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O SUJEITO CONSTITUÍDO PELA ALTERIDADE CORPÓREA ENSAIO FENOMENOLÓGICO-ÉTICO PELIZZOLI, Marcelo L. 1 [email protected] 1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Prof. do Mestrado em Saúde Coletiva e Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Espaço de Diálogo e Reparação da UFPE. Prof. do Curso de Psicologia e de Enfermagem. www.curadores.com.br 1

O Sujeito Constituido Pela Alteridade Corpórea

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This work explores our understanding of subjectivity through the philosophical tradition of existential alterity, seeking concrete understanding in ideas of sensitivity and corporeality. Using a phenomenological approach, this essay sets out a theoretical review on the ethical subject, whilst also promoting innovative aspects in ethical competence and practice, inspired by the philosophy of alterity and with regard to therapeutic intervention. Crucially, we argue for the consideration of the emotional - body dimension as a central tenet to ethical guidelines and practice

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  • O SUJEITO CONSTITUDO PELA ALTERIDADE CORPREAENSAIO FENOMENOLGICO-TICO

    PELIZZOLI, Marcelo L.1

    [email protected]

    1 PhD. Ps-doutor em Biotica. Prof. do Mestrado em Sade Coletiva e Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Espao de Dilogo e Reparao da UFPE. Prof. do Curso de Psicologia e de Enfermagem. www.curadores.com.br

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  • Resumo

    Trata-se de defender o ponto de vista de compreenso da subjetividade a partir daalteridade existencial, buscando seu entendimento concreto na sensibilidade/corporeidade. Emtermos metodolgicos um ensaio fenomenolgico com elementos de reviso terica visandoa fundamentao da questo do sujeito tico. Busca-se aspectos inovadores para promover atica como competncia tica e prtica inspirada na filosofia da alteridade e voltadaposteriormente para a dimenso teraputica. Como questo ltima temos a pergunta sobre anecessidade da considerao da dimenso emocional-corporal como central para a tica.

    Palavras-chave: Sujeito, Alteridade, Corporeidade, tica, Fenomenologia

    The Subject as made up by the corporeal alterity

    A Phenomenological- ethical essay

    Abstract

    This work explores our understanding of subjectivity through the philosophical tradition ofexistential alterity, seeking concrete understanding in ideas of sensitivity and corporeality.Using a phenomenological approach, this essay sets out a theoretical review on the ethicalsubject, whilst also promoting innovative aspects in ethical competence and practice, inspiredby the philosophy of alterity and with regard to therapeutic intervention. Crucially, we arguefor the consideration of the emotional - body dimension as a central tenet to ethical guidelinesand practice.

    Keywords: Subject, Alterity, Embodiment, Ethics, Phenomenology

    1. Notas introdutrias

    Este artigo, alm de defender o ponto de vista de compreenso da subjetividade a

    partir da alteridade, como sensibilidade/corporeidade, compe metodologicamente um ensaio

    fenomenolgico com elementos de reviso terica visando aspectos de fundamentao da

    questo do sujeito tico. Traz aspectos inovadores na tentativa de instituir uma tica prtica

    ou uma competncia tica inspirada na filosofia da alteridade voltada posteriormente para a

    dimenso teraputica.

    O que se far aqui pressupe a discusso das filosofias da conscincia e sua crise, ou

    as teorias do sujeito, em especial o que se revela a partir dos significados elaborados por

    Levinas, recorrendo tambm a Merleau-Ponty e Heidegger, como crtica ao sujeito cartesiano

    2

  • - na noo do ego cogito sem inconsciente e sem corporeidade. Trataremos aqui do Soi mme

    comme un autre em termos da passagem do sujeito forte egolgico (moderno) ao sujeito

    atravessado pela alteridade, concebido a partir da responsabilidade de raiz - sua injuno

    existencial e tico-relacional2. O texto pressupe a possibilidade de fundamentar

    filosoficamente abordagens do sujeito relacional para o campo PSI. Portanto, ao mesmo

    tempo que apresentamos uma dimenso fenomenolgica arrojada, estaremos a apontar

    modelos do que concebemos como prticas que podem resgatar efetivamente o sujeito tico.

    A alavanca ser a da sensibilidade e corporeidade do sujeito falante/respondente.

    O foco do nosso tema o sujeito como identidade (ipseidade) atravessado pela

    alteridade, e as consequncias ticas disso. Torna-se indispensvel assim buscar a dimenso

    de uma tica de raiz, a partir de como o sujeito se concebe e se dispe no mundo da relao, a

    ponto de constituir-se como relao. Isto justifica o porqu do tema acoplado de uma tica

    prtica (fundada na sensibilidade) da qual no poderemos aprofundar aqui, somente ver a

    plausibilidade de traz-la como consequncia da noo de subjetividade defendida. Deste

    modo, responderemos s seguintes questes centrais: o que o cerne tico do sujeito?

    Igualmente, tal demanda (tica prtica) no exigiria um resgate da sensibilidade e

    corporeidade perdidas do sujeito? O que podemos propor de mais especfico e encarnado em

    prticas de sensibilidade, no mundo da vida, para efetivar um conceito de sujeito mais

    concreto?

    Que temas iniciais nos servem de guias? A referncia de fundo ao Sujeito como

    Subjetividade encarnada; o Outro como alteridade radical na corporeidade; o resgate da

    sensibilidade; os quais pressupem os limites dos constructos da Razo identitria. Deve estar

    presente de igual modo a questo do contexto de crise de sentido (humanismo) do sculo XX;

    contexto de instabilidade e transformao epistemolgica, paradigmtica, cultural,

    civilizacional como teorizar depois de Auschwitz? - em que uma imponderabilidade ou

    vulnerabilidade radical humana emerge, sendo que o prprio sentido do Saber no permanece

    inclume.

