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O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).
FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E
PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS.
O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).
FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO
NATAL, 31 DE JULHO DE 2018
FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO
O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços. Linha de Pesquisa: Natureza, Relações Econômico-Sociais e Produção dos Espaços. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais.
NATAL, 31 DE JULHO DE 2018
FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO
O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A “REDENÇÃO” DO
BAIXO AÇU (1911-1983).
Dissertação considerada ___________ para obtenção do grau de Mestre em História no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Comissão formada pelos professores:
_____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais – UFRN
(Orientador)
_____________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior – UFRN
(Avaliador interno)
_____________________________________
Prof. Dra. Kênia Souza Rios – UFC
(Avaliador externo)
_____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha – UFRN
(Avaliador interno/Suplente)
Natal, ___ de ___________ de 2018.
AGRADECIMENTOS
À Trindade.
À minha comunidade de fé, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente do Natal, pelo
cuidado e pelas orações.
A Rachel, minha nêga, o abraço onde me refugio. É por ela que luto as minhas lutas
(inclusive as interiores, quando, como diz o poeta, não me sinto concorde comigo mesmo).
À minha família, sobretudo os meus pais, que, em sua simplicidade, ofereceram e
continuam a oferecer, incansavelmente, a vida aos filhos.
Ao professor Wicliffe Costa, cujo apoio foi fundamental para o meu retorno à vida
acadêmica, depois de oito anos caminhando por outros caminhos.
Ao professor Rubenilson Teixeira, o meu primeiro orientador na graduação – e o
primeiro de quem ouvi que eu tinha potencial para seguir carreira acadêmica.
Ao professor e amigo Júlio César. Quando cheguei, como aluno especial, naquela turma
de mestrandos no segundo semestre de 2015, ele me acolheu com muito carinho.
Compartilhando comigo a sua trajetória, em quase tudo parecida com a minha, senti muito mais
confiança para me desinstalar da zona de conforto, a sala de aula, e me arriscar na senda da
pesquisa.
A todos os colegas de turma, especialmente aqueles com quem pude conviver mais de
perto na rotina da escrita, e que compartilharam comigo de dramas parecidos: Marina, Gustavo,
Elenize, Cid e Gabriel. Cada conversa de corredor era quase uma terapia, e assim como
compartilhamos as lutas, compartilho agora com vocês essa vitória.
Aos amigos da base de pesquisa, que leram e criticaram alguns dos meus textos, que
partilharam comigo de uma disciplina profícua de Leitura Dirigida, que viajaram comigo para
eventos e que me ouviram pacientemente quando eu estava inseguro: Gabriel, Tainá e Karine,
três excelentes historiadores em formação.
À 812, especialmente os amigos do café: Leozinho, Luanna e Jéssica. E a todos os outros
que partilhavam desse momento de comunhão sempre que podiam. E a Érica, pelo café.
A Giovanni, que é da turma do mestrado, do grupo de pesquisa e da sala 812, mas que
merece um parágrafo só seu. Porquê? Porque era ele, porque era eu. Há pelo menos uma coisa
que, ao final desse mestrado, terá valido mais que o título de mestre: a sua amizade.
Ao professor Raimundo Arrais, que aceitou, com coragem e generosidade, orientar um
neófito desajeitado. Com sua orientação rigorosa, tirou leite de pedra, como se diz. Se há
alguma qualidade no texto que segue, eu a devo em grande medida à mão que me conduziu por
esse caminho novo para mim.
A Íris e a todos do LABIM (inclusive os agregados, porque é uma sala acolhedora que
recebe muita gente). Foi aí onde fiz uma parte de minhas pesquisas e onde gastei bons minutos
de conversa jogada fora. Foi bom resolver com vocês todos problemas do Brasil.
Aos servidores e bolsistas do NUTSECA, onde fiz outra parte significativa da pesquisa.
Vocês foram tão generosos e solícitos que não poderia deixar de mencioná-los.
A Jarbas, de São Rafael, que me acompanhou nas entrevistas e me recebeu com tanta
deferência em sua casa. Com sua feição familiar me abriu muitas portas naquela cidade onde
eu era um desconhecido. Agradeço ainda a toda sua família, que, juntamente com ele, me
atendeu com toda solicitude. Não poderia deixar de mencionar Eliza, sua filha, uma aluna
empenhada e cheia de boa vontade com essa pesquisa. Ela foi a primeira porta aberta através
da qual entrei em São Rafael. Da mesma maneira agradeço a cada colaborador que aceitou
conversar comigo sobre o drama da barragem.
Ao professor Robson, do IFRN de Ipanguaçu, que me convidou para trabalhar com ele
em um projeto de pesquisa sobre as memórias sociais no Vale do Açu. Juntos aprovamos dois
projetos de pesquisa que foram fundamentais para essa dissertação. A todas as meninas que
compuseram o grupo de pesquisa, especialmente minhas orientandas, Heloísa e Alessandra, que
me acompanharam em algumas viagens a São Rafael para a realização das entrevistas, além de
terem colaborado nas transcrições. E Ester, uma aluna linda, vibrante, brilhante, alegre,
performática, carinhosa. Para mim foi um privilégio tê-la conhecido. Com lágrimas nos olhos
e o coração pesado, eu lamento sua partida. É muito duro para um professor perder um aluno.
Depois de sua morte, o grupo demorou muito a se aprumar...
Ao Instituto Federal do Rio Grande do Norte, por ter me concedido um bom período de
afastamento que me permitiu desenvolver essa pesquisa.
Aos professores Dr. Raimundo Nonato e Dr. Durval Muniz, membros titulares da banca
de qualificação, pela leitura criteriosa do texto e pelas observações relevantes que fizeram. Da
mesma maneira agradeço ao professor Durval e à professora Dra. Kênia Rios, por terem
aceitado prontamente participar como titulares da banca de defesa.
Um trabalho é sempre feito a muitas mãos. Agradeço, portanto, a todos que,
participando de minha trajetória, contribuíram para a realização desse trabalho.
RESUMO O presente trabalho se debruça sobre o Vale do Açu (RN), tomando esse recorte espacial sob uma temática particular: os grandes projetos públicos de gestão das águas. Ao longo do século XX, o Vale foi considerado por diversos agentes sociais (entre eles os técnicos e políticos) como uma área fértil, de enorme potencial agrícola, mas com baixa capacidade produtiva. Essa baixa produtividade se devia, segundo o discurso dos técnicos e engenheiros, à susceptibilidade dessa geografia às ambivalências do clima local (às secas e enchentes); ou à falta de modernidade nas relações de trabalho e na própria produção agrícola (como a irrigação sistemática, por exemplo). Assim, por meio da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), e, depois, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), o Estado implementou dois grandes projetos hídricos que visavam atacar aqueles problemas, instalando uma modernidade capaz de superar os dramas impostos pela natureza e de dinamizar a capacidade produtiva, cuja pretensa precariedade os técnicos explicavam pelo atraso técnico. Na década de 1940 e 1950, o Projeto Oiticica foi apresentado pela IFOCS como a solução para o Vale do Açu, como a obra que regularizaria o regime das águas, trazendo tranquilidade às comunidades locais vitimadas pelas enchentes periódicas – o projeto, entretanto, foi abandonado depois de um tempo; na década de 1970, tomando como base uma série de novos estudos, o DNOCS decidiu investir em um novo projeto, o chamado Projeto Baixo Açu, do qual resultou a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, obra inaugurada em 1983, limite final do nosso recorte temporal. Portanto, essa pesquisa se propõe a estudar os grandes projetos hídricos planejados para Vale do Açu entre os anos de 1910, quando a IFOCS publicou o primeiro relatório técnico que incluía em suas considerações a geografia do Vale (a partir de uma preocupação particular, as secas), e o ano de 1983, quando a primeira grande obra de engenharia foi inaugurada. Palavras-chave: grandes projetos hídricos; Vale do Açu; Projeto Oiticica; Projeto Baixo Açu; barragem Armando Ribeiro Gonçalves.
ABSTRACT
The present work focuses on the Açu Valley (Rio Grande do Norte, Brazil), taking this spatial clipping under a particular theme: large public water management projects. Throughout the twentieth century, the Valley was considered by many social agents (among them, technicians and politicians) as a fertile area of enormous agricultural potential, but with low productive capacity. This low productivity was due, according to technicians and engineers, to the susceptibility of this geography to the ambivalences of the local climate (droughts and floods); and the lack of modern work relations and agricultural techniques (such as systematic irrigation, for example). Thus, through the Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS, “Inspection Office of Public Contracts Against Drought” in Portuguese), and later the Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS, “National Department of Public Contracts Against Drought”), the State implemented two major water projects aimed at tackling those problems, installing a modernity capable of overcoming the dramas imposed by nature and to dynamize the productive capacity, whose precariousness the technicians explained by the technical delay. In the 1940s and 1950s, the Oiticica Project was presented by the IFOCS as the solution to the Açu Valley, as the work that would regularize the water regime, bringing peace of mind to the local communities victimized by the periodic floods - the project, however, was abandoned after a while; in the 1970s, based on a series of new studies, DNOCS decided to invest in a new project called Baixo Açu Project, which resulted in the construction of the Armando Ribeiro Gonçalves Dam, inaugurated in 1983, the final limit of our temporal cut. Therefore, this research proposes to study the great water projects planned for the Açu Valley between the years of 1911, when the first systematic studies on local geography (from a particular concern, droughts) and the year 1983, when the first major engineering work was inaugurated.
Keywords: large water projects; Vale do Açu; Oiticica Project; Low Açu Project; Armando Ribeiro Gonçalves Dam.
Índice de figuras
Figura 1 mapa das ecorregiões da caatinga ........................................................................... 25
Figura 2 mapa da bacia hidrográfica do Piranhas-Açu, com as divisões entre as sub-bacias .. 29
Figura 3 mapa da bacia do Rio Piranhas-Açu no Rio Grane do Norte ................................... 30
Figura 4 mapa da divisão municipal do Vale do Açu - RN ................................................... 34
Figura 5 corte da carnaúba [s.d.] .......................................................................................... 39
Figura 6 esquema ideal da morfologia agrária de uma propriedade rural no Vale do Açu em
1960 ..................................................................................................................................... 40
Figura 7 árvore de oiticica .................................................................................................... 43
Figura 8 Calendário das principais atividades do Baixo Açu ................................................ 45
Figura 9 Macau, vista para o rio Açu, década de 1950 .......................................................... 57
Figura 10 Cata-vento usado para bombear água do mar para a formação do sal, Macau-RN,
década de 1940. ................................................................................................................... 59
Figura 11 Cruzeta usada para bombear água no Baixo Açu .................................................. 63
Figura 12 Mapa do Brasil. Climatologia de precipitação acumulada no ano (mm). Série
histórica de 1961 a 1990. ..................................................................................................... 68
Figura 13 Trabalho nas salinas, s.d. ...................................................................................... 78
Figura 14 Manchete do jornal O Poti (RN) chama atenção para as cheias no interior do estado
(09 de abril de 1967) ............................................................................................................ 86
Figura 15 Mapa rodoviário do Brasil, com foco no Nordeste, 1926 .................................... 107
Figura 16 mapa de Geraldo A. Warring com as bacias hidrográficas e locais para construção
de açudes ........................................................................................................................... 111
Figura 17 gastos da IOCS em açudagem no Rio Grande do Norte, 1918, publicado no
Relatório do Ministério de Viação e Obras Públicas. .......................................................... 118
Figura 18 Canteiro de obras do açude Gargalheira, no Seridó, 1922. .................................. 122
Figura 19 Estrada de Ferro central do Rio Grande do Norte, 1927 ...................................... 127
Figura 20 área de influência da barragem Oiticica, iniciada em 2013.................................. 132
Figura 21 panfleto de divulgação do MINTER/DNOCS, 1979 ........................................... 213
Figura 22 protesto em Açu, maio de 1980 .......................................................................... 227
Figura 23 protesto em Açu, maio de 1980 .......................................................................... 227
Lista de tabelas
Tabela 1: principais produtos agrícolas do município de São Rafael (1955).......................... 52
Tabela 2: principais produtos agrícolas do município de Açu (1955) .................................... 52
Tabela 3: principais produtos agrícolas do município de Ipanguaçu (1955) .......................... 53
Tabela 4: Principais recursos minerais do Vale do Açu, 2006 ............................................... 55
Sumário Introdução ............................................................................................................................ 13
Capítulo 1 - Nas dobras do Baixo-Açu ................................................................................. 24
1.1 O caminho das águas .................................................................................................. 27
1.1.1. “Estas árvores são úteis por muitos lados” ........................................................... 34
1.1.2. Outras “plantas úteis” .......................................................................................... 43
1.1.3. “Pelo comum, toda vida há o trabalho da vazante” ............................................... 46
1.1.4. A extração mineral ............................................................................................... 54
1.2. Conclusão .................................................................................................................. 60
Capítulo 2 - Ambivalências da Várzea: entre as secas e as enchentes ................................... 65
2.1. As secas ..................................................................................................................... 66
2.2. As cheias ................................................................................................................... 79
Capítulo 3 - Da natureza atroz à natureza domesticada: as obras contra as secas ................... 89
3. 1. O combate às secas sob a lógica da modernidade ...................................................... 95
3.2. O combate às secas no Vale do Açu ......................................................................... 102
3.2.1. A Barragem de Oiticica ...................................................................................... 123
3.3. Conclusão ................................................................................................................ 135
Capítulo 04 – a “redenção” do vale e o mito do progresso .................................................. 136
4.1. O desenvolvimentismo e a criação da SUDENE ...................................................... 138
4.2. A SUDENE no vale do açu (1962-1975) .................................................................. 144
4.3. Grandes obras, tecnocracia e o Projeto Baixo Açu ................................................... 153
4.4. O Rio Grande do Norte e a lógica do desenvolvimento ............................................ 165
4.5. A “redenção” do Vale .............................................................................................. 171
Capítulo 5 - Da redenção à danação ................................................................................... 185
5.1. O confronto entre sistemas de saber ......................................................................... 185
5.1.1. O camponês atrasado ......................................................................................... 187
5.1.2. O beiradeiro malcomportado .............................................................................. 202
5.1.3. O beiradeiro ingênuo.......................................................................................... 211
Conclusão .......................................................................................................................... 231
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 235
13
Introdução Duvidavam. Como não duvidar? Nem lembravam desde quando os comentários sobre
aquela construção circulavam por aqueles lados. Até ali, eram apenas burburinhos: palavras
sem substância, promessas sem compromisso. Os moradores do Vale do Açu, microrregião do
estado do Rio Grande do Norte, não sabiam com exatidão a época em que haviam recebido as
primeiras visitas dos técnicos, esses tipos que arrogam para si o mais legítimo saber e que
carregam debaixo do braço a solução para os problemas dos outros. As visitas cumpriam um
propósito: identificar o melhor lugar para a construção de uma represa. Pretensamente, a medida
atacaria de frente alguns dos principais problemas locais: a seca, as enchentes e a pobreza.
Mas a memória dos ribeirinhos do baixo vale do rio Piranhas não estava preocupada
com a precisão da cronologia. As pesquisas nos remetem à década de 1930, quando a Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) realizou os primeiros estudos com vistas à
construção de uma barragem, dando início a um longo debate sobre as potencialidades do Vale
do Açu para a irrigação. Para os moradores locais, no entanto, tratava-se apenas de uma
conversa que vinha de muito longe e não daria em nada, que não se consubstanciaria em fato.
Mas as conversas, que já circulavam há tantos anos, ganharam mais força nesse período para o
qual está agora dirigida a nossa atenção, a década de 1970; e se revestiram de um caráter oficial
com a publicação do decreto nº. 76.046, de 29 de julho de 1975, que declarava de utilidade
pública uma área de 158.476,84 hectares para a implementação do Projeto Baixo Açu, cujas
etapas se constituíam na construção da Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, na
implantação de um perímetro de irrigação e no desenvolvimento de um polo pesqueiro.
A despeito desse decreto, os moradores do Vale ainda duvidavam: “começou a vir
aqueles rumores, aquelas história e coisa e tudo, mas nós nem acreditava. Nós num pensava
nunca que aquilo era verdade”, declarou dona Socorro, sentenciando em seguida: “ninguém
sabia que era um suicídio daquele tamanho”.1 É a declaração de quem olha retrospectivamente:
de quem interpreta o final enquanto narra o começo. Mas não avancemos já tão cedo para o
final. Por ora, basta observarmos que, na segunda metade da década de 1970, um sentimento
generalizado de descrença envolveu os moradores locais, levando-os a suspeitar que a barragem
não seria construída.
Os olhares dos céticos, no entanto, foram contrariados pelo movimento de homens e
máquinas que começaram a chegar em 1979 no Vale do Açu, juntando esforços para verter em
1 Entrevista concedida por: LOPES, Maria do Socorro. Entrevistador: Francisco Leandro Duarte Pinheiro. São Rafael, 27 jul. 2016.
14
paredes o plano dos engenheiros e, enfim, erguer a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves. A
microrregião, caracterizada pela rotina e pelo ritmo das atividades predominantemente rurais,
assistiu à instalação, pela empreiteira Andrade Gutierrez Engenharia, de um canteiro de obras
que se transformou num verdadeiro formigueiro a fervilhar num movimento que contrastava
com a rotina de seu entorno. Assim, se para os moradores do Vale do Açu a construção da
represa era, desde o início, apenas uma ideia que não tinha fundamento consistente para além
dos comentários que circulavam, com o tempo o processo foi tomando forma e se
materializando diante dos seus olhos: “Saía um comentário, depois vinha outro, até que foi,
como aquela história, de onde vem a fumaça tem o fogo, né?”.2
É, dona Socorro. E é desse fogo que trataremos: de que material foi preparado e como
foi aceso. E por que não falarmos também de suas cinzas? Porque todo fogo apaga, mas as suas
marcas perduram: vestígios de que em algum momento tremeluziram as chamas de um incêndio
sobre o chão riscado.
O que os moradores sabiam sobre as circunstâncias que envolviam esse acontecimento,
exatamente? Quase nada: há tempos, técnicos andavam por ali, realizando estudos de todo tipo
em nome do governo; conversas circulavam, ditos e não ditos desencadeadores de mil
preocupações; e havia aquele decreto, publicado em 1975 no Diário Oficial da União, que
declarava de utilidade pública parte de suas terras. Sabiam, portanto, que o governo tinha algum
interesse pelas suas terras, e que o pretexto para tanto era o de promover o desenvolvimento
local, com a construção da barragem e a implementação de um projeto de irrigação. Os detalhes
do processo, entretanto, ignoravam completamente. Não duvidavam que suas terras andavam
ameaçadas, mas que a barragem viesse efetivamente a ser construída e um projeto de irrigação
fosse desenvolvido, disso duvidavam. Dito de outro modo: acreditavam plenamente nos
prejuízos que aquele interesse traria, e temiam; ressabiados, duvidavam que disso tudo lhes
restaria algum benefício. Em 1983, no entanto, e para a surpresa de muitos, a barragem foi
inaugurada. Seria realmente uma conquista para o Vale? Veremos. E quanto ao projeto de
irrigação? O tempo revelou que a desconfiança da população tinha mesmo fundamento...
O que nos ocupa nesse trabalho é esse processo no qual o Executivo Federal, em parceria
com órgãos privados e com o governo estadual, procurou implantar no Rio Grande do Norte
um grande projeto de irrigação, intensão que resultou na construção de uma represa. É a história
de um espaço, de um recorte espacial: o Vale do Açu, hoje uma das dezenove microrregiões do
estado do Rio Grande do Norte, pertencente à mesorregião do Oeste Potiguar. Microrregião
2 Id.
15
composta pelos seguintes municípios: Açu, Alto do Rodrigues, Carnaubais, Ipanguaçu, Itajá
(jurisdicionado, à época da construção da barragem, ao município de Ipanguaçu), Jucurutu,
Pendências e São Rafael. Trata-se, no entanto, de um recorte espacial historicamente produzido,
como é produzido todo o espaço pelo qual os homens passam, atuando para produzir as
condições materiais de sua vida social e estabelecendo relações de produção que estão
imbricadas com a dimensão espacial;3 sobre o qual projetam os seus sonhos, para o qual dirigem
o seu olhar, compondo paisagens onde ficam sedimentados os materiais da memória.4 E parte
do processo de produção do Vale do Açu passa pela relação que as comunidades ribeirinhas
mantinham com o rio e com o clima, precisamente os aspectos para os quais o Estado prometia
dar respostas, no sentido de fazê-los cooperarem com os homens. Daí as intervenções públicas
que os órgãos do Executivo Federal desenvolveram no combate às secas e às enchentes – e, a
partir da segunda metade do século XX, na modernização da agricultura.
A Várzea do Açu foi, desse o início do século XX, objeto do interesse de engenheiros
que percorreram o chão do semiárido brasileiro investigando as condições naturais em que se
davam as secas e propondo soluções hídricas para esse que se tornou um dos grandes problemas
nacionais. Foi em 1910 que a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) publicou o primeiro
relatório técnico que incluía discussões a respeito da várzea do Açu. A ideia, entretanto, só viria
a tomar corpo na década de 1940, com o projeto de construção da barragem de Oiticica. Mais
tarde, esse projeto cedeu lugar a outro, de dimensões ainda maiores, e que era apresentado por
seus idealizadores como um projeto de “redenção” para o Vale: o Projeto Baixo Açu, que previa
a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, “maior que o Orós”, como gostavam
de dizer os jornalistas que noticiavam a obra.
O impacto socioespacial da implantação do Projeto Baixo Açu foi significativo, e um
dos propósitos que nos movem aqui é o de interpretar esse processo: analisar as circunstâncias
em que o projeto foi gestado, a lógica que lhe serviu de suporte, os interesses que lhe motivaram
a execução; depois, refletir sobre as suas incoerências, sobre os conflitos que o envolveram,
sobre o impacto que produziu nas comunidades diretamente atingidas – sobre suas cinzas, por
assim dizer.
Enquanto enfrentamos esse desafio, alguns perigos ficam persistentemente à espreita,
sem nos dar trégua. Um deles é especialmente insidioso: o perigo do maniqueísmo. Podemos
3 Ver, por exemplo: HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. (Coleção Geografia e Adjacências). 4 Sobre como os homens e mulheres produzem a paisagem natural através do olhar, ver: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
16
ficar inclinados a pensar o processo de implantação do Projeto Baixo Açu como a expressão de
uma dinâmica perversa que modificou dramaticamente o universo cristalizado de harmonia
social da Várzea do Açu, inaugurando um tempo absolutamente novo, em contraste com um
mundo de imagens estáveis que remontam ao seu passado colonial. Em suma: o mal, que toma
sua forma concreta na modernização, ameaçando o bem, representado pelo mundo tradicional.
Na verdade, somos quase seduzidos a pensar assim – o que se deve, em grande medida, às
memórias produzidas sobre a vida antes da barragem, especialmente por aqueles sujeitos que,
por viverem na faixa de inundação, amargaram o processo de remoção espacial que lhes foi
imposto pouco antes da inauguração da represa.
Mas há, também, o outro lado do dualismo maniqueísta: é o que compra o discurso
dos técnicos responsáveis pelo projeto, como se um tempo muito longo de atraso tivesse sido
abruptamente superado pela chegada da modernidade e do progresso. Também é uma
inclinação sedutora, e muitos jornalistas da época cederam à sua tentação, celebrando com os
técnicos a chegada do progresso. Hoje, sobretudo para os pesquisadores que procuram assumir
o ponto de vista dos mais vulneráveis, o primeiro perigo parece exercer maior poder de atração.
Com efeito, a narrativa maniqueísta está presente em alguns trabalhos acadêmicos recentes que,
embora os seus autores o neguem formalmente, reproduzem o discurso da memória e, por isso,
apresentam uma narrativa subordinada à lógica do “antes x depois” – o antes representando o
melhor momento dessa dualidade temporal.
Mas, afinal, quanto a esse perigo, alguém está inteiramente indene? Dificilmente. Por
outro lado, podemos ao menos nos prevenir quando respeitamos, por exemplo, as considerações
de autores que, como Milton Santos, produzem uma reflexão crítica sobre os espaços. Esse
autor nos lembra que o espaço é constituído não apenas de elementos fixos, mas também de
fluxos, e que mesmo os fixos não podem ser entendidos como fragmentos estanques da
configuração espacial, uma vez que estão submetidos o tempo todo às ações dos fluxos que os
modificam.5 Desse modo, o espaço está em permanente processo de redefinição, em constante
movimento. Assim era também o Vale do Açu antes da barragem: tanto produzido quanto
transformado pelo movimento da história, e, desde o início do século passado, pelo capitalismo
que operava em escala global. Assim, espero que fique claro, ao longo dessa dissertação, que
mudanças importantes antecederam a construção da barragem Armando Ribeiro, e que o Vale
do Açu já era objeto de políticas do Estado (que se materializaram ou não) e de interesses do
5 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. 4 ed. São Paulo: EDUSP, 2009.
17
capital que objetivaram modernizar o espaço, mesmo quando relações tradicionais de produção
permaneceram (como ainda hoje permanecem).
Ora, o movimento provocado pela ação externa, a do Estado, produziu efetivamente
transformações dramáticas na vida social do Vale, mas não podemos, em função disso, insistir
na projeção que a memória local frequentemente, e por motivos que somos capazes de
compreender, elabora da vida anterior à construção da barragem, inflacionando as imagens
positivas de um mundo imemorialmente edificado. Por outro lado, não podemos desconsiderar
a violência do processo, porque, embora o movimento seja a marca da vida social, as mudanças
tendem a se dar num dado ritmo que obedece à dinâmica própria de cada sociedade, e não
precisam acontecer de maneira abrupta e brutal, como frequentemente se dá no contexto de
governos autoritários, especialmente quando submetidos à lógica do grande capital – aspecto
que também abordaremos na dissertação.
Um evento me inclinou em direção a essa pesquisa: o deslocamento do núcleo urbano
de São Rafael provocado pela construção da represa. Um evento cuja densidade histórica como
que convida à reflexão espacial. No quadro geral do processo, a transferência dos moradores de
São Rafael para um novo aparelhamento urbano, especialmente edificado para esse fim, e a
submersão da antiga cidade sob as águas da represa, se destacam pelo tom traumático do
acontecimento e pela riqueza da experiência e dos sentimentos que dele emergiram. A
submersão de uma cidade, a construção de uma nova cidade e o deslocamento de uma
comunidade urbana é um processo excepcional e, do ponto de vista espacial, extremamente
instigante. Foi ele que me despertou o interesse pelo Vale do Açu. Mas dele me afastei ao longo
da pesquisa. Se o episódio me estimulou a curiosidade e mobilizou os meus esforços de aprendiz
de historiador, de pesquisador neófito, logo identifiquei um processo muito maior, em termos
de limites temporais, temáticos e espaciais, que o episódio em si.
Para compreender a mudança de São Rafael era necessário reconstruir uma dinâmica
muito mais ampla, um processo que passa por muitos aspectos. Fui então forçado a ampliar a
escala de observação: a contemplar os problemas do semiárido (especialmente as secas e as
enchentes) e a emergência de uma “Questão Nordeste”; a acompanhar a modernização do
campo e as políticas desenvolvimentistas direcionadas a esse recorte espacial tratado por muito
tempo como o polo atrasado de uma economia em expansão, o Nordeste. E assim essa pesquisa
se tornou algo diferente do que eu havia planejado – mas que bem pode ser a preparação para
uma futura investida sobre São Rafael...
Assim, acompanharemos nos capítulos que seguem as expressões de modernidade que
justificaram a intervenção do Estado sobre o Vale do Açu: num primeiro momento para
18
combater a seca; depois, para combater o atraso econômico. É a intervenção pública vista sob
o olhar do progresso. Na verdade, o Projeto Baixo Açu era apenas o fragmento de um amplo
investimento que o regime civil-militar empreendeu com o objetivo de promover a
modernização da produção agrícola, numa tendência que alguns autores chamaram de
“modernização conservadora”. Para Guimarães, primeiro analista brasileiro a aplicar este
termo, a “estratégia de modernização conservadora” é assim chamada porque “diferentemente
da reforma agrária, tem por objetivo o crescimento da produção agropecuária mediante a
renovação tecnológica, sem que seja tocada ou grandemente alterada a estrutura agrária”.6
O processo de implantação da barragem é fruto de um dinâmica composta de diversas
camadas que se interpenetram e que passam pela maneira como o governo federal atuou, por
meio de políticas públicas, sobre o recorte espacial a que hoje denominamos “a região
Nordeste” ao longo do século XX. Vamos procurar, no entanto, evitar a afirmação de que tenha
havido uma sucessão linear de interesses, de ideias e de medidas – como etapas que emergem
substituindo e obliterando as anteriores, num suposto movimento contínuo e progressivo.
Devemos fugir, também, do outro extremo interpretativo que propõe uma superposição
acumulativa de fatores, numa espécie de soma simples de camadas. Antes, a nossa interpretação
é a de que o Projeto Baixo Açu expressou o cruzamento entre diversas maneiras de se olhar
para os problemas da região, amalgamando compreensões diversas sobre a chamada “Questão
Nordeste” e sobre as políticas públicas destinadas a enfrentá-la.
Num primeiro momento, a ideia que prevaleceu foi a da seca como catalizadora dos
demais problemas sociais, como o elemento motivador da precariedade socioeconômica da
região. Resolver o problema da pobreza exigiria, de acordo com tal lógica, superar os obstáculos
impostos pelo clima. Em um segundo momento, na passagem da década de 1950 para 1960,
ocorreu uma inflexão a partir da qual os problemas regionais passaram a ser entendidos como
um conjunto complexo de fatores relacionados à organização da produção e às condições do
desenvolvimento regional. Nesse período, o governo federal criou a Superintendência para o
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) a fim de desenvolver ações planejadas para o
tratamento do que se convencionou chamar de “Questão Nordeste”. Por fim, durante o regime
militar, notadamente na década de 1970, as novas propostas para a região foram implementadas
sob a lógica do “Brasil Grande”, das grandes obras, dos “projetos-impacto”, dinâmica que
guardava elementos da compreensão anterior, baseada no planejamento, de modo que é difícil,
do ponto de vista do processo que estamos analisando, estabelecer um recorte temporal rigoroso
6 GUIMARÃES, A. P. O complexo agroindustrial. Revista Reforma Agrária, ano 7, n. 6, nov./dez. 1977.
19
entre as duas lógicas, a da SUDENE e a da ditadura civil/militar (exceto pelo aspecto social
evidente na primeira e praticamente ausente na última, o que, como já afirmamos, resultou
numa modernização conservadora).
É preciso destacar também que o Projeto Baixo Açu está articulado não apenas a uma
dimensão estritamente política, a uma lógica governamental que se traduziu nas medidas de
intervenção do Estado em resposta à “Questão Nordeste”, mas também a um processo global
de expansão do capitalismo. Nesse sentido, se é necessário ajustar o foco da pesquisa sobre a
realidade específica, sobre a dimensão local, sobre a ribeira do Açu, a fim de que seja possível
capturar alguma coisa da realidade social concreta, é também necessário estabelecermos as teias
às quais os fatos locais estão relacionados. Significa que não se pode prescindir de uma
articulação dos fatos com a lógica do Estado, o agente das transformações analisadas, mas,
também, com a dinâmica do capital internacional, cuja força se impôs inclusive sobre o Estado
e que estendeu o seu alcance sobre uma microrregião precária de um estado economicamente
periférico.
José de Souza Martins tem demonstrado, em sua vasta produção, que a reprodução do
capital não se dá apenas nos grandes centros urbanos, mas que se projeta até os limites dos
espaços, nas fronteiras – onde, no caso particular do Brasil, ocorre o deslocamento das frentes
de expansão da sociedade nacional sobre territórios dos povos indígenas.7 Essas frentes de
expansão, para José de Souza Martins, “tem sido, na verdade, um dos modos pelos quais se dá
o processo de reprodução ampliada do capital, o da sua expansão territorial”.8 O grande desafio
para nós é demonstrar como acontece essa reprodução do capital na particularidade de
ambientes que uma certa interpretação supõe fora da lógica capitalista, ou mesmo contraditória
a ela.
Mas é necessário considerar também as contradições intrínsecas às modernidades e,
especialmente, os problemas que o processo de implantação do Projeto Baixo Açu gerou, os
medos que provocou, a violência que representou e as promessas que deixou de cumprir. Desde
quando o Executivo Federal anunciou o projeto, diversos atores sociais se engajaram num
movimento de resistência. Políticos, intelectuais, líderes comunitários e imprensa se articularam
na denúncia de pontos que consideraram controversos no projeto. Suas vozes nos dão pistas
para a leitura do processo a partir de uma lente diferente da lente do progresso. Ou, pelo menos,
nos possibilitará uma leitura diferente da que fizeram os agentes da intervenção – os técnicos e
os dirigentes políticos –, já que o ideal do progresso não estava inteiramente ausente nem
7 Ver, por exemplo: MARTINS, José de Souza. Fronteiras. São Paulo: Contexto, 2016. 2 ed. 8 Id. p. 24.
20
mesmo do movimento de resistência à construção da barragem, conforme as fontes nos têm
demonstrado. Sr. João do Sindicato (a quem entrevistamos), por exemplo, que à época de
implantação da barragem já militava no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Rafael,
afirmou que a resistência da qual havia participado não era propriamente contra a construção
da barragem, mas à maneira como o processo estava sendo conduzido. Ele temia, sobretudo,
que aquelas medidas viessem a beneficiar as multinacionais, e não os trabalhadores rurais.
Os jornais Tribuna do Norte (RN) e Diário de Natal (RN) foram os que, de maneira
mais sistemática, expuseram os argumentos de resistência ao projeto. Do Tribuna do Norte
encontramos matérias como as seguintes: “Insatisfeitos com as indenizações, agricultores do
Açu acionam a União”;9 “Baixo-Açu: os prós e os contras de um projeto que ameaça cidades e
homens”;10 “Homem será afastado de sua terra, diz relatório sobre o Baixo-Açu”.11 Do Diário
de Natal: “Desapropriações no Açu sem definição”;12 “Denúncias da barragem apuradas”;13
“Ministro manda reestudar projeto para o Baixo Açu”.14 Analisaremos algumas dessas
matérias ao longo da dissertação, mas esses títulos já nos mostram que havia uma série de
problemas envolvendo o projeto, problemas que eram materializados em denúncias inscritas
nas páginas da imprensa local na época da construção da represa.
Em síntese, irei analisar o Vale do Açu, um recorte espacial ambíguo, liminar entre a
água e a terra: a ribeira, a beira do rio. E o beiradeiro, esse sujeito também liminar, que vive na
beira e da beira, que vai e vem sobre a várzea conforme as águas do rio avançam ou recuam; e
que vai e vem sobre geografias mais alargadas, obedecendo o regime das chuvas: nas secas ele
sai em demanda do sustento nos tabuleiros, nas salinas de Macau, nos centros urbanos próximos
ou distantes, nas obras de engenharia de combate às secas, na Amazônia; chovendo, se pode,
ele retorna ao chão que ele identifica como seu.
Preferi usar o termo beiradeiro – empregado pela antropóloga Nazira Abib Vargas nas
obras que produziu a respeito da Várzea do Açu – para me referir aos sujeitos da várzea, ao
invés de varzeano – termo utilizado por Manoel Rodrigues de Melo no livro Várzea do Açu –
ou mesmo de sertanejos, esse conceito genérico que não traduz bem a condição particular dos
sujeitos sobre os quais eu escrevo. Beiradeiros é uma expressão que traduz bem a condição
ambígua em que vive esse sertanejo particular que convive com o rio. Assim, o sujeito que vive
9 INSATISFEITOS com as indenizações, agricultores do Açu acionam União. Tribuna do Norte (RN). 06, 07 jan. 1979. 10 BAIXO-AÇU. Tribuna do Norte (RN). 10 jan. 1979. 11 HOMEM será afastado de sua terra, diz relatório sobre o Baixo-Açu. Tribuna do Norte (RN). 21 fev. 1979. 12 DESAPROPRIAÇÕES no Açu sem definição. Diário do Natal (RN). 13 fev. 1974. 13 DENÚNCIAS da barragem apuradas. Diário do Natal (RN). 28 jan. 1983. 14 MINISTRO manda reestudar projeto para Baixo-Açu. Diário do Natal (RN). 03 fev. 1978.
21
na beira é um beiradeiro, e sua própria existência é limítrofe, espremida entre condições
extremas relacionadas com o rio, conforme iremos atestar.
Fiquei durante muito tempo às voltas com esse objeto, tentando definir para mim
mesmo o que ele era e que abordagem eu estava fazendo. Essa dissertação é um trabalho de
história ambiental, social, política, econômica? Difícil responder de maneira definitiva, já que
todos esses elementos, e muitos outros, atravessam a narrativa que flui nos capítulos seguintes.
De qualquer maneira, não posso me furtar de um aspecto que me parece central: trata-se de uma
história do espaço.
De todo modo, é preciso reforçar que há muita coisa imbricada nas políticas públicas
de gestão das águas: há uma bacia hidrográfica e há o clima, fatores que talvez nos
aproximassem de uma história ambiental; há a região Nordeste e todos os esquemas de
mandonismo e clientelismo que se mobilizavam para capturar recursos do Executivo Federal
para obras públicas em propriedades privadas – uma dimensão, portanto, do poder, em vários
níveis; há o capital nacional, também o internacional, e as dinâmicas da economia local do Vale
do Açu; há o território, a paisagem, a memória e o imaginário traduzidos em obras como a de
Manoel Rodrigues de Melo, a respeito de quem trataremos adiante. Como eu poderia pensar
tantas coisas ao mesmo tempo, articulando, como os fios de uma trama, cada um desses
aspectos? Não poderia fazer isso sem correr o risco de ser superficial em tudo e, ao cabo,
contribuir muito pouco para a reflexão histórica sobre o meu objeto de pesquisa. Decidi arriscar,
por convicção de que de outra maneira não alcançaria os objetivos a que me propus.
Quanto às fontes, elas também foram variadas e fragmentárias: matérias de jornal,
relatórios técnicos, literatura local, panfletos de divulgação do DNOCS, discursos políticos,
entrevistas orais. Testemunhos espaçados que eu espero ter reunido de tal maneira na presente
narrativa que dela resulte uma imagem coerente do processo: uma imagem de cinema, não de
fotografia, como me disse certa vez meu professor de Teoria. Encontrei esses testemunhos em
documentos arquivados no DNOCS (tanto em Açu quanto em Fortaleza), no Núcleo Temático
da Seca (UFRN), no Laboratório de Imagens do Departamento de História (UFRN), na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Além, é claro, da própria comunidade de São
Rafael, que visitei diversas vezes para uma série de entrevistas.
O recorte temporal desse trabalho está fixado entre 1910, quando foi realizado o
primeiro relatório técnico relativo ao Vale do Açu, a pedido da Inspetoria de Obras Contra as
Secas (IOCS), por Roderic Crandall, e 1983, quando foi inaugurada a barragem Armando
Ribeiro Gonçalves. Nesse recorte temporal, o trabalho analisa os grandes projetos hídricos para
o Vale do Açu: o Projeto Oiticica e o Oiticica II (o chamado Projeto Baixo Açu).
22
Uma dificuldade com o recorte temporal, em seu limite final, se dá porque, quando
mobilizamos a memória oral, percebemos que essa não conhece a linearidade cronológica dos
historiadores, não caminha sempre para frente como os ponteiros do relógio. Avança, recua,
retorna e torna a recuar, como Eclea Bosi demonstra no seu Memória e sociedade: “às vezes há
deslizes na localização temporal de um acontecimento (…). Falhas de cronologia se dão
também com acontecimentos extraordinários da infância e da juventude”. A mesma autora
lembra que “uns e outros sofrem um processo de desfiguração, pois a memória grupal é feita
de memórias individuais”.15 Uma moradora de São Rafael, por exemplo, nos compartilhou o
sonho que cultiva, de que um dia as águas da barragem recuarão a tal ponto que será possível
voltar a viver na velha São Rafael. Esse sonho nos revela a história de um tempo subjetivo, a
história de um futuro na velha cidade. Revela que a mudança ainda afeta subjetivamente a
parcela mais velha da população – e é possível que, pela memória, alcance também as gerações
que nasceram na nova cidade. Desse modo, ao definirmos o ano da inauguração da barragem e
da mudança da velha para a Nova São Rafael como limite temporal suficiente para as reflexões
que pretendemos realizar, não negamos que o processo ainda não desenredou em definitivo.
Além disso, o jogo com o tempo emerge o tempo todo na dissertação, porque é em nome
do progresso, e, portanto, do futuro, que as medidas governamentais são justificadas pelos
engenheiros. Da mesma maneira, é sob a invocação das imagens do atraso, e, portanto, do
passado, que essas mesmas medidas ganham cores ainda mais vivas. O futuro se torna mais
desejável, segundo a lógica do progresso, quando posto ao lado das imagens do atraso. Assim,
a nossa dissertação terá como foco, além do aspecto espacial, essa dialética temporal, uma
tensão dinâmica entre passado e futuro.
A dissertação está estruturada em cinco capítulos. Nos primeiro e segundo, abordarei os
aspectos naturais e econômicos, oferecendo um panorama da Várzea do Açu, tentando definir
o quanto possível objeto de pesquisa, com os seus imprecisos limites. Com isso, pretendo
explicar os problemas que justificaram as medidas de intervenção pública por meio de grandes
projetos hídricos. No terceiro, analisarei as primeiras medidas propostas para o combate às
secas e enchentes, com destaque para o projeto de Oiticica. No quarto capítulo, apresentarei o
Projeto Baixo Açu, a partir de uma lógica desenvolvimentista que deu ocasião à criação da
Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e a toda uma política de
modernização agrícola com vistas ao desenvolvimento regional. Por fim, no quinto e último
capítulo, demonstrarei algumas das contradições presentes no projeto, alguns aspectos que
15 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 3. ed. p. 419.
23
foram objeto de debate e a violência que estava implicada na construção da barragem Armando
Ribeiro Gonçalves. Ao final, veremos como a irrigação no Vale do Açu constituiu uma miragem
que justificou medidas autoritárias e beneficiou os interesses de determinados grupos, e não ao
conjunto das comunidades instaladas na extensão do Baixo Vale.
24
Capítulo 1 - Nas dobras do Baixo-Açu Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.
Adágio português.
No interior do Rio Grande do Norte se estende uma vasta área semiárida (entre 80% e
90% do território estadual) que sofre de tempos em tempos com estiagens prolongadas. Nela,
predominam solos rasos e pedregosos que exibem uma vegetação aberta de árvores e arbustos
com raízes profundas, cujas folhas secam e caem nos períodos secos – da maior parte das
espécies vegetais restam apenas galhos ressequidos e nus. Com efeito, quando o revés da seca
o alcança, o que ocorre ciclicamente, tem-se em muitos pontos do semiárido norte-rio-
grandense a lúgubre imagem de uma terra escaldante e inóspita, que um observador julgaria
sem vida não fossem os mandacarus, as palmatórias-de-espinho, os cardeiros, os xiquexiques,
as coroas de frade ou outras xerófilas que se multiplicam com alguma regularidade, suportando
longos períodos de estiagem e pontilhando a paisagem de um verde que informa que a
esterilidade não tiraniza por inteiro aquela terra.
Diante dos primeiros sinais de precipitação, entretanto, a vegetação crestada reage e
torna a verdejar. Adensa-se e ganha volume. Ressuscita, por assim dizer: formam-se prados,
crescem as espécies de pequeno porte que despontam e arrelvam o chão, ladeando as plantas
maiores que até então pareciam esgotadas, esqueletos de árvores espetados numa paisagem
morna e triste – mas que sob as águas da chuva frondejam, se adornam de folhas e flores,
alterando de maneira significativa a impressão anterior de predominante aspereza.16
Duas das oito ecorrerigões do Domínio Morfoclimático das Caatingas atravessam o
território do que hoje é o Rio Grande do Norte: a Depressão Sertaneja Setentrional e o Planalto
da Borborema (ver mapa 1).17 O solo é seco e estéril na maior parte da extensão que compreende
as duas ecorregiões. Mas nelas, como de resto em todo o Domínio das Caatingas, não se
16 Sobre a caracterização do território e do ambiente físico do Rio Grande do Norte, consultamos: BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses. Natal: Sebo Vermelho, 2013. INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E MEIO AMBIENTE-IDEMA. Anuário estatístico do Rio Grande do Norte. Natal: Secretaria de Planejamento e Finança, 2010, v.37. ELIAS, Nunes. Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. PFALTZGRAFF, Pedro Augusto dos Santos; TORRES, Fernanda Soares de Miranda (org.). Geodiversidade do estado do Rio Grande do Norte. Recife: CPRM, 2010. Sobre os Domínios Morfoclimáticos das Caatingas, ver: BERNARDES, Nilo. As caatingas. Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.36, p.69-78. GIULIETTI, A. M. et al. Diagnóstico da vegetação nativa do bioma Caatinga. In: SILVA, J. M. C.; TABARELLI, M.; FONSECA, M. T.; LINS, L. V. (Org.). Biodiversidade da caatinga: áreas e ações prioritárias para a conservação. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, Universidade Federal de Pernambuco, 2003. 17 Ver: VELLOSO, Agnes L.; SAMPAIO, Everardo V. S. B.; PAREYN, Frans G. C. (eds.). Ecorregiões propostas para o bioma caatinga. Recife: Associação Plantas do Nordeste; Instituto de Conservação Ambiental The Nature Conservancy do Brasil, 2002. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/203/_arquivos/ecorregioes_site_203.pdf.
25
verificam apenas quadros de aridez. Há também, por exemplo, vales que sulcam o chão dessa
geografia que, ao longo do século XX, uma dada literatura consagrou como sendo o espaço da
miséria. Brejos de Vales úmidos18 onde grupos humanos fixaram morada, de início à beira dos
rios, para dali se espalharem por toda área a que, posteriormente, os colonizadores portugueses
denominaram de “sertão”. Assim, ao contrário do que sugere a imagem consagrada de um sertão
absolutamente hostil à presença humana, o semiárido brasileiro acabou por se tornar a área
semiárida mais povoada do mundo.19 Contribuíram para isso os vales húmidos e benfazejos que
cortam o semiárido.
Figura 1 mapa das ecorregiões da caatinga Fonte: seminário de planejamento ecorregional da caatinga
18 Segundo classificação proposta por Aziz N. Ab’Sáber. Ver: AB'SABER, Aziz Nacib. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos Avançados [online]. 1999, vol.13, n.36, pp.7-59. 19 Cf.: NORDESTE sertanejo: a região semi-árida mais povoada do mundo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 35 p.60-68, mai-ago 1999.
26
Centenas de pequenos veios intermitentes de água confluem para alimentar os grandes
rios do Rio Grande do Norte, tecendo a extensa imagem reticular de regatos que se comunicam
entre si e formam as principais bacias hidrográficas do estado. Depois da Borborema, até
alcançar os limites com o estado do Ceará, o território praticamente se divide entre os dois vales
mais importantes dos altos sertões potiguares, o Vale do Apodi e o Vale do Açu.20 São planícies
de inundação, manchas férteis que quebram a aridez predominante das caatingas.
Os principais rios desses vales, o Piranhas-Açu e o Apodi, “atravessam, em alguns
pontos, várzeas planas e férteis e, em outros, extensos carnaubais, indo desaguar no mar junto
às riquíssimas salinas de Macau e Mossoró”, afirmou Tavares de Lyra no início do século XX.21
Nessa sentença, verificamos os três principais aspectos que, para o intelectual norte-rio-
grandense, distinguiam os referidos vales: a boa qualidade de suas terras, o carnaubal abundante
e as salinas, que, instaladas naqueles trechos onde os rios Piranhas-Açu e Apodi se encontram
com o mar, viabilizaram uma atividade econômica que se destacara no cenário local desde
quando o que hoje é o Rio Grande do Norte ainda era capitania.
Na presente pesquisa, dedicaremos atenção ao Vale do Açu, que já foi qualificado
como o celeiro do estado. Apesar de todos os municípios desse vale estarem inscritos numa
zona semiárida, trata-se de uma área com “condições climáticas e de solos extremamente
favoráveis ao aproveitamento agropecuário”.22
Nos dois primeiros capítulos, analisaremos a tensão dinâmica entre uma área ao
mesmo tempo fértil, com grande potencial para a produção agrícola, mas também sujeita às
vicissitudes do clima – às secas e enchentes. Daremos destaque à dinâmica das forças naturais
no Baixo Açu, direcionando o olhar ao período anterior à construção da Barragem Armando
Ribeiro, porque consideramos tal procedimento fundamental para a compreensão do processo
sobre o qual nos debruçaremos aqui. Afinal, foi em função das características do ambiente físico
que os diversos agentes do Estado justificaram a aplicação de políticas de gestão das águas para
essa área ao longo de todo o século XX. Ao mesmo tempo, tais políticas, consubstanciadas na
construção da Barragem Armando Ribeiro, alteraram sensivelmente um dado padrão de
organização social que se desenvolveu na relação dos grupos sociais do Baixo Açu com o meio
ambiente local. Por outro lado, assumiremos que o Vale do Açu constitui uma espacialidade
cujos traços geográficos não determinaram de modo inexorável a trajetória histórica das
20 Cf. BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses. Natal: Sebo Vermelho, 2013. 21 LYRA, Tavares. O Rio Grande do Norte: 1911. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1912. p. 22. 22 GOMES DA SILVA, Aldenor. A parceria na agricultura irrigada no Baixo Açu. Natal: CCHLA, 1992. p. 14.
27
comunidades humanas que aí se estabeleceram, mas que uma série de fatores de ordem
econômica, política e social se imbricaram, na particularidade da configuração desse recorte
espacial, para explicar a trama histórica que vamos agora acompanhar.
No presente capítulo, contemplaremos o panorama do Baixo Açu.
1.1 O caminho das águas
O Piranhas-Açu, principal rio da bacia hidrográfica que leva o mesmo nome, desce da
Serra do Bongá, uma extensão da chapada do Araripe no estado da Paraíba, na fronteira com
Pernambuco. Constitui-se o Piranhas-Açu a partir do encontro das águas dos rios do Peixe,
Espinhara e Piancó. Segue o seu curso, ora por leitos apertados, ora por boqueirões amplos, até
penetrar no Rio Grande do Norte pelo município de Jardim de Piranhas, quando recolhe as
águas que convergem de todos os rios da bacia do Seridó. Suas águas alcançam a Serra de
Santana, e, daí em diante, recebe a denominação de Rio Açu – até então, é conhecido apenas
como rio Piranhas. Depois de perfazer aproximadamente 450 km desde sua origem, na Paraíba,
e riscar de sul a norte o território norte-rio-grandense em demanda do oceano, fertilizando a
várzea que alimenta numerosas comunidades ao longo de sua trajetória; de correr sinuoso
margeando as bordas dos tabuleiros e serpentear pelo capinzal do baixo vale; de se ramificar
em três afluentes (os rios Amargoso, Cavalos e Conchas), estendendo na altura de Macau o seu
estuário – expira finalmente o rio Açu no Oceano Atlântico, a 5º de latitude sul. Ao todo, a
Bacia Piranhas-Açu possui uma área de cerca de 44.000 km², sendo que 60% dela se encontra
no estado da Paraíba e 40% no do Rio Grande do Norte. Esses 40% norte-rio-grandenses
correspondem a algo em torno de 17.500 km², ou seja, aproximadamente um terço do território
estadual!23
Sob condições naturais, o Rio Piranhas-Açu é intermitente. “A declividade do terreno
não lhes permittem que sejam correntes continuas”, afirmou Tavares de Lyra no início do século
XX, referindo-se aos rios Açu e Apodi.24 Nesse mesmo período, o representante do Rio Grande
do Norte na Exposição Nacional de 1908, Domingos Barros, declarou serem os “nossos rios
sertanejos”, no curso superior, “leitos descarnados e seccos, espectros de rios onde só as areias
brancas, despidas de argilla, os seixos rolados e a corrosão das margens attestam a passagem
23 Sobre a bacia Piranhas-Açu, consultamos: SECRETARIA DE ESTADO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO RIO GRANDE DO NORTE - SERHID. Plano Estadual de Recursos Hídricos: relatório de caracterização do regime hidrometeorológico das bacias. Natal, 1997. RIO, G. P. et. al. Nenhuma bacia é apenas uma bacia! Confins. n. 27, 2016. ELIAS, Nunes. Bacias Hidrográficas. In.: Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. p. 74-86. MELO, Manoel Rodrigues de. Várzea do Açu: paisagens, tipos e costumes do vale do açu. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979. 3 ed. 24 LYRA, Tavares. Op. cit. p. 22.
28
das aguas” – apesar de serem “rios soberbos e torrenciais no inverno”.25 O Rio Açu, portanto,
assim como outros do interior norte-rio-grandense, vivia sob o signo da irregularidade, de
acordo com a descrição geográfica do início do século XX. Ao longo do século, entretanto, os
executivos estadual e federal, algumas vezes em parceria com a iniciativa privada, praticaram
uma série de intervenções cujo objetivo era, pretensamente, o de resolver essa condição, indo
ao encontro da dinâmica de instabilidade que caracterizava o Rio Açu e que impunha uma série
de dramas às comunidades ribeirinhas.
Em 1961, os geógrafos Orlando Valverde e Myriam Mesquita publicaram um estudo
sobre o Vale do Açu no qual afirmaram: “o regime do rio [Piranhas-Açu] era periódico, mas,
graças à construção de numerosos grandes açudes no seu alto curso, bem como no seu afluente
principal, o Seridó, o Baixo Açu mantém, hoje em dia, pelo menos um filete d’água, mesmo no
auge da estiagem”.26 Assim, na segunda metade do século, depois do conjunto de intervenções
públicas que se consubstanciaram na construção de pequenas, médias e grandes barragens, tanto
no próprio rio Piranhas quanto em seus afluentes, a descrição física do Baixo Açu passa a
apresentar um rio relativamente perenizado. Relativamente, porque, de acordo com a citação, o
que restava do rio nos períodos de estiagem mais intensa não era mais do que um pequeno filete
d’água. O que não era pouca coisa para as comunidades ribeirinhas que dependiam
fundamentalmente do rio e das terras férteis de vazante para sobreviver – mas não significa uma
regularização definitiva do regime das águas.
A principal medida que possibilitou essa relativa regularização do Piranhas-Açu foi a
construção do sistema combinado de barragens Coremas-Mãe D’água, na Paraíba, no alto curso
do rio – obra que foi concluída em 1942. A efetiva perenização do baixo curso só seria
alcançada após a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, em 1983. Assim, no
período de que tratam os primeiros capítulos dessa pesquisa, a saber, os primeiros três quartos
do século XX, o rio era intermitente – ou, depois de 1942, apenas relativamente regularizado.
25 BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses: dados e informações. Natal, RN: Sebo Vermelho, 2013. p. 11, 13. Esse livreto de 31 páginas e mais umas tantas tabelas corresponde à conferência que Domingos Barros leu em dezembro de 1908 no salão do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, por ocasião da Exposição Nacional das Riquezas Econômicas do Brasil. Domingos Barros foi o delegado do Rio Grande do Norte na Exposição. 26 VALVERDE, Orlando; MESQUITA, Myriam G. C. Geografia Agrária do Baixo Açu. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. Ano XXIII, nº 3, jul/set, 1961. p. 03.
