

O brasileiro traduziu pessoalmente o conteúdo de 23horasdediálogoqueocorreramde23a28maiode1985.FoiaprimeiravezqueFideldeuentrevistasespecificamentesobreo tema da religião, o que foi possível porque Fidel andavajá percebendo as mudanças de lugar político de algumasideologiasconfessionaisnoterrenodalutadeclasseslatino-americana.AntesdaNicarágua,defato,haviadialogadocomsacerdoteschilenossocialistasemnovembrode1971.Tratarasobre o tema religião também na Jamaica, em outubro de1977,dessavezcomcristãosmajoritariamenteprotestantes.

Fidel e a Religião: conversas com Frei Betto, foi lançadonoBrasilnaprimeirasemanadeoutubrode1985,alcançandováriasediçõesempoucosmeses.EmCuba,aprimeiraediçãoultrapassouos360milexemplares.Aobrachegouàslivrariasde Havana no dia 02 de dezembro de 1985, esgotando-seem apenas duas horas. Em Pinar del Rio, Matanzas e Isla

70

de la Juventud,os livros chegaramnodia04dedezembro.EmVillaClara,Cienfuegos,SanctiSpiritus,CiegodeAvilae Camagüey, no dia 06. Em Santiago de Cuba, Las Tunas,Holguín,GranmaeGuantánamo,nodia09(SYDOW;FREIRE,2016,p.15).

Fidel e a Religião foi um dos maiores fenômenos dahistóriaeditorialcubana:

Muitas pessoas em Cuba deixaram de irao trabalho para conseguir comprar umexemplar, porque os estoques se esgotavamlogoquechegavamàslivrarias.Quemdeixavaparaadquirirnofinaldodiajánãoencontravao livro disponível. Chegou ao ponto de oMinistériodaCulturaproibiravendademaisde um exemplar por pessoa, para impedirque se criasse um mercado clandestino. Apolíciatevequeiraalgumaslivrariasporqueopúblicoamotinadoquebravavitrines.Quemestavanasfilasparacomprardiziacoisascomo“sou religiosa e estou certa que nele Fideldissecoisasdegrandevalor”,“encontraremosno livro materiais muito esclarecedores” ou“será uma fonte singular de ensino para opovo”.Hoje(2016),atiragemcubanadaobra–traduzidaem32paísese20idiomas–passade1,3milhãodeexemplares(Ibidem,p.16).

Só o fato de um líder socialista internacional comoFidel Castro tratar sobre o tema religião com seriedade,considerando-o relevante, e tendo como interlocutorum intelectual ao mesmo tempo crente e socialista, járepresentava em si um fato subversivo, pela contestaçãodo ateísmo socialista, considerado “normal” nos círculos

71

leninistas. O livro, portanto, em si provocador, ao ser lidoperturbava os setores “confessionalistas” do socialismointernacional também por seu conteúdo. Nele, Fidel (apudBETTO, 1986b, p.19) elogiou os cristãos revolucionáriose criticou os marxistas que adotavam o sectarismo emsuas relações com os crentes revolucionários: “Há muitosmarxistasquesãodoutrinários.Eacreditoqueserdoutrinárionesteproblemadificultaestaquestão”.Fidel (Ibidem,p.332)afirmou tambémque a frase “a religião éoópiodopovo”,quepodetersido“justanumdeterminadomomento”evaleraindaemalgumascircunstâncias,

denenhummodotemoupodeterocaráterdedogmaoudeverdadeabsoluta.Éumaverdadeajustadaadeterminadascondiçõeshistóricasconcretas.Creioqueéabsolutamentedialéticoe marxista tirar esta conclusão. Em minhaopinião,areligião,sobaóticapolítica,nãoéemsimesmaópioouremédiomilagroso.Podeser ópio oumaravilhoso remédio namedidaemquesirvaparadefenderosopressoreseosexploradoresouosoprimidoseosexplorados.

As reflexões abertas de Fidel sobre a religião foramrejeitadas tanto por católicos reacionários quanto pormarxistas “ortodoxos”. Bem acolhido em Cuba, o livro, defato,foicensuradoempaísesdosocialismorealqueadotaramoateísmodeEstadoepartidodosvelhosmanuaisproduzidoseexportadospelosocialismosoviético.

Com a sua publicação, porém, Betto ficou mais

72

conhecido internacionalmente, tornando-se uma espéciede símbolo vivo da possibilidade de relações construtivasentremarxismo, socialismo e religião. Assim, aumentaramos convitesparavisitas empaíses socialistas,paraonde sedirigiasozinhoouemdelegaçõescomoutrospesquisadores-militantes do movimento da Teologia da Libertação6.Dessa forma, quando chegava, sua presença já possuía osignificado paradigmático citado, que Betto utilizava parapromover abertura à liberdade religiosa, propondodireta eindiretamenteoreconhecimentoda laicidadedosocialismocomoformadeseefetivara liberdadecoletivadecredoounão-credonessesEstados socialistas confessionais (ateísmodeEstado).

Quando de sua viagem a Moscou, em maio de 1986,encontrou-se com Konstantin Khartchev, e disparou: “Nãoconsidero positivo o conteúdo dos manuais soviéticosde marxismo exportados para a América Latina. Sãodogmáticosetratamaquestãoreligiosademodosimplistaepreconceituoso”(BETTO,2015,p.183).

Na então Tchecoslováquia, onde Betto esteve emjunho de 1988, o Partido Comunista “não autorizou umaediçãoemtchecodeFidel e a religião.Sómesmoeminglês.Alegaramqueolivro‘émuitocubano’ehaveriaoriscodequererem aplicá-lo ali...” (Ibidem, p.300). Todavia, tambémnaTchecoslováquia,nodia26demaiode1989,monsenhorLiska (apud BETTO, 2015, p.375), bispo auxiliar de Praga,revelou a FreiBetto: “Graças ao seu livroutilizei, junto aogoverno tcheco, argumentos de Fidel Castro favoráveis ao

6 Cf.Bento(2016),pp.28-36.

73

trabalhodasreligiosasemCuba.Assim,conseguimostirá-lasdaclandestinidade.Agorasófaltamosreligiosos”.

Nessemesmodia, Betto encontrou-se comCinolder eMracan,membrosdoComitêCentraldoPartidoComunista,comquemdebateuodireitoàliberdadereligiosa.Queriasabertambém por que não permitiram a publicação integral deFidel e a religiãonaTchecoslováquia.“NossosfilósofosachamqueaposiçãodeFideldiantedareligiãopodecausardúvidasna cabeça de nossos militantes”, responderam (Ibidem,p.376). Na noite dessemesmo dia, Frei Betto autografou aversão resumidadeFidel e a religião, como título tambémmodificado, ou seja, comcensurano conteúdoena forma:Caminhar ao lado dos pobres (Na strasse chudych).Alémdisso,aobradeBettoeFidel,editadaporumorganismoecumênico,“nãofoivendidaaopúblico,apenasdistribuídagratuitamentenoscírculosreligiosos”(Ibidem,p.377).

Na Alemanha Oriental o título do livro também foimodificado:Frei Betto: conversações noturnas.CensuraramonomedeFidelCastronacapa,poispoderiagerar“confusão”(SYDOW;FREIRE,2016,p.277).

Betto, com outros brasileiros, esteve também naRepúblicaPopulardaChina,emoutubrode1988.Nacidadede Pequim, em diálogo com Madame Chao Jinru, vice-presidentedaComissãodeAssuntosReligiosos,ClodovisBoffa interrogousobreasrelaçõesentreateísmoemarxismo,esuarespostafoiaseguinte:“Nossopensamentofundamentalé omaterialismo histórico e omaterialismo dialético. Estaé a nossa referência de base. Se utilizamos omaterialismo

74

dialético,somos,portanto,ateus.[...]Comomarxistas,somosateus,masnãopodemosexigirquetodaapopulaçãotambémoseja”(apudBETTO,2015,p.314).

FreiBettoacontestoucitandoacartadeMarxaBolteondeelecriticaaproposiçãodeBakunindeimpor“oateísmocomodogmaobrigatórioparaosmembrosdaInternacional”(MARX, 1871). O religioso sustentou que o conflito coma religião deveria ser interpretado de um ponto de vistahistórico-políticoenãocomoumaquestãodeprincípio.Suatentativa,porém,foirejeitada:“Cremosnomarxismoesomosmaterialistas;portanto,ateus”,sintetizouChaoJinru(Ibidem,p.315).Alaicidadedomaterialismodomarxismonãoestavacontidaemseulequedepossibilidadeshermenêuticas.

EmHankou,nodia16deoutubrode1988,encontraram-se com Wang Chu Jie, presidente do Birô de AssuntosReligiososdetodaaprovínciadeHubei,quesustentouatesedaconfessionalidadedadialética:“Nós,comomilitantesdoPartido Comunista, somos ateus, devido ao materialismodialético” (Ibidem, p.330). E ainda: “A única coisa quediferenciaummilitantedoPartidoeumcristãoéafé.Temosfés diferentes. Cremos no materialismo ateu e, vocês, emJesusCristo”(Ibidem,p.330).

EmXangai,osbrasileirosencontraram-secomovice-presidente do Birô de Assuntos Religiosos, Senhor Albert.“FuncionáriosdoBirôdeAssuntosReligiososnosdisseramque a religião vai desaparecer. Vocês dizem que ela devecontribuirparaoprogressodopaís.Deve-setrabalharparao desaparecimento da religião?”, perguntou-lhe Frei Betto

75

(Ibidem,p.338).“Nós,materialistasdialéticos,afirmamosqueháleisobjetivasnanaturezaenahistória.Tudonasce,cresce,declina e desaparece”, respondeu-lhe o vice-presidente doBirôchinêsdeXangai(Ibidem,p.338).

Betto continuou questionando-lhe: “E o marxismo,enquanto fenômeno objetivo, também desaparecerá?”(Ibidem,p.338).SenhorAlbertrespondeuquesim,pois“todososfenômenosobjetivosestãosujeitosaociclodenascimentoe morte, inclusive o Partido Comunista e o país” (Ibidem,p.338).

Betto pisou no pedal da provocação com uma últimapergunta: “A lei da objetividade também é um fenômenoobjetivo.Elatambémdesaparecerá?”(Ibidem,p.338).Acuado,ovice-presidentedoBirôdeAssuntosReligiosospediucalma:“Sejamospacienteseaguardemosotempo...”(Ibidem,p.338).

AChina,portanto, acolheuBetto,masnão sua críticadaconfessionalizaçãodomarxismoesocialismo.NaAméricaLatina,porém,estavasendodiferente.

Em janeirode1989,nos festejosdo30°aniversáriodaRevoluçãoCubana,Bettoabriuumamesa-redondanaEscolaSuperior do Partido, em Havana, analisando as relaçõesentre cristianismo e marxismo, Igreja e Estado nos paísessocialistas.Naplateia,dezenasdedirigentespolíticoscubanoselatino-americanos.

RigobertoPadilla(apudBETTO,2015,p.347),secretário-geraldoPartidoComunistadeHonduras,interveio:

76

Meuprimeiroimpactocomoscristãosveiodaleitura do documento episcopal deMedellíne do testemunho de sacerdotes que deram avida pelo povo. Antes, ficava-se discutindose haveria ou não glória eterna, quando sedeveriadiscutiréseháounãoinjustiçaterrenae como combatê-la. Considero um absurdoque, no passado, meu partido exigisse queseusmilitantesrenunciassemàfé,provocandoprofundos traumas psicológicos. Hoje, emHonduras, estão unidos os comunistas, oscatólicos e os luteranos. A entrevista deFidelCastro sobre a religião foi amplamentedifundida em meu país. A meu ver, não hácontradiçãoentrereligiãoerevolução.

Nessemesmoevento,AlvaroMonteiro(Ibidem,p.347),secretário-geraldoPartidoSocialistadaCostaRica,destacouque “devemos falar de ‘revolucionários’ e não de ‘cristãose marxistas’. Ingressar num partido marxista não tornaninguém revolucionário, a não ser como ato de fé. São asatitudesconcretasqueforjamumrevolucionário”.

Aindaemjaneirode1989,emCuba,FreiBettoouviudeCarlosAldana(Ibidem,p.364),entãoresponsávelpelasesferasideológicaeculturaldoSecretariadodoComitêCentraldoPartidoComunista:

OPartido tem, hoje (1989), cerca de 500milmilitantese600milnaJuventudeComunista.Reconhecemosqueháumvazionaelaboraçãoteórica. Domingo passado, Fidel disse queé preciso acabar com o ensino dogmáticodo marxismo. Sabemos que as escolas doPartido são incipientes e, por isso, estamos

77

revendo seus textos e métodos. Basta dizerquepassamosdezanossemestudarahistóriadeCubacomomatériaespecífica!Erapartedahistóriageral.

Em dezembro de 1991, novamente em Havana,Betto dialogou com Carneado, do Comitê Central, sobreas mudanças ocorridas no outubro anterior no partidocomunistaesobreaiminentereformadaConstituiçãocomaproposta,quedepoisseconfirmou,dedesconfessionalizartambémoEstado cubano.Comentaramque, depois da suadesconfessionalização,algunsmembrosdopartidocomunistapassaramamanifestarpublicamentesuafécristã,ecristãosingressavamnopartido.Carneado(apudBETTO,2015,p.424)destacou que foram tempos difíceis quando o ateísmo eradogmadepartido,masque“muitosqueforamafastadosdoPartido,porteremsecasadonaIgreja,oubatizadoumfilho,agorareingressamemnossasfileiras”.Sobreisso,FreiBetto(Ibidem,p.424)fezaseguinteanotação:

Pareceu-me que Carneado mostrava-sesensívelàdificuldadedeossetorescristãosdaIlha aceitarem Lênin, visto como inspiradordomodelo autoritário de partidoúnico e doateísmocomocritériodefirmezaideológica.

ParaFreiBetto(Ibidem,p.454,455),“aRevoluçãoCubana,aocontrárioda russa,não se fez contraa religião”,mas “oapoiodoKremlinteveseupreçoideológico:EstadoePartidoComunista declararam-se oficialmente ateus; os currículosescolares incluíram a disciplina ‘ateísmo científico’”.A seuaviso,“aaberturadaRevoluçãoaofenômenoreligiosodeu-segraçasàRevoluçãoSandinistaeaodesmoronamentodosocialismoeuropeu” (Ibidem,p.455).Dessa forma,paraele,

78

“aquedadoMurodeBerlimcontribuiuparadesdogmatizarprincípios fundamentais do marxismo vulgar” (Ibidem,p.455).Nãorepresentou,portanto,ofimdomarxismo,massualibertaçãoerecomeço.

2.2.1. Papas em Cuba

Emjaneirode1998,durantesuavisitaàilha,opapaJoãoPauloII“evitouextremos:nemcondenounemcanonizouaRevolução”, decepcionando os anticastristas de Miami edeixandoFidelaliviado,dadoquesetratavadeumavisitadealtorisco(Ibidem,p.456,458).

NareuniãodeavaliaçãodavisitadopapafeitaporFidel,naqualBettotambémseencontrava,nofinaldejaneirode1998,orevolucionáriocubanodestacouqueopaísganharaum“expressivoaliadocontraobloqueiodosEUAaCuba”,que o papa polonês classificou como “injusto e eticamenteinaceitável” (Ibidem, p.458). Fidel surpreendeu-se coma crítica do pontífice ao “capitalismo neoliberal” e ficouagradecido“pelomodorespeitosocomoopapatratouopovocubano”(Ibidem,p.458).

Anos depois, em março de 2012, Betto encontrava-se emHavanapara acompanhar tambémavisitadeBentoXVIquandotomouconhecimentoqueRatzingerdissera,naentrevistaqueconcederaaosjornalistasnovooqueolevavaàIlha,queomarxismo“jánãoémaisútil”(Ibidem,p.506).Emsuaresposta,FreiBetto(2015,p.506-507)lembrouqueacasadeRatzingertambémtemtelhadodevidro:

79

Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não émais útil, porque já não se justifica enviarmulheres tidas como bruxas à fogueira nemtorturarsuspeitosdeheresia.Ora,felizmenteo catolicismo não pode ser identificado comaInquisição,nemcomapedofiliadepadresebispos.Domesmomodo,omarxismonãoseconfundecomosmarxistasqueoutilizaramparadisseminaromedo,oterror,esufocaraliberdadereligiosa.HáquevoltaraMarxparasaberoqueémarxismo;assimcomoháqueretornaraosEvangelhoseJesusparasaberoqueécristianismo,eaFranciscodeAssisparasaberoqueécatolicismo.

Para o religioso brasileiro, o que “já não é útil” éo capitalismo, um sistema “intrinsecamente perverso”(Ibidem,p.507),comoqual“aIgrejaCatólicamuitasvezeséconivente”,“porqueesteacobredeprivilégioselhefranqueiaumaliberdadequeénegada,pelapobreza,amilhõesdesereshumanos”(Ibidem,p.508).

Aocontrário,paraBetto(Ibidem,p.508),

o marxismo, ao analisar as contradiçõese insuficiências do capitalismo, nos abreuma porta de esperança a uma sociedadeque os católicos, na celebração eucarística,caracterizam como o mundo em que todoshaverão de “partilhar os bens da Terra e osfrutos do trabalho humano”. A isso Marxchamoudesocialismo.

E concluiu essas suas anotações ao comentário deBentoXVIcitandoolivroOcapital–umlegadoafavorda

80

humanidade, do arcebispo católico de Munique, ReinhardMarx,nomeadoCardealporBentoXVIem2010.Porocasiãodo lançamentodesse livro, em2011, o cardeal alemão,quechamou Karl Marx de “querido homônimo”, destacou que“Marxnãoestámortoeéprecisolevá-loasério”:

Há que se confrontar com a obra de KarlMarx,quenosajudaaentenderasteoriasdaacumulaçãocapitalistaeomercantilismo.Issonãosignificadeixar-seatrairpelasaberraçõese atrocidades cometidas em seu nome noséculoXX(apudBETTO,2015,p.508).

