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06/03/2018 Biblioteca Virtual Juruá - Conteúdo do Livro: Sujeito no Trabalho, O – Entre a Saúde e a Patologia - Biblioteca Juruá de Psicodinâmica e … https://www.jurua.com.br/bv/conteudo.asp?id=22920&pag=73 1/1 O Sujeito no Trabalho 73 O TRABALHO E OS DESTINOS POLÍTICOS DO SOFRIMENTO Thomas Périlleux Tradução: Ricardo Avelar de Sousa Sumário: 1. Destinos Políticos do Sofrimento. 2. Uma Crítica Clínica da Dominação. 3. Lugares e Dispositivos Clínicos. 4. O que está em Jogo na Clínica e na Crítica. 5. Referências. Uma das características originais da clínica do trabalho – que tam- bém é uma de suas dificuldades – é a de confrontar as questões políticas da organização do trabalho, a experiência da injustiça, as múltiplas faces da opressão 1 . Pode-se dizer que a clínica tem uma vocação para a crítica. En- tendo por “crítica social” todas as formas de recusa das formas de opressão e todos os questionamentos do mundo “tal e como ele é”. Como responder a essa vocação? Enquanto clínicos do trabalho, podemos contribuir para pôr em questão inúmeras formas de opressão, em nossa vida, em nosso trabalho, no trabalho daqueles que são objeto de nossa intervenção. Mas o que quer dizer exatamente pôr em questão ou fazer causa comum? É fazer bloco, envolver-se “todos juntos” em uma mesma causa? Quais são os ensinamentos da clínica a esse respeito? Etimologicamente, o termo causa é emprestado do latim causa, palavra “de origem desconhecida da qual é difícil, portanto, determinar o sentido original”, diz o dicionário. No sentido filosófico, a causa é o motivo, a razão primeira. No sentido jurídico, ela designa os interesses de uma parte em um processo, uma questão judicial. Pôr em questão (NT: causa, em fran- cês) é instituir a cena de um conflito e envolver-se em um processo. É um sentido que encontramos nos compostos: excusar, acusar, recusar. Mas tam- bém sabemos que aquilo que nos causa, enquanto sujeitos falantes, às fontes 1 Este texto estende as reflexões desenvolvidas no artigo “Clínica do Trabalho e Crítica social” (Périlleux, 2009b). Remeto o leitor a esse texto para a discussão das articulações e disjunções necessárias entre a clínica do trabalho e a crítica social. Insistirei aqui sobre o tema da dominação e sobre a questão dos dispositivos clínicos.

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O Sujeito no Trabalho 73

O TRABALHO E OS DESTINOSPOLÍTICOS DO SOFRIMENTO

Thomas PérilleuxTradução: Ricardo Avelar de Sousa

Sumário: 1. Destinos Políticos do Sofrimento. 2. Uma Crítica Clínica daDominação. 3. Lugares e Dispositivos Clínicos. 4. O que estáem Jogo na Clínica e na Crítica. 5. Referências.

Uma das características originais da clínica do trabalho – que tam-bém é uma de suas dificuldades – é a de confrontar as questões políticas daorganização do trabalho, a experiência da injustiça, as múltiplas faces daopressão1. Pode-se dizer que a clínica tem uma vocação para a crítica. En-tendo por “crítica social” todas as formas de recusa das formas de opressão etodos os questionamentos do mundo “tal e como ele é”.

Como responder a essa vocação? Enquanto clínicos do trabalho,podemos contribuir para pôr em questão inúmeras formas de opressão, emnossa vida, em nosso trabalho, no trabalho daqueles que são objeto de nossaintervenção. Mas o que quer dizer exatamente pôr em questão ou fazer causacomum? É fazer bloco, envolver-se “todos juntos” em uma mesma causa?Quais são os ensinamentos da clínica a esse respeito?

Etimologicamente, o termo causa é emprestado do latim causa,palavra “de origem desconhecida da qual é difícil, portanto, determinar osentido original”, diz o dicionário. No sentido filosófico, a causa é o motivo,a razão primeira. No sentido jurídico, ela designa os interesses de uma parteem um processo, uma questão judicial. Pôr em questão (NT: causa, em fran-cês) é instituir a cena de um conflito e envolver-se em um processo. É umsentido que encontramos nos compostos: excusar, acusar, recusar. Mas tam-bém sabemos que aquilo que nos causa, enquanto sujeitos falantes, às fontes 1 Este texto estende as reflexões desenvolvidas no artigo “Clínica do Trabalho e Crítica

social” (Périlleux, 2009b). Remeto o leitor a esse texto para a discussão das articulações edisjunções necessárias entre a clínica do trabalho e a crítica social. Insistirei aqui sobre otema da dominação e sobre a questão dos dispositivos clínicos.

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa74

de nosso desejo, escapa-nos incessantemente2. Como articular a causa dodesejo e a causa comum?

Quando falamos de uma “causa comum”, na ação política e noprotesto público, referimo-nos a um coletivo. A análise psicodinâmica dotrabalho forneceu-nos muitos elementos que dizem respeito ao coletivo detrabalho. Ela nos conduz a refletir sobre coletivos que poderiam ser “máqui-nas de tratar da alienação psíquica esocial”, segundo os termos de J. Oury(2005): coletivos que poderiam solicitar mais o desejo de seus membros queseu gosto pelo poder, mesmo em suas tomadas de posições políticas. Quandose trata de fazer causa comum, faz-se lugar a uma causa singular que animacada um.

Em um diálogo com a sociologia e a filosofia política, temos agoraque interrogar-nos sobre a passagem de uma palavra elaborada em coletivode trabalho a uma tomada de palavra no espaço público político. Em ambosos casos, trata-se do coletivo como operador, um operador que permite quecada um forme sua voz e dê voz, em um “concerto de vozes discordantes” (leBlanc, 2007). Mas, como veremos, o regime da palavra é diferente de umcaso para o outro.

Além disso, forças de decomposição trabalham os coletivos. Nosambientes de trabalho, certas técnicas gerenciais visam dissolvê-los ou trans-formá-los em simples coleções de indivíduos ligados por relações contratuaise exigências funcionais: a avaliação individualizada dos desempenhos, acompetição entre os funcionários, a desqualificação das figuras de referênciae a formação de equipes “com geometria variável” ameaçam o sentimento decoleguismo e fragilizam a formação de julgamentos baseados na experiênciade ofício. Elas visam também impedir a formação de vozes críticas no localde trabalho. É a partir da crítica, portanto, ela mesma baseada na experiênciada injustiça e no sentimento de indignação, que se formam as causas comuns(Boltanski, 1990; Boltanski e Thévenot, 1991).

