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O SUJEITO ENTRE MÚLTIPLAS GEOGRAFIAS E A GEOGRAFIA GERAL
ELIAS LOPES DE LIMA1
Resumo: Há um traço fundante da geografia moderna que historicamente (ao longo de todos
os seus momentos de renovação) a impele a confrontar o particular e o todo, o que comparece,
em última análise, como uma dualidade entre uma geografia regional e uma geografia geral
que se manifesta sob variadas formas correlatas e nuançadas: idiográfico e nomotético;
multiplicidade e unidade; local e global etc. Curiosamente, um aparente indício de superação
desses imbróglios se erige em geografia a partir da renovação do método regional, já que tal
expediente permite entrecruzar as mais variadas escalas de ocorrência dos fenômenos,
permitindo, com isso, o desvelamento de alguns conteúdos objetivos até então reificados e
uma consequente revalorização do sujeito na produção geográfica. O presente texto consiste
numa tentativa de instigar um debate de maneira a tornar inteligível (de dotar de formas) essa
profusão de conteúdos que convoca o sujeito a um inquérito por parte da geografia.
Palavras-chave: sujeito, objeto, espaço, multiplicidade, diferença.
Abstract: There is an fundamental trace of the modern Geography that historically (along all
its moments of renovation) impels it to confront the particular and the whole, which appears,
ultimately, as a duality between a regional Geography and a general Geography which
manifests itself in different correlated ways and nuances: idiografic and nomothetic;
multiplicity and unity; local and global etc. Curiously, an apparent indication of overcoming
this imbroglio rises in Geography from the renovation of the regional method, since it allows
intersecting varied scales of phenomena occurrences, which allows the unveiling of some
objective methods which were reified and a consequent revaluation of the subject in a
geographic production. The current text consists on an attempt to incite a debate to make
these abundant contents intelligible (to provide with forms) that impells the subject for an
inquiry on the part of the Geography.
Keywords: subject, object, space, multiplicity, difference.
1 Doutor em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor adjunto do curso de geografia da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Núcleo de Pesquisa Espaço e Ação (NuGea).
O espaço é a manifestação geográfica mais expressiva da realidade objetiva total que o
sujeito no curso de toda uma vida, com todo aporte intersubjetivo, com todo o aparato
tecnológico disponível hoje e com todo o conhecimento acumulado desde os registros mais
remotos não é capaz de dar conta, senão de uma parcela objetiva em que ele consta como um
elemento constitutivo vital. Na qualidade de realidade geográfica, e não propriamente como
uma representação, o espaço está suscetível de uma interpelação sensível e prática a partir de
cada experiência particular cujo sentido e significado, após uma triagem intersubjetiva dos
atores que partilham a experiência, são reduzidos, por fim, a uma representação objetiva.
O espaço, entendido como uma representação ou um objeto geográfico, por sua vez, não
o é enquanto tal a partir das minhas experiências pessoais ou de quem quer que seja, e sim um
conceito que dispensa tais experiências particulares em proveito de um equivalente geral
inteligível e acessível supostamente a todos por se instituir como fundamento absoluto da
ciência geográfica. Este é, sem dúvida, um dado unificador dos afetos subjetivos acerca do
espaço, mas também é um aspecto limitador do seu potencial objetivo, aquilo que o espaço de
fato (ontologicamente) é. A partir do tensionamento entre o múltiplo e o uno, o particular e o
geral, o descritivo e o analítico, o local e o global, dentre múltiplas outras formas de
compreensão da complexa trama de interações de fenômenos geográficos, pretendemos, com
este artigo, sugerir uma intricada implicação do sujeito na produção do conhecimento e do
fazer geográficos.
Na qualidade de uma forma geral de nossa representação de mundo, o espaço é,
reconhecidamente, menos um ser da realidade efetiva do que uma categoria do conhecimento,
uma forma de intuição,2 já que não sendo ele próprio um ente é o meio pelo qual se
fundamenta o ser de todas as coisas, esclarece Martins (2007, p. 35). De outro modo, o espaço
cujo sentido deriva da corporeidade dos atores sociais implicados na trama de fenômenos
geográficos, ou seja, o espaço de uma geograficidade propriamente dito, situa-se entre os
domínios do conhecimento e da ontologia, pois é na realidade mesma em que reside um
significado indeterminado cujo desvelamento na experiência corpórea de espacialidade
acarreta em agregação de valor ao conhecimento. Embora remeta a uma gênese do sentido
manifesta numa espacialidade pregnante da experiência corpórea, a apreensão do significado
outrora indiscernível representa uma ínfima parcela da realidade ontológica adquirida a partir
da experiência de um sujeito corporificado, sem com isso concluir que esta apreensão
determine o espaço enquanto ser. Este modo de ser do espaço fundamenta o espaço objetivo
2 Hettner (2011, p. 146) escreve que “o espaço enquanto tal é uma forma de intuição; ele ganha significado real
apenas através de seu conteúdo”.
geográfico através de uma síntese da experiência de múltiplos sujeitos, mas o faz para
revolver a unidade objetiva estática e formal em favor de uma objetividade histórica
franqueada por acréscimos da realidade objetiva até então indeterminada.
Para todos os fins, o espaço enquanto realidade geográfica que ultrapassa nossa
capacidade de apreensão objetiva de mundo é a superfície de contato com o corpo, ele partilha
com o nosso corpo um princípio de conaturalidade, confiando-lhe, portanto, seus conteúdos
indiscerníveis passíveis de serem apreendidos por meio da experiência. Uma vez que a
geografia é dentre todas as ciências a que de forma mais fragrante expõe a totalidade sensível
do mundo, incluindo em seu domínio camadas não discernidas da realidade objetiva pela
inteligibilidade ou mesmo percebidas numa apuração mais pormenorizada, de modo que estas
condições estariam disponibilizadas pelo espaço geográfico enquanto um todo objetivo, então
também é ela, dentre todas as ciências, que talvez melhor permita explorar a defasagem do
sujeito mediante a realidade efetiva do espaço, já que o corpo, condição fundamental desta
possibilidade, mantém com ele certas afinidades ontológicas. Ambos, corpo e espaço,
constituem a condição material de toda possibilidade objetiva em geografia.
Como lembra Hartshorne (1978, p. 180), “a geografia é um campo cuja matéria inclui a
maior complexidade de fenômenos, e, ao mesmo tempo, preocupa-se, mais do que a maior
parte dos outros, com estudos de casos individuais (...). Por essas duas razões, a geografia é
menos capaz do que muitos outros domínios de elaborar e empregar leis científicas”. A
constatação de que a geografia é um campo do conhecimento que se preocupa em conhecer e
compreender casos individuais, herança de uma tradição idiográfica cuja maior expressão é a
individualidade regional de Ritter, decorre diretamente de sua função como estudo dos
lugares.3 Uma vez que a deificação do objeto a uma lei geral e apodítica, como ocorre, por
vezes, com o próprio espaço, corrobora para a elisão do sujeito, logo, não se prender por
completo a tais princípios universais permite alguma margem de contemplação dos sujeitos
implicados nos fenômenos estudados – ainda que a inclinação em prover o discurso
geográfico de uma unidade de sentido concorra para que o sujeito compareça na maior parte
das vezes de forma passiva.
O fato de o conceito de espaço não convergir em parte para uma unidade conceitual
efetiva, repercute em atenuar a produção da intersubjetividade de tipo universalizante em
geografia. Em outras palavras, não há a bem dizer um consenso objetivo acerca do objeto
geográfico, já que são variadas e, em alguns casos, até mesmo conflitantes as concepções de
3 ibid., p. 167.
espaço entre os geógrafos. Sauer (2004, p. 12) observa a este respeito que “enquanto os
geógrafos discordarem em relação ao seu objeto, será necessário, através de definições
repetidas, procurar uma base comum sobre o qual uma posição geral possa ser estabelecida”.