Em suma, uma coisa é a obra de Marx, cujo livro OCapital, segundo o cardeal alemão é um legado a favor dahumanidade,outra,diferente,ousodelaporseusseguidores.

Posteriormente, em setembro de 2015, quem visitaráCuba será um papa argentino, com uma avaliação docapitalismo diferente da que sustentou o reformismo dospapasanteriores,comoveremosnoquartocapítulo.NoseuencontrocomFidelCastro,emsuacasa,nodia20desetembrode2015,PapaFranciscorecebeudasmãosdorevolucionáriocubano,depresente,olivrosubversivodeFreiBettoeFidelCastrosobrereligião.

Segundooentãoporta-vozdoVaticano,padreFedericoLombardi,o revolucionáriocubanoescreveunadedicatóriadeFideleaReligião:“ParaopapaFranciscoemocasiãodesuavisita aCuba, comaadmiraçãoeo respeitode todoopovocubano”7.

7 Visita Papa Francisco em Cuba. Disponível em: http://ul-

81

FideleaReligiãoentrouassimnoVaticano,nabagagemde um papa, como presente de um revolucionário cubano.Quem acompanhou essa visita papal, e foram milhões,ficou sabendo desse gesto de Fidel.Ora, assim comoBettopromoveuaberturaàreligiãoentreossocialistaspositivistaspormeiodolivro,quemsabeFidelnãopensouempromoveraberturaaosocialismoentreoscatólicospormeiodesselivrodelesqueé,aomesmotempo,subversivoeparadigmático.

timosegundo.ig.com.br/mundo/2015-09-20/fidel-castro-presenteia--papa-francisco-com-livro-do-brasileiro-frei-betto.html. Acesso em:22/12/2017.

82

Capítulo 3

Frei Betto e o socialismo popular

FreiBettodefendeatesedalaicidadedosocialismo,oudesuadesconfessionalizaçãoemrelaçãoaoateísmo.Masdequalsocialismosetrata?

Em Cristianismo e marxismo, Betto (1986, p.11)destacou que “por socialismo entendemos os regimesem que predominam a propriedade social dos meios deprodução,aerradicaçãodoantagonismodeclasses,oEstadocomo expressão dos interesses da grande maioria dostrabalhadores”.

Mesmovalorizandoasreformassociais,Bettonãoéumreformista social-democrata no sentido bernsteiniano8 dotermo.TambémparaBetto“omovimentoé tudo”,masnãoomovimentodereformaspelasreformasnosistema,esimomovimentocriativodabasepopularemdireçãoaoobjetivofinalqueéasubstituiçãodosistemacapitalistaporumsistemaalternativoaocapitalismocomumapermanenteconstruçãonotempoeespaço.OsocialismodeBetto,portanto,nãoéavelhasocial-democraciarevisitada.

8 A obra de 1899 de Eduard Bernstein (1850-1932) onde eleapresentasuatesereformistafoitraduzidaemportuguêscomotítuloSocialismoEvolucionário(RiodeJaneiro:Zahar,1997).

83

EmAmoscaazul– reflexão sobreopoder, FreiBetto(2006, p.148) classificou a social-democracia como víruspolítico tão letal para o movimento socialista quanto acorrupção:

Erra-se ao deixar-se contaminar pelo vírussocial-democrata, cujos principais sintomassãousarmétodosdedireitaparasupostamenteobter conquistas de esquerda e, em caso deconflito, desagradar aos pequenos para nãoficarmalcomosgrandes.

Em sua avaliação, “o capitalismo é intrinsecamenteinaptoaconstruirummundodejustiçaeliberdade”(Ibidem,p.127).Daísuaposiçãopelamudançadesistemaenãoapenasmudançasnosistema.Eessasuarejeiçãopolíticadasocial-democraciaexplicaemparteseuconflitopolíticocomotipodeperfil queoPartidodosTrabalhadorespassou a adotarjáapartirdacampanhapresidencialde2002,quandooPTemitiu a Carta ao Povo Brasileiro. Segundo Betto (Ibidem,p.112-113)

A Carta ao Povo Brasileiro, emitida pelo PTnacampanhaeleitoralde2002,sinalizouparaa elite, à qual se destinava (teria sido maisadequado intitulá-laCartaàEliteBrasileira),que não haveria mudanças substanciais napolítica econômica neoliberal adotada pelogoverno FHC. Ora, também nisto o velhoMarxacertouemcheio:senãohádemocraciaeconômica, se grande parcela da populaçãonão dispõe de renda e trabalho, então ademocraciapolíticaéumengodo,umafarsa,porque de fato os mais pobres permanecem

84

privados das mais elementares formas deliberdade: alimentação, saúde, educação,emprego,lazeretc.

Lulavenceuaseleiçõesde2002econvidouBettoparaassumirumprogramade superaçãoda fomenoBrasil queficou conhecido como Fome Zero. Betto aceitou, talvezimaginandoquea carta social-democratadoPT fossemaistática do que estratégica. Permaneceu por apenas 2 anos,em 2003 e 2004, renunciando no final de 2004. Apostavanuma virada no PT que passara de oposição a governo.Oque, porém, não ocorreu. Mesmo sabendo que seria umgovernoreformista,Bettoaceitouoconvitecalculandoqueaomenosesse reformismopoderia ser reformismodebasepopular,oquepoderiaproduzirdiminuiçãodapobrezacommecanismos de construção de poder popular. Na prática,porém, priorizou-se a agenda das reformas financeirasem relação às reformas sociais.Além disso, no que se fez,ou se tentou fazer em termos de diminuição da pobreza,não houve a escolha dos movimentos populares comoprotagonistas do processo de transformação. Durante doisanos,comoveremos,Bettotentoulevarogovernoapriorizaras reformas sociais estruturais e promover a mobilizaçãosocial pelo protagonismo dos movimentos populares. Nãoobtendo resultados satisfatórios, saiu do governo e voltoucomomilitanteparaasuaantigatrincheiradosmovimentospopulares.

Vejamos como foi sua passagem pelo governo Lulado ponto de vista do nosso recorte específico, referente àsuaconcepçãopolíticadeconstruçãodopoderpopularviamobilização social, o que Betto tentou promover pelas

85

trilhasdosComitêsGestoresdoFomeZero.

3.1. Betto e os comitês gestores

Frei Betto foi servidor público federal de janeiro de2003 a dezembro de 2004, desenvolvendo suas atividadesnoGabinete deMobilização Social. Pormeio do ProgramaFomeZero,trabalhoupelaeliminaçãodafomenoBrasilviamobilização social. ComoAssessor Especial da PresidênciadaRepúblicadeveriaarticularasrelaçõesentremovimentossociaisegovernofederal.Osmovimentossociaisaceitaramodesafio.FreiBetto,também.

Na prática, Betto queria fortalecer os movimentospopularesnacorrelaçãodeforçasentremovimentosdeeliteemovimentos de base que disputavam espaço no governofederal. Sabia não estar num governo revolucionário, masacreditouque,nesseterrenodasreformaspoderiatirarcomoproveito a diminuição da pobreza por meio do ProgramaFome Zero, como obra de conscientização e articulaçãopolíticadosmovimentospopulares.ParaBetto(2007,p.104),de fato, “na base social reside, potencialmente, o poderqueconstituianaturezadademocracia:odosmovimentospopularescapazesdemobilizarsetoresdapopulaçãoecriarconsenso em torno de propostas estratégicas”. Pretendia,assim,colaborarna transformaçãodessapotencialidadeemrealidade histórica. Entretanto, no calendário do poder, asprioridadesprogramáticaseramoutras.

Já em 13 de janeiro de 2003, registrou em seu diário

86

político: “Não há recursos para oGabinete deMobilizaçãoSocial.NovasinstânciassãocriadaspeloExecutivosemquehaja proventos” (Ibidem, p.64). Para Betto (Ibidem, p.65),“não há transformação social duradoura sem permanenteeducaçãodeseusagentesebeneficiários”,masparaissosãonecessáriosrecursos, investimentosnamobilizaçãodebaseparaaqualificaçãodosprocessosdefiscalizaçãodosrecursosdestinadosaoFomeZeroedeliberaçãopopularsobreousodesses recursos. Transformação social com qualificaçãoda consciência crítica como forma de fortalecimento dosmovimentospopularesnoconfrontoentreinteressesdaelitedominante e interesses populares. Segundo Betto (Ibidem,p.65),defato,

Se o ser humano não se descobre cidadão,sujeito histórico, atémesmo suas aspiraçõesmais elementares – alimentação, saúde,educação,trabalho,moradiaecultura–ficamconfinadas ao paradigma liberal-burguês.Busca-se apenas a melhoria das condiçõesdevida, o que é justo.Masnão é suficiente.Éprecisomodificartambémanossamaneiradepensar,anossapostura,asnossasatitudes,a nossa escala de valores – eis o papel daeducaçãopopular.

Naconcepçãopolíticadobrasileiro,asreformassociaissão importantes para a melhoria de vida se forem espaçopedagógico de formação crítica. Assim, com esse sentidopedagógico-libertador,taisreformasadquiremumsignificadotambémrevolucionário.

Dessa forma, com o Fome Zero, Betto (Ibidem, p.65)

87

pretendia que seus beneficiários, “o contingente demenorrendanoBrasil”,passassem“doindividualismoàcidadania,dealvosdepolíticaspúblicasasujeitos,atoressociaiscapazesde, não apenas produzir a própria renda,mas tambémumnovomodelodesociedade,o‘outromundopossível’”.

Ideia coerente com a lógica original do PT, mas nãocom a do núcleo duro que chegou no governo federal viamovimentopopular e tornou-sevanguardadirigistadeumreformismomaisfinanceiroquesocioestrutural,tratandoosmovimentos(populares)queforamumdialocomotiva,agoracomovagões.

Emmarço de 2003, Betto (Ibidem, p.90) registrou emseu diário político: “Custo a engolir que a Presidência daRepúblicanãodispõederecursosparaprojetosdemobilizaçãosocial”.Faltadedinheiroparainvestimentoemmobilizaçãode base como manifestação de falta de interesse. Dessaforma,acrescenteegradualdescobertadaviradadecostasdo governo federal para amobilização social foi retirandoBettodeseucargonogovernofederal,tantoque,emjunhode2003,elecomeçouapensaremsair:“Seatédezembrode2004nãohouverumaguinadadogovernoafavordasdemandaspopulares,pedireidemissão”(Ibidem,p.138).

Mudanças ocorriam,mas não as desejadas.No dia 17demaiode2003,BettosoubequeoGabinetedeMobilizaçãoSocialseriadeslocadodo3ºandardoPlanalto.Estavaparaser“despejado do prédio principal” o projeto demobilizaçãopopular (Ibidem,p.127),oque foiefetivadoem17de julhode 2003, quando o Gabinete da Mobilização Social foi

88

transferidoparaoAnexoIIdoPlanalto.BettoeOdedGrajewpassaramaseros“únicosassessoresespeciaisdeslocadosparaforadoprédioprincipaldopalácio”(Ibidem,p.158).Oespaçoanterior do gabinete passou a ser ocupado pela primeira-dama.OGabinetedeMobilizaçãoSocial foideslocadoparaumambienteapertado,sembanheiroprivativo,combanheirocoletivo distante, onde as visitas eram obrigadas a esperarno corredor. Não se tratava de uma reclamação de ordempessoal,masdosignificadopolíticodessamudançadeespaço,poismanifestavaapoucaimportânciaqueestavasendodadaaotrabalhodemobilizaçãosocialpelogovernofederal.Alémdisso,ficandodistantedogabinetepresidencial,elesperdiam“ocontatopermanentecomopresidente,osministroseasvisitasrecebidasporeleemaudiências”(Ibidem,p.159).

Assim, já despejado do prédio principal, no dia 14 deagosto de 2003, Betto (Ibidem, p.173) registrou novamenteem seu diário: “Meu desalento com o governo é cada vezmaior”. Desalento político pelo divórcio que ia se criandoentreaexpectativaearealidade:umgovernoqueforaeleitocomoexpressãodaagendadosmovimentospopulares,seguiaagoraoutraagenda,adaelitefinanceiraneoliberal.

Nofinalde2003,asituaçãopioraquandooProgramaFome Zero passa a ser confrontado com o projeto BolsaFamília.Doisprogramasdiferentes,comconcepçõespolíticasdiferentes.No centrodessadisputa, o problemapolítico sechamava“ComitêsGestores”.

NoFomeZero,adefesadosComitêsGestoressignificavainsistirnoretornoàsconcepçõesoriginaisdoPT,retornando

89

aotrabalhodebase.Apesardafaltaderecursosenegligênciado governo federal em relação aos comitês, o Fome ZeroimplantouemdozemesesdegovernoComitêsGestoresem2.364municípiosbrasileiros(Ibidem,p.363).Seusopositoresno governo sustentavam que o controle dos recursosdestinadosaocombateàfomedeveriaserfeitopelosprefeitosdascidadesenãopelasociedadecivilviaComitêsGestores.Como fortalecimentodosprefeitos e enfraquecimentodoscomitês gestores, as políticas sociais voltariam ao meroassistencialismo eleitoreiro e desmobilizador. Queria-seunificar as políticas sociais em torno do Bolsa Família eas prefeituras apenas pagariam o benefício à população,eliminando a concepção pedagógica sustentada por Bettode unirmelhoria de vida à consciência política e exercíciode poder de fiscalização pelos movimentos populares viaComitêsGestores.

Em09dejaneirode2004,Betto(Ibidem,p.292)registrouemseudiáriopolítico:

LulaassinouaLeinº10.836,criandooBolsaFamília. Unificou os programas federaisde transferência de renda (...). O benefícioserá pago mediante cartão magnético daCaixa Econômica Federal, com respectivaidentificaçãodobeneficiado,preferencialmentemulher (...). A lei criou o Conselho GestorInterministerial do Programa Bolsa Família,semincluiroGabinetedeMobilizaçãoSocial.Ocontroleeaparticipaçãosociaisemâmbitolocalficamacargodeumconselhooucomitêinstalado “pelo Poder Público Municipal”(art.9º).

90

Assim,concluiuBetto(Ibidem,p.292),“semchoronemvelanemfita amarela, eis o decretodemortedosComitêsGestores”. O pobre passaria a ser tutelado pelo governofederal via governo municipal. Chamaram essa parceriaassistencial de “pacto federativo”. Noção diferente da quepropunha a transformação do pobre em sujeito político desualibertação,sujeitopolíticodebase.Emvezdefortaleceromovimentopopularviagoverno,optaramporfortalecerogovernoviatutelaassistencialdopobre.

Apesar disso, Betto continuou no governo, esperandoqueemalgummomentoaalmapopulardoPTressurgissenogovernofederalpelapressãodosmovimentospopulares.Emvezdisso, se fortalecia aposiçãodosquevalorizavamessaparceria assistencial de vértice entre prefeituras, governosestaduaisegovernofederal(“pactofederativo”)na“aplicação”daspolíticassociais,concebendoopobrecomo“beneficiário”e não como sujeito político coletivo, construtor de sualibertaçãopelaedificaçãodeumasociedadeestruturalmentediferente, socialista. Aliás, “enquanto estive no Planalto”,observou Frei Betto (2006, p.99), “as palavras socialismo esocialistajamaisforampronunciadas”.Aocontrário,“Palocci9 ,detãoafinadocomopensamentoneoliberal,chegaasugerirque se retire dos discursos presidenciais – quase sempreredigidospelosecretário-geraldaPresidência–aexpressão‘desigualdadesocial’”(BETTO,2007,p.452).

Em março de 2004, Betto continuava lutando pelamanutenção dos ComitêsGestores. Em carta que escreveu

9 AntonioPalocciFilho.MinistrodaFazendadogovernoLula.

91

aLula,nodia09dessemês,manifestoupreocupaçãocomapropostade tornaroscomitêsparitários.Eles funcionavamcomaproporçãode2/3desociedadecivil,mais1/3depoderpúblico, justamente para assegurar poder de fiscalização àsociedadecivil,eseevitarasconhecidassituaçõesdedesvioderecursosfederaisporprefeiturasmunicipais.Dessaforma,os 2/3 de sociedade civil tinham como objetivo, além daconstruçãodopoderpelabase,tambémocombateàcorrupção.Comofimdessaproporção,talposiçãopelaparidadelevariao controle dos comitês para os prefeitos municipais, comtodas as consequências políticas, pedagógicas e financeirascontidas nesse fortalecimento do poder dos prefeitos emrelaçãoaopoderdosmovimentossociais.NessasuacartaaLula,Betto(Ibidem,p.341)destacouque

Mesmo na atual proporção,muitos prefeitosmanobram para manipular os comitês, poisnão querem a sociedade civil organizada e,muito menos, tê-la “pegando no pé” paracontrolar a administração. Fala-se muito noempoderamentodopovo.E se issoparanóséumvalor(lembraqueoPTfoifundadopara“organizar a classe trabalhadora”?), devemosfortalecer,enãoenfraqueceroscomitês.

Nessa mesma carta, Betto (Ibidem, p.342) destacoutambémque“reduziroFomeZeroàtransferênciaderendaé,ameuver,acatarapropostadoBancoMundial–querepudio–de‘acalmar’ospobrescompolíticascompensatórias,masnuncaestruturantes”.