É necessário acrescentar que forças internas agem no sentido deuma decomposição dos coletivos. Há resistências ao “fazer coletivo” que sedevem também às recusas individuais a tomar lugar no seio de um coletivo,com o preço a pagar que isso implica. Inscrever-se em um coletivo, tecerrelações, cuidar do ofício, tudo isso éexigente e tem um custo. Isso demandatempo e consentimento, por exemplo, em fazer prevalecer o ponto de vistado outro sobre o seu (Lebrun, 2007; Périlleux, 2008).

2 Aliás, é bastante conforme às leis do desejo que a origem da própria palavra permaneça

desconhecida.

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E os coletivos de clínicos? Não existe nenhuma razão para que osclínicos sejam poupados pelas forças de decomposição que habitam as equi-pes de trabalho. Não há razões para que escapemos na prática clínica dasdificuldades que o capitalismo cria para formar hoje causas comuns3.

O que temos que fazer, então, é identificar pontos de resistência einventar práticas originais de questionamento, pois, como sustenta G. LeBlanc, “a capacidade clínica está intimamente ligada à qualidade democráti-ca” (2010: 17). Devemos cuidar dessa qualidade democrática. Como? Comoclínicos do trabalho, a partir de diferentes locais onde intervimos, podemosconstruir uma posição que seja de imediato uma contribuição à formação decausas comuns.

Entretanto, a clínica do trabalho não é uma ação política. Se elaluta contra a injustiça e a opressão, essa luta não é direta. Trata-se de umaarte do singular, refratária às medidas, comparações e generalizações que aação política supõe. A politização do sofrimento não é óbvia e não é sempredesejável, ou não de qualquer maneira. O clínico pode continuar a cuidar dosingular quando ele se lança em uma crítica social que denuncia a dominaçãono trabalho?

Gostaria de tentar abordar alguns aspectos dessa questão. Em umaprimeira seção, abordarei os possíveis destinos políticos do sofrimento,evocando uma obra coletiva que consagramos a esse assunto. Mencionareia importância e os obstáculos à politização dos sofrimentos provenientesdo trabalho. A segunda seção será consagrada à resposta proposta por C.Dejours. A análise psicodinâmica é uma clínica da relação subjetiva com otrabalho; é também uma crítica da dominação no e pelo trabalho. Na obrade Dejours, a crítica da dominaçãotem um lugar central e funciona comoum eixo entre os aspectos psicopatológicos e os aspectos políticos do tra-balho. Sustentarei, porém, que o tema da dominação, apesar de sua força,não é a via mais adequada para responder à vocação crítica da clínica, por-que ele corre o risco de levar à perda de uma ancoragem na singularidadedas situações clínicas.

Na terceira seção, voltarei a abordar os compromissos dos própriosclínicos, em um contexto institucional que às vezes não os poupa da violên-cia que eles denunciam. Espero, então, formular algumas propostas úteis 3 O capitalismo esgota o que causa o desejo, fazendo cintilar satisfações ilimitadas, incenti-

vando a “gozar sem desejar” (Dufour, 2003), confundindo intensificação do trabalho eintensidade da vida (Hamraoui, 2007). Ele esgota as causas comuns, minando o que faz davida um coletivo e recuperando para seu próprio proveito os temas da crítica social (Bol-tanski, Chiapello, 1999).

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa76

para fundamentar uma postura “clínico-crítica” entre clínicos do trabalho quenão renunciam a seu papel político.

1 DESTINOS POLÍTICOS DO SOFRIMENTO

A referência ao sofrimento, muito contestada em política, suscitouvivas controvérsias no domínio francófono. Algumas delas visaram direta-mente à análise psicodinâmica do trabalho. Penso em particular nas críticasvirulentas feitas às posições de C. Dejours por autores como A. Ehrenberg(2010) ou D. Trom (2007).

Esses autores sustentam que o termo sofrimento é uma espécie deanestésico do senso crítico que impede a constituição de causas comuns esuscita uma despolitização dos problemas coletivos, ao contrário das antigaspalavras alienação ou opressão. Todos nós sofremos! Falar do sofrimento, nodebate público, acabaria por edulcorar as contradições da vida coletiva. Issocontribuiria para transformar os oprimidos em vítimas passivas incapazes deenvolver-se nas lutas políticas: eles passariam a ser doentes a tratar, suaexistência encontrando-se inteiramente medicalizada.

Segundo essa perspectiva, a introdução da dimensão do sofrimentoem política paralisa todo verdadeiro debate público e perverte o ideal desolidariedade. Ela impede de formar uma comunidade de interesses com osoprimidos, ao transformá-los em enfurecidos, segundo a expressão de H.Arendt, incapazes de constituir uma multidão “cuja majestade reside na pró-pria pluralidade” (Arendt, 1963). Invo car o sofrimento em política não fariasenão aliar os ressentimentos, porque o sofrimento seria brandido como umfato que dá direito, por si mesmo, a um reconhecimento.

Nossa opção foi inversa (Périlleux, Cultiaux, 2009). Ela não causa-rá surpresa a todos os que se inspiram na psicodinâmica do trabalho. Emnosso entender, o uso da categoria sofrimento não conduz à despolitização,nem à passividade, nem ao ressentimento. Ao contrário: o silêncio e a inca-pacidade de exprimir o sofrimento é que condenam à impotência (Renault,2008). Quisemos reafirmar a dimensão política de sofrimentos injustos. Osofrimento é uma experiência íntima e singular, porém está no cerne do vín-culo social e político (Boltanski, 1993).

Entretanto, nem todo sofrimento é forçosamente inaceitável. Háuma inevitável “dor de existir” diante do real; uma dor de existir que escapaa toda tentativa de explicação científica e a toda vontade de questionamentopolítico. É um sofrimento que não se pode denunciar nem justificar. É preci-so distinguir sofrimentos injustos que têm origens sociais, contra os quais é

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preciso lutar. A primeira operação da crítica social é então uma operação deseparação entre sofrimentos inevitáveis, cuja denúncia não tem nenhum sen-tido, e sofrimentos inadmissíveis, que é necessário questionar4. A politizaçãoimpõe essa divisão radical5.