29
Figura 2 mapa da bacia hidrográfica do Piranhas-Açu, com as divisões entre as sub-bacias
Fonte: http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/10840/img-1.jpg
30
Figura 3 mapa da bacia do Rio Piranhas-Açu no Rio Grane do Norte
Fonte: Projeto Marca D’água
A partir do município de Jucurutu, o rio Piranhas-Açu contribui para definir um recorte
territorial no interior do Rio Grande do Norte denominado Microrregião do Vale do Açu,
pertencente à Mesorregião do Oeste Potiguar. As mesorregiões e microrregiões geográficas
foram definidas pelo IBGE entre os anos de 1989 e 1990, quando ocorreu a última grande
mudança na regionalização do território brasileiro. As microrregiões “foram definidas como
partes das mesorregiões que apresentam especificidades quanto à organização do espaço”,
segundo o documento publicado pelo próprio IBGE, que esclarece no mesmo texto o sentido
dessas especificidades: “referem-se à estrutura de produção agropecuária, industrial,
extrativismo mineral ou pesca. Essas estruturas de produção diferenciadas podem resultar da
31
presença de elementos do quadro natural ou de relações sociais e econômicas particulares”.27
Trata-se, portanto, de uma classificação técnica, de caráter oficial, que enfeixa de acordo com
determinados critérios – notadamente de ordem econômica –, um conjunto de municípios numa
espacialidade maior, a microrregião, com o objetivo de orientar as políticas públicas para o
planejamento e desenvolvimento regional.
Mas o Vale do Açu não emerge unicamente, enquanto unidade espacial, por força de
um ato oficial. É possível verificar uma identidade do Baixo Açu já consolidada desde pelo
menos a primeira metade do século XX, quando o escritor Manoel Rodrigues de Melo publicou
o livro Várzea do Açu. Essa obra, cuja primeira edição veio a lume em 1940, apresenta uma
identidade varzeana amadurecida, que engloba o vale desde o município de Açu até Macau – o
que, grosso modo, chamamos de Baixo Açu. Já havia, no período, uma imagem consagrada do
Nordeste e do sertão nordestino. A literatura regionalista já definira uma maneira de narrar e
descrever o Nordeste.28 O próprio Manoel Rodrigues de Melo foi o principal animador de uma
revista intitulada Nordeste, periódico publicado em Natal que contou com a participação de
intelectuais como Luiz da Câmara Cascudo, Felipe Guerra e Vingt-Um Rosado. Anos antes, a
obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, firmara-se como um paradigma da descrição do sertão
e do sertanejo. Não havia mais como os escritores fugirem dessa referência se pretendessem
narrar o sertão. Mas Manoel Rodrigues de Melo, embora claramente identificado com esse
paradigma literário instituído por Euclides da Cunha, narra um Nordeste e um sertão particular:
a Várzea do Açu, fundando ele próprio um paradigma para os futuros escritores que desejassem
versar sobre aquele vale.
Assim, Manoel Rodrigues de Melo tece uma narrativa sobre o Vale que realça dados
elementos da paisagem, dados símbolos, costumes e tipos sociais que, assim agenciados no
discurso do intelectual, produzem uma imagem espacial mais ou menos homogenia – embora
com fronteiras fluidas – que pretende dizer aos leitores o que é a Várzea do Açu, quais os seus
traços distintivos, as suas características singulares, as suas idiossincrasias, tanto em termos
geográficos quanto antropológicos. “Assim é o rio Açu, como assim também é o varziano, sem
desfiguramento e sem retoque”, concluiu Manoel Rodrigues de Melo, depois de haver
preenchido com alguns parágrafos um tópico que dedicara ao Rio Açu – expressão que resume
27 IBGE. Divisão do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas. Vol I. Rio de Janeiro: Fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE). Diretoria de Geociências (DGC) e Departamento de Geografia (DEGEO). Rio de Janeiro. 1990. p. 08. 28 Sobre a literatura regionalista e a construção da ideia de região Nordeste, Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011, 5. ed.
32
a ambição que animava o escritor, a de definir com clareza, “sem desfiguramento e sem
retoque”, o seu objeto.
Ora, essa identidade que o autor de Várzea do Açu produz é tributária não apenas dos
aspectos físicos da geografia local, mas também de uma construção lenta da memória, pois em
cada elemento da paisagem estão depositados fragmentos de memória que remontam a
experiências culturais muito antigas.29 É tributária dos saberes populares, dos mitos e das
experiências sociais que reverberaram na produção intelectual do escritor. É tributária,
inclusive, daquela imagem do Nordeste que vinha sendo construída na literatura regionalista
dos anos de 1930. O Vale do Açu de Manoel Rodrigues de Melo é claramente um fragmento
dessa unidade regional mais abrangente, a qual o autor menciona algumas vezes nesse livro de
1940: o Nordeste. Com isso, queremos sugerir que a identidade do Baixo Açu que aparece na
obra de Manoel Rodrigues de Melo remonta a referências que são anteriores à publicação de
Várzea do Açu.
Não nos interessa aqui investigar as origens ou analisar o processo de construção dessa
identidade espacial, senão apenas demonstrar que desde a primeira metade do século XX ela já
estava firmada no imaginário local. Que já havia, portanto, uma ideia do Baixo Açu como uma
unidade que, apesar das divisões internas entre municípios, apresentava características naturais
e culturais comuns. Uma unidade que encontrava no Rio Piranhas-Açu, bem como na várzea a
ele correspondente, o grande elemento de agregação. Era o rio, como veremos, que atravessava
as experiências de todas as comunidades ribeirinhas e contribuía para definir um modo de vida
comum a essas comunidades – pois ao rio e à Várzea correspondia também o varzeano, um tipo
que, embora espalhado por diversos pontos do Baixo Açu, apresentava costumes em comum e
se irmanava na convivência diária com o rio e na luta com a natureza, conforme a descrição de
Manoel Rodrigues de Melo.
Esse esclarecimento é importante, do ponto de vista metodológico, porque aqui
trataremos do Vale do Açu como uma unidade que existia muito antes de sua constituição
enquanto microrregião geográfica pelo IBGE, em 1990. A definição oficial, inclusive, não
corresponde inteiramente à classificação não-oficial, que é difícil de capturar de maneira
definitiva, devido à fluidez que lhe é própria. Apenas como exemplo, podemos lembrar que o
município de Jucurutu, inscrito oficialmente na microrregião geográfica do Vale do Açu,
apresenta uma identificação marcante com o universo simbólico do Seridó. Identificação que
pode ser explicada em função tanto da proximidade geográfica quanto da construção, em
29 Sobre isso, ver: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
33
meados do século XX, da rodovia que liga Jucurutu a Currais Novos, permitindo uma
comunicação importante entre aquele município e o recorte definido como o Seridó. Por isso,
na antiga classificação do IBGE, de 1970, o município de Jucurutu havia sido inscrito na
Microrregião Homogênea (que difere da atual divisão em microrregiões geográficas) do Seridó
Potiguar, e no mapa das regiões do Plano Plurianual da Secretaria de Planejamento e Finanças
do Rio Grande do Norte de 2008 a 2011, o mesmo município pertence à Região de
Desenvolvimento do Seridó. Podemos lembrar também, seguindo essa mesma linha de
raciocínio, que o município de Macau, embora não esteja incluído oficialmente no Vale do Açu,
pertence claramente, como o texto de Manoel Rodrigues de Melo nos indica, ao universo
simbólico do Vale, ao mesmo tempo em que apresenta uma identidade que se dobra em direção
ao mar – mas a classificação oficial não é capaz de dar conta dessas múltiplas identidades que
atravessam os espaços.
Feitas essas considerações, voltemos a acompanhar o Rio Piranhas-Açu em seu curso
desde a Serra do Bongá. Como vimos, ele vem descendo do alto sertão paraibano em demanda
do mar, penetra no território do Rio Grande do Norte e chega a Jucurutu. Avança pelo município
de São Rafael, passando em seguida por Itajá, Açu, Ipanguaçu, Carnaubais, Alto do Rodrigues,
Pendências, Porto do Mangue. São esses os municípios que compõem hoje a Microrregião do
Vale do Açu – de acordo com a classificação oficial (ver mapa 2). Ao longo dessa viagem, o
rio se alarga em determinados trechos, recebendo aqui e ali as águas que descem de outros veios
menores ou de lagoas que transbordam nas cheias, especialmente as lagoas do Piató, Ponta
Grande e Queimado; mas também ele mesmo se espraia em diversos regatos que escapam do
curso principal, cortando o Vale em muitas direções, alimentando numerosas lagoas periódicas
de menor dimensão e fertilizando os solos da várzea com os nutrientes que transporta.30
Acompanhando o rio pelo interior do Baixo Açu, contemplaremos a paisagem da várzea.
30 Ver: ELIAS, Nunes. Bacias Hidrográficas. In.: Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. p. 74-86.
34
Figura 4 mapa da divisão municipal do Vale do Açu - RN
Fonte: elaboração pessoal a partir do programa QGIS e da base de dados do IBGE
1.1.1. “Estas árvores são úteis por muitos lados”
Seguindo o traçado que o rio descreve em seu curso, é possível contemplar a
predominância, no interior do baixo vale, da mata de galeria, particularmente a carnaubeira,
que participa do complexo ambiental local como recicladora de nutrientes e controladora da
erosão eólica.31 As florestas de carnaubal se estendem por todo o Baixo Açu em solos agrícolas
de alta fertilidade. É uma “floresta sem galhos, sem troncos tortuosos, sem o emmaranhado das
lianas e dos cipós e sem a sombra religiosa e espessa das mattas virgens. É o império da linha
reta”, descreveu Domingos Barros em 1908, referindo-se a essa espécie de palmeira que
participava tão intensamente da paisagem do Vale que chegava a dar a impressão de uma
floresta.32
A abundância de carnaubeiras no Vale do Açu concorreu para o estabelecimento de
uma atividade econômica que, sendo praticada desde pelo menos o século XIX, assumiu uma
importância significativa ao longo do XX, notadamente na década de 1940: a produção da cera
31 Ver: OLIVEIRA, Maurício. Os solos e o ambiente agrícola no Sistema Piranhas-Açu, RN. Mossoró: ESAM/FGD, 1988. (Col. Mossoroense, 380). 32 BARROS, Domingos. Op. cit. p. 27.