92

Apenas três dias depois da carta anterior, em 12 demarçode2004,novacartadeBettoaLula.Sobreomesmoassunto.

Não basta oferecer às famílias pobres rendaeumacestadepolíticaspúblicas.A inclusãosocialéumprocessoqueexigeintensotrabalhoeducativo. Sem uma nova consciência, aspessoas dificilmente caminham para umanovavida(BETTO,2007,p.344).

Dessa vez, termina sua carta a Lula citando não amemória do PT dos tempos idos, mas a memória de ummétodo,pedagógico-popular, “ométodoquenos foi legadopor um filho de sua terra (Pernambuco), o inesquecívelcompanheiro prof. Paulo Freire” (Ibidem, p.344). Pareciaacreditar que citando lembranças relevantes conseguiriaprovocaramudançadeprioridadesnaqualaindaesperava.

Em02deabrilde2004,novacartaaLula.ReclamaqueosComitêsGestores“morremàmíngua”:

Desdeoutubrode2003,quandosurgiuoBolsaFamília, ficaram à deriva. Perderam o poderde incluir ou excluir famílias do cadastro debeneficiários. Já não exercem controle sobreo andamento do programa e suas denúnciasdecorrupçãonão sãoacatadas.Assim, refluioenvolvimentodasociedadecomoprograma(BETTO,2007,p.363).

Nessamesmacarta,pedequesetomeumadecisãoemrelaçãoaoseutrabalho:

Aproveito para lembrar-lhe que, até hoje,

93

meu trabalho de base, em prol do governo,nãomereceu um tostão dos cofres públicos.Você ordenou que aCasaCivil o assumisse.Falei com Zé Dirceu, que apenas me dissequeconversariacomvocê.Seogovernonãojulgaimportanteomeutrabalho,quediga.Oumedemita.Duro é ver a Petrobrasfinanciarentretenimentos e publicidade com verbasmilionárias, enquanto me esfolo pelo Brasilafora graças à ajuda de parceiros do FomeZero(Ibidem,p.362).

Em 06 de julho de 2004, em almoço com GilbertoCarvalho 10, Betto (Ibidem, p.418) afirmou: “Discordo dapolítica econômica do governo”. E perguntou: “Você vêalguma perspectiva de mudança?” (Ibidem, p.418). “Agoraachodifícil”,respondeu-lheCarvalhoque,sobreopropósitode Betto de pedir demissão, comentou: “A sua saída teráimpactosobreonossopessoaldebase”(Ibidem,p.418).

EstariaogovernoLulamaisinteressadoempermanecercomFreiBettopeloqueelesimbolizavaerepresentava(suaimagem) do que pelo que ele realmente queria fazer emtermosdemobilizaçãopopularnoBrasil?

NovacartaaLulaem21dejulhode2004:

OsComitêsGestores(presentesemmaisde2milmunicípios)estãopraticamenteabandonados.O Ministério do Desenvolvimento Social eCombateàFome(MDS)pensouemrebatizá-los como Comitês Fome Zero, com o que

10 Ex-chefedegabinetedopresidenteLuizInácioLuladaSilva.

94

concordo. Tenho andado pela base e vejoa decepção dos membros dos comitês, quetiveram cassadas suas senhas de acesso aocadastroenãoreceberamnenhumaorientaçãoquantoàsmudançasnoFomeZero(...)Seriaótimo que o presidente lembrasse ao MDSque,emOlinda,vocêreafirmouaimportânciadosComitêsGestores(Ibidem,p.420-421).

Menos de um mês depois, em 09 de agosto de 2004,registrou em seu diário político: “Os homens do governosentem-semaisàvontadeentreaelitedoqueentreliderançasdemovimentossociais.Fenômenosumamentepreocupante”(BETTO,2007,p.426).E,depoisdetomarconhecimentodasmudançasquedefatoestavamparaserrealizadaspelogovernofederalnopapeldosComitêsGestores,comaintroduçãodaparidade,comentou:“degestoresdoFomeZero,oscomitês–ouoquesobradeles–passam,agora,ameroscolaboradoresdaUniãoedasprefeituras”(Ibidem,p.427).

Parapiorar,osministrosdeLulaqueseopunhamaosComitêsGestorespassaramagoraasustentarqueoscomitês“nãotêmamparolegal”(Ibidem,p.450).Lulasolicitou,então,quefosseestudado“ummarcojurídicodosComitêsGestores”(Ibidem,p.451),maseles,comoregistrouBettoemseudiáriopolítico, “jamais foram normatizados” (Ibidem, p.451). FreiBettosabiaque“aestruturadoEstadobrasileironãofoifeitaparaserviraosmaispobres,esimàelite”(Ibidem,p.497).

Entretanto, no governo federal os ministros de Lulamarcavam, remarcavam e desmarcavam suas audiênciascomesse incômodoassessor,conformepode-severificaremváriasdas529páginasdeseulivro,Calendário do Poder

95

(BETTO,2007).

A política demobilização social para a construção deum poder popular que sustentasse mudanças estruturaisnãoentrounaagendapolítica. “Paraogoverno”, conformeregistrouBetto(Ibidem,p.499),em08dedezembrode2004,“oprincipalsucessoéapolíticaeconômica–quetantoagradaacredoresebanqueiros”.

De fato, em 17 de dezembro de 2004, no jantar deconfraternização de Natal, na Granja do Torto, oferecidopelo casal presidencial, “Lula fez um elogio rasgado aoPalocci,enaltecendo-opela‘firmeza’ebomdesempenhodamacroeconomia.EstendeuoslouvoresaHenriqueMeirelles,presidente do Banco Central” (Ibidem, p.502). Sintonia desentimentos,pensamentoseações.

Frei Betto apresentou seu pedido formal de demissãoem20dedezembrode2004.Nodiaseguinte,suaexoneraçãofoi publicada noDiárioOficial.Alegou “motivos pessoais”.Afirmou no seu diário que queria voltar a termais tempopara escrever.Anossoaviso,porém, saiu, sobretudo,pelasrazõesdedissensopolíticoquecitamos.Casoseutrabalhodemobilizaçãodebasefossedefatovalorizadonogovernoessaboa causavaleria adiminuiçãodo tempopara a literatura.Fora do governo, de fato, Betto continuou suas atividadescomosmovimentospopulares, alémdededicar seu tempotambémàproduçãoliterária.

Nobalançodessasuaexperiênciapolítica,Betto(2006,p.206,207)destacouque

96

oPT vestiu a camisa do governo e despiu acamiseta dos movimentos populares [...]Quanto mais a questão do poder tornou-se vital para osmembros do partido, deu-semenos importância ao fortalecimento dosmovimentospopulares[...]EncabeçadospeloPT, governo federal, estaduais e municipais,com raras exceções, não investiram namobilizaçãodossindicatos,noaprimoramentodos movimentos populares, no trabalhodas ONGs. Nem os Comitês Gestores doFomeZerosobreviveramaoprimeiroanodevida, em 2003. Eram eleitos em assembleiaspopulares, que muitas vezes reuniam maisde mil pessoas nas praças das cidades ecuidavam da fiscalização do cadastro dasfamílias beneficiárias e do andamento doprograma de combate à fome. Tivessem ospetistas no governo conservado uma visãoestratégica voltada à mudança social e aoprotagonismo do povo organizado, teriamdestinadorecursosfinanceirosepolíticosaosmovimentospopulares.

Anosdepois,em2016,ogolpedadocontraasucessorade Lula, Dilma Rousseff, mostrou que, com Lula e depoisdele,oEstadobrasileirocontinuousendoestruturalmenteomesmoEstadodaeliterica,togadaeengravatadadoBrasil.Daeliteproprietáriadosmeiosdeproduçãoedoscanaisdetelecomunicação.OgovernoLulanãoquebrouahegemoniapolítica e econômicadessa elite, o que algunsmovimentospopularespretendiamrealizarviareformasestruturais,comacolaboraçãodogovernoLula,pelastrilhasdofortalecimentodamobilizaçãosocial.Aocontrário,atéenfraqueceupartedamobilizaçãopopularconstruídaanteriormentecompolíticas

97

de transformação dos pobres em meros consumidores,beneficiários-passivostuteladosporpolíticasanestesiadorasde tipoassistenciais.Perdeu-seumaocasião importantedopontodevistadatransformaçãosocialdopaíspelabase.FreiBettotentoupromoveressamudançapelabaseeprecisoudedoisanosparaconfirmarquenãoeraeleopeixeforad’água,aáguaéquetinhaficadoestranha.

De qualquer forma, nosso objetivo não é analisar olulismo, traição da esquerda, para uns, ou realizador, paraoutros, do melhor governo possível “para os pobres” nahistória dos péssimos governos do Brasil. O que estamostentandofazerédescreverecaracterizaraposiçãopolíticade Betto pela centralidade da base nos processos detransformação social, posição que ele manifesta em suasações políticas, como na passagem pelo governo Lula e,também,emsuascríticasaosocialismocubanovoltadasparaaqualificação-manutençãodarevoluçãocubanatambémcomfoconacentralidadedabase.

3.2. Centralidade da base

Nos textos políticos-ativos de Betto, produzidos emsuasviagensinternacionaiseapartirdaexperiênciapolíticalocal,estásuateoriapolíticadosocialismopós-ateísta,laicoepopular,comacentralidadeoperativaecriativapermanentedabase.ParaBetto(2006,p.213),defato,

os movimentos populares devem partir dasdemandas específicas da população, aindaqueelasnãopareçamser“asmaispolíticase

98

ideológicas”.Emoutraspalavras,nãosetratadepartirdoquedireçõeseliderançasjulgammelhorparaopovo,massimdoqueinteressaemobiliza,invertendooprocesso.

Não se trata, portanto, de um socialismo para osoprimidos,mas dos oprimidos. Diferente de transformar opobreemmeroconsumidordeeletrodomésticospormeiodeincentivosgovernamentais,oquelevageladeirasaospobres,aumentandoolucrodaburguesia,reduzindo,porém,opobreà condição de beneficiário-tutelado. O que não significadesprezargeladeiras,mas amoldura assistencial-eleitoreiraondeelaéinseridadeformapolítico-instrumental.

ParaBetto (2015, p.90), ao contrário, a “construçãodademocraciasocialista”dependedacriaçãode“mecanismosderepresentaçãodiretadasclassespopulares”,esuaorganização“debaixoparacimaenquantosujeitospolíticoscoletivos”.Oquenãosignificaumelencodeprincípios,masaexplicitaçãodeumametodologiaintelectualmentefundada.Eafidelidadea essa metodologia é compreendida como manifestaçãopolítica de sua fidelidade ao povo, compreendido comosujeitodesualibertação.

A respeitodisso, emcartaqueescreveuaopresidenteLulaemabrilde2004,FreiBetto(2007,p.359-360)descreveuoseguintediálogoquetevecomMarisa,esposadeLula:

Pouco depois de você deixar a prisão, emmaio de 1980, Marisa me perguntou: ‘Vocêestarásemprecomagente?’Respondi: ‘Sim,enquanto vocês estiverem do lado do povo’.Essecritériocontinuaválido.Comovocê,sou

99

lealaosamigos,masmuitomaisàesperançados pobres. E o meu temor é que nossogoverno frustre essa esperança, afastando-secadavezmaisdeles,enquantoseaproximadasvelhasoligarquiaspolíticasquenuncativeramo menor interesse nas transformações destepaíse,muitomenos,nodireitodospobres.

Nessesentido,acriseéticadoPTé,sobretudo,crisedefidelidadeàcentralidadedamobilizaçãosocialdebase.Dessaforma,aosetrocaraaliançacomosmovimentospopularespelaaliançacomaelitefinanceiraneoliberal,abriu-seacaixadepandoradacorrupção.Comoresultadodisso,naavaliaçãodeBetto(2006,p.121),“umpequenonúcleodirigentedoPTconseguiu em poucos anos o que a direita não obteve emdécadas,nemnosanossombriosdaditadura:desmoralizaraesquerda”.Eainda:

Talvez o principal erro do PT, uma vezno governo, tenha sido abandonar o quepossuía de mais precioso: a rede de apoiodos movimentos populares. Foram elesque construíram o partido e deram-lhelegitimidade e representação (...). Ao falaremmovimentospopulares,refiro-meàquelesqueexpressamasdemandasdossetoresmaispobres da população e atuampara erradicara estrutura de dominação que sustenta adesigualdade social. Também os setoresdominantes do sistema organizam-se emmovimentossociais,masnãopopulares,poisnãoespelhamosdireitosde justiçadosmaispobres, nem fazem críticas à ordemvigente,e miram, em primeiro lugar, seus interessescorporativos. É o caso de movimentos

100

patronais ou empresariais, comprometidoscom uma agenda de conquistas emudançasque venha a favorecer sobremaneira os seusnegócios(BETTO,2006,p.204-205).

Ao chegar ao governo por meio dos movimentospopulares,mascomabênçãodaelitedominanteacariciadapelaCartaaoPovoBrasileiro,umaescolhadefundoprecisouser feita quando essas duas forças antagônicas passaram amanifestar suas contradições, que são estruturais. Nessecontexto, a escolha do governo não foi pela mobilizaçãosocialdebase:

O PT começou a se sentir ameaçado pelosmovimentos populares e a tomar distânciadeles a partir do momento em que decidiunão mais expressar as demandas dossegmentosmaispobresdapopulação.Optoupor tornar-se mero veículo de coligaçõespartidárias interessadas no acesso ao poder.(...)Liderançaspetistas,paraseremaceitasno seleto clube das alianças dominadopor adversários políticos e desfrutar dassuas benesses, sobretudo dinheiro parafinanciar campanhas, tiveram de abrirmãodesuasconvicçõesideológicaseseusvínculos orgânicos com os movimentospopulares. Houve exceções, mas aregra passou a prevalecer no partido,instrumento de controle da mobilizaçãopopular, temendo ser por ela atropelada(BETTO,2006,p.228-229).

101

Certo que, para Betto, o governo Lula é visto comoportador de avanços sociais se comparado a governosanteriores,masdistantedasmetasemétodosoriginaisqueorientaramoPTna sua criação.ParaBetto (Ibidem,p.239-240),

Com o passar dos anos, tanto a ideologiaquanto os objetivos do PT desfiguraram-secomo um velho tecido que perde as coresoriginais.Osinteresseseleitoraissombrearamos ideológicos; o socialismo cedeu lugar aum capitalismo reformável, “humanizado”;abandonou-se a organização da classetrabalhadora (e dos desempregados) emproldo fortalecimento do partido comomáquinaeleitoral. O trabalho de base desapareceue, com ele, os núcleos do partido, aquelaorganizaçãocapilarencontrada,nosprimeirosanos da década de 1980, nas periferias, naroça,nasuniversidades...

O PT das origens tinha caráter popular-socialista(Ibidem,p.93),masBettopassouaduvidarseessaeraumacaracterísticatambémdeLula.Dúvidaquecresceu“quando,na Presidência da República, ele declarou em público quenunca fora de esquerda e evitou promover reformas deestruturas,comoafundiária”(BETTO,2006,p.96).

As críticas de Betto ao lulismo e ao petismo forammovidaspelocritériodacentralidadedabasenosprocessosde transformação socioestrutural. Não foram críticas deordempessoal,masdeordempolítica.E esse foi omesmocritério usado por ele em suas relações políticas emCuba:centralidade da base, portanto, como critério político na

102

construçãodademocraciapopular,noBrasil,enaqualificaçãodaRevoluçãoCubanade1959.

Defato,oprimeirodiálogodeBettocomFidelCastro,emManágua(1980),jáfoicaracterizadoporessasinceridadecrítica e cordial, quandoBetto criticou a confessionalidade(ateísmo) de Cuba e do partido comunista, conforme jácitamos.

Dezanosdepois,em1990,Betto(2015,p.405)afirmou,diretamente a Fidel, que a Revolução Cubana, por ser“referência para a esperança dos pobres”, precisaria sermantida e aperfeiçoada, referindo-se à necessidade de“aperfeiçoamento de seus mecanismos populares” (Ibidem,p.405).

Depois,em1992,publicouaseguintesíntese:

Mesmoestandoemdesacordocomoprincípiodo partidoúnico, a ausência demovimentospopularesautônomoseacompletaestatizaçãoda economia, reconheço que as conquistaséticas e sociais da Revolução tornam Cubaum sinal de esperança para todos aquelesque,naAméricaLatina,sonhamemlivrar-sedaopressão capitalista, sob aqual as leis domercadofuncionamcomoumseletoclubequeprivilegia uns poucos e exclui a maioria doplenodireitoàvida(BETTO,1992,p.439).

Crítico em relação aos “modelos stalinistas eestatocráticos de socialismo” (BETTO, 1990b, p.922), paraeleocentralismodevanguardacriou,defato,o“centralismoestatocrático”(Ibidem,p.929)e,“comoumbalão,aestatocracia

103

socialistatantoseinflouqueexplodiu”(BETTO,1990,p.176).

3.3. Sujeitos da projetação da utopia

Entretanto, na posição de Frei Betto sobre socialismoemerge também uma noção de progresso diferente daideologiaburguesadeprogresso.Em2007eleescreveuque

Ainda que o governo zerasse a dívidapúblicaeafome;assegurasseatodaanaçãoalimentação, saúde e educação gratuitas ede qualidade; erradicasse o desemprego e aviolência; dotasse cada cidadão e cidadã deumarendamínima–aindaassimnãoseriaogovernodosmeussonhos.Nãoénoprogressomaterialque se esgotaaminhautopia.Énoprogresso espiritual como expressão maisradical denossa plenahumanidade (BETTO,2007,p.527).