A análise psicodinâmica do trabalho introduz aqui uma articulaçãocomplexa. Segundo C. Dejours, o sofrimento é inerente ao trabalho. Ele éinevitável na medida em que o trabalho impõe sempre a prova do real. Ele émesmo desejável, pois provoca uma reorganização da subjetividade parareencontrar ao mundo e a si mesma. A primeira relação com o trabalho éuma relação pática (NT: depathos). O que está em jogo na análise clínica – ena intervenção política – é impedirque esse sofrimento primeiro torne-sepatogênico. Não se trata de suprimir, mas de permitir que ele se transformeem sofrimento criador (Dejours, 1993, 2000, 2001).

Isso indica que os sofrimentos não são somente assuntos privados.Eles contêm um potencial criador e um potencial crítico. Um potencial quefrequentemente é entravado, por diversas razões que procuramos estudar(Périlleux, Cultiaux, 2009: 11-16).

Antes de mais nada, coloca-se o problema da visibilidade políticados sofrimentos. Sentimentos de vergonha e mecanismos de negação ou deocultação impedem que certos sofrimentos ocorram no espaço público. Umtrabalho de identificação e de nominação pública faz-se necessário. Os so-frimentos não são fatos diretamente acessíveis, e não é uma consequêncialógica que sejam tomados como injustiça: vários pontos de vista sobre o queé justo ou injusto podem estar legitimamente envolvidos (Dubet, 2006: 13).

Em seguida, a queixa ou o sintoma – que são eles mesmos os indí-cios de uma demanda muitas vezes não articulada (Barus-Michel, 2004) –devem ser formulados em um protesto geral, que corre o risco de negligen-ciar a singularidade da experiência da qual o porta-voz se apropria. No espa-ço público político, os interlocutores exigem uma descrição objetiva e falsi-ficável de experiências que, entretanto, são singulares e subjetivas. Existe orisco de que o protesto identifique, então, as vítimas ao seu sofrimento, ao 4

Nossa distinção junta-se à proposta por L. Boltanski, a partir de Bourdieu, entre sofri-mentos genéricos (inerentes à condição humana) e sofrimentos específicos (que têm cau-sas sociais) (Boltanski, 1993).

5 Tomamos o termo de politização em um sentido muito amplo. Nosso ponto de partida foio das experiências cotidianas de indignação diante da injustiça. Para nós, o político ba-seia-se na crítica do curso da realidade; crítica que não pode contentar-se de um estadode coisas, mas exige transformação um passo além dostatus quo (Bauman, 2005). O polí-tico é então a instituição de uma cena em que a diferença de opinião torna-se visível aosolhos de todos (Lefort, 1986).

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa78

buscar fazer ouvir a gravidade das situações que denuncia. Entretanto, comoator político, cada trabalhador é portador de uma dignidade humana que vaialém de seu sofrimento, ele não pode ser reduzido à manifestação de suainfelicidade.

Enfim, a coalizão das “vítimas” e a intervenção de um terceiro(porta-voz) são apoios para elaborar o sentido político das situações de so-frimento e torná-los audíveis publicamente. Ao contrário, a impossibilidadede apoiar-se em um terceiro (uma pessoa esterior ao círculo das vítimas ouuma entidade coletiva que o represente) constitui um entrave importante àtomada política dessas situações. As coalizões que são portadoras de causascomuns são frágeis e muitas vezes ambivalentes: a preocupação com a coe-rência do projeto coletivo pode obrigar a excluir aquele que poderia prejudi-cá-lo. Devem-se estabelecer fronteiras entre os casos que podem relacionar-se à causa comum e aqueles que não fazem parte dela, encontrando-se desdeentão duplamente vítimas.

É isso que esclarece, por exemplo, uma pesquisa que N. Dodier e J.Barbot (2009) consagraram à formação de coletivos de vítimas em torno deum drama médico (a morte de crianças após um tratamento com hormôniode crescimento extrativo). Eles estudam as modalidades de ingresso de açãojudicial para obter reparação no seio de um espaço de vítimas. Eles falam aesse propósito de uma crise da reparação proveniente de uma “dificuldadepara pensar de modo transversal uma reparação ajustada dos danos”. A for-mação de causas comuns é complexa, e os coletivos de vítimas devempreencher várias condições: criar vínculos de conforto recíproco, resistir àsdivisões internas, dotar-se de mecanismos de delegação em face da açãopolítica e judicial.

A conclusão dos autores é a dificuldade da crítica social para reunirvítimas dispersas no que chamamfigures gerais. Nesse caso, pode-se obser-var uma forte tensão entre um trabalho de reconstrução psíquica, que res-ponde a uma lógica do luto, e um compromisso com uma causa comum, queresponde a uma lógica da crítica.

Como amarrar a intervenção clínica a uma ação crítica sem trans-formar o problema político da opressão em problema pessoal do oprimido(Lhuilier, 2009)? Coloca-se a questão dos dispositivos possíveis, nas redesde pessoas envolvidas, para fazer com que os sofrimentos se tornem audíveisdentro de um espaço público.

Penso aqui no estudo que P. Molinier dedicou, com A. Flottes, às“mutações do corpo feminino na indústria farmacêutica”. Trata-se de umapesquisa conduzida com empregados de um laboratório no momento de seufechamento. Em um artigo que trata do assunto, P. Molinier (2007) explica

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que o “sofrimento expresso por ocasião dessa pesquisa foi de uma intensida-de pouco usual. (...) uma história sepultada há mais de vinte anos emergiu demaneira inesperada”. As operárias que trabalhavam na “limpeza e raspagemdas placentas” tinham sofrido transfor mações corporais masculinizantes:aumento de peso, pilosidade e barba, vozes que se tornaram mais graves.Outras que trabalhavam na repartição dos produtos hormonais constataramproblemas de ciclo menstrual, dificuldades para engravidar e aumento depeso. Várias operárias que foram aposentadas morreram de câncer, sem queisso fosse discutido publicamente. Esse drama, rechaçado coletivamente,retornou no momento do fechamento da empresa sob forma de uma enormeangústia de morte.

