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1 O TRABALHO NA IDADE MÉDIA: A REPRODUÇÃO DA VIDA MATERIAL NAS CIDADES MEDIEVAIS AMBONI, Vanderlei 1 1. INTRODUÇÃO A sociedade medieval que se apresenta na Europa Ocidental, a partir do Século XI, traz um elemento novo, que é a cidade. “Cidade produtora, cidade mercantil, a cidade é também, economicamente [...] um centro de consumo, em razão da densidade de seu povoamento e do número de não-produtores entre seus habitantes”, é o que escreve Le Goff (1992, p. 74). Não obstante, Schmitt (2006) vai ressaltar que “A renovação do fenômeno urbano é um dos maiores aspectos da história da sociedade e da cultura da Europa dos séculos XI – XIII, e ela deixou marca indelével até nossos dias, nas cidades européias”. As relações sociais estabelecidas em seu interior passou a ser objeto de estudos por parte da historiografia, tanto nos seus aspectos cotidianos quanto nas relações de trabalho, posto que os homens necessitam produzir sua vida material e, essas condições não são dadas, precisam ser criadas historicamente, através da organização do processo produtivo, como condição sine qua non para sua própria reprodução social. Dessa maneira, Luckás (s/d, p. 47) nos traz que, no cotidiano da vida social, [...], as alternativas postas e resolvidas corretamente, - corretamente no sentido do que corresponde à "exigência do dia"- são fixadas socialmente, são engastadas na reprodução social dos homens, ela, deste modo, se tornam partes integrantes do continuum da reprodução dos indivíduos e da sociedade e se consolidam como, de um lado, crescimento da capacidade vital da sociedade no seu todo e, de outro, difusão e aprofundamento das faculdades individuais dos homens singulares. Para compreendermos esse processo, PERNOUD, (1997, p. 47) pontua que, 1 Universidade Estadual do Paraná – Campus de Paranavaí

o Trabalho Na Idade Média

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Texto traz discussões sobre o trabalho na Idade Média.

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    O TRABALHO NA IDADE MDIA: A REPRODUO DA VIDA

    MATERIAL NAS CIDADES MEDIEVAIS

    AMBONI, Vanderlei1

    1. INTRODUO

    A sociedade medieval que se apresenta na Europa Ocidental, a partir do Sculo XI,

    traz um elemento novo, que a cidade. Cidade produtora, cidade mercantil, a cidade

    tambm, economicamente [...] um centro de consumo, em razo da densidade de seu

    povoamento e do nmero de no-produtores entre seus habitantes, o que escreve Le

    Goff (1992, p. 74). No obstante, Schmitt (2006) vai ressaltar que A renovao do

    fenmeno urbano um dos maiores aspectos da histria da sociedade e da cultura da

    Europa dos sculos XI XIII, e ela deixou marca indelvel at nossos dias, nas cidades

    europias. As relaes sociais estabelecidas em seu interior passou a ser objeto de estudos

    por parte da historiografia, tanto nos seus aspectos cotidianos quanto nas relaes de

    trabalho, posto que os homens necessitam produzir sua vida material e, essas condies

    no so dadas, precisam ser criadas historicamente, atravs da organizao do processo

    produtivo, como condio sine qua non para sua prpria reproduo social.

    Dessa maneira, Lucks (s/d, p. 47) nos traz que, no cotidiano da vida social,

    [...], as alternativas postas e resolvidas corretamente, - corretamente no sentido do que corresponde "exigncia do dia"- so fixadas socialmente, so engastadas na reproduo social dos homens, ela, deste modo, se tornam partes integrantes do continuum da reproduo dos indivduos e da sociedade e se consolidam como, de um lado, crescimento da capacidade vital da sociedade no seu todo e, de outro, difuso e aprofundamento das faculdades individuais dos homens singulares.

    Para compreendermos esse processo, PERNOUD, (1997, p. 47) pontua que,

    1 Universidade Estadual do Paran Campus de Paranava

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    A partir da altura em que cessam as invases, a vida transborda os limites do domnio senhorial. O solar comea a no se bastar mais a si prprio; toma-se o caminho da cidade, o trfego organiza-se, e em breve, escalando as muralhas, surgem os subrbios. ento, a partir do sculo XI, o perodo de grande actividade urbana. Dois factores da vida econmica, at ento um pouco secundrios, vo adquirir uma importncia de primeiro plano: o ofcio e o comrcio [...].