Materialistanaanálise,emsentidometodológico,ecomumanoçãopráticaelargadeutopia,queincluiaproduçãodebenscomomeiodevidaenãocomofinalidadedavida,Betto(2015,p.392)destacouque“noplanoindividualoucoletivo,oserhumanoémovidoporutopiasquenãocabemnoapertadogargalodeumaracionalidadequereduzasrelaçõessociaisàesferaeconômica”.

Emfevereirode1990,emBerlimOriental,Betto(Ibidem,p.392,393)registrouemsuasanotaçõesdeviagemque“parapoderprivatizarosbensmateriais,ocapitalismosocializaosbenssimbólicos”e,porsuavez,

104

o socialismo fez exatamente o contrário:socializou os bens materiais e privatizou ossonhos, namedida em que só os detentoresdo poder podiam aspirar ao exercício datransgressão–comomudaromododepensareagiremmatériapolítica-,umdosatributosdaliberdade.

A sua noção de progresso é crítica em relação aoprodutivismo capitalista. E tal concepção mais ampla deprogressoé,também,compreendidacomoconstruçãopopularenãocomo“dádiva”dirigistadevanguarda(capitalistaoudosocialismoreal).

Nesse sentido, o colapso do socialismo real no Lesteeuropeu teria ocorrido também por essa apropriação devérticedaprojetaçãodofuturo:

O socialismo não conseguiu resolver oproblemadarelaçãoentreEstadoesociedadecivil.Asorganizaçõesdemassaeossindicatoseram meras correias de transmissão doPartido. Essa estrutura verticalista inibia aparticipação dos cidadãos nos destinos dopaís, exceto daqueles que eram pagos comofuncionários da burocracia estatal (BETTO,2015,p.520).

Para Betto (Ibidem, p.525), em suma, também no quese refere à produção, interpretação e realização dos rumoscoletivos(utopia),“oEstadodeveseroresultadodateiademovimentossociaisepolíticos”,enãoocontrário.

Dessa forma, a crise do socialismo real estariaassociada também a esse tiro curto da compreensão da

105

utopia do socialismo, reduzida ao produtivismo burguês, eassociadatambémà interpretaçãodirigistaemrelaçãoaosprotagonistas da projetação, interpretação e realização dautopia produzida. “Não teria o socialismo real desprezadoafomedebeleza,supondoqueopãofossesuficienteparasaciar a voracidade humana?” (BETTO, Ibidem, p.394).SegundoFreiBetto(Ibidem,p.395),

Acreditava-se que transmitindo noções declasses sociais, demodosdeproduçãooudehistória da classe operária, formava-se umbommilitante. Sem dúvida, o conhecimentohistórico,científicoetécnicoéimprescindívelàqualificaçãopolítica.Masnãoésuficiente.

Sobreessaquestão,emHavana,emfevereirode1992,dialogandocomummembrodopartidodestacouaindaque

Só o Partido pode sonhar. Qualquer outroque pense pela própria cabeça corre o riscode ser tachado de dissidente ou tido comocontrarrevolucionário. Onde fica, pois, aesperança? Qual o horizonte utópico? Hásetoresdopovocansados.Queremencontrarumasaída(BETTO,2015,p.425).

Rejeitaumconceitoredutivodeutopiaearestriçãododireitodeprojetaraprivilégiodedirigentesdepartido.

Em Betto, portanto, vemos o alargamento dacompreensão do conteúdo da utopia (que contém tambémo progresso espiritual) e deslocamento do vértice para abase da compreensão dos sujeitos utopistas (movimentopopulares).

106

Ainda em Havana, em 1992, Betto indagou CarlosAldana,dobirôpolíticodopartido,sobreoquepretendiamfazer para amenizar o desencanto da juventude. Aldanarespondeu: “Duas coisas. Aumentar o bem-estar material,sobretudoalimentos,erealizaraseleiçõesparlamentaresnofimdoano”(apudBETTO,2015,p.425).Mas“issonãobasta”,reagiuBetto(Ibidem,p.425).“Ajuventudequerterodireitodesonhar.Querpoderparticipardabuscadehorizontesparao caso cubano, e não apenas resistir e resistir”, completou(Ibidem,p.425).“Eoquevocêpropõe?”,perguntou-lheAldana(Ibidem, p.425). Na resposta de Betto (Ibidem, p.426), suacríticaaoprodutivismoburguêsquefoiassimiladotambémporsocialistas:

É preciso fugir da ideia economicista deprogresso.Nãoalimentaraimagemdequeosocialismopretendeasseguraracadacidadãoum futuro burguês. E introduzir a ideia defelicidade.Pode-se ser feliz semmuitosbensdeconsumo.

Socialismo, portanto, para Betto não significa merareprodução desse produtivismo. É mais do que isso e aidentificação-definição prática desse “mais” não será obrade vanguardas iluminadas acadêmicas e partidárias, masdaenergiacriativadabase:épreciso“criarespaçosemqueas pessoas possam falar, protestar, criticar e tecer sonhos”,pois“opovoprecisasersujeitodosentidodesuaexistência”(BETTO,2015,p.426).

Em um artigo de 1990, o brasileiro destacou que “opositivismo entrou de contrabando na teoria marxista”

107

(BETTO, 1990, p.174), e, quando entraram na “canoapositivista”(Ibidem,p.173),“oscomunistasacreditaramqueo avanço progressivo do socialismo traria como inelutávelfatalidade o fim das religiões” de carona nessa canoa do“progresso científico” e prosperidade econômica universais(Ibidem,173).

Betto,aocontrário,sugereacompreensãodiferentedefelicidade que citamos: “Não é no progresso material quese esgota a minha utopia. É no progresso espiritual comoexpressãomaisradicaldenossaplenahumanidade”(BETTO,2007,p.527).

Como falar, porém, em “progresso espiritual” nocontexto,porexemplo,daqualificaçãodaRevoluçãoCubana,dado que, por décadas, grupos religiosos conservadoresafirmaramqueos“comunistas”sãocontraa“vidaespiritual”?

Ora, progresso espiritual e espiritualidades não-reacionárias, leigas ou confessionais que sejam, não estãoem contradição em si com o socialismo de inspiraçãomarxista. Como já afirmado no primeiro capítulo emrelação às religiões, oconflitodomarxismocomreligiões,espiritualidades, práticas meditativas não é conflitometafísico, ontológico, mas político-histórico: dependeda posição das religiões, espiritualidades (leigas econfessionais), práticas meditativas na luta histórica,intrafísica de classes. A adoção do ateísmo como dogmasocialista foi um equívoco hermenêutico praticado eexportando pelo socialismo soviético a partir da adesãodessesocialismoaoateísmocientificistaburguês.

108

O materialismo do marxismo não combate aespiritualidade, a vida espiritual nem as meditaçõescontemplativas de quem quer que seja. O que ele podecombater,emsualutapelalibertaçãopopular,éasubordinaçãodeclassessustentada,porexemplo,porsistemasmonásticosreacionários.Não nega nem afirma a existência ou não dealma, vida espiritual e espiritualidades. Isso vai dependerda liberdadedecredodecadarevolucionário.Aliás,muitosmarxistasleigosquemorreramcomomártiresnalutacontraa opressão capitalista o fizeram animados pelo fervor dealmadequemencontrounautopia leigada sociedade semdominação estrutural de classes a força para enfrentar atorturaeamorte.Ouseja,combateramanimadosporumaespiritualidade leiga, político-revolucionária focada naconstruçãodaigualdadedefato.

Como se pode consultar em qualquer manual básicodeintroduçãoàfilosofia,apassagemdoidealismodialético,emMarx, ao materialismo dialético, não é uma passagemteológica,maspassagemmetodológicadafilosofia(deHegel)àhistóriasocioeconômicaepolíticadalutadeclassesesuastransformaçõesintrafísicasdecaráterdialético.

Portanto, a aproximação entre socialismo, marxismoeumaespiritualidadepromotoradeprogressoespiritualdacomunidade,nãoéumaaproximaçãoexótica,excetoparaossocialistaspositivistaseparaosreligiososreacionários.

Certo que, quando se fala em espiritualidadenormalmentesepensaem:a)espiritualidadesconfessionais;

109

b) de caráter individual; c) dirigistas, com um mongeque obedece e um prior ou clérigo que comanda; d) maiscontemplativas do quemilitantes e; talvez, e) distante dascomunidades,orientadaspelafugadomundo,nosilênciodeummosteiro,deumapraiaoudeumsítio.

Todavia, Philip Sheldrake, pesquisador especializadoem Estudos de Espiritualidade, em sua publicaçãointitulada Spirituality (SHELDRAKE, 2016) explicou que,no amplo e complexo universo da vasta tipologia dasespiritualidades contemporâneas, há, também: a) formasleigas de espiritualidade, não-confessionais e não-clericais;b) de caráter coletivo, comunitário; c) igualitárias, com opoderdescentralizado;d)decarátermilitanteenãoapenascontemplativo; e) vivenciadas nas sociedades, com suastribulaçõescotidianasenãoapenascomofugadomundonosmosteiros,praiasdesertasesítios.

Espiritualidades, portanto, podem ser: a) leigas ouorientadas por alguma confissão religiosa tradicional;b) conservadoras ou subversivas; c) individuais oucomunitárias; d) ritualistas ou abertas à subjetividadecriativaecontestatóriadossujeitos;e)clericaloulaical.

De outro lado, se tomarmos como exemplo algumasmanifestaçõesartísticascomoamúsica,adança,oteatro,ocinema,apintura, a escultura,poesiaouaprosa,podemosconcordar em afirmar que são todas metodologias decontemplaçãoorientadasporconteúdosleigos,confessionais,mistosouhíbridos.

110

OsocialismodeFreiBetto,umdominicanopraticante,não poderia deixar de ser socialismo espiritual, com umaespiritualidade da libertação permanente carregada designificados confessionais e leigos. Uma espiritualidadepopular-comunitária,pois,paraBetto,acentralidadedabaseéquestão-chavetantonoâmbitoleigo(movimentospopulares)quanto no âmbito eclesial, onde trabalha há décadas comcompanheiras e companheiros de fé cristã libertadora nasComunidadesEclesiaisdeBase(CEBs).

OSocialismodeBetto,portanto, é laico,popular, como protagonismo da base também na projeção da utopia,que não coincide com a noção economicista de progressosustentadapelocapitalismo,quenãoéateu,masidólatra.Oqueopositivismoafirmouem teoria (ateísmocientífico), ocapitalismonegounaprática,comacriaçãodeumareligiãoadhoc,dotadadeespiritualidadedodinheiroedoconsumo,carregada de mistérios financeiros impenetráveis, com aidolatriadocapital,sacrifíciodoserhumanoeseuambientenaturalnoaltarapocalípticodaproduçãopelaprodução.

Quaissão,porém,osfundamentosdessaposiçãofixadeFreiBettopelacentralidadedabase?

3.4. Sentido leigo e político-teológico da centralidade da base em Frei Betto

AposiçãodeBettopelacentralidadedabasesustenta-se,dopontodevistapolítico-leigo,segundoseusbiógrafos,naadesãodeBettoàobservaçãoclássicadeMarxsegundoa

111

qual“aemancipaçãodostrabalhadoresdeveráserobradosprópriostrabalhadores”(SYDOW;FREIRE,2016,p.400-401).

A assertiva de Marx se encontra nos Estatutosda Associação Internacional dos Trabalhadores, textodocumental escrito por ele em 1864, publicado em 1871.Lemos,defato,quetalassociaçãofoifundada

Considerandoqueaemancipaçãodasclassestrabalhadoras deverá ser conquistada pelasprópriasclassestrabalhadoras;quealutapelaemancipação das classes trabalhadoras nãosignificaumalutaporprivilégiosemonopóliosde classe, e sim uma luta por direitos edeveres iguais, bem como pela abolição detoda a dominação de classe; que a servidãoemtodasassuasformas,todamisériasocial,toda degradação intelectual e dependênciapolítica é o resultado da sujeição econômicado trabalhador aos monopolizadores dosmeios de trabalho, isto é, das fontes davida; que a emancipação econômica dasclasses trabalhadoras é, portanto, o objetivoprimordial a que todo movimento políticodevesubordinar-secomomeio(MARX,1982,s/p).

FoinessemesmoEstatutoqueMarx,comojácitamos,declaroutambém

Que todas as sociedades e indivíduos a elafiliados reconhecerão a verdade, a justiça,e a moral como base de suas relaçõesrecíprocas e para com a humanidade emgeral, independentemente de cor, credo ounacionalidade(Ibidem).

112

Dessaforma,RosaLuxemburgoeFreiBetto,comestiloseorigensculturaisdiferentes,situam-senomesmohorizontedeMarxdacentralidadedabaseedanão-discriminaçãoporrazõesde credoounão-credonaprojeção e construçãodosocialismopopular.

Alémdessesentidoleigo,porém,emBettoacentralidadeda base possui também significado político-teológico. E ofundamentopolítico-teológicodacentralidadedabase,paraFreiBetto, é crístico:o fundadordocristianismocontestouo sistema confessional de dominaçãopolítica que vigoravaemseutempo,posicionando-seaoladodosexcluídosdessesistema,pelasuainclusão.Efoiportercontestadotalsistemaconfessional de dominação e exclusão a partir do lugarhistórico-políticodaexclusãoqueelefoicondenadoàmortee executado. Dessa forma, seguir o ensinamento de Cristosignifica,também,ocuparnotempo-espaçoolugarocupadopelosexcluídoseinterpretarasociedadeondeseviveapartirdesselugarpolítico-teológicoespecífico.SegundoFreiBetto(1990b,p.923),

Jesus se colocou no lugar dos pobres, massemcederaopieguismodeumasolidariedadesacralizadora da pobreza; ao contrário,procurou trazê-los da periferia ao centro,damarginalização à conquista do direito, daenfermidadeàcura,dafomeaopão,datristezaà alegria, da culpa ao perdão, do pecado àgraça,damorteàvida.

OlugardopobreéolugardeCristo,eolugardeCristoé o lugar dos cristãos, portanto, também de Betto. A basedessa pirâmide de dominação torna-se assim o lugar da

113

interpretação da dominação e das ações políticas voltadaspara a contestação-superação das formas estruturais dedominação-subordinação de seres humanos por sereshumanos.

EmATrindade,asociedadeealibertação,LeonardoBoff(1986,p.14,177,281)explicouqueJesuscontestouosistemade subordinação porque contrário ao estilo constitutivo devida da Trindade, caracterizado pela unidade na distinção,sem relações de subalternidade e subordinação entre aspessoasdivinas.Ouseja,oPainãoémaisqueoFilho,quenãoémaisqueoEspíritoSanto.Arelaçãoentreelesnãoédesenhorio,dedominação,masdeigualdadenadiversidade.Umnãoestásubordinadoaooutro,masvinculadonumarelaçãodeamordefinidacomopericorese:relaçãodeinterpenetraçãoentreas trêsdistintaseunidaspessoasdaTrindade.DaquioparadigmadaTrindade comoparadigmade relaçõesnãohierárquicas,masde igualdadenadiversidadedos sujeitos.ATrindade,assim,referênciavitaleparadigmáticadeCristonassuasrelaçõeshistóricasnaPalestina,serve,também,dereferência paradigmática para os cristãos na contestaçãodas relações históricas de subalternidade e subordinação.Trindade-comunidadequecontestaasrelaçõeshistóricasnão-trinitáriasdedominaçãoesubalternidadequesemanifestamnas modalidades leigas e confessionais de dirigismo devanguarda: dominação burguesa, “socialismo” de vértice,clericalismo.

Olugardopobre,porém,comodestacouBetto(1990b,p.923), não é lugar de acomodação, mas de contestação:“Apobreza tem causas estruturais, o que significa, a rigor,quenãohápobres (poisninguémescolhesê-lo,eosqueo

114

sãogostariamdeviveremmelhorescondições),hápessoasempobrecidas”,eénessesentidoque“ateologiadalibertaçãochama o pobre de oprimido”. Pobre como empobrecidopor um sistema que realizametodicamente a produção depobrezaeriqueza.SistemaquenotempodeCristoerapolítico-confessionalefoiporelecontestado.

ComoexplicouAlbertoMaggi (2003,p.33), doutor emexegese dos quatro evangelhos, “um dos maiores e maistrágicos equívocos” foi interpretar a mensagem de Jesuscomoseele“tivesseditoqueospobressãobem-aventuradosporquevãoparaoparaíso”.ParaMaggi(Ibidem,p.33),nãoébemassim,pois:

nosevangelhosháreferênciassejaaospobresqueàpobreza,contudonuncaparabeatificarestacondição,nuncaparasublimá-laeexaltá-la,massempreparaeliminá-la.Jesusveioparaeliminarascausasdapobreza.

Segundooteólogocatólicoitaliano,“todooensinamentode Jesus é dirigido à eliminação das causas da pobreza”(Ibidem,p.35).Nessesentido,continuaMaggi(Ibidem,p.35),“aaçãodeJesusnãoéespiritual,nãodizrespeitosomenteaumhipotéticoreinodoscéus,umparaíso,masdizrespeitoà sociedade, que Jesus veio para mudar profundamente”.Entretanto, como essa mensagem é difícil de aceitar,terminaram ao longo dos anos por “espiritualizar” Jesus(Ibidem,p.35).

Jesus,porém,ocupouo lugardomarginalizadoepelasualibertação.Nãoocupouovértice,masabasedapirâmidede poder de seu tempo, posicionando-se pelo fim dessa

115

pirâmide político-confessional de poder. Segundo Maggi(Ibidem,p.76),defato,notempodeJesus

asociedadeeraconcebidadeformapiramidal.AcimadapirâmidepairavaDeus.Novérticeestava o sumo sacerdote ou o rei que, àsvezes, exerciam a mesma função: o sumosacerdote era também rei, o rei era tambémsumo sacerdote. Em seguida, os sacerdotes,os príncipes, etc. Na última camada dessapirâmideestavamosservos.Napartedebaixodela,semdireitoscivis,estavamosescravos.