É claro que esta diversidade de objetos geográficos reflete a própria multiplicidade de
fenômenos e conteúdos concernentes ao espaço, de maneira que mesmo um estudo de caso
sobre alguma pequena área poderia incluir uma grande variedade de tópicos.4
Em contrapartida, múltiplas são as subjetividades enredadas na produção epistêmica do
espaço e mesmo em sua reprodução material. A dificuldade em estabelecer esse consenso
deve-se de certo modo à expansão do caráter indiscernível do sujeito, que em parte implica
também uma inconstância do objeto. Atribuir tal diversidade ao caráter indiscernível do
sujeito é, no entanto, somente uma maneira alternativa de lançar luz ao problema, já que não é
ele mesmo o elemento desencadeador desta pluralidade objetiva senão um ingrediente que
consta muito mais como o seu produto, uma vez que só pode ser concebido implicado em
meio aos seus noemas, isto é, os diferentes modos de apreensão objetiva. A geografia é um
campo de produção científica franqueado a múltiplos objetos temáticos, todos reunidos sob o
imperativo do espaço, que por seu teor de permeabilidade e de universalidade admite o
intercruzamento dos mais variados objetos.
As formas com que se apresenta e o seu conteúdo são tão variados, que a tarefa de
incluir em uma unidade de definição uma tão grande multiplicidade fatual surge
como um obstáculo de peso, sobretudo porque, tanto a metodologia cotidiana como
a própria conceituação estão carregadas das múltiplas acepções correspondentes aos
outros tipos de espaço (SANTOS, 1978, p. 120).5
Essa profusão de sentidos acerca do espaço, o objeto geográfico por definição, vai
implicar no estabelecimento de um sujeito tanto quanto mais difuso, já que este está sempre
enredado numa relação de objetividade com o objeto para o qual se inclina. Não é raro que
esta objetivação assuma um tamanho poder de determinação objetiva inversamente
proporcional à indeterminação do sujeito. Sujeito este expresso na plêiade de interpelações
abstratas (sobretudo filosóficas) que intervém no discurso geográfico quando esta objetivação
é, por assim dizer, relativizada, mas sem que se possa efetivamente objetivá-lo. Qualquer
4 Hartshorne, op. cit., p. 28.
5 “(...) os utensílios comuns à vida doméstica, como um cinzeiro, um bule, são espaço; uma estátua ou uma
escultura, qualquer que seja a sua dimensão, são espaço; uma casa é espaço, como uma cidade o é. Há o espaço
de uma nação – sinônimo de território, de Estado; há o espaço terrestre, da velha definição de geografia, como
crosta do nosso planeta; e há, igualmente, o espaço extraterrestre, recentemente conquistado pelo homem, e, até
mesmo o espaço sideral, parcialmente um mistério” (ibid., p. 119, 120).
tentativa de capturá-lo numa unidade inteligível compromete o sincretismo objetivo
geográfico: sua propriedade de tratar de tudo ao mesmo tempo e de nada em especial.6
A afirmação tornada linguagem corrente de que “há tantas geografias quanto geógrafos”
tomada como um expediente de fuga quando se coloca a questão “o que é a geografia?”7 é, se
levada ao pé da letra, absurda, pois ela supõe que cada geógrafo é independente do horizonte
objetivo característico da ciência geográfica dando assim maior vazão às suas respectivas
subjetividades. É óbvio que há um traço de subjetividade que personaliza cada trabalho, mas
daí a admitir que cada geógrafo seria capaz de conduzir individualmente sua narrativa e
produção científica seria da maior incoerência, porquanto comprometeria o estabelecimento
de um quadro de referências metodológicas que autoriza caracterizar um trabalho como
geográfico. O edifício científico geográfico ou de qualquer outro campo de conhecimento
somente é possível em face de um horizonte objetivo comum produto/produtor de um campo
de intersubjetividade. Esta determinação concorre para um arrefecimento da multiplicidade de
representações objetivas e, por conseguinte, para o estabelecimento de um sujeito em especial
(em detrimento de tantos outros), assim como para afirmação de seu caráter passivo.
Toda a assertiva acima poderia ser refutada a considerar a ideia atualmente
predominante em geografia de que o espaço é um produto social ao passo que condiciona a
própria produção social. Discordar desta “lei” seria como assinar um atestado de óbito no
meio acadêmico geográfico, dado o seu poder de cooptação intersubjetiva, comparável a
todos os outros paradigmas geográficos que ao seu devido tempo se impôs como verdade
apodítica, herança, por sua vez, de nossa tradição nomotética. Por mais sensata que seja esta
noção aos nossos olhos, porquanto não a refutamos nem temos meios para tanto, já que é ela
mesma “a cara” da geografia de nosso tempo, há que se reconhecer que o seu caráter
universalista demanda um tipo especial de sujeito segundo uma circunvizinhança muito
específica de subjetividades, ao passo que alija um sem-número de horizontes objetivos
geográficos em potencial. Sob este aspecto, o espaço geográfico é um ponto comum em meio
às mais variadas controvérsias entre os geógrafos. Devemos então concordar com Smith
(1988, p. 122), para quem esta concepção de espaço predominante hoje em geografia “não é
somente grosseira e mecânica na sua elaboração, mas também impede mais discernimento
com relação ao espaço geográfico”; no fundo, prossegue o autor, “isto se deve ao fato de que
a visão da relação entre o espaço e a sociedade permanece presa à concepção absoluta de
6 “Acabamos, por isso, tendo uma multiplicidade tão grande de geografias que justificaria a um espírito irônico
dizer que, nos dias de hoje, há muitas geografias mas nenhuma geografia” (ibid., p. 92). 7 idem, 1996, p. 16.
espaço”, logo, não compreendendo os aspectos múltiplos e heterogêneos concernentes à
subjetividade humana e à própria qualidade sensível do espaço.
Muitas vezes, porém, ao reorientarmos nosso olhar para a multiplicidade, traímos uma
interpretação coerente acerca do real por negligenciarmos o teor mediador (e não exatamente
essencialista) concernente à unidade objetiva pela falta de um rigor dialético. Não é raro que
essa postura assuma, curiosamente, expedientes descritivos, em alguns casos, comparáveis à
leitura idiográfica encetada pelos clássicos. A tradição idiográfica de descrição com base em
aspectos únicos e particulares dos fenômenos e o retardo em encetar avaliações analíticas
entrevendo processos histórico-sociais orientados para um horizonte de totalidade certamente
limitou a multiplicidade de formas acerca dos fenômenos geográficos. Os conteúdos abertos
pelas grandes expedições certamente desencadearam efusões intersubjetivas inéditas,
inaugurando um novo horizonte objetivo geográfico sem paralelo na história. Talvez muitos
desses conteúdos tenham se perdido em razão dos procedimentos descritivos de investigação,
os quais se poderiam atribuir à boa parte da geografia produzida no século XIX e início do
século XX. Para um geógrafo cioso por afirmar o caráter sistemático da geografia, Sauer8
avalia que a leitura analítica acerca desses então novos conteúdos só compareceria após
esgotar-se o entusiasmo suscitados pelas novas descobertas e pela exploração colonial-
imperialista. Esta observação crítica poderia ser estendida a todo fenômeno geográfico cuja
limitação de sentido foi alimentada pelo método descritivo.
Mas o caráter nomotético de objetivação geográfica também perfaz suas limitações,
principalmente em razão da inclinação universalista por vezes atribuída às categorias e a
determinados objetos, reiterando igualmente a limitação da multiplicidade de formas dos
conteúdos do real. Defendendo uma leitura analítica nomotética, os geógrafos alemães Bobek
e Schmithüsen (2004, p. 83) ressaltam que “os objetivos fundamentais da análise geográfica
da paisagem são descobrir a ordem dentro da multiplicidade, decompô-la e explicar com
clareza o emaranhado de relações recíprocas que nela se dá”. No que o faz, a geografia
amputa uma série de possibilidades objetivas acerca da própria paisagem em apreço,
restringindo igualmente os sujeitos recalcitrantes a essa inclinação objetivista. Isto porque o
seu conteúdo oculto fica então encapsulado pelo caráter delimitador e impessoal que a
analítica nomotética requer. A propensão em hipostasiar o objeto como uma verdade ou lei
apodítica, gerando com isso todo tipo de geografismo, é um dos maiores entraves de
reconhecimento dos sujeitos como reais agentes transformadores do espaço. “Esta cosmologia
8 Sauer, op. cit., p. 19.
de „única narrativa‟ oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do
espaço. Reduz coexistências simultâneas a um lugar na fila da história”, concorda Massey
(2008, p. 24).
A despeito destes percalços, o mais emblemático é que a própria realidade material do
espaço contribui para uma restrição de sentido por conceder maior longevidade às formas e
estruturas materiais. Além das limitações inerentes ao sujeito por ocasião da escolha de um
caminho (um método, seja idiográfico ou nomotético, seja positivista, fenomenológico ou
dialético) ou mesmo uma subárea de investigação que lhe permita compreender
coerentemente os fenômenos, o fenômeno também restringe a qualidade essencial de seus
conteúdos, dificultando assim que lhe sobrevenham algumas formas inovadoras. A própria
natureza do espaço no que se refere a uma perenidade pregnante de sua concretude, impõe
uma espécie de inércia ao movimento de produção social por meio das formas herdadas dos
modos de produção precedentes.
A construção de vias modernas de circulação são um exemplo da inércia espacial: as
rodovias construídas paralelamente às vias férreas; as autoestradas que seguem,
aproximadamente, o traçado das rodovias antigas, as pontes que se sucedem no
mesmo lugar, mesmo se as condições naturais não são mais as melhores. E muitos
exemplos da força das condições locacionais do passado.9
O espaço é a expressão mais factual das determinações histórico-materiais de existência,
já que se manifesta como a própria produção social da realidade objetiva (a natureza,
sobretudo). Ora, o espaço é um produto social mas é ao mesmo tempo um dado geográfico
condicionante do acontecer social, não como um a priori que precede a objetivação de seus
conteúdos através de uma intuição sensível, como prescreve o criticismo kantiano, mas sim
por meio das formas legadas da formação socioespacial, do arranjo e da configuração
territorial precedente, do acúmulo histórico de conteúdos na paisagem etc., todos como
condições concretas da atualização das formas-conteúdo no presente. “Pode-se dizer das
formas em geral que elas se metamorfoseiam em outras formas quando o conteúdo muda ou
quando muda a finalidade que lhe havia dado origem”, acrescenta Santos.10
Com a forma
espacial, prossegue o autor, a questão é diferente, “pode-se adicionar-lhe uma outra forma
nova, pode-se adaptá-la, ou então impõe-se destruí-la e substituí-la completamente. Mas neste
último caso já não será a mesma forma”.11
9 Santos, op. cit., p. 132.
10 Santos, op. cit., p. 149, 150.
11 ibid., p. 150.
Em meados da década de 1960, Pierre George (1969, p. 117) descrevia que o trabalho
industrial é uma atividade concentrada e geograficamente fixa. Hoje, porém, podemos afirmar
que o trabalho industrial é em grande parte disperso, para não dizer “flexível”, o que o torna
geograficamente fluído. A redistribuição do capital produtivo e a consequente reestruturação
da divisão internacional do trabalho no imediato após-guerras não se apresentou então a
George e alguns geógrafos de sua geração como um conteúdo discernível de maneira a
suscitar uma forma objetiva. Só um pouco mais tarde, no lapso das últimas três ou quatro
décadas, as estruturas espaciais parecem autorizar um tratamento analítico geográfico à
tradicional noção de “trabalho livre”. O que para a economia política compareceu como forma
objetiva (o trabalho livre), em que pese principalmente as contribuições de Smith, Ricardo e
Marx, só ganharia uma forma objetiva geográfica correspondente bem mais tarde: um lapso
de mais ou menos um século e meio. E ainda que se trate de núcleos conceituais muito
diferentes, poder-se-ia alegar,12
fica claro que esta defasagem poderá sempre ser atribuída à
perenidade ou inércia inerente à materialidade do espaço geográfico.
O espaço como condição do caráter ativo e transformador do homem
É de longa data (pelo menos desde Kant) a ideia de que o espaço, assim como o tempo,
impõe um condicionamento à objetivação dos fenômenos do real. O paradigma geográfico
hodierno reitera o caráter condicionante do espaço, porém não exatamente como um a priori
ordenador da sensibilidade e da cognição acerca dos fenômenos, senão como contrapartida de
ser um espaço historicamente produzido, daí então seu poder de determinação sobre as formas
de objetivação dos fenômenos. “Assim, espaço é atributo do ato de cognição do mundo. Mas
como tal, não é um dado a priori, como queria Kant, e sim algo que emerge como construção
social, um atributo cultural, uma forma de ver e compreender o mundo”, explica Martins.13
Trata-se, a rigor, de um complexo jogo de determinações recíprocas, cuja eventual
polarização em uma das partes (a sociedade ou o espaço, o sujeito ou o objeto) resultaria
numa débil apreensão formal. Ao se restabelecer o tempo (suprimido pelas ciências da
natureza e, sobretudo, pelo método teorético-quantitativo) como um ingrediente estruturador
da produção social do próprio espaço, a materialidade herdada da produção social passada
torna a condicionar a produção social do espaço no presente, numa trama de interferências
mútuas cujo tensionamento acaba por forçar o desvelamento de novas formas-conteúdo
12
A propósito, utilizamos exemplos bem díspares, que de comum só têm o núcleo conceitual da categoria
trabalho, para enfatizar o problema. 13
Martins, op. cit., p. 37.
realimentando todo o ciclo de determinações. Nesses termos, concordamos com Santos14
para
quem “o novo não se inventa, descobre-se”. Ou ainda que “a simples apreensão da coisa, por
seu aspecto ou sua estrutura externa, nos dá o objeto em si mesmo, o que ele apresenta e não
o que ele representa”.15
O espaço geográfico está prenhe de conteúdos informes a serem descobertos ou
apresentados. Conteúdos esses que, para todos os fins, são franqueados ao homem por meio
de um princípio de conaturalidade entre o corpo, sede irredutível de toda experiência sensível,
e o espaço geográfico, domínio material de toda a realidade geográfica. Daí, portanto, a
importância para a compreensão do sujeito a partir do movimento da realidade objetiva de um
autor como Merleau-Ponty, filósofo que em seus últimos trabalhos interpreta o corpo como
um ente cujas propriedades diacríticas são do mesmo estofo sensível da materialidade
mundana,16
como não nos deixa iludir as adaptações técnicas dos mais variados gêneros de
vida sobre a face terrestre. Em termos geográficos, diríamos que o espaço desabrocha
sentidos tornando evidentes conteúdos que até então permaneciam ocultos e forçando a
transformação dos gêneros de vida, isto é, dos modos de existência adaptados às condições
materiais por ele impostas.
Reclamar um sujeito no âmbito da produção geográfica não significa de modo algum
restituir o velho discurso da relação homem-meio, pelo menos não da maneira ingênua como
esse tema vem sendo abordado pelo discurso ambiental e pela perspectiva holista hodierna,
embora seja quase uma unanimidade entre os geógrafos que o seu campo de estudo abranja o
conjunto da complexa rede de fenômenos humanos e naturais. Não consiste também em
apenas atestar a participação ou não-participação do homem na edificação do conhecimento
geográfico. Ela é já um fato consumado: uma vez evidenciada esta participação, trata-se de
avaliar o seu caráter criativo ou mesmo passivo, se for o caso. Para todos os fins, não é
propriamente o homem como uma unidade geral (um fator antrópico ou a humanidade) que
autoriza compreender o sujeito enredado nos fenômenos geográficos,17
senão o homem na
qualidade de um agente transformador do espaço enquanto uma condição prática de sua
existência material e de sua consciência. É o caráter transformador do homem, o que lhe
qualifica como um sujeito ativo, que interessa-nos sublinhar.
14
Santos, op. cit., p. 1. 15
ibid., p. 69. 16
A propósito, cf. Merleau-Ponty (2005). Por materialidade estamos aludindo a uma concepção científica de
matéria, isto é, ao que grosseiramente se convencionou associar ao concreto e ao corpóreo, e não à sua
concepção filosófica. 17
Aliás, é esta concepção abstrata de homem que autoriza equívocos retóricos e despolitizados como a alegação
de que “o homem está destruindo a natureza” ou da sua intervenção nos ciclos de transformação da matéria
qualificada como um “fator antrópico”.
Esse caráter criativo e transformador do homem se encontra, por correspondência a uma
objetividade que o institui como sujeito, num domínio tênue entre a objetividade determinada
(o fenômeno) e uma objetividade potencialmente factível. Um passo à frente da coisa
(enquanto um dado indiscernível do real), já que corresponde aos conteúdos negligenciados
na própria experiência do sujeito, e não na abstratividade da realidade numenal. Por algum
motivo, não raro atrelado a uma ordem ideológica constituída, não se atribui esta qualidade a
uma ou outra forma objetiva senão à forma que melhor atende aos interesses dos grupos ou
classes dominantes. Santos18
percebe que “o objeto é o resultado de determinações paralelas e
concomitantes da estrutura nua e da ideologia”. Portanto, esta estrutura nua (sobretudo, o
conteúdo coisificado) não é totalmente despida dos condicionamentos históricos acerca dos
quais o sujeito, enquanto agente transformador, e não somente idealizador, está implicado.
Negar a ideologia, como algumas correntes geográficas costumam fazer, só confirma
seu poder assaz determinante, concorrendo para essa constatação narrativas tanto mais cínicas
quanto mais sutis. De outro modo, a variedade de apreensões perceptivas estaria de certo
modo amarrada por um laço que unifica muitas das efusões subjetivas acerca de um
determinado conteúdo, atribuindo-lhe assim uma forma objetiva. A intersubjetividade não se
dá, portanto, como mera manifestação tética do espírito coletivo, ela supõe como condição a
produção social e a consequente transformação da sociedade. E uma vez que o sujeito
derivado desse movimento consiste num sujeito corporificado, a intersubjetividade comparece
sempre como corporeidade, expediente metodológico este que deixa margem a uma
progressiva apreensão daquela variedade perceptiva não endossada na experiência a título de
objetivação – exatamente esta a parcela sobressalente dos conteúdos informes do espaço. Ou
seja, o fato do sujeito estar subjacente à corporeidade o compele a uma progressiva
objetivação da realidade em derredor, já que o corpo é do mesmo estofo sensível das
estruturas existenciais as quais se encontra implicado.19
Este dado abre perspectivas para a compreensão da apropriação dos conteúdos
indeterminados do espaço a partir da própria objetivação dos fenômenos geográficos,
expediente este que não se reduz a uma apropriação formal dos conteúdos em função do
concurso do sujeito corporificado no edifício de objetivação. Vidal de La Blache (2002, p.
146) escreve que “uma necessidade do espírito nos incita a restituir o detalhe isolado, por si
mesmo inexplicável, a um conjunto que o esclarece”. Isto não significa que o sujeito, a
despeito de sua corporeidade constitutiva, detém completo poder de determinação sobre a
18
Santos, op. cit., p. 69. 19
Merleau-Ponty, op. cit., passim.
objetividade geográfica, ele seria antes um dado mediador da objetividade. Lefebvre (1991, p.
176) argumenta, a propósito, que o sujeito não acrescenta absolutamente nada de essencial ao
conteúdo objetivado. A forma atribuída ao conteúdo pelo sujeito é nada mais que um sentido
provisório em direção ao seu significado efetivo. No que ele atribui ao conteúdo uma forma
específica limita-a, desde logo, a uma aparência momentânea da essência da coisa. Merleau-
Ponty (1999, p. 148) concorda que “se o conteúdo pode verdadeiramente ser subsumido sob a
forma e aparecer como conteúdo desta forma, é porque a forma só é acessível através dele”, e
não por determinação de uma inspeção subjetiva. Concorre para este edifício um campo
intersubjetivo que envolve o plano da ideologia, da alienação das qualidades criativas dos
sujeitos, das relações de poder (inclusive de poder dizer, poder significar), e não exatamente
um sujeito isolado em sua subjetividade mesma. A partir de uma espécie de triagem
intersubjetiva, o sujeito atribui uma forma objetiva aos fenômenos geográficos com os quais
se depara na medida em que seus conteúdos se apresentam ao seu discernimento, pelo que lhe
facultaria sua própria experiência prática, uma vez reunidas as condições histórico-materiais
para tanto. Essa determinação permite que a forma-conteúdo aparente se expresse como o
próprio real, isto é, como um modo de ser do todo ontológico ou ainda como um ser social,
comparecendo, em todo caso, como um objeto pretensamente universal.
Para todos os efeitos, o espaço secreta muitos conteúdos cujas formas objetivas não
compareceram ainda ao discernimento dos sujeitos implicados em sua incessante reprodução
social, seja por questões ideológicas, por relações assimétricas que permeiam a
intersubjetividade, seja por não fazerem sentido algum à inteligibilidade em dada conjuntura
paradigmática. A relação dialética entre a forma provisória e o conteúdo objetivado se dá
sobre um “fundo”, isto é, uma miscelânea de conteúdos informes passíveis de serem
objetivados consistindo num plano abstrato por não aludir à concretude da forma-conteúdo.
“(...) essa lacuna irredutível entre o sujeito e seu „fundo‟, o fato de o sujeito nunca se encaixar
inteiramente no ambiente, nunca estar inteiramente embutido nele, define sua subjetividade”,
reconhece Žižek (2008, p. 68).20
Entretanto, não é exatamente o fundo e seus conteúdos
indetermináveis ou uma existência em potencial que permitem uma reapropriação objetiva de
maneira a autorizar entrever o caráter transformador do sujeito, senão um fundo em que
estariam alocados determinados conteúdos concernentes à sua própria experiência e que por
algum motivo não foram aproveitados a título de objetivação. Um conteúdo acerca do qual
não se atribuiu uma forma objetiva, menos, porém, por constar como uma “coisa-em-si” que
20
Na mesma linha, Maffesoli (1998, p. 87, 88) considera que “a forma exprime a intensidade de uma existência
e, ao mesmo tempo, admite a inexistência da potência, isto é, daquilo que poderá, algum dia, advir à existência”.
por ter sido reificado (coisificado) no processo de produção social do espaço, o que estamos
chamando de conteúdo protofenomenal. Trata-se de uma faixa marginal da experiência
corpórea para onde é relegado tudo quanto é contingente, aleatório, inconstante ou tudo que,
no fenômeno, não é submetido a um ordenamento por meio de um princípio ou lei
fundamental. Daí por que Merleau-Ponty (1999, p. 147) vai sustentar que “no que concerne à
espacialidade (...) o corpo próprio é o terceiro termo, sempre subentendido, da estrutura figura
[forma] e fundo, e toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do
espaço corporal”. O sujeito corporificado é assim um requisito, um dado mediador, para que a
forma compareça como uma aparência sempre provisória no curso da apropriação objetiva do
espaço geográfico.
Com efeito, esta plataforma objetivo-sensível, muitas vezes radicada na própria
experiência dos sujeitos sociais, de uma maneira ou de outra (geralmente, impulsionada pelas
contradições na ordem do acontecer social) força o seu desvelamento como forma-conteúdo
na teoria espacial. O esvaziamento político que Lacoste (1997, p. 33) põe em causa ao
denunciar o descrédito de uma geografia enfadonha e desinteressante, a “geografia dos
professores”, confrontada com a geografia hegemônica dos Estados Maiores mediante a
omissão academicista é uma das manifestações mais contundentes deste desvelamento de
conteúdo. Lacoste está fazendo crítica a uma geografia aplicada institucionalizada típica do
modelo fragmentário neopositivista. Sua proposta, reação a este modelo, tem todos os
requisitos para a implementação de uma teoria do sujeito, a considerar a noção de
espacialidade diferencial. Conceito este que admite uma diversidade de representações
espaciais de dimensões e conteúdos variados, correspondente a uma multiplicidade de
fenômenos e práticas sociais. No horizonte objetivo da espacialidade diferencial, no seio da
qual o olhar especializado sucumbe à dialética do uno e do múltiplo, a paisagem (que num
contexto positivista de apreensão dos fenômenos era o eixo articulador da fragmentação
positivista: geomorfologia, climatologia, demografia etc.) passa a acolher a diversidade
segundo os mais variados gêneros de classe dos fenômenos.
A espacialidade diferencial é, sem dúvida, uma das contribuições teóricas mais ricas em
termos de possibilidades de apreensão dos sujeitos, pois materializa espacialmente o caráter
multifacetado dos sujeitos implicados na profusão de fenômenos geográficos permitindo
entrever o domínio objetivo sem que desapareça o subjetivo, plano por excelência da
multiplicidade aventada por Lacoste. O aspecto geográfico mais fragrante desse desembaraço
objetivista é, talvez, a renovação do método regional, de vez que os lugares passam a ser
trespassados por uma variedade de escalas espaço-temporais que interage não somente o local
e o global, mas também o particular e o todo, o idiográfico e o nomotético, o corpo e o espaço
e daí por diante num cruzamento de formas-conteúdo que complexifica e dinamiza a realidade
geográfica, misturando a aparente homogeneidade da escala de origem (o domínio das
decisões) à fragmentação e pluralidade da escala de impacto das ações (SANTOS, 1996, p.
121), dando o tom de uma espacialidade diferencial fluida e descontínua.
A ideia de diferença aparece (de forma mais sistematizada) em geografia21
inicialmente
como um expediente metodológico resumindo-se a uma variação corológica. Introduzida e
adaptada por Hettner para empreender um exame comparativo de diferenciação de áreas,22
foi em seguida aproveitada por Hartshorne que incorporaria, inclusive, seu caráter de variação
corológica. Aqui, o método regional assume um atributo epistemológico quando assume
efetivamente a diferença como fator preponderante da dialeticidade entre o particular e o
geral, não por acaso Hartshorne23
compreendia uma redundância lógica entre as noções de
diferença e similaridade. Ainda que não assuma explicitamente, o procedimento utilizado por
Hartshorne está eivado de uma dialética que confronta o idiográfico e o nomotético, o
particular e o todo – estas oposições subsumindo-se por conseguinte ao método regional.
Reclamar a diferenciação de áreas é, para Hartshorne, uma forma de reafirmar a região como
síntese de múltiplas variáveis geográficas.
A diferenciação que ora enfatizamos é uma alusão a performances somático-espaciais
que retoma e desloca o sentido daquela noção corológica aludida por Hartshorne em face do
horizonte espacial do sujeito corporificado, pendendo mais para o sentido que Lacoste
atribuiu à noção de espacialidade diferencial ou ao conjunto de considerações interescalares
que entrecruza o local e o global e algumas outras formas correlatas que mais recentemente
Massey (2000, 2008, passim) vem tecendo acerca da diferença em largo sentido para a análise
geográfica.
A experiência da corporeidade conjunta dos sujeitos reserva à trama da espacialidade
diferencial o friccionamento entre os aspectos fenomenais e os aspectos refratários e
acidentais da síntese objetiva resultante, isto é, a passagem da coisa ao objeto, do espaço per
21
“(...) se examinarmos as definições de outras ciências, podemos concluir, por analogia, ser supérfluo afirmar
que a geografia estuda „diferenças‟. Todas as ciências consistem no estudo de diferenças” (HARTSHORNE, op.
cit., p. 22). 22
Uma avaliação prematura e concisa atribuiria a Hettner o mérito de ter legado à posteridade e sobretudo a
Hartshorne o método de diferenciação de áreas. Tudo não passaria de um lamentável equívoco assumido pelo
próprio Hartshorne por ter divulgado em A Natureza da Geografia, de 1939, um erro de tradução cometido por
Sauer em seu texto clássico A Morfologia da Paisagem, de 1925, a partir dos originais de Hettner. A propósito,
cf. Hartshorne (op. cit., pp. 13-22) e Hettner (op. cit., p. 139), especialmente a nota do tradutor acerca deste mal-
entendido. 23
Hartshorne, op. cit., p. 18.
se ao espaço geográfico ou à espacialidade, no sentido que lhe confere Soja (1993, passim). A
espacialidade diferencial implica uma sobreposição das mais diversas representações ou
dimensões de fenômenos espaciais de modo que sobressaia um horizonte objetivo como
síntese da confrontação das mais diversas dimensões diferenciais em jogo, tanto no que se
refere ao eixo transversal das diversas ordens de grandeza geográficas como dos aspectos
qualitativos que lhe prestam subsídios. Se hoje muitos fenômenos podem ser multi-
interescalares, como admite Lacoste,24
também os sujeitos neles implicados assumem esta
projeção plural. Mas é claro que não é propriamente o ator social quem determina esse caráter
pluriescalar, senão sua implicação em relações ou fenômenos que demandam este “vai-e-
vem” de escalas. Não devemos esquecer que a escala é um expediente analítico, um recurso
metodológico que aguça nossa percepção acerca da complexidade do mundo. É preciso
discernir, contudo, que a multiplicidade é tributária da unidade e vice-versa, não somente no
plano analítico ou tético, mas também e principalmente como expressão de práticas concretas
reais.
Uma vez que cada sujeito, cada indivíduo, carrega a potencialidade de obter uma
percepção própria acerca de um fenômeno geográfico qualquer que seja, o espaço, na
qualidade de um meio agregador de todos os fenômenos (reflexo de seu poder de cooptação
intersubjetiva), torna-se o ponto focal comum a cada um deles. O eixo de intersecção ou
interação é exatamente o fenômeno espacial tornado objeto a partir da experiência
intersubjetiva. No contraste ou diferença entre cada campo prático ou de presença, cada
recorte espacial, cada objeto geográfico de análise se potencializa com a reabsorção do
sentido diferencial até então olvidado na própria experiência de objetivação. A possibilidade
de poder partilhar tais impressões com outrem por meio de perfis perceptíveis diferenciados é
que dá o tom da intersubjetividade corpórea. Tudo isso por entremeio da relação de base
corológica, a localização dos fenômenos geográficos e a situação histórico-geográfica dos
agentes produtores do espaço corporalmente enredados na trama da geograficidade.
O que a diferença nos conclama a discernir em termos de apreciação dos fenômenos
geográficos é, dentre outras possibilidades, a profusão de conteúdos que não se apresentara à
consciência a título de forma objetiva.
24
Lacoste, op. cit., passim.
O desvelamento dos conteúdos informes do espaço
A realidade geográfica é, com efeito, um dos horizontes objetivos do homem que, por
conta dos conteúdos informes e indeterminados do espaço, melhor exprime e inspira a
retomada ampliada da consciência, já que ele é condição de toda reprodução social. Assim
nos confirma Besse (2011, p. 126), para quem “a geografia não tem outra vocação que não
seja a de recordar infatigavelmente aos homens a contingência irremediável das situações com
que se defrontam e a responsabilidade irreversível diante dos fatos”. O espaço é uma das
principais fontes de efusões subjetivas dos sujeitos dada suas características estruturais como
condição de produção social bem como de enraizamento cultural, como prescreve o
paradigma geográfico atual. Como observa Massey (2008, p. 15), “o espaço é uma dimensão
implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos entendimentos de
mundo, nossas atitudes frentes aos outros, nossa política. (...) E isso é ao mesmo tempo um
prazer e um desafio”. Ora, ele é justamente um desafio porque supõe um conteúdo objetivo
que naturalmente transcende qualquer encapsulamento conceitual. É essa transcendência, uma
vez que traz implicado um sentido depreendido, que autoriza compreender os aspectos
criativos e transformadores do homem.
É sempre curioso constatar como alguns geógrafos, notadamente os clássicos da
literatura geográfica, foram capazes de antever o essencial de uma objetivação de conteúdos
geográficos sempre crescentes e o quanto ela influencia os modos de existência. Vidal de La
Blache, por exemplo, a despeito de restringir os fenômenos geográficos a um quadro de vida
regional e do teor ideológico-imperialista então implícito, tinha esta determinação geográfica
potencialmente objetiva em conta:
À luz das causas gerais em que o modo de ação se deixa apreender, as afinidades
foram reconhecidas como sendo mais numerosas, ao mesmo tempo em que melhor
fundadas. (...) Assim, quanto mais as páginas se multiplicam no estudo da Terra,
mais se percebe que elas são folhas do mesmo livro. Eu acrescentaria que, desse
ponto de vista, toda uma ordem de relações novas se abre ao espírito.25
Embora Vidal de La Blache não endossasse abertamente esta progressão objetiva dos
conteúdos geográficos como contrapartida e expressão da própria autoprodução humana (sua
narrativa é qualificada por vezes como descritiva pela leitura desatenta de seus textos), esta
conotação estava, em última análise, incluída implicitamente em seus postulados.
25
Vidal de La Blache, op. cit., p. 146.
Max Sorre (2003, p. 142) admitia que o geógrafo deve sempre manter um “critério de
disponibilidade”. Em face da contingência humana, recomendava ao mesmo tempo não
subestimar a pressão do meio, “porque junto ao campo de possibilidades encontram-se
também as parcelas veladas”.26
Ora, não é exatamente este o ponto em que estamos
insistindo? Ecologia, complexidade, interdisciplinaridade, sociabilidade são algumas dos
variados temas empregados por Sorre para entrever a unidade geográfica e até mesmo a
unidade humana, antecipando alguns debates que aguardariam por, pelo menos, meio século
para se consolidarem como consenso intersubjetivo, embora ainda deixem a desejar se
comparados à prolixa narrativa de Sorre. A ideia de ecologia em Sorre, por exemplo, agrega
um sentido mais amplo do que se convencionou atribuir à dinâmica dos ciclos naturais no
discurso ecológico atual, pois compreende mesmo uma “antropologia somática” que congrega
atributos humanos, físicos e biológicos numa trama de complexos geográficos em que o
homem não se limita a um mero “fator antrópico”.
Carl Sauer é, a exemplo de Max Sorre, outro autor clássico da geografia que tomaria
partido de questões ecológicas bastante avançadas para o seu tempo. Em um estudo intitulado
The Agency of Man on the Earth, Sauer conclui que “o homem necessita de uma ética e uma
estética que possibilitem que as gerações do presente possam legar as do futuro uma terra
habitável” (CORRÊA, 2001, p. 18). O geógrafo norte-americano anteciparia assim o conteúdo
de uma noção ecológica que somente algumas décadas mais tarde se apresentaria na forma
conceitual do “desenvolvimento sustentável”.27
Tendo um apurado discernimento acerca dos
aspectos contingentes dos fenômenos geográficos, Sauer28
considerava que
o que quer que seja místico é uma abominação. Entretanto, é significativo que
existam outros, e entre eles alguns dos melhores que acreditam que, tendo
amplamente observado e catalogado de forma diligente, ainda existe uma qualidade
para ser compreendida em um plano mais elevado que não pode ser reduzido a um
processo formal.
Certamente Sauer reconheceria Hettner dentre alguns dos “melhores” de que faz
menção. O geógrafo alemão considerava que “a geografia grava os fatos individuais não
apenas no momento em que reconhece sua condicionalidade geográfica, mas (...) facilmente
pode acontecer que ela deva mencionar fatos cujas conexões causais ainda lhe são
26
ibid. 27
O conceito de desenvolvimento sustentável foi inicialmente formulado em 1987 por ocasião da elaboração do
Relatório Brundtland (intitulado Nosso Futuro Comum) pela então Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, criada em 1983 no âmbito da Organização das Nações Unidas. 28
Sauer, op. cit., p. 61.
obscuras”.29
Esse caráter sobejo dos conteúdos da realidade geográfica também remonta a
uma preocupação de Hartshorne30
em identificar “a medida de significância em geografia”, o
que o levara a admitir ser “impossível estudar o conjunto total de fenômenos significantes da
geografia de uma área”.31
De acordo com o geógrafo norte-americano, “a geografia não pode
apresentar todos os fatos de uma área, do mesmo modo que a história não pode registrar tudo
que houver ocorrido”.32
O autor afirmava com grande convicção que “um grande número de
fenômenos que são importantes para o homem nunca serão cabalmente explicados em termos
de causas antecedentes, porque certos fatores essenciais inevitavelmente escapam ao nosso
conhecimento”.33
Levantar a variação dos fenômenos numa mesma área, comparando-os entre
si para, por fim, também comparar áreas entre si segundo algumas categorias de fenômenos
similares e/ou mesmo diferentes, como propõe Hartshorne, não é a mesma coisa que entrever
o desvelamento de novos conteúdos desses fenômenos ou mesmo de algum novo fenômeno.
Não obstante, esta possibilidade só pode ser aventada a partir dos fenômenos já situados,
herdados pela produção social passada. Com efeito, o cotejamento das diversas características
dos fenômenos de uma mesma parcela do espaço desperta, mais cedo ou mais tarde, a atenção
para um ou outro conteúdo até então não considerado à guisa de objetivação dos fenômenos.
Obviamente, esta propriedade de antecipar (ou pelo menos ter em conta) alguns
conteúdos informes do espaço não é privativa dos clássicos. Não faltariam geógrafos de nossa
geração que deram importantes contribuições neste sentido. Doreen Massey (2008, p. 144),
por exemplo, partilha a ideia de que “o espaço nunca pode ser definitivamente purificado. Se
o espaço é a esfera da multiplicidade, o produto das relações sociais, e essas relações são
práticas materiais efetivas, e sempre em processo, então o espaço não pode ser fechado,
sempre haverá resultados não previstos, relações além, elementos potenciais de acaso”. Para a
referida autora,
o espaço jamais poderá ser uma simultaneidade completa, na qual todas as
interconexões já tenham sido estabelecidas e no qual todos os lugares já estão
ligados a todos os outros. Um espaço, então, que não é nem um recipiente para
identidades sempre já constituídas nem um holismo completamente fechado. É um
espaço de resultados imprevisíveis e de ligações ausentes. Para que o futuro seja
aberto, o espaço também deve sê-lo.34
29
Hettner, op. cit., p. 149. 30
Hartshorne, op. cit., p. 39. 31
ibid., p. 128. 32
ibid., p. 41. 33
ibid., p. 165. 34
ibid., p. 32.
Parece evidente que essa agregação de significados aos fenômenos geográficos e até
mesmo o desvelamento de novos fenômenos, seja lá qual o meio que se utilize para apreendê-
los, varia em função do tempo, na medida em que esta progressão é, de certa maneira,
condicionada por um processo de objetivação do real sempre crescente. Mas não se trata de
um processo cumulativo no seu todo, em muitos casos os avanços ocorrem a partir de radicais
rupturas. Uma vez identificados os conteúdos implícitos aos fenômenos, dado esse
concernente à própria experiência e não a uma elucubração meramente abstrata, eles passam a
nos colocar novos problemas e desafios, permitindo inferir uma nova teoria capaz de
representar, porém sem jamais esgotar, a essência objetiva do real geográfico.
Embora pudéssemos continuar arrolando uma série de outros depoimentos acerca dos
conteúdos informes do espaço na visão dos mais importantes geógrafos tanto do passado
quanto do presente, cumpre discernir que na maior parte dos casos essa identificação não era
mais que tangenciada, muitas vezes intuitivamente reforçada. Comprova-o a evidência de que
seus respectivos objetos de estudo, por mais variados que fossem, atenuavam, por fim, as
potencialidades objetivas do espaço, e não poderia ser diferente: Vidal de La Blache e Sauer
são exemplos paradigmáticos quanto a esta observação, mas de modo algum seriam os únicos.
Estes aspectos contingentes aparecem aqui e alhures nas obras desses autores, muitas vezes de
forma velada e sem ganhar destaque no interior de suas démarches. Ao destacarmos o núcleo
conceitual de seus postulados não encontramos tais conteúdos senão a partir de uma leitura
seletiva acerca dos aspectos retóricos muitas vezes decorativos e aparentemente irrelevantes
que orbitam em torno de suas teses centrais. Esta observação, obviamente, não lhes inflige
qualquer demérito. Foucault (2008, p. 50) escreve que “não é fácil dizer alguma coisa nova;
não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se
iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade”.35
Por isso, o desvelamento
objetivo de novos conteúdos é um acontecimento extraordinário na ordem do saber – por
vários motivos, mas principalmente por explicitar o caráter criativo do homem, sua qualidade
de sujeito.
Poucos geógrafos tiveram a real compreensão desta extensão ao vir-a-ser geográfico (a
uma consignação objetiva, se preferir) por meio do desvelamento dos conteúdos informes do
35
Parecendo concordar com o filósofo francês, Feyerabend (2007, p. 264) escreve que “esclarecer os termos de
uma discussão não significa estudar as propriedades adicionais e ainda desconhecidas do domínio em questão
das quais se precisa para torná-lo inteiramente compreendido, mas significa preenchê-los com noções existentes
tiradas do domínio inteiramente distinto da lógica e do senso comum, preferivelmente ideias observacionais, até
que eles próprios aparentem ser comuns (...). Ora, construir uma nova visão de mundo e uma linguagem nova
correspondente é um processo que toma tempo, tanto na ciência quanto na metaciência”.
espaço enquanto expressão das qualidades criativas do homem quanto Armando Corrêa da
Silva (2000, p. 13, 14). Vejamos:
o espaço transpassa o objeto, o envolve, apresenta-se como campo de forças e é
inerente a ele, que o transporta consigo, modalidades de especialidade de que o
espaço em geral é ainda fenômeno desconhecido da ciência, em que pese a ilusão
promovida pela gravitação. (...) O devir passa por ter a si mesmo como sujeito, como
complemento da liberdade social. Isso significa dominar o pensado e o dado;
significa libertar-se das determinações – como esforço mais do que de simples
abstração – e, ainda, propor-se o além da sobredeterminação, instante em que o
metafísico ganha sentido. Porque apreender o metafísico é alcançar a humanização
de si mesmo, sem o que o ser continua exterior ao sujeito.
Tomemos um exemplo para melhor ilustrar o que Silva pretende dizer com “apreender o
metafísico é alcançar a humanização de si mesmo”. O conteúdo geográfico expresso nos
fluxos das redes globais multifacetadas só recentemente (há mais ou menos quatro décadas)
tomou uma forma objetiva, com ela reestruturando-se gradativamente todo o arcabouço
teórico-conceitual da geografia. Praticamente todos os conceitos operativos em geografia
foram reorientados em função da transversalidade de uma correlação de forças atuando em
escala global e dos fluxos de vetores externos que tendem a subordinar os fenômenos e atores
enredados nas escalas de menor vulto, notadamente a local, a escala de impacto das ações
(SANTOS, 1996, p. 121).
Uma primeira avaliação se precipitou em anunciar a região como um “conceito-
obstáculo”, reivindicando, com o seu aparente recuo, a falência do projeto unitário em
geografia;36
em decretar a emergência de epifenômenos como o “não-lugar” enquanto um
espaço sem identidade singular ou algum tipo de relação, senão solidão e similitude (AUGÉ,
1994, p. 22); em reclamar a degeneração do território mediante a abertura de fronteiras aos
fluxos de informação, capital, trabalho e finanças (CASTELLS, 1999, passim), trazendo a
reboque uma crise do território enquanto suporte de uma identidade política cidadã cada vez
mais franqueada a uma identidade étnica (BADIE, 1995, passim); em promulgar a “morte da
paisagem” (ROGER, 1991, p. 14), porquanto o perspectivismo, enquanto raiz da apropriação
objetiva da paisagem, estaria supostamente comprometido pela difusão de uma “cultura
única”; em alardear o “encolhimento” do mundo e do espaço mediante uma compressão
tempo-espaço, como recomenda Harvey (1989, p. 219); e até mesmo em sugerir substituir o
espaço pela ação na qualidade de objeto geográfico mediante um suposto “desencaixe” do
sujeito num contexto de modernidade tardia, como ocorreu que fosse a Werlen (2000, p. 15).
36
Lacoste, op. cit., pp. 59-66.
Todo um discurso se orienta, então, na tentativa de desconstruir as representações
concernentes às estruturas espaciais mais perenes, estáveis e passiveis de delimitações. As
mais variadas dimensões do espaço em suas propriedades zonal, localizacional e corológica
passam a ser o principal alvo dessa crítica.
Não demorou muito, porém, e este diagnóstico se mostrou inconsistente. A partir do
concurso das redes de fluxos globais o lugar, a região, o território e outros recortamentos
espaciais ganharam um novo dinamismo, passando a ser mobilizados a partir de complexas
relações que conciliam, ao tempo que confrontam, variáveis locais e internacionais. Uma nova
coerência regional agrega uma combinação de lógicas zonais e reticulares (redes ou fluxos),
remetendo à ideia de “rede regional” (HAESBAERT, 2010, p. 144), além de múltiplas
variáveis e vetores suscitando uma noção mais híbrida de espaço, ainda que, na maior parte
dos casos, a correlação de força suscitada ocorra de maneira dissimétrica em favor dos vetores
externos e em detrimento dos atores que atuam ao nível das escalas de impacto das ações. A
contrapelo de uma “espacialização pós-moderna” que reduz o espaço à mera distância,
tornando-o sujeito à aniquilação pelo tempo e pela velocidade dos fluxos, emerge uma
concepção de espaço que, no dizer de Massey (2008, p. 139, 141), é muito mais do que
distância, localização, confinamento, simbolismo..., ele “é a esfera das configurações de
resultados imprevisíveis, dentro de multiplicidades”. Ao invés do espaço geográfico se
esvanecer, como previam os prognósticos mais delirantes, ele ganha um novo alento, novos
recursos, em última análise, fortalece-se seu poder de determinação da reprodução social.
“Mobilidade e fixidez, fluir e assentar, um pressupõe o outro. (...) O ímpeto de movimento e
mobilidade, para um espaço de fluxos, só pode ser alcançado através da construção de
estabilizações (temporárias, provisórias). (...) Isto não é a aniquilação do espaço, mas uma
reorganização radical dos desafios que a espacialidade coloca”.37
Naturalmente, o horizonte objetivo nascido desses novos conteúdos do espaço vem
instituindo novas subjetividades e impondo novas posturas aos sujeitos, sobretudo aqueles
afeitos a uma vida regrada pelo arrabalde local e a uma economia de subsistência, obrigando-
os a abrir mão de suas inclinações provincianas para se tornarem cidadãos do mundo –
entenda-se por isto, não somente usufruir de direitos modernos, mas principalmente exercer
deveres (inclusive no plano moral) ao converterem-se em força produtiva ou reserva de
mercado numa divisão do trabalho global. A ampliação da divisão do trabalho a uma escala
planetária faculta a que as variáveis e vetores que incidem sobre o sujeito, seja o indivíduo
37
ibid., p. 144.
seja o grupo na qualidade de classes sociais ou gêneros de vida de regime comunitário, como
dão testemunho muitas comunidades camponesas e indígenas, tenham implicações, tanto em
termos práticos quanto no plano tético da consciência, num complexo de determinações
geográficas que varia das implicações locais às globais. Isto torna a realidade geográfica
muito mais complexa do que quando, num passado não muito distante, as variáveis
limitavam-se à escala local ou quando muito à nacional, sem que, contudo, houvesse uma
articulação explícita entre as mesmas. O que constava apenas como uma virtualidade, uma
“metafísica” no dizer de Armando Corrêa da Silva, como mencionado acima, converte-se
numa condição geográfica da própria reprodução social, evitando-se assim em parte que “o
ser continue exterior ao sujeito”.
Considerações finais
A geografia é um campo de apreensão dos fenômenos do real que, por mais que nos
inclinemos a circunscrevê-los e delimitá-los, submetendo-os a leis, normas e doutrinas, por
mais que nos esforcemos em abarcar o seu potencial objetivo, ainda que se eleve seu
significado a uma valoração universal e apodítica, não somos capazes de esgotá-los, pois o
espaço, seu objeto mais expressivo, secreta uma gama variável de conteúdos e sentidos acerca
dos quais não é possível nos assenhorar. A constatação de que a geografia ocupa-se tanto de
aspectos ou fenômenos gerais quanto de acontecimentos particulares, reiterando sempre que
possível a tradição nomotética e idiográfica fundante de sua institucionalização como ciência,
conduz a um friccionamento constante e involuntário, por parte do pesquisador, condicionado
pelas propriedades diacríticas e contingentes do espaço. A alusão à contingência e ao fortuito
não significa aceitar que as determinações histórico-sociais da produção do espaço seriam
abreviadas por (uma) ordem do acaso, pois todo acaso e contingência supõem riscos e
esperança de êxito, elementos históricos fundamentais. Esta contingência é fonte de uma
irresoluta implicação do sujeito nos fenômenos geográficos.
O fato é que a objetivação dos conteúdos espaciais compreende, ainda que de modo
indireto e não muito evidente, alguns conteúdos informes do espaço, como demonstram
alguns dos mais influentes autores da literatura geográfica. A consequente atribuição de
formas objetivas a esses conteúdos até então indeterminados nos fornece um importante
indicativo do sujeito em geografia. O progressivo preenchimento dessas lacunas
protofenomenais implicaria assim na efetiva reprodução do conhecimento e até mesmo do
fazer geográfico. Arriscamos dizer, inclusive, que não há um texto de geografia sequer que
não traga em seus postulados, ainda que involuntariamente por parte de seus autores, margem
para se depreender reapropriações objetivas de novos conteúdos do espaço e, por conseguinte,
brechas para aludir a implicação do sujeito neste desvelamento.38
Mesmo um estudo de caso,
qualquer que seja o objeto em apreço, é um convite a transpor os limites deliberadamente
impostos pelo autor. Não porque os geógrafos tenham algum tipo de clarividência ou que os
sujeitos enredados nessas aberturas sejam determinantes das mesmas, mas, antes, porque sua
referência maior, o espaço, é a condição histórico-material (e não uma condição a priori) sem
a qual não haveria sequer um sentido.
Desembaraçando-se parcialmente da inclinação objetivista que o instituiu, o método
regional, 39 de certa forma, autoriza a aludida concessão ao sujeito na atual conjuntura teórico-
metodológica geográfica, de vez que reordena um conjunto de forças, sentidos e afetos que se
manifesta numa implicação mediadora em relação ao todo de possibilidades geográficas (sem
a qual se inviabilizaria seu caráter analítico e mesmo sua atualidade) no interior do qual reside
o desvelamento dos aspectos criativos do homem. O caráter tópico e descritivo do método
regional o confirma como estudo idiográfico, herança de nossa tradição corológica. Porém, a
necessidade de aplicá-lo a alguns fenômenos, cuja compreensão ultrapassa a escala
meramente perceptiva e descritiva, supõe expedientes nomotéticos de generalização, e aqui
também a corologia assumiria um papel salutar.
A própria indefinição de um consenso conceitual acerca do objeto geográfico, ainda que
o identifiquemos taxonomicamente como “espaço geográfico” (sem, contudo, reduzi-lo a uma
forma objetiva definitiva), aponta para um indício de compreensão do sujeito, de vez que
concorre para uma multiplicidade de apropriações objetivas. Ora, ser “menos capaz do que
outros domínios de elaborar e empregar leis científicas”, como parece lamentar Hartshorne,40
não é bem um demérito quando o cientificismo passa a ser o principal alvo de crítica num
contexto de revalorização do conhecimento. O teor proteiforme e contingente do espaço exige
que os geógrafos problematizem também estudos de caso individuais; característica essa
assentada na própria fundamentação da geografia como campo de conhecimento moderno,
sobretudo a partir da individualidade regional ritteriana. Mas também pelo fato da paisagem,
domínio sensível-conceitual no seio do qual se inicia e se encerra toda investigação
geográfica, preservar, como atesta Sorre (2003, p. 137), “sua individualidade dado uma
aparente permanência à escala de nossa observação”.
38
À parte talvez os textos da tradição teorético-quantitativa, ainda assim, aqueles que impuseram de modo
arbitrário suas formulações matemático-estatísticas a despeito da manifestação real do fenômeno então
investigado. 39
Sobre a atualidade do conceito de região, cf. Haesbaert (2010). 40
Hartshorne, op. cit., p. 180.
O problema deste último tipo de abordagem estaria, porém, em negligenciar os
horizontes discursivos e analíticos que delineiam e explicitam as contradições estruturais (ou
melhor, totalizadoras) da sociedade e com isso se furtar dos aspectos particulares e
mediadores da produção social e do conhecimento. Não é raro que a avidez por reforçar os
aspectos específicos e episódicos dos fenômenos sob o pretexto de privilegiar a diversidade e
a diferença, atitude esta de evidente cariz pós-moderno e culturalista, repercuta numa estreita
visão de conjunto.41
Com isso, negligencia-se igualmente que a multiplicidade e seus
correlatos, se tomados como entidades puras (e, portanto, menos como um meio do que um
fim), compõem apenas uma das etapas da dialética: a da negação da posição; e não uma
novidade subjetivada como pretensa resolução da contradição.42
Cumpre depreender que a
multiplicidade e a diferença são, antes de tudo, mediações em deferência ao todo de
possibilidades da realidade objetiva, e não um fim em si mesmas. Não se trata, portanto, de
substituir a unidade objetiva por seu oposto espetacular, seja a diferença seja a multiplicidade,
mas de depreendê-las a título de um sentido renovado que deriva do friccionamento dessas
mesmas variáveis.
Sob essa forma de mediação que alinhava o particular e o todo, a geografia é forçada a
reconhecer o movimento, a temporalidade e, por conseguinte, o “homem”, porém, menos
como um fator geral (objetivado) do que como portador de atributos específicos e
mediadores: sua qualidade de sujeito enquanto agente criativo e transformador é somente uma
de suas possibilidades. O sujeito se mostra, assim, tanto mais presente e ativo (sem ser
reduzido a um construto objetivo) quanto mais se evidencia o desvelamento do conteúdo
invisível numa forma objetivada mediante o friccionamento dos aspectos particulares da
realidade geográfica e o todo, tal como a hermenêutica e a atitude romântica dos primeiros
geógrafos modernos a empreendiam. Por isso, reconhecer um sujeito implicado no edifício de
objetivação geográfica é uma tarefa um tanto quanto ingrata, já que ao compreendê-lo ele de
imediato se esvai, restando senão sua forma lógico-objetiva, e não o quale de sentido que lhe
caracterizaria como uma qualidade criativa. Este é o grande mistério do sujeito, seu caráter
indiscernível e informe: afirmar o sujeito é também de alguma maneira negá-lo.
41
“A ampla adesão às ideias pós-modernas e pós-estruturalistas que celebram o particular em detrimento do
pensamento mais amplo não ajuda. Certamente, o local e o particular são de vital importância, e teorias que não
aceitem, por exemplo, a diferença geográfica são inúteis (...). Mas quando este fato é usado para excluir qualquer
coisa maior do que políticas paroquiais, então a traição dos intelectuais e a renovação do seu papel tradicional
tornam-se completas” (HARVEY, 2011, p. 193). 42
“Seria fácil retrucar aqui que essa abertura e essa relativização multiculturais cartesianas da própria posição
são apenas o primeiro passo, a renúncia de opiniões herdadas: (...) Essa falta cartesiana de um lar não seria
apenas um passo estratégico? Não estaríamos tratando aqui da „negação da negação‟ hegeliana?”, indaga-se
Žižek (op. cit., p. 21).
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