    Na tradio moderna do pensamento do Sujeito ocidental, seu sentido maior

    remete identidade do Eu, o Eu como Mesmo; por sua vez, isso expe o carter ttico,

    positivo e controlvel da Razo, o aparato da conscincia do ego. Essa identidade uma

    verdade intransponvel de nosso pensamento ocidental3; da que, mesmo percebendo os

    desafios ou estgios e mudanas pelos quais passa, no se altera em geral a identidade do Eu.2 Sobre o si mesmo como outro, alm de Levinas (1974 e 1991), ver Ricoeur (2002).3 Levinas (1988), p.187; e Levinas (1998), p. 150.

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  • preciso, contudo, ir alm deste Mesmo; mas, como ir ?

    Para ser efetiva, a tentativa de ir alm das bases fundamentais da conscincia e do

    sujeito racional deve escavar experincias e dimenses humanas diacrnicas alm do

    tempo crono-lgico, abertas na relao de alteridade e apontando para um outro sentido

    compreendido de modo relacional (tico). Por outro lado, isso deve ser referido s nossas

    relaes dirias, ao nosso mundo, nossa corporeidade como muito mais que corpo objeto

    fsico isolado, mas como conjunto de relaes, contatos, dimenses energticas. Por

    conseguinte, propomos que se leve em considerao, neste mtodo, elementos (prticas)

    inovadoras que apontaremos ao final deste texto, em vista da tica prtica a que isso demanda.

    Qual o sentido humano, depois das rupturas do sculo XX, das violaes e da

    morte do sujeito e da crise da metafsica/filosofia? Como oferecer uma via tica com

    sentido e eficaz, para alm do moralismo? Em nosso caso pontual isso defendido a partir das

    implicaes da noo de sensibilidade e corporalidade do Si mesmo.

    2. A Substituio e a Responsabilidade como bases do Sujeito e seu Enigma

    2.1 O sujeito como Enigma

    Levado s ltimas reflexes, a questo do sujeito remete ao enigma. Do que se

    trata? Como o pensamento pode definir um sujeito que mais que pensamento? O que uma

    definio nos d ou ao mesmo tempo oculta? O conceito de enigma parece ser muito til para

    romper e abrir vises que cerram o sujeito em conceitos claros e distintos, em racionalizaes

    protetoras ou em um ponto fulcral que amarra todas as experincias da conscincia,

    cognitivo-lingusticas em especial. O que se constata, resumindo criticamente, que se

    desenvolveu uma histria progressiva do indivduo (ego) apoiada na crescente conjuno

    entre Saber (razo) e Sujeito, e que alcana seu auge na modernidade positivista. O sujeito, de

    algum modo, toma o lugar de Deus como base fundamentadora ltima do real, do sentido e da

    justificao ltima da vida. No sujeito racional, a realidade como objeto se d, se entrega;

    o objeto e o prprio sujeito comeam a ser pensados como transparentes Razo. Ele apoia-se

    seja como cogito (ego cogito ego conquiro), seja no progresso do esprito ou da cincia; e

    em termos sociais, como poder, como conquista do estranho, ou conquista de povos e da

    natureza selvagem. Interpor o conceito de enigma colocar esta postura em questionamentos

    mais radicais, como o que se faz em torno da alteridade que habita o corao deste sujeito,

    4

  • seja por meio do tempo, da angstia e do Nada, seja pela carne, por outrem, ou pelo

    inconsciente.

    O Enigma da subjetividade manifesta os limites de toda manifestao ou

    representao, que no se coaduna aos fenmenos mensurveis, de modo que a resposta sua

    demanda, antes de tudo, sempre vivencial-relacional, experimentada na alteridade4. Isto

    assemelha-se ao sujeito da falta, de Lacan, o qual, contudo, esvazia o sujeito tanto de cogito

    quanto de corporeidade. Por conseguinte, defendemos a necessidade de levar a negatividade

    do sujeito da falta ou da angstia e do Nada para o sujeito da alteridade, corporal-relacional,

    numa demanda tico-prtica. O ponto de impasse filosfico que surge diante desta viso :

    precisamos nomear o sujeito do enigma, falar dele, e dizer suas consequncias, o que j

    alteraria a alteridade do enigma. Retenhamos isto e sigamos, circunscrevendo a subjetividade

    pelo fenmeno do atravessamento da alteridade.

    2.2- Substituio e Responsabilidade como hipokeimenon (base) do Sujeito

    Substituio e Responsabilidade so, para ns, os dois conceitos bsicos da

    circunscrio da subjetividade, inspirados em Levinas. Porque neles podemos acoplar a

    dimenso do tempo radical no cronolgico, do Outro no Mesmo, da corporeidade indelvel,

    e da dimenso de dilogo como sentido ltimo da linguagem (como aponta tambm Gadamer)

    - o sujeito atravessado pelo discurso e pelo falar desde algum e a algum.

    De antemo, cabe dizer que responsabilidade, aqui, remete disposiorespondente da prpria subjetividade enquanto ela no restrita prpria identidade do ego;

    no seu para si ela j para outrem. Alm do mais, falar constitui o (inter)humano, o que

    inclui o ser falado ou seja, atravessado pela linguagem que o faz falar dentro de uma rede de

    significantes e significados. O fundamento, pensamos, que o sentido da linguagem tem a ver

    com o mais primevo dizer a outrem, avisar outrem do perigo, responder por seu prprio

    lugar ao Sol que disputa com outros, responder por seu lugar na famlia e na humanidade:

    trata-se a de responder dentro de um corpo social. O sujeito no apenas ou no responsvel,

    mas carateriza-se como respondente, falante, ouvinte, alm de atuante e produtor de efeitos

    sobre si e sobre os outros.5

    Por conseguinte, cabe compreender que responsabilidade no decorre apenas do

    4 Sobre a ideia de Enigma, ver Levinas (1988), p. 207-217.5 Cf. Levinas (1991), cap. 1.

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  • ser de linguagem como meio abstrato, mas do ser encarnado, do ser corpo, ser tempo, ser

    outros, ser emoes, ser conflitos, ser corpo social.

    Que o sujeito seja substitudo no fundo em sua subjetividade, no algo difcil decompreender depois do existencialismo e da psicanlise, alm do estruturalismo e dos estudos

    antropolgicos e tnicos contemporneos. Em linhas gerais, o sujeito desejante est sob o

    signo da falta, de uma dinmica e movimento maior que o precede, seja qual for o termo para

    indicar uma dinmica no fixvel em termos de espao e tempo identitrios. O sujeito

    caminha no mundo com a marca da busca, da incompletude, ao mesmo tempo que visando

    seu crescimento e realizaes. Mas ele tenta sempre retornar, alcanar o paraso perdido,

    completar-se. E por que o faz? Para Reich (2003) porque de algum modo j estivemos no

    paraso, vivendo uma vida livre com fluxo energtico equilibrado antes do modelo

    civilizatrio neoltico. Para Levinas (1974), justamente porque no assentamos nunca na

    identidade, somos desejantes da alteridade.

    Entendemos que tal incompletude no seria uma instncia mental apenas, nem

    somente uma instncia de falta estruturada pelo inconsciente como linguagem, mas algo que

    se constitui na prpria dinmica do sujeito como mundo, mundo do Desejo, do corpo, da

    emoo, bioenergia, enfim das relaes. Estamos, na interioridade, substitudos desde sempre,

    tanto que somos capazes de assumir uma srie de personalidades diferentes, de modos de ser,

    de estados mentais, de formas de sexualidade, de psicoses, de morrer por outrem, seja na

    paixo, seja na compaixo ou sacrifcio de si. A subjetividade em seu ser desfaz a essncia

    em se substituindo a outrem.6 Tecnicamente, isto envolve a noo de Tempo. Minha

    responsabilidade para outrem inclui esta relao ao passado que eu no posso representar.

    Responder da liberdade de outrem ser inscrito em um antes, tempo irrepresentvel...7

    O sujeito substitudo em sua intimidade, um sujeito no apenas jogado mas

    peregrino no mundo, que gravita entre pr-se como identidade e dispor-se enquanto

    respondente socialidade de raiz, dimenso relacional e sensibilidade que o funda - em

    seu hipokeimenon. Ele se assenta como sub-jectum (posto por baixo) numa relao sempre em

    movimento, como o Desejo do Outro, o que deve ser considerado concretamente como funo

    da sensibilidade/corporeidade8. O sujeito (ego) porta uma condio de refm desta alteridade

    radical. Ele suporta ou padece a marca de carregar no apenas o peso do ser e da angstia e do

    tempo em movimento, como aponta Heidegger (1977), mas de carregar a alteridade, sendo

    6 Levinas (1974), 16.7 Bailhache, 218.8 Ver Levinas (1974), 150 e Pelizzoli, 1992.

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  • respondente desde ela ao mundo, a outrem, antes de qualquer escolha moral propriamente

    dita. Como se pode perceber, defendemos aqui que a noo de Desejo encontra seu

    fundamento ltimo no apenas no ser atravessado como inconsciente pela linguagem, como

    quer Lacan (1966), mas pela corporeidade, como quer Merleau-Ponty (1999), Levinas (1971)

    ou mesmo Reich (1998).

    Na substituio, no se trata que eu tome o lugar de outrem ou sua

    responsabilidade. Trata-se, antes, de uma condio de ex-sistencia, ou diaconia como quer

    Levinas (1974) inscrita em meio ao estar na identidade e expulsa dela. neste vis que se

    deve perceber que o sujeito desde sempre corporeidade, como resposta a outrem, e que

    junto a isto perfaz um corpo social; e a pode-se coloca a tica. Em cada momento, momento

    nico, momento de deciso, sou posto em causa; o que a revm a verdade existencial

    dentro das relaes interpessoais - em que o sujeito vai se chocar ou se coadunar e assim

    constituir (seu) mundo ser-com-os-outros.

    Pela viso do sujeito como razo, vontade e liberdade do ego, o eu se hipostasia

    ou se subjetiva na pretensa firmeza da identidade, na stase do Mesmo, no seu papel e na sua

    nomeao - na sua autonomia. Por outro lado, no mbito do carregar o pathos, dimenso

    sensvel-afetiva, outrem no mesmo, o si mesmo v-se no entrecruzamento de uma estranha

    subjetivao, na distase da identidade, em meio alteridade. Ele tecido como movimento-

    mudana, respirao, defasagem contnua no tempo; no desinflar-se de ser, expor-se e esvair-

    se por..., su-portar outrem, suportar envelhecimento, sensaes. O sujeito, como

    subjetividade/corporeidade, a base que suporta a existncia, carrega-a, na alegria e na dor,

    na exaltao da vida e na alteridade absoluta da morte. Sua unicidade, sua ipseidade, no lhe

    pertence sob controle, mas revela uma procura e luta, demonstrada nos conflitos do sujeito

    consigo mesmo, no Desejo intransitivo, infinito e sem objeto, no estado de refm, no mal estar

    relacional, no dizer (de si) sempre para fora de si - ex-sistncia. O revelador movimento da

    respirao pode ser lembrado aqui, concretamente, alm de ser uma metfora do sujeito que

    toma o mundo, e neste ato tomado por ele, e exala, entrega, d de si ao mundo. A respirao

    revela um movimento de identidade e alteridade sendo que, praticamente, qualquer emoo

    altera esta relao, este (des)equilibrado movimento.