Dessa forma, as organizações piramidais, político-dirigistas, estão em contradição com o ensinamento dosevangelhos:

Em todas as religiões se apresenta umDeusquecriaossereshumanosparaserservidoporeles. Jesusdiz: “Issoé falso.ÉDeusqueestáa serviço dos seres humanos”. Então surgeo terror da parte das autoridades religiosas.PorqueumDeus quedomina é umDeusdopoderquejustificaopoderedomíniodessasautoridades religiosas. Mas se as pessoascomeçamaacreditarqueDeusestáaserviçodos seres humanos, a única maneira derepresentá-loéaqueladesecolocaraserviçodessessereshumanose issoaterrorizaquemdetémopoder.EisporqueassassinarãoJesus(MAGGI,2003,p.75).

Qual foi a resposta-posição de Jesus em relação a talsistema organizacional de caráter político-confessional?Nosevangelhos,Jesusmostrouque“Deusnãoestánoalto,novérticedopoderdequemcomanda.Deusestáembaixo,

116

emquemserve” (Ibidem,p.76). E ainda: “Deus age comossereshumanosapartirdebaixoparaelevá-losaoseumesmonível.OSenhorrealizaotrabalhodeservoparaqueosservossejamsenhores”(Ibidem,p.77).Esenhornãosignificapodermandaremalguém,masnãosermandatoporninguém,“nãoterninguémacimademim,serplenamentelivrenapráticadeumamorsemelhanteaoseu”(Ibidem,p.39).

O lugar de Cristo, portanto, é o lugar do excluídodo sistema, a base da pirâmide, o lugar do pobre comolugar epistemológico e político de libertação. Lugar para atransformaçãoestruturalqueéadiada,porém,parao“céu”pelos reacionários crentes que interpretam o cristianismode forma conservadora, usando o “céu” como instrumentoideológicoparaalegitimaçãoemanutençãodossistemasdeexclusãoqueosbeneficiamnaterra.

ParaLeonardoBoff(1986b,p.09),searealidadeforvistaapartirdolugardopobre,“entãoficaclarocomoarealidadedeve ser transformada, pois ela é demasiadamente iníquaparaamaioriadoshomens;elaosempobreceemarginaliza”.Nessesentido,olugardopobrecoincidecomopontodevistahistóricodosvencidos,nãocomodosvencedores,segundoaexpressãousadapeloleigoWalterBenjamin(apudLÖWY,p.265-274),paraoqual“osujeitodoconhecimentohistóricoé a própria classe oprimida, a classe combatente” (Ibidem,p.267).

Dessaforma,ohorizontedosoprimidosadotadocomohorizonte epistemológico e político da libertação contradiztantoodirigismoclasseedevanguardadepartido,quantoodirigismo confessional de vanguarda clerical (clericalismo),

117

que divide os seres humanos em “pastores” e “ovelhas”subordinadasaocomandodirigista“divino”produzidopelospastores(BENTO,2005).

Ohorizontedosvencidosesualibertaçãoé,também,ohorizontedarenovação,olugardaatualizaçãoerevitalizaçãotanto do cristianismo de Cristo quanto do marxismo deMarx. Nos dois casos, o horizonte dos vencidos sugereretornoàsorigens,nassuasmodalidadesespecíficas,leigaeconfessional.

Olugardooprimidoemsentidomarxista(aemancipaçãodosoprimidoséobradosoprimidos)eolugardopobreemsentidocristãosão,naverdade,omesmolugarsubversivoemrelaçãoàdominaçãosistêmica,comsuasinterpretaçõesleigaeconfessionalquenãosãocontraditóriasnemexcludentes,mesmosedistintas.

Nesse sentido, a centralidadeda base, na forma comoBettoa sustenta, é lugarde encontro entremarxismonão-confessionalenão-dirigista (laicoepopular)ecristianismoantissistêmico e não-clericalista. Lugar de unidade nadistinçãocarregadodepossibilidadesdecolaboração.

Entretanto, a partir de 2013, a posição antissistêmicae pela base contará comum aliado inesperado, situado novérticeda IgrejaCatólica,mascomopensamentonabase,como veremos no próximo capítulo. Papa Francisco, ummembrodoclerocatólicoparaoqual“oclericalismoéumapestenaIgreja”11.

11 Papa Francisco. Entrevista. Disponível em: http://www.ihu.

118

Capítulo 4

Aliado inesperado

Quando o argentino Jorge Bergoglio foi eleito papa,em2013, tornando-sePapaFrancisco, aposição sustentadapor Frei Betto pela centralidade da base passou a contar,involuntariamente, por razões de coincidência ou deprovidência,conformeocredodequeminterpreta,comumaliadoinesperado.Enãosomenteatesefáticadacentralidadedabase.Aposiçãoantissistêmica tambémcontarácomsuamanifestaadesão.Antesdele,desdeoPapaLeãoXIII,comasuaencíclicaRerumNovarum(1891),aposiçãodospapasemrelaçãoaessa“coisanova”,emsentidocronológico,chamadacapitalismo, foi uma posição pelas reformas, voltadaspara amenizar os males desse sistema internacional-local.Francisco irá além do reformismo. Adotará uma posiçãoantissistêmica em relação ao sistema capitalista. Betto eFrancisco se encontrarão em relação de afinidade sobrecentralidadedabaseecríticaantissistêmicadocapitalismo,oquenãoexcluiasreformassociais,masalegitimaçãoparcialdosistemacontidanoreformismocomofim.

unisinos.br/78-noticias/567623-o-clericalismo-e-uma-peste-na-igreja--entrevista-com-o-papa-francisco-no-voo-de-volta-de-fatima. Acessoem:27/12/2017.

119

Acríticaradicaldosistema(mudançadesistema)nãocoincidecomaestratégiareformista(mudançasnosistema)adotadaanteriormente.Defato,daencíclicaRerumNovarum(1891)atéaCentesimusAnnus(1991),deJoãoPauloII,emergea“apostanacorrigibilidadedocapitalismo”,aconvicçãodeque“ocapitalismo,comasdevidascorreções,podeproduzirbenefícios” (ORDUÑA, 1993, p.601, 602). As condenaçõespapais“visaramexplicitamenteapenasaosabusosdosistemacapitalista e nunca ao próprio capitalismo como sistema”(BOFF,1978,p.88).Pretendia-se transformaro capitalismuseffrenus-traduzidoimpropriamentecomo“selvagem”,comose a selva fosse sem freios - num capitalismo com freiosreformadores.

Por ocasião do lançamento da Centesimus Annus,em 1991, num contexto ufanista de celebrações da “vitóriado capitalismo sobre o socialismo”, o sindicalista italianoGiorgio Benvenuto (1991, p.41) resumiu assim a posiçãodessaencíclicadeJoãoPauloIIemrelaçãoaocapitalismo:

É justo sustentar que a Centesimus Annus não é contra a economia capitalista... Elanão demoniza a economia de mercado, maspropõe,emnívelmundial,umahumanizaçãoeumacorreçãode rumocapazde impediroadventodeumcapitalismoselvagem.

Em suma, como resumiu Exequiel Rivas (1994, p.40),JoãoPauloIIpropôso“capitalismocomrostohumanocomoopção válida para um cristão”, o queWojtyla (1991, p. 40)chamará literalmente de “novo capitalismo”, para a alegriados que defendiam, como o estadunidenseMichael Novak(1987),umaespéciederelaçãodeafinidadeentrecatolicismo

120

e capitalismo. BentoXVI não se afastará substancialmentedessa avaliação de fundo em relação ao capitalismo, masFrancisco,sim.

SegundoMichael Löwy (2016, s/p), “existe uma longatradição de crítica do capitalismo liberal, ou dos ‘excessos’docapitalnaIgrejaCatólica.MasnenhumPapafoitãolongenestacondenaçãocomoFrancisco”.

4.1. Um papa antissistêmico e pela centralidade da base

Ondesemanifestaaposiçãopelacentralidadedabasedessepapacomumpensamentodesulpolíticodomundo?No mesmo lugar político onde se manifesta também suacrítica mordaz do capitalismo: nos seus encontros com osmovimentospopularesinternacionais.

4.1.1. Iº Encontro com os movimentos populares

OprimeiroencontrodeFranciscocomosmovimentospopularesinternacionaisocorreuemoutubrode2014.

A convite do Papa, líderes de Movimentos Popularesdos cinco continentes se reuniram em Roma durante trêsdiasdetrabalhosobretrêstemasfundamentais:terra,tetoetrabalho.“OPapaFrancisconãoseesqueceudenós”,declarouumdosorganizadoresdoevento,JuanGrabois,responsávelpelaConfederaçãodosTrabalhadoresdaEconomiaPopular

121

12. “JorgeBergoglionosacompanhouporanosnoprocessode organização dos recicladores, camponeses, vendedoresambulantes, artesãos e herdeiros da crise provocada pelocapitalismoneoliberal”,acrescentouGrabois13.

Aconclusãodaprimeirajornadadetrabalhosfoi feitapelo líderdoMovimentodosSem-Terra (MST), JoãoPedroStédile. Entre os movimentos populares brasileiros, alémdoMSTestavamtambémrepresentantesdoMovimentodeMulheresCamponesas,ArticulaçãodosPovosIndígenasdoBrasileaCoordenaçãoNacionaldeEntidadesNegras14.

No dia 28 de outubro de 2014, Papa Franciscodiscursouparaosrepresentantesdosmovimentospopularesinternacionais. Portanto, tratou sobre questões de exclusãosistêmica num evento específico não com intelectuais deacademia, prelados da cúria romana, bispos de diocesesdo mundo, empresários dos cinco continentes, mas commovimentospopularesdeexcluídosdosistemainternacional.

Emseudiscursosustentouque“ospobreslutamcontraainjustiça”,“queremserprotagonistas”,“organizam-se”,nãoficam esperando por “planos assistenciais” que os querem“anestesiar ou domesticar” (PAPA FRANCISCO, 2014, p.1).Destacou que é preciso “lutar contra as causas estruturais

12 Cf. I Encontro commovimentos populares.Disponível em:http://www.news.va/pt/news/a-cultura-do-encontro-a-servico-dos--pobres-movimen.Acessoem:14/12/2017.

13 Ibidem.

14 Ibidem.

122

dapobreza”,“fazerfaceaosefeitosdestruidoresdoimpériodo dinheiro” (Ibidem, p.2), e criticou o que chamou de“estratégias de contenção”, porque elas “só tranquilizam etransformamospobresemseresdomesticadoseinofensivos”(Ibidem, p.2). E ainda: “Sente-se o vento de promessa quereacende a esperança nummundomelhor.Que esse ventose transforme em furacão de esperança. Eis omeu desejo”(Ibidem, p.2). Furacão para varrer o que ele chamou de“culturadodescarte”,produzidaporumsistemaeconômicocentradono“deusdinheiro”,enãonoserhumano(Ibidem,p.4).ParaFrancisco,tal“sistemaeconômicocentradonodeusdinheiro tem também necessidade de saquear a natureza”(Ibidem,p.6),temaaoqualdedicaráumasuaCartaEncíclica,noanoseguinte,2015,intituladaLaudatoSi’-Sobreocuidadodacasacomum.

Sobre o que chamou de “império do dinheiro”, jáfinalizandoseudiscurso,destacou:“Algunsdevósdisseram:este sistema jánão funciona.Devemosmudá-lo”, construir“estruturas sociais alternativas” (PAPA FRANCISCO, 2014,p.6). Essa é a posição dos movimentos populares, queFranciscoassumecomopróprianessasuaduplaposição,aomesmotempoantissistêmicaepelacentralidadedabasenalutacontraessapirâmidededominação.

De fato, para Francisco, na realização dessa tarefamundial-local,oprotagonismoédosexcluídosorganizadosem seus movimentos populares de ação e pertencimento.Alegra-se com a dinâmica criativa desses movimentos deexcluídos “que crescem de baixo, do subsolo do planeta”(Ibidem,p.7), equenãodevemsercontidosem“estruturasrígidas”(Ibidem,p.7).Paraele,

123

Os movimentos populares expressam anecessidade urgente de revitalizar as nossasdemocracias, tantas vezes desviadas porinúmeros fatores. É impossível imaginar umfuturo para a sociedade sem a participaçãocomoprotagonistasdasgrandesmaioriaseesteprotagonismo transcende os procedimentoslógicos da democracia formal.A perspectivadeummundodepazedejustiçaduradouraspede que superemos o assistencialismopaternalista,exigequecriemosnovasformasde participação que incluam osmovimentospopulareseanimemasestruturasdegovernolocais,nacionaiseinternacionaiscomaquelatorrente de energia moral que nasce daintegração dos excluídos na construção dodestinocomum(Ibidem,p.7).

Movimentos populares como torrente de energiamoral, criativa. Protagonistas da mudança de sistema naconstruçãocoletiva,apartirdosexcluídos,dasociedadedainclusão.Oqueédiferentedeserobjetodatutelaassistencialdodirigismodevértice.

4.1.2. Movimentos populares e Francisco na Bolívia

O segundo encontro mundial dos movimentospopulares com Francisco ocorreu na Bolívia, em julho de2015.Oeventocontoucomaparticipaçãode900organizaçõessociais de diversos continentes, com forte participação dedelegações da América Latina, por razões de proximidadegeográfica.

124

O encontro ocorreu em solução de continuidadecomo anterior, consolidando essa iniciativa inédita de umpapa de tratar sobre questões sociais diretamente com osmovimentosdebaseorganizadospelosexcluídosdosistemaeconômicomundial.

Comospobreseseusmovimentos,emvezdeparaospobres.

Emseudiscurso,apósrelatarquerecebeuváriascartasnarrando múltiplas formas de exclusão, Papa Francisco(2015c,p.2)destacou:

Masháumeloinvisívelqueunecadaumadasexclusões. Não se encontram isoladas, estãounidasporumfioinvisível.Conseguimosnósreconhecê-lo?Équenãosetratadequestõesisoladas. Pergunto-me se somos capazes dereconhecer que estas realidades destrutivascorrespondem a um sistema que se tornouglobal. Reconhecemos nós que este sistemaimpôs a lógica do lucro a todo custo, sempensarnaexclusãosocialnemnadestruiçãodanatureza?

A dramaticidade da exclusão e destruição do “solo,água,aretodososseresdacriação”(Ibidem,p.2)indicaqueo sistema precisa ser urgentemente transformado caso sequeiraevitaroapocalipseambiental:

Digamo-lo sem medo: Queremos umamudança, umamudança real, umamudançade estruturas. Este sistema é insuportável:não o suportam os camponeses, não o

125

suportam os trabalhadores, não o suportamas comunidades, não o suportamos povos...Enemsequero suporta a terra, a irmãMãeTerra,comodiziaSãoFrancisco(Ibidem,p.02).

Sua crítica radical do capitalismo como sistema queprecisaserfreadotambémpeloriscodecolapsodoplaneta,pela destruição da terra, do ar e da água, assemelha àconsideração feita por um leigo, ecossocialista, MichaelLöwy.Paraele,ocapitalismo,senãoforcontido,talvezsejanãoumaetapa,masaúltimaetapadahistóriadahumanidadepela sua crescente capacidade de destruição ambientalcomandada pelo imperativo da produção a qualquer custo.ParaLöwy(apudQUERIDO,p.96),defato,

Se acreditamos com Rosa Luxemburgo queo socialismo não é inelutável e que a crisedo capitalismo pode conduzir à barbárie, setomamos a sério as advertências de WalterBenjamin de que a finalidade do progressopode ser a catástrofe, como é possívelpretenderqueoprogressocapitalistasejadealgumaformabem-vindo?

Francisco (2015c, p.07) rejeita esse sistema quesacrifica a “Mãe Terra” no “altar da produtividade”. Suaposição,portanto,nãopode ser classificadadentrodaquelepadrãoreformistaanteriorqueidentificapontospositivosenegativosnocapitalismo,comapropostademanteroqueébomemudarsomenteospontosnegativos.Elenãoamenizasuas críticas com expressões arrefecedoras da linguagemliberal-burguesa,adotadatambémemâmbitocatólico,comoeconomiademercado,oueconomiasocialdemercado.

126

Nemapalavra“progresso”,tãoamadapelopositivismoburguês e por alguns incautos socialismos, escapa de suacrítica. De fato, em sua Encíclica Laudato Si’ - Sobre ocuidado da casa comum, Francisco (2015b, n.194) destacouqueépreciso“redefiniroprogresso”:

Umdesenvolvimentotecnológicoeeconômicoque não deixa um mundo melhor e umaqualidadedevidaintegralmentesuperiornãopodeserconsideradoprogresso.

Aideologiaburguesadoprogresso,portanto,nãocontacomoapoiodeFrancisco.Progressoparaquem?Qualocustodo progresso? Na Bolívia, Francisco (2015c, p.03) destacoutambémque

Quandoo capital se tornaum ídolo e dirigeas opções dos seres humanos, quando aavidez de dinheiro domina todo o sistemasocioeconômico,arruínaasociedade,condenao ser humano, transforma-o em escravo,destróiafraternidadeinter-humana,fazlutarpovocontrapovoe,até,comovemos,põeemrisco esta nossa casa comum, a irmã e mãeterra.

Franciscoagrupouváriosproblemassociaisaoredordeumacausacentral-estrutural,osistemafocadonaacumulaçãopermanentedecapitalque,paraele,estáconstitutivamenteem contradição com a “fraternidade inter-humana” e oequilíbrioambiental.