Não posso entrar nos detalhes do estudo nem no conjunto das con-clusões do autor. Gostaria de destacar três pontos mencionados por P. Moli-nier, e que levarão a uma discussão crítica.Primeiramente, as operárias maisvelhas percebiam fortemente suas modificações corporais, mas essas percep-ções, postas “umas ao lado das outras”, permaneciam sem vínculo reflexivoou causal (2007: 43). As operárias se impediam de pensar as relações gera-doras de ansiedade entre seus próprios corpos e os produtos que elas mani-pulavam. A angústia, escreve P. Molinier, tinha ficado “não elaborada, poisdesconectada de sua verdadeira fonte” (2007: 45). Acrescento que é entãotoda a dinâmica de formação de uma causa comum que é paralisada, o quemostra a importância da imputação de causalidade na crítica social.

Em segundo lugar, P. Molinier observa que a intensidade do sofri-mento expresso pelos participantes não era mensurável. A angústia de mortee o medo de serem confrontadas ao uso mercantil e industrial de placentasimpregnavam os olhares, as vozes, “ao ponto de agir sobre o corpo do pes-quisador, que, por sua vez, sofre com isso”. “O instrumento de medida aqui éo próprio corpo do pesquisador, o que ele experimenta na carne em razão daconfrontação com o outro”, escreve P. Molinier. Essa proposta não chocaráos clínicos do trabalho, que, entretanto, têm que refazer, cada vez, a consta-tação singular da mesma. Mais como passar do corpo próprio do pesquisadora um “corpo” político, que é o que faz causa comum?

Em terceiro lugar, P. Molinier insiste sobre a importância de abriruma brecha nos processos de ocultação e de socializar o sofrimento no traba-lho “para desincorporá-lo e desaliená-lo”. Trata-se de restaurar o que se podechamar de capacidade de uma voz para “passar de um sofrimento inarticuladoà elaboração de um sentido comum”. “A pesquisa é o local aonde vem se pre-cipitar uma ansiedade que até então permanecia sem endereço”, escreve ela.Daí a importância do coletivo da pesquisa. Um trecho mais longo do artigo deP. Molinier parece-me totalmente decisivo para as questões aqui abordadas:

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa80

O material constituído [durante as sessões de investigação] é uma ficçãoprovisória, verdadeira criação da pesquisa, que não pertence a nenhumde seus participantes em particular, pesquisadores ou pesquisados, e nãopode, portanto, em nenhum caso, ser generalizada. Essa ficção nadamais é que o resultado de esforço coletivo empreendido, durante o tempolimitado da pesquisa, para socializar o sofrimento no trabalho (…) in-ventar-lhe um destino fora de si, fora das destruições infligidas ao corpopróprio, para sublimá-lo, em suma, em uma obra coletiva e transmissívelque tomará a forma do relatório de pesquisa6. (2007: 46, itálico meu).

Detenho-me sobre estes termos: o material da pesquisa é “uma fic-ção que não pode, portanto, em nenhum caso, ser generalizada”. Ele provémde uma experiência singular, compartilhada no seio de um coletivo, e a elaretorna. A narrativa transforma o próprio sentido do que é compartilhado,escreve P. Molinier, mas esse compartilhamento não é generalizável. Conse-quentemente, não pode resistir aos testes impostos pelo formato de uma deli-beração crítica no espaço público político.

Ora, a politização exige uma elevação em termos de generalidade.Ter acesso a um espaço público, fazer ouvir uma voz, protestar contra a in-justiça da situação, significa orientar-se na direção de um “horizonte maiorque o si mesmo”, como diz o sociólogo L. Boltanski (2008), para inscreversua situação particular em uma comunidade de condição. É necessário, en-tão, medir, comparar situações, pôr experiências em equivalência, julgartomando por medida um princípio superior que transcende os casos singula-res. A intervenção clínica se dá sobre uma outra “cena” diferente do questio-namento político. Não há continuidadedireta de uma para a outra; mas háum vínculo que deve ser mantido.

Penso que essa tensão habita – e talvez assombre – a análise psico-dinâmica desde sua fundação, entre suas duas vertentes: a clínica da relaçãosubjetiva com o trabalho; a crítica da dominação no trabalho e pelo trabalho.Essas duas vertentes não se opõem uma à outra de maneira harmoniosa:Também há tensões e, em alguns casos, incompatibilidades que é importantereconhecer.

É disso que eu gostaria de discutir agora, abordando a crítica dadominação formulada por C. Dejours. Ele não elaborou uma teoria sistemáti-

6 Ele constrói uma “tumba”, no sentido literal do termo, para as operárias mortas, “a fim de

inscrevê-las numa história comum, para que elas cessem de assombrar os vivos” (p. 48).Ele permite um trabalho de luto e de memória, “a partir de uma constelação invisível detraumas individuais, (ele) fabricou os elementos de uma catástrofe coletiva, isto é, umahistória social, doravante suscetível de ser compartilhada por pessoas que a compreendeme que a viveram” (p. 51).

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O Sujeito no Trabalho 81

ca da dominação social, mas sua repetição insistente e original dessa questãojustifica que se fale de uma clínica crítica. Em seu entender, o termodomi-nação intervém como um operador poderoso de generalização. É uma ponteou um eixo entre a vertente clínica e a vertente política do trabalho e de suaanálise. Se faço sua crítica, é também por reconhecer a importância de umaclínica que não renuncia a uma aspiração de emancipação psíquica e política.

2 UMA CRÍTICA CLÍNICA DA DOMINAÇÃO

A partir da fundação da análise psicodinâmica do trabalho, C. De-jours analisou os vínculos entre o sofrimento e a opressão no trabalho, situa-da no olhar da retomada em mão neoliberal da organização da produção. Eleestimou que as condutas adotadas pelos trabalhadores para defender-se dosofrimento – por exemplo, ao autoacelerar-se diante das cadências prescritas– poderiam ser objeto de uma exploração por parte da empresa. Ele evocavatambém o risco de ver instalar-se uma “lógica de combates successivos que[iriam] de alienação em alienação,sempre solicitando o sofrimento em lugare em vez do desejo” (Dejours, 1988: 23). Esse risco talvez tenha se perdidoum pouco de vista ulteriormente; a referência ao desejo parece-me, entre-tanto totalmente decisiva no problema da emancipação políticavia a forma-ção de causas comuns.

Quando C. Dejours fala de “servidão voluntária”, é para colocar oproblema das “fontes subjetivas da dominação”. Ele situa a questão do con-sentimento da injustiça no centro de sua reflexão. Ele se apoia em uma análi-se das relações sociais de dominação einterroga a maneira como um sujeitopode responder de seu consentimento de certas formas de dominação que eleexerce e/ou sofre.

O que é a dominação? Essa é uma noção polêmica. Segundo L.Boltanski, ela serve para identificar e condenar “manifestações extremas eabusivas do poder” (2009, p. 15). Insp irando-se em Spinoza, pode-se consi-derá-la como a loucura do poder, que corresponde a um momento em queeste esquece o que é – uma contradição dinâmica entre relações de forças euma prática de governo que se supõe racional – para tornar-se objeto sagradode posse7. A dominação se liberta da relação com o real dessa contradição eé nesse sentido que se pode dizer que ela é “louca”. Seu princípio não é acontradição, e sim a conversão diretae permanente da racionalidade de umaprática em relações de força (Bove, 1996).

7 Agradeço a E. Hamraoui por ter chamado minha atenção sobre essa concepção da domi-

nação e me ter proposto sua definição.

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa82

Em ciências sociais, a dominação é um “objeto de síntese” e de“totalização”: ela designa “assimetrias” profundas e duráveis, que colonizama realidade no seu conjunto, sem poder dar lugar a uma observação diretacomo relações de poder visíveis e localizadas. Ela permite mostrar comodiferentes formas de poder fazem sistema, estendem-se e acabam por cons-tituir ordens sociais desiguais (Boltanski, 2009, pp. 16-18).

Exercer uma dominação é limitar as possibilidades de ação dos in-divíduos dominados e expô-los a uma “probabilidade de violência aindamaior” (Renault, 2008: 323). Nesse plano, C. Dejours concorda com as des-crições sociológicas da “dominação capitalista neoliberal” (Deranty, a serpublicado). Segundo ele, as novas restrições de valorização do capital, asso-ciadas à “virada gerencial” dos anos 1980, levaram a um ataque frontal con-duzido pelas ciências da gestão contra o trabalho, visando a descartar o “tra-balho vivo”, com o motivo de instaurar uma nova servidão para os trabalha-dores8. Dois exemplos recentes – entre outros – atestam isso.

O primeiro diz respeito à flexibilidade. C. Dejours não hesita em fa-zer dela “o outro nome da servidão”. Ele mostra isso a partir de suas pesquisasno setor nuclear na França: a flexibilidade funcionou como o recurso em mas-sa à terceirização e ao desmantelamento dos ofícios tradicionais de manuten-ção. Foi introduzida para quebrar os poderosos sindicatos dos trabalhadoresassalariados responsáveis pela manutenção e “garantir uma mão de obra dócil,laboriosa e dispensável sem motivo justificado”. Isso foi feito ao preço pesadode riscos sobre a segurança das pessoas e das instalações (2006: 58).

O segundo caso diz respeito ao que C. Dejours chama de “novaspatologias do trabalho” o que é interessante, pois reintroduz assim um pontode vista psicopatológico: burn-out (esgotamento nervoso), patologias doassédio, depressões, suicídios no local de trabalho são, segundo ele, formasespecíficas da alienação no trabalho. Estão associadas aos novos métodos degestão, como a avaliação de desempenho individualizada e os procedimentosde qualidade total. Sua evolução “corresponde também a um progresso sen-sível nos meios e métodos da dominação” (Dejours, 2006).

Esses dois exemplos são convergentes, segundo o autor. A flexibi-lidade e as novas patologias do trabalho estão diretamente ligadas à domina-ção, que encontra seus dispositivos nos métodos de gestão de pessoal. Asnovas organizações da produção repousam sobre uma mobilização “semprecedentes” da subjetividade em um contexto em que o apoio social dosfuncionários é fragilizado” (Renault, 2008: 339).

8 Dominação e servidão devem ser vistas como as duas faces de uma hierarquia social

injusta e violenta.

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O Sujeito no Trabalho 83

A intensificação do trabalho, a dissolução dos coletivos constituí-dos em torno das regras do ofício, o medo do desemprego e a fragilização daposição de cada assalariado são, ao mesmo tempo, causas de novas patologi-as e meios de dominação – e “os dois pontos de vista são complementares”,escreve J.P. Deranty em seu comentário de Dejours (op. cit.). Mas é justa-mente nessa “complementaridade” que está a questão, no meu entender.

Estamos, na realidade, diante de dois regimes de discursos dife-rentes. O estabelecimento clínico das “causas” das novas patologias do tra-balho se faz em uma “prova pela palavra” (Gori, 1996). Os sintomas e suaelaboração devem ser considerados em sua dinâmica própria, no sentido emque um sintoma é uma “mensagem” singular dentro de uma história quetambém o é. A prova é inicialmente clínica – baseada na palavra e na transfe-rência.

Ao contrário, a crítica dos “meios de dominação” situa-se direta-mente em um plano muito geral. Ela supõe desvelar um motivo econômico –encontrar novos caminhos de lucro – e uma incumbência política – quebrarresistências e assegurar uma servidão. No debate público, é necessário de-monstrar seus argumentos, tornar objetivas suas observações. A prova ba-seia-se na objetivação de relações de forças sociopolíticas. É um regime degarantia pela objetividade.

A noção de patologias e a referência a suas causas indicam bem adificuldade. Ao fundar a análise psicodinâmica do trabalho, C. Dejours(1988, 1993) distanciara-se da psicopatologia do trabalho e de seus esquemascausalistas. A psicopatologia do trabalho chegara a impasses na medida emque rapidamente constatou-se a impossibilidade de isolar «causas” profissio-nais para as enfermidades mentais, exceto em casos muito específicos (comoo de telefonistas ou mecanógrafos).

Para o clínico, tratava-se de entrar em uma hermenêutica do dramavivido do trabalho relativizando a distinção entre o normal e o patológico esuspendendo o raciocínio causal (Dejours, 1993; cf. Périlleux, 2009b). Aocontrário, a própria dinâmica da crítica é uma dinâmica dequestionamento.Aqui, fazer causa comum é lutar contra as causas sociais de patologias quepoderiam ser evitadas.

A complementaridade dos dois pontos de vista torna-se assimmuito difícil. Entre a elaboração clínica e a denúncia crítica, é necessárioreconhecer divergências e mesmo disjunções, sem o que se corre o risco defalhar na intenção crítica eperverter a intenção clínica9.

9 Encontra-se um indício dessa dificuldade na distância que separa as intenções das duas

obras recentes de C. Dejours. Em Travail vivant (Trabalho vivo) (2009), ele assume a ta-

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa84

O uso do termo dominação acarreta o risco de impedir essas dis-tâncias necessárias, sobretudo quando utilizado em um sentido abrangente.C.Dejours distingue vários tipos de dominação. A dominação no trabalho, quelimita as “condições de pensamento e de sublimação” necessárias à trans-formação do sofrimento, está ela mesma ligada à dominação afetiva, vividana primeira infância, e à dominação de gênero, que cruza as hierarquias esta-belecidas na esfera de trabalho.

Está feito o lugar, mas somente por algum tempo, para vários tiposde dominações. Esses diferentes tipos são levados, finalmente, aos mesmosmecanismos de submissão e de consentimento. Para C. Dejours, as domina-ções se exercem em vários domínios ou momentos da existência, mas che-gam todas a uma unidade conceitual. Pode-se falar da dominação referindo-se ao “modelo metapsicológico da autonomia” (Deranty, op. cit.).

Essa posição crítica é forte por seu questionamento de mecanismossociopsicológicos e sociopolíticos de ampla dimensão. C. Dejours não deixade politizar os sofrimentos provenientes do trabalho, e faz isso por meio deuma crítica de relações sociais dedominação que não negligencia nenhumdomínio da existência. Sua crítica clínica transcende os casos particularespara pôr em questão (NT: em francês, causa) dominações englobantes. É delá que ela extrai sua fonte de indignação, mas é também seu limite.

Nem todas as sujeições devem ser assimiladas a formas de domina-ção. Trazendo o conjunto dos usos abusivos do poder ao termo único domi-nação, deixamos de lado as múltiplas faces da opressão e as particularidadesdas situações em que eles se exercem. Corre-se assim o risco de perder umaancoragem naquilo que cada situação, ou cada causa, pode ter de singular.

A opressão, o desprezo, a negação da existência, a exploração, ahumilhação, adquirem novas formas e faces, muitas vezes difíceis de desco-brir em razão dos mecanismos de ocultação já mencionados. É importantedistingui-las sem perder o vínculo geral com a reorganização do capitalismoneoliberal. Na prática clínica, devemos retornar às situações locais e às vidasoprimidas, para ali encontrar, cada vez, motivos ajustados de crítica e deluta. Devemos estar particularmente atentos, as resistências que os trabalha-dores opõem as diversas formas de opressão no seu local de trabalho.

refa de “pensar os princípios de uma outra política do trabalho” ao afirmar que “o trabalhosempre foi e sempre será uma questão essencial das relações de dominação. É uma arenaessencial onde se experimenta a luta por emancipação”. Nas Observations cliniques enpsychopathologie du travail, a intenção é mais distinguir entre o que diz respeito especifi-camente ao trabalho e o que diz respeito propriamente à personalidade ou à estrutura dopaciente, “mesmo quando as in justiças e os maus tratos estão em questão” (p. 10).

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O Sujeito no Trabalho 85

É verdade que, para adquirir uma certa força, a crítica social devedespojar-se de suas particularidades e visar a um alcance geral, senão univer-sal, como conseguiu fazer o movimento operário na Europa no século XIX,baseando-se na referência à luta de classes como dinâmica histórica. Masessa generalização deve também permanecer atento ao que perde ou reduz: osingular de uma situação ou de uma existência, incomensurável com relaçãoa todas as demais.

O que está em jogo no clínico-político é respeitar a qualidade dasexperiências singulares que são elaboradas nos dispositivos de escuta, semimpedir de relacioná-las umas com as outras para denunciar as múltiplasformas da opressão que elas abrigam. A subjetividade crítica torna-se entãoum problema a resolver, mais do que um dado fundador (Renault, 2008). Aidentificação das causas das injustiças é mais um ponto de chegada eventualque um ponto de partida10.

3 LUGARES E DISPOSITIVOS CLÍNICOS

Podemos agora voltar às questões colocadas no início deste texto,que diziam respeito à responsabilidade dos clínicos quanto à tomada de pala-vra em um espaço público político. Os línicos lutam contra a injustiça e aopressão. Às vezes eles mesmos as vi venciam em instituições que tornamprecárias suas condições de trabalho e não os poupam da violência que elesdenunciam. Devemos interrogar-nos que lugares eles podem/devem ocuparpara resistir e fazer de suas próprias experiências causas comuns11.

A clínica deve continuar a interrogar o que permite dar lugar à cau-sa singular de cada um em uma causa comum a vários. Como formar umavoz crítica capaz de se fazer ouvir em um concerto democrático de vozes? Sea clínica do trabalho tem uma vocação à crítica, ela pode lutar em váriasfrentes, localmente, em um estilo de crítica “sem garantias cognitivas e práti-cas” (Renault, 2008).

Esse estilo de crítica necessita de um coletivo para se organizar –não somente um coletivo de pesquisadores, mas também um coletivo de

10 Sobre esse ponto, remeto o leitor a meu texto de 2009.11 O termo lugar tem dois sentidos, que encontramos na etimologia e nos usos sociológicos

do termo. De um lado, é “o local onde a pessoa se encontra, onde se desenrola a ação” (olugar forte, o lugar público, o lugar de negócios): o local da ação e o que torna possível oenvolvimento na ação. Por outro lado, é umaposição com relação a outras, um degrau ouuma classificação em uma ordem simbólica. O que nos interessa aqui é a maneira como os“clínicos” e os “que demandam” se situam e se deslocam em um dispositivo que visa aproduzir efeitos terapêuticos e políticos (Périlleux, 2012a).

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa86

clínicos, e mesmo um coletivo de equipes clínicas. Sua formação necessitado tempo, da confiança recíproca, da capacidade de solicitar o desejo, maisdo que o gosto do poder, na ação contra as formas de opressão cotidianas.Onde e como iniciar esse trabalho do coletivo?

Inicialmente, na instituição. Para assumir sua vocação, a clínicaprecisa ser instituída (le Blanc, 2010: 16). Essa é uma condiçãosine qua nonde sua perenidade e de sua possibilidade operacional12. Ela é indispensávelmesmo se acarreta, para as práticas clínicas, o perigo do espírito de proprie-dade funcionando de um modo defensivo (“Somos os proprietários do poderde interpretação, nosso status nos garante a legitimidade de nossa ação”). Ainstituição da clínica é uma necessidade para encarregar-se dos riscos daescuta do trabalho e para transformá-los em oportunidades de questiona-mentos políticos.