    Eis assim o sujeito respondente e perpassado pela alteridade (substitudo). O que

    deve ficar mais concreto agora seu carter de sensibilidade.

    3 A Sensibilidade como efetivao do Si mesmo como outro - aprofundamento do

    7

  • Desejo do OutroVulnerabilidade, exposio ferida -

    passividade mais passiva que toda pacincia, passividadedo acusativo, traumatismo..., colocao em causa daidentidade se substituindo aos outros: Si - defeco oudesfeita da identidade do Eu. Eis, levada ao fim, asensibilidade. (Levinas - Autrement qutre, p. 18)

    Se entendemos o sujeito perpassado pelo Enigma da alteridade, pela marca ou

    vestgio de alteridade indelvel, irrecupervel e incompleto, cabe enfatizar o aspecto de

    sensibilidade e corporeidade que a pertinente. O sujeito corpo como carne viva, mais que

    objeto ou fenmeno dado, como demonstrou Merleau-Ponty (1999). Concretamente, o que

    isto revela? O registro do Desejo, do sentir, compadecimento, afeco, dor, gozo, movimentos

    centrfugos para fora do sujeito controlador (ego). A intencionalidade conscincia

    conscincia de.... (constituda como objetos) - uma das caractersticas fortes da conscincia

    ativa nas teorias do sujeito modernas, e isto vai influenciar boa parte da Psicologia que vem

    depois, como em seus aspectos cognitivos. Mas, se formos falar aqui em termos de

    intencionalidade em oposio nfase no carter teortico ou na vida mental (Bios

    theoretikos, como dizia Husserl (1969), apontamos para uma intencionalidade encarnada,

    nos termos de Merleau-Ponty (1999) em sua noo de corpo e de carne.

    O sculo XX filosfico, tanto quanto cultural, o momento de resgate da

    dimenso corporal humana, diante de uma tradio do corpo como carne pecaminosa, ligado a

    dimenses de pudor e culpabilidade, como carcaa da alma, como sexualidade e instinto que

    se ope Razo e ao Esprito9. Como d a entender Merleau-Ponty10, a filosofia ocidental

    compe em geral um pensamento de sobrevo; ela paira sobre a realidade substancial e

    corporal e no consegue descer, devido a um idealismo ou racionalismo de base. Ou, como

    diz Levinas na introduo de Totalit et Inifini (1971), ela contm em sua mentalidade uma

    alergia alteridade. Um dos temas fundamentais no bojo das mudanas filosficas

    paradigmticas do sculo XX, junto com a questo do Tempo, da Alteridade, da Linguagem,

    a do Corpo. Portanto, se assim o , trata-se de operar a partir de registros humanos mais

    complexos ao mesmo tempo que integrados, pois no se requer apenas adotar novos conceitos

    e informaes, mas um paradigma que pressupe uma mente corprea; deste modo, pode-se

    corporalizar a tica, como defendemos, no que chamamos de grandes figuras da alteridade 11.

    9 Sobre isto ver Histria do Corpo, de Corbin, Vigarello & Courtine, Ed. Vozes.10 Ver a Introduo de Fenomenologia da Percepo (1999).11 Ver Pelizzoli (2002 e 2010). Este ltimo ponto pode ser cotejado com a obra Mente Corprea, de Varela,

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  • Pressupomos aqui que a subjetividade deve ser entendida sobremaneira a partir do

    sofrimento humano, da experincia de ser como peso de ser e de se enfrentar com a alteridade

    das coisas, das pessoas, e fundamentalmente de si mesmo. Se o sofrimento e a busca da

    felicidade todo homem busca a felicidade e quer escapar do sofrimento, como diziam j

    Aristteles (tica a Nicmaco) e Sidarta Gautama (Tripitaka) so determinantes, as teorias

    do sujeito devem pressupor este princpio motivador, um sentido maior, uma Filosofia

    Primeira. Para a tica da alteridade, inspirada em Levinas em especial, outro nome desta

    subjetividade exposio, um eis-me aqui, exposto na relao, e que implica uma

    alterao. Revela a necessidade de assumir a abertura do Eu, em seu psiquismo e

    interioridade, e administrar a condio abismal de si mesmo, ser de Desejo, realizando-se

    ao gastar-se a partir da responsabilidade e substituio - pontos-chave para qualquer

    fundamentao da tica.

    Podemos tomar este psiquismo como estremecimento do prprio ser (ex-

    sistncia), defasagem inslita, quando toma conscincia de seu peso de ser e como voltado

    desde sempre para outrem; o que da se infere a marca criatural (no mais a alma, mas a

    corporeidade como alma: anima, animada, animal) - o psiquismo responde desde a alteridade

    da carne - sensibilidade12. por isto que necessrio apontar possibilidades concretas de

    operar com o fato da sensibilidade, ou uma tica (prtica) pautada na sensibilidade, na

    dimenso do sujeito do desejo - da afeco, da relao ou do pathos como sofrer de e pela

    alteridade. Em outras palavras, diremos: so necessrios caminhos de entrega experincia,

    colocando a identidade em jogo, indo alm do dos papis da identidade para arriscar viver o

    salto da alteridade ou do si mesmo transido pela mesma. A experincia do Desejo do Outro

    em mim, do dilogo como abertura, e do corpo emocional seriam exemplos disso. Como

    consequncia, ser a dimenso teraputica, pensamos, que pode compor mtodos prticos em

    busca da verdade de si pressupondo a verdade do corpo-carne, do Outro, ambiente relacional

    primeiro.

    4 - Em direo a uma tica prtica encarnada algumas proposies

    Thompson e Rosch (Introduo e cap. 2), que resgata Husserl e Merleau-Ponty, continuando o projeto desteltimo na busca de uma receptividade e percepo da experincia para alm do registro apenas especulativo. Elevai fazer a ponte para isto com a experincia meditativa e de ateno vinda da tradio de pensamentoMadhyamika, escola budista Caminho do Meio.12 Esta dimenso pode ser vista, de modo mais filosfico, na obra de Levinas (1974 e 1991).

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  • Trata-se, depois de passar pela compreenso da dinmica interna alterada que

    habita o sujeito como identidade, de conceber e lidar com o si mesmo desde o sentido tico

    da alteridade, como um-para-o-outro no nvel da sensibilidade13. Portanto, em vez de pura

    negatividade da falta, ou por outro lado a pura exortao terica e moral, o si mesmo deve ser

    concebido como base de responsabilidade e substituio, o que se consubstancia como:

    carter corporal-relacional. Se se acompanha esta radicalizao fenomenolgica da tica,

    poderemos compreender da o que se segue como demanda de concretude, que busca meios

    hbeis ou instrumentos para uma tica da alteridade efetiva. Em suma, defendemos a tese da

    necessidade de uma competncia tica maior, faltante em geral nas dimenses puramente

    verbais, teorticas e filosficas das teorias que envolvem o sujeito e a tica.

    Em que direo encontrar que tais meios para a competncia tica? Defendemos

    que sejam encontrados especialmente em modelos teraputicos, iluminados criticamente pela

    reflexo filosfica e tambm clnica, sejam eles os recuperados de modelos antigos,

    meditativos por exemplo, ou prticas que operem com a mente-corporeidade do sujeito, sejam

    elas do mbito mente-corpo ou da neurocincia. O sujeito como pathos e carne

    diferentemente do sujeito enfatizado cognitivamente como ratio - pouco tocado na dimenso

    exortativa e de ideias, devido a esta ser dada formal e materialmente como informao e

    racionalizao e, em geral, como reforo de papis de identidade. A, em geral, no se

    promove uma tica que nos faa ir alm de dimenses mentais endgenas, vindas da tradio

    moderna (ego cogito) e moral do sujeito autnomo descorporificado.

    Poderamos finalizar o texto aqui, visto que defendemos fundamentalmente a tese

    do atravessamento da subjetividade pela alteridade, e que isto vem pelo registro da

    sensibilidade, trabalhado filosoficamente mas que o tempo inteiro pede uma concretude e um

    caminho (mtodo) de efetivao do escopo tico. No entanto, e pensando na inteno do

    dilogo de saberes, nos elementos interdisciplinares envolvidos, apontamos algo mais

    especfico. Tais prticas, que nos serviro para o dilogo com a tica e com as prticas tanto

    sociais quanto teraputicas, podem ser encontradas por diversos modos e num elenco de

    possibilidades a construir; no obstante, no momento, citaremos apenas algumas frentes atuais

    consagradas.

    13 Consideramos aqui a desconstruo como alteridade, algo que dado desde sempre na disposio e no ser dosujeito, temporalizado, alterado, perpassado pela responsabilidade e substituio de raiz. Contudo, ela escamoteada e evitada o tempo todo pelos papis identitrios. Que dimenses ou teraputicas podem favorecer averdade da alteridade (como corpo) do sujeito ? Eis o ponto.

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  • * Se consideramos o sentido da sensibilidade investigado, do corpo e a exigncia

    de uma tica prtica, as terapias corporais vindas em especial da tradio reichiana ebioenergtica so imprescindveis; abordam diretamente o corpo historificado e marcado, as

    emoes bloqueadas e os elementos energticos que determinam o sofrimento e o fazer sofrer

    do sujeito. O corpo no se dobra razo; tem razes prprias com as quais

    fundamentalmente uma abordagem energtico-corporal deve operar. Da que o veculo de

    acesso deve ser pelo lidar com os vnculos ou laos afetivos, ao mesmo tempo que pela

    abordagem metodolgico-prtica exerccios especiais intensos, aes respiratrias

    profundas e liberadoras, desbloqueios de engramas nos msculos do sujeito, reaprendizado da

    postura corporal e da mobilidade dos membros, contato, entre outros. As memrias

    emocionais esto inscritas em couraas e (i)mobilidades e que so passiveis de acesso e

    ativao, conduzindo a vrios tipos de liberao para fins teraputicos. O que se verifica,

    como bem demonstra Lowen (2005), a possibilidade real de favorecer uma pessoa mais

    expressiva em seu corpo, menos reprimida em suas emoes, mais transparente a si e aos

    outros; isto diz respeito diretamente a uma constituio existencial que est sendo trabalhada.

    Certamente, tais elementos so dos mais centrais para a tica, pois as emoes e a

    estrutura energtico-corporal construda pelo sujeito ao longo de sua vida so as prprias

    formas de relao, com o mundo, com os outros e consigo mesmo14. O que fica patente que

    no se acede a uma tica autntica sem o acesso s verdades corpreas; o corpo no um

    objeto fsico e isolado, mas um conjunto vivo (eu no tenho um corpo e vida, mas sou corpo e

    vida) definida por historicidade, emocionalidade, movimento, ambiente, e enfim, energia e

    vitalidade, a saber, relaes. neste sentido que alguns grandes pensadores do sculo XX,

    tanto da filosofia quanto da psicologia, elencaram o resgate da corporeidade como dimenso

    fundante da compreenso e de qualquer interveno eficaz relativa ao sujeito.

    digna de reforo, a constatao de Reich (2003) de que o pensamento cientfico

    e filosfico do ocidente caiu em duas grandes armadilhas interpretativas: o paradigma

    materialismo e o paradigma espiritualista. No primeiro, temos o reducionismo das abordagens

    do sujeito no modus materialista, mecanicista, positivista e, em suma, cartesiana do Saber; no

    segundo, temos a perda da substancialidade do sujeito por meio do idealismo, racionalismo

    filosfico, e tipos de espiritualidades desencarnadas e dicotmicas. Tanto um quando o outro

    perdem a corporeidade energtica, emoo e vida relacional do sujeito15.

    14 Cf. Lowen, A. Bioenergetics (1975), cap. 3 e 4. Reich, W., Anlise do carter (1998), cap. 3.15 Cf. Pelizzoli, 2007 e 2013.

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  • * Cada vez mais se pesquisa e comprova que a mente e tambm o crebro do

    indivduo sofrem modificaes altamente positivas com os processos meditativos mente-

    corpo16. Partes do crebro que conectam emoes positivas, ou pacificadoras, so ativadas

    amplamente em meditantes, enquanto as partes que gestionam tristeza, raiva, medo, ou seja,

    emoes mais ligadas a hbitos negativos, so ativadas muito mais em pessoas comuns, do

    grupo controle. A meditao nas suas modalidades silenciosa, a hoje bastante pesquisada

    Mindfulness, ou a Shamata, ou a Vipassana, atuam na integrao mente e corpo dissolvendo o

    que, por exemplo, no budismo tibetano se chama de kleshas marcas corpo-mentais ou, na

    linguagem de Husserl (1969), os habitus que perpetuam a negatividade no sujeito e seu

    comportamento repetitivo17. O sujeito perpassado pela negatividade emoes negativas e

    hbitos que se ligam em geral a um tipo de autocentramento em torno da dor e/ou da

    locupletao gozosa de seu ego tende a reverberar e projetar mais dor e frustrao no

    mundo, e ter mais dificuldade com a compaixo, com a generosidade, com a bondade, com o

    dar de si, com a tica no sentido prtico.

    Quando, por exemplo, o filsofo Schopenhauer no sculo XIX, ou o cientista

    Davidson (2008) no sculo XXI, apontam para o bom administrar do corpo-mente, da

    Vontade, a superao do ego desejante e eternamente inquieto, esto a sugerir a necessidade

    de um caminho efetivo para lidar com o sujeito alterado. O caminho meditativo seria um

    dos principais: a meditao confere um colocar-se com mais lucidez e liberdade diante das

    dicotomias e das negatividades em que o sujeito se enreda; faz assentar-se em si mesmo e

    muitas vezes reverbera em em-patia e com-paixo dimenses centrais na tica. Uma das

    novidades das pesquisas na rea mente-corpo que a prpria compaixo pode ser estimulada

    e exercitada e, portanto, a capacidade tica18. Neste sentido, deve haver uma maior interao

    entre as dimenses da tica e da inteligncia emocional por exemplo19. Se o pensamento e a

    ao devem seguir juntos, a tica como conhecimento ou linguagem moral deve trazer cena

    o seu contedo enquanto prtica, sensibilidade, corporalidade, emoo, base para tudo.

    Reforamos aqui, de algum modo, a posio de autores como Maturana e Varela quando

    afirmam que para o caso da tica, acima de tudo trata-se de uma competncia, de uma

    dimenso de emoo e corporalidade, de uma prtica corpreo-mental20. 16 Ver artigo de Allan Wallace, in Pelizzoli, 2010b; e J. Lins in Pelizzoli, 2011b.17 Cf. Kabat-Zinn, 1990, cap.1; e Lins In: Pelizzoli 2010b e 2011b.18 Cf. Davidson (2008); Kabat-zinn (2005).19 Ver sobre isto Goleman (1997) e Goenka (1998).20 Tomo emoo aqui no sentido bsico e animal da dimenso do mover-se e das coordenaes decoordenaes de ao conforme Maturana (1997), cap. 1; e Varela (2002) pela enao (cap. 3), ou ainda da belaobra Sobre a competncia tica, Varela (1992).

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  • * Falamos em marcas mentais ou habitus. Outro ponto profcuo a quando nos

    damos conta dos eventos traumticos que guardamos; so bem mais arraigados e presentes na

    vida das pessoas do que se imagina. Desde grandes choques e acidentes at eventos de

    infncia ou perdas e conflitos no percebidos como impactantes. H mtodos que operam com

    tais disposies corpo-mentais. Os exerccios de liberao do trauma, do mtodo de David

    Bercely (2008), so um bom exemplo. Atuam em msculos especiais e pouco acessveis que

    provocam tremores prolongados, podendo dissolver com leveza traumas antigos, acessando

    emoes latentes e guardadas, por meio de liberaes energticas. Traz tona sensaes de

    vrias ordens, que de outro modo seriam quia menos acessveis; e, por fim, sensaes de

    alvio quanto a cargas energticas dolorosas guardadas com o sujeito ao longo de sua histria

    corpo-mental. Se assim , pode gerar a vontade de integrao vital com o mundo, com o

    outro21. Situando esta perspectiva dentro da bioenergtica, entendemos que este mtodo tem

    benefcios para o comportamento do sujeito nas suas relaes ticas, na medida em que seus

    bloqueios podem abrir espao para liberaes de vitalidade que vo na direo de novos

    modelos de recepo da alteridade o outro fora de mim, mas tambm o Outro que me

    habita.

    * Nesta linha, h reas que alargam a noo de corpo pelo corpo comunitrio, uma

    dimenso integrativa do corpo individualizado. O exemplo potente que escolhemos a

    Terapia Comunitria, que opera uma politizao das comunidades trazendo auto-percepo

    das condies estruturais de violncia e injustia, do seu entorno e situao, e ao mesmo

    tempo trabalha coletivamente as dores dos sujeitos, conflitos e dilemas existenciais. So

    basicamente rodas de dilogo com metodologia prpria a fim de propiciar o acesso s

    dimenses da subjetividade e sua relao com a alteridade em forma de desafios existenciais e

    sociais. Isto inspira-se nos crculos dialogais ou crculos de cultura de Paulo Freire, que

    visavam conscientizar e criar um corpo coletivo a caminho da educao emancipadora e da

    libertao de estruturas de violncia22. A Terapia Comunitria hoje amplamente fomentada

    pelo Ministrio da Sade no Brasil, como incluso de prticas sociais relevantes, benficas em

    termos de sade psicossocial; igualmente, nas dimenses de organizao comunitria e

    resoluo de conflitos apontadas pelo Ministrio da Justia23. Uma das caractersticas

    21 Ver Berceli, D. Trauma Releasing Process, Namaste Pub Inc, 2008.22 Tal o iderio de Pedagogia da Libertao, enunciado em sua Introduo.23 Sobre isto veja a obra de Barreto (2005) e o site www.abratecom.org.br

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  • marcantes da terapia comunitria seu carter social alargado, pois alcana amplamente

    populaes pobres, tendo seu nascimento em espaos de favela. Neste aspecto, observa-se que

    h um desafio de popularizao ou socializao e maior alcance das terapias concentradas em

    consultrios para as classes mdia e alta. A Terapia Comunitria, nitidamente, resgata o corpo

    social em processos de enraizamento na solidariedade, poder de cura e empoderamentos das

    pessoas dentro de uma comunidade.

    * * *

    Trata-se de citar apenas alguns exemplos, que tomam cada vez mais corpo e

    precisam dialogar mais com as cincias tanto humanas quanto da sade, e que mesmo no

    podendo ser tomados como panaceias, podem apresentar alto grau de efetividade, de

    encorporao, diante do que a tica demanda mas tem encontrado grandes dificuldades de

    efetivao quando permanece apenas no mbito verbal, lgico ou mesmo metafsico. So

    mtodos (caminhos) cabveis no mbito dos novos paradigmas do sujeito, exigindo o meio da

    interdisciplinaridade ou o dilogo de saberes para a sua legitimao24. Constata-se que os

    modelos teraputicos, ou aportes prxicos deste tipo, so fundamentais para o resgate do

    caminho para o sujeito tico diante do atual modelo civilizatrio neurtico ou mesmo do

    amor lquido.

    De outro modo, para que tais modelos no caiam em ideologias, modelos

    salvficos ou dimenses de compreenso unidirecionais do ser humano e suas relaes, cabe

    aqui a posio fenomenolgica aberta ao presente e instante sempre renovado (tanto quanto

    platnica ou de Sidarta Gautama h 2600 anos): estamos lidando com pharmakos, ou seja,

    remdios, ou quais por sua vez tambm podem ser conforme o uso drogas/venenos. O

    Saber e as prticas sociais mesmo e especialmente o Dito tico e principalmente

    normatizador deve estar disposto a ser desdito e ampliado continuamente, sendo dado ao

    tempo, desconstruo, ao diferente, ao contexto, histria e finitude.

    Por outro lado, pergunta-se: por que instrumentos de ordem poltica ou de lutas

    sociais no esto apresentados aqui como opo? Porque o foco est na dimenso corpo-

    mental do sujeito e da alteridade, compreendido como centro da vida psquica. E, a este

    respeito, devemos considerar outro fator: quais modelos de sujeito esto na base do sujeito

    ativo da ao poltica, qual (sua) tica? Isto vale igualmente para as propostas de qualquer

    24 So tambm exemplos testados, ver Pelizzoli (2010 e 2011b).

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  • dever ser ou agir poltico e comunicativo: trata-se de qual sujeito e como ele funciona dentro

    destes processos? Quem e como entra em conflito na interao e na busca de emancipao

    social? A dimenso poltica ou mesmo revolucionria nunca pode ser excluda, apenas

    estamos a apontar um a priori central (encarnado) por trs das demandas sociais e polticas.

    Trata-se do sujeito emocional e corpreo que fala, faz poltica, tem necessidades, relaciona-se,

    e pode matar de vrias formas, ou pode agir como um morrivivente, merc das condies

    alienantes ou ambientais habituais danosas que o avassalam.

    Uma outra tica que deve ser lembrada tema a tica Prtica de Peter Singer

    (2002), de base neo-utilitarista, til para lidar com os dilemas bioticos contemporneos. Sua

    obra marcante, fundamentalmente voltada para iluminar a prxis tica, mais do que

    estabelecer princpios ltimos e axiolgicos para o agir. Ele aponta as contradies e os

    problemas civilizatrios globais, bioticos, que geram dilemas morais com que todos nos

    defrontamos, apontando a necessidade de agir tomando posies consensuais e conforme o

    caso. Ele elabora uma demanda humanitria de 10% de doao dos lucros das classes

    abastadas para o campo social, como ao moral e material concreta; h tambm a pedida de

    corte de consumos e boicote de produtos anti-ecolgicos (como os descartveis, agrotxicos,

    transgnicos, inseticidas etc.), atitudes exigidas pela crise socioecolgica. De igual modo, ele

    prega uma tica animal que aponta na prtica o que conferir valores ticos intrnsecos aos