AlgunsmesesantesdoencontronaBolívia,defato,naaudiênciageraldequarta-feira,21dejaneirode2015,elejádestacaraque

127

a causa principal da pobreza é um sistemaeconômico que deslocou a pessoa do centroe ali colocou o deus dinheiro; um sistemaeconômicoqueexclui,excluisempre:excluiascrianças,osidosos,osjovens,semtrabalho...equecriaaculturadodescarteemquevivemos(PAPAFRANCISCO,2015a).

Franciscoabre,portanto,umcapítulonovonahistóriadaDoutrinaSocialdaIgrejaCatólica.Umcapítulodiferente,antissistêmico e pela centralidade do protagonismo dosexcluídosnosprocessoshistóricosdeinclusão.

Até sobre o tradicional princípio da subsidiariedade(MAGAGNOTTI, 1991), interpretado pelos católicosburguesescomoliberdadeeconômicadosempresáriosfrenteaos“abusos”doEstado,Franciscosugereumainterpretaçãodiferente, como subsidiariedade popular, protagonismo dabase, dos excluídos organizados em seus movimentos naconstruçãodasociedadedainclusão.ParaFrancisco(2015c,p.07), de fato, no “processo de mudança” os movimentospopulares são os “poetas sociais”. É deles o protagonismo:“Os povos do mundo querem ser artífices do seu própriodestino”, destacou (Ibidem, p.08), “não querem tutelas neminterferências, onde o mais forte subordina o mais fraco”(Ibidem,p.08).

Do ponto de vista das mudanças sociais, Franciscoconcentra sua atençãonaquestãodasmudançasdeordemestrutural,pelasuperaçãodeumsistemageradordanegaçãoprática, cotidiana, da fraternidade inter-humana. Dessaforma,criticouaposiçãodosquefogemdoterrenodabuscade mudanças estruturais sustentando “que não haja nada

128

quesepossafazerparaalémdecuidardenósmesmosedopequenocírculoda família edos amigos” (Ibidem,p.03).Ohorizonte político de Francisco - sem excluir, ao contrário,valorizandooterrenodomicrossocialeda“conversãosinceradasatitudesedocoração”(Ibidem,p.04)-éohorizontedamudançadesistema.Eosujeito-chavenesseprocessodelutaantissistêmica é sujeito de base, os movimentos popularesinternacionais-locais:

Que posso fazer eu, recolhedor de papelão,catadorde lixo, limpador,reciclador, frenteatantosproblemas,semalganhoparacomer?Que posso fazer eu, artesão, vendedorambulante, carregador, trabalhador irregular,se não tenho sequer direitos laborais?Quepossofazereu,camponesa,indígena,pescadorquedificilmenteconsigoresistiràpropagaçãodasgrandescorporações?Quepossofazereu,apartirdaminhacomunidade,domeubarraco,domeupovoado,daminhafavela,quandosoudiariamente discriminado e marginalizado?Que pode fazer aquele estudante, aquelejovem, aquele militante, aquele missionárioqueatravessaas favelaseosparadeiroscomo coração cheio de sonhos, mas quase semnenhuma solução para os seus problemas?Podem fazer muito. Vós, os mais humildes,osexplorados,ospobreseexcluídos,podeisefazeismuito.Atrevo-meadizerqueofuturodahumanidadeestá, emgrandemedida,nasvossas mãos, na vossa capacidade de vosorganizar e promover alternativas criativasna busca diária dos três “T” – entendido? –(trabalho, teto, terra), e também na vossaparticipaçãocomoprotagonistasnosgrandes

129

processos de mudança, mudanças nacionais,mudanças regionais e mudanças mundiais.Nãoseacanhem!(Ibidem,p.03-04).

Um papa, portanto, com uma posição antissistêmicae a favor da centralidade do protagonismo dos excluídos,organizados em seus movimentos mundiais-locais, notrabalhopopulardesubstituiçãodoatualsistema,focadonaacumulaçãodecapital,porumsistemadiferente,fundadonainclusão.

Paraisso,porém,Francisco(2015c,p.06)nãoapresentauma fórmula própria, nem indica uma terceira, quarta, ouquintaviaalternativaemrelaçãoaocapitalismo:“NemoPapanemaIgrejatêmomonopóliodainterpretaçãodarealidadesocialedapropostadesoluções”, “nãoexisteumareceita”.O que ele faz é tornar seu o método de construção dessanovasociedadequeeleidentificoucomosendoométododosmovimentospopularesinternacionais:

Aqui,naBolívia,ouviumafrasedequegostomuito: “processo de mudança”. A mudançaconcebidanãocomoalgoqueumdiachegaráporqueseimpôsestaouaquelaopçãopolíticaou porque se estabeleceu esta ou aquelaestrutura social [...]. A opção é a de gerarprocessosenãoadeocuparespaços(Ibidem,p.04).

Processodemudançaprotagonizadopermanentementepelas organizações de base, pelos movimentos populares,identificando rumos e trabalhando para realizarmudançasestruturaislocais,regionais,mundiais.

130

Depois do encontro na Bolívia, em novembro de2016, Francisco voltou a se encontrar com osmovimentospopulares,novamenteemRoma,comonoprimeiroencontro.Nesse terceiro encontro, confirmou as teses dos encontrosanteriores, não amenizou suas críticas. Em vez de adotarum tom mais moderado, como esperavam os católicosconservadores, classificou como “terrorista” o sistemaeconômico internacional do “controle global do dinheiro”,geradordeexclusão,de imigraçãoemorte: “Este sistemaéterrorista”(PAPAFRANCISCO,2016,p.03).E,citandopartedeumdiscursopronunciadoalgunsmesesantes,completou:“o terrorismo começa quando ‘se expulsa a maravilha dacriação, o homem e a mulher, colocando no seu lugar odinheiro’”(Ibidem,p.03).Portanto,nadadeamenidadescomosistemadaacumulaçãopermanenteeincessantedecapital,pontopolíticoemcomumentrePapaFranciscoeFreiBetto,juntocomaopçãopelacentralidadedabasenos“processosde mudança”, na expressão dos movimentos popularesdestacadaporFrancisco.

4.2. Betto e Francisco

PapaFranciscoestásendoumagratasurpresaparaosmovimentos populares e para os intelectuais-militantes,leigos e católicos, que pesquisam e agem orientados pelohorizonte político e epistemológico da libertação dosoprimidos,queéohorizontetambémdeFreiBetto.

O escritor brasileiro, militante de base, junto à base,atravessou a turbulência política neoliberal sem aderir ao

131

revisionismo.EatravessoucomamesmafirmezaideológicatambématurbulênciaconservadoradopapadodeJoãoPauloII, quando católicos de esquerda foram sistematicamentecombatidosdesdeoVaticano,comofechamentodeinstitutosde teologia, trocade bispos, censura a teólogas e teólogos.Assim,achegadadeFranciscoesuasprimeirasaçõesforamacolhidascomoboa-nova.

Emsetembrode2016,naItália,ondeencontrava-separao Festival Internacional de Literatura deMântua, em umaentrevista,FreiBetto(2016,s/p)afirmou:

Emmais de 70 anos eu não tinha visto ummilagre na Igreja, desde a eleição do PapaJoãoXXIII.Eupensavaquealgoassimnuncamais voltaria a acontecer. E outro milagreaconteceu: a eleição de Bergoglio, o PapaFrancisco.

Paraobrasileiro,“Franciscoé,efetivamente,oprimeiroPapaquefaladascausasdasinjustiçasnomundo”(BETTO,2016 s/p). Papas anteriores criticaram os efeitos docapitalismo,mas

Franciscovaialém,apontaascausas.NenhumPapahavia feito issoantes.EmsuaencíclicaLaudato Si’ ele aponta que a desigualdadevem de um sistema que tem o capital comoprioridade e não os direitos humanos. Dissequeoproblemaecológiconãopodeservistosem levar emcontaoaspecto social, porqueodesequilíbrioambientalafeta,sobretudo,osmaispobres(Ibidem).

Betto, porém, mesmo destacando que “é uma alegria

132

queDeustenhadadoà IgrejaumhomemcomoFrancisco”,acrescentou: “Não acredito muito em que vai haver ummilagredeconversãodacúriaromana.Hámuitosinteressesem jogoaí,masacreditoemquea Igrejapodese renovar”(Ibidem).

Impossível prever se um papa cristão poderá serexitoso na transformação dessa estrutura milenar pesada,monárquico-clerical que em alguns aspectos representamais a degeneração estrutural do que a realização docristianismodeCristo.

Dequalquerforma,restaofatoquealutadosmilitantesdos movimentos de libertação, leigos e confessionais,continuaatualedifícil,dentroeforadaIgrejaCatólica.Essalutaépelaconstruçãodesistemasecomunidadesfundadasnaigualdadeentreossereshumanos,semrelaçõesestruturaisde subordinação. Luta contra o dirigismo confessional(clericalismo),contraodirigismoliberal-burguês,capitalista,contraodirigismodasdegeneraçõespositivistasdomarxismoe socialismo. Uma luta de gente de ontem, como Cristo,Marx,RosaLuxemburgo.Uma lutadegentedehoje, comoBetto, Francisco, Joana, Renata, você e eu. Uma luta que,nascomunidadespopularescristãsémovidapelafécrística,subversiva em relação aos sistemas de dominação políticaleigoseconfessionais.

133

Capítulo 5

Fé e alfabetização política

NocontextodaposiçãodeFreiBettopelacentralidadeda base nos processos de transformação social, no casoespecífico de comunidades populares confessionais, a fécrísticamanifestaasuacriticidadepolíticatambémpormeiodoserviçodosagentespromotoresdealfabetizaçãopolíticadacomunidade,nacomunidade.

Por mais que o discurso religioso seja apresentadocomoespiritualepoliticamenteneutro,eleestá,aocontrário,carregado de axiomas constitutivos da classe dominanteque foram sendo inseridos e assimilados como se fossemelementos espirituais, não-políticos de tal discurso. Dessaforma, a questão da análise político-teológica do discursoreligioso, a desconstrução de seus aspectos conservadorese reconstrução do discurso religioso com a assimilação devalorespolíticospopularesseapresentacomotarefadelicada,aserfeitapelacomunidademesma,mascomacolaboraçãode agentes de alfabetização política que não são agentesde vanguarda,mas assessores da comunidade, quepensamcriticamentecomacomunidadeenãoparaacomunidade.

Para Frei Betto, o trabalho de alfabetização políticaé necessário em todos os movimentos de base, leigos e

134

confessionais, e tal trabalho terá características diferentesnos movimentos populares leigos e nas comunidadesconfessionaisdebase.

Em entrevista concedida em 23 de janeiro de 2018,em Londrina, durante o 14° Encontro Intereclesial dasComunidadesEclesiaisdeBase (CEBs), FreiBettodestacouque é preciso retomar esse trabalho de “alfabetizaçãopolítica”. Em sua avaliação, “infelizmente, durante os trezeanosdogovernodoPTnãosetrabalhouapolitizaçãodopovobrasileiro,nãosefezoqueeuchamoalfabetizaçãopolítica.Ecomisso,nóstemoshojeumanaçãodeconsumistasenãodeprotagonistaspolíticos”(BETTO,2018b,s/p).

Naçãodeconsumistasnosmovimentospopulareseemcomunidadesconfessionais influenciadaspela interpretaçãomercantildafé.

Betto utilizara a expressão “alfabetização política”tambémnoartigointituladoNóserramos,de2016,quando,após elencar conquistas do governo petista (Lula-Dilma) eafirmarque“os13anosdogovernodoPTforamosmelhoresdenossahistóriarepublicana”,destacou:

O golpe foi possível também devido aosnossos erros. Em 13 anos, não promovemosa alfabetização política da população. Nãotratamosdeorganizarasbasespopulares.Nãovalorizamos os meios de comunicação queapoiavamogovernonemtomamosiniciativaseficazes para democratizar a mídia. Nãoadotamos uma política econômica voltadapara o mercado interno. Nos momentos de

135

dificuldades,convocamososincendiáriosparaapagarofogo,ouseja,economistasneoliberaisque pensam pela cabeça dos rentistas. Nãorealizamos nenhuma reforma estrutural,comoaagrária,atributáriaeaprevidenciária(BETTO,2016,s/p).

Porisso,continua,

Hoje, somos vítimas da omissão quanto àreforma política. Em que baú envergonhadoguardamososautoresqueensinamaanalisara realidade pela óptica libertadora dosoprimidos? Onde estão os núcleos de base,as comunidades populares, o senso críticona arte e na fé? Por que abandonamos asperiferias; tratamos os movimentos sociaiscomo menos importantes; e fechamos asescolaseoscentrosdeformaçãodemilitantes?Fomos contaminadospela direita.Aceitamosa adulação de seus empresários; usufruímosde suas mordomias; fizemos do poder umtrampolim para a ascensão social. TrocamosumprojetodeBrasilporumprojetodepoder(Ibidem,s/p).

E,dessaforma,concluiBetto(Ibidem,s/p),

Ganhar eleições se tornou mais importanteque promover mudanças através damobilizaçãodosmovimentossociais.Iludidos,acatamosumaconcepçãoburguesadeEstado,comoseelenãopudesseserumaferramentaem mãos das forças populares, e merecessesempre ser aparelhado pela elite. Agorachegouafaturadoserroscometidos.Nasruasdopaís,areaçãoaogolpenãoteveforçapara

136

evitá-lo.Deixemos,porém,opessimismoparadiasmelhores.Éhoradefazerautocríticanapráticaeorganizaraesperança.

Eorganizaraesperança,paraele,significareorganizar-se a partir da base, dos movimentos populares leigos econfessionais, lugarprivilegiadode “alfabetizaçãopolítica”.Masondeecomoocorreessa“alfabetizaçãopolítica”? Para Betto, a alfabetização política ocorre a partir dolugardosvencidosqueéondesecompreendeosignificadodaopressãoesuaspossibilidadesdelibertação.Eocorrecomoprocesso histórico-dialético de revelação das contradições,com a desconstrução das “naturalidades” construídas pelocapitalismo: de que seria “natural” que existam ricos epobres,quepobresobedeçamericoscomandem;ou,quandoas construções ideológicas do capitalismo contam com overnizdabênção religiosa,que seriada “vontadedeDeus”queexistamricosepobres.

No âmbito dos movimentos populares confessionais,como as CEBs, a alfabetização política não prescinde doauxílio da fé libertadora, que é a fé crística, fé que revelacontradiçõesedesconstróisualegitimaçãoreligiosa-comofez Cristo que contestou as “naturalidades religiosas”construídaspelosistemadedominaçãopolítico-confessionaldeseutempo,conformejácitado.

SegundoBetto(1981,p.104),asCEBssão,defato,“espaçosdeanimaçãodavidaemsuatotalidade,à luzdafé.Nãohácomunidadeeclesialsenãoondeafééexplicitamentenutrida,refletidaecelebrada”.Mascomofuncionapoliticamenteafé

137

crística?ParaBetto(2006b,p.103),“afédesmascara,àluzdapalavra de Deus, o discurso ideológico dos dominadores”.Assim, não se trata de uma fé legitimadora das estruturasde dominação. A fé crística é crítica em sentido histórico-dialético:revelaascontradiçõesdotempopresenteepromoveadesconstruçãodessascontradiçõesapartirdarevelaçãodavontade libertadoradaTrindade.Portanto,duplarevelação:dascontradiçõescontidasnabarrigadorealedarealidadeparadigmáticadaTrindade.Dessaforma,essafécríticaindicatambém, a partir do lugar político de conexão dessa duplarevelação,queéolugardosoprimidos,oscaminhosemetasdesuperaçãodessascontradições.

É esse tipo de fé que desmascara, nos processospopulares de alfabetização política, o caráter conservadordosdiscursosreligiososconstruídospelocapitalismoparaasualegitimaçãoconfessional.Dessaforma,oprimeiropassonessesprocessospopularesdealfabetizaçãopolíticanoâmbitodas comunidades populares confessionais, como as CEBs,consiste em verificar que o discurso religioso tradicionalnãoépoliticamenteneutro,apolítico,masideologicamenteconservador,poisproduzlegitimaçãoreligiosadepostuladoscapitalistas que acabam sendo assumidos como sefossem postulados bíblicos, cristãos. Assim, ao se criticardeterminadospostuladoscapitalistaspodehaverrejeiçãodetalcríticaporquemjáassimiloutaispostuladoscapitalistascomo se fossem postulados espirituais, religiosos, cristãos.Aqui entra o processo de alfabetização política no âmbitodas comunidades populares confessionais, que significa,paraBetto(1981,p.73),identificar“aintrojeçãodaideologiadominantenaesferareligiosa”,ouseja,analisaredesmascarar

138

ospostuladoscapitalistascontidosnalinguagemreligiosaejáassimiladoscomosefossempostuladosconfessionais.“Alinguagemreligiosaemnossasociedadeestáhistoricamenteviciadapelaideologiapredominante”(Ibidem,p.74).

5.1. Agente pastoral e alfabetização política

O promotor da alfabetização política, segundo Betto,é o que ele chama de “agente pastoral”, que não é umagente clerical nem agente de vanguarda. O protagonistada alfabetização política é a própria comunidade popularque, no caso das CEBs, que são comunidades popularesconfessionais, contam com a colaboração do “agentepastoral”quetemumpapeldeassessoria(Ibidem,p.18).Eledevetransitardistantedo“riscodecairnaatitudecolonialistade quem quer ensinar à comunidade popular sem antesaprendercomelaerefazercategoriaselitistas,academicistas,populistas ou vanguardistas” (Ibidem, p.18-19). SegundoBetto(Ibidem,p.34),emsuma,

É o próprio povo que deve assumir adireção de sua caminhada. As pessoas domeio popular tomam em mãos essa direçãoatravésdasliderançasgeradaseconsolidadaspelo próprio trabalho. Essas lideranças,submetidasaocontrolepermanentedasbasese revogáveis a qualquer momento, devemestabelecer a mediação do agente pastoralcoma comunidade, impedindo que o agenteseja,naprática,odirigentedacomunidade.