35
de carnaúba. Em 1809, o padre e botânico Manuel de Arruda Câmara, escrevendo uma carta ao
governador geral de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, afirmou:
o produto da cêra se extrai das fôlhas novas; cortadas estas e sêcas desapega-se da sua superfície em abundância um pó alvo, que, pôsto ao lume, se derrete em cêra branca, com o mesmo cheiro e tôdas as outras propriedades da cêra, com a diferença, porém, de ser mais dura e quebradiça; mas êste defeito corrige-se, misturando-a com duas partes de cêra branca do comércio; nesta proporção se formam velas perfeitas e que dão boa luz; mas deve o cerieiro alisá-las com mais presteza do que as de cêra ordinária.33
Nesse trecho, Manoel de Arruda Câmara aborda o principal uso que, do ponto de vista
comercial, os ribeirinhos davam então à carnaúba: a extração do pó cerífero para a fabricação
da vela. E explica os detalhes do processo artesanal através do qual se retirava da palmeira uma
cera de boa qualidade, o que exigia certa presteza do artesão. Assim, um saber se desenvolveu
entre os beiradeiros do Baixo Açu, a partir de uma atividade industrial inicialmente rústica, mas
que viria a se tornar objeto do interesse do capital internacional no século XX e chegaria a
viabilizar um comércio da maior importância para o Vale do Açu.
No Rio Grande do Norte, a produção da cera assumira certo destaque econômico já no
decorrer do século XIX. No relatório de 1849, o Presidente da então Província do Rio Grande
do Norte afirmou que a carnaúba e sua cera “constituem um dos principaes ramos da produção
da Província”. E identificou no município de Açu o principal centro de produção, onde
“arrendão-se extensos carnaubaes para o corte dos palmitos, que, seccando, ou passados em
agoa quente, dão a cera empregada nas velas compostas”.34 Ou seja, desde a segunda metade
do século XIX a cera já cumpria um papel relevante na economia local e até provincial. No
início do XX, o Mapa Agrícola do Estado do Rio Grande do Norte, organizado pela Sociedade
Nacional de Agricultura (Sessão Geografia Agrícola) para a Exposição Nacional de 1908,
registra a carnaúba como um dos destaques da produção econômica que se dava às margens do
Rio Açu.35
A relevância da carnaúba na economia estadual se tornaria ainda mais significativa
depois da Primeira Grande Guerra, com o desenvolvimento das indústrias química e elétrica,
quando a cera passa receber usos mais variados, sendo empregada na fabricação de tintas,
33 Citado por: CASCUDO, Luís da Câmara. A carnaúba. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. v. 26, nº 2, abr/jun, 1964. p. 19. 34 TAQUES, Benevenuto Augusto Magalhães. Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte. Pernambuco, Typ. de M.F. de Faria, 1849. p. 17. 35 BRANCO, José Moreira Brandão Castelo. O Rio Grande do Norte na cartografia dos séculos XVIII a XX. José Moreira Brandão Castelo Branco. Revista trimestral do Instituto histórico e geográfico brasileiro, n. 226, jan-mar 1955. p. 169-230. A citação é da p. 219.
36
vernizes, graxas, lubrificantes, isolantes, cosméticos, material fotográfico e fonográfico.36 A
partir de então, o Vale do Açu passou a se destacar como grande produtor e exportador da cera,
contribuindo sistematicamente para que o Rio Grande do Norte figurasse na maior parte do
século entre os maiores exportadores brasileiros desse produto, ao lado do Ceará e do Piauí.37
O auge dessa atividade se deu na década de 1940, com as demandas que surgiram no contexto
da Segunda Guerra Mundial.
Mas além da destinação estritamente comercial, a carnaúba se prestava a uma série de
outras atividades de menor valor financeiro, mas de profundo significado cultural para as
comunidades ribeirinhas. Em A terra e o homem no Nordeste (1 ed. de 1963), Manuel Correia
de Andrade chegou a afirmar que nos estados do Rio Grande do Norte e Ceará havia um
complexo cultural relacionado à carnaúba tão significativo que era possível falar numa
verdadeira “civilização da carnaúba” (semelhante ao que se convencionou chamar de
civilização do açúcar ou civilização do algodão).38 Com efeito, em torno dessa palmeira se
formou todo um universo de saberes, de influências econômicas, antropológicas e históricas na
Várzea do Açu.
Fernand Braudel, autor de um livro para jovens secundaristas na França intitulado
Gramática das civilizações, demonstra que a palavra civilização, em uma acepção de
excelência, de superioridade cultural, própria do século XVIII, deixou de fazer sentido para a
língua moderna, de modo que, no século XX, quando Manoel Correia de Andrade escreveu o
referido livro, o mais comum era que se usasse a expressão no plural: civilizações, ou seja, um
“conjunto de características que a vida coletiva de um grupo ou de uma época apresenta”.39 Um
pouco adiante, no mesmo texto, Braudel desenvolve a ideia de que as civilizações são espaços
– terras, relevos, climas, vegetações – aos quais os homens, em sociedade, dão respostas,
desenvolvendo culturas que apresentam dados traços característicos. É nesse sentido que o autor
de A terra e o homem do Nordeste fala em “civilização da carnaúba”, referindo-se aos vales
úmidos do Rio Grande do Norte e Ceará. Não cabe aqui contestar ou endossar essa
interpretação, antes somente demonstrar que a carnaúba contribuiu para definir não apenas uma
economia, mas também um conjunto de práticas culturais – a tal ponto que um pesquisador
respeitado chegou a identificar ali uma civilização.
36 VARGAS, Nazira Abib. Histórias que o povo conta. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1987. p. 126. 37 Ver: ALBANO, Gleydson Pinheiro. Novas modalidades de produção no semiárido nordestino: a passagem do extrativismo da carnaúba par a monocultura de banana. 12º encuentro de geógrafos de América Latina, 2009, Montevideo. 38 ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. São Paulo: Atlas, 1986. 5 ed. 39 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Marins Fontes, 2004, 3 ed. p. 28.
37
O padre Manoel de Arruda Câmara, em outro trecho daquela carta de 1809, afirmara
que “estas árvores são úteis por muitos lados”. De acordo com ele, as carnaúbas eram úteis
porque alimentavam homens e animais, uma vez que delas se extraía uma farinha que servia
“aos povos do sertão em tempos famintos”. Além disso, de quase tudo na árvore os ribeirinhos
aproveitavam para a arquitetura local: “as mesmas fôlhas servem para teto das casas rusticas,
onde resistem às injúrias do tempo por espaço de 15 a 20 anos, sem necessitarem de reparação”
e “a madeira, que é muito direta e comprida, (…) serve de traves para as casas, para currais e
cercados”.40 Em 1908, Domingos de Barros também afirmou sobre a carnaúba que “não há
planta mais útil e mais prestimosa”, e que “só a carnaúba faz toda a casa do sertanejo”.41 Opinião
que coincide, portanto, com a do padre Manoel de Arruda, exposta cem anos antes.
Temos nessas declarações os indícios de que a adaptação das comunidades ribeirinhas
ao ambiente físico onde estavam fixadas passava fundamentalmente pela carnaúba. Da
palmeira, os beiradeiros aprenderam a extrair alimento para si e para os animais, sobretudo em
tempos de adversidade climática; a produzir a cera que convertiam em vela para o uso cotidiano
e para a geração de renda, por meio do comércio tanto da matéria-prima quanto do produto; a
produzir um artesanato com a palha – esteiras, urupemas, vassouras, sacos, bolsas e chapéus –
que também se prestava ao uso cotidiano e ao comércio nas feiras locais, atividade que
empregava especialmente as mulheres e crianças pobres; a construir suas casas de taipa, o que
faziam juntando barro ao talo da folha da palmeira, cuja madeira delgada e resistente servia
ainda de esteio para sustentação da estrutura; a fabricar os móveis e utensílios domésticos, como
prateleiras, mesas, bancos e armários;42 a usar a palha – quando esta não era empregada no
artesanato – para cobrir o solo, prática que evitava a perda de umidade por evaporação, fornecia
matéria orgânica, garantia proteção contra a erosão e inibia o crescimento da vegetação natural,
nociva aos roçados.43
Temos, naquelas citações de Manoel de A. Câmara e Domingos Barros, distantes um
século uma da outra, os indicativos de uma certa continuidade nos usos que os beiradeiros
davam à palmeira. Usos que emergiram, sobretudo, como resposta às condições do meio
ambiente, como forma de integração dos grupos sociais ao seu entorno, como mecanismos de
adaptação àquela geografia específica: a várzea. Usos que, ademais, persistiram como prática
40 Citado por: CASCUDO, Luís da Câmara. A carnaúba. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. v. 26, nº 2, abr/jun, 1964. p. 19. 41 BARROS, Domingos. Op. cit. p. 28. 42 Id. Ibid. 43 ANDRADE, Manoel Correia de. Op. cit. p. 175.
38
cultural ao longo do século XX, a despeito dos interesses capitalistas que se voltaram para a
cera.
No Baixo Açu, o cultivo e usos da carnaúba sofreram uma fissura significativa após a
Primeira Guerra Mundial. Os imperativos do mercado internacional condicionaram uma série
de alterações a