    Ofcio e comrcio, eis as palavras que do sentido vida citadina, que se

    complementam socialmente, cujo propsito central sua prpria reproduo social. Ganha

    contornos com o processo de organizao da vida citadina, mas a cidade no representa a

    Idade Mdia. Ela se insere na sociedade feudal como um processo vital para a segurana

    social, pois parte da vida medieval se transcorreu nas cidades. O ser social, neste caso,

    como pontuou Lucks (s/d, p.43), tem como estrutura de fundo a polarizao dos dois

    complexos dinmicos que se colocam e se retiram continuamente no processo reprodutivo:

    o indivduo e a prpria sociedade, posto que na Idade Mdia, a vida era regulada por laos

    de juramento e de fidelidade. Nesta sociedade, o senhor feudal exerce seu poder com

    domnio absoluto sobre o trabalho do campons e sobre as atividades da coletividade.

    um mundo que impera a violncia como expresso de poder, conforme atesta Guizot (s/d:

    131), para quem, as relaes so verticalizadas, sendo o poder do indivduo sobre o

    indivduo, a dominao da vontade caprichosa dum homem, mas so corpos sociais

    importantes para a vitalidade da sociedade, pois os vnculos pressupem uma determinada

    organizao social, princpios civilizacionais, o que gera novas necessidades produzidas

    pelas circunstncias de vida social. Fomenta, portanto, novas foras produtivas no interior

    dessa sociedade.

    Como escreveu Marx (1989, p. 942)

    [...] como o selvagem deve lutar com a natureza para satisfazer as suas necessidades, para conservar e para reproduzir a sua vida, assim deve fazer tambm o homem civil, e o deve fazer em todas as formas da sociedade e sob todos os modos de produo possveis. Ao mesmo tempo que ele se desenvolve, o reino da necessidade natural se expande, porque se expandem as suas necessidades, mas ao mesmo tempo se expandem as foras produtivas que satisfazem estas necessidades.[..]

    Das necessidades que nascem das relaes feudais, os homens desenvolvem novas

    foras produtivas para atender as demandas da sociedade, quer sejam atravs da prpria

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    produo, quer sejam do comrcio local ou do comrcio a longa distante, como produtos

    de uma mesma necessidade a ser suprida pela sociedade, posto que, para Fernando

    Braudel, as cidades so como transformadores eltricos: aumentam as tenses, precipitam

    as trocas, urdem incessantemente a vida dos homens. So os aceleradores de todos os

    tempos da histria. O ponto de partida a reproduo da vida social na cidade medieval,

    como pretendemos mostrar.

    2. A CIDADE MEDIEVAL

    Antes de entramos na cidade medieval, preciso visualizar a Idade Mdia como

    uma sociedade de trabalho, postas nos juramentos de fidelidade estabelecidos entre os

    homens, onde as relaes econmicas so secundarias e de pouca importncia na vida

    cotidiana do homem medieval, como bem viu Pernoud, ao chamar a ateno para esse

    aspecto da sociedade. Dessa maneira, Pernoud (1997, p. 27) argumenta que,

    Para compreender a Idade Mdia, temos de nos representar uma sociedade que vive de um modo totalmente diferente, donde a noo de trabalho assalariado e mesmo em parte a de dinheiro esto ausentes ou so muito secundrias. O fundamento das relaes de homem para homem a dupla noo de fidelidade, por um lado, e de proteco, por outro. Assegura-se devoo a qualquer pessoa e espera-se dela em troca segurana. Compromete-se, no a actividade em funo de um trabalho preciso, de remunerao fixa, mas a prpria pessoa, ou melhor, a sua f, e em troca requere-se subsistncia e proteco, em todos os sentidos da palavra. Tal a essncia do vnculo feudal.

    A vida no feudo era constituda de relaes de fidelidade. Esse ponto importante,

    mas os elementos constitutivos dessa mesma medievalidade no se esgotavam nessas

    relaes. As cidades revigoradas ou nascidas a partir do ano mil, no interior dos feudos, so

    campos constitutivos de novas relaes estabelecidas entre os homens, pois a vida urbana

    pressupe novas necessidades e, para atend-las, novas foras produtivas e laos de

    urbanidade so desenvolvidas. A Europa ocidental v as cidades florescerem em

    intensidade de produo de mercadorias e do desenvolvimento de uma economia

    monetria centrada nas atividades comerciais e, ao mesmo tempo, a desenvolverem as

    liberdades individuais de forma lenta, mas crescente. Trazem, em seu bojo, os sinais de um

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    progresso contnuo, conforme nos mostra o Le Goff (s/d, p. 19).

    Um dos aspectos essenciais do grande progresso do Ocidente aps o ano mil, o desenvolvimento urbano, que atinge o seu apogeu no sculo XIII. A cidade modifica o homem medieval. Restringe o seu crculo familiar, mas alarga a rede de comunidades em que ele participa; no centro das suas preocupaes materiais, coloca o dinheiro, alarga os seus horizontes, prope-lhe meios de se instruir e de se cultivar, proporciona-lhe um novo universo ldico.

    Esse homem medieval, centrado no citadino, vivendo entre muralhas e torres de

    guarnio ganha cada vez mais visibilidade e existncia social, posto que suas relaes

    ultrapassam os muros e ganha o mundo, atravs do estabelecimento de relaes comerciais.

    Esse homem medieval tem a necessidade presente de ser livre e respirar o ar da

    liberdade, encorajado pela vida citadina, impulsionado por novas relaes sociais e

    desenvolvimento de novas foras produtivas, vive com intensidade esse presente, que

    criador de uma esttica e representao singular na histria. Esse homem, citadino, que

    existe, como acentuou Jacques Ressiaud, e Le Goff (s/d, p. 19) o confirma, conforme cito:

    Por isso, para Jacques Rossiaud, o citadino existe. Mas est encerrado num espao, num lugar que pode ser o melhor ou o pior do mundo, de acordo com a sua ocupao e a sua mentalidade. Para o monge, que procura a solido, esse espao a Babilnia, me de todos os vcios, trono da impiedade. Para o clrigo vido de saber e de discusses, para o cristo que ama a Igreja e os ofcios religiosos, Jerusalm. Na maior parte dos casos, o citadino um imigrado recente, um antigo campons. Tem de se inserir na cidade, tem de conseguir aculturar-se. Como refere o provrbio alemo, raro que o ar da cidade liberte, mas oferece-lhe toda uma srie de privilgios. O alojamento um problema de difcil resoluo que implica, frequentemente, a coabitao. Para alm do espao da casa, existe um outro espao, bem delimitado, cercado pelas muralhas. O citadino um homem que vive entre muros. A cidade um pulular constante [...]. Mas a cidade tambm aglomerao. , sobretudo, um centro econmico. O seu corao o mercado. A populao urbana um conjunto de clulas restritas, de ncleos familiares de fraca densidade. O citadino aprende o que a fragilidade da famlia.

    Vivendo na individualidade, o citadino medieval criou as instituies necessrias

    para regular a vida na sociedade urbana, bem como os laos de urbanidade para promover

    a coletividade no espao circunscrito muralha. O indivduo, nesse aspecto, se constitui

    como sujeito, se urbaniza e fortalece os laos de unio entre os citadinos para a defesa de

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    seus interesses. Cria, portanto, sua civilizao e o modo de produzir sua vida material. Ao

    produzir sua existncia material, produz a necessidade da comunicao e da socializao, o

    que implica na existncia coletiva do homem. Viver em coletividade significa produzir

    valores culturais, smbolos, educao, criar, portanto, a civilizao, que histrica,

    determinada pela produo da vida material dos homens.