O compromisso do clínico no encontro com seus interlocutores éarriscado. Supõe uma escuta que pode ser supreendente, desestabilizadora, àsvezes inquietante, sempre desafiadora, particularmente quando a violência ea opressão estão em jogo. Quebrar os mecanismos de negação, evitar as re-petições violentas e mortíferas, impedir-se de reproduzir, no dispositivo clí-nico, (sem elaborá-la nem deslocá-la) uma opressão vivida no local de tra-balho, abrir vias de acesso a uma palavra pública: tudo isso supõe uma aten-ção particular aos dispositivos que podemos implementar.

O dispositivo da clínica supõe uma assimetria fundadora entre olugar do “clínico” e o da pessoa “que demanda” (sozinha, coletivamente, emgrupo). Só essa assimetria permite ao clínico não se encontrar subjugadopela demanda que lhe é feita, mas deslocá-la (Oury, 1985). A assimetria doslugares pode, entretanto, entrar em tensão com o compromisso político doclínico – que supõe um postulado deigualdade moral com os trabalhadorescuja voz crítica o clínico tem a intenção de formar, ou mesmo levar ao espa-ço público político. Isso suscita tensõesentre os lugares possíveis nos dispo-sitivos clínicos.

O lugar do clínico entra inicialmente em tensão com o do perito –perito médico no marco das consultas hospitalares, perito judicial no marcodos procedimentos de reparação, perito sindical ou político no momento emque aquele que demanda se envolve em um protesto público etc. A figura do

12 Essa observação faz eco a algumas das reflexões que C. Dejours consagrou à instituição

em psicanálise: na prática analítica, a “reivindicação de autonomia e de originalidade pro-ferida por cada analista não é vã”, mas ela não se sustenta “que como diferenciação ousingularização com relação a referências comuns e compartilhadas com os membros deum coletivo”, e é a instituição que afiança a transmissão das regras do ofício de analista(Dejours, 2008: 948).

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perito modifica a natureza da demanda e o processo de elaboração clínica. Operito dispõe de um saber constituído, que ele não suspende em sua clínica.A teoria, que está no segundo plano da escuta clínica, passa aqui ao primeiroplano – ela é, de certa forma, à frente daquilo que o paciente pode dizer.Além disso, o perito pode agir diretamente sobre uma situação profissional,graças à sua perícia, modificando com isso as relações de força sociopolíti-cas, e também o trabalho de elaboração da demanda.

Uma segunda tensão diz respeito a um lugar de porta-voz. Trata-se,nesse caso, da passagem ao espaço público. A clínica do trabalho funcionacom pessoal ou coletivos no mais singular das situações de trabalho. É umtrabalho que se faz “um por um”. Mas ela pode também acontecer na tarefade fazer “remontar” ao debate público questões oriundas de investigações deterreno – questões transmitidas em seus enunciados, mas, sobretudo, em seusmodos de enunciação. Ora, como já destacamos, não existe continuidadedireta entre esses dois regimes de ação, que necessitam de ferramentas eimpõem restrições diferentes e, por vezes, incompatíveis.

Uma terceira tensão diz respeito ao lugar do pesquisador. A ques-tão dos traços deixados pelo trabalho clínico – por meio de gravações, notasde terreno, relatórios de investigação, relatórios de pesquisa... – pode tornar-se muito sensível, e é pena que algumas investigações psicodinâmicas, con-fidenciais, não possam ser levadas ao debate público. Além do problema daconfidencialidade dos relatos, é também a relação com o saber que muda:entre o clínico e o pesquisador, há uma relação diferente com “a questão” (oquestionamento).

Em clínica, trata-se de formular as questões para que elas se en-quadrem bem. Há uma fecundidade de coisas que não se compreendem ounão se entendem. O clínico deve suportar a existência de questões que ficamsem resposta provisoriamente ou duravelmente (Dejours, 2009b: 53-54). Issopode levar-nos a distinguir entre “ser posto em questão” e “ser submetido àquestão”: o primeiro estado é o de um espanto, o segundo é o de uma acusa-ção (Didier-Weill, 1995: 171). Para o saber universitário – em particular odos engenheiros e gestores – a questão é vista como um problema que esperasua solução – se possível, uma solução rápida. No caso da clínica, seria maiso caso de fazer viver os problemas, mantendo ativas as questões que os ani-mam subterraneamente.

Observe-se que os diferentes lugares que acabamos de mencionar –clínico, perito, porta-voz, pesquisador – sofrem do fato de não serem insti-tuídos de maneira duradoura. A questão dos lugares apresenta-se para osclínicos, sabemos que ela também está presente de maneira importante nassituações profissionais relatadas pelas pessoas que vêm consultar e expri-

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa88

mem o sentimento de não estarem no seu lugar, ou de não terem lugar, ou deestarem designados a um lugar que não lhes convém. O clínico é levado atrabalhar sobre a relação com os lugares profissionais, para apoiar possibili-dades de deslocamentos (não estar totalmente identificado a seu lugar, estarem um lugar para poder sair dele…). Isso supõe que seus próprios lugares,no coletivo e na instituição, sejam ocupáveis de maneira duradoura. A auto-nomia da clínica exige umadurabilidade do cuidar no espaço e no tempo (leBlanc, 2010: 15-18).

Enfim, é somente nas distâncias entre os diferentes lugares quepode funcionar a articulação entre uma palavra elaborada na situação clínicae uma tomada de palavra no espaço público. Os dispositivos de clínica dotrabalho deveriam favorecê-la com articulações em rede13, conexões entre asexperiências de trabalho elaboradas nesses diferentes dispositivos, de manei-ra a romper seu isolamento e ativar o potencial crítico que elas contêm. Oprimeiro ganho, frequentemente relatado pelos consultores das clínicas dotrabalho, é a possibilidade de quebrar o isolamento, (re)encontrar sua voz,falar com outras pessoas de uma situação que se acreditava inaudível e abrirpouco a pouco o horizonte de uma comunidade de experiências. Um segundoganho deveria ser a possibilidade de conectar essas experiências para fazê-las alcançar o espaço público.

4 O QUE ESTÁ EM JOGO NA CLÍNICA E NA CRÍTICA

Para terminar com uma proposição mais prospectiva, gostaria demencionar alguns aspectos que estão em jogo em clínica-críticas e que seapresentam a nós. Eles constituem o desafio de uma clínica do trabalho quenão abre mão de questionar politicamente as formas de opressão com asquais é confrontada, sob as múltiplas faces que ela pode assumir nos locaisde trabalho contemporâneos.