    animais, de modo que no se deveria comer carne, pois um luxo e gerador de um dos

    maiores problemas ecolgicos do momento (desmatamento e aquecimento global). Suas

    posies so digna de apoio25. No obstante, insistimos na necessidade mais basilar e de

    princpio tico de raiz a partir da sensibilidade que habita o sujeito. A esta proposta

    complementaramos apontando que: se no h uma sensibilizao do sujeito, se ele no

    tocado desde seu si mesmo corpreo-emocional como na dimenso de empatia ou

    acolhimento efetivo da alteridade torna-se mais difcil para o sujeito realizar aes ticas de

    tal grandeza, como a partilha social e a adoo do semi-vegetarianismo e a sustentabilidade no

    consumo, ou seja, o que politicamente correto e necessrio, como pede a tica Prtica. O

    sujeito da sensibilidade e paixo continua a ser fundamental. Ele pode ser tomado pela

    Sombra ou pelo narcisismo tanto quanto pelo amor, dar a vida por outrem; ele pode matar sem

    razo ou ainda, deixar morrer, mesmo tendo conhecimento, capacidade racional e recursos

    materiais. Por fim, ser necessrio, neste caso tambm, ir mais fundo nas bases da motivao

    e das condies existenciais da competncia tica.

    25 Cf. Pelizzoli (2013 e 2011a). De Singer cf. tica Prtica (2002).

    1

  • Consideraes finais

    A contribuio inovadora no tema a que nos propomos est estabelecida: iniciou-

    se inspirada especialmente em Levinas para encontrar pilares bsicos do sujeito - referido aqui

    com o termo si mesmo, ou ainda subjetividade transida, si mesmo como um outro - que so a

    responsabilidade e a substituio, e inferiu a alteridade como sensibilidade (corporeidade). Tal

    inovador na tica: uma abordagem heternoma e do Desejo, a qual supera a tica moderna

    pautada no sujeito racional apontando que a via de superao vem por meio da dimenso

    relacional-corporal. Assim, para ultrapassar o enredamento egoico do sujeito, se exige

    compreender e atuar em seus aspectos mais fundamentais e concretos. Exige-se adotar

    caminhos que realizem o sentido prxico pedido pela tica; mais concretamente, por relaes

    menos bloqueadas, ou seja, saudveis. Felizmente, inferimos mtodos neste nvel de

    concretude encarnada ou corpo-mental que caminham nesta direo, a confrontar, revelar,

    liberar ou acompanhar a maturao do sujeito, atingindo sua alteridade. Alguns destes

    mtodos foram citados aqui de modo breve e exemplar.

    Se isso plausvel, estaremos dentro de um paradigma novo em tica, que tem a

    funo de atuar de modo enraizado, a unir teoria e prtica, ou seja, trazer reflexes

    experienciais neste sentido, como as que esto sendo propostas neste artigo e que tm uma

    histria prxica e terica. O investigador da tica convidar ao estudo e s experincias no

    nvel da concretude apontada, adentrando no mbito das vivncias e no apenas no mbito das

    ideias. No negar com isso o metir normatizado da academia, de dar razes, de busca de

    fundamentos, compreenso ontolgica do humano como linguagem, cognio, jogo das

    proposies e lgicas do discurso. Mas enraizar tais dimenses em possibilidades do sentido

    a priori do Saber no mundo dos sujeitos encarnados, energticos, aurindo,

    consequentemente, mtodos para tal - quia constituindo o paradigma da corporeidade.

    As construes tericas, ticas e polticas que visam melhorar as relaes

    humanas sero sempre importantes, mas tm falhado muito nos projetos polticos

    emancipatrios pois tendem a desiderar o sujeito afetivo e sombrio (sapien et demens), ferido,

    habituado, preso aos dilemas do corpo familiar, preso ao que h por trs enquanto

    condicionantes da sensibilidade e alteridade. Ao mesmo tempo, este sujeito encontra-se

    enredado pelas exigncias da vida social e econmica, que o mergulham em papis sociais

    identitrios e objetais gerando bloqueios energticos, no mesmo ritmo da perda de aspectos

    1

  • vitais, naturais, animais. Por conseguinte, seria efetivo falar em tica sem remeter e sem dar

    referncias de como isto pode funcionar de forma enraizada? De igual modo, no que diz

    respeito dicotomia entre teoria e prtica, no seria uma questo de alta relevncia nos dias

    atuais a possibilidade da competncia tica?

    A tica convencional apelou aos deveres e autonomia racional do sujeito,

    apoiada institucionalmente na Moralidade, na Norma e mesmo no Direito. No obstante,

    enquanto sujeito desejante, da sensibilidade e marcado pela histria de corporalidade e

    emoes, este sujeito luta desesperadamente entre sua Sombra, sua violao e sua violncia,

    suas negatividades inscritas em seu corpo-mente em confronto com a necessidade da tica, do

    equilbrio social - no fundo, do amor26. O que se configura claramente a necessidade de

    operar por outros registros: psicossociais, prticos e emocionais-corporais para a melhor

    realizao dos imperativos ticos e normativos. Isto se se quer uma tica que no seja somente

    jogo de especulao terica ou mesmo discurso sublimador da violncia vivida cruamente na

    realidade. Retoma-se, assim, o interregno tico e existencial: h soluo para tal

    distanciamento?

    este o convite que esse artigo encerra, quanto materializao deste escopo. Em

    tempos ainda de violncia e impotncia, trata-se de evocar o potencial da alteridade tica, a

    saber, como desafios da sensibilidade/corporeidade diante da (inter)subjetividade como

    relaes saudveis.

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    26Cf. nosso artigo Sujeito: paixo e pathos, em nosso site www.curadores.com.br.

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