    No , por acaso que Pirenne (1968: 185), vai compreender essa exigncia da

    produo de mercadorias, da esttica e dos smbolos que foram desenvolvidas para

    satisfazer as necessidades crescentes dos citadinos medievais e, prpria de reproduo

    social, pois:

    Toda cidade, grande ou pequena, possui um nmero e uma diversidade, proporcionais sua importncia, de artesos de primeira categoria, pois nenhuma burguesia pode prescindir dos objetos fabricados que a satisfao das suas necessidades exige. Se o ofcio de luxo existe unicamente em aglomeraes considerveis, em compensao, encontra-se por tda parte os artesos indispensveis sua existncia cotidiana: padeiros, carniceiros, alfaiates, ferreiros, oleiros ou picheleiros etc. Assim como o grande latifndio, na poca agrcola da Idade Mdia, se esforava em produzir tdas as espcies de cereais, tda vila satisfazia s necessidades usuais dos seus habitantes e da terra baixa que a rodeia. Vende os seus produtos no territrio onde se abastece de vveres. Os camponeses que a provem de produtos agrcolas nela compram produtos industriais. A clientela das pequenas oficinas urbanas est, pois, formada ao mesmo tempo, pela burguesia local e pela populao rural circunvizinha.

    Desse modo, a cidade medieval traz o progresso social e o desenvolvimento de

    novas foras produtivas no seu interior e, esse homem medieval, citadino, criou formas de

    urbanidade e de sociabilidade, alm de uma nova esttica, criou, portanto novas

    necessidades, cujo centro de gravidade se localiza na vida do citadino. Dessas

    necessidades, surgem as respostas da sociedade: o trabalho organizado.

    3. PRODUZIR E VENDER: O OFCIO E O COMRCIO NA CIDADE MEDIEVAL

    Esse fenmeno na ordem feudal, que so as cidades, espaos de relaes mltiplas

    na vida do homem medieval, ganha importncia, tendo em vista que ai que se fortalecem

    as relaes econmicas de produzir e vender; de comprar para revender, atendendo s

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    necessidades do citadino e do campons, posto que se consagra, aqui a diviso do trabalho

    entre a cidade e o campo, o que significa o nascimento de uma relao contratual, onde o

    campo e a cidade produzem para atenderem as necessidades de ambos, que se desvinculam

    e passam a ter necessidades distintas entre si. Por isso, Lajugie (1965, p. 29) afirma que

    ve-se desaparecer ou, pelo menos, atenuar-se a hierarquia e a subordinao que existiam

    no interior do solar, geradoras, elas prprias, de obrigaes polticas, sendo substitudas

    por obrigaes convencionais nascidas de contratos de troca, livremente firmados, tendo

    em conta o valor das prestaes recprocas.

    Neste processo, com as condies da vida medieval normalizada, novas

    necessidades humanas surgem na sociedade e, para atend-las, exige-se do homem

    medieval um novo comportamento estabelecido no mundo do trabalho e novas prticas

    produtivas, desenvolvendo, com isso, as foras produtivas no interior das cidades

    medievais. No por acaso que Grisa (2002, p. 13), ao tratar do trabalho, vai pontuar o

    seguinte aspecto nas relaes de produo, para quem a cooperao pouco desenvolvida

    do trabalho artesanal ou o que o mesmo, a diviso do trabalho limitada corporao, bem

    como ao comrcio circunscrito localidade, apenas limitado aos mercados locais,

    corresponde determinado desenvolvimento das foras produtivas cuja base produtiva

    ainda so as mos humanas. O fazer manual requer, portanto, habilidades e domnio sobre

    a produo em sua totalidade, portanto, o domnio sobre o trabalho. Por isso, o arteso

    dominava a totalidade o processo produtivo e, alm disso, era responsvel pela produo e

    venda do produto do prprio trabalho, pois sua unidade industrial era sua

    oficina/residncia, onde trabalhava lada a lado com seus ajudantes. Em uma pareda da

    prpria oficina havia uma janela aberta ao publico, onde os artigos eram expostos para a

    venda e, ali mesmo ela era realizada. Nas cidades medievais, portanto, encontram-se por

    toda parte os artesos indispensveis sua existncia cotidiana: padeiros, carniceiros,

    alfaiates, ferreiros, oleiros ou picheleiros etc. Essa indstria artesanal, conforme pontua

    Lajugie (1965, p. 30) se caracteriza pela reunio dos fatores de produo entre as mos de

    uma mesma pessoa, que fornece a um s tempo capital e trabalho.

    No obstante, Lopez (1980, p. 136-37) pontuou que:

    [...] o comrcio e a indstria estavam estritamente relacionados. Quse todos os artfices eram parcialmente comerciantes, uma vez que vendiam

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    alguns dos seus produtos diretamente ao pblico. Um trabalho de alta qualidade em materiais valiosos, uma produo rpida de artigos simples para o consumo de massa [...]. Inversamente, a maior parte dos mercadores comerciava no s em gneros alimentcios e matrias-primas em bruto, mas tambm em artigos manufaturados. Um mercador cujo negocio dependesse fortemente dos produtos de um ofcio podia investir nele uma proporo considervel do seu capital e mo-de-obra, tornando-se um empresrio artesanal a tempo parcial ou a tempo integral.

    Nessas circunstancias, a diviso do trabalho acentuada entre artesos e mercadores

    especializados a partir do sculo XI, proliferaram-se pelas cidades medievais e se

    organizaram, conforme pontua Antonetti (1977, p. 75) por ofcio, sendo frequente o

    artesanato (oficina) e o comercio (loja) se confundirem, medida que o produtor

    assegurava ele prprio a comercializao de sua produo.

    3.1. FORMAO HISTRICA E CRIAO DAS CORPORAES DE OFCIOS

    O trabalho na Alta Idade Mdia esteve ligado s atividades artesanais para o

    atendimento das necessidades restritas, em grande parte, do feudo. Conhecedor de

    determinado ofcio, um arteso se fixava em uma propriedade feudal oferecendo seus

    servios, em troca da proteo e de condies de sua reproduo de sua vida material.

    Esses trabalhadores, por vezes, desenvolviam tambm o trabalho no campo, tendo em vista

    as particularidades e as necessidades do feudo. As atividades artesanais ficavam restritas

    aos interesses e as necessidades do senhor feudal. Com as atividades comerciais quase

    estagnadas, o trabalho do arteso possua uma limitao restrita capacidade de consumo

    local. da terra que provem as riquezas e seus excedentes que impulsionaram o

    desenvolvimento das cidades medievais e, como consequncia, criar as bases para a

    fixao do homem e animar as atividades do setor produtivo. No por acaso que Lopez

    (1980, p. 137) vai afirmar que os artfices compartilhavam dos benefcios da Revoluo

    Comercial, e o progresso agrcola em que esta se baseava, proporcionaram s classes

    mdia e inferior a partir do sculo X: mais alimentos, melhores comunicao, libertao

    das piores formas de sujeio pessoal, alguns inventos destinados a poupar trabalho e,

    sobretudo, oportunidades de expanso [...].

    Por isso, Schmitt (2006) escreveu que,

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    A sociedade , ento, essencialmente rural e da terra que vm as riquezas e os excedentes que permitem construir e nutrir esses novos espaos habitados. , pois, do lado das zonas rurais e da economia agrria que preciso procurar as primeiras causas do surgimento urbano: melhores rendimentos, devidos, sem dvida, a transformaes climticas, favorveis a um aumento dos rendimentos bsicos, porm, em primeiro lugar e sobretudo, devidos a transformaes sociais, a um enquadramento diferente das pessoas pelo poder senhorial, a novas formas de extrair um valor da terra.[...].

    A partir do sculo XI, as estruturas econmicas feudais foram abaladas e um surto

    de desenvolvimento se tornou visvel. As cidades e os contingentes populacionais da

    Europa cresceram significativamente e, para atender essa demanda crescente, Antonetti

    (1977, p. 16) afirma que a procura dos produtos europeus exportveis, em particular, os

    texteis, aumentou, o que estimulou o desenvolvimento de sua produo: pouco a pouco os

    artesanatos foram solicitados, visando alimentar os circuitos comerciais. Para esse fim,

    podendo agora atender uma ampla gama de consumidores, esses artesos passaram a se

    deslocar para as cidades, onde o ambiente urbano lhes dava maiores condies de trabalho,

    pois tinham maior capacidade de produo e autonomia para organizar suas atividades de

    forma mais acentuada. Residir, produzir e viver a liberdade citadina era o fundamental para

    o arteso. No obstante, Macedo (1999, p. 37) nos traz que a unidade fundamental de

    produo era a oficina, e a forma bsica de fabricao de mercadorias baseava-se na

    execuo de atividades manuais. E, essas atividades ento desenvolvidas atendiam s

    necessidades limitadas de consumo das populaes das cidades europias, sendo muito

    forte nas atividades ligadas ao artesanato txtil, construo civil e a metalurgia.