Responder a eles é considerar que não existe gesto clínico “puro” emsi, como não existe espaço público em si que constitua a “ci dade democrática”:existem gestos de uma densidade clínica mais ou menos forte e de alcancepúblico mais ou menos acentuado. O que está em jogo é um duplo processo –de densificação clínica e de questionamento crítico – do qual alguns pontos decotejamento podem ser encontrados nas tarefas descritas a seguir.

13 Ver em particular a rede de consultas animada por M. Pezé na França

(http://www.souffrance-et-travail.com/infos-utiles/listes/liste-consultations-souffrance-travail/#08); a consulta de clínica do trabalho aberta pelo CITES (Liège) na Bélgica(http://www.cites-stress.be).

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O Sujeito no Trabalho 89

Manter os olhos abertos. – O primeiro gesto crítico da clínica écomprometer-se a não fechar os olhos sobre a materialidade do trabalho ea violência da opressão que nele pode se exercer. Não se deixar cegar nemàs ambivalências da vida psicológica nem às contradições da vida social,lá onde atuam os mecanismos mais pesados de negações (déni). Isso acar-reta uma exigência para os clínicos: contribuir para uma subjetivação crí-tica, isto é, para a formação de sujeitos capazes de modificar os contextosde sua ação, em vez de adaptar-se a eles de maneira fatalista ou somenteinstrumental.

Nessa via, um trabalho clínico-crítica reencontra inevitavelmente omedo das sanções formais e informais. Esse medo invadiu a relação com otrabalho quando a gestão utiliza a ameaça de forma intensa. O papel dosclínicos, encontrando o papel dos que intervêm no plano social ou dos sindi-calistas, visa a ressuscitar um potencial crítico presente nos relatos do tra-balho, ao desfazer o máximo possível as ancoragens em mecanismos de“blindagem” defensiva.

Trabalhar para uma crítica local das formas de opressão paraformar causas comuns. – O clínico não deve abandonar sua ancoragem nasingularidade das situações e das existências. A partir do (dos) lugar (luga-res) que ocupa, ele pode estabelecer uma relação diferente com a generaliza-ção, de modo a dar lugar à causa do desejo na causa comum.

Os clínicos desconfiam com razão das generalizações “que sobres-saem” e que impedem a afirmação de um pensamento singular. Elas se desti-nam a qualquer um, em qualquer momento e em qualquer lugar: elas nãocomprometem quem as exprime. Existe, porém, uma maneira mais indutivade construir da generalização, que permite respeitar a qualidade das expe-riências singulares, sem impedir-se de pô-las em relação umas com as outras(em “série” ou “classes”). Trata-se então de uma generalização concreta, queretorna à experiência singular para afinar-se, retificar-se. É isso que permiteque os clínicos lutem em várias frentes,a partir de críticas locais, origináriasde situações particulares de opressão.

Inscrever sua intervenção “no meio”. – O ato clínico diz respeitoaos vínculos de formaçao recíproca entre a pessoa e seu meio de trabalho.Inscrever a demanda do trabalhador em situação de sofrimento “no meio”,isto é, na relação entre o sujeito e o contexto profissional, é evitar fazercom que ela recaia unicamente sobre a história singular do sujeito, ou dar-lhe um alcance geral com rapidez excessiva. É também reconhecer a plura-lidade das referências normativas com as quais os trabalhadores devemcompor em seu trabalho, para assumir suas eventuais contradições comconhecimento de causa.

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Thomas Périlleux – Tradução: Ricardo Avelar de Sousa90

Sustentar um percurso psicológico e tático de deslocamentos. –Para o sujeito, trata-se de (re)encontrar jogo entre estar ocupando um lugare a possibilidade de se deslocar das atribuições identitárias, a fim de en-frentar de outro modo o que é inquietante ou insuportável na vida de tra-balho.

Ora, paradoxalmente, a capacidade de ocupar um lugar supõe a ca-pacidade de perdê-lo. Um dos papéis da clínica do trabalho consistiria emrestaurar essa dupla capacidade, frequentemente ameaçada pelas evoluçõesda organização do trabalho que fragilizam a disposição durável dos lugaressociais, e em razão das evoluções culturais que favorecem “um tipo particu-lar de posicionamento subjetivo: aquele que se arranja para não estar lá,aquele que pode estar ausente de si mesmo” (Lebrun, 2007).

Manter aberta a brecha existencial criada pelo real do trabalho. –Uma breche é aberta pela confrontação com o real do trabalho. Procuramostodos evitá-la por meio de diferentes formas de negação, psicológica e so-cialmente organizadas. Ela envolve o risco permanente de voltar a fechar-sena “necessidade de agir” e na estreita satisfação que dela obtemos (Vasse,1969). Desse ponto de vista, a tarefa clínico-crítica que se apresenta é a deuma resistência à superocupação, não somente nos pacientes que se dirigemaos clínicos, mas igualmente nas próprias instâncias críticas (sindicais e po-líticas).

A superocupação (“affairement”) aparece como um dos princi-pais sintomas com os quais a clínicado trabalho lida. Ela esmaga todas astemporalidades da vida em favor exclusivamente do tempo operacional,numa confusão entre rapidez, pressa e agitação. É uma fuga para frente,exatamente contrária à retomada que, sozinha, permitiria a travessia daexperiência. Resistir à superocupação é comprometer-se em uma críticapolítica do produtivismo; é também engajar-se em um trabalho clínicosobre as fontes da superocupação e o prazer que ele oferece (Périlleux,2010, 2012b).

Nesse sentido, a clínica do trabalho está em condições de contri-buir ativamente para relançar a crítica social. Ela é confrontada a patolo-gias sociais inacessíveis por outras vias. Ela pode distinguir entre as raizesde opressão objetiva e as causalidades subjetivas, problematizando aquestão do sintoma. Por sua arte da escuta de risco, ela abre brechas nosprocessos de ocultação de sofrimentos mudos e é suscetível de esclarecervias imprevistas de emancipação. Ao contribuir para uma subjetivaçãocrítica, ela pode também levar os trabalhadores a sustentar uma certa con-sistência pessoal que é solapada nos regimes de superocupação do capita-lismo neoliberal.

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O Sujeito no Trabalho 91

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