Dessa forma, fica excluída a figura do agente-guru,

139

clérigo ou leigo que faria palestras-show “teológico-libertadoras”, reduzindo as CEBs à condição de plateia deestrelismos de gurus da esquerda católica. A alfabetizaçãopolítica “será obra dos próprios setores popularesorganizados”(Ibidem,p.36),contandoapenascomoauxílio(assessoria) dos agentes, ou seja, a centralidade é dascomunidadesdebaseenãodoassessor-guru.

Nas CEBs, a fé crística e crítica realiza papelfundamental nesse processo comunitário de alfabetização,revelando“ascontradiçõesinternasdocapitalismo”(Ibidem,p.52).Alémdisso,talféprojeta,apartirdabasepopular,“abuscadeumaalternativaparaosistemacapitalista”(Ibidem,p.85) desde o ponto de vista dos excluídos do sistema: “Aprática pastoral das comunidades eclesiais de base parteda situação dos oprimidos e tem, como horizonte, a sualibertaçãointegral”(BETTO,1981,p.66).

Em tal processo popular de alfabetização política estácontida a análise do discurso religioso, que não é neutronemapolítico.Ocorrequealgunspostuladosdocapitalismojá entraram e se acomodaram no discurso religioso hátanto tempo que tais postulados são apresentados comose fossem ingredientes “normais”, constitutivos dessediscurso. Proclamam-se assim postulados capitalistasnas comunidades religiosas como se fossem postuladoscristãos. Dessa forma, o trabalho de alfabetização políticanas comunidades populares confessionais consiste tambémnessa operação de análise crítica de discurso, separandotais postulados capitalistas do conteúdo libertador da fécrística.Aqui entrao trabalhodoagentepastoral, trabalho

140

feitonacomunidadepopular,comacomunidadepopular:“Énecessárioqueoagentepastoralpenetreodiscursoreligiosodo povo e descubra seu conteúdo político” (BETTO, 1981,p.73).Paraisso,

O agente deve desconfiar de sua própriaracionalidade, de seu saber “científico”, paraaprender a sabedoria popular, as formasde expressão não lógicas da linguagem dopovo.Éprecisotambémqueoagenteexploreo universo simbólico da religião, conheçaa função integradora do mito e a funçãomobilizadoradorito,percebaaintrojeçãodaideologia dominante na esfera religiosa. Sóassimépossíveldescobrirocaráterlibertadordouniversosimbólicodareligião.Époressecaminhoqueoagenteaprenderá,juntoasuacomunidade,afazerumaleituradoEvangelhopela ótica do oprimido, de tal modo que oseu discurso religioso seja simultaneamentelibertador(Ibidem,p.73-74).

O agente, portanto, é um sujeito da comunidade que,com ela, realiza essa operação de desmascaramento dascontradiçõesdocapitalismocontidasnalinguagemreligiosa,e a tradução também em linguagem das possibilidades delibertação indicadas pela fé comunitária. Segundo Betto(Ibidem,p.74),defato,

A linguagem religiosa, manipuladaideologicamente pela classe dominante,tencionadaraooprimidoavisãodequetantoa ordem natural quanto a social decorremda vontade divina e só por ela podem sermodificadas.Assim,anteumanaturezahostil

141

e uma sociedade injusta, não resta senãorezar,fazerpenitência,aprofundarafé,afimdequeDeussecompadeça.Qualqueratitudedemudançadessarealidadeporpartedoserhumano representa uma dupla subversão: àordem permitida por Deus e às autoridadesconstituídasporele.

Para Betto (Ibidem, p.74), dado que está “viciada pelaideologia dominante”, a linguagem religiosa precisa seranalisada e desconstruída quando estiver em contradiçãocom a fé crística. E a nova linguagem decorrente dessainterpretação libertadora da realidade a partir da fécrítica não será uma linguagem explicitamente políticaintelectualizada, mas “uma linguagem especificamentereligiosa,intrinsecamentelibertadora,tãoreveladoradorealque possua amesma força de conversão e demobilizaçãoquealinguagemdeJesusnaPalestinadoprimeiroséculodanossaera”(BETTO,1981,p.75).

A troca da ideologia conservadora pela libertadoranessa operação cultural de análise do político contidona linguagem religiosa ocorre nessas relações complexasentre comunidade de base e a assessoria dos agentes dealfabetizaçãopolíticadascomunidades,quenãosãoagentesdocentesdecomunidadesdiscentes,masagentes-assessoresdecomunidadesquesãopastorasenãoovelhas.

EmsuaexperiêncianasCEBs15comoassessor(agente)dealfabetizaçãopolítica,FreiBetto(Ibidem,p.76)constatouque“opovovaiàreuniãodascomunidadespararezarefalar,

15 SobreasComunidadesEclesiaisdeBase,Cebs,pequenosgru-

142

cantaresuplicar,empalavraseatitudes,enãoparaabsorverareflexãodoagenteourezarapenascomoespírito,sobumsilênciofúnebreearrastado”.

Dessa forma, a atividade do agente nas comunidadespopulares confessionais émaisdoqueaula e reunião,masparticipação em um processo de alfabetização política queocorrenasrelaçõesprático-teóricasentremobilizaçãorealefé crítico-crística.Tal processovisa, entreoutrosobjetivos,“desapropriarocristianismodasmãosdaclassedominante,esvaziarodiscursoreligiosodesuasconotaçõesburguesas,recuperar a dimensão intrinsecamente libertadora damensagemevangélica”(BETTO,1981,p.83).

Nessesentido,ficaexcluídaafiguradoagentemilitanteateísta, mas não a do revolucionário ateu não-sectário emrelação à questão da religiosidade popular. Trabalhar asrelações críticasentrediscursopolíticoediscurso religioso(oraleescrito)numaperspectivapopular-libertadoraexcluioateísmocomoposiçãodogmáticaantirreligiosaenãooserateunão-ateísta.Oquevaleparaoâmbitodascomunidadespopularesconfessionais,comoasCEBs,mas, também,paraos movimentos populares leigos que, mesmo sendo leigosenquantomovimentos,seforempopularesserãopermeadospelareligiosidadepopularqueseusmilitantestrarãoemsuasbagagensculturais.

Não se trata de exclusão do ateu da comunidadepopularconfessional,atéporquehápesquisadoresateus(não

posquearticulamarelaçãoentrefécristãevidasocial,organizadosemtornodaparóquia(urbana)oudacapela(rural)cf.Betto(1981).

143

ateístas)quetransitambemnoâmbitodascomunidadesdomovimentodaTeologiadaLibertação,comoMichaelLöwy(2014),quesedefine“umateureligioso”.

O contraste é entre religiosidade das comunidadespopulares de fé libertadora e ateísmo militante. Betto(1981, p.72), nesse sentido, em sua experiência nas CEBsconstatouque “opovonãoé,de fato, refratárioaoalcancepolítico do discurso religioso. É refratário ao discursopolíticoqueameaceetendaasuprimirodiscursoreligioso”.Oque significa constatarqueempaíses caracterizadosporreligiosidade popular, como os da América, Ásia, África,afigurado“comunistaateu”quecondenaa religiãoemsi,e não somente a religião ópio, será sempre uma figura de“vanguarda”separadadotecidopopular.

Para Betto (Ibidem, p.85-86), em suma, em algunslugaresdomundoé“impossívelpensaremalternativasocialsem levaremcontaa religiosidadedopovo.Éumdadoderealidadee,aomesmotempo,umproblemapolítico”.Pode-se continuar combatendo a religiosidade, como ainda ofazemalguns “marxistas”ateístasdeacademiaede jornaisde “vanguarda”, ou “descobrir como lidar com ela e emque medida ela pode ajudar na libertação dos oprimidos”(BETTO, 1981, p.86), como o faz Betto desde umponto devistarevolucionário-cristão;comoofezRosaLuxemburgoeofazMichaelLöwydesdeumpontodevistarevolucionárioleigo,ateu-religioso.

Nasrelaçõesentremovimentosdebase,alfabetizaçãopolíticaeprocessosdelibertação,“ofatoéquenãosechega

144

à libertação senão pela via escolhida e assumida pela basepopular organizada e esta, historicamente, repele todatendência que pretenda considerá-la como simples ‘massademanobra’” (BETTO,1981,p.105).Seabase for religiosa,portanto, cabe compreendê-la também a partir desta suacaracterística, realizando tal trabalho de identificaçãoe análise do discurso político conservador contido nalinguagemreligiosadacomunidade,movidonãoporrazõesoportunistas, instrumentais, mas pelo reconhecimentosincerodesuaspeculiaridades.

Issonão significamitificar a base, que é carregadadeconflitos, contradições, sofrimentos, mas reconhecer queé o lugar da revolução (mudança de sistema) justamenteporquealiestãoosconflitos,ascontradiçõese sofrimentosque clamam permanentemente pela construção de umalibertaçãosistêmica.

Dessa forma, quem quiser trabalhar pelamudança desistema apenas promovendo debates na universidade oupublicando artigos em jornais eletrônicos de “vanguarda”continuará colocando fermento em areia. A farinha efermento da mudança de sistema estão na base popular,são a base popular que, naAmérica Latina, África, Ásia émajoritariamente religiosa. Nesse sentido, a passagem dareligiosidade conservadora à religiosidade revolucionárianão ocorrerá pela negação ateísta tout court da religião,mas pelo reconhecimento de suas peculiaridadesepistemológicas e políticas no trabalho de alfabetizaçãopolítica.

145

Foradacentralidadedabase,portanto,nãohásalvaçãoparaamudançadesistema,porque“sóapartirdapráticadosoprimidos,daslutasdostrabalhadores,podemosentenderaestruturainternadeumsistemaque,paraperpetuar-se,geranooprimidosuapróprianegação”(BETTO,1981,p.107).Umabase que, repetindo, gostem ou não gostem os militantesateístas,emmuitos lugaresdomundofoiecontinuasendomajoritariamente religiosa apesar da decenal propagandaateísta dos iluministas burgueses e dos socialistaspositivistas.

146

Conclusão

Beatriz eAlberto viveram no final do séculoXIV emumburgonãomuitodistantedeFlorença.Queriamsecasar,masopaidamoçanãopermitiu.Beatriztinhasangueazul,Alberto não. Seu pai, Ugolino, burguês rico, mas plebeu,filho de plebeu, enriquecera vendendo tecidos.Aborrecido,mas semperdera calmaqueadquirirano tratodifícil comas duquesas, baronesas e marquesas que compravam seustecidos,UgolinoprocurouopaideBeatrizque,semrodeios,lheexplicou:“Veja,vocêéumaótimapessoa,éatémaisricodo que eu... Beatriz estaria bem acomodada com Alberto,masvocêésomenteumburguêsrico,semsangueazul.Nãopossopermitirumacoisadessasparaminhafilha,paraminhafamília...seriaumadesonra,esperoquevocêentenda...”.

Ugolinoretirou-sesemdizernada.Emcasa,conversoucalmamente com o filho: “Faça-me um favor, desista dessamoça. Não quero me tornar parente dessa gente. Nãotrabalham,vivemderendaedenomes,títulos.Faça-meessefavor”.Albertoadmiravaopai.“Amoressãocomotecidos...hojegostamosdeste,masamanhãchegaummelhor”,disse-lheUgolinoentreosnovostecidosrecém-chegados.Albertonão procurou Beatriz nemmesmo para dizer que desistiradesseamor.“Écomoumtecido...”,pensou.

Dias depois, Ugolino despertou mais feliz do que o

147

habitualporcausadeumsonhoquenãosedesmanchouemsualembrançaapósosprimeirosminutosdoalvorecer.

Àtarde,foinovamenteconversarcomopaideBeatriz.Chegousorridente,foibemrecebido.“Vimaquiparalhedizeroquevaiacontecernofuturo,quandojáestaremosmortos,bem mortinhos”. “Pois fale, lhe escuto”. “Ora”, continuouUgolino,“nessanoiteeuviofuturo...euquenãoacreditoemcéunememinfernoviofuturoevoulhedizercomoovi,tãorealcomoquemcortaumtecidoeotrocaporalgumasmoedas.No futuronão vai termaismonarquia, não vai ter sangueazul...nadadebarõesnembaronesas...issovaisersónomederua.Nofuturovocêsnãovãomaismandar...nofuturoopoderseránosso,daburguesia...todosvãoquerercasarcomnossosfilhosefilhas...mandaremosaquinonossoburgoenomundo...conquistaremosomundoevocêsexistirão,nomáximo, comofigurasdecorativas,quadros, enfeites,peçasmaisoumenosmortasdemuseu...enãolhedigoissoparaofender, não é uma questão pessoal... digo isso só paravocêsaberqueopoderdevocêsnãoéeterno,vaiacabarenós vamos ocupar o lugar de vocês...”, completouUgolino.Transmitidaamensagem,satisfeitoeleosaudouedirigiu-seàsaídadacasa.Voltouparaseucomérciodetecidos...sentiavontadederirenquantovendiaparaasduquesas,baronesasemarquesasdeseuburgo.“Elasvãopassar,masvivemcomosefossemeternas”.Emcasa,colocounumpapeloseusonhocomo quem anota o lucro do dia. “Filho, guarda isso comvocê.Escrevi sobreo futuro”.Nofinaldodia, conversandocomAlberto,comentou:“Asegundapartedosonho,porém,medeixoutriste.Nãohavianomundomaiságualimpa,océuficoucinzentomesmonoverão,acomidaperdeusaborea

148

terrachorava,choravamuito”.“Bem,maséumsonhopai.Ossonhosnãotraçamnossodestino,algumascoisasacontecemeoutraspodemserevitadas”.“Deveser.Masvamostrabalhar...mepasseporfavoraqueletecidomarromqueumaservadaduquesadeiFabbriviráagorabuscá-lo”.

Séculos depois o sonho premonitório de Ugolino serealizou. A hegemonia da monarquia, que parecia sólida,eterna,destinadaaoinfinitofoidissolvidanãonoar,masnaterradahistóriarealdalutadeclasses.Foisubstituídapelahegemoniadaburguesiaque,agora,dizqueasuahegemoniaéaeterna.

Sendo a história um cemitério de hegemonias nadaasseguraàburguesiaagarantiadeeternidadedasua,mantidaa ferro, fogo e produção de sonhos de consumo em suasempresasdeentretenimento,publicidadeemanipulaçãodeinformações.

O sonho de Ugolino é hoje coisa sabida, batida, masquem levar seu sonho para o terreno atual da hegemoniaburguesaetratá-lacomoprodutocomprazodevalidadeseráconsideradocomoUgolinonãoquisserconsideradoemseutempo.Por isso escreveu seu sonho emumbilhetinhoquemostrousomenteaofilho.

O prazo de validade de uma hegemonia depende desua capacidade de eternizar-se camuflando, minimizando,justificando suas contradições, apresentando-se comonecessária, inevitável, eterna. A monarquia se apresentoucomopodereterno,deorigemdivina,parteconstitutivada

149

ordem natural das coisas. Foi sustentada pela religião domedo. A burguesia e o capitalismo trocaram a religião domedopelareligiãodoprazer,doconsumo,dolucro,comos“mistérios”docapitalque,de tãosobrenaturalquesãonãopoderiam ser capturados pela cognição nem modificadospelaaçãopolítica.Assim,apesardassuastantascontradições,consegueconvencerdocontráriousandoamáscaradabelezafictícia, eliminando do horizonte da maioria a visão realquepoderia acelerar o seudeclínio.Apesar damáscara do“progresso”,porém,ocapitalismonãoéeterno.

“Ahegemoniadaburguesianãoédefinitiva”,costumavaafirmar Perseverando Santana, comunista que faleceu (em2014) commais de 90 anos e viveu na fronteira do BrasilcomoUruguai16.Sorridente,diziaque“ocomunismonãoéparaagora,masumaconstruçãoquevaiprecisardedécadas,séculos...aburguesianãoimaginavaqueumdiaconseguiriaacabarcomamonarquia,masconseguiu...levouséculosmasconseguiu”, afirmaçãoque inspiroua composiçãodonossocontoacima.

O problema é que o capitalismo, em vez de ser umaetapa da história da humanidade, pode ser a última, porassemelhar-seaumtrememaltavelocidadeindoemdireçãonãoao“progressouniversaldahumanidade”.Pelocontrário,vai em direção ao abismo apocalíptico da destruiçãoambiental,animadopelalógicadaproduçãopelaproduçãoque funciona comoo frenesi daspiranhas ao redordeumpedaçodecarne,ondeopedaçodecarnesãoossereshumanos

16 SantanadoLivramento(RS),cidade-gêmeaeconurbadacomRivera(Uruguai).

150

easdemaisformasdevidadoplaneta.

Dessaforma,alutacontraocapitalismoeahegemoniaburguesaéumalutapreservacionista,lutacontraabarbárie.E uma luta que pode ser afogada no redemoinho do“conjunturalismo”quemataosqueneletentamnadarsemaajudadaboiadopensamentoantissistêmico.

Por conjunturalismo entendemos a reflexão e açãopolíticas focadas exclusivamente na “angústia políticapermanente” das questões conjunturais. Conjunturalismosignifica, por exemplo, reduzir o pensamento ao voto, ao“poder” do votonas próximas eleições presidenciais, comoseovotoemsifosserevolucionário.PerseverandoSantana,ao contrário, afirmava que se deve pensar nas questõesestruturaisenquantoseatuanasquestõesconjunturais.