    Progressivamente, o trabalho artesanal foi se desenvolvendo e incorporando um

    significativo nmero crescente de novos artesos, que passaram a exigir deles uma

    complexa organizao do trabalho para regulamentar suas profisses. Nasce, com isso, as

    corporaes de ofcios, com carter econmico, mas sem abandonar as questes sociais,

    regulamentadas por estatutos prprias de cada corporao, pois alm do controle, havia a

    preocupao com o bem estar de seus membros..

    E o que so as corporaes de ofcios? So, segundo Lopez (1980, p. 139), uma

    federao de oficinas autnomas, cujos proprietrios (mestres) tomavam habitualmente

    todas as decises e estabeleciam os requisitos para a promoo de escales inferiores

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    (oficiais, ou auxiliares contratados e aprendizes), sendo os conflitos internos [...]

    minimizados por um interesse comum pela prosperidade do ofcio e pela quase certeza de

    que, mais cedo ou mais tarde, todos os aprendizes capazes e oficiais trabalhadores se

    tornariam mestres e participariam na direo do ofcio. Nesse sentido, tanto os

    comerciantes, quanto os artesos, segundo Macedo (1999, p. 46)

    [...] encontravam-se organizados em grupos profissionais, chamados de corporaes de ofcios, guildas ou artes. Eram associaes compostas apenas por mestres de cada ofcio. Por esse meio, os integrantes conseguiam controlar o preo dos produtos e os horrios dos trabalhadores, proibiam a concorrncia entre os participantes e previam punies para o associado que no cumprisse as normas fixadas.

    Pertencer a uma corporao significava poder participar da vida poltica na cidade,

    alm de poder participar dos conselhos deliberativos, ou seja, ser cidado poltico, cuja

    ao exercida nos interesses da corporao e, ao mesmo tempo, nos interesses gerais dos

    citadinos.

    3.2. ESPAOS COMERCIAIS: MERCADOS E FEIRAS MEDIEVAIS

    Para incio de conversa vou definir feira em conformidade com Turgot (2005, p.

    109), a quem cito:

    A palavra feira, que vem de forum, lugar pblico, foi, em sua origem, sinnimo de mercado e, sob certos aspectos, ainda o . Uma e outra significam uma afluncia de mercadores e de compradores a lugares e em tempos determinados. [].

    Para o desenvolvimento das feiras (mercado), a concentrao urbana foi decisiva,

    posto que, dadas s circunstncias da vida urbana concentrada, como pontuou Lopez

    (1980, p. 98) a populao responde mais prontamente aos estmulos econmicos que uma

    populao dispersa, para complementar depois, a urbanizao e comercializao na

    cidade medieval foram fenmenos que se apoiaram reciprocamente. A origem das feiras

    pode-se buscar nos pequenos mercados locais a partir do sculo IX, pois abundavam por

    toda a Europa. Esse mercado, de acordo com Pirenne (1973) tinha por objetivo atender as

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    necessidades de alimentao cotidiana da populao que vive no lugar onde elas se

    realizam. Por isso, continua Pirenne (1973, p. 103), os mercados so semanais e seu raio

    de atrao muito limitado; sua atividade limita-se compra e venda a varejo. J, as

    feiras ganham vigor a partir do sculo XI. Para Pirenne (1973, p. 104) elas so:

    [] lugares de reunies peridicas dos mercadores profissionais. So centros de intercmbios e, principalmente, de intercmbios em grande escala, que se esforam em trazer at eles, fora de toda considerao local, o maior nmero possvel de homens e produtos. [] Por conseguinte, impossvel realizar as feiras mais de uma vez, ou quando muito, mais de duas vezes por ano no mesmo lugar, visto ser preciso que se faam preparativos considerveis.

    Mas, para que essas atividades pudessem ser desenvolvidas, tanto pelos produtores

    locais, quanto pelos mercadores, um esforo social foi necessrio para sua consolidao.

    Essas aes, por vezes, tiveram que ser conquistadas pelos citadinos medievais junto s

    autoridades constitudas, a fim de constituir e implantar zonas de comrcio: os mercados e

    as feiras. Essas dificuldades faziam parte do cotidiano do homem medieval, posto que as

    atividades comerciais eram condenadas pela igreja, o que impunham restries

    circulao de mercadorias. A importncia dos mercados locais e das feiras pode ser

    observada, tendo em vista os pedidos constantes dos citadinos medievais para seu

    funcionamento. Podemos observar a resposta do Rei solicitao dos citadinos de Poix,

    quanto ao funcionamento de um mercado semanal e duas feiras. Eis a resposta do Rei:

    [...] recebemos a humilde petio de nosso querido e bem amado Jeham de CRQUY, Senhor de Canaples e de Poix [...] informando-nos que a mencionada cidade e arredores de Poix esto localizados em terreno bom e frtil, e a mencionada cidade e arredores so bem construdos e providos de casas, povo, mercadores, habitantes, e outros, e tambm l afluem, passam e tornam a passar, muitos mercadores e mercadorias das vizinhanas e outras regies, e isto requisito, e necessrio realizao das duas feiras anuais e um mercado cada semana []. Por essa razo que ns [...] criamos, organizamos e estabelecemos para a mencionada cidade de Poix [...] duas feiras por ano e um mercado por semana.

    Como podemos observar, as autoridades tinham um grande interesse quanto

    materializao das feiras e mercados locais em suas regies, pois, com isso, aumentaria o

    fluxo de recursos financeiros e de mercadorias na sua localidade e, ao mesmo tempo se

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    negociariam a produo da prpria cidade. Os ganhos sociais eram enormes, tanto para os

    mercadores e compradores, quanto para as cidades atendidas. Durante longos anos, o

    comrcio medieval foi uma atividade praticada por mercadores errante, os quais seguiam

    as rotas dos produtos, onde as vendas eram feitas em exposies diretas dos produtos em

    lojas, mercados e feiras. Sendo, portanto, o comrcio, de natureza errante ou fixo, a razo e

    a grandeza da importncia das feiras no Ocidente medieval at ao sculo XIII. As feiras e

    mercados eram espaos pblicos e lugares de encontros e de integrao entre mercadores

    que vinham, em muitos casos, de diversas partes da Europa, seguindo as rotas dos

    produtos para comprarem e venderem os seus produtos em um espao curto de tempo,

    geralmente de poucas semanas.

    Seguindo as rotas dos produtos, a Europa medieval viu nascer, no sculo XII, ciclos

    de feiras regionais ou inter-regionais, que iam se consolidando e fortalecendo as veias

    abertos pelo comrcio. Assim, na Inglaterra, comprava-se l em Winchester, Boston,

    Northampton, Saint-Yves e Stamford; na Flandes, fazia-se a redistribuio da l em Ypres,

    Lille, Bruges, Malines e Thourout; na Champanhe, comerciava-se txteis em Lagny,

    Provins, Bar-sur-Aube e Troyes, para alm de outros produtos e artigos de vrias origens e

    localidades. A inovao produtiva estava a servio do mercado. Dentre todas as feiras

    medievais, as mais importantes foram as feiras de Champanhe, pois ligava a Itlia aos

    Pases Baixos e atraa mercadores de toda a Europa. Sua organizao permitia um

    funcionamento constante, tendo mercados abertos durante todo o ano. Um mercado

    permanente em andamento ia integrando sociedade e estabelecendo vnculos cada vez

    mais consistentes de uma sociedade de mercado, o que pressupe ganhos reais para os

    mercadores, inclusive com isenes de impostos sobre alguns produtos importantes para a

    sociedade.

    Turgot (2005, p. 110) ressalta essa integrao, conforme segue:

    evidente que os mercadores e os compradores no podem se reunir, em certas pocas e em certos lugares, sem um atrativo, um interesse que compense ou mesmo ultrapasse os gastos de viagem e de transporte dos gneros ou das mercadorias. Sem esse atrativo cada um permaneceria em sua casa: em compensao, quanto maior ele for, mais os gneros suportaro longos transportes, mais a afluncia de mercadores e de compradores ser numerosa e solene, e mais o distrito, que o centro dessa afluncia, pode se desenvolver. [].

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    Essas atividades, segundo Lopez (1980, p. 99),

    [] Iam dos encontros semanais ou mensais em que os habitantes do burgo e os camponeses dos arredores trocavam grandes quantidades de produtos locais durante algumas horas, at s aticvidades anuais, que, em geral, duravam vrios dias, em que os consumidores de uma rea vasta compravam provises para todo o ano, vendiam os excedentes que produzissem e adquiriam alguns objectos de outras regies. Ao seu nvel mais baixo, os mercados dirios no abriam mais que uma fenda num muro de auto-suficincia: muitas transaces eram empreendidas directamente entre o produtor e o consumidor, algumas vezes por meio de permuta, e ningum tinha de passar a noite fora de casa. Os mercados anuais, em geral chamados feiras, da feria (festa ou feriado) a que estavam ligados, j implicavam organizaes mais complexas. Qualquer espao livre servia aos mercadores profissionais instalarem as suas barracas ou armarem as tendas [], mas no viriam de longe a menos que tivessem quaisquer garantias de acesso livre e fcil, algumas vantagens e convenincias durante a estadia e, evidentemente, uma possibilidade razovel de obter lucros.

    Os interesses so gerais. Por um lado, os senhores interessados na vinda de

    mercadores, para as suas feiras, foram obrigados a conceder a "paz do mercado" ou "paz da

    feira", proibindo represlias, assegurando alojamento e condies de armazenamento das

    mercadorias e, ao mesmo tempo, reduzindo ou isentado a mercadoria de taxas. Para esse

    fim, foram oferecidos salvo-conduto, a proteo necessria aos mercadores presentes nas

    feiras, asseguradas pelos guardas das feiras, responsveis pela manuteno da ordem e

    segurana dos mercadores. Esta poltica permitia a paz do mercado.

    As feiras tiveram seu apogeu no sculo II. Em meados do sculo XIII, entraram em

    decadncia e a partir de 1250 mudaram radicalmente seu eixo de ao. De mercado de

    tecidos passaram a ser centros de cmbio. No incio do sculo XIV sua derrota j era

    previsvel, pois houve a sedentarizao dos mercadores e o fim da vida errante.

    CONCLUSO

    Lenin escreveu que "para conhecer realmente um objeto necessrio considerar,

    estudar todos os aspectos, todas as suas ligaes e as suas "mediaes". Mas este propsito

    do pesquisador no se esgota no objeto pesquisado e a isto no chegaremos jamais, pois a

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    exigncia de considerar todos os aspectos nos colocar em guarda dos erros e da

    fossilizao. Com essas consideraes, me reservo escrever que as relaes nascidas das

    atividades praticadas no interior das cidades medievais levaram seus sujeitos a

    constiturem formas de lutas distintas ente si. Por um lado, o comerciante, por outro, o

    produtor estabeleceram relaes entre si e entre seus pares para fortalecerem-se

    mutuamente e, ao mesmo tempo, fortalecer a vida social. O trabalho engendrado por essas

    foras sociais romperam o isolamento social a que estavam submetidos e ampliaram o

    poder da sociedade civil sobre o senhorio, alm de conquistaram as liberdades necessrias

    para que as relaes contratuais pudessem superar os laos de juramente de fidelidade.

    REFERNCIA

    ANTONETTI, Guy. A Economia Medieval. Atlas, So Paulo: 1997.

    GUIZOT, Franois In. Formao do Terceiro Estado: as comunas coletnea de textos de Franois GUIZOT, Augustin Thierry, Prosper de Brabante. Org. Terezinha Oliveira e Claudinei Magno Magre Mendes. Maring: EDUEM, 2005.

    LAJUGIE, Joseph. Os Sistemas Econmicos. 2 Ed. Coleo Saber Atual. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1965.

    LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Ed. Estampa. Lisboa, Portugal: 1998.

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    PERNOUD Rgine. Luz sobre a Idade Mdia. Portugal. Publicaes Europa-Amrica: 1997.

  • 14

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