Nahistóriadoconjunturalismomonárquico,porséculosdebateu-sequemcasaria comquem,quem trairiaquemnojogo de forças da associação entre brasões de famílias desangueazulebandeirasdeEstados.Aburguesia,porém,comassuasrevoluções,cortouacabeçadessemundodefofocasevaidadesfuncionaiscomalâminadeumaguilhotinanemsemprefísica,àsvezesmetafórica,nosdoiscasosreal.

Hoje, no ano de 2018, no terreno da hegemoniaburguesa, predomina o debate conjunturalista emâmbito local e internacional. O slogan “agir localmente epensar internacionalmente” pode se inserir e legitimar oconjunturalismo.AconvicçãodePerseverandoSantana,aocontrário,nosparecemaisapropriada:agirconjunturalmente

151

planejandoasmudançasestruturais,demédioelongoprazos- mudanças que são locais-internacionais, internacionais-locais.

A convicção de Perseverando Santana, cujo nome éjáumprogramadevida, indicaoquepodemos chamardepráxisantissistêmica,queéadosqueatuamnaconjunturasemseafogarnoredemoinhodoconjunturalismo.

A práxis antissistêmica foi a de Marx, de RosaLuxemburgoeé,anossoaviso,ondeseinsereopensamento-ação, ação-pensamento político, local e internacional deFrei Betto. Assim como Marx e Rosa Luxemburgo nãoforam conjunturalistas, mesmo agindo na conjunturalocal e internacional, Frei Betto tambémnão o é.A práxisantissistêmica em relação ao capitalismo e hegemoniaburguesa é a dos que agem conjunturalmente (no local-internacional) tendo como referência as mudançasestruturais;agemnoterritórioconjunturaldasmudançasnosistema(reformas)orientadosparaoterritóriodamudançadesistema.

Talcompreensãolibertaacogniçãoeaaçãodapressaedoautorreferencialismo.Assimcomooburguêsdenossocontonãosabiaquandoacabariaahegemoniamonárquica,mas sabia que chegaria, os revolucionários antissistêmicosde hoje também não sabem quando e como ocorrerá amudançadesistema,asubstituiçãodahegemoniaburguesapelahegemoniapopular,mas trabalhamhojeparaque issoaconteçanumamanhãquepodeseremanos,décadas.

152

Frei Betto (2018, s/p), sobre esses tempos conhecidos-desconhecidosafirmou:

Nosanosde1960,eupensavaqueomeufuturo pessoal haveria de coincidir como tempo histórico. Hoje, sei que nãoparticipareidacolheita,masfaçoquestãodemorrersemente.

Bettonãosabequandoocorreráamudançadesistema,assimcomoMarxeRosatambémnãosabiam.Aocontráriodos cristãos conservadores, porém, sua fé na vida eterna(temposescatológicos)nãooafastadocompromissocomatransformaçãohistórico-estrutural desse tempo.Vai, assim,atravessando ativamente o mar traiçoeiro da hegemoniaburguesa, colaborando na construção do poder popular,navegandosobaorientaçãodaestrela-guiadasociedadesemdominaçãoestruturaldeclasse,nacionalidade,raça,gênero,credo,etnia.

Entretanto, a felicidade, nessa travessia, não está sóno porto de chegada. Está já na própria navegação: “Umaideia,umprojetonãovalesomentepeloresultadoquepoderealizar, agora ou depois... uma ideia, um projeto vale senos dá felicidade, se nos torna felizes”, dizia PerseverandoSantana, esse velho-jovem comunista que viveu feliz emorreu“semente”do“tempohistórico”,naexpressãodeFreiBetto.Morreuvivendo.Morreucomoquemnãomorre.

Portanto, iniciamos esta pesquisa com o objetivo deverificar as origens da associação entre ateísmo,marxismoe socialismo, considerada “normal” entre os leninistas, e

153

descobrimosquetalassociaçãonãofoiobradeMarx,quefoiateu,masnãoummilitantedoateísmo.Nemfoiumacriaçãodo“terrível”Stalin,masumaproduçãodo“valoroso”Leninqueutilizoufontesexógenasaomarxismoparaaconstruçãodetalassociaçãoviolentaqueteveconsequênciasdramáticasnahistóriadossocialistascrentes,alémdeterdesacreditadoo marxismo junto às populações crentes por motivosdesnecessários,alheiosaomarxismo.

Ao longo do estudo, verificamos também que talassociação entre socialismo e ateísmo não contou com oapoio da revolucionária marxista Rosa Luxemburgo, quecontestouas religiõesópio,masnãoas religiões emsi.Aocontrário,sustentouodireitoàliberdadedecrençaounão-crença.Entretanto,acontestaçãodetalassociaçãodeorigemexógena ao marxismo nós encontramos de forma maisespecificamente articulada na obra prático-teórica de FreiBetto.

É verdade que o pensamento de Betto está associadoao contexto do pensamentomais amplo domovimento daTeologia da Libertação, mas é verdade, também, a nossoaviso,queemBettoarejeiçãodaconfessionalidade(ateísmo)do socialismo se manifesta de uma forma peculiar quenão emerge na produção literária de outros autores dessemovimento nem com as mesmas características prático-teóricas típicas do pensamento político de Frei Betto, atémesmo porque nem todos do movimento da Teologia daLibertaçãoadotamposiçõespolíticasantissistêmicascomoofazBetto.

154

Assim,aoestudarmosacontestaçãodaassociaçãoentreateísmoesocialismoemFreiBetto,identificamossuaposiçãoporumsocialismodebase,jamaisdevértice,umsocialismoqueéaomesmotempopopularelaico.Nessesentido,fomosatrás dos fundamentos políticos e político-teológicos daposição de Betto pela centralidade da base e descobrimos,também, que a posição do atual papa, Francisco, coincideinvoluntariamente com a posição antissistêmica de Bettoemrelaçãoaocapitalismoe,também,comsuaposiçãopelacentralidadedabase.

Dessaforma,concluímosnossapesquisaidentificandosemelhanças políticas - no reconhecimento da diversidadedeorigensefundamentos-esoluçãodecontinuidadeentreMarx, Rosa e Betto, três pensadores-atores a nosso avisoatuais, vitais e paradigmáticos para o presente e futurodo socialismo laico e popular que, segundo a expressãodeMichaelLöwy(2014),está“apenascomeçando”.

155

Referências bibliográficas

BENTO,FábioRégio.Cristianismoedemocracia:dasoberaniados“pastores”àsoberaniadas“ovelhas”. In:BENTO,FábioRégio (org.). Cristianismo, humanismo e democracia. SãoPaulo:Paulus,2005,p.19-47._____. Igreja Católica e Revolução na América Central –Quebra de paradigma na Nicarágua. Revista ConjunturaAustral.UFRGS.Vol.07,n.33-34,p.16-32,dez.2015-jan.2016._____.Marxismoereligião.RevoluçãoereligiãonaAméricaCentral.Jundiaí-SP:Paco,2016.

BEOZZO,JoséOscar.CristãosnaUniversidadeenaPolítica–históriadaJUCedaAP.Petrópolis:Vozes,1984.

BENVENUTO, Giorgio. Unione tra valore del lavoro equello della pace. In:Giovanni Paolo II:Centesimus annus(Commenti).Roma:EdizioniLogos,1991,p.41-46.

BETTO,Frei.Oqueécomunidadeeclesialdebase.SãoPaulo:Brasiliense,1981._____.Oraçãona ação–Contribuição à espiritualidadedalibertação.Riodejaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1985._____.Cristianismoemarxismo.Petrópolis:Vozes,1986._____.Fideleareligião.SãoPaulo:Brasiliense,1986b._____. Cristãos: como fazer política (escrito com outros

156

autores).Petrópolis:Vozes,1987._____. O socialismo morreu. Viva o socialismo! REB,Petrópolis,vol.50,fasc.197,março1990,p.173-176._____.AteologiadalibertaçãoruiucomomurodeBerlim?REB,Petrópolis,vol.50,fasc.200,dez.1990b,p.922-929_____.Cubaeodomdavida.REB,Petrópolis,vol.52,fasc.206,junho1992,p.436-439._____.Amoscaazul.Reflexãosobreopoder.RiodeJaneiro:Rocco,2006._____. Batismo de sangue – Guerrilha e morte de CarlosMarighella.RiodeJaneiro:Rocco,2006b._____.Calendáriodopoder.RiodeJaneiro:Rocco,2007._____. Cartas da prisão (1969-1973). Rio de Janeiro: Agir,2008._____.FomedeDeus–Féeespiritualidadenomundoatual.SãoPaulo:Paralela,2013._____.Paraísoperdido.Viagensaomundosocialista.RiodeJaneiro:Rocco,2015._____. Nós erramos. 25/09/2016. Disponível em: http://hojeemdia.com.br/opinião/colunas/frei-betto-1.334186/nós-erramos-1.415888.Acessoem25/01/2018._____.EntrevistaemMântua.Setembro2016.Disponívelem:http://www.ihu.unisinos.br/noticias/560650-francisco-e-o-primeiro-papa-que-fala-das-causas-da-injustica-no-mundo-entrevista-com-frei-betto.Acessoem:07/12/2017._____. Espiritualidade em Tempos de Crise. Janeiro 2018.Disponível em: https://noscaminhosdefrancisco.wordpress.com/2018/01/03/espiritualidade-em-tempos-de-crise/.Acessoem:09/01/2018._____.Entrevista,2018b.Disponívelem:http://portaldascebs.org.br/2018/01/24/frei-betto-a-igreja-brasileira-e-timida-

157

perdeu-o-profetismo-de-tempos-passados/. Acesso em25/01/2018.

BOFF, Clodovis. A justiça na história (II): capitalismo,socialismo,discernimentocristão.Vozes72(1978)I,p.85-96._____.Cartasteológicassobreosocialismo.Féemilitância1.Petrópolis:Vozes,1989.

BOFF, Leonardo. A Trindade, a sociedade e a libertação.Petrópolis:Vozes,1986._____.Dolugardopobre.Petrópolis:Vozes,1986b.

CARDENAL,Fernando.Juntoamipueblo,consurevolución-Memorias.Madrid:EditorialTrotta,2009.

CARLETTI,Anna.Ofenômenoreligiosonoensinoepesquisaem Relações Internacionais do Brasil. Anais eletrônicos 6°EncontrodaABRI. Julho2017.Disponível em:http://www.encontro2017.abri.org.br/resources/anais/8/1497802259_ARQUIVO_ArtigoAnnaCarletti_ABRI_2017.pdf. Acesso em:10/01/2018.

CARLETTI, Anna; FERREIRA, Marcos Alan. Religião eRelaçõesInternacionais.Curitiba:Juruá,2016.

COMTE, Auguste. Discurso preliminar sobre o espíritopositivo(1848).Disponívelem:http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/comte.pdf.Acessoem:20/01/2018.

ENGELS,F.CartaaBloch,21/09/1890.In:MARX,K;ENGELS,F.ObrasescogidasdeMarxyEngels.Madrid:Fundamentos,

158

1975.

LENIN,Vladimir.SocialismoeReligião(SotsializmiReligia).Revista Novaia Zhizn (Nova Vida), n.28, 03 dez. 1905.TraduçãodeErickFishukDisponívelem:http://www.fishuk.cc/2014/08/religiao.html. Acesso em: 12/05/2017. Texto emrussoem:http://www.revolucia.ru/soc_relg.htm.

LIMA,Haroldo;ARANTES,Aldo.HistóriadaAçãoPopular–daJUCaoPCdoB.SãoPaulo:Alfa-Omega,1984.

LOUREIRO, Isabel (Org.). Rosa Luxemburgo. Textosescolhidos.VolumeI(1899-1914).SãoPaulo:EditoraUnesp,2011a._____.RosaLuxemburgo.Textosescolhidos.VolumeII(1914-1919).SãoPaulo:EditoraUnesp,2011b.

LÖNNE, Karl-Egon. Il cattolicesimopoliticonelXIX eXXsecolo.Bolonha:IlMulino,1991.

LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. SãoPaulo:Cortez,1991._____.Marx e Engels como sociólogos da religião. In: LuaNova–RevistadeCulturaePolítica,n.43,1998,p.157-170._____.Aguerradosdeuses–ReligiãoepolíticanaAméricaLatina.Petrópolis:Vozes,2000._____. As aventuras de Karl Marx contra o Barão deMünchhausen – Marxismo e positivismo na sociologia doconhecimento.SãoPaulo:Cortez,2013._____.Agoraéqueahistóriadosocialismoestácomeçando.Entrevista. 03/10/2014.Disponível em:https://oglobo.globo.

159

com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/michael-lowy-cientista-social-agora-que-historia-do-socialismo-esta-comecando-14121271.Acessoem:28/01/2018._____. Entrevista Correio da Cidadania. 30/06/2016.Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FInternacional%2F-Nenhum-Papa-foi-tao-longe-na-condenacao-ao-capitalismo-como-Francisco-%2F6%2F36368#.WkgqRmEcMKI.facebook. Acesso em:31/12/2017.

MAGAGNOTTI. Paolo. Il principio di sussidiarietà nelladottrina sociale della chiesa. Bolonha: Edizioni StudioDomenicano,1991.

MAGALHÃES, Mário. Marighella – O guerrilheiro queincendiouomundo.SãoPaulo:Companhiadasletras,2012.

MAGGI, Alberto. Il dio impotente. Senigallia, 2003.Disponível em: https://www.studibiblici.it/conferenze/IL_DIO_IMPOTENTE.pdf.Acessoem29/12/2017.

MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política noBrasil.SãoPaulo:Brasiliense,2004.

MARTINA, Giacomo. Storia della chiesa – l’età delliberalismo.Brescia:Morcelliana,1995.

MARX,Karl.CríticadafilosofiadodireitodeHegel(1843).SãoPaulo:Boitempo,2010,p.145._____.CartaaFriedrichBolte.2003[1871].Disponívelem:https://www.marxists.org/espanol/m-e/cartas/m23-11-71.

160

htm.Acessoem04/10/2017._____. Estatutos da Associação Internacional dosTrabalhadores. 1982, [1871]. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/ait_esta.pdf.Acessoem:08/11/2017.Cf. também: https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/10/24.htm.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. SãoPaulo:Boitempo,2007.

MILHAZES, José. Comunismo como fase suprema doanticlericalismo. Revista do Centro de InvestigaçãoTransdisciplinar ‘Cultura, Espaço eMemória’, n. 2, pp. 63-78, 2012. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/11295.pdf

NOVAK,Michael.Lospiritodelcapitalismodemocraticoeilcristianesimo.Roma:Studium,1987.

ORDUÑA,RaimundoRincón.Lossistemaseconómicos.In:CUADRÓN,Alfonso (org.).Manualdedoctrinasocialde laIglesia.Madrid:BibliotecadeAutoresCristianos(BAC),1993,p.587-611.

PAPA FRANCISCO. Discurso aos participantes no IEncontro mundial dos movimentos populares. Vaticano,outubro de 2014. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141028_incontro-mondiale-movimenti-popolari.html.Acessoem:14/12/2017._____.Audiênciageral–quarta-feira,21dejaneirode2015a.

161

Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2015/documents/papa-francesco_20150121_udienza-generale.html.Acessoem:15/12/2017._____.CartaEncíclicaLaudatoSi’–Sobreocuidadodacasacomum.SãoPaulo:Loyola-Paulus,2015b.¬¬¬_____. Discurso aos participantes no II Encontromundialdosmovimentospopulares.Bolívia,julhode2015c.Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html.Acessoem14/12/2017._____. Discurso aos participantes no III Encontromundial dos movimentos populares. Vaticano, novembrode 2016. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa-francesco_20161105_movimenti-popolari.html. Acesso em:14/12/2017.

PAPA JOÃO PAULO II.EncíclicaCentesimusannus(1991).Disponívelem:http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html.Acessoem:14/12/2017.

POLETTO, Ivo. Brasil: oportunidades perdidas.Meus doisanosnogovernoLula.RiodeJaneiro:Garamond,2005.

QUERIDO, Fábio Mascaro. Michael Löwy – Marxismo ecríticadamodernidade.SãoPaulo:Boitempo,2016.

REIS FILHO, Daniel Aarão. As Revoluções Russas e oSocialismoSoviético.SãoPaulo:EditoraUnesp,2003.

162

RIVAS,Exequiel.Cemanosdedoutrinasocialdaigreja.In:IVERN,Francisco;BINGEMER,MariaClara(orgs.).Doutrinasocialda igreja e teologiada libertação. SãoPaulo:Loyola,1994,p.23-42.

SPINELLI, Lorenzo. Lo Stato e la chiesa. Venti secoli direlazioni.Turim:Utetlibreria,1988.

SYDOW, Evanize; FREIRE, Américo. Frei Betto. Biografia.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2016.

VIGNA, Enrico. Il ruolo della Chiesa Ortodossa Russanella Grande Guerra Patriottica e nella vittoria sulnazifascismo. 2015. Disponível em: http://www.civg.it/index.php?option=com_content&view=article&id=645:il-ruolo-della-chiesa-ortodossa-russa-nella-grande-guerra-patriottica-e-nella-vittoria-sul-nazifascismo&catid=2.Acessoem:29/05/2017.

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico ecivilizaçãocapitalista.RiodeJaneiro:Contraponto,2007.

WEBER,Max.AÉticaProtestanteeoespíritodocapitalismo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2004.

Especificações gráficas

Tamanho 12 x 18 cm / Miolo costurado / Lombada 8 mm /

Papel pólen Bold 70g.

Editora: