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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
O SER E O ALÉM DO SER:
A DOBRA DA RELIGIÃO EM PAUL RICOEUR
POR
VITOR CHAVES DE SOUZA
São Bernardo do Campo — 2015
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
O SER E O ALÉM DO SER:
A DOBRA DA RELIGIÃO EM PAUL RICOEUR
POR
VITOR CHAVES DE SOUZA
Tese apresentada em cumprimento às
exigências do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo, para obtenção do grau
de Doutor, sob a orientação do Prof. Dr. Rui
de Souza Josgrilberg.
São Bernardo do Campo — Janeiro de 2015
FICHA CATALOGRÁFICA
So89s
Souza, Vitor Chaves de
O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul Ricoeur / Vitor Chaves
de Souza / – São Bernardo do Campo, 2015.
246fl.
Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e
Direito, Programa de Pós-Graduação Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo
Bibliografia
Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg
Olivier Abel
1. Ricoeur, Paul – Crítica e interpretação 2. Religião – Filosofia 3. Fe-
nomenologia I. Título
CDD 200.92
A tese de doutorado sob o título O ser e o além do ser: a dobra da
religião em Paul Ricoeur, elaborada por Vitor Chaves de Souza
foi defendida e aprovada aos 16 de Março de 2015, perante banca
examinadora composta por: Dr. Rui de Souza Josgrilberg (Presi-
tente, UMESP), Dr. Lauri Emilio Wirth (Titular, UMESP), Dr.
Helmut Renders (Titular, UMESP), Dr. Etienne Alfred Higuet
(Titular, UEPA) e Dr. Hélio Salles Gentil (Titular, USJT).
Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg ORIENTADOR E PRESIDENTE DA BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Helmut Renders COORDENADOR DO PROGRAMA
PROGRAMA
Pós-Graduação em Ciências da Religião
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO
Linguagens da Religião
LINHA DE PESQUISA
Teologias das Religiões e Cultura
AUTOBIOGRAFIA
Meu nome é Vitor Chaves de Souza. Nasci em 21 de Julho de 1981, em São Bernar-
do do Campo, Estado de São Paulo. Filho de João Soares de Souza e Eliane Chaves de Sou-
za, fiz o primeiro grau na EE Prof. Gabriel Oscar de Azevedo Antunes, em Santo André, e o
segundo grau no Colégio Objetivo, na mesma cidade. Desde pequeno já me inclinava às
coisas da religião: neto de pastor presbiteriano, cresci na Igreja Luterana, colecionava Bí-
blias, lia textos de religiosos e sobre religião, gostava de visitar diferentes igrejas e templos,
e sonhava um dia trabalhar e pesquisar as coisas da religião. Teologia é a escolha e decisão
que fiz em algum momento antes para o meu caminho: faltava somente descobri-la e, acima
de tudo, assumi-la: faltava coragem – o que me levou ao esporte e ao trabalho gráfico de
meu pai (editoração gráfica e fotografia), fazendo-me confundir, num sentido até que posi-
tivo, dentro dos limites da decisão, serem essas minhas vocações na tentativa de evitar meu
desafio ontológico.
Aos 22 anos, no ano de 2004, ingressei no curso de bacharelado em Teologia da Fa-
culdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Realizei uma boa e proveito-
sa graduação, e concluí o curso em 2007, com 26 anos. Na ocasião, fiz meu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) com o professor Milton Schwantes, pois, além de admirar o pro-
fessor Milton, julguei ser o Antigo Testamento a área que tive menor aproveitamento ao
longo dos estudos – tive, então, a oportunidade de aprofundar-me no Antigo Testamento
com o tema As Faces de Javé (um trabalho de pesquisa hermenêutica sobre o nome Javé no
Antigo Testamento). Em 2008 ingressei no programa de pós-graduação em Ciências da Re-
ligião da UMESP e, com o incentivo dos professores e da CAPES, obtive o grau de Mestre em
Ciências da Religião, na área de Teologia e História. Pesquisei sobre Mircea Eliade, que me
inspirou, do mais alto ao mais primário, em seu método fenomenológico, à filosofia e histó-
ria das religiões. Fui orientado pelo professor Rui de Souza Josgrilberg, que me aceitou co-
mo aluno de doutorado em 2011. Se não bastasse a gratificante orientação do meu querido
mestre e a companhia de professores que me incentivavam constantemente, passei um perí-
odo de intercâmbio acadêmico em Paris, no Institut Protestant de Théologie, pesquisando
no Fonds Ricoeur. A atenciosa recepção e orientação do professor Olivier Abel foi decisiva
para o salto da tese. Com isso, chego na etapa final desta jornada acadêmica que durou dez
anos: a busca pelo título de doutor em Ciências da Religião.
O interesse pela hermenêutica e filosofia da religião surgiu na graduação e amadure-
ceu na pós-graduação. Enquanto aluno de mestrado de doutorado, realizei diversas ativida-
des e produções. Publiquei artigos. Participei de seminários, congressos e colóquios, nacio-
nais e internacionais. Publiquei livros. Aprendi idiomas. Cumpri o estágio acadêmico na
graduação da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, junto ao pro-
fessor Rui Josgrilberg, lecionando disciplinas de Introdução à Teologia, Hermenêutica, Te-
ologia Sistemática e Filosofia da Religião. Colaborei com a editoração da revista acadêmica
Correlatio, na organização e realização dos seminários Paul Tillich junto ao professor
Etienne Alfred Higuet, e também na criação e coordenação do grupo de pesquisa Archéion.
Foi me dada a oportunidade de estabelecer a minha experiência de trabalho e refle-
xão na filosofia da religião, sobretudo no campo da fenomenologia e hermenêutica. Do diá-
logo, da tolerância com o diferente e do respeito com as manifestações artísticas e religiosas
provieram minhas preocupações e inquietações. Neste período, conheci e reconheci, em
minhas leituras, alguns companheiros de reflexão, tais como Paul Tillich, Søren Kierke-
gaard, Miguel de Unamuno, Martin Buber, Rudolf Steiner, Pierre Teilhard de Chardin, Mir-
cea Eliade e, o último mas não o menos importante, Paul Ricoeur. A religião, para mim, é
um espaço autêntico para se procurar e buscar a realidade última de nossa existência – suas
narrativas originárias, quando investigam o sentido da vida, não deveriam ser lidas com a
pretensão científica do positivismo e empirismo, muito menos com a postura fundamentalis-
ta. O propósito da religião e da linguagem metafórica é outro: transmitir mundos que seriam
intransmissíveis de outras formas. Deste modo, religião, literatura, cinema, fotografia ou
poesia comportam expressões do incondicional e tentativas de superar os limites de nossa
função cognitiva. Descobri, ao longo dos anos, que a criatividade diurna (i.e., as atividades
acadêmicas) não era oposta à criatividade noturna (criação artística). Além das narrativas
textuais (o logos, dos estoicos), contempladas na literatura, como as narrativas imagéticas (o
eikon, de Platão), representadas pela fotografia e cinema, inspiro-me em Albert Schweitzer,
o qual, invariavelmente, evitou o equívoco de confundir a versatilidade com a imprudência
– de nada adianta viver arte, filosofia e beleza se não houver um profundo comprometimen-
to pastoral, a vida cotidiana, a aplicação prática, em suma, o viver bem e o ajudar ao próxi-
mo a viver melhor.
Deste modo, em gratidão pelas coisas que foram postas em meu caminho e pelas mi-
nhas escolhas, caminho junto daqueles e daquelas que se deixam interpelar pelos eventos do
cotidiano e os desafios do mundo. Cito, para finalizar, uma de minhas frases favoritas de
Arthur Schopenhauer: “Em todos os tempos existiu nas nações civilizadas uma espécie de
monge natural, pessoas que, conscientes de suas faculdades espirituais sobressalentes, an-
tepuseram a formação e o cultivo de tais faculdades a qualquer outro bem e, assim, leva-
ram uma vida contemplativa, espiritual, cujos frutos se tornaram depois patrimônio da hu-
manidade.”
para os meus pais,
João & Eliane
“A verdade da experiência mística de Deus não se pode transmitir;
ela se situa além da palavra”
Meister Eckhart
Esta pesquisa foi patrocinada pela
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
À essa instituição e aos professores que me recomendaram à bolsa de estudos,
expresso aqui a minha gratidão.
AGRADECIMENTOS
agradecimento | s. m.
1. ato ou efeito de agradecer;
2. expressão ou fato que manifesta gratidão;
Rui de Souza Josgrilberg;
Olivier Abel;
Maria de Nazareth Rangel Barboza;
Etienne Alfred Higuet;
Luis Heleno Montoril del Castilo;
Milton Schwantes [in memoriam];
Ana Masini;
Lauri Emilio Wirth;
Alan Faber do Nascimento;
Lilia Dinelli;
Carlos Musskopf;
Jean Lauand;
Marcos Aurélio da Silva;
Eduardo Chaves;
Cláudio Reichert do Nascimento;
Universidade Metodista de São Paulo;
Institut Protestant de Théologie de Paris;
Fonds Ricoeur;
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
SOUZA, Vitor Chaves de. O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul
Ricoeur. São Bernardo do Campo, 2015. 246 f. Tese. Doutorado em Ciências da
Religião – Linguagens da Religião — Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2015.
SINOPSE
Esta pesquisa propõe-se a tematizar a religião no pensamento de Paul Ricoeur.
Correlaciona filosofia e teologia e tem na nomeação de Deus o primeiro pro-
blema. Ao analisar os limites do assunto, a hipótese da tese sustenta que a inter-
secção das áreas é produtiva e que um trabalho original de pensamento pode vir
deste cruzamento. A tese sugere o termo da dobra da religião, tendo em vista a
apropriação da tarefa do reconhecimento do si na ontologia quebrada. O desdo-
bramento das aporias, pela filosofia reflexiva, articula a ontologia do possível
nas categorias existenciais do autor, sobretudo em termos da linguagem religio-
sa, da esperança e da aporia da graça. A pesquisa é feita com base no método fe-
nomenológico e hermenêutico, dividido em quatro etapas: num primeiro momento,
introduz-se a relação da filosofia com a teologia e o teônimo como a primeira dobra
da religião. No segundo capítulo, aborda-se a importância temporalidade e a narrati-
vidade na mito-poética. O terceiro capítulo versa sobre a interpretação metafórica da
religião na ontologia do possível. O quarto e último capítulo apresenta a dobra exis-
tencial cujo movimento se dá como um espiral filosófico na própria vida de Ricoeur.
A pesquisa é concluída no horizonte do ser humano capaz e o reconhecimento de si
mediado pela dobra da religião. Espera-se que o resultado seja uma reflexão que
permita uma melhor compreensão da filosofia de Ricoeur, bem como que sirva de re-
ferencial e fundamento para futuros estudos acerca da filosofia da religião.
Palavras-chave: Paul Ricoeur – dobra da religião – ontologia – mito –
fenomenologia da religião
SOUZA, Vitor Chaves de. Being and beyond being: the fold of religion in Paul
Ricoeur. São Bernardo do Campo, 2015. 246 f. Thesis. Doctor Degree in Scien-
ces of Religion – Languages of Religion — São Paulo Methodist University,
São Bernardo do Campo, 2015.
ABSTRACT
This research intends to demonstrate the theme of religion in the thought of Paul
Ricoeur. It correlates philosophy and theology having in the question of God the
main problem. The hypothesis of the thesis argues that the intersection of the
areas is productive and an original work of thought can arises from this cross.
The thesis suggests the term of the fold of religion, considering the task of
recognition of the self within broken ontology. The reflective philosophy articu-
lates the aporias with the ontology of the possible in existential categories, es-
pecially in terms of religious language, hope and the aporia of grace. The re-
search utilizes the phenomenological and hermeneutical method, and it is divid-
ed into four stages: at first, introduces the relationship between philosophy and
theology and the divine name as the first fold of religion. The second chapter
deals with time, narrative, and the myth-poetic. The third chapter deals with the
metaphorical interpretation of religion within the ontology of the possible. The
fourth and final chapter presents the existential fold whose movement is as a
philosophical spiral in the life of Ricoeur. The research is concluded on the
horizon of the capable human being and the recognition of the self mediated by
the fold of religion. The result will be a reflection that makes possible a better
understanding of the philosophy of Ricoeur, as well as foundation for future
studies on the philosophy of religion.
Keywords: Paul Ricoeur – fold of religion – ontology – myth – phenomenology
of religion
SOUZA, Vitor Chaves de. L’être et l’au-delà de l’être : le pli de la religion
chez Paul Ricœur. São Bernardo do Campo, 2015. 246 f. Thèse. Doctorat en
Sciences Religieuses – Langues de la Religion — Université Méthodiste de São
Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.
RESUMÉ
Cette recherche se propose de développer le thème de la religion chez Paul
Ricœur. La corrélation entre philosophie et théologie rencontre dans la
nomination de Dieu son premier problème. Par l’analyse des limites de son
sujet, l’hypothèse de la thèse fait valoir que l’intersection des domaines est
productive et que l’œuvre originale de la pensée peut provenir de ce carrefour.
La thèse suggère le terme du pli de la religion pour désigner la propriété de la
reconnaissance de soi dans la tâche de l’ontologie brisé. Le déploiement des
apories par la philosophie réflexive articule l’ontologie du possible dans les
catégories existentielles, surtou dans les termes du langage religieux, de
l’espérance et de l’aporie de la grâce. La recherche est basée sur la méthode
phénoménologique et herméneutique et est divisé en quatre étapes: tout d’abord,
on introduit la relation entre la philosophie et la théologie et la nomination de
Dieu en tant que premier pli de la religion. Le deuxième chapitre traite de
l’importance de la tempralité et de la narrativité dans le récit mytho-poétique.
Le troisième chapitre traite de l’interprétation métaphorique de la religion dans
l’ontologie du possible. Le quatrième et dernier chapitre présente le pli
existentiel, dont le mouvement est comme une spirale philosophique dans la vie
de Ricœur. La recherche se termine par la présentation de l’horizon de l’homme
capable de se reconnaître, médiatisé par le pli de la religion. Nous espérons
qu’il en resulte une réflexion permettant une meilleure compréhension de la
philosophie de Ricœur, et pouvant servir de référence et de base pour de futures
études sur la philosophie de la religion.
Mots-clés: Paul Ricœur – le pli de la religion – ontologie – mythe –
phénoménologie de la religion
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 17
CAPÍTULO I
Uma dobra singular: filosofia e teologia em Paul Ricoeur ............................................. 29
I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia ........................................................ 29 I.1.1 A autonomia de um filósofo ............................................................................................ 37 I.1.2 Um filósofo sem absoluto ............................................................................................... 39 I.1.3 Conflitos de uma antropologia ........................................................................................ 41 I.1.4 O acesso à tese: a intersecção no teônimo ..................................................................... 43 I.1.5 O horizonte da dobra ...................................................................................................... 45
I.2 A ontologia da dobra: a nomeação de Deus .................................................................... 49 I.2.1 Uma ontologia no nome ................................................................................................. 53 I.2.2 O problema Deus ............................................................................................................ 56 I.2.3 A transmissão e recepção do nome divino: uma ontologia quebrada ............................. 59 I.2.4 Revelação e texto bíblico ................................................................................................ 63 I.2.5 Considerações intermediárias ......................................................................................... 66
CAPÍTULO II
Intersecções da dobra: linguagem religiosa e tempo mítico .......................................... 68
II.1 Situação hermenêutica ................................................................................................ 69 II.1.1 Linguagem em origem .................................................................................................... 72 II.1.2 O desmembramento linguístico ..................................................................................... 77 II.1.3 A dobra como linguagem aberta .................................................................................... 80 II.1.4 Linguagem nos limites da tensão ................................................................................... 86
II.2 Além das aporias: o mundo do mito .............................................................................. 89 II.2.1 Tempo e mito: a aporia da dobra ................................................................................... 91 II.2.2 O tempo e a narrativa .................................................................................................... 94 II.2.3 A fenomenologia da consciência do tempo.................................................................... 97 II.2.4 As noções plurais do tempo cíclico e linear aplicadas ao tempo mítico ......................... 98
II.2.5 Um ritmo do tempo, um ritmo da dobra do ser ........................................................... 105 II.3 O mito enquanto um portador de mundos possíveis ..................................................... 106
II.3.1 Consciência do tempo e a possibilidade de mundos .................................................... 108 II.3.2 Consciência de ser e do além do ser ............................................................................ 111 II.3.3 Considerações intermediárias ...................................................................................... 116
CAPÍTULO III
Entrelaçamentos da dobra: origem do possível e poética da esperança ........................... 119
III.1 Hermenêutica e pensamento bíblico ........................................................................... 124 III.1.1 Fundamentos de meditações bíblicas ......................................................................... 129 III.1.2 A meditação da revelação ........................................................................................... 132 III.1.3 A revelação da meditação ........................................................................................... 134
III.2 A origem de um possível ............................................................................................ 138 III.2.1 Religião e origem ........................................................................................................ 139 III.2.1 A poética da origem .................................................................................................... 141
III.3 A fenomenologia do possível ...................................................................................... 145 III.3.1 A ontologia do possível ............................................................................................... 146 III.3.2 Imagens do possível .................................................................................................... 151 III.3.3 Um nome divino possível, um ser humano possível .................................................... 153 III.3.4 Eu sou o que sou: entre Aristóteles e o Deus do Sinai ................................................. 154 III.3.5 Eu posso o que posso: uma ontologia do nome divino ................................................ 158 III.3.6 A esperança da ontologia ............................................................................................ 159 III.3.7 Considerações intermediárias ..................................................................................... 162
CAPÍTULO IV
A dobra da religião: o espiral de uma antropologia filosófica ......................................... 165
IV.1 O acaso de um espiral ................................................................................................ 171 IV.1.1 O desdobramento metafórico do acaso ...................................................................... 176
IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial ....................................................................... 180 IV.2.1 Espiral e pertença religiosa na dobra da vida .............................................................. 183 IV.2.2 Do acaso e do destino de Deus ................................................................................... 188 IV.2.3 O difícil caminho do religioso ...................................................................................... 192 IV.2.4 O caminho da sabedoria prática ................................................................................. 195
IV.3 Destino da dobra ....................................................................................................... 199 IV.3.1 A ética do possível ...................................................................................................... 201 IV.3.2 Vivo até a morte: a escatologia da graça .................................................................... 208 IV.3.3 Apesar da morte, há graça do perdão ......................................................................... 210 IV.3.4 Testemunho e compaixão ........................................................................................... 212
IV.4 A dobra da religião: o desdobrar de um destino .......................................................... 214
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 219
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA...................................................................................... 227
INTRODUÇÃO
Em um de seus trabalhos acadêmicos, cujo título era “O chamado da ação. Reflexões
de um estudante protestante”1, o filósofo francês Paul Ricoeur, ainda aluno de filosofia da
Sorbonne, em 1935, se preocupou com a raiz religiosa pessoal e a aspiração ao ofício filosó-
fico. Demonstrou-se descontente com reflexões abstratas da academia e propôs a ação como
imperativo da reflexão – independentemente se essa ação fosse motivada por questões filo-
sóficas ou por matizes religiosas, apesar de emergir os dois solos. Preocupou-se demasia-
damente, logo no início, em não misturar os dois domínios: o da filosofia e o da teologia.
Nesta preocupação, Ricoeur obteve a atenção de um de seus professores que, após a apreci-
ação da leitura do material, confidenciou-o a respeito desta distinção evidente: “Não te afas-
tes do que temes encontrar; nunca contornes o obstáculo, mas enfrente-o de frente”2. Este
aviso foi recebido, por Ricoeur, como um incentivo para uma reflexão filosófica sem pres-
suposições e sem pudores. Filosofia, em suma, filosofia a despeito dos entraves religiosos e
institucionais, não obstante os embaraços empíricos e metodológicos os quais também pode-
ria encontrar.
1 “L’appel de l’action. Réflexions d’un étudiant protestant”. Cf. VANSINA, Frans D. Paul Ricoeur Bibliography
Primaire et Secondaire. Uitgeverij Peeters: Paris, 2008, p. VII. 2 “Mon maître disait: ne vous détournez pas de ce que vous craignez de recontrar; ne contournez jamais
l’obstacle, mais affrontez-le de face. Cet avertissement fut entendu comme un encouragement – que dis-je?
une injonction – à ‘faire de la philosophie’” RICOEUR, Paul. Mon premier maître en philosophie, IIA.475,
224 In: VANSINA, Frans D. Paul Ricoeur Bibliography Primaire et Secondaire. Uitgeverij Peeters: Paris,
2008, p. XXI.
18
Simultaneamente à trajetória na filosofia, Ricoeur trabalhou com a teologia e a reli-
gião. A extensão de sua produção nesta área, entretanto, não é evidente ao público da filoso-
fia em geral e merece ser destacada. Se considerarmos os números, no Fonds Ricoeur –
fundação dedicada à preservação e divulgação da obra de Paul Ricoeur, cujo acervo biblio-
gráfico foi fundamental para a realização desta tese3 –, até 2012, encontram-se disponíveis
exatos 768 textos em forma de artigo publicados por Ricoeur. Dentre estes, um vasto mate-
rial (listado cuidadosamente nas referências bibliográficas desta pesquisa) é dedicado ao
estudo da teologia, hermenêutica bíblica, mito, símbolo e linguagem religiosa.
O primeiro texto filosófico de Ricoeur, do qual temos registro, tratou sobre a questão
de Deus em Lachelier e Lagneau4. Notamos a importância da presença da teologia e da reli-
gião no pensamento de Ricoeur, desde o início de sua carreira e no decorrer da mesma.5 Nos
anos 40, encontramos artigos nos quais Ricoeur desenvolveu a relação política6 e social7 da
religião, a dimensão existencial8 e a abertura para outras manifestações religiosas9 e cultu-
rais10. Nos idos de 50 e 60, além de haver lecionado na Faculdade Protestante de Teologia
de Paris, iniciou estudos em hermenêutica bíblica11, reflexões sobre o símbolo12, materiais
sobre a crítica da religião13 e a linguagem da fé14. O trabalho de Ricoeur continua produtivo
3 O Fonds Ricoeur está localizado nas dependências do L’Institut Protestant de Théologie, 83, Boulevard Arago,
75014, Paris, França. 4 Tal material não está publicado e consta, em folhas manuscritas, no acervo do Fonds Ricoeur. O pesquisador
Marc-Antoine Vallée, com permissão dos responsáveis, estudou o material e publicou, em 2012, um artigo
sobre os seus conteúdos. Cf. VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Mé-
thode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ri-
coeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 144-155. 5 MONGIN, Olivier, In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, p. 7. 6 RICOEUR, Paul. “Pour un christianisme prophétique”, In: Les chrétiens et la politique (Dialogues), Paris,
Temps Présent, 1948, 79-100. 7 RICOEUR, Paul. “La condition du philosophe chrétien” [sur R. M.EHL, La condition du philosophe chrétien],
In: Christianisme social, 56, (1948), 551-557. 8 RICOEUR, Paul. “Le renouvellement de la philosophie chrétienne par les philosophies de l'existence”, In: Le
problème de la philosophie chrétienne (Les Problèmes de la Pensée Chrétienne) » Paris, P. U. F., 1949, 43-
67; RICOEUR, Paul. “Note sur l'Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation (Le
Christianisme devant les courants de la pensée moderne), 6 (1951), 143-152. 9 RICOEUR, Paul. “Le Yogi, le Commissaire, le Prolétaire et le Prophète. A propos de « Humanisme et terreur »
de Maurice Merleau-Ponty”, In: Christianisme social, 57 (1949), 41-54. 10 RICOEUR, Paul. “La pensée grecque. Ernst HOFFMANN, Plato. Victor GoLDSCHMIDT, La religion de
Platon [comptes rendus]”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 31 (1951), 240-244. 11 RICOEUR, Paul. “Culpabilité tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieu-
ses, 33 (1953), 285-307. 12 RICOEUR, Paul. “Le symbole donne à penser”, In: Esprit, 27 (1959), juillet-août, 60-76. 13 RICOEUR, Paul. “La critique de la religion” [texte transcrit à partir d'enregistremenett rse vu par l'auteur], In:
Bulletin du centre protestant d'études, 16 (1964), n° 4-5, 5-16. 14 RICOEUR, Paul. “Le langage de la foi” [texte transcrit à partir d'enregistrements et revu par l'auteur], In:
Bulletin du centre protestant d'études, 16 (1964), n<>s 4-5, 17-31.
19
nos anos seguintes: escreveu sobre teólogos como Bonhoeffer15, Bultmann16, o Deus cruci-
ficado de Jürgen Moltmann17, o símbolo religioso em Paul Tillich18 e, talvez, um dos seus
mais importantes artigos, em 1977, denominado Hermenêutica da Ideia da Revelação.19 A
produção dos anos 80 e 90 está acessível, em boa parte, na obra Figuring the Sacred20: uma
compilação de 21 textos importantes, divididos em cinco partes, que contempla estudos
acerca do problema da religião (Filosofia e Linguagem Religiosa; Manifestação e Procla-
mação; O Texto “Sagrado” e a Comunidade), meditações sobre os filósofos da religião
(Uma Hermenêutica da Filosofia da Religião em Kant; A “Figura” da Estrela da Redenção
de Rosenzweig; Emmanuel Levinas: Pensador do Testemunho), a polifonia dos discursos
bíblicos (Sobre a Exegese de Gênesis 1:1-2:4a; A Bíblia e a Imaginação; O Tempo Bíblico;
A Narrativa Interpretativa), assuntos teológicos (Esperança e a Estrutura do Sistema Filo-
sófico; Nomear Deus; Em Direção à Teologia Narrativa: Necessidades, Recursos e Dificul-
dades; O Mal, Um Desafio à Filosofia e Teologia; O Sujeito Invocado na Escola das Narra-
tivas e da Vocação Profética) e assuntos práticos da teologia, como a ética e a homilia (A
Lógica de Jesus, A Lógica de Deus; “Aquele que Perder a sua Vida por Mim, Encontrá-la-
á”; A Memória do Sofrimento; Considerações Éticas e Teológicas sobre a Regra de Ouro;
Praxeologia Pastoral, Hermenêutica e Identidade; Amor e Justiça).
Evidencia-se a variedade de artigos produzidos por Ricoeur no campo da religião.
Quanto aos livros, um rastreamento provisório equaciona uma quantidade menor, mas quali-
tativamente importante. Há Pensando Biblicamente21, publicação de 1998, com André La-
Coque, onde Ricoeur expõe a leitura bíblica a partir o ponto de vista filosófico. Neste desa-
fio, ele propões reflexões que apresentam uma hermenêutica da religião fundada na feno-
menologia, contemplando temas como o sentido ontológico da criação, a obediência do
amor, a imanência e a espiritualidade, a metáfora dos textos de sabedoria. Seguramente, os
15 RICOEUR, Paul. “L'interprétation non religieuse du christianisme chez Bonhoeffer” [exposé et discussion],
In: Les cahiers du Centre Protestant de l'Ouest, 1966, n° 7, 3-15, 15-20 16 RICOEUR, Paul. “Mythe et proclamation chez R. Bultmann”, In: Les cahiers du Centre Protestant de l'Ouest,
1967, n° 8, 21-33. 17 RICOEUR, Paul. “Le Dieu crucifié de Jürgen Moltmann”, In: Les quatre fleuves n°4, Paris, Seuil,. 109-114. 18 RICOEUR, Paul. “Preface” In: DUNPHY J., Paul Tillich et le symbole religieux. (Encyclopédie universitaire).
Préface de P. Ricoeur, Paris, Jean-Pierre Delarge. Éditions Universitaires, [1977], 23,5 x 16, 11-14. 19 RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de Révélation [avec une discussion avec E. Levinas, D. Coppie-
ters, etc.]”, In: La révélation (Publications des Facultés universitaires Saint-Louis, 7) Bruxelles, Facultés uni-
versitaires Saint-Louis, 1977, 15-54pp. 20 RICOEUR, Paul. Figuring the Sacred: Religion, Narrative, and Imagination. Minneapolis: Fortress Press,
1995. 21 LaCOQUE, André; RICOEUR, Paul. Penser la Bible. Paris: Editions du Seuil, 1998.
20
livros acerca da hermenêutica bíblica predominam: há ainda A Hermenêutica Bíblica22 e
Ensaios em Interpretação Bíblica23. Doravante, livros que contemplam capítulos destinados
à teologia e outros assuntos da religião em geral fazem-se presentes. Vivo Até a Morte24 e
fragmentos acerca da religiosidade de Ricoeur, O Significado Religioso do Ateísmo25, O
Justo26, O Si-Mesmo Como Outro27, O mal: um desafio à filosofia e à teologia28, O Conflito
das Interpretações29 e A Metáfora Viva30 são alguns exemplos de obras que carregam breves
pressuposições e reflexões teológicas. Esta lista de livros e artigos – sem esquecer as impor-
tantes contribuições às enciclopédias francesas nos verbetes crença31 e mito32 – escritos em
diferentes períodos, além da delimitação a um conjunto de textos, oferece a substância da
presente pesquisa.
A análise do material e da biografia do autor nos indica a presença contínua, durante
o trabalho acadêmico, da teologia e da religião enquanto preocupações não-filosóficas à
filosofia.33 Deste modo, a tese propõe refletir o papel da religião no pensamento de Paul
Ricoeur, tendo em vista o círculo de textos deixados pelo autor e pela tradição acadêmica.
Parte deste empreendimento já foi feito por alguns dos seus leitores. Dentre eles, há o livro
de Gilbert Vincent, La religon de Ricoeur34, que apresenta um panorama geral e situa o filó-
sofo nesta questão. Há Richard Kearney, influenciado pela hermenêutica do mito de Ri-
coeur35, elaborando uma interpretação da religião cujo centro estaria na possibilidade de
Deus enquanto ser capaz36 e, por fim, a sua teoria do anateísmo.37 Encontramos em David
22 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique (présentation et traduction par François-Xavier Amherdt), Paris:
Cerf, 2001. 23 RICOEUR, Paul. Essays on Biblical Interpretation. Minneapolis: Fortress Press, 1980. 24 RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments. Éditions du Seuil, Mars 200. 25 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism. Columbia University Press: New York and London,
1969. 26 RICOEUR, Paul. The Just. Chicago: The University of Chicago Press, 2000. 27 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 28 RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, SP: Papirus, 1988. 29 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1978. 30 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 500p. 31 RICOEUR, Paul. “Croyance”. Encyclopaedia Universalis. V. Paris: Encyclopaedia Universalis France, 1969,
pp. 171-176. 32 RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L'interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis. XI, Paris, En-
cyclopaedia Universalis France, 1971, 530-537pp. 33 Para tal assunto, conferir RICOEUR, Paul. Vivo Até a Morte. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 34 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008. 35 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New Jersey: Humanities
Press Internation, Inc., 1995. 36 Cf. KEARNEY, Richard. The God who May Be: A Hermeneutics of Religion. Indiana University Press, 2002.
21
Rasmussen um primoroso trabalho acerca do mito e do símbolo na antropologia a partir da
filosofia de Ricoeur.38 Olivier Abel escreveu sobre a articulação entre filosofia e teologia no
pensamento de Ricoeur.39 Há a coleção de artigos Paul Ricoeur: um filósofo lê a Bíblia40, de
Daniel Frey e Pierre Bühler, reunindo os leitores Christophe Pisteur, Jérôme Porée, Kathrin
Messner, Nanine Charbonnel, Elian Cuvillier, Hans-Christoph Askani, Jean-Luc Petit, René
Heyer e Gilbert Vincent para tratar da repercussão do pensamento de Ricoeur em temas da
teologia e filosofia da religião. Em 2008 aconteceu, na Faculdade de Teologia da Université
Catholique de Louvain, uma conferência internacional dedicada à religião e à poética no
pensamento de Ricoeur.41 É conhecida, ainda, a tese de Loretta Dornisch sobre a fé nos es-
critos de Ricoeur42, o livro de Dan Stiver sobre a influência de Ricoeur na hermenêutica
teológica43, o trabalho de Rebecca Kathleen Huskey sobre a esperança44, a monumental obra
de Kevin Vanhoozer acerca da narrativa bíblica na filosofia ricoeuriana45 e o texto de Boyd
Blundell sobre o movimento da teologia na filosofia e da filosofia na teologia46. Além disso,
há inúmeros artigos que trabalham com assuntos mais específicos – todos listados nas refe-
rências bibliográficas desta pesquisa.
A despeito das pesquisas mencionadas, a novidade da tese, considerando a produção
já existente no campo da filosofia da religião, reside na dobra da religião. Introduzimos o
termo “dobra” – termo que tomamos emprestado de Gilles Deleuze – como a chave de leitu-
ra para a tese. A dobra filosófica, a rigor, é a apropriação da ontologia no voltar-se para si,
37 Cf. KEARNEY, Richard. Dieu est mort, vive Dieu: Une nouvelle idée du sacré pour le IIIe millénaire:
l’anathéisme. Paris: NiL Éditions, 2011. 38 RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive Inter-
pretation of the Thought of Paul Ricoeur. The Hague: Netherlands, 1971. 39 ABEL, Olivier. “Remarques sur l’articulation philosophie-théologie chez Paul Rioceur”. In: Transverses (Re-
vue de l’ICP), n° 101, 2007. Disponível em: http://www.olivierabel.fr/ricoeur/articulation-philosophie-
theologie-chez-paul-ricoeur.html Acessado em 18 de novembro de 2012. 40 BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des
herméneutiques philosophique et biblique. Editions Labor et Fides: Genève, 2011. 41 Os textos das palestras e comunicações ocorridas no evento estão disponíveis em: VERHEYDEN, J.; HET-
TEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leu-
ven/Paris/Walpole, MA, 2011. 42 DORNISCH, Loretta. Faith and Philosophy in the Writtings of Paul Ricoeur. The Edwin Mellen Press: New
York, 1990. 43 STIVER, Dan. Theology after Ricoeur: New Directions in Hermeneutical Theology. Westminster: Westmin-
ster John Knox Press, 2001. 44 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good. Peter Lang Publishing, Inc.: New
York, 2009. 45 VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and
theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990. 46 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington: Indi-
ana University Press, 2010, 230p.
22
um movimento para dentro rumo ao infinito de um ser quebrado e em processo de reconhe-
cimento. Movimento denso, que incorpora a aporia e requer reflexão. Inspirado no barroco,
Deleuze desdobra as dobras na arte. Alegoricamente, elas representam as ações e as mudan-
ças na vida.47 Há perífrases. Os movimentos são circulares. As dobras são infinitas e a vida
requer desdobramentos. Na hipótese da tese o pensamento de Ricoeur possui dobras, pois
trata-se de um pensamento multifacetado e polivalente. Uma breve análise do percurso filo-
sófico do autor nos demonstra os desvios, i.e., as diferentes direções, de seu pensamento na
filosofia. No início de sua carreira, Ricoeur preocupou-se com a liberdade e a natureza, o
voluntário e o involuntário. Passou a estudar a questão do símbolo, sobretudo a simbologia
do mal. Escreveu sobre a psicanálise e a política. Nos anos 70 percebeu a importância da
metáfora para os estudos de filosofia e de teologia. No auge da sua carreira, desenvolveu a
questão da linguagem48 e trabalhou com a fenomenologia reflexiva49. Com estes estudos
dirigiu-se ao trabalho acerca da interpretação dos textos, elaborando uma de suas obras mo-
numentais, denominada Tempo e Narrativa50. Por fim, refletiu sobre temas jurídicos, como
o tema da justiça, e dedicou-se, ainda, ao assunto da alteridade. Segundo Boyd Blundell, ao
analisar o conteúdo dos livros de Ricoeur – no caso, Tempo e Narrativa e O Si-Mesmo Co-
mo Outro –, nota-se um padrão estrutural na obra do filósofo: a estrutura do “desvio e retor-
no” [detour and return].51 Essa estrutura representa o princípio organizador do pensamento
de Ricoeur, refletido não apenas na metodologia, mas também no percurso de seu trabalho.
Um desses desvios – que na tese será assumido por desdobramentos – no pensamen-
to de Ricoeur está na religião. Inserido no contexto laboral da aporia, qual é o desdobramen-
to original da religião em Paul Ricoeur? Para esta tarefa, procede-se a partir da articulação
entre ontologia e religião no trabalho de Ricoeur, ou seja, a relação entre filosofia e teolo-
gia, no ser humano capaz e nas produções sagradas. Não se trata apenas de um exercício
hermenêutico de articulação, mas de uma abertura da filosofia de um dos mais importantes e
47 Cf. DELEUZE, Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque. Paris: Lés Éditions de Minuit, 1988, p. 5. 48 Cf. RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70,
2009, 134p., RICPEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1978., e RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. 4ª ed. Trad. Hilton Japiassu. RJ: Francisco
Alves, 1990. 49 Cf. RICOEUR, Paul. Na Escola da Fenomenologia. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, 360p. 50 RICOEUR, Paul. Temps et recit, tome 1: L'intrique et le recit historique. Paris: Seuil, Points Edition, 1991;
RICOEUR, Paul. Temps et récit, tome 2, Configuration Dans Le Recit De Fiction. Paris: Seuil, Points Edition,
1991; RICOEUR, Paul. Temps et récit, tome 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, Points Edition, 1991. 51 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington: Indi-
ana University Press, 2010, p. 65.
23
expressivos filósofos do século XX. No exercício investigativo, deve ser evidenciada, logo
no início, a importância da autonomia da filosofia e da teologia no pensamento do autor.
Questionado por François Azouvi e Marc de Launay, no ano de 1996, em uma conversa
sobre moral e ética, a respeito da possibilidade da reflexão da existência implicar em duas
ordens (uma filosófica, outra religiosa), Ricoeur argumentou que sustentou, durante muitas
décadas, ao longo do seu trabalho, a distinção entre os domínios da filosofia e da religião.52
Entretanto, ele declarou, ao final de sua vida, que tal separação radical já não lhe parecia
apropriada. “Creio”, concluiu Ricoeur, “ter avançado suficientemente na vida e na interpre-
tação de cada uma dessas duas tradições para me arriscar sobre os lugares de intersecção”.53
É esse risco e esses lugares de intersecção que interessam à esta pesquisa. A tese, portanto,
é proposta: O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul Ricoeur.54 O risco é existen-
cial (questão do ser) e o lugar da intersecção é reflexivo (questão hermenêutica). A tese es-
trutura-se na reflexão da dobra com motivação ontológica. A pesquisa assume que esses
termos são os mais apropriados para o aprofundamento da religião no pensamento de Ri-
coeur, tendo como pressuposto a aporia e a ontologia do possível.
A estruturação da pesquisa segue a partir da relação de duas fases em Ricoeur. A
primeira, representada pelo seu trabalho O Voluntário e o Involuntário, anuncia a ontologia
quebrada, uma ontologia rompida.55 Ricoeur é motivado por Karl Jaspers e a questão do
“ser” [la question de « l’être »], i.e., a situação limite, como também por Gabriel Marcel e a
questão do mistério [la question du « mystère »] no início de sua jornada filosófica. Nesta
primeira fase, há uma passagem quase harmoniosa da ontologia para a religião. Uma leitura
superficial nos daria a impressão de que Ricoeur busca reconstruir a ontologia quebrada,
sobretudo na religião – como propôs Henry Isaac Venema56. Entretanto, não é este o cami-
52 “Je ne suis pas un philosophe chrétien, comme la rumeur en court, en un sens volontiers péjoratif, voire dis-
criminatoire. Je suis, d’un côté, un philosophe tout court, même un philosophe sans absolu, soucieux de, voué
à, versé dans l’anthropologie philosophique. Et, de l’autre, un chrétien d’expression philosophique, comme
Rembrandt est un peintre tout court et un chrétien d’expression picturale et Bach un musicien tout court et un
chrétien d’expression musicale”. RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments. Éditions du
Seuil, Mars 2007, p. 24. 53 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 54 Título em francês, referente aos estudos realizados no estágio de intercâmbio no Fonds Ricoeur (2012-2013):
« L’être et l’au-delà de l’être: le pli de la religion chez Paul Ricoeur » 55 A expressão ontologia quebrada aparece no livro O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica e é
um conceito importante para a compreensão do trabalho de Ricoeur. Cf. RICOEUR, Paul. O Conflito das In-
terpretações: Ensaios de Hermenêutica.Imago Editora: Rio de Janeiro, 1978, p. 21. 56 “Ricoeur’s philosophical explorations have indeed been deeply motivated by his Christian faith and cannot be
isolated from his religious faith”. VENEMA, Henry Isaac. “The Source of Ricoeur’s Double Allegiance”, In:
24
nho da tese. Há uma outra originalidade na articulação entre filosofia e teologia no pensa-
mento de Ricoeur (que se torna mais nítida na segunda fase). O que existe, neste primeiro
estágio, segundo William Schweiker, refere-se ao “prospecto para um novo humanismo” em
Ricoeur.57 Qual o papel da religião neste novo humanismo? A dobra da religião se insere
nesse novo humanismo. A dobra da religião compreende, envolve e plenifica o ser humano
capaz para as diversas dimensões de uma vida engajada filosoficamente e religiosamente.
A segunda fase de Ricoeur, na qual a tese alcança a sua originalidade, encontra-se na
hermenêutica. Nela, estão as mito-poéticas: o lugar onde a dobra da religião acontece na
ontologia quebrada. Diferentemente do primeiro momento, agora não ocorre uma passagem
harmoniosa da ontologia para a religião. A esfera religiosa, na dimensão hermenêutica, é
uma opinião forte. A religião não pretende ser um fim da ontologia, mas de uma surpresa,
i.e., um caminho no qual a ontologia se desvia em direção à religião, porém sem excluir
outros meios e outros percursos. Enquanto para Heidegger a ontologia procura suas ques-
tões e respostas nela mesma, os problemas e respostas que Ricoeur nos propõe estão na on-
tologia, mas apontam para além dela. A rigor, a religião é uma dobra em tensão com a onto-
logia.
Cabe, neste momento, a explicação da primeira parte do título da tese: “o ser e o
além do ser” [« l ’être et l’au-delà de l’être »]. Sabendo que a tese acontece na intersecção
entre a filosofia e a teologia, que sustenta a dobra da religião, pergunta-se: quais são estes
lugares? O lugar por excelência é o ser – que caracteriza o teor fenomenológico e existen-
cial da filosofia de Ricoeur. A passagem do ser para o além do ser – que é uma tarefa – de-
corre na narrativa, nas produções culturais e nas mediações simbólicas ao interpelar a onto-
logia quebrada. A inovação da religião na intersecção da dobra se dá no limite – herança de
Immanuel Kant e Karl Jaspers – cujo limite humano denota o espaço da passagem do ser
para o além do ser. A aporia e a ontologia quebrada, ao desdobrarem o limite, pedem a bus-
ca de sentido. No entanto, a passagem do ser que busca sentido não se trata de uma passa-
gem metafísica – apesar da filosofia de Ricoeur ter elementos metafísicos (conforme ele
mesmo declarou em uma entrevista58). Para ilustrar essa passagem, é possível compará-la à
TREANOR, Brian; VENEMA, Henry Isaac. A Passion for the Possible: Thinking with Paul Ricoeur. New
York: Fordham University Press, 2010, p. 63. 57 Cf. SCHWEIKER, William. “Paul Ricoeur and the Prospects of a New Humanism”, In: KAPLAN, David M.
(Org.) Reading Ricoeur. State University of New York Press: Albany, 2008. 58 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e Mard de Launay. Lisboa:
25
metáfora de uma montanha: o indivíduo sobe uma montanha e alcança o limite. O que está
além, do outro lado, o lado de lá, é o possível pela fé. O lado de cá é o possível pela espe-
rança. Não se trata de projetar o ser para o lado de lá, o além, mas descer a montanha e viver
o lado de cá com a fé e esperança (a segunda ingenuidade)59. A dobra da religião abre cami-
nhos os quais, segundo Ricoeur, não seriam possíveis na ontologia mesma. Em suma, a
imagem da passagem do ser para o além do ser é o movimento dinâmico e criativo da dobra
na religião.
O movimento da dobra, enquanto atividade filosófica, está presente nos diferentes
momentos do trabalho de Ricoeur. Interessa à pesquisa os lugares da intersecção entre a
filosofia e teologia. O ponto de intersecção inicial, a saber, é a nomeação de Deus.60 É jus-
tamente pela nomeação de Deus – o caráter existencial da fé – que há a crítica do aspecto
religioso pelo filosófico e a crítica do aspecto filosófico pelo religioso.61 A nomeação de
Deus, enquanto aporia, inaugura reflexões sobre a linguagem religiosa e sobre o ser. O tra-
balho da nomeação de Deus implica em outro ponto de intersecção: a coexistência da articu-
lação entre religião e filosofia. A coexistência permite o trabalho com esferas de expressões
artísticas, culturais, narrativas e, principalmente, religiosas na ontologia quebrada. A onto-
logia quebrada, enquanto condição do indivíduo, proporciona a busca e os desdobramentos
da vida. Evitar-se-á o equívoco de inferir a passagem da ontologia para a religião como se a
religião fosse a resposta definitiva de Ricoeur – de certo modo, a religião é uma alternativa
à ontologia quebrada, mas não é a resposta final. A coexistência atinge o auge na “ontologia
poética”, em meados dos anos 80, onde, segundo Olivier Abel, o pensamento de Ricoeur
inclui o não-ser no além do ser, trabalhando com o que pode ser [peut être].62 Um outro
ponto de intersecção original surge: o ser humano capaz. A dobra da religião assume a tare-
fa da reflexão ontologicamente quebrada e existencialmente possível que, na tensão da apo-
ria, abre novos horizontes na vida. Dentre esses horizontes, há a revelação e o perdão. No
caso da revelação, é a revelação das coisas que significam mais do que a própria reflexão.
Edições 70, 2009. 59 Em breve definição, a crença polida pela crítica. Cf. RICOEUR. Paul. Da interpretação: ensaios sobre Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1977. 60 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: “Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filoso-
fia. 61 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 17. 62 O adiantamento destes conteúdos podem ser encontrados nas reflexões sobre o mal e o ateísmo, onde Ricoeur
trabalha com o conceito de negatividade: o elemento contrário ao ser que possibilita o devir do ser.
26
No caso do perdão, é a possibilidade do ser que está além das condições comuns. Motivado
pela revelação e o perdão, em um de seus últimos trabalhos – uma palestra sobre a crença
religiosa63, aos 29 de Novembro de 2000 – Paul Ricoeur destacou, entre os temas do mal e
da violência, o papel da religião enquanto a restauração da bondade humana. Restauração e
bondade desdobram-se acidentalmente na reflexão com motivações religiosas. O horizonte
aberto pela dobra da religião, mesmo em termos filosóficos, possibilita um mundo habitável
ao passo que desvios enriquecem valores éticos de convivência. É nesta motivação que Ri-
coeur declara que, dentre os aspectos exclusivos da religião, um dos mais importantes “é
provavelmente o fato da compaixão”.64 No âmago de sua inquietação, contemplando, do
ponto de vista metodológico, a ideia da prioridade do outro65 – e toda questão levantada em
O Si-Mesmo Como Outro – Ricoeur assume a prática, i.e., a ação, para que o filosofar, i.e., a
leitura engajada do texto, provoque efeito. A compaixão só é possível na união da leitura do
texto com a ação proveniente da leitura. Conforme ele declara, “a ética se define para mim
pelo desejo da vida boa, com e para os outros, e no desejo de instituições justas”66. Isso im-
plica em outra intersecção do filosófico com o religioso: a dimensão da justiça e do justo.
Tal lugar importante na intersecção no pensamento de Ricoeur visível em suas últimas obras
anuncia o testemunho. A reflexão do testemunho vem de Jean Nabert67, com os seus
Éléments pour une éthique.68 Ricoeur concorda com Nabert e assume: “Nabert, com quem
estou absolutamente de acordo, levanta o problema nos termos seguintes: de que modo é
que a consciência empírica, com as suas enfermidades, as suas limitações, poderia alguma
vez unir-se à consciência fundadora?” O testemunho ocupou lugar de destaque nas conclu-
sões de algumas de suas reflexões, propondo pensamentos além da razão e caminhos além
da ontologia.
Dito isto, a dobra da religião tem o seu lugar de reflexão na interseção entre o filosó-
fico e o religioso no pensamento de Ricoeur e traz novidades acerca da estrutura filosófica
do autor e dos conteúdos pertinentes ao ser humano mediado pelas manifestações religiosas .
63 RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo]. Produção de Mission 2000 en France. França,
Universités Numériques Thématiques, 29 de Novembro 2000. 1 vídeo digital online, 80 min. Colorido.
Som. Disponível em: http://www.canal-
u.tv/video/universite_de_tous_les_savoirs/la_croyance_religieuse.1186 Acessado em: novembro de 2012. 64 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 65 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 66 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 67 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 252. 68 Cf. NABERT, Jean. Élements pour une éthique. PUF: Paris, 1923.
27
A exploração desse lugar de intersecção é a novidade da tese, cuja proposta reside em uma
situação de tensão que, ao invés de solucionar ou propor uma metafísica, apagando a apo-
ria, sustenta a problemática e “dá o que pensar”. Em suma, a dobra da religião realiza um
desdobramento narrativo, da descoberta do si, para as espessuras temporais que emergem
enriquecidas pelos mitos e símbolos que configuram um ser humano capaz.
Sobre questões metodológicas e práticas, utilizou-se, via de regra, a edição francesa
dos textos de Paul Ricoeur, sobretudo os artigos dedicados exclusivamente aos temas da
religião, teologia, Bíblia e hermenêutica. A fim de facilitar a apreciação da pesquisa, os tex-
tos foram traduzidos ao vernáculo pelo presente pesquisador e revisados pelo Dr. Etienne
Alfred Higuet, mantendo os originais em notas de rodapé quando citados na íntegra. Por
razões puramente circunstanciais, que remetem à trajetória do pesquisador, foram utilizadas
também as boas traduções inglesas e portuguesas de algumas obras centrais do filósofo.
Quando há a citação de passagens bíblicas, serviu-se, sempre que possível, da tradução da
Bíblia de Jerusalém. A respeito dos aspectos didáticos, o referencial teórico é a fenomenolo-
gia hermenêutica, seguindo a tendência da escola fenomenológica proposta por Paul Ri-
coeur69, presente em diversos meios de pesquisa, como no Fonds Ricoeur e no The Univer-
sity of Chicago Divinity School – cuja proximidade à esta pesquisa é imprescindível. O mé-
todo de trabalho orienta-se com base em investigação bibliográfica e por uma metodologia
analítica, a fim de evitar vícios no pensamento e na crítica. A análise, com incidência feno-
menológica hermenêutica, interessar-se-á por verificar, descrever e desenvolver a articula-
ção entre análise e reflexão, presente no pensamento de Ricoeur em questão: a dobra da
religião enquanto reflexo do pensamento nos aspectos vividos e pensados. Deste modo, o
nosso percurso assume, a respeito dos conteúdos da tese, o caminho do meio: nem a confu-
são da teologia na filosofia – proposta por autores como Henry Venema, ao estipular que “a
separação entre a confissão religiosa e a autonomia do pensamento”, em Ricoeur, “não pode
ser mantida”70 – e nem o esvaziamento das preocupações religiosas de Ricoeur – como pre-
tendeu a filosofia, de um modo geral, sobretudo a francesa, no espírito da laicidade. Quanto
69 Cf. RICOEUR, Paul. À l'école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 2004. 70 “Ricoeur’s philosophical explorations have indeed been deeply motivated by his Christian faith and cannot be
isolated from his religious faith”. VENEMA, Henry Isaac. “The Source of Ricoeur’s Double Allegiance”, In:
TREANOR, Brian; VENEMA, Henry Isaac. A Passion for the Possible: Thinking with Paul Ricoeur. New
York: Fordham University Press, 2010, p. 63.
28
às normas, evidencia-se o uso da norma germânica de títulos. A fim de assegurar a eficiên-
cia, a praticidade e a estética da leitura do texto, as citações são feitas em notas de rodapé.71
Por fim, no que diz respeito a estrutura da tese, no primeiro capítulo, de característi-
ca expositiva, tem por finalidade apresentar os critérios adotados para o recorte da tese, co-
mo também os fundamentos de seus conteúdos, a saber, as primeiras aproximações herme-
nêuticas à obra de Ricoeur, a relação da filosofia e teologia no pensamento do autor, a apo-
ria, a ontologia quebrada e a primeira reflexão advinda deste diálogo: a nomeação do nome
divino. A partir do segundo capítulo, analisar-se-á a questão hermenêutica, os seus limites, e
aprofundar-se-á a linguagem e a temporalidade na dobra da religião, motivado pelo papel da
fenomenologia da consciência do tempo no estudo das religiões e a importância da tipologia
do tempo mítico para a dobra religiosa.72 O terceiro capítulo retomará o teônimo e a ontolo-
gia quebrada para a interpretação metafórica da religião e comparará, hermeneuticamente, a
ontologia aristotélica e a ontologia do Sinai. A dobra se concretizará pela ontologia do pos-
sível e as possibilidade do ser. O quarto e último capítulo aprofundará a fenomenologia do
possível nas aporias com a sofisticação teológica da interpretação metafórica da virada reli-
giosa. A questão do destino norteará a dobra, alcançando, finalmente, o caminho original da
dobra da religião: a dobra existencial. A dobra da religião aponta para um espiral de uma
antropologia filosófica da própria vida de Ricoeur demonstrando-se como uma reflexão do
ser humano capaz. Na conclusão, serão aprofundadas as reflexões propostas, conforme uma
análise crítica e com considerações hermenêuticas, de onde serão tiradas implicações para a
pesquisa da filosofia e da religião no pensamento de Paul Ricoeur.
71 Consideramos as notas ao longo do texto antiestéticas e impraticáveis, levando o leitor a cansativas viagens às
referências bibliográficas, interrompendo a leitura do texto, com o propósito de consultas precisas acerca do
título e da edição das obras citadas. 72 “This is why I am tempted to say that this tragic resolution constitutes only one extreme of the range of soluti-
ons provided by religions to the relation between sacred and profane time. (A typology of the range of evalu-
ationss attached to this relation would be a worthwhile project)”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions
and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Reli-
gions: Retrospect and Prospect, p. 21.
CAPÍTULO I
UMA DOBRA SINGULAR:
FILOSOFIA E TEOLOGIA EM PAUL RICOEUR
“Penso que a tarefa do século vindouro,
perante a mais terrível ameaça já conhecida pela humanidade,
será a de reintegrar os deuses.”
André Malraux
I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia
A tese, inicialmente, faz um exercício reflexivo acerca da articulação entre filosofia
e teologia em Paul Ricoeur. Apesar de pouco explorada pela academia filosófica, essa arti-
culação é densa, ao ponto de alguns escritores, como Loretta Dornisch, proporem a discus-
são da filosofia e teologia como uma introdução às obras de Ricoeur.73 Outros, como Henry
73 Cf. DORNISCH, Loretta. Faith and Philosophy in the Writings of Paul Ricoeur. The Edwin Mellen Press:
30
Isaac Venema, acreditam que não há filosofia em Ricoeur sem a teologia.74 Por haver em
Ricoeur a presença forte da religião em sua obra, é possível, em motivações ingênuas – na
dinâmica da ingenuidade [naïvité] –, a elevação da religião à julgamentos positivos no au-
tor. Entretanto, conforme destaca Gilbert Vincent, as religiões, em geral, e o cristianismo,
em particular, para Ricoeur, “impõem uma visão geralmente pessimista da condição huma-
na”75. A crítica filosófica, neste caso, faz-se necessária, em nome da razão e da emancipação
do ser humano. Tal crítica é a motivação pelo estudo da religião no filósofo. Há, à vista dis-
so, na reflexão do sagrado, uma nascente de problemáticas originais, cujos discursos inde-
pendem da teologia. A leitura deles é acessível a qualquer leitor interessado em filosofia.
Em seus textos autobiográficos76 Ricoeur nunca escondeu a adesão à fé cristã.77 Par-
te da herança religiosa provém dos avós. O avô era orientado por um protestantismo liberal,
enquanto a avó tinha tendências pietistas. A prática de leitura da Bíblia veio da avó. Entre
tendências opostas, Ricoeur situa suas interpretações bíblicas no âmbito da pneumatologia.78
Para ele a inspiração da leitura estava nos Salmos, nos escritos de Sabedoria e nas Bem-
Aventuranças. Os textos devocionais interessavam mais que os de orientação dogmática.
“Privilegiava a prática privada da leitura, da oração e do exame de consciência”79, declarou
sobre a leitura da Bíblia. “Circulei sempre entre estes dois pólos: um pólo bíblico e um pólo
racional e crítico; dualidade essa que, finalmente, se manteve durante toda a minha vida”80,
conclui sobre a sua hermenêutica bíblica. “Sou muito apegado a essa dualidade”81, comen-
tou em outra ocasião acerca da sua dupla distinção: crente e agnóstico.
O filósofo não se desviou do confronto causado pelas controvérsias que lhe rodea-
vam.82 Em sua convicção de vida, o enfrentamento dos problemas é feito com fé, sobretudo
New York, 1990. 74 Cf. VENEMA, Henry Isaac. “The Source of Ricoeur’s Double Allegiance”, In: TREANOR, Brian; VENEMA,
Henry Isaac. A Passion for the Possible: Thinking with Paul Ricoeur. New York: Fordham University Press,
2010, p. 63. 75 “Selon Paul Ricoeur, les religions en général, le christianisme en particulier, ont généralement imposé une
vision pessimiste de la condition humaine”. Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de
l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p. 23. 76 Sobretudo Réflexion faite e La critique et la conviction. 77 Mais detalhes sobre este assunto: MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1994, pp. 200-
204. 78 Por pneumatologia a tese compreende a dimensão teológica da reflexão da vivência espiritual. 79 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversar com François Azouvi e Mard de Launay. 2009, p. 16. 80 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversar com François Azouvi e Mard de Launay. 2009, p. 16. 81 RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 23 82 RICOEUR, Paul. Living up to Death. The University of Chicago Press: Chicago, 2007, p. xix.
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nas situações insondáveis e inexplicáveis. De sua fé, atestou: “o acaso transformado em des-
tino por uma escolha contínua”83. Ser cristão extrapola os limites dogmáticos ou tradicio-
nais. Concerne, antes de tudo, uma rede de preocupações, tanto de motivações filosóficas
como religiosas, acerca da alteridade, da vulnerabilidade, da finitude e do reconhecimento.
Segundo ele, o cristão é “alguém que professa a adesão primordial à vida, palavras e morte
de Jesus”84. Ricoeur acompanha a tradução de André Chouraqui da palavra grega pistis (que
poderia ser traduzia por “fé”) enquanto adesão, aderência absoluta.85 O cristianismo se inse-
re entre o destino e a convicção. É no sentido vivencial do assumir o destino que há a esco-
lha constante. O termo adesão, deste modo, apresenta-se como o mais adequado, uma vez
que a adesão à determinada tradição interpela vivências e aproxima uma esperança imanente
enraizada na crença do transcendente.86
“Transformar o acaso em destino” é uma fórmula que aparece frequentemente nos
escritos de Ricoeur, conforme também notou Gilbert Vincent87, sobretudo quando o filósofo
desejou responder à questão de sua adesão religiosa. Essa fórmula que será aprofundada na
última etapa da pesquisa ao versar sobre uma filosofia antropológica.
No coração da minha própria convicção, da minha própria confissão, eu re-
conheço que há um fundo que não posso controlar. Eu discirno no fundo da
minha adesão uma fonte de inspiração que, por sua exigência de pensamen-
to, sua força de mobilização prática e sua generosidade emocional, ultra-
passa a minha capacidade de acolhimento (recepção) e compreensão.88
A mediação da fé em Ricoeur implica numa reflexão a respeito do papel da adesão
religiosa, considerando o mistério e a profundidade insondável desta adesão.89 Ricoeur, num
artigo de 1996, menciona sua relação inquieta com a figura de Jesus o Cristo diante da in-
sondabilidade da esfera religiosa. Jesus é apenas um modelo a ser seguido? Ou é o substitu-
83 “‘Un hasard transformé en destin par un choix continu’: mon christianisme”. RICOEUR, Paul. Vivant jus-
qu’à la mort: suivi de fragments. 2007, p. 99. 84 “A Christian: someone who professes a primordial adhesion to the life, the words, the death of Jesus”. RIC-
OEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69. 85 Cf. DOSSE, François. Paul Ricoeur: Les sens d’une vie (1913-2005), p. 556. 86 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 63. 87 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 122. 88 “Au creux même de ma propre conviction, de ma propre confession, je reconnais qu’il y a un fond que je ne
maîtrise pas. Je discerne dans le fond de mon adhésion une source d’inspiration qui, par son exigence de
pensée, sa force de mobilisation pratique, sa générosité émotionnelle, excède ma capacité d’accueil et de
compréhension.” RICOEUR, Paul. “La croyance religieuse: le difficile chemin du religieux”, In: JACOB,
Odile (Org.) La Philosophie Et L'Éthique: Université De Tous Les Savoirs T.11; pp. 223-224. 89 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 68.
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to de nossas dores que morrera por nós? Ricoeur debate com os extremos: discorda da ar-
gumentação que esgota o problema da existência na figura de Jesus, enquanto modelo a ser
copiado, como também dos discursos que usam a fé para suportar teorias sacrificiais – que,
para Ricoeur, apenas deturpam o próprio ato de crer.90 Nas palavras dele: “mantive-me fiel a
uma estratégia de partir lentamente do meu trabalho familiar, eu queria buscar em tradições
extra-bíblicas o encorajamento para um outro modo de falar”, que era o filosófico com raí-
zes cristãs.91 Neste ponto há a relação entre a adesão e a fé, cuja coexistência sustenta a ar-
gumentação que torna possível o pensar cristão. Em outras palavras, ocorre o equilíbrio di-
fícil entre o distanciamento e o comprometimento pessoal.92 Diante deste aspecto, a contro-
vérsia é distinta da aproximação comparativa que se mantém neutra – indiferente de qual-
quer comprometimento religioso. Há, no cerne da escolha, a separação entre compromisso e
sectário: escolha entre ou escolha contra. A primeira leva à aproximação, enquanto a se-
gunda à exclusão.
A sedimentação do problema da adesão religiosa está no que ele chama de “escolha
contínua” entre oportunidade e destino. A escolha contínua não se relaciona à escolha sectá-
ria [hairesis] – antes se dá pela dialética entre comprometimento controverso e distancia-
mento comparativo.93 Ricoeur contrasta seu posicionamento ao de Renée Piettre ao declarar:
“determinada religião existe somente por se definir diante de outra”94. Para Ricoeur, há algo
mais. A mera oscilação, no lugar de uma dialética refletida, contorce a adesão à determinada
tradição confessional. A oscilação é o que caracteriza, para Ricoeur, o “triângulo teológico”:
deuses egípcios com cabeças de animais, deuses gregos com forma humana, o noniconi-
cism95 do Deus dos judeus. Tal oscilação não é apenas teológica, mas filosófica. Representa
um movimento comum no pensamento de Ricoeur no qual reflete sua postura por preferir a
tradição como um espaço de orientação. Um destes deslocamentos encontra-se na orienta-
90 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 71. 91 “Remaining faithful to a strategy of going slow familiar from my work, I want to seek in extrabiblical tradi-
tions encouragement for another way of speaking”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 72. 92 Este é o espírito da “controvérsia” para Ricoeur, contrariando o que Renée Piettre denominou por “posição
intelectual subjetiva” Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death. 2007, p. 73. 93 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 75. 94 PIETTRE, Renée apud BORGEAUD, Philippe, Aux origins de l’histoire des religions, Diogenes 52, no. 205
(January-March 2004), pp. 134-139, p. 135. 95 Na história comparada das religiões, noniconicity: um deus que é um nome, mas sem ídolo em forma humana
no modo grego ou misturado à uma forma animal. Cf. BORGEAUD, Philippe. Aux origines de l’histoire des
religions, Paris, éditions du Seuil (Bibliothèque du XXIe siècle), 2004, 311p.
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ção da fé para a esperança, implicando um espaço de organização da fé da decisão e da ori-
entação pela memória cultural e os usos da linguagem, pelo valor semântico das palavras.
Quando eu levantei o problema da esperança em vez da fé ou mesmo do
amor, a minha pressuposição é que um deslocamento da problemática pode
acarretar uma mudança radical na natureza própria da confrontação entre
filosofia e teologia (...). Pode ser que este “intellectus spei”, esta inteligibi-
lidade da esperança, não consiste em sinalizar na direção de um objeto es-
pecífico, mas para uma mudança estrutural no seio do discurso filosófico.
Essa mudança estrutural pode concernir o que poderíamos chamar de ato
de encerramento deste discurso (...), ou melhor, o horizonte do discurso fi-
losófico.96
Os deslocamentos e a complexidade do horizonte filosófico de Ricoeur comportam a
aporia e anunciam a ambiguidade da sua obra e de seu pensamento.97 Em um artigo sobre a
filosofia e o cristianismo, de 1936, Ricoeur discorre sobre os roubos e furtos da filosofia.98
Ao distinguir a filosofia, basicamente, em dois grupos – os espiritualistas (tomistas, cartesi-
anos, pós-kantianos) e os materialistas (empirismo inglês, materialismo clássico, Karl Marx)
– a riqueza da discussão encontra-se nos filósofos do grupo espiritualista, os quais confron-
tam suas filosofias com o cristianismo. Por que estes filósofos não são cristãos? No âmbito
dessa indagação, Ricoeur sustenta que “é necessário localizar com precisão o ponto onde a
sabedoria humana tropeça; porque este é o lugar da fé.”99 Deve-se destacar que se trata de
uma posição inicial na qual a dificuldade da filosofia acompanha a dificuldade da teologia.
Para Tillich, onde a filosofia é uma questão e a teologia é uma resposta, ao passo que para
Ricoeur a teologia é uma questão para a filosofia. O lugar da fé, no tropeço da sabedoria
humana, aponta para a tarefa do pensamento engajado filosoficamente e comprometido com
raízes religiosas.
96 “Lorsque je soulève le problème de l’espérance plutôt que celui de la foi ou même celui de l’amour, ma
présupposition est qu’un déplacement de problématique peut entraîner un changement radical dans la natu-
re même de la confrontation entre philosophie et théologie (...). Il pourrait se faire que ce ‘intellectus spei’,
cette intelligibilité de l’espérance ne consiste pas à faire signe vers un objet spécifique mais vers un chan-
gement structurel au sein du discours philosophique. Ce changement structurel pourrait concerner ce que
nous pourrions appeler l’acte de clôture de ce discours (...), ou mieux, l’horizon de discours philosophi-
que”. RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 111-112. 97 Vale notar que a aporia, até então apresentada timidamente nesta pesquisa, ressurgirá durante toda a reflexão.
Utilizada por Ricoeur em objetos específicos (cf. a aporia do mal, em A Simbólica do Mal) a aporia aqui é
trabalhada no seu sentido filosófico mais bruto, enquanto uma questão sem saída. 98 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9. 99 “Il est nécessaire de situer avec précision le point où la sagesse humaine vient achopper; car ce point est le lieu
de la foi.” RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur,
1936, n°9, p. 542.
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A reflexão deve considerar duas vertentes de pensamentos. A primeira está em Léon
Brunschvicg e em sua filosofia do espírito. O espírito é esforço, é movimento. “Eu sou o
que sou”, i.e., espírito, em hebraico, רוח, ruah, o sopro, o progresso intelectual, a refusa do
absoluto, da perfeição, no qual todo pensamento se dá na revelação.100 Nesta vertente, o
espírito remete a um intelectualismo, uma espécie de julgamento claro, comprometido inte-
gralmente com o ser humano. Com isso, há oposição ao Deus da religião enquanto autorida-
de, pois o ser humano é colocado ao centro e evita-se qualquer interpretação de um Deus
separado. Segundo esta linha espiritual, o conceito de homem aparece na ideia da união, de
um trajeto puro de pensamento no qual ser humano é, a rigor, uma tarefa filosórica e espiri-
tual. As ideias da filosofia do espírito despertam uma filosofia do misticismo, representada,
segundo Ricoeur, por Bergson.101 O passo da filosofia do misticismo continua na purifica-
ção do pensamento, refinando os elementos históricos, linguísticos e dogmáticos. Segundo
Ricoeur, o caminho deve ser equilibrado. Concordando com Espinoza, a religião, nesta
questão, é tratada como uma pré-figuração mitológica que permite acesso às verdades e sa-
bedorias.102
Herdeiro de Gabriel Marcel, a fé denota um certo paradoxo, um certo escândalo.
Pois, enquanto “feito único”, i.e., a encarnação de um modo autêntico de ser, a fé reside no
escândalo de temas pelos quais não há clareza em si próprios. Tal entrega e adesão, mesmo
dividida em diferentes feitos, é o abraço da gratidão sem restrição.
Um certo escândalo é, não apenas uma admissão ou mesmo uma aceitação,
um abraço com gratidão desesperada e sem restrição. A partir do momento
em que acontece o contrário, onde o filósofo busca por qualquer método
atenuar esse escândalo, esconder esse paradoxo ou reduzi-lo em uma dialé-
tica da razão ou da mente, nesta medida particular, ele deixa de ser filósofo
cristão.103
100 BRUNSCHVICG, M. “Bulletin de la Société française de philosophie”, 1923, apud RICOEUR, Paul. “Note
sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9, p. 543. 101 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 547. 102 RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9, p.
548. 103 “Un certain scandale est, non point seulement admis ou même accepté, mais étreint avec une gratitude éper-
due et sans restriction. Dès le moment au contraire où le philosophe cherche par un procédé quelconque à
atténuer ce scandale, à masquer ce paradoxe, à résorber le donné révélé dans une dialectique de la raison ou
de l’esprit, dans cette mesure précise, il cesse d’être un philosophe chrétien”. MARCEL, Gabriel. “Compte-
rendu”, In: La Nouvelle Revue des Jeunes, 15, 1932 apud RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la
philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9, p. 548.
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Nesta dinâmica, há um estado [statut] da filosofia para o cristão que exige uma tare-
fa. “A tarefa do cristão que filosofa pode ser considerada em duas formas, de acordo com
dois movimentos de pensamento com significados muito diferentes”, sustenta Ricoeur.104
Duas formas, dois movimentos: indicações aporéticas da dobra da religião. A primeira via
trata-se da síntese; a segunda, da apologética. Na síntese, o trabalho do cristão situa as dife-
rentes disciplinas do ser humano que fornecem sentidos na esfera da religião. Este situar é
um ato filosófico do assumir a fé em sua complexidade existencial. “Amarás, pois, ao Se-
nhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e
de todas as tuas forças” (Marcos 12:30). A adesão religiosa, antes de um empecilho ou im-
pedimento, implica na reflexão dialogal da crença com a filosofia. O cristão que filosofa
enaltece tudo o que carrega sentido, nas diversas esferas da vida, em diálogo com a filoso-
fia: situa-se a arte e função artística em relação à fé e à vida religiosa, a ciência em relação à
salvação, os problemas da filosofia comum aos ensinamentos da fé.105 Em suma, os elemen-
tos da síntese revelam uma teologia descolada da dogmática e indica métodos filosóficos,
uma vez que esses se encontram nos critérios racionais e naturais. A via da apologética, por
outro lado, enquanto problema de abordagem, ressalta a dificuldade da relação da fé com a
as demais ciências humanas.106 Há uma inclinação exclusiva aos elementos da fé, enquanto
sentimento, razão e prática preparam a reflexão para a adesão religiosa. Um dos expoentes
desta vertente é Tomás de Aquino e a preparação positiva do ato da fé que converge toda
palavra e pensamento na crença em Deus.107 Para Aquino – o último grande mestre de um
cristianismo não dividido –, todas as faculdades humanas estão a serviço de Deus, princi-
palmente a razão mais elevada.108 Outro expoente, segundo Ricoeur, é Karl Barth e a inicia-
ção à conversão. Para o teólogo suíço e reformado, há um conteúdo exclusivo da revelação
104 “La táche du chrétien qui philosophe peut être envisagée de deux façons, selon deux mouvements de pensée
de sens très différent”. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le
Semeur, 1936, n°9, p. 549. 105 “Ce travail d’expression est avant tout un travail de raccords, de synthèse. Il importe de situer les différentes
disciplines de 1’homme par rapport à ce qui leur donne tout leur sens ; par exemple, il faut situer l’art et 1a
fonction de l’artiste par rapport à la foi et à la vie religieuse, situer la science, ses légitimes ambitions, ses
résultats actuels par rapport au salut ; enfin rattacher 1es problèmes de la philosophie commune aux
enseignements d’e la foi”. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In:
Le Semeur, 1936, n°9, p. 550. 106 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 551. 107 AQUINO, Tomás. Suma Teológica, Vol. 1., São Paulo: Loyola, 2001, p. 147. 108 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 552.
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que não cabe no humanismo secular. A exclusividade de tais conteúdos aprofundam o pen-
samento cristão na inquietude e desespero do mundo, tornando urgente o caminho da con-
versão. Há, evidentemente, no pensamento de Barth, um apontamento para o conhecimento
do si e do mundo diante da leitura do Evangelho. Entretanto, a vida da liberdade cristã é
restrita a um “falar de Deus”, exclusivamente.109
Embora estas duas indicações pareçam distintas, em tensão elas permitem uma ter-
ceira via, na qual se situa a dobra da religião: a tarefa negativa. Ricoeur sugere a supressão
dos obstáculos no ato de filosofar do cristão.110 A tarefa do filósofo de expressão cristã é
criticar a pretensão das ciências e dos filósofos em estipularem uma resposta última, en-
quanto síntese, e um rompimento da adesão religiosa que não passa pela reflexão da inge-
nuidade, enquanto apologética. A filosofia motivada pelo cristianismo, portanto, trata-se de
uma filosofia crítica. Neste sentido, a filosofia do filósofo de expressão cristã é uma ciência
dos limites.111 Trata-se de uma reflexão essencialmente socrática, levemente “irônica”, afi-
nal busca romper com a ingenuidade. Diante da instabilidade oriunda do atrito entre fé e
faculdades humanas, a tarefa negativa ressalta a dialética da apologética negativa e positiva.
Se a apologética negativa denuncia as usurpações do mundo e os limites da sabedoria hu-
mana, a apologética positiva, na palavra de Deus “Você, siga-me” [toi, suis-moi], apresenta
um caminho diante do negativo que não é, necessariamente, reconstruído dialeticamente:
trata-se de um encontro e uma constatação.112
Ricoeur encarna a aporia no seu método filosófico e a religião é o solo fértil desta re-
flexão. O envolvimento entre fé e razão, tradição religiosa e filosófica, mito e logos, símbo-
lo e narrativa e esperança, e ser quebrado inaugura o ideal ricoeuriano no diálogo entre a
filosofia e a teologia. É no solo fértil destas reflexões que Ricoeur se declara um filósofo
autônomo de expressão cristã.
109 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 554. 110 “Le philosophie chrétien a une autre tâche que la synthèse dont nous parlions plus haut : non pas une prépara-
tion positive à l’acte de foi, non pas une initiation à la conversion, mais une tâche négative, une suppression
d’obstacles” RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur,
1936, n°9, p. 556. 111 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 556. 112 “Il se recontre et se constate”, RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”,
In: Le Semeur, 1936, n°9, p. 557.
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I.1.1 A autonomia de um filósofo
Na introdução do livro O Si-Mesmo Como Um Outro, Ricoeur expõe a sua intenção
de buscar um “discurso filosófico autônomo” para proporcionar conclusões filosóficas que
se sustentam por si mesmas.113 Além disso, conforme declarado no seu livro póstumo Vivo
Até a Morte!, Ricoeur não se denomina um filósofo cristão, mas, antes de tudo, um filósofo
por excelência. Devido a herança cristã na formação do filósofo, não deveríamos confundir
que Ricoeur buscou ou propôs uma filosofia cristã. Pensar em Ricoeur como um filósofo
cristão pode prejudicar sua própria filosofia114, afinal, ele recusou o título de “filósofo cris-
tão”.115 O ato de filosofar não deve ser impedido pela conivência do dogmatismo religioso.
O filósofo é alguém consciente de sua contingência; por exemplo, ter nascido num determi-
nado contexto social, carregar um determinado idioma.
Christina Gschwandtner identificou três momentos significativos a respeito da pre-
sença informal e indireta do religioso no pensamento filosófico de Ricoeur. O primeiro está
no reconhecimento explícito do autor em entrevistas e ou textos autobiográficos. Apesar de
ser conivente com alguns entrevistadores que o forçavam admitir – ou tolerar – a sobreposi-
ção entre o seu trabalho filosófico e religioso, Ricoeur enfatiza a distinção entre filosofia e
teologia.
Empenhava-me muito em ser reconhecido como um professor de filosofia,
que ensina filosofia numa instituição pública e fala o discurso comum, por-
tanto, com todas as reservas mentais, inteiramente assumidas, que isso su-
punha, pronto a deixar-me acusar periodicamente de ser um teólogo disfar-
çado que filosofa, ou um filósofo que faz pensar ou deixa pensar o religio-
so. Assumo todas as dificuldades desta situação, inclusivamente a suspeita
de que, na realidade, não terei conseguido manter essa dualidade tão estan-
que.116
Por conta dessa distinção, o seu trabalho na teologia e na religião sempre foi de um
filósofo e isso deve ser evidenciado.117 A respeito da separação do domínio filosófico e da
113 “O primeiro motivo da exclusão, que sei ser discutível e talvez lamentável, diz respeito à preocupação que
tive em manter até a última linha um discurso filosófico autônomo”. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como out-
ro, 2014, p. XL. 114 Cf. ABEL, Olivier In: RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. xix. 115 Cf. “Fragment 0(1)”, In: RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69. 116 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 237. 117 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 148.
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tradição religiosa, a fim de explicitarmos o problema, podemos nos apoiar em algumas pes-
quisas. A primeira, de Peter Kenny, dissecou, em três etapas, os movimentos ricoeurianos
nos dois domínios: no início de sua pesquisa, as fronteiras da filosofia e da teologia eram
fluídas e confusas; na segunda etapa, buscando o rigor filosófico, as demarcações estabele-
cidas tornaram-se evidentes; e, por fim, no terceiro estágio, Ricoeur sentiu-se livre nova-
mente para envolver os dois discursos.118 Tal elucidação evita o equívoco de estipularmos
uma meta exclusiva da religião no pensamento de Ricoeur, conforme aconteceu com Henry
Isaac Venema e a sua teoria de que “a exploração filosófica de Ricoeur não pode ser isolada
da fé religiosa, pois ela é motivada profundamente pela sua fé cristã”119. É comum encon-
trarmos nos especialistas em Ricoeur apontamentos acerca do cuidado do filósofo em não
resumir a religião à um projeto filosófico, como também não fazer de sua filosofia um espa-
ço profético.120 Em uma importante nota editorial à obra Leituras 3: Nas Fronteiras da Fi-
losofia – obra que reúne alguns artigos importantes do autor acerca da teologia e religião –
Olivier Mongin enfatiza que Ricoeur “não deixou de distinguir os regimes próprios dos dis-
cursos teológicos e filosóficos, de marcar os limites impostos aos seus diferentes trabalhos
com o fim de evitar a ‘confusão dos gêneros’ ou a ‘falsa síntese’”121. Se houver alguma ra-
dicalidade no posicionamento filosófico de Ricoeur, esta estaria nas opções metodológicas
(e.g., fenomenologia e a via longa) que caracteriza a sua própria obra.122
Inspirado no método e no corpo filosófico dos livros de Ricoeur, Boyd Blundell
apresenta as três facetas do filósofo: o hermeneuta bíblico, o filósofo da religião e o profis-
sional da filosofia.123 Blundel, em suas observações a respeito da receptividade de cada per-
118 Cf. KENNY, Peter. “Conviction, Critique and Christian Theology”, In: Memory, Narrativity, Self and the
Challenge to Think God: The Reception within Theology of the Recent Work of Paul Ricoeur. Munster: LIT
Verlag, 2004, pp. 92-102. 119 “Ricoeur’s philosophical explorations have indeed been deeply motivated by his Christian faith and cannot be
isolated from his religious faith”. VENEMA, Henry Isaac. “The Source of Ricoeur’s Double Allegiance”, In:
TREANOR, Brian; VENEMA, Henry Isaac. A Passion for the Possible: Thinking with Paul Ricoeur. New
York: Fordham University Press, 2010, p. 63. 120 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Ed. Du Seil, 1994, especialmente o quinto capítulo. 121 MONGIN, Olivier, In: RICOEUR, Paul. Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, p. 7. 122 O descolamento de qualquer pretensão de teologia em seus textos é refletido na nomeação de suas obras.
Ricoeur denomina os seus artigos reunidos na coleção Leituras de “crônicas”. Desde os primeiros escritos,
nos idos da década de 50 e 60, o filósofo estava satisfeito com a abordagem livre e poética acerca dos escritos
em religião. A título de exemplo, “La condition du philosophe chrétien” [sur R. M.EHL, La condition du
philosophe chrétien], In: Christianisme social, 56, (1948), 551-557 ; “Réflexions sur « Le diable et le Bon
Dieu »”, In: Esprit, 19 (1951), novembre, 711-719; “Prospective du monde et perspective chrétienne”, In:
Cahiers de Villemétrie (Prospective et planification), 1964, n° 44, 16-37; são alguns dos diversos artigos
apresentados como crônicas. 123 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:
39
fil, desconfia que as duas primeiras faces de Ricoeur receberam um destaque indevido na
recepção norte-americana do autor, enquanto que na Europa destacou-se apenas a terceira
face do filósofo. O nosso desafio inicial, portanto, é considerar as três facetas na mesma
escala de estudo tendo em vista o horizonte da autonomia da filosofia.
I.1.2 Um filósofo sem absoluto
Por razões culturais e institucionais, Ricoeur evitou, ao longo de décadas de trabalho
filosófico, envolver aspectos do religioso em seu pensamento filosófico. “Eu queria”, decla-
rou em sua autobiografia intelectual, “permanecer fiel ao antigo pacto que fizera, no qual as
fontes não-filosóficas da minha convicção não seriam misturadas com os argumentos do
meu discurso filosófico”124. Presidente honorário do Instituto Internacional de Filosofia, na
França, e professor de teologia na Faculté de théologie protestant de Paris (hoje Institut
Protestant de Théologie), Ricoeur poupou o movimento cometido por Paul Tillich a respeito
de uma certa união entre ontologia (filosofia) e religião (teologia). Ricoeur descobriu, logo
cedo, nos círculos de estudantes protestantes que ele frequentava, as obras de Karl Barth e
sua defesa à separação entre fé e razão, teologia e filosofia.125 Por conta disso encontramos
em suas obras a fidelidade explícita à filosofia. O engajamento de Ricoeur na teologia, en-
quanto esforço de não-filosofia, não propõe a religião como um fim ou uma meta da própria
filosofia, mas coexiste em termos reflexivos dentro da própria ambiguidade.126
Acerca desta ambiguidade radical, Ricoeur diz: “estou a pensar, por exemplo, nos
domínios do religioso e do filosófico, que mantive firmemente afastados por razões que
sempre procurei justificar”127, declarou numa entrevista datada entre os anos de 1994 e
1995. Ricoeur foi filósofo e cristão. Ele distinguiu escrupulosamente suas análises filosófi-
Indiana University Press, 2010, p. 65. 124 “I wanted to remain faithful to the old pact I had made that the non philosophical sources of my conviction
would not be mixes together with the arguments of my philosophical discourse.” RICOEUR, Paul. “Intellec-
tual Autobiography”, In: The Philosophy of Paul Ricoeur. The Library of Living Philosophers XXII, ed.
Lewis Edwin Hahn. Chicago: Open Court, 1995, p. 50. 125 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 41. 126 A não-filosofia tem um espaço importante no pensamento de Ricoeur. A maioria das crônicas em Leituras 3 –
Nas Fronteiras da Filosofia são iniciadas com a importância do discurso não-filosófico para a filosofia (mo-
vimento pelo qual Ricoeur chama de “retomada”) Cf. RICOEUR, Paul. Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo-
sofia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 115. 127 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversar com François Azouvi e Mard de Launay, 2009, p. 10.
40
cas e suas convicções religiosas. Ao mesmo tempo que é um filósofo, ele é, por outro lado,
em suas palavras, “um cristão de expressão filosófica, assim como Rembrandt é um pintor e
cristão de expressão pictural simplesmente e Bach é um músico e cristão de expressão mu-
sical simplesmente”.128 Ricoeur é, portanto, um filósofo e cristão de expressão filosófica.
Não é rara esta dualidade na história da filosofia. A relação de Ricoeur nessa duali-
dade poderia ser comparada a de Emmanuel Levinas: enquanto Levinas circulou entre o
judaísmo e Heidegger, Ricoeur transitou entre a razão filosófica e a reflexão religiosa. “Tive
a preocupação – ao viver uma espécie de dupla fidelidade – de não confundir as duas esfe-
ras, de fazer justiça a uma negociação permanente no seio da polaridade bem instalada”129,
esclareceu Ricoeur sobre a relação filosofia e teologia. Na teologia, “Ricoeur é conhecido
como um leitor da Bíblia”130. Na filosofia, apesar de Jean-Paul Sartre, em tom debochado,
referir-se, ocasionalmente, a Ricoeur como “o pastor da fenomenologia”131, Ricoeur se de-
nominava agnóstico. “Sou agnóstico no plano filosófico”132, esclarece sobre sua relação
com a tradição religiosa. Uma vez posto o problema da existência de Deus – cujo problema
das provas da existência de Deus o levaram a tratar a filosofia como uma antropologia –,
Ricoeur reformula a sua abordagem religiosa. Durante trinta anos, sob a influência de Karl
Barth, conforme confessou numa entrevista133, radicalizou o dualismo, a ponto de negar
qualquer estada relativamente a Deus na filosofia. Há, portanto, uma “dupla fidelidade”
[double allégeance]134, i.e., um conflito interior no início de sua licenciatura que contrastou
As Duas Fontes da Moral e da Religião, de Bergon, de um lado, e o regresso radical e anti-
filosófico ao texto bíblico, de Barth, por outro lado. Identificou esse estágio de sua forma-
ção como o conflito entre a filosofia religiosa de tipo bergsoniano, cujo interesse era genuí-
no, e o radicalismo barthiano, que o seduzira de igual modo. Tal estágio foi denominado,
128 “Je ne suis pas un philosophe chrétien, comme la rumeur en court, en un sens volontiers péjoratif, voire dis-
criminatoire. Je suis, d’un côté, un philosophe tout court, même un philosophe sans absolu, soucieux de, voué
à, versé dans l’anthropologie philosophique. Et, de l’autre, un chrétien d’expression philosophique, comme
Rembrandt est un peintre tout court et un chrétien d’expression picturale et Bach un musicien tout court et un
chrétien d’expression musicale.” RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments, 2007, p. 24. 129 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 17. 130 MANDRY, Christof. “The Relationship Between Philosophy and Theology in the Recent Work of Paul Ri-
coeur”, In: JUNKER-KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge
to Think God, p. 63. 131 Cf. REAGAN, Charles. “Conversatiosn With Paul Ricoeur”, In: VERHEYDEN, J. HETTEMA, T. L., VAN-
DECASTEELE, P. Paul Ricoeur – Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven-Paris-Walpole, MA,
2011, p. 229. 132 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 237. 133 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236-237. 134 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, Paris: Calmann-Lévy, 1995, p. 17.
41
por Ricoeur, como justaposição conflitual e caracterizou as intervenções relativas à filosofia
da religião em seu pensamento.
Em suma, a justaposição conflitual é a preservação da aporia na encarnação da tarefa
negativa. Em diversos textos, no âmbito do agnosticismo e da atestação, o outro, enquanto
elemento de reflexão em O Si-mesmo como um outro, é uma aporia.135 Ao refletir sobre a
dificuldade de uma resposta ao mal, Ricoeur levantou a hipótese: “a sabedoria não seria
reconhecer o caráter aporético?”136 Segundo Boyd Blundell, a aporia em Ricoeur é inaugu-
rada pela fenomenologia do tempo.137 A diversidade de aporias denotam conflitos e com-
plexidade no pensamento de Ricoeur e apontam para uma filosofia antropológica.
I.1.3 Conflitos de uma antropologia
A primeira grande obra de Ricoeur em sua formação – o estudo sobre a vontade e o
involuntário – já apresentava a justaposição conflitual da qual o autor se refere em suas me-
ditações posteriores acerca da religião. Voluntário e Involuntário possui raízes na tragédia
grega (sobre o problema do destino), na vivência na Primeira Guerra Mundial (como teste-
munha da avareza humana) e, sobretudo, na influência exercida pela teologia calvinista da
predestinação.138 Desde o início dos estudos filosóficos, Ricoeur estava consciente que a
justaposição conflitual implicaria em uma tomada de decisão pessoal: “Como resolver as
contradições criadas pela minha situação na encruzilhada de duas correntes de pensamento
que não se conciliam: a crítica filosófica e a hermenêutica religiosa?”139. Trata-se da dupla
adesão, eclética e múltipla, que representa a originalidade da abordagem de suas reflexões.
135 Cf. ANDERSON, Pamela Sue. “Agnosticism and Attestation: An Aporia concerning the Other in Ricoeur's
‘Oneself as Another’”. In: The Journal of Religion, Vol. 74, No. 1, The University of Chicago Press (Jan.,
1994), pp. 65-76. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1203615 Accessado: 05/04/2011 136 RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, SP: Papirus, 1988, p. 45. 137 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy, p. 81. A obra monumental Tempo e
Narrativa é iniciada, motivada pelo livro XI das Confissões de Santo Agostinho, com as aporias da experiên-
cia do tempo. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1, p. 17. 138 A despeito de admirar o tratado de Lutero sobre o arbítrio servil. Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Con-
vicção: Conversar com François Azouvi e Mard de Launay. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 50. 139 “Comment résoudre les contradictions créés par ma situation à la croisée de deux courant de pensée qui ne se
concilient pas : la critique philosophique et l’herméneutique religieuse ? Mon problème était (...) de savoir si
ce que je faisais à l’intérieur du champ philosophique n’était pas de l’éclectisme, si réellement j’articulais de
façon originale et honnête mes allégeances multiplies” RICOEUR, Paul. La critique et la conviction. 1995, p.
211.
42
A religião é “a outra perna” com a qual Ricoeur exerce suas faculdades. Pode-se falar que,
entre a retórica e a poética, a religião ocupa um lugar privilegiado de alianças140, cujo papel
aponta para a responsabilidade, a alteridade, a esperança e o além do ser.
Ricoeur sempre demonstrou, ao lado dos colegas de reflexão, a autonomia de seus
pensamentos.141 Conforme lhe sugeriu Gabriel Marcel, Ricoeur cuidou para não cair num
certo ecletismo cuja articulação (original e ingênua) fosse fiel a Husserl, Nabert, Freud e ao
próprio Gabriel Marcel. Desta fidelidade intelectual – ou ainda, honestidade intelectual –
Ricoeur trabalhou, na perspectiva da justaposição conflitual, a questão da culpabilidade e da
fragilidade humana, como também a simbólica do mal: “a passagem de uma análise da es-
sência da vontade e uma simbólica dos mitos que as figuras e as genealogias do mal expres-
sam”142.
É na condição da justaposição conflitual, com solo na dupla adesão, que surge a
abordagem da religião feita por Ricoeur enquanto uma aporia. A tendência de Ricoeur em
assimilar diferentes posições filosóficas sem renegá-las, sobretudo no diálogo com a teolo-
gia, é equivalente ao princípio da caridade paulina.143 O pensamento religioso propões ques-
tões às orientações filosóficas maiores, a saber, a antropologia. “Eu sou, por um lado, um
filósofo, nada mais, até mesmo um filósofo sem um absoluto, preocupado, dedicado e imer-
so em uma antropologia filosófica”144. O projeto de Ricoeur desde o início de seu método
fenomenológico até o enxerto hermenêutico é, segundo Gilbert Vincent, antropológico.145
Esta sensibilidade parece escapar dos leitores que tendem a elevar a questão da religião no
pensamento do autor ou a rejeitá-la. Interessa a Ricoeur o estudo de determinado segmento
da história do cristianismo e do judaísmo – e do reencontro destes com a filosofia –, o exa-
me crítico dos escritos sobre religião dos filósofos, enfim, a interpretação direta e pessoal de
determinados textos bíblicos. As reflexões propostas por Ricoeur resistem à tentação de
definir, em suas obras, um corpo em particular acerca da religião. Ao partir de motivações
140 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, p. 49, apud Cf. Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 27. 141 A autonomia será aprofundada na última etapa desta pesquisa ao versar sobre a dobra existencial. 142 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction. Paris, Calmann-Lévy, 1995, p. 52. 143 Cf. RICOEUR, Paul. History and Truth, p. 6-7. 144 “I am, on one side, a philosopher, nothing more, even a philosopher without an absolute, concerned about,
devoted to, immersed in philosophical anthropology”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69. 145 “À en juger selon l’ordre des raisons – qu’il ne faut pas confondre avec celui des motivations personnelles –,
le projet de Ricoeur est donc de nature anthropologique.” Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur,
2008, p. 28.
43
diversas, suas análises promovem uma leitura independente, cortada de dogmas, abertas
para considerações vastas e novas.146 Constata Gilbert Vincent:
A originalidade do empreendimento filosófico de Paul Ricoeur, a este res-
peito, é de empreender os preconceitos subjacentes às representações em
via de construir o novo espaço de encontro de uma razão mais modesta e
uma religião mais crítica com respeito as suas afirmações e práticas.147
Ricoeur não oscila de uma área à outra, da filosofia à teologia ou da teologia à filo-
sofia, sem que os limites estejam demarcados e sem certificar ao leitor sobre o que o mesmo
lerá. Dominique Janicaud, ao analisar a virada da teologia [theological turn], elogiou a rígi-
da distinção entre as disciplinas de filosofia e teologia em Ricoeur.148 A distinção entre teo-
logia e filosofia não diz respeito à nenhuma desconfiança profissional ou nem mesmo con-
vicção pessoal, mas, segundo Christina Gschwandtner – que mapeou e distinguiu a questão
da religião na obra de Paul Ricoeur – esta separação é parte do próprio método filosófico de
Ricoeur.149
I.1.4 O acesso à tese: a intersecção no teônimo
Após delimitar a abordagem da tese e preparar os assuntos e referências para a apre-
sentação das mesmas, iniciamos o trabalho da hipótese da pesquisa. A bifurcação entre filo-
sofia e teologia tematiza a hipótese da tese e anuncia os seus objetivos. Retomando a intro-
dução desta pesquisa, questionado por François Azouvi e Marc de Launay, no ano de 1996,
em uma conversa sobre moral e ética, a respeito da possibilidade da reflexão da existência
implicar em duas ordens (uma filosófica, outra religiosa), Ricoeur argumentou que susten-
tou, durante muitas décadas, ao longo do seu trabalho, a distinção entre os domínios da filo-
146 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 25. 147 “L’originalité de l’entreprise philosophique de Paul Ricoeur, à cet égard, est d’entreprise les préjugés sous-
tendant les représentations en vue de construire le nouvel espace de rencontre d’une raison devenue plus mo-
deste et d’une religion devenue plus critique à l’égard de ses affirmations et de ses pratiques”. VINCENT,
Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p. 11. 148 Cf. JANICAUD, Dominique. Phenomenology and the “Theological Turn”: The French Debate, New York:
Fordham University Press, 2001, p. 34. 149 “Ricoeur’s stronger divisions between the two are rooted not simply in professional insecurity or personal
conviction, but in his particular philosophical approach”. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and
the Relationship Between Philosophical and Religion in Contemporary French Phenomenology”. In: Études
Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 8.
44
sofia e da religião.150 Entretanto, ele declarou, ao final de sua vida, que tal separação já não
lhe parecia apropriada. “Creio”, conclui Ricoeur, “ter avançado suficientemente na vida e na
interpretação de cada uma dessas duas tradições para me arriscar sobre os lugares de inter-
secção”.151 É esse risco e esses lugares de intersecção que interessam à esta pesquisa. É
neste ponto que a tese O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul Ricoeur é inaugu-
rada. A intersecção é a novidade do estudo da dobra da religião em Paul Ricoeur. “É aliás
um problema que me proponho, hoje, no fim da vida: o que acontece apesar de tudo na in-
tersecção?”, pontuou em outra entrevista, desta vez para Edmond Blattchen.152 A hipótese
da tese da dobra da religião se coloca neste trabalho de pensamento originário na intersec-
ção e as implicações aporéticas que dele advém.
Se é possível partir da demonstração da distinção entre filosofia e teologia, é porque
será plausível demonstrar que ao longo do pensamento e das obras de Ricoeur há um traba-
lho de pensamento acerca do religioso e do filosófico.153 Há, sobretudo, um trabalho de re-
ciprocidade. “Eu penso”, declarou Ricoeur, “que há mais violência na integração da religião
com a filosofia do que no reconhecimento das especificidades e na especificidade das inte-
rações.”154 Em suma, integrar a filosofia na teologia, como o fez Paul Tillich e Jean-Luc
Marion, nunca foi o projeto de Ricoeur. Na integração da filosofia com a teologia poderia
nascer algo novo, porém haveria um custo alto – ou, se preferirmos, em linguajar merleau-
pontyano, haveria um prejuízo do mundo155 nas duas disciplinas a despeito da novidade que
advém da integração. A proposta hermenêutica de Ricoeur é outra: o reconhecimento daqui-
lo que cada uma das áreas possui de original e os pontos de interseção possíveis destas
especificidades. Ao invés de delimitar, o movimento que passa pela intersecção amplia o
150 “Je ne suis pas un philosophe chrétien, comme la rumeur en court, en un sens volontiers péjoratif, voire dis-
criminatoire. Je suis, d’un côté, un philosophe tout court, même un philosophe sans absolu, soucieux de, voué
à, versé dans l’anthropologie philosophique. Et, de l’autre, un chrétien d’expression philosophique, comme
Rembrandt est un peintre tout court et un chrétien d’expression picturale et Bach un musicien tout court et un
chrétien d’expression musicale”. RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments, p. 24. 151 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 152 RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 24. 153 Cf. RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, pp. 24-25. 154 “Thus I find that there is more violence in this integration of religion with philosophy than in the recognition
of their specificity and the specificity of their intersection.” RICOEUR, Paul, apud RAYNOVA, Yvanka.
“All that Gives Us to Think: Conversations with Paul Ricoeur”, In: WIERCINSKI, Andrzej (Org.) Between
Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur's Unstable Equilibrium. Toronto: Hermeneutic Press, 2003, p. 686-
688. 155 Sobre o prejuízo do mundo, o primado do mundo é limitado pelas representações de mundo fundadas nas
impressões exclusivas de uma determinada sensação da realidade. Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Sense
and Non-Sense, p. 83.
45
mundo de cada abordagem no ato hermenêutico. Há, inspirado no trabalho do voluntário e
involuntário, uma reciprocidade entre as polaridades.156 Por outro lado, de semelhante críti-
ca, a divisão ingênua entre fé e razão seria uma solução simplista, uma vez que o discurso
bíblico possui uma racionalidade particular – enquanto o discurso científico, mesmo moti-
vado pela neutralidade, pode se basear na fé e atuar com pressuposições típicas de cren-
ças.157
Dentre as diferentes leituras das obras de Ricoeur, Blundell foi quem mais aproxi-
mou-se daquilo pelo qual denominamos em nossa tese por dobra da religião. Segundo Blun-
dell, ao analisar os grandes trabalhos de Ricoeur – a saber, Tempo e Narrativa e O Si-
Mesmo Como Outro –, nota-se um padrão estrutural na obra de Ricoeur: a estrutura do
“desvio e retorno” [detour and return].158 Esta estrutura representa o princípio organizador
do pensamento de Ricoeur. Blundell trabalha com os conceitos de “desvio filosófico” e “re-
torno teológico”. Tanto o desvio como o retorno nestas duas áreas são movimentos caracte-
rísticos nos processos de filosofia de Ricoeur.
I.1.5 O horizonte da dobra
Os problemas que têm relação com a realidade podem estar mistificados em suas
formulações. Com esta tese não é aspirada a mística nem a espiritualidade, a despeito dos
méritos e contribuições oriundos de ambas; muito menos o equívoco elementar da identifi-
cação geral de Paul Ricoeur com o religioso. Conforme foi apresentado, há em Ricoeur a
dupla fidelidade159. A exploração da dupla fidelidade, ou dupla adesão, se pensarmos em
termos de aposta filosófica, exige um trabalho de pensamento que privilegie a originalidade
que dela advém. Propõe-se, portanto, dobra, justamente para evitar a centralização das in-
terpretações e poder abrir as possibilidades interpretativas – assim como Ricoeur preferiu
em suas tarefas filosóficas.
156 Cf. RICOEUR, Paul. “A unidade do voluntário e do involuntário como ideia-limite”, In: Boletim da Socie-
dade Francesa de Filosofia, Universidade de Coimbra: Unidade I&D LIF, Sessão de Sábado, 25 de Novem-
bro de 1950. Disponível em:
http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/a_unidade_do_voluntario3 157 Cf. RICOEUR, Paul. “Philosophy and Religious Language”, In: Figuring the Sacred, pp. 35-37. 158 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:
Indiana University Press, 2010, p. 65. 159 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, 1995, p. 17.
46
A dobra é o acesso crítico ao círculo do pensamento de Ricoeur proposto pela tese.
Partimos, inicialmente, do conceito de dobra de Gilles Deleuze160, sem a pretensão de fazer
referências aos seus conteúdos – um empréstimo que se trata mais de uma sugestão do que
uma apropriação, dá-se no uso bruto do termo dobra, enquanto conceito filosófico. A dobra
na arte representa as ações e as mudanças na vida, movimentos que se referem à uma função
operatória; um traço, ao invés de uma essência.161 A dobra é uma perífrase que prolonga o
sentido e o significado de símbolos e narrativas. Os movimentos são dobrados de inúmeras
maneiras, circulares ou transversais, denotando dobras infinitas em cima de um mesmo as-
pecto. Segundo Leibniz, ao comentar sobre a flexibilidade e elasticidade de um determinado
corpo ou assunto, há coerência nas partes que formam a dobra, uma vez que elas não se se-
param em partes das partes, mas se dividem até o infinito em dobras menores, cada vez me-
nores, preservando a coesão entre elas.162 Em Hamlet, a primeira indagação na estória é res-
pondida com outra: stand and unfodlf yourself, algo como, “pare e desdobre-se” – hoje, po-
deríamos traduzir por, “pare e identifique-se”.163 Assim sendo, a dobra se anuncia como um
recurso hermenêutico, uma vez que o movimento do texto implica na reflexão da existência
e caracteriza a identidade.
O texto forma uma textura que encobre outro texto. No movimento do encobrimento,
cria-se uma nova vertente interpretativa, em suma, outra leitura. Um texto sob o texto,
mesmo que apenas assinalado de passagem. Tal é a dinâmica da dobra. Do latim plicō, cuja
raiz encontra-se na língua protoindo-europeia pleḱ-, significa dobrar.164 É a mesa origem
para o grego πλέκω, plékō.165 A dobra possui alguns cognatos no latim, dos quais comparti-
lham a mesma raiz pli, de plico. A saber, applicō, aplicar: o ato de dobrar, dobra em ato;
complicō: complicar: promover dobras, algo com dobras; explicō: explicar: abrir as dobras,
evidenciar as dobras; implicō: implicar: colocar na dobra, alterado pela dobra; multiplicō:
multiplicar: acrescentar dobras, muitas dobras; replicō, replicar: dobrar em outra dobra, do-
160 Cf. DELEUZE, Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque. Paris: Lés Éditions de Minuit, 1988. 161 “Le Baroque ne renvoie pas à une essence, mas plutôt à une fonction opératoire, à un trait”. DELEUZE,
Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque, 1988, p. 5. 162 “C’est ce que Leibniz explique dans un texte extraordinaire: un corps flexible ou élastique a encore des par-
ties cohérentes qui forment un pli, si bien qu'elles ne se séparent pas en parties de parties, mais plutôt se di-
visent à l'infini en plis de plus en plus petits que gardent toujours une certaine cohésion”, LEIBNIZ, Gottfried
apud DELEUZE, Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque, 1988, p. 9. 163 Cf. SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2010, p. 12. 164 BRÉAL, Michel, BAILLY, Anatole. Dictionnaire étymologique Latin. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1914,
p. 270. 165 BRÉAL, Michel, BAILLY, Anatole. Dictionnaire étymologique Latin., 1914, p. 271.
47
bras subsequentes; supplicō, suplicar: dobrar em cima de uma dobra, elevar a dobra; sim-
plex, simples: uma dobra; duplex, duplo: duas dobras.166 Em algumas vertentes da fenome-
nologia, inspiradas em Paltão167, encontra-se συμπλοκή, simploke, i.e., o entrelaçamento,
uma coisa na outra, um pelo outro, a totalidade.168 A dobra possui implicações para a vida,
cuja existência requer desdobramentos.
Na hipótese da tese, seguindo Richard Kearney, o pensamento de Ricoeur é multifa-
cetado e polivalente.169 O pensamento de Ricoeur, segundo a tese, possui dobras. Se a análi-
se do percurso filosófico do autor demonstra os desvios de suas obras, tanto em sua biogra-
fia intelectual como em seu esforço laboral, a reflexão das principais aporias apontam para
novas problemáticas no pensamento do autor. François Azouvi e Marc de Launay relatam, a
respeito da sequência do trabalho filosófico de Ricoeur, sobre uma “espécie de quebra em
seu percurso”170, “sentimentos de linhas quebradas”171, i.e., desvios e superações assimila-
das sucessivamente em sua filosofia e, consequentemente, em suas publicações. Tal proce-
dimento, segundo Edmond Blattchen, é essencialmente antropológico, histórico e humanís-
tico.172 O procedimento denota as características das questões e respostas presentes na obra
de Ricoeur: ele situa-se no “terreno das interpretações de si”173, de modo que seus caminhos
não valem mais que os do leitor. Há linhas tortas e mudanças de direções em Ricoeur – sem
cair na alternativa contínuo/descontínuo. Para Ricoeur, há urgências a serem atendidas em
diferentes temas – os quais ele buscou responder em esforços e elaborações de livros. Nas
palavras de Ricoeur: “Quando escrevo um livro sobre um assunto, não volto a falar nele,
como se houvesse cumprido o meu dever e estivesse livre para continuar o meu caminho.
Foi assim que abandonei o problema da psicanálise, mas também o da metáfora após A Me-
táfora Viva”174. Esta declaração demonstra um pensamento plural e diverso em Ricoeur na
166 CHATELAIN, Émile. QUICHERAT, Louis-Marie. Dictionnaire Latin-Français. Paris: Librairie Hachette et
Cie, s/d, p. 1038. 167 Cf. soph. 259. 168 Cf. SOKOLOWSKI, Robert. Phenomenology of the Human Person. Cambridge: Cambridge University Press,
2008, pp. 281-282. 169 Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva. Ashgate Publishing Limited: Burlington,
2004, p. 38. 170 In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 171 In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132. 172 BLATTCHEN, Edmond. In: RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 13. 173 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132. 174 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126.
48
imagem da dobra – sem perder a centralidade de cada empreendimento que ele se dispõe a
fazer. Podemos exemplificar com a seguinte afirmação:
Eis a verdade da minha relação com a psicanálise, pois é verdadeiramente
de A Simbólica do Mal que procede o Ensaio sobre Freud. Havendo adop-
tado uma linha que era, em traços largos, a de fenomenologia da religião,
próximo de Eliade, tinha efectivamente a sensação de que, em Freud, Ni-
etzsche e Marx, existia um pensamento adverso com o qual tinha de me
explicar.175
Se por um lado há simetria e harmonia no itinerário filosófico do autor, por outro há
coerência em suas preocupações e métodos – a destacar, a filosofia da religião que já lhe era
presente desde o início de suas obras. Cada empreendimento de Ricoeur é determinado por
um problema fragmentário, mas que se insere no movimento da dobra.
Gosto muito da ideia de que a filosofia se dirige a determinados problemas,
a embaraços de pensamento muito delimitados. Assim, a metáfora é, antes
de mais, uma figura de estilo; a narrativa é, em primeiro lugar, um gênero
literário. Os meus livros tiveram sempre um caráter limitado; nunca abordo
questões maciças do tipo ‘O que é a filosofia?’. Trato de problemas parti-
culares: a questão da metáfora não é a da narrativa, embora observe que, de
uma à outra, há a continuidade de inovação semântica.176
Nessa citação invocamos os conceitos da especificidade e particularidade de uma
abordagem e a sua implicação com a continuação e o todo da pesquisa filosófica. São mo-
vimentos de dobras que perpassam pelo trabalho de Ricoeur e que encontram na religião a
sua dobra mais original. A dobra da religião pede por um trabalho de pensamento. Ricoeur
não esgotou o tema da religião em uma obra ou um livro – ele não escreveu um tratado
acerca da religião. Mesmo assim, de acordo com Gilbert Vincent,
se nós reuníssemos todos os textos de Ricoeur consagrados ao estudo do
horizonte da crença (do crer) — afinal, este é, provavelmente, no que diz
respeito à religião, o objeto principal de suas preocupações — nós chegarí-
amos a um volume tão importante (grande) que indicaria uma produção
que exceda de longe, nem que fosse (pelo menos) quantitativamente, a de
qualquer outro filósofo.177
175 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 176 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132. 177 “Si l’on rassemblait tous les textes consacrés par Ricoeur à l’étude de l’horizon de la croyance – car tel est
probablement, en matière de religion, l’objet principal de ses préoccupations –, on parviendrait à un volume
si important qu’il indiquerait un production dépassant de loin, ne serait-ce que quantitativement, celle de tout
autre philosophe.” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 12.
49
O trabalho de Ricoeur na religião e na teologia é comum e vasto. Segundo ainda
Vincent, dizer que há uma virada religiosa nas obras de Ricoeur seria excessivo.178 Falar
em dobra da religião é mais razoável, pois não sugere uma virada radical como um percurso
que se virou para outra direção e abandonou o caminho original. A dobra é uma intersecção
possível no próprio caminho, enriquecendo-o. A citar, os estudos de Ricoeur sobre a metá-
fora (dos idos de 1975) representam um momento teórico decisivo e que teve repercussão na
tradição hermenêutica e no estudo do fenômeno religioso.179 Neste sentido, preservamos a
dobra da religião enquanto um desdobramento da existência humana – horizonte no qual
pretendemos alcançar no desenvolvimento da pesquisa.
Inicialmente, há o momento da separação entre filosofia e teologia, situando a aporia
e preservando a tensão.180 Posteriormente, há a repercussão da produção da aporia no pen-
samento de Ricoeur: a dobra realizada no diálogo entre a filosofia e a teologia. No cruza-
mento das duas áreas surgem pontos de intersecção. Em justaposições conflituais, inaugu-
ram-se dobras. Da primeira dobra – o teônimo – advém um trabalho de pensamento que
implicará numa reflexão original da ontologia quebrada na proposta hermenêutica do autor.
I.2 A ontologia da dobra: a nomeação de Deus
O interesse da tese, neste estágio inicial, situa os lugares de intersecção do filosófico
e do teológico em Paul Ricoeur. O primeiro lugar de interseção por excelência, no pensa-
mento do autor, é a nomeação de Deus.181 Retomando o ponto da intersecção apresentado,
178 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 45. 179 RICOEUR, Paul. In: “Difficultés d’une phénoménologie de la religion”, In: Lectures 3, Paris, Le Seuil, Points
Essais, p. 263. 180 Ainda sobre a aporia, uma das heranças de Platão e Aristóteles, Ricoeur situa-a na função de auxiliar o pen-
samento a desprender-se de fórmulas, respostas prontas ou contentamento com soluções mediatas e in-
statâneas. A aporia deve ser assumida no desafio. A aporia estimula e motiva o pensamento criativo por al-
ternativas e reflexões. “Sous-entendue dans la méthode aporétique de bon nombre de dialogues. Il ne s’agit
pas seulement de réserver la réponse vraie et de mettre à nu la question elle-même, de décaper et de décrasser
en quelque sorte l’interrogation ; il ne s'agit même pas uniquement de joindre à cette fonction critique une
fonction éthique, en brisant par l’ironie les prétentions des faux savants ; il s’agit d'instaurer dans l’âme un
vide, une nuit, une impuissance, une absence, qui préludent à la révélation”. RICOEUR, Paul. Être, essence
et substance chez Platon et Aristote, Seuil: Paris, 2011, p. 116. 181 Sobre a expressão “nomeação de Deus”, ao longo da pesquisa adotamos o vocábulo teônimo, utilizado por
Edson de Faria Francisco, em sua obra Antigo Testamento Interlinear, para designar “o nome divino”, “nome
de Deus”. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Antigo Testamento Interlinear Hebraico-Português – Volume 2
50
Ricoeur declarou ter avançado suficientemente na vida e na interpretação da filosofia e da
teologia para poder se arriscar sobre os lugares de intersecção.182 A hipótese da tese encon-
tra-se nessa intersecção, ao que Ricoeur questionou: “o que acontece apesar de tudo na in-
tersecção?”183 Partimos da seguinte declaração de Ricoeur, proferida em entrevista a Ed-
mond Blattchen: “Penso que é entre o inominável [nome de Deus] e a profusão dos nomes
[de Deus] que se representam ao mesmo tempo o religioso, o filosófico, a crítica do religio-
so pelo filosófico, a crítica do filosófico pelo religioso”184. E completou: “foi precisamente
para essa intersecção que apontei imediatamente minha citação. Porque, na tensão entre o
Deus inominável e os nomes divinos, há todo um trabalho de pensamento”185.
O trabalho de pensamento anunciado é objeto de reflexão que perpassa por toda a
sua obra, desde a fase inicial até as últimas produções. O primeiro escrito filosófico de Ri-
coeur aborda a questão de Deus em Lachelier e Lagneau. Motivado pelo estudo de um pro-
blema perfeitamente autônomo, de perguntas independentes de outras perguntas filosóficas,
Ricoeur encontra no problema de Deus a originalidade pretendida para a análise da filosofia
reflexiva. A questão de Deus faz parte da gênese de suas motivações filosóficas. Entretanto,
a escolha arbitrária não remete apenas à exclusividade do objeto estudado. Em sua autobio-
grafia, Ricoeur alegou ter preferido o tema de Deus como fio condutor devido a originalida-
de reflexiva de tal empreendimento. Trata-se da reconstrução do estudo da filosofia reflexi-
va tendo como um dos problemas de pensamento um objeto igualmente autônomo e inesgo-
tável.186 O problema de Deus, em sua autonomia, amplia a complexidade do absoluto e
permite a investigação do objeto em variadas direções.187 A questão de Deus enquanto pro-
blema reflexivo é “um redobramento do pensamento sobre si mesmo, a fim de apreender a
sua própria natureza”188. Ricoeur segue o método de Lagneau: a possibilidade da compreen-
são da particularidade de um elemento pela ideia da sua totalidade. A dobra é um movimen-
– Profetas Anteriores. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014, p. XXIV. 182 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 183 RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 24 184 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 17. 185 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular, 2002, p. 24. 186 Cf. RICOEUR, Paul. Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle. Paris: Éditions Esprit, 1995, p. 15. 187 “Le problème de Dieu n’est rien d’autre que la question du Tout de la pensée.” Cf. VALLÉE, Marc-Antoine.
“Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez La-
chelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 145. 188 “Un redoublement de la pensée sur elle-même en vue de saisir sa propre nature” RICOEUR, Paul, apud
VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au
problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1
(2012), pp. 145. Redoublement, do francês, provém de dobrar, redobrar, duplo, duplicar, em suma, repetição
51
to particular que configura possibilidades em termos gerais; a dobra não é a possibilidade
em si, mas fruto da possibilidade.189 A nomeação de Deus, na profundidade da possibilida-
de, permite o acesso ao mundo religioso. Segundo Ricoeur, “o conteúdo religioso desempe-
nha um papel fundamental na medida em que é apenas no além que o real se reconciliará
com Deus para ser a plenitude d’Ele.”190. Trata-se de movimentos particulares que implicam
em possibilidades gerais. Dentre os movimentos particulares, a questão de Deus é igualmen-
te profunda e original. Enquanto abordagem reflexiva proveniente da aporia no pensamento
de Ricoeur, o teônimo é a primeira dobra da religião.
Diferentemente de Tomás de Aquino, que buscou comprovar a existência de Deus,
para Ricoeur a categoria “Deus” pertence à um título primordial, um nível de discurso que é
originário em relação a enunciados especulativos.191 Influenciado por Lachelier, Lagneau e
Kant, a questão da existência de Deus fica à deriva. Segundo Lagneau, a existência de Deus
não é objeto de uma demonstração teórica, pois trata-se da presença radicalmente imanente
na esfera do pensamento. Ricoeur suspende os esforços explicativos de questões como
“Deus existe”, “Deus é imutável”, “Deus é todo poderoso” e “Deus é a causa primeira” por
não assumir Deus como um objeto, um ser supremo, mas o pensa na experiência da percep-
ção que remonta o trabalho do pensamento da hipótese da tese. Sobre isso, Ricoeur afirmou:
Deus, concebido como afirmação livre de valor, é soberanamente inde-
monstrável. E isto não advém de uma enfermidade de nossa compreensão,
mas da incomensurabilidade radical entre a liberdade e a prova. Nós não
provamos Deus; ou melhor, como esses termos deixariam pensar que Deus
é distinto do ato de pensamento que o alcança, deve-se dizer que Deus,
pensamento puro, não é da ordem da sensibilidade ou da ordem do enten-
dimento, mas de um plano de posição pura que afirma-se por si mesmo.192
189 A dobra não é a origem do possível. O possível está na dinamis, na força, no poder (herança de Aristóteles em
Ricoeur) no qual permite a dobra da religião realizar possibiidades na possibilidade da relação tensa entre te-
ologia e filosofia, entre o teônimo e a ontologia quebrada. A dobra, portanto, é um possível da fonte que abre
outros possíveis. 190 “le contenu religieux jouerait ainsi un rôle essentiel dans la mesure où ce n'est que dans l'au-delà que le réel se
réconcilie avec Dieu pour en être la plénitude”, RICOEUR, Paul, apud VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premi-
er écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et
Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 146. 191 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filoso-
fia, p. 189. 192 “Dieu, conçu comme affirmation libre de valeur, est souverainement indémontrable. Et cela non point par une
infirmité de notre entendement, mais par une radicale incommensurabilité entre la liberté et la preuve. On ne
démontre pas Dieu; ou plutôt, comme ces termes laisseraient croire que Dieu est distinct de l’acte de pensée
qui l’atteint, il faut dire que Dieu, pensée pure, n’est pas de l’ordre de la sensibilité ni de l’ordre de
l’entendement, mais d’un plan de pure position qui s’affirme par lui-même.” RICOEUR, Paul, apud
52
Ricoeur herda de Lachelier a ideia da imanência radical da presença de Deus no pen-
samento e de Lagneau vem a reflexão da transcendência inerente também no pensamento.
Os limites do pensamento são humanos e a incapacidade da compreensão do divino é uma
tarefa do ser. Se houver qualquer transcendência, ela não se encontraria externa ao pensa-
mento, mas em Deus, cuja abordagem não se limita pela razão teórica, alargando-se através
da via moral e do amor. A novidade de Ricoeur, herdeiro da crítica ao idealismo absoluto de
Lachelier e Lagneau, está no estreitamento da aporia. A tarefa negativa, enquanto supressão
dos obstáculos, encarna a aporia no ato reflexivo e a reflexão nas experiências-limites. As
ideias, problemas e temas discutidos por Ricoeur despertam o interesse do jovem filósofo
pela tradição francesa da filosofia reflexiva inaugurada por Maine de Biran e aprofundada
por Ravaisson, Boutroux, Lachelier, Lagneau, Brunschvicg e Nabert.193 A abordagem refle-
xiva tornou-se numa característica do processo filosófico de Ricoeur.194 A matriz filosófica
de Ricoeur encontra-se na questão do si e da ação, de modo que a articulação de um com o
outro denota a necessidade que determina a filosofia. Trata-se, portanto, do entrelaçamento
do pensamento com a prática na articulação reflexiva e fenomenológica acerca do problema
de Deus.
Se para Lachelier e Lagneau a existência de Deus coincide com o esforço pela sua
busca, para Ricoeur, indo de encontro ao idealismo absoluto da pura imanência, deve haver
transcendência na imanência de modo que complete a lacuna entre o pensamento humano e
o pensamento divino. As diferentes manifestações do ser denotam – assim como no mundo
se distinguem as coisas materiais do pensamento humano – a necessidade de um pensamen-
to sério e engajado acerca das coisas da realidade. A transcendência, enquanto a manifesta-
ção de algo, é a possibilidade da alteridade, do amor e da graça. É devido as diferentes ma-
nifestações do ser e a possibilidade de transcendência que Ricoeur sustenta o retorno impe-
rativo à dimensão pessoal de todo o pensamento na tarefa negativa.195 A dialética entre o
VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au
problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1
(2012), pp. 147. 193 Cf. VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée
au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1
(2012), pp. 149. 194 Por exemplo, em seu esclarecimento na obra Du tete à l’action: Essais d’hermenéutique II, Paris: Seuil, 1986,
p. 29, ou ainda os esclarecimentos na sua autobiografia intelectual, Réflexion faite, p. 15. 195 VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au
problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1
53
pensamento singular e subjetivo com a oposição ao pensamento universal e impessoal é
herança também de Lachelier e Lagneau. “A tese de Ricoeur é que todo pensamento possui,
ao mesmo tempo, uma vertente (dimensão) pessoal e uma vertente (dimensão) impessoal,
uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva.”196, afirma Marc-Antoine Vallée. Não é
possível falar de um ato puramente pessoal ou impessoal. Trata-se da relação do sujeito com
o seu objeto intencional. Nesta relação, segundo Ricoeur, há uma outra novidade além da-
quela percebida por Lachelier e Lagneau: a relação do indivíduo religioso com o texto sa-
grado – ou, mais precisamente, a compreensão e o reconhecimento de si no encontro do
outro, a saber, o outro por excelência: a nomeação bíblica de Deus que acrescenta sentido e
referências à descrição do mundo interpelado pela Bíblia e a tradição cristã.
A filosofia, desde o início da carreira de Ricoeur, diz respeito não apenas à reflexão,
mas também à receptividade da alteridade no ato filosófico. O método envolve tanto a ima-
nência quanto a doutrina da transcendência. É justamente a abordagem reflexiva da filosofia
e o viés fenomenológico hermenêutico que permite a compreensão ontológica na linha da
pesquisa. Neste caso específico, a ontologia inaugurada pelo teônimo.
I.2.1 Uma ontologia no nome
Na obra O Único e o Singular Ricoeur propõe a reflexão acerca da nomeação do di-
vino sob o título “Deus sem nome...”. As reticências não são ocasionais: denotam a herme-
nêutica de outros nomes divinos. Enquanto Tomás de Aquino faz defesa da nomeação narra-
tivo-bíblica e da nomeação filosófico-metafísica de Deus com base na analogia do ser, a
hermenêutica de Ricoeur tem como base a analogia metafórica, abandonando pressupostos
gnosiológicos de natureza metafísica.197 Diferente de Aquino, para Ricoeur as referências
antigas e variadas dos nomes de Deus carregam a dimensão da metáfora ao invés de resol-
ver um problema dogmático. Ricoeur transitou pela filosofia grega, a arqueologia bíblica e a
(2012), pp. 151. 196 “La thèse de Ricoeur est que toute pensée possède à la fois un versant personnel et un versant impersonnel,
une dimension subjective et une dimension objective.” VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philoso-
phique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In:
Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 151. 197 Cf. SALLES, Sergio. “Nomear Deus: Tomás de Aquino e Paul Ricoeur.” In: Aquinate, n°. 12, Niterói:
Cadernos da Aquinete, (2010), p. 65.
54
teologia sistemática com igual competência. Inspirado em Heráclito de Éfeso, absorveu a
aporia do fragmento 67: “O deus é dia noite, inverno verão, guerra paz, saciedade fome;
mas se alterna como fogo, quando se mistura a incensos, e se denomina segundo o gosto de
cada”198. O pensamento grego ilustra o interesse de Ricoeur em uma compreensão do nome
divino antes de qualquer confissão religiosa na filosofia. Deste fragmento, Ricoeur comenta:
“é um texto extraordinário porque são os múltiplos perfumes, talvez dos sacrifícios que, por
suas fragrâncias, colorem o deus com diversos nomes”199. Nota-se a variedade de expres-
sões do teônimo no horizonte de Ricoeur e a possibilidade de dobras que dela advém.
A outra referência forte é encontrada no pensamento hebraico. Os nomes de Deus na
Bíblia são variados. A pesquisa etimológica e filológica no assunto elucida sobre a plurali-
dade e o uso de nomes divinos na Bíblia.200 As narrações do livro de Gênesis carregam teô-
nimos nascentes em cada patriarca. O caso mais comum é o “Deus de Abraão” (‘elohê
‘abraham, Gn 31,42:53). Alguns pesquisadores, segundo John Bright, sugerem a tradução
deste termo como “Escudo de Abraão” (cf. Gn 15,1) ou “O Benfeitor de Abraão”.201 Há
ainda “Temor de Isaac” (pahad Yishaq, Gn 31,42:53) que, além de “temor”, pode significar
“homem sábio”.202 Há, também, o “Poderoso de Jacó” (‘abir Ya’qob, Gn 49,24). Ricoeur
vai além e menciona203, para aprofundar o exemplo, o livro de Isaías, Capítulo 9: “E lhe foi
dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz”204. Ri-
coeur utiliza uma tradução francesa e fala em “Conselheiro Magnífico, Pai Todo-Poderoso,
Príncipe da Paz” – termos que, segundo ele, não combinam entre si para montar uma unida-
de do nome de Deus.205 Há ainda outras atribuições espalhadas ao longo do texto bíblico:
“Deus dos exércitos” (I Samuel 1:3), “Deus Misericordioso” (Hebreus 2:17), “Deus justiça”
(Jeremias 23:6). Em suma, são nomes opostos mas que comungam no mesmo livro.
Uma das interpretações bíblicas a fim de evitar contradições no nome é sugerida por
John Bright: quando alguém faz um juramento ao Deus do outro (ver Gn 31,36-55, Jacó
198 HERÁCLITO. In: Os Pensadores: Os Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 94. 199 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular, p. 19. 200 Para um trabalho que apresenta a solução encontrada pelos judeus acerca do problema da variedade dos
nomes divinos, fechando a interpretação no nome Javé, conferir as obras Julius Wellhausen, Hugo Gress-
mann e, principalmente, Werner H. Schimidt, com seu livro A fé do Antigo Testamento (São Leopoldo: Sino-
dal, 2004). 201 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131. 202 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131. 203 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 18. 204 BÍBLIA DE JRESUALÉM, Isaías 9:5, p. 1268. 205 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 18.
55
jurou pelo Poderoso de Isaac), significa que o juramento foi jeito pelo “Deus do clã de seu
pai”206. Há uma tendência inicial ao monoteísmo, o qual concentra em um nome todas as
demais nomeações. Para Albrecht Alt, seguindo esta tendência, o Deus dos Pais foi relacio-
nado com muitos outros deuses e nomes. Sua referência é mencionada, sem inibições, “tanto
na obra javista como na obra eloísta”207, de modo que passa a estar presente em ambas ca-
madas literárias. O Deus dos Pais, portanto, vive nas obras históricas e nos diversos gêneros
literários bíblicos. Assim, Milton Schwantes, em sua magistral pesquisa sobre a teologia do
Antigo Testamento, concluiu que o Antigo Testamento nos fala de “um só e mesmo Deus:
Javé”208. No entanto, Ricoeur, profundo conhecedor da exegese bíblica, propõe um outro
caminho – um caminho filosófico – para a compreensão do nome de Deus.
Segundo Gilbert Vincent, ao analisar a questão do nome divino em Ricoeur,
se nós observamos que o nome aparece em vários tipos de discurso, é de
admitir que essa pluralidade é equivalente à uma pluralidade de perspecti-
vas, que Deus só vem à linguagem de cada aspectos particulares; mas tam-
bém não há nenhum tipo de discurso capaz de sobrepor ou envolver todas
as outras coisas, que esses diferentes aspectos não permitem que se fundem
em um todo, que poder-se-ia dizer: esta é a verdade última e definitiva de
Deus!209
Ao invés de buscar uma verdade última e definitiva de Deus, Riceour, na dinâmica
da tarefa negativa, mantém a tensão da nomeação do divino e procura compreender a força
da nomeação. “Deus”, para ele, “é aquele que é anunciado, invocado, questionado, suplica-
do e agradecido”210. Há uma dimensão da compreensão do nome divino que escapa ao dog-
matismo. “O termo ‘deus’ circula o sentido entre todos os modos de discurso, mas, além de
cada modo, conforme a visão da sarça ardente, ele é de alguma forma o ponto de fuga”.211 O
206 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131. 207 ALT, Albrecht, O Deus Paterno, In: GERSTENBERGER, Erhard Gerstenberger (Org.), Deus no Antigo
Testamento, 1981, p. 40. 208 SCHWANTES, Milton. Teologia do Antigo Testamento: anotações, 1982, p. 2. 209 “Si donc l’on observe que ce nom apparaît dans plusieurs types de discours, force sera d’admettre, cette plura-
lité équivalant à une pluralité de perspectives, que, de Dieu, seuls viennent au langage des aspects chaque fois
particuliers; mais force également sera d’admettre, puisqu’il n’existe aucun genre de discours capable de sur-
plomber ou d’englober tous les autres, que ces différents aspects ne se laissent pas fondre en un tout, dont on
pourrait dire: telle est la vérité ultime et définitive e Dieu!” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008,
p. 101. 210 “Dieu est celui qui est annoncé, invoqué, interrogé, suppléé, remercié” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de
l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), Bruxelles: Faculté Saint-Louis, 1977, p. 31. 211 “Le terme ‘dieu’ fait circuler le sens entre tous les modes de discours, mais, échappant à chacun, selon la
vision du buisson ardent, il en constitue en quelque sorte le point de fuite”. RICOEUR, Paul. “Herméneutique
de l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), 1977, p. 35.
56
corpo bíblico, imbricado por narrativas plurais, ecoa os diversos gêneros literários que for-
mam a fé – em suma, que tornam na linguagem uma experiência de crença possível. O que
não cabe no dogmatismo é abraçado pela ontologia e questões de finitude e capacidade hu-
mana.
A hipótese levantada por Ricoeur traduz-se no sinal bíblico da retirada de problemas
conceituais no nome de Deus e levanta o mistério inominável e o enigmático – profunda-
mente interpretativo – de Êxodo 3:14: “Eu sou aquele que sou”. Dentre as dificuldades da
recepção do nome de Deus no Monte Sinai, há o problema da tradução do nome. No capítu-
lo “Pensando a Criação”, em seu livro Pensando Biblicamente, Ricoeur intitulou esse pro-
blema por Da interpretação à tradução.212 Isso significa: não há tradução antes da interpre-
tação. Havia disponível apenas o verbo grego e latino ser, fonte das traduções. Para Ri-
coeur, a despeito da fraqueza da tradução, é possível reorientar o estudo do nome divino e
do verbo ser ao colocar tal estudo em um novo contexto.213 Apesar do título “Eu sou o que
sou” ser uma espécie de redundância sobre o verbo ser e que não diz nada214, Deus, para
Ricoeur, não é um “ponto de fuga” [point de fuite], mas, a “fonte dos possíveis” [source des
possibles].215 No início de sua formação filosófica, Ricoeur estudou o problema de Deus em
Lachelier e Lagneau com o intuito de compreender melhor o pensamento humano por in-
termédio de um movimento reflexivo acerca do tema de Deus, a alteridade e a capacidade
humana.216 A questão ontológica enraizada no nome divino é, portanto, o trabalho de uma
aporia com repercussões no pensamento da justaposição conflitual, assumindo, ao mesmo
tempo, uma dupla adesão e uma aposta filosófica.
I.2.2 O problema Deus
Paul Ricoeur não se preocupou com os discursos da existência de Deus – como se
preocuparam outros filósofos da religião. Ricoeur se interessou, originariamente, pelas no-
212 Cf. RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente. Bauru: EDUSC, 2001, p. 50. 213 RICOEUR, Paul. “Ricoeur Comments after Jeanrond’s ‘Hermeneutics and Revelation’, In: JUNKER-
KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge to Think God, p. 62. 214 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 18. 215 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 127. 216 VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au
problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1
(2012), p. 153.
57
meações bíblicas de Deus. Os teônimos apontam para narrativas sobre o ser que está em
relação com a nomeação do divino. Em suas observações, é possível nomear Deus pela fé
porque os textos religiosos que a tradição comporta e transmite já o nomearam. A nomeação
de Deus, na perspectiva da dobra da religião, possui uma função elementar no pensamento
religioso, sobretudo cristão (que diz respeito ao Sitz im Leben de Ricoeur): a narrativa bí-
blica funda a nomeação de Deus e torna possível a experiência religiosa mediada pelos
textos bíblicos que comportam o nome divino. Inicialmente, há nas escrituras do antigo Isra-
el um vasto e profundo trabalho teológico desenvolvido e disseminado nas narrativas bíbli-
cas. Devido a Bíblia não ter se servido da linguagem especulativa, como os gregos, o pen-
samento bíblico se exprimiu em gêneros diversos, como o gênero narrativo, legislativo, pro-
fético, hímnico e sapiencial.217 A Bíblia, em sua diversidade de gêneros literários, é uma
biblioteca heteróclita. Todos os gêneros falam sobre Deus – e é por este “dizer Deus” varia-
do, característico em cada gênero, que há a possibilidade de uma crítica interna e externa
presente na Bíblia. Além disso, para Ricoeur, o pensamento grego – a cultura helenística, da
qual a carreira filosófica é herdeira – não se opõe, necessariamente, à leitura compreensiva
da Bíblia que Ricoeur almeja. No caso, a oposição com a teologia confessional evidencia os
desvios interpretativos acumulados pelas grandes tradições históricas do judaísmo e do cris-
tianismo. Se a leitura crítica da Bíblia utiliza o método histórico-crítico, o método compre-
ensivo, diante de sua multiplicidade de interpretações, permitiu centros organizadores nor-
mativos. O cristianismo dos primeiros anos reformulou a escola rabínica com uma leitura
particular. A constante releitura e reescrita da tradição permitiu o advento das teologias. É a
ordenação conceitual e descritiva das narrativas bíblicas que, conforme Karl Barth, consti-
tuiu a dogmática. Para Ricoeur, a teologia é a relação de uma “palavra considerada fundado-
ra com um juízo circunstanciado sobre o presente e o futuro das comunidades confessio-
nais”218. Por isso Ricoeur prefere não discursar sobre as dogmáticas, mas dirigir-se ao texto
bíblico com o instrumental que lhe cabe: a hermenêutica fenomenológica.
Há na leitura de Ricoeur uma outra leitura além da descritiva e da confessional: a lei-
tura de uma teologia que é caracterizada pela ênfase na narrativa, a qual poderíamos deno-
minar por teologia narrativa.219 A teologia narrativa, enquanto reflexão da religiosidade na
217 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 225. 218 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 226. 219 Mais sobre o assunto: MAUZ, Andreas (2009). “Theology and Narration. Reflections on the “Narrative The-
58
linguagem, é o resultado da última redação do texto bíblico conforme o conhecemos e o
recebemos. A leitura que dá ênfase à narrativa do texto tem na codificação bíblica feita pe-
las autoridades eclesiásticas o seu paradigma de leitura. A título de exemplo, podemos men-
cionar Northrop Frye e The Great Code220, como também Paul Beauchamp e L’un et
L’autre Testament221. Os autores privilegiam em suas hermenêuticas a leitura canônica de
encontro às interpretações das autoridades eclesiásticas. Estas hermenêuticas concordam e
tentam reproduzir “a mensagem que os últimos redatores das últimas composições da Bíblia
quiseram transmitir”222. Ricoeur, sem ignorar o método histórico-crítico, alerta ser funda-
mental para qualquer leitura bíblica levar em consideração a estrutura do próprio texto como
também as interpretações propostas por rabinos, pela hermenêutica cristã dos padres e dos
medievais. Comumente o Novo Testamento é lido pelas autoridades eclesiásticas como a
sequência do Antigo Testamento, ao passo que ele pode ser apenas um “outro” Testamento,
seguindo a proposta de Paul Beauchamp (com quem Ricoeur compartilha afinidades teoló-
gicas)223. Indicamos, portanto, a preocupação de Ricoeur, cuja leitura tende a ser não dog-
mática, pois não deseja limitar o texto bíblico à um dogma – movimento que impediria a
percepção de outras interpretações, outras reinterpretações, outras reformulações, como uma
teologia do nome divino.224
É necessário, segundo a tradição ricoeuriana, que exista, inicialmente, um contato da
exegese com outras sensibilidades das pesquisas em humanas. No caso, o próprio cânone
deveria se tornar na mediação por excelência. O resgate da leitura canônica é dar ao texto a
autonomia que lhe pertence, de modo que tal autonomia é também a abertura para novas
reflexões. “É, segundo penso, ao nível desta exegese canônica que começam a cindir-se o
teológico e o filosófico”225, conclui Ricoeur.
ology”: Debate and Beyond”. In: HEINEN, Sandra; SOMMER, Roy. Narratology in the Age of Cross-
Disciplinary Narrative Research. Berlin, 261-285pp. 220 FRYE, Northrop. The Great Code: The Bible and Literature. Boston: Mariner Books, 2002. 221 BEACUHAMP, Paul. L’un et L’autre Testament. Vol 1 & 2. Paris: Édition Seuil, 1990. 222 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227. 223 Para mais detalhes sobre a relação de Ricoeur com Beauchamp, conferir: BEAUCHAMP, Paul; RICOEUR,
Paul. Testament Biblique. Bayard: Paris. 2001. 224 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227. 225 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227.
59
I.2.3 A transmissão e recepção do nome divino: uma ontologia quebrada
Diante da autonomia ostentada para os textos sagrados, há uma diferença decisiva
entre a atitude crítica e a atitude adesiva de quem lê o texto bíblico. A abordagem filosófica
é crítica – filosofia reflexiva – em relação aos textos, enquanto a abordagem religioso é ade-
siva – leitura confessional – afinal, há a adesão à uma palavra que é anterior e superior ao
indivíduo. Existe na filosofia algo semelhante (e.g., no âmbito platônico, o mundo das idei-
as que precedo ao sujeito), entretanto, a aproximação filosófica é predominantemente críti-
ca, ao passo que a religiosa oferece crédito à palavra instauradora. A recepção e adesão do
texto bíblico mostra-se como uma das características da teologia do nome divino. Nos limi-
tes do cânone há a integração do indivíduo com o círculo hermenêutico, o qual Ricoeur
anuncia: “conheço esta palavra porque está escrita, e está escrita porque é recebida e lida; e
esta leitura é aceita por uma comunidade que, por isso, aceita ser decifrada pelos seus textos
fundadores; ora, é esta comunidade que os lê.”226 Assim, a leitura do sujeito religioso aceita
a adere à esta grande circulação entre uma palavra fundadora, textos mediadores e tradições
de intepretação. Ricoeur mesmo se reconhece neste ciclo onde as histórias geram interpreta-
ções e, consequentemente, tradições:
Minha relação com a pessoa e a figura de Jesus é, portanto, duplamente
mediada: pelos próprios textos canônicos carregados de interpretação e pe-
las tradições de interpretações que fazem parte do patrimônio cultural e da
motivação profunda das minhas convicções. É nesse sentido que eu me re-
conheci como “aderente” à tradição evangélica reformada.227
Feito o reconhecimento da mediação das narrativas bíblicas, para a investigação do
nome divino em Ricoeur, o ponto de partida do filósofo encontra-se, além das considerações
hermenêuticas já apontadas, na ontologia quebrada.228 “O homem é um ser que não coinci-
de consigo mesmo. É um ser que comporta uma negatividade”229. Há, na vida, aspectos de
falta e transcendência – que caracterizam a vontade e seus consentimentos. A dualidade da
226 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 229. 227 “My relation to the person and figure of Jesus is thus doubly mediated: by the canonical texts themselves
loaded with interpretation and by the traditions of interpretations that are part of the cultural heritage and de-
ep motivation of my convictions. It is in this sense that I recognized myself as ‘adhering’ to the Reformed
evangelical tradition”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 68. 228 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 66. 229 Cf. JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologi-
as. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 2.
60
realidade comporta o problema da possibilidade do mal, que aponta para a falibilidade do
ser humano.
Segundo Olivier Abel230, Ricoeur responde negativamente à questão “eu sou um fi-
lósofo cristão?”, pois, para ele, há algo acima da salvação radical e da justificação dos peca-
dores: a justificação da existência.231 A existência vai além de qualquer método filosófico
ou adesão religiosa. O compromisso com o ser libera a exegese religiosa para uma outra
esfera do conhecimento que se difere da dogmática. Abel sugere, a título de exemplo, que
Jesus se preocupava a despeito de tudo com um “presente diferente”, com a face a morte, ao
invés de se preocupar com o futuro distante e a vida após a morte. Esta interpretação pro-
vém da hermenêutica da ontologia quebrada de Ricoeur.
A ontologia, antes da preocupação religiosa, reluta na busca filosófica engajada com
o caminho da lógica e das ciências físicas. A ontologia em Ricoeur, segundo Gilbert Vin-
cent, é o nome filosófico da forma de atenção ao real que procede da recusa de não ter por
realidade aquilo que não se conhece melhor.232 A ontologia quebrada de Ricoeur relaciona-
se com a questão limite e da insuficiência humana. Este aspecto é decisivo para a compre-
ensão da ontologia: o ser humano não é um ser pronto e acabado. Num linguajar nietzschea-
no, é o instrumento “homem desafinado”233. Vale reforçar que Ricoeur pensa a religião a
partir da ontologia. O contrário – pensar a ontologia a partir da religião – seria metafísica
(algo que Ricoeur não se propôs a fazer com a religião). Deste modo, ele se difere de teólo-
gos que ofereceram respostas religiosas aos problemas da filosofia e da teologia – e.g., Pier-
re Teilhard de Chardin, se nos atermos ao pensamento francês contemporâneo. Semelhan-
temente, Ricoeur se diferencia dos pensadores de sua época, sobretudo das tendências da
filosofia que confrontavam com qualquer proposta de pensamento religioso.
A contribuição filosófica de Ricoeur à hermenêutica, na teoria da metáfora e a cons-
tituição narrativa do si, acontece igualmente tanto para a filosofia como para a teologia. 234 A
extensa produção intelectual e literária de Ricoeur oferece novos horizontes aos assuntos
230 Professor de filosofia no L’Institut Protestant de Théologie de Paris e diretor do Fons Ricoeur. 231 Cf. ABEL, Olivier In: RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. xviii. 232 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 112. 233 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras,
2008, p. 25. 234 Cf. WERBICK, Jürgen. “Foreword”, In: JUNKER-KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Nar-
rativity, Self and the Challenge to Think God, p. IX.
61
abordados em sua carreira sobre o ser. Enquanto Paul Tillich mistura a ontologia com a teo-
logia, Ricoeur evita esta manobra. No que diz respeito à ontologia, Ricoeur aproxima-se de
Heidegger – com reservas. A ontologia de Ricoeur não é religiosa/teológica, como é em
Tillich235, mas, também, não se resume a ontologia, como em Heidegger. A rigor, trata-se de
uma ontologia filosófica na qual Ricoeur inaugura, pelo caminho da fenomenologia herme-
nêutica, um caminho próprio entre Tillich e Heidegger. A religião, em Ricoeur, ao invés de
ser confundida com a ontologia, como em Tillich, ou abandonada pela ontologia, como em
Heidegger, ganha autonomia e destaque por portar outras narrativas fundamentais. Deste
modo, a religião é mais radical que a própria ontologia e possui um lugar especial no pen-
samento do autor – é responsável por uma virada hermenêutica analisada nos capítulos sub-
sequentes.236 As ferramentas e análises da fenomenologia hermenêutica de Ricoeur na onto-
logia são transpostas para a religião. À vista disso, há um novo desafio a averiguar, mais
atentamente, os conceitos e limites da ontologia e religião, porém, ao mesmo tempo, a reli-
gião possui um papel especial no seu pensamento.
Seguindo as indicações de Gilbert Vincent, os aspectos mais importantes da religião
em Ricoeur, destacados pelo próprio autor na composição de suas obras, são o caráter in-
completo da linguagem religiosa e a compreensão do si.237 Sobre este aspecto, segundo Ri-
coeur,
nós existimos porque somos apreendidos por acontecimentos que nos to-
cam no sentido forte da palavra: aquelas reuniões totalmente fortuitas,
aqueles dramas, aquelas felicidades (...) que, como se costuma dizer, mu-
daram o curso da nossa existência. A tarefa de nos compreendermos atra-
vés deles, é a tarefa de transformar o acaso em destino.238
Se não houver a incompletude da vida, a imperfeição do ser, em suma, a ontologia
quebrada, a interpretação não seria possível – a interpretação seria apenas uma parasita – a
pluralidade de opiniões acerca da verdade, do justo e do bom seriam inúteis ou absurdas. É
pela incompletude que há o encontro de diferentes tradições simbólicas, de aspirações às
235 Tillich escreveu um livrinho cuja pretensão une a religião bíblia e a ontologia. Cf. TILLICH, Paul. Biblical
Religion and the Search for Ultimate Reality, Chicago: University of Chicago Press, 1956. 236 Para mais informações sobre a virada hermenêutica, consultar: GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada
hermenêutica da teologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, 234p. 237 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 122. 238 “Nous existons parce que nous sommes saisis par des événements qui nous arrivent au sens fort du mot: telle
rencontres entièrement fortuites, tels drames, tels bonheurs (...) qui ont, comme on dit, changé le cours de
notre existence. La tâche de nous comprendre à travers eux, c’est la tâche de transformer le hasard en destin.”
RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), 1977, p. 51.
62
memórias, na possibilidade de um mundo pacífico. Nesta dinâmica, a pluralidade, segundo
Gilbert Vincent, é convertida em polifonia239, dando lugar ao ser que diz algo sobre o ser.
São afirmações que dizem a respeito de identidades reconhecias. Esta incompletude faz par-
te estrutural da estrutura da linguagem e do ser.
Ricoeur, na escola da fenomenologia a qual pertence, prioriza as aprendizagens que
advém dos eventos diários. Há a valorização das coisas imprevistas e a indispensabilidade
das coisas inevitáveis. Segundo ele, “o evento é o nosso mestre”240. “Nós”, declara Ricoeur,
“dependemos absolutamente de certos eventos fundadores”241. Afinal, são estes eventos,
enquanto experiências fundamentais, ao serem interpretados, que estruturam e duram no
tempo, possibilitando o trabalho do símbolo e permitindo a compreensão religiosa (como,
por exemplo, em esferas de testemunho). “O símbolo”, escreve Ricoeur, “faz apelo não so-
mente à interpretação, mas verdadeiramente à reflexão filosófica”242. A experiência funda-
mental do ser, em sua reconciliação com o devir da vida, é exprimida através de uma her-
menêutica que tem no símbolo uma reflexão autêntica de abordagem fi losófica. Símbolos
são interpretações criadoras de sentidos e reflexões que possibilitam o pensar de uma vida.
“O ser se dá ao homem mediante sequências simbólicas, de tal forma que toda cisão do ser,
toda existência como relação ao ser, já é uma hermenêutica”.243 Nesta dinâmica o ser huma-
no é introduzido no estado nascente da linguagem. Na linguagem, pelos símbolos, surge a
metáfora, que introduz a inovação semântica da linguagem. Para além da experiência das
coisas e dos acontecimentos, das próprias palavras e dos conceitos, a narrativa que carrega
metáforas, símbolos e sentidos profundos se situa na interpretação capaz de revelar a expe-
riência ontológica que é a relação do ser humano com aquilo que o constitui, i.e., o foco de
sentido.
A questão da narrativa é o ponto de partida para a compreensão da teologia pelo no-
me de Deus diante da ontologia quebrada. Ricoeur medita sobre a linguagem, utilizando o
método fenomenológico, e suspende o debate sobre a validade das experiências religiosas
239 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 123. 240 “L’vénement est notre maître”, RICOEUR, Paul apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p.
125. 241 “Nous dépendons absolument de certains événements fondateurs”, RICOEUR, Paul apud VINCENT, Gilbert.
La religion de Ricoeur, p. 125. 242 RICOEUR, Paul. Da Interpertação: Ensaio sobre Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 42. 243 JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias, p.
3.
63
ao fixar uma especificidade para a “abordagem hermenêutica”244: os textos precedem a vi-
da245 – mas não estão acima da vida. O interesse do filósofo está em apontar um caminho
para a ontologia, que não pretende reconstituir a ontologia, mas mostrar que é possível viver
diante das “quedas”. Deste modo, as narrativas precedem o sujeito, justamente porque o
discurso consiste no sujeito que diz algo para outro sujeito sobre algo. A função referencial
do discurso instaura um mundo – e na escrita, ao dirigir-se a qualquer sujeito que saiba ler,
o mundo vai além dos interlocutores. O mundo do texto comporta a nomeação de Deus feita
num passado de tradição oral. Nesta perspectiva, Deus é o referente último dos textos bíbli-
cos, que está, de algum modo, implicado pelo mundo do texto que é desdobrado diante do
leitor.
I.2.4 Revelação e texto bíblico
O nome divino se revela de muitas formas – dentre elas, a própria filosofia com seus
discursos acerca da existência de Deus também sugere um modo de revelação. De tal modo,
“posso nomear Deus em minha fé porque os textos que me foram pregados já o nomea-
ram”246, escreve Ricoeur. A narrativa bíblica preserva o nome divino no registro escrito e
torna possível a experiência religiosa atual mediada por esses registros. A nomeação e sua
referência na narrativa são recebidas pelo sujeito e envolvem questões religiosas da insufi-
ciência, renúncia e autonomia do ser humano. Ao contrário de Tomás de Aquino, a onto-
teologia, para Ricoeur, devido o teor das narrativas, seria um salto da reflexão teológica
capaz de trabalhar com as histórias do texto, onde os significados da narração e, sobretudo,
da profecia foram submetidos à racionalização – ao invés de serem integrados e vividos
tanto na especulação filosófica como na reflexão transcendental.247
O conceito de revelação para Ricoeur é importante e estará presente no desenvolvi-
mento desta pesquisa. Na revelação, a linguagem celebra a si mesma e Deus se torna possí-
244 Com a expressão “abordagem hermenêutica” Ricoeur se refere à recusa das hipóteses essencialmente literá-
rias. Para ele, todo texto é, em primeiro lugar, uma experiência de vida que é levada à linguagem. 245 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 183. 246 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 183. 247 RICOEUR, Paul. Ensaios sobre a interpretação bíblica. São Paulo: Novo Século, 2004, p. 89.
64
vel. Revelar é descobrir o que até então estava oculto.248 No sentido bíblico, a função poéti-
ca da narrativa aproxima a revelação do mundo de nosso enraizamento originário. A revela-
ção é a urgência de um conceito de verdade, que se diferencia dos critérios de verificação e
falsificação positivista. A verdade manifestada na revelação é um conceito no qual o sentido
do ser se mostra tal como ele é. “O que se mostra”, constatou Ricoeur, “é cada vez a propo-
sição de um mundo, de um mundo tal qual eu possa projetar nele meus possíveis mais pró-
prios”.249 A nomeação de Deus é uma atividade poética sem incidência sobre a descrição
positivista da verificação e falsificação – é, sobretudo, um conhecimento verdadeiro do
mundo que é manifestado e aberto.250 A nomeação de Deus, portanto, nesta aproximação
original, é o desdobramento de um mundo que está dentro do mundo do texto (no caso, o
mundo bíblico), quando este se manifesta poeticamente e, assim, revela um mundo possível
de habitar.251
O nome divino revelado nos textos bíblicos delimita o caráter religioso no interior do
poético e apresenta um mundo ao leitor. Para Ricoeur, a Palavra Deus pertence à uma tradi-
ção que é múltipla e complexa.252 A anterioridade do texto em relação à vida abraça uma
polifonia de expressões de fé que se corresponde com a própria vida. Diante da polifonia de
sentidos na narrativa bíblica há, também, devido as diferentes intencionalidades e relações
que o texto carrega e recebe, aspectos diversos no próprio Deus narrado. Dentre as caracte-
rísticas do divino, Ricoeur destaca seu aspecto duplo que se dá no ápice da profecia. Falar
de Deus, enquanto atitude profética e gênese da teologia da Palavra, é inspiração de primei-
ra pessoa a primeira pessoa. A revelação pela profecia “ocorre entre o secreto e o revela-
do”253. Há uma religiosidade que confessa a revelação dupla de Deus, i.e., o Deus que se
revela é também um Deus oculto, não pode compor um corpo de verdades das quais uma
instituição possa ostentá-la ou possuí-la.254 Desta forma, é possível conhecer Deus, mas em
248 RICOEUR, Paul. “Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 188. 249 RICOEUR, Paul. “Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 188. 250 RICOEUR, Paul. “Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 187. 251 RICOEUR, Paul. “Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 189. 252 Cf. a manifestação de Deus em Êxodo 3:14, onde ele se manifesta mas, ao mesmo tempo, guarda para si seu
maior segredo: a nomeação inomeável. 253 RICOEUR, Paul. Ensaios sobre a interpretação bíblica, 2004, p. 89. 254 RICOEUR, Paul. Ensaios sobre a interpretação bíblica, 2004, p. 89.
65
parte, não totalmente, assim como se pode conhecer, também em parte, Cristo, os Evange-
lhos, a salvação e a fé. Uma teologia reflexiva, seguindo as recomendações hermenêuticas
do filósofo, seria uma teologia humilde, pois possui consciência de que se é possível conhe-
cer as nomeações e revelações de Deus, não é possível conhecê-lo completamente. O misté-
rio faz parte da nomeação de Deus e diferentes interpretações acerca do nome divino podem
coexistir e, principalmente, dialogar entre si – conforme acontece no Antigo Testamento e
Novo Testamento bíblico, onde os títulos atribuídos a Deus reportam diversas tradições e
espiritualidades.
A diversidade de narrativas bíblicas (discurso profético, narrativo, prescritivo, da sa-
bedoria e hímnico), em sua autonomia, além de comportarem diálogos internos, remontam
expressões originárias da fé que nomeiam Deus diversamente. Estas expressões, segundo
Ricoeur, superando o trabalho de Karl Jaspers255, são expressões-limite acerca da condição
humana retrata no texto.256 O texto bíblico comporta, no caso das parábolas, estrutura narra-
tiva, processo metafórico e expressão-limite. Esta constituição resume a nomeação de Deus:
através de sua estrutura narrativa, ela lembra o primeiríssimo enraizamento
da linguagem da fé. Através de seu processo metafórico, ela torna manifesto
o caráter poético (no sentido que usamos acima) da linguagem da fé em seu
conjunto. Finalmente, ao unir metáfora e expressão-limite, ela fornece a
própria matriz da linguagem teológica, na medida em que esta une a analo-
gia e a negação na via da eminência.257
Em suma, o trabalho dialético na expressão-limite do nome de Deus abre uma teolo-
gia da linguagem poética na Bíblia. A tentativa de Paul Tillich em descrever Deus como
uma palavra que remete ao ser-em-si258 (para usar uma palavra de Ricoeur, um arqui-
referente) nada mais é do que a preservação exagerada do sentido simbólico da metáfora
divina – que se desvia das tentações da coerção da lógica. Na linguagem poética encontra-se
255 No caso, as situações-limite, que falam da falta, do fracasso, da morte e da luta; sendo que para Ricoeur as
experiências-limite podem ser também experiências criativas e alegres. 256 Cf. RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 195. 257 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filoso-
fia, p. 197. 258 Cf. “Since God is the ground of being, he is the ground of the structure of being. He is not subject to this
structure; the structure is grounded in him. He is this structure, and it is impossible to speak about him except
in terms of this structure. God must be approached cognitively through the structural elements of being-itself.
These elements make him a living God, a God who can be man’s concrete concern. They enable us to use
symbols which we are certain point to the ground of reality.” TILLICH, Paul. Systematic Theology, Vol. 1.
Chicago: University of Chicago Press, 1973, p. 238.
66
a criatividade semântica que abre um mundo: o mundo do texto. Tal mundo, ao ser apresen-
tado ao leitor, desdobra-se e ganha sentido na vida. Não se trata de um gênero literário, mas
de uma função: despertar a suscitação de uma nova compreensão de si. Evidentemente a
Bíblia não se limita apenas na linguagem poética. Os gêneros literários invocados no texto,
desde a narração à parábola, constituem o diverso “falar de Deus”.259 E é nesse falar de
Deus que o verbo poético sofre mutações de sentido, constitui experiências e funda mundos
para o leitor da Bíblia. O mundo habitado é refletido no mundo do texto e o mundo do texto
é a chave de acesso para o mundo habitado – e, na Bíblia, este mundo possui uma referência
que pode ser apreendida pela escrita e incorporada na vivência: esta referência se chama
Deus.
I.2.5 Considerações intermediárias
O lugar da intersecção primordial – a reciprocidade da teologia e filosofia – inaugura
a originalidade da religião no pensamento de Ricoeur. Em outras palavras, o trabalho de
pensamento sobre a nomeação de Deus. Conforme destacou Christina Gschwandtner, há,
oriundo da intersecção, um engajamento religioso refletido nas obras de Ricoeur. Apesar de
mais nítido na hermenêutica bíblica, a adesão religiosa aparece também em obras importan-
tes como A Simbólica do Mal, Tempo e Narrativa e A Metáfora Viva. Ricoeur permanece
fiel ao seu ofício de filósofo e esclarece, sempre que possível, em introduções ou notas de
rodapé, que o seu material se trada de um filósofo interpretando a Bíblia ou a religião. Con-
forme registrado no prefácio de Pensando Biblicamente, o conceito de filosofia cristã ou de
“metafísica bíblica”, em seu trabalho com a religião, é inadequado.260 Ricoeur assume a
função de filósofo hermeneuta para propor, neste trabalho específico, aquilo que, junto com
o André LaCoque, denominou de pensamento bíblico: modos de pensamento diferentes da
filosofia, sobretudo a grega, e dos textos religiosos da índia ou da metafísica do budismo.
Em suma, há uma aposta filosófica tomada por Ricoeur, na qual “ele lê os textos bíblicos
como um filósofo e estes textos são abertos a qualquer leitor pois são textos acessíveis
259 Cf. RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia, p. 197. 260 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Bibicamente, 2001, p. 8.
67
qualquer um que possa ler”261. Esta é a pressuposição que orienta a hermenêutica bíblica e
permite o esforço reflexivo: “o pensamento está vinculado a um corpus de textos não redu-
tível àquele para o qual geralmente se volta quando se ‘faz filosofia’ no sentido acadêmico e
profissional”262. É a partir da aposta filosófica e da dupla adesão que Ricoeur pensa a reli-
gião e analisa os gêneros e as estruturas do texto bíblico.
Por fim, há o profundo trabalho da religião enquanto uma dobra no pensamento de
Ricoeur. O filósofo inclui preocupações teológicas nas conclusões dos seus últimos traba-
lhos, a saber, O Justo, Reflexões Sobre o Justo, Memória, História e Esquecimento, e O
Percurso do Reconhecimento.263 A aproximação atribui ao cristianismo, em Memória, His-
tória e Esquecimento, a originalidade do perdão. Em O Justo, ele destaca o papel da com-
paixão enquanto uma reflexão genuinamente cristã. Em O Percurso do Reconhecimento,
encontramos a ideia do ágape cristã intermediando a paz e o reconhecimento. Nessas obras
fazem-se presentes as preocupações teológicas em diálogo com a filosofia. A presença man-
teve-se aberta por Ricoeur, até mesmo inexplorada, uma vez que ele evitou relações explíci-
tas entre as teologia e a filosofia no meio filosófico. Entretanto, destas relações e paralelos,
segundo alguns intérpretes de Ricoeur, como Gilbert Vincent264 e Christina
Gschwandtner265, originam discursos que caracterizariam o papel da religião na filosofia e
que serão aprofundados na direção da dobra da religião: a narrativa e o mito, temporalidade,
hermenêutica bíblica e o reconhecimento de si, a existência religiosa e o ser humano capaz.
261 He reads the biblical texts as a philosopher and that they are open to any reading precisely as texts accessible
to anyone who can read. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philo-
sophical and Religion in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2,
2012, pp. 9-10. 262 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Bibicamente, 2001, p. 13. 263 Para um aprofundamento maior dos detalhes desta inclusão, conferir GSCHWANDTNER, Christina. “Ric-
oeur’s Hermeneutic of God: A Symbol that Gives Rise to Thought”. In: Philosophy and Theology, Vol 13,
2001, pp. 287-309. 264 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 139. 265 Cf. GSCHWANDTNER, Christina. “Ricoeur’s Hermeneutic of God: A Symbol that Gives Rise to Thought”.
In: Philosophy and Theology, Vol 13, 2001, p. 289.
CAPÍTULO II
INTERSECÇÕES DA DOBRA:
LINGUAGEM RELIGIOSA E TEMPO MÍTICO
“Toda língua são rastros do velho mistério.”
João Guimarães Rosa
O teônimo advém na intersecção entre o inominável e a variedade dos nomes de
Deus, que representam a crítica do religioso pelo filosófico e a crítica do filosófico pelo
religioso. A dobra que origina todas as outras dobras surge, motivado pela filosofia reflexi-
va, do desdobramento e desmembramento das aporias inauguradas na intersecção. Dentre as
aporias do nome de Deus, encontra-se, na condição própria da nomeação do divino, a ques-
tão da linguagem. A linguagem ocupa um espaço central na filosofia de Ricoeur.266 Sobre-
tudo a linguagem religiosa [le langage religieux], cujo foco importa mais que a experiência
religiosa [l’expérience religieuse], justamente pela metáfora promover a inovação semântica
e estágios de ficção. É a linguagem religiosa que proporciona e comunica a experiência reli-
266 Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva. Ashgate Publishing Limited: Burlington,
2004, pp. 31-38.
69
giosa.267 Em outras palavras, o itinerário de Ricoeur na religião parte do pressuposto da me-
diação da linguagem e da escrita sobre a imediaticidade da própria experiência.268 A experi-
ência religiosa ocorre em meio a uma leitura do mundo que tem a linguagem como precon-
dição.
II.1 Situação hermenêutica
A hermenêutica, segundo Dilthey, é “a interpretação das expressões da vida fixadas
pela escrita”269. O centro da hermenêutica de Ricoeur reside no problema epistemológico da
interpretação correta, i.e., a questão da polissemia.270 Diversos textos são dedicados à esse
empreendimento.271 O exercício filosófico estaria, deste modo, na desmistificação e recons-
trução do sentido. A hermenêutica é, segundo o autor, “a teoria das operações da compreen-
são em sua relação com a interpretação dos textos”272. Sua divergência com Habermas e
Gadamer – como também a sua contribuição – reside na dialética entre explicação e com-
preensão. A famosa oposição entre explicar e compreender, se ficar apenas na contradição, é
recebida por Ricoeur como “desastrosa”273. A oposição entre explicação (a princípio a tarefa
das ciências da natureza) e a compreensão (sobretudo a tarefa das ciências do espírito), in-
troduzia por Wilhelm Dilthey e desenvolvida por Heinrich Rickert, é rejeitada por Ri-
coeur.274 Tal rejeição se dá por Ricoeur cruzar permanentemente a hermenêutica e a episte-
mologia. Há uma relação indissociável entre o modo explicativo e o modo compreensivo de
cada método ou matéria. Até mesmo a hermenêutica, diz Ricoeur, “mesmo no primeiro sen-
tido evocado, o da exegese, constitui a meu ver uma epistemologia, onde a noção de ‘senti-
267 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 127. 268 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 223. 269 DILTHEY, Wilhelm apud RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 319. 270 Lawrence Schmidt fala em “questão da ilusão”. SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2006,
p. 149. 271 A título de exemplo, destaque para os capítulos “A tarefa da hermenêutica” e “A função hermenêutica do
distanciamento”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. RJ: Francisco Alves, 1990; como também
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1978. 272 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 17. 273 Cf. SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2006, p. 152. 274 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 121.
70
do’ satura a inteligibilidade”275. A este respeito, Ricoeur infere, basicamente, que “a nature-
za e o humano não constituem, portanto, dois domínios que seria necessário destinar um à
ciência e outro à hermenêutica”276. Para este pressuposto básico, Ricoeur prefere as quatro
distinções da explicação propostas por Jean Ladrière.277 Basicamente, pontua Ricoeur, há a
explicação por subsunção (exemplificação do princípio), a explicação por redução (exem-
plificação pelo nível subjacente), a explicação genética (exemplificação pela procedência de
transformações regradas), e a explicação por optimi (exemplificação pela excelência de fun-
cionamento).278 Em suma, a célebre frase “explicar mais para compreender melhor” de-
monstra a motivação hermenêutica do autor diante das dicotomias que promovem o prejuízo
de mundo.
Seguindo os mestres da suspeita, Ricoeur busca a profundidade dos significados que
aparecem na superfície do que é dito. “O problema próprio a Ricoeur é o da hermenêuti-
ca”279. Ricoeur concorda com Heidegger e sua célebre declaração, “a ciência não pensa”280,
quando o pensamento é restringido às funções técnicas e operações assimiláveis a um cálcu-
lo, deixando de lado a reflexão e a crítica filosófica.281 Deste modo, Ricoeur prefere os ter-
mos de pensar sobre a categoria da ação (o que fazem os seres humanos) e pensar sobre a
categoria da produção (a maneira como os fatos e fenômenos são subsumidos sob princí-
pios). Na ordem da ação pode-se encontrar o agente que está nos sistemas (econômicos,
políticos, religiosos etc.), enquanto na ordem da produção há fenômenos e fatos considera-
dos em procedimentos explicativos. Há uma dimensão de autoprodução, tanto na natureza
como no espírito (e.g., a produção de ideias). Na ciência, por sua vez, há também a questão
do sentido do empreendimento científico, que está no campo da ação (o fazer ciência) – e ao
desenvolver seu próprio projeto a ciência descobre alguns fragmentos de sua significação.282
Tal empreendimento só será possível, segundo Ricoeur, se houver a hermenêutica da suspei-
275 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 120. 276 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 121. 277 Cf. LADRIÈRE, Jean. Discours cientifique et parole de foi. Le Cerf, 1970. 278 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, pp. 121-122. 279 JAPIASSU, Hilton. In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990,
p. 1. 280 “A ciência não pensa, porque, segundo o modo de seu procedimento e de seus recursos, ela jamais pode pen-
sar”. HEIDEGGER, Martin. Que significa pensar? Ijuí: Unijuí, 2002, p. 115. 281 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 122. 282 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 123.
71
ta283 enquanto o primeiro lugar da interpretação. A suspeita torna-se, deste modo, um pres-
suposto indispensável para a hermenêutica filosófica. Segundo Richard Kearney,
Ricoeur, de acordo com Marx, Nietzsche e Freud, argumenta que eles
compartilham a suspeita de que a ideologia religiosa permanece ignorante
em si mesma enquanto produção de valores falsos. Para eles, trata-se de
um “mito” no sentido que ele revela o real e o imaginário, a compensação
da injustiça histórica com alguma justiça a-histórica e transcendental. É,
sobretudo, uma projeção fantasiosa – um sistema ilusório de relações nos
quais o homem encontra a si mesmo degradado, aprisionado e abandona-
do.284
Ricoeur reconhece o sentido da legitimidade da hermenêutica da suspeita. É necessá-
rio, na dinâmica da desconfiança, desmascarar conteúdos ideológicos do imaginário religio-
so. A hermenêutica da suspeita é uma reflexão característica do pensamento de Ricoeur e
uma herança de sua filosofia para a teologia e inúmeros leitores da obra ricoeuriana.285 As-
sim como ele mesmo observa em A Crítica da Religião,
a leitura da ideologia enquanto um sintoma do fenômeno da dominação se-
rá a contribuição durável do Marxismo além de suas aplicações políticas. A
partir deste ponto de vista, Marx não pertence unicamente aos comunistas.
O marxismo, não podemos esquecer, apareceu na Alemanha no meio do úl-
timo século no coração de departamentos da teologia protestante. Ele é,
portanto, um evento da cultura ocidental, e eu diria, da teologia ociden-
tal.286
A ideologia da dominação precisa ser criticada. Para Ricoeur, a inversão que aconte-
ce na ideologia, de acordo com Marx (que tem na religião o auge da ideologia da domina-
ção) não é exclusiva da religião e deve, em qualquer circunstância, passar pelo crivo da re-
flexão da suspeita. Uma tarefa comum da hermenêutica crítica, tanto ateia quanto teísta, é
283 Cf. SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2006, p. 219. 284 “Ricoeur argues accordingly that Marx, Nietzsche and Freud all share the suspicion that religious ideology
remains ignorant of itself as a production of false values. For them, it is a ‘myth’ in the sense that it inverts
the real and the imaginary, compensation for historical injustice with some ahistorical and otherworldly justi-
ce. It is no more than a fantasy projection – an illusory system of relations where man finds himself degra-
ded, imprisoned of abandoned.” KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, pp. 77-
78. 285 Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, pp. 77-78. 286 “The reading of ideology as a symptom of the phenomenon of domination will be the durable contribution of
Marxism beyond its political applications. From this point of view Marx does not belong solely to the
Communists. Marxism, let it not be forgotten, appeared in Germany in the middle of the last century at the
heart of the departments of Protestant theology. It is, therefore, an event of Western culture, and I would even
say, of Western theology”. RICOEUR, Paul. “The Critique of Religion” (1973), In: REGAN, Charles, STE-
WART, David. (org.) The Philosophy of Paul Ricoeur: An Anthology of His Work. Boston: Beacon Press,
1978, p. 215.
72
derrubar as inversões ideológicas que acontecem entre o real e o imaginário. Ricoeur propõe
um caminho além dos mestres da suspeita. A hermenêutica precisa ser inovadora onde a
própria crítica deve estar sujeita à crítica. A extensão da crítica hermenêutica torna possível
reconhecer, nas atividades de simbolização da ideologia, a possibilidade de função mais
positiva obscurecida pela função de falsificação. “A hermenêutica da dúvida pode, desta
forma, ser preservada e também complementada por uma hermenêutica da invenção.”287
II.1.1 Linguagem em origem
Diante da inversão acusada pela hermenêutica da suspeita, a religião, para Ricoeur,
tem como função inicial a inserção da Palavra no mundo. Qualquer outra abordagem, so-
bretudo a dualidade entre Paraíso e vida secular, reporta à ideologia anunciada por Marx.288
A Palavra é central na Bíblia e na filosofia de Ricoeur e tem a ver com a noção de início e
origem. A centralização da palavra é herança da teologia da criação, na qual se insere a apo-
ria do mal. No caso, o mal, no plano ético-jurídico, implica na ideia de justiça e de ordem.
A existência humana conhece a dualidade. O tom da injustiça do mundo, desde os registros
mais antigos, abrem o hiato entre a justiça e a injustiça. Há, como observa Hans-Heirich
Schmid, uma discordância (al., Diskrepanz) própria da criação.289 Franz Rosenzweig, que
influenciou Ricoeur, sobretudo na relação da linguagem com a experiência religiosa, deno-
minou a dualidade inerente no mundo de “totalidade quebrada”.290 No sentido cósmico de
início e de origem, ao carregar o elemento da justiça, a discordância e a quebra do mundo
percorrem pelas narrativas míticas e implicam na necessidade do entrelaçamento das coisas
primeiras. É pela ordem das ideias de contingência e necessidade que a ordenação amplia
seu sentido do plano cósmico para o plano humano de justiça e de direito.291
287 "The hermeneutics of doubt may in this way be preserved and also supplemented by a hermeneutics of inven-
tion.” KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 78. 288 “That religion... reverses the relation of heaven and earth, signifies that it is no longer religion, that is, the
insertion of the Word in the world, but rather the inverted image of life. Then it is nothing more than the (nar-
row) ideology denounced by Marx. But the same thing can happen, and undoubtedly dos happen, to science
and technology as soon as they claim to scientificity masks their justificatory function with regard to the mili-
tary-industrial system”. RICOEUR, “Science and Ideology”, p. 236. 289 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 76-77. 290 Cf. ROSENZWEIG, Franz. The Start of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005,
pp. 32-34. 291 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 76.
73
A centralidade da palavra no mundo se insere nesse contexto. É na dinâmica da dis-
cordância, ou da totalidade quebrada, que a aporia aparece.292 A aporia permanece, contudo,
em conflito, ao invés de ser absolvida. A tensão aponta para a criação. Ricoeur faz notar que
a tradição cristã ensina que houve uma condescendência do Espírito Santo na literatura das
Sagradas Escrituras – e.g., Deus no humano em Cristo. Essa condescendência nasce da apo-
ria e sua ação, em motivação justa, é boa. A inspiração divina, no caso da Bíblia, diante das
ideologias, resultou em um livro sagrado. Deus, novamente, para a tradição cristã – tradição
a qual Ricoeur pertence –, cria o mundo mediante palavras e narrativas. A palavra, segundo
Santo Agostinho, é “palavra criadora”293. “No princípio era o logos, e o logos estava com
Deus, e o logos era Deus” [Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ
λόγος], registra a sabedoria helenista no prólogo de João.294 Deus está no começo e no iní-
cio, de modo que a criação refere-se a um processo de narração que dá origens – e tal pro-
cesso criativo narrativo é, em seu julgamento, bom. Trata-se de uma ação boa, o mitzvah, a
ação correta da ética judaica.
Há a ideia de início, i.e., o começo temporal, o primeiro evento de uma série de
eventos que se darão na temporalidade. Há, também, a ideia de origem, ou seja, a fundação
(de algo) na perspectiva atemporal, fora da temporalidade. Tal distinção, segundo Ricoeur,
não se aplica à Bíblia.295 Em Gênesis 2.4b não aparece explicitamente a preocupação tempo-
ral ou atemporal.296 Há uma outra preocupação, que se encontra na síntese das duas. “No
princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1.1). Após cada etapa da criação, a narrativa in-
forma: “e viu Deus que era bom”297. A Cabala, nos primórdios do Gênesis, inicia o relato da
criação com a primeira letra ב [bet], de ב ר רא Tanto princípio quanto .[”bereshit, “princípio] י
o verbo criar, ר -barah, iniciam-se com o bet. A noção de início, segundo Ricoeur, já es ,י
292 O totalitarismo é o pensamento que impõe uma regra independente da fratura. Não há possibilidades diante da
imposição do totalitarismo. A anti-ética do totalitarismo é a totalidade antecipada em uma situação ainda não
própria. A fratura, por outro lado, é uma possibilidade de lidar com a realiadade na qual dispensa os julga-
mentos prematuros de qualquer totalitarismo para encarnar na ontologia quebrada a tarefa do reconhecimento
do ser. 293 Santo Agostinho, Confissões, p. 314. 294 Cf. João 1:1. 295 “O sentido temporal de iníco não estava completamente excluído, mas estava virtualmente subordinado ao
sentido atemporal de origem compreendida como fundação”. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando
Biblicamente, 1998, p. 82. 296 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 78. 297 Cf. Gn 1:10, 1:12, 1:18, 1:21, 1:25, 1:31.
74
tava presente no bet.298 Jorge Luis Borges, em tradução livre (“No princípio, criou deuses os
céus e a terra”) faz notar a necessidade da primeira letra da narrativa ser o b – letra inicial
da palavra bênção, רב ר -que também começa com b – como na maioria dos idiomas oci ,י
dentais (bênção, em português; bendición, em espanhol; blessing, em inglês; bénédiction,
em francês; benedizione, em italiano).299 O princípio se inicia pelo bet – letra que também é
inicial do verbo ר ,Princípio e criação significam .[barah, “criação”, por ordem divina] ,י
em suma, na herança da teologia da criação, bênção. A bênção acontece através da narração
– que é genuinamente bom. A criação, deste modo, celebra uma eucaristia da linguagem: a
prática da hermenêutica da inovação em face das ideologias dominantes e imaginárias. De
acordo com Kearney, a ideologia trabalhada por Ricoeur, em sua própria representação so-
cial, é um fenômeno insuperável [unsurpassable] da existência histórico-social que tem
pressupostos na constituição simbólica, onde interpreta em imagens e representações o lado
social do si.300 A reflexão de Ricoeur aponta, portanto, para uma hermenêutica da invenção
que acontece pela narrativa, cujo ato de narrar é bom.301
A invenção na narrativa se dá também na tradução. Na língua grega, o conceito de
bereshit foi traduzido em ἀρχῇ [gr. arché], i.e., a noção de primeiro (temporal) e primordial
(fundação). No latim, na traução da Vulgata de Jerônimo, tornou-se principium. “É aqui que
intervém a mais importante decisão teológica, a de assimilar este ‘princípio’ à Palavra”,
escreveu Ricoeur.302 Trata-se de uma via existencial na qual a narração de algo é a pretensão
de uma criação. O prólogo de João, neste caso, é uma réplica de Gênesis 1.1: “Na princípio
havia o logos/Palavra”. A assimilação do início e da Palavra tem raiz hebraica nos escritos
de sabedoria303 e, não obstante, na leitura feita por Ricoeur em Rosenzweig. A sabedoria é
importante para a dobra da religião e a compreensão da linguagem religiosa. A aporia do
tempo, motivado pela distensão de Agostinho e inspirado pelo pensamento de Ro-
senzweig304, situa a tensão das coisas principais na fundação do mundo diante da ontologia
quebrada. A criação, deste modo, antes da sua figura, é uma linguagem filosófico-teológica
298 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 82. 299 BORGES, Jorge Luis. Borges oral & sete noites, p. 186. 300 KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 83. 301 “Toward a hermeneutic of invention”. Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva,
2004, p. 89. 302 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 81. 303 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 82. 304 Cf. “A temporalidade”, In: “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, RICOEUR,
Paul. Leituras 3 – Nas fronteiras da filosofia, 1996, p. 74-77.
75
que situa a exteriorização no princípio das coisas e a criatividade que desta exteriorização
advém. Em outras palavras, “o começo não é um início superado, mas, em um sentido, um
começo incessantemente continuado”305. O começo exteriorizado que continua presente é
guardado na sabedoria da narrativa bíblica, na qual a vocação de Abraão, em Gênesis 12,
correlaciona o passado da memória com a expectativa do futuro do outro, tornando, assim, o
presente em uma revelação. Pelo texto, a criação assume um sentido existencial na evocação
dos mandamentos bíblicos e na exteriorização dos instantes da incidência que abrem uma
perenidade.306
Seguindo a via existencial da religião enquanto a inserção da Palavra no mundo, em
resposta à totalidade quebrada, o pecado, para Ricoeur, é uma fratura linguística.307 A lin-
guagem é o lugar da esfera humana. Se há uma fratura, trata-se de uma fratura de princípio:
algo fundamental não está adequado, não está harmônico. Este conflito implica no peca-
do.308 O pecado, membro de um conjunto quebrado de sua totalidade, é a separação linguís-
tica entre Deus e o homem, entre Deus e a natureza. A linguagem, nesta perspectiva da via
existencial, emerge um universo dentro do Universo, enquanto o pecado se dá na separação
destes dois universos, de modo que a própria linguagem não consegue mais falar sobre Deus
no seu universo. A fratura – que provém da ontologia quebrada – acontece em todos os ní-
veis da realidade. Entretanto, a sua questão mais originária está na linguagem. A linguagem
humana, no quiasmo humano, ao fazer um todo com a natureza, sofre com a fratura. A cria-
ção, que é linguagem, é estabelecida pela linguagem fraturada. Se “o milagre é que, sob a
linguagem da experiência viva, haja camadas de linguagem cada vez mais fundamentais que
precedem cada sujeito falante”309, o pecado, por outro lado, trata-se da impossibilidade lin-
guística da criação.310 O milagre é que haja um dizer da criação311, um dizer da revelação,
305 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 75. 306 Este parágrafo ilustra bem o sentido de arché aplicada à filosofia de Ricoeur. 307 A fratura linguística é um pouco a fratura ética do bem e do mal, mas no plano linguístico. O tema da fratura
se insere no contexto do trágico, no âmbito da finitude e da culpabilidade. Cf. RICOEUR, Paul. “Culpabilité
tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 1953, pp. 285-287. 308 A exemplo da fratura, na medida em que as religiões, e sobretudo a Bíblia, tratam do diálogo de Deus com o
ser humano, como Adão, Caim ou a narrativa Torre de Babel, como diálogos quebrados, onde a fratura é uma
fratura linguística. Cf. a carta de Tiago, capítulo 3, da língua nascem todos os males, inclusive a guerra. A
linguagem deve ser situada na fratura linguística. 309 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 69. 310 Vale notar que a fratura não é a impossibilidade total, a criação está aí, fraturada, mas está aí. Há a possi-
bilidade na fratura.
76
um dizer da redenção, mesmo na fratura, enquanto o pecado é a totalidade quebrada que
impede o dizer a pesar de qualquer ação justa. A totalidade quebrada implica num Deus
desconhecido (por isso, precisa-se nomeá-lo), num mundo auto-explanatório (precisa-se,
assim, de identidade narrativa) e numa espécie humana entregue à tragédia do mal e da mor-
te (consequentemente, o trabalho da simbólica do mal).312 A narrativa criadora – ou a teolo-
gia da criação – possibilita uma rede de entrelaçamentos que envolve a criação, a revelação
e a redenção. Além das leituras em Agostinho, a influência de Rosenzweig em Ricoeur é
ainda mais importante para a dobra da religião no contexto da linguagem. Estes três entrela-
çamentos (criação, revelação e redenção) situam a linguagem religiosa no âmbito da ontolo-
gia quebrada e preparam a hermenêutica ricoeuriana para o desmembramento linguístico no
qual a dobra terá efeito.
Através da criação, Deus se exterioriza num mundo, mas ele é referido, en-
tão, apenas na terceira pessoa e na linguagem da narrativa. Através da re-
velação, Deus se dirige a uma alma individual e diz: “Você, ama-me!” O
diálogo nasce a partir de ser assim dirigido. Através da redenção, uma es-
perança é aberta para um nós, que é uma comunidade histórica.313
Ricoeur, ao pensar a criação, conceitua suas ideias sobre o pensamento metafórico
de Rosenzweig. Antes de Heidegger e sua obra Ser e Tempo cujo situar o tempo na sucesso
de eventos, Rosenzweig apresenta reflexões de profundidade temporal, irredutíveis a qual-
quer cronologia ou representação linear. Trata-se, segundo Ricoeur, de uma sequência de
estratos314, a qual corresponde às descontinuidades temáticas do aparato bíblico e compor-
tam uma verdade. Escreveu ele: “O elo temporal não abole esses rompimentos, ao invés
disso, ele os incorpora numa verdade que não tem outra expressão além das três figuras da
criação, revelação e redenção”315. É importante estas três figuras, pois representam a ideia
de temporalidade bíblica, de acordo com Ricoeur. A criação, ao possibilitar a linguagem,
refere-se a um início incessantemente continuado. A revelação, ao instaurar o diálogo, é a
311 Cf. os breves, mas importantes, ensaios sobre a linguagem e a criação, In: GUARDINI, Romano. The World
and the Person. Washington: Henry Regnery Publishing, 1965. As questões de diálogo, alteridade e ética
correspondem ao início da linguagem com Deus e os deuses (guardados nos mitos). 312 Para Ricoeur, o fim da tragédia é a celebração e a glória, i.e., a sabedoria grega do “sofrer para aprender”e a
dimensão bíblica do “perdão de Deus” tornam possíveis novas aberturas pelo trabalho do reconhecimento de
si nos eventos trágicos e na literatura mítica que promove a dialética da finitude e da culpabilidade. RI-
COEUR, Paul. “Culpabilité tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieu-
ses, 1953, p. 306. 313 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 85. 314 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86. 315 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86.
77
transição entre o futuro da esperança e o passado da memória. A redenção, ao proporcionar
a fundação das coisas na linguagem, propicia a renovação e o prolongamento dos funda-
mentos. É nesta dimensão que acontece o “novo pensamento”316, i.e., o discurso da fé onde
filosofia e teologia são quase indiscerníveis. O traço do novo pensamento, sobretudo em
Rosenzweig, rompe com o discurso do saber absoluto para um outro discurso ser possível. É
neste sentido que o milagre se torna na teologia filosofante chamada de novo pensamento.317
O vínculo linguístico é, afinal, a ponte entre os pontos de intersecção da dobra – como os
temas religiosos que apelam para a filosofia no dizer das coisas vividas.
Portanto, a relação da linguagem é primeira e trata-se mais de uma meditação exis-
tencial do que especulação teológico-filosófica.318 A temporalidade319 é um lugar no qual a
criação denota uma unidade rítmica e possibilita pensar a separação em narrativas míticas
de origem com a irrupção de múltiplos inícios. Segundo Rosenzweig, trata-se de uma aber-
tura de uma perenidade que repousa em silêncio durante o movimento de um piscar de
olhos.320 A linguagem só encontra sentido na existência e no momento: no piscar de olhos
rosenzweigeriano, no instante kierkegaardiano, no Ereignis heideggeriano. A figura desta
dimensão encontra-se na proclamação Bíblica mais profunda e enigmática, “Eu sou o que
sou” (Êxodo 3.14), ao colocar o ser em situação de linguagem a partir da totalidade quebra-
da.
II.1.2 O desmembramento linguístico
A questão da linguagem não é uma resposta definitiva para o mal. Antes, ela lança
luz na aporia para que outros caminhos sejam pensados. Nesta tarefa, a língua, em sua con-
dição criativa e criadora, desmembra novos sentidos. Novas formas de dizer algo são possí-
316 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 68. 317 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 69. 318 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86-77. 319 A temnporalidade se faz presente por todo o corpo desta tese, uma vez que ela é eixo articulador da dobra da
religião no pensamento de Paul Ricoeur e em outros autores que o influenciaram. 320 “A silently reposing permanence by the movement of a blink ofthe eye.” ROSENZWEIG, Franz. The Star of
Redemption, 2005, p. 174.
78
veis. Segundo Aristóteles, o ser pode ser dito em diversas maneiras [pollakhôs legetai].321 A
variedade é dita na linguagem criativa ou poética, cuja expressão alarga o ser para o sentido.
Dentre as várias narrativas, para Ricoeur as mais significativas estão no mito e na metáfora,
pois estas são as primeiras formas de ver o ser humano no mundo.322 A metáfora e o mito,
ao desdobrar o ser, possibilitam a criação semântica. A narrativa criadora de sentidos funda
mundos e aponta para sentidos bons (a primeira letra bet, de bereshit, “princípio”, de barah,
“criar”, de bênção, preservada na maioria dos idiomas ocidentais, enquanto a queda promo-
ve a confusão dos sentidos, inibindo o sopro criativo (o pecado, i.e., a quebra linguística).
Se diabólico é o movimento de dividir e espalhar, simbólico é juntar e lançar. A fratura lin-
guística, na dinâmica da separação e espalhamento, impossibilita a semântica da criação. A
tradição bíblica hebraica e cristã vivencia a invenção linguística do pecado nas erupções
existenciais da consciência da culpa da fratura linguística.323 Toda experiência de separação,
falta e culpa carrega em si a sabedoria que busca desembocar na linguagem as saídas para a
experiência viva. Torna-se necessário, portanto, a hermenêutica da suspeita e a hermenêuti-
ca da inovação na condição de guias do labirinto da linguagem. Na esfera simbólica, o ato
de união e ação remetem para sentidos profundos do ser a partir da linguagem que implicam
em gestos bons.
A dobra da religião promove desmembramentos linguísticos de narrativas míticas e
implica, pelo agir engajado e justo, numa poética.324 A linguagem, ao mesmo tempo que é
meio e patrimônio da humanidade, segundo Heidegger, é a atitude central e inauguradora do
ser, tempo e sentido, segundo Ricoeur. Iniciado no estudo do símbolo, passando pela metá-
fora, narrativa e alcançando o testemunho, fundamental para a tese é a subordinação da pre-
ocupações epistemológicas da hermenêutica para as preocupações ontológicas. “Compreen-
der deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se numa maneira de
ser e relacionar-se com os seres e com o ser”325. Os pressupostos das preocupações ontoló-
321 “Aristote note que ‘l’être se dit de multiples façons’”. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia uni-
versalis. XII, Paris, Encyclopaedia Universalis France, 1972, p. 96. 322 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics
and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 8. 323 Cf. RICOEUR, Paul. A Símbólica do Mal, 2013, p. 25. 324 Vale notar a noção de poética para a perspectiva desta pesquisa. A poética, poiesis, como referência indireta,
i.e., que diz algo original, que não poderia ser de outro modo. Não temos a prentensão de elaborar uma poéti-
ca da religião em Ricoeur, mas apontar que a reflexão religiosa leva à poética. Portanto, sempre que o termo
poética se fizer presente, trata-se da poiesis. 325 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias, 1990, p. 18.
79
gicas envolvem movimentos de desregionalização, os quais levam o leitor para atitudes de
desconfiança e distanciamento. Tanto em Deleuze, conforme sua obra de referência, como
na tese da dobra da religião em Paul Ricoeur, a dobra é superficial. Isto é, na superfície das
narrativas emergem sentidos que dizem algo dobre o ser. Ricoeur caminha pelas superfícies
de suas especulações, ao invés de invocar uma profundidade de significados escondidos
[sens cachés]. O empreendimento hermenêutico da interpretação correta (ou justa) e a dobra
acontecem na linguagem. Não há pretensão metafísica na tese da dobra da religião. Sua
condição de origem se insere no chão da hermenêutica ricoeuriana. Segundo Olivier Abel, a
dobra da religião explicita apropriadamente a passagem do símbolo para a metáfora na obra
de Ricoeur. Diferente de Eliade, que busca um sentido no próprio símbolo326, Ricoeur ela-
bora seu pensamento a partir do símbolo. O Lebenswelt é outro fator determinante na filo-
sofia de Ricoeur que abre a força polissêmica do símbolo. Sendo o símbolo o elemento que
dá o que pensar, parte-se do símbolo para a vida. É nesse movimento reflexivo, na superfí-
cie, que acontecem os turnos, desvios e, em destaque, a dobra.
Motivado pela analogia operada no símbolo327, pode-se falar que a dobra da religião
abraça a ambiguidade – a começar pela opção de Ricoeur à referência dupla328, i.e., a não
mistura dos gêneros teológicos e filosóficos por precaução metodológica e, principalmente,
por não esgotar as aporias. A dupla adesão, enquanto faceta da contingência e do significa-
do, denota as diversas adesões – como também as oposições – que se integram num hori-
zonte comum. “A leitura mais interessante parece ser uma leitura às avessas”329, escreve
Ricoeur sobre a leitura da Bíblia, sobretudo o Antigo Testamento. A teologia do nome divi-
no dá lugar à uma teologia narrativa – uma leitura às avessas – ao invés de uma teologia
dogmática ou uma onto-teologia sobre Deus. O nome divino carrega metáforas que configu-
ra tradições, das mais variadas, e formas de expressão, das mais diversas. O auge desta in-
terpretação está na poética que promove a compreensão do mundo diante do texto. A prática
de vivência da fé do nome divino é transferida do texto para a vida. A essência poética pos-
sibilita refazer o mundo segundo a visada essencial da relação do sujeito com a narrativa
bíblica. A palavra Deus torna-se numa expressão-limite que leva à uma experiência-limite.
326 Cf. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 55. 327 Cf. a dialética entre alegoria e hermenêutica no estudo do símbolo, In: RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal,
p. 32-33. 328 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 221. 329 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 224.
80
A influência de Kant a respeito dos limites é fundamental em Ricoeur. A despeito de Kant
responder aos seus problemas com a teleologia, Ricoeur busca algo além – a questão do
além do ser.330 Kant é o autor privilegiado por Ricoeur para a filosofia da religião e Ricoeur
acompanha as reflexões de Kant no que diz respeito ao Denken (pensar) que não se esgota
no Erkennen (conhecer).331 A experiência-limite, sendo o atrito entre as coisas vividas e as
coisas pensadas e conhecidas, trata-se da superação da ética e do político para a mudança do
mundo que é inaugurado pelo texto.
II.1.3 A dobra como linguagem aberta
A filosofia depende da linguagem. Seguindo a tradição linguística francesa da lin-
guagem, como em Ferdinand de Saussure, a linguagem é a realidade antropológica e cultu-
ral. Conforme notado anteriormente, a linguagem ocupa um lugar privilegiado no pensa-
mento de Ricoeur e a citação que se segue ilustra, inicialmente, a importância da linguagem
e sua posição em relação à religião:
A interpretação da linguagem religiosa pode ocupar dois lugares diferentes
no empreendimento filosófico: enquanto fonte não-filosófica da filosofia,
este lugar é central, mas (...) mesmo a partir deste ponto de vista, o qual
denomino algumas vezes de motivação, o senso para a ação humana, as
preocupações morais e políticas constituem, para mim, o centro de interes-
ses distintos que não são absorvidos inteiramente na preocupação para a re-
ligião. Em vez disso, eu falarei de uma constelação primitiva de interesses
na qual a preocupação religiosa é ao mesmo tempo central e periférica. Se
nós levarmos em consideração agora o discurso filosófico, a questão do lu-
gar da experiência e da linguagem religiosa exige uma resposta completa-
mente diferente (...). Eu sustento a autonomia do discurso filosófico, como
gosto de repetir, e assumo a responsabilidade que ele coloca. A filosofia
cuida de si mesma. Mas, isso não quer dizer que o problema da linguagem
religiosa desapareceu do horizonte. Da fonte mais ou menos central, tor-
nam-se temas mais ou menos periféricos. É tematizada como linguagem,
como uma linguagem entre as demais (...), um modo de interpretação den-
tro outros.332
330 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 109. 331 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236. 332 “L’interprétation du langage religieux peut occuper deux places différentes dans l’entreprise philosophique :
quant aux sources non philosophiques de la philosophie, cette place est centrale mais (...) même de ce point
81
A constelação primitiva de interesses que cercam a religião, mencionada por Ri-
coeur, constituem características da dobra da religião na linguagem. Preserva-se a autono-
mia do discurso filosófico e busca-se outra contribuição mais para o pensamento: a origina-
lidade da religião no ato filosófico. A abordagem filosófica de Ricoeur no estudo da lingua-
gem é da filosofia reflexiva.333 O trabalho sobre Lachelier e Lagneau constituiu a primeira
etapa do contato de Ricoeur com a filosofia reflexiva francesa e foi aprofundado com Jean
Nabert. A fase pré-fenomenologia em Ricoeur, situada na abordagem reflexiva, é despertada
como um pensamento que não se limita na determinação dos objetos, mas que se fortalece
no retorno da própria reflexão ao se interrogar sobre as próprias operações filosóficas.334 O
encontro com a fenomenologia aprimora tal tarefa. A reflexão não é primeira, mas segunda.
De acordo com Ricoeur, “a contribuição da fenomenologia consiste em subordinar a refle-
xão no ato intencional e tratá-la como um ato segundo que se volta ao primeiro ato da saída
de si”335. A abordagem reflexiva é preenchida pela fenomenologia husserliana e se faz pre-
sente pelo restante de sua obra.
Motivado pela filosofia reflexiva, do início de sua carreira, a hermenêutica de Paul
Ricoeur implica numa vida examinada como uma vida narrada. Este é o grande empreendi-
mento da sua obra Tempo e Narrativa: a temporalidade não se deixa dizer no discurso direto
de uma fenomenologia, mas requer a mediação do discurso indireto da narração.336 A finitu-
de ameaça o ser. A narrativa assumem múltiplas direções do ser possível, de modo que o
acesso a si-mesmo é sempre indireto e mediado. A identidade narrativa é, pela mediação das
de vue, que j’appelle parfois celui de la motivation, le sens pour l’action humaine, les préoccupations morales
et politiques constituent pour moi des centre d’intérêt distincts que ne sont pas entièrement absorbés dans la
préoccupation pour la religion. À la place, je parlerai d’une constellation primitive d’intérêts dans laquelle la
préoccupation religieuse est tour à tour centrale et périphérique. Si l’on prend maintenant en considération du
discours philosophique, la question de la place de l’expérience et du langage religieux appelle une réponse
entièrement différente (...). Je maintiens que le discours philosophique est autonome, comme j’aime à le
répéter, et assume la responsabilité de lui-même. La philosophie prend soin d’elle-même. Mais cela ne veut
pais dire que le problème du langage religieux a disparu de l’horizon. De source plus ou moins centrale, il
devient thème plus ou moins périphérique. Il est avant tout thématisé comme langage, et donc un langage
parmi d’autres (...), un mode d’interprétations parmi d’autres... ”. RICOEUR, Paul. L’herméneutique
biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 103-104. 333 Cf. RICOEUR, Paul. Du tete à l’action: Essais d’hermenéutique II, Paris: Seuil, 1986, p. 29. 334 Cf. RICOEUR, Paul. In: “Entretien avec Paul Ricoeur: Questions de Jean-Michel Le Lannou”, Revue des
sciences philosophiques et théologiques, 74, 1990, p. 91. 335 “L’apport de la phénoménologie a consisté à subordonner la réflexion à l’acte intentionnel et à la traiter
comme un acte second de retour sur un premier acte de sortie de soi.” RICOEUR, Paul. In: “Entretien avec
Paul Ricoeur: Questions de Jean-Michel Le Lannou”, Revue des sciences philosophiques et théologiques, 74,
1990, p. 88. 336 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1, 2010, p. 56-57.
82
produções culturais, uma hermenêutica do si-mesmo. O desvio representa uma das caracte-
rísticas da dobra. As aporias da experiência do tempo na descoberta do si é o próprio fazer
filosófico de Tempo e Narrativa, onde “o texto informa a vida, a vida formula o texto, a
vida é transformada à luz de mundos abertos pelo texto, os textos são criados e formados
pela multiplicidade de novas experiências da vida”337. Pela dinâmica entre a concordância e
a discordância das interpretações é possível descobrir a identidade narrativa nos desvios da
hermenêutica do si. No intentio o espírito sofre distentio.338 “O ponto central em sua argu-
mentação sobre a identidade narrativa é de que a relação entre individualidade e identidade
precisa ser entendida dialeticamente”339. A identidade, na condição da individualidade, re-
quer narrativa para que o sentido repouse no indivíduo. É importante para a tese da dobra da
religião levar em consideração a condição da narrativa: sendo a narrativa não isenta de mo-
ralidade, toda narração implica em ação e moral. O processo da identidade narrativa se dá,
portanto, num desenrolar de si mesmo como sujeito na relação e que assume ações morais.
Diferente do ego narcisista, a identidade narrativa – o relacionamento do indivíduo, ao des-
cobrir sua condição de sujeito diante dos outros indivíduos e, na preocupação central de
Ricoeur, diante de textos que lhe são narrados – é o descolamento do ego para o si mesmo
instruído por símbolos culturais.340 A noção da identidade narrativa, que se dá pela busca do
conhecimento de si, é importante para o movimento da dobra da religião, pois refere-se à
hermenêutica do si que tem na tradição religiosa elementos para o trabalho do cogito que-
brado.
A apropriação da leitura de qualquer texto ou narrativa deve ser antecipada por dis-
tanciamento.341 Não há propriedade real da leitura sem um distanciamento primeiro. A her-
menêutica da desconfiança e o processo de distanciamento caracterizam a base metodológi-
ca de Ricoeur.342 A tarefa hermenêutica não estaria completa se o texto, na dialética do
evento e do sentido, não invocasse a ação. Um dos aspectos caracterizantes do projeto her-
337 Cf. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion
in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 17. 338 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1., p. 38. 339 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, p. 136. 340 Cf. WOOD, David In: WOOD, David (Org.) On Paul Ricoeur: Narrative and Interpretation. London and New
York: Routledge, 1991, p. 11. 341 Cf. RICOEUR, Paul. “La tâche de l’herméneutique”, In: BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Pro-
blèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p. 203. (pp. 201-
215). 342 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, pp. 46-47.
83
menêutico de Ricoeur é o seu engajamento com a vida. O engajamento é refletido em suas
reflexões sobre o comprometimento do texto com a ação. É necessário ao leitor mover-se do
texto à ação para alcançar a plenitude da linguagem.343 A língua, ao articular evento e senti-
do, ultrapassa seus próprios sistemas e ingressa no processo de compreensão. Em outras
palavras: “se a linguagem é um meinen, uma visada significante, é precisamente em virtude
dessa ultrapassagem do evento da significação”.344 A função da linguagem, tanto na dinâmi-
ca da discurso enquanto obra como a noção e sujeito de discurso, exalta a relação entre fala
e escrita. A “coisa” do texto, de Gadamer, i.e., a autonomia do texto, que se desprendeu do
horizonte intencional finito do autor, pretende o mundo do texto.345 Todo discurso encontra-
se com a realidade, independente de sua abordagem (descritivo, constatativo, didático), e
todo texto se liberta da intenção do autor. Conforme conclui Ricoeur, “o que deve ser inter-
pretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo
para nele projetar um de meus possíveis mais próprios”346. É isto o que Ricoeur chama de
mundo do texto, o mundo próprio ao texto único.
Para o exercício da leitura e o acesso ao mundo do texto deve haver correspondência
entre o ato da leitura e a vida do leitor de modo que a consciência faça parte do mundo e
parte de si mesma.347 A dimensão da noção de texto implica num compreender-se diante da
obra. Lego ut intelligam – “eu leio para compreender”. A identidade do si é interpelada pe-
las narrativas. A redação confere ao texto, imediatamente, independência relativa à seu con-
texto e ao seu autor. O texto encarna a polissemia das palavras e possibilita a variedade de
interpretações possíveis dentro de si mesmo. Enquanto para Gadamer não é possível escapar
do círculo hermenêutico, para Ricoeur, no distanciamento enriquecedor da reflexão do si, há
a possibilidade da incorporação da dialética entre explicação e compreensão. Esta metodo-
logia satisfaz, segundo o filósofo, as exigências da compreensão no círculo hermenêutico.348
343 No caso da religião, a ação é mediada pelo símbolo em meio as fraturas e quebras da existência humana. “La
structure symbolique de l'action”, In: Actes de la 14e Conférence internationale de sociologie des religions
(Symbolisme), Strasbourg, Lille, Secrétariat C.I.S.R., 1977, p. . 344 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 47. 345 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 54-
57. 346 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 56. 347 “Il n’y a pas d'intuition unitive, pas de savoir absolu dans lequel la conscience prendrait à la fois conscience
de l’absolu et de soi-même.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de révélation”, In: La révélation
(collectif), Bruxelles: Faculté Saint-Louis, 1977, p. 51. 348 SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2010, p. 133.
84
É necessário haver tanto uma teoria da interpretação como de explicação para que não se
caia em um relativismo.
O distanciamento – herança de Kant, na metodologia da primeira e a segunda inge-
nuidade349 – recorrente no processo de auto-reconhecimento, individual ou comunitário,
inclui a explicação, que é tanto a descrição técnica dos elementos do texto como a verifica-
ção das possibilidades de existência que o texto apresenta ao leitor.350 Neste momento, a
variação imaginária, em seu papel de ficção, oferece ao leitor uma possibilidade de verifica-
ção de sua própria realidade onde o tempo presente encontra outras possibilidades diante da
realidade que o instiga.351 “Doravante, compreender é compreender a si mesmo diante do
texto. Não é uma questão de impor a nossa capacidade finita de compreensão sobre o texto,
mas de expor-nos ao texto e receber dele um alargamento de si”, escreve Ricoeur e conclui:
“a metamorfose do jogo do mundo também é a jogada da metamorfose do ego”.352
A hermenêutica do texto depende da hermenêutica da ação na recomposição do ser
humano na tarefa do conhecimento de si mesmo.353 Tal dinâmica implica em um alargamen-
to do ser, cujo movimento implica em dobras. Filosofia e teologia, enquanto pensamentos
sistematizados de um conhecimento, encontram-se na fronteira onde acontece o diálogo
entre texto e ação, narrativa e vida, teoria e prática. A fronteira denota o limite das aborda-
gens filosóficas e teológicas, valorizando-as e promovendo um novo evento na linguagem: o
pensamento com plicas, com dobras, i.e., um pensamento complicado por natureza. A dis-
tinção que advém do pensamento permite a interação das especificidades do filosófico no
teológico e do teológico no filosófico. Em suma, diante da dualidade inerente em Ricoeur, a
adesão religiosa previne a teologia de ameaças filosóficas, enquanto o agnosticismo meto-
dológico abre a pesquisa para as tradições filosóficas. É justamente por Ricoeur manter a
349 Cf. WALLACE, Mark I. The Second Naiveté: Barth, Ricoeur, and the New Yale Theology. Mercer University
Press, Macon, Georgia, 1995, p. 81. 350 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.
57. 351 RICOEUR, Paul. “La fonction herméneutique de la distanciation”, in BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds)
Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p.
211. 352 “Henceforth, to understand is to understand oneself in front of the text. It is not a question of imposing upon
the text our finite capacity for understanding, but of exposing ourselves to the text and receiving from it an
enlarged self (...) the metamorphosis of the world in play is also the playful metamorphosis of the ego”, RI-
COEUR, Paul. From Text to Action, 1991, p. 88. 353 RICOEUR, Paul. From Text to Action, 1991, p. 89.
85
aporia em tensão e, conforme destacou Christina Gschwandtner354 acerca desta dualidade
em diálogo, por preservar a integridade dos discursos, que o diálogo genuíno pode ser pos-
sível e a imaginação e a simpatia possibilitam novas interpretações complicadas – com vá-
rias dobras.
A dobra da religião não é um desvio que remove o pensamento de Ricoeur de seu
centro, alcançando respostas religiosas. Assim seria se o pensamento de Ricoeur fosse linear
e teológico. Não se trata, igualmente, da superação da ontologia, como tampouco da subtra-
ção da razão. Entretanto, dizer que a religião ocupa um papel importante no pensamento de
Ricoeur também seria traçar um círculo demasiado largo. A religião, a rigor, é, num primei-
ro momento, uma forma de pensamento, original e autêntico, e, posteriormente, uma mito-
poética.355 O distanciamento hermenêutico, ao contrário do que Gadamer pensava, é produ-
tivo – é, na dinâmica de Rosenzweig, criativo. A produtividade e criatividade deste movi-
mento resultam em inovações na dialética do evento e do significado. É no ato da leitura, da
abertura inaugurada pelo texto, que o mundo se torna possível – sobretudo o mundo religio-
so interpretado pela narrativa bíblica, na esfera da criação, revelação e redenção. Enquanto
texto, a religião comporta mundos e carrega a questão mais fundamental da hermenêutica: o
mundo possível.356 Sendo uma forma de pensamento, a religião inaugura desvios e turnos na
reflexão pelo ato da leitura e do reconhecimento do leitor. A religião, na força da compreen-
são e na meditação da existência, inaugura uma ação. Assim sendo, a dobra é uma tensão
da religião com a ontologia.
354 GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion in
Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 18. 355 O trabalho do pensamento aporético implica, em Ricoeur, na ontologia do possível (conforme será visto mais
a frente). Em suma, a ontologia quebrada, na tarefa do reconhecimento do si, leva à ontologia poética. No la-
do da religião, a incompletude da linguagem religiosa – ou seja, a linguagem fraturada – leva à mito-poética.
Para um trabalho mais aprofundado sobre a mito-poética, cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic
Language and Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation of the Thought of Paul Riceur,
1971, p. 29. 356 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.
55.
86
II.1.4 Linguagem nos limites da tensão
A dobra em tensão sedimenta sentidos e significados para o ser na esfera da lingua-
gem. Aos ecos da relação entre a religião e a ontologia, Christina Gschwandtner situou a
questão fundamental acerca do posicionamento original de Ricoeur: “Como a sua adesão
hermenêutica influencia na forma na qual ele configura a divisão ou a relação entre os dis-
cursos filosóficos e bíblicos, fenomenológicos e religiosos?”357 Ao comentar sobre a filoso-
fia e a linguagem religiosa, Ricoeur insiste que a hermenêutica filosófica “tentará chegar o
mais próximo possível das expressões mais originárias de uma comunidade de fé, daquelas
expressões pelas quais os membros de determinada comunidade interpretaram a sua experi-
ência para o bem de si mesmos ou por causa de outros.”358 A hermenêutica filosófica ofere-
ce subsídios para a interpretação que não se atém à dogmática ou ortodoxia religiosa. A au-
tonomia do discurso filosófico e a originalidade da narrativa religiosa implicam numa me-
todologia hermenêutica que requer atenção.
Pode, pois, parecer que creditamos a subordinação da hermenêutica bíblica
à hermenêutica filosófica, ao tratá-la como uma hermenêutica aplicada.
Mas é, precisamente, ao tratar a hermenêutica teológica como uma herme-
nêutica aplicada a uma espécie de textos – os textos bíblicos –, que se reve-
la uma relação inversa entre as duas hermenêuticas. A hermenêutica teoló-
gica apresenta características tão originais que a relação se inverte progres-
sivamente, subordinando-se, finalmente, a hermenêutica teológica à her-
menêutica filosófica como o seu próprio organon.359
Trata-se, em primeiro lugar, de dois modos de saberes que, a rigor, não fragmentam
e nem totalizam um conhecimento. Ambos saberes são complementares, a saber,
a filosofia tem necessidade de uma hermenêutica da religião porque é no
exterior da circunscrição da razão que se inscreve o caráter inescrutável da
origem do mal, da origem da representação crística implantada em nossos
357 “How do his hermeneutic commitments influence the way in which he configures the divide or relationship
between the philosophical and biblical, phenomenological and religious discourses?” GSCHWANDTNER,
Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion in Contemporary French
Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 15. 358 “A hermeneutical philosophy will try to get as close as possible to the most originary expressions of a
community of faith, to those expressions through which the members of this community have interpreted
their experience for the sake of themselves or for the other's sake.” RICOEUR, Paul. Figuring the Sacred,
1995, p. 37. 359 RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção, 1991, p. 125.
87
corações, do dom adicional da graça que a crença confessa, finalmente, da
instituição dá visibilidade ao Reino de Deus na terra.360
Em uma entrevista, no qual falou especificamente sobre a intersecção dos domínios
da filosofia e teologia, Ricoeur declarou: “É isso o que eu aprendi com o pensamento her-
menêutico: o horizonte sempre será a totalidade e a unidade, enquanto o nosso pensamento
sempre será fragmentário. Isso significa que não podemos transformar este horizonte em
uma possessão.”361 Identificar o pensamento, que é fragmentado, como um horizonte leva
ao equívoco da possessão – segundo Paul Tillich, a idolatria caracteriza-se por semelhante
movimento.362 É necessário explicitar a relação da religião com o texto sagrado, pois é nesta
relação que está a função da dobra.
A Bíblia é o horizonte de suas motivações e reflexões religiosas – ela não pode se
reduzir à leituras que pretendem a sua totalidade. Falar de religião, em Ricoeur, é a priori
referir-se à experiência cristã e a abertura de mundo que dela advém.363 Deste modo, as Es-
crituras, segundo ele, são modos de discursos que constituem o campo finito da interpreta-
ção na fronteira onde a linguagem religiosa pode ser compreendida.364 Há uma preocupação
genuína pela integridade dos textos, que preserva, de certo modo, a filosofia e a teologia,
cada uma em seu domínio em relação ao texto. Ao justificar o seu método agnóstico na filo-
sofia, encontramos na introdução de O Si-Mesmo como Outro alguns esclarecimentos sobre
a primordialidade do texto, como também a aversão por leituras “criptofilosóficas” ou “crip-
toteológicas”.365 Se existem autores que não compartilharam tal preocupação – e.g., Jean-
Luc Marion, que funde o discurso religioso ao filosófico366, ou Paul Tillich, em sua leitura
ontológica da religião bíblica, que rompe, de certa forma, com os limites da teologia e filo-
360RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica Filosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo-
sofia, 1996, p. 39-40. 361 “This is what I’ve learned from hermeneutic thought, it is a fact that we always aim at totality and unity as a
horizon, but that our thought always remains fragmentary. This means that we cannot transform this horizon
in possession”. RICOEUR, Paul, apud RAYNOVA, Yvanka. “All that Gives Us to Think: Conversations
with Paul Ricoeur”, In: WIERCINSKI, Andrzej (Org.) Between Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur's
Unstable Equilibrium. Toronto: Hermeneutic Press, 2003, p. 686-688. 362 Cf. TILLICH, Paul. Dynamics of Faith, p. 45. 363 Por religião compreendemos o campo das experiências e vivências do religioso. Enquanto objeto de reflexão,
como a tese é um trabalho de ontologia, optamos por trabalhar com a religião – mesmo porque a teologia, pa-
ra Ricoeur, é teologia cristã. Quando o termo teologia aparecer, ele é usado para se referir, em suma, à área
do conhecimento teológico (geralmente em contraste com a filosofia). 364 Cf. RICOEUR, Paul. Figuring the Sacred, 1995, p. 38. 365 Cf. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro, 2014, p. XLI. 366 Cf. MARION, Jean-Luc. “‘Christian Philosophy’: Hermeneutic or Heuristic?”, In: AMBROSIO, Francis.
(Org.) The Question of Christian Philosophy Today. New York: Fordham University Press, 1999.
88
sofia367 – é justamente pela fidelidade ao texto que Ricoeur sustenta, como pressuposto me-
todológico, a distinção entre os campos do saber para uma hermenêutica filosófica autôno-
ma e um discurso religioso autêntico.
A hermenêutica praticada por Ricoeur, na esfera da suspeita, comporta dobras. Em
termos metodológicos para a dobra, Paul Ricoeur sugere a hermenêutica da via longa. “Nós
nos compreendemos apenas através do longo desvio dos sinais de humanidade depositados
em obras culturais”.368 As produções culturais são estudadas enquanto fenômenos que se
manifestam e comunicam algo sobre o ser e sobre o si mesmo. A análise da realidade, sob a
hermenêutica do ser, feita por Ricoeur, é intermediada pelas exteriorizações culturais e, so-
bretudo, religiosas, que compõem a identidade narrativa do indivíduo. “O caminho é o mais
longo. É o caminho da paciência e não da pressa e da precipitação”.369 Neste sentido, a via
longa de Ricoeur se diferencia da via curta de Martin Heidegger – para Heidegger, a pri-
mordialidade do fenômeno é estritamente de cunho ontológico e fenomenológico, enquanto
para Ricoeur a via longa é também ontológica e fenomenológica, mas caminha por linhas
diversas da cultura. A via longa, com a intermediação da hermenêutica e do ser, encontra na
religião uma das suas principais vias. Registrado em sua autobiografia, Ricoeur articula,
originalmente e honestamente, suas alianças, que são múltiplas. Ricoeur valoriza as raízes
religiosas, sobretudo protestantes, como também a origem e a solidariedade que dela ad-
vém.370 A dobra da religião opera na tensão oriunda das aporias destas alianças. As aporias
são aprofundadas em turnos – a exemplo, a crítica filosófica e a hermenêutica religiosa seri-
am alguns desses turnos.371 Ao invés de afastar a centralidade da pesquisa, os diferentes
turnos enriquecem a via longa e aproximam outros conteúdos à reflexão. A dobra é, deste
modo, o movimento de voltas que acrescentam em vez de excluir. Ricoeur indica o caminho
da história e da narrativa bíblica.372 Tratam-se de desvios, turnos, em suma, dobras, das
quais Ricoeur não aspira o caminho breve ou instantâneo, aquilo que foi denominado por
367 Cf. TILLICH, Paul. The Biblical Religion and the Search for the Ultimate Reality, Chicago: University Of
Chicago Press, 1987. 368 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.
55. 369 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 335. 370 GISEL, Pierre. “Prefácio”, In: RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia, p. 13. 371 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, p. 49, apud Cf. Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 27. 372 DIferenciando-se de Karl Jaspers, que aponta para a metafísica. Cf. RICOEUR, Paul. “Philosophie et Reli-
gion chez Karl Jaspers”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 37, 1957, p. 225.
89
via curta. Antes, o filósofo projeta o caminho longo, com tarefas e desafios, no qual a pró-
pria dinâmica do ser é vivenciada em turnos criativos e desvios inovadores.
A tese da dobra a religião, inspirada na via longa, situa o eixo articulador no distan-
ciamento e, consequentemente, na suspeita. Em Do Texto à Ação373, a dialética do distanci-
amento e da suspeita, i.e., o distanciamento da experiência de pertença e de alienação, a
suspeita da relação justiça e ideologia374, caracteriza a hermenêutica na dinâmica de concor-
dância e discordância. No coração das preocupações hermenêuticas, o pulsar do texto só é
possível pela ação, que acontece no diálogo. O comprometimento hermenêutico se recusa a
estabelecer um fim definitivo para qualquer assunto, muito menos possuí-lo enquanto hori-
zonte, de modo que a implicação leitura denota um modo de ser. Evitando transcendências
ou imanências absolutas que impossibilitem a pluralidade hermenêutica375, a seu ver, dis-
cursos de ideologia e utopia encerram a realidade em “conclusões prematuras”, inibindo
outras manifestações possíveis376 – promovendo o prejuízo de mundo. A hermenêutica da
suspeita, portanto, segundo Ricoeur, é parte integral e indispensável da apropriação de sen-
tido e aponta para a reflexão do ser que se distanciou de ideologias.377
II.2 Além das aporias: o mundo do mito
Conforme foi mencionado, a dobra acontece na tensão entre a religião e a ontologia.
Tratando-se de uma tensão fértil e criadora de sentidos – seguindo o trabalho de A Estrela
da Redenção, de Franz Rosenzweign –, o lugar da tensão se situa na linguagem. A aporia é
produtiva e anuncia e prepara o reconhecimento da dobra. A linguagem, na qualidade de
revelação do ser e do teônimo, vai da aporia à dobra, e mostra intersecções que revelam uma
articulação subjacente, mas não plenamente explicitável. O pensamento complicado, i.e.,
com plicas, com dobras, implica – na dobra – numa linguagem da religião e numa poéti-
373 Cf. RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção: ensaios de hermenêutíca II. Porto: Res, 1989. 407p. 374 Cf. RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção: ensaios de hermenêutíca II, 1989, p. 32. 375 Cf. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion
in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 16. 376 RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção: ensaios de hermenêutíca II, 1989, p. 308-116. 377 Cf. RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção, p. 103.
90
ca378, e a tensão entre ontologia e religião possibilita um horizonte que mantém a aporia,
sobretudo a criatividade entre as questões da religião e do ser. Há uma transição de interes-
ses da filosofia reflexiva para a hermenêutica e fenomenologia. Fundamental na tese da do-
bra da religião, no percurso dos interesses, está a relação da reflexão com a fenomenologia
do tempo. A preocupação ontológica e o reconhecimento do si primordial encontram-se na
esfera da linguagem mítica. Motivado pela questão da finitude, o trabalho filosófico de Ri-
coeur acerca da religião, principalmente no estudo dos mitos (a linguagem própria da reli-
gião), prefere o termo mito-poética ao invés de religião.379 Mito-poética é a terminologia
para o sagrado inaugurado na aporia do teônimo e da possibilidade de ser.
Dentre as aporias mais importantes no pensamento de Ricoeur, a fenomenologia do
tempo380 é aquela que constitui a possibilidade do pensamento da dobra da religião. Inici-
almente, o caminho metodológico da pesquisa aborda a ἄρχαί, archai, o lugar onde se reú-
nem os arquivos. Derivada da palavra ἀρχή, arché, há uma dialética entre o que é primordial
e principal, originário e primeiro, princípio e fundamental. A compreensão do organon, a
obra de um ser humano, parte da reflexão que não se situa exclusivamente nas categorias
contemporâneas e nos instrumentais imediatos. Os traços da humanidade são preservados
nos fundos de memórias culturais e constituem a identidade individual e coletiva. As narra-
tivas recuperam diversas maneiras de ser e promovem a formação da pessoa e da sociedade.
São traços culturais, sociais e históricos que se transformam em archés. É necessário a pas-
sagem pelos mitos, ritos, símbolos, cultura, artes e toda e qualquer representação humana
guardada nos arquivos da humanidade.381 Trata-se não apenas do compromisso da via longa,
mas também da tarefa negativa, presente deste os primeiros escritos de Ricoeur. Vale ressal-
tar, novamente, que, em seu trabalho filosófico, Ricoeur aspira por uma razão que se am-
plia. Na tarefa negativa, ele opta por uma razão que é enriquecida pela atenção ao universo
simbólico e religioso.382 A oposição entre religião e razão deixa de ser radical, uma vez que
378 Cf. RICOEUR, Paul. “Myth as the Bearer of Possible Worlds”, In: VALDÉS, Mario J. A Ricoeur Reader:
Reflection and Imagination. Toronto: University of Toronto Press, 1991, p. 490. 379 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 79. 380 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy, p. 81. A obra monumental Tempo e
Narrativa é iniciada, motivada pelo livro XI das Confissões de Santo Agostinho, com as aporias da experiên-
cia do tempo. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1, p. 17. 381 Esta é a proposta e o método elementar da “fenomenologia da confissão” em A Simbólica do Mal, Cf. RIC-
OEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, pp. 20-40. 382 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 556.
91
o papel da ficção, da metáfora e da narrativa mítica são reconhecidos. Concentrada a inves-
tigação nas duas formas literárias de conhecimento (a crítica filosófica e a hermenêutica
religiosa), é necessária a análise da linguagem religiosa que acontece em símbolos, mitos e
narrativas bíblicas.
II.2.1 Tempo e mito: a aporia da dobra
Tempo e Narrativa, A Metáfora Viva e Memória, História e Esquecimento são traba-
lhos que registram a preocupação com o tempo e configuram a filosofia hermenêutica e fe-
nomenológica acerca do aspecto temporal da condição humana. Ao lado destas obras mo-
numentais, Ricoeur escreveu inúmeros estudos e textos sobre a religião e o papel da filoso-
fia para o pensamento teológico. O símbolo e o mito ilustram a opção metodológica de Ri-
coeur acerca da compreensão formar par com a explicação e a crítica. A defesa à compreen-
são, diferente de Heidegger e Gadamer, Ricoeur recorre a Mircea Eliade e seu conceito cen-
tral da dialética do sagrado para abrir a explicação e crítica do símbolo religioso.383 No caso
do símbolo, há uma espécie de paixão envolvida, tanto no mundo religioso, encantado, co-
mo para a linguagem em si, que evoca uma relação na qual a credulidade (do símbolo) ga-
nhou a confiança.384 Símbolo e mito, para a primeira abordagem da dobra da religião, são
praticamente sinônimos, uma vez que ambos se referem, fundamentalmente, à linguagem da
religião. O interesse central neste estágio da pesquisa se localiza na relação da linguagem
religiosa com a fenomenologia do tempo.385
O ofício da reflexão sobre a religião e, sobretudo, as questões do mito e do tempo
em Ricoeur, deve incluir, conforme registra David Rasmussen no prefácio de sua obra
Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation
of the Thought of Paul Riceur, dois pontos fundamentais: (1) Ricoeur trabalha com uma
fenomenologia hermenêutica e (2) Ricoeur foi profundamente influenciado e motivado por
383 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 54. 384 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 55. 385 Para um aprofundamento específico acerca do tempo e da hermenêutica bíblica, cf. RICOEUR, Paul. “Bibli-
cal Time”, In: Figuring The Sacred: Religion, Narrative, and Imagination, 1995, pp. 167-180.
92
Mircea Eliade, quem estimulou os interesses de Ricoeur para o mito e o símbolo.386 Nas
palavras de Ricoeur, “Gabriel Marcel e Mircea Eliade (...) são dois exemplos de homens que
tiveram sobre mim uma grande influência nas relações de amizade, mas sem que me tenha
alguma vez submetido às obrigações intelectuais de um discípulo. Esses homens tornaram-
me livre”387. Além da admiração recíproca, Ricoeur já conhecia o trabalho de Eliade no iní-
cio de sua carreira filosófica, citando o autor romeno na obra A Simbólica do Mal, de
1960.388
Deve-se destacar que a hermenêutica da dobra da religião tem sua linguagem no mi-
to. A ênfase à tipologia do mito não é ocasional. Igualmente relevante, Ricoeur é cauteloso
ao tocar no trabalho com a história das religiões e, ao mesmo tempo, modesto, principal-
mente quando apresenta suas impressões, descrições e interpretações sobre este campo de
pesquisa. Ele denomina sua reflexão, neste assunto, de meditação de segunda ordem, i.e.,
“uma reflexão crítica aplicada às questões que se direcionam aos nossos documentos ao
invés das respostas que tiramos deles”389. As questões não estão livres dos valores da época
atual: elas comportam os conceitos contemporâneos à pesquisa que coloca as questões. Ri-
coeur não trabalhou especificamente com a história das religiões, mas a atitude comparativa
da disciplina da história das religiões – e de tantas outras ciências humanas –, uma vez que é
uma faculdade interpretativa e dialoga textos passados e culturas diferentes, é torna-se num
instrumental importante, sobretudo na aporia do tempo. A pesquisa em história das religi-
ões, deste modo, realizada na dinâmica das questões/respostas (da qual Ricoeur toma em-
prestado de Collingwood) é, propriamente, uma investigação.390 Uma investigação cuja ca-
racterística se dá ao valorizar sobretudo a questão e qualquer indagação interpretativa que
dela advém.
Qual a pretensão do mito? Qual a contribuição de Ricoeur sobre o mito, principal-
mente para a reflexão da dobra da religião? Explicitada a proposta fenomenológica da rela-
386 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive
Interpretation of the Thought of Paul Riceur. The Hague: Netherlands, 1971. 387 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 47. 388 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 31. 389 “By a second-order meditation I mean a critical reflection applied to the questions that we address to our
documents, rather than the answers that we get from them”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and
the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions:
Retrospect and Prospect. Macmillan Publishing Company: London, 1985, p. 13. 390 Do inglês (texto original), inquiry. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of
Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect,
p. 13.
93
ção entre questão e interpretação, Ricoeur propõe a aproximação ao tema, em modos gerais,
pelo tempo mítico.391 Ou seja, Ricoeur traz reflexões, na dobra do teônimo, como também à
disciplina da história das religiões, como um todo, ao realizar um empreendimento filosófi-
co acerca do tempo e daquilo que ele conclui ser um tempo mítico.
Assim como Mircea Eliade, Ricoeur se interessou pelo aspecto linear e pelo aspecto
circular da temporalidade nas práticas ritualísticas antigas. Ele trabalha inicialmente com a
famosa relação entre tempo cíclico e tempo linear, que se tornou popular, sobretudo, após a
obra Hebrew Thought Compared with Greek, de Thorleif Boman.392 Neste trabalho, Boman
apresenta a ideia na qual a história ocidental, inspirada pela Bíblia, estaria fundamentada em
uma consciência linear de tempo, enquanto a antiguidade teria a configuração da percepção
temporal instalada em moldes cíclicos. Ricoeur não assume extremidades, assim como não
esgota os temas de início (começo temporal) e origem (fundação de algo). Ele acompanha
os esclarecimentos de Arnaldo Momigliano sobre o assunto. Segundo Momigliano, a base
das suposições do confronto entre o tempo grego e hebreu, que foram sustentadas até então,
estariam erradas. Nos pressupostos deste conflito há dois equívocos elementares: (1) no lado
grego, esqueceu-se que havia diferentes concepções de tempo inerentes no pensamento gre-
go (e.g., entre Homero, Hesíodo e os trágicos há divergências na visão do mundo, como
também na teorização do tempo, contraposta a Platão, Aristóteles, Demócrito e os Estoicos);
e (2) no lado hebreu, subestimou-se a diversidade de manifestações temporais tais quais os
ritos, os festivais, os ditos proféticos, os ideais deuteronomistas e os movimentos escatoló-
gicos. Deste modo, poder-se-ia comparar apenas pequenos fragmentos bíblicos, como Sa-
muel ou os Reis, aos escritos literários gregos. Arnaldo Momigliano conclui sua reflexão
alegando que, “acima de tudo, os textos bíblicos não contém uma especulação sistemática
sobre o tempo que seja merecida a comparação aos filósofos gregos”393.
O contraste entre o pensamento grego e hebreu, seguido por Oscar Cullmann e Gilles
Quispel, ofuscou, segundo Ricoeur, a verdadeira natureza da questão com conclusões apres-
391 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14. 392 Cf. BOMAN, Thorleif. Hebrew Thought Compared with Greek. New York: W. W. Norton & Company,
1970. 393 “Above all, biblical writings contain no systematic speculation about time worthy of being compared with
that of Greek philosophers”. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Time in Ancient Historiography”, In: Essays in An-
cient and Modern Historiography, Middleton, Conn,: Wesleyan Univ. Press, 1977, p. 80.
94
sadas sobre a relação proposta.394 Ricoeur, com a sua característica postura pronta ao diálo-
go, apresenta um outro caminho ainda: para trabalhar a história das religiões ele propõe dois
passos metodológicos. O primeiro é a contribuição da fenomenologia da consciência do
tempo para a crítica das noções do tempo cíclico e linear. Faz-se notar que, na aporia do
tempo, a questão da temporalidade é fundamental para a dobra da religião, uma vez que se
insere no centro da relação entre tempo e narrativa. Neste projeto, herda-se os ensinamentos
decisivos da fenomenologia da consciência do tempo, desde Agostinho, Bergson, Husserl
até Heidegger, que nos evidencia a consciência do tempo enquanto um produto final da cul-
tura científica e, ao mesmo tempo, esvazia a riqueza da referida reflexão. Neste âmbito, Ri-
coeur sugere outros caminhos – que estariam, portanto, no segundo passo metodológico de
Ricoeur: a contribuição de Ricoeur acerca de um caminho que propõe o estudo dos diversos
sentidos e significados dos conceitos usados em religiões comparadas, evitando a univoci-
dade do conceito de tempo.395
II.2.2 O tempo e a narrativa
Ao trabalhar com os conceitos de criação, revelação e redenção – motivado pela lei-
tura em Rosenzweig – Ricoeur adota a expressão “camadas de linguagem”.396 Tal expressão
denota, com precisão, a intenção da dobra da religião: são “estratos empilhados”, nos quais
temas filosóficos e preocupações religiosas constituem camadas superiores, intermediárias e
outras mais profundas. A dobra da religião não se refere à um substrato submerso em signi-
ficados imperceptíveis, mas trabalha com diferentes níveis de camadas de sentidos. Trata-se
de um traço homogêneo com camadas heterogêneas. A primeira camada é a aporia do tem-
po. Nesta camada, criação, enquanto origem e fundamento, carrega, na gênese da religião, a
heterogeneidade das camadas. Segundo Ricoeur, ao refletir sobre a temporalidade na reli-
394 “the real nature of the question has been overshadowed by hasty conclusions concerning similarities and
differences between the so-called Greek thought and the alleged Hebrew thought”. RICOEUR, Paul. “The
History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.)
The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14. 395 “My first section will be devoted to the contribution of the phenomenology of time-consciousness to a criti-
que of the notions of ‘the cyclical’ and ‘the linear’ applied to time”. RICOEUR, Paul. “The History of Reli-
gions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of
Religions: Retrospect and Prospect, p. 14. 396 Cf. RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas
fronteiras da filosofia, 1996. p. 69.
95
gião de A Estrela da Redenção, “poderíamos ter começado por aqui. Mas retardei o seu
acesso, pois é uma via cheia de armadilhas”397. A aporia do tempo deve ser situada no recor-
te da dobra. Seu início encontra-se na finitude398 e no cogito quebrado [brisé]399. A finitude,
na figura involuntária (ao lado da culpabilidade e do mal), configura o problema da tempo-
ralidade. “A morte, o medo da morte, incita todo conhecimento do Todo”400. A consciência
finitude está na gênese do processo da identidade pessoal e da identidade narrativa.
A força que move a dobra da religião, na aporia da temporalidade, mediada pelo teô-
nimo, encontra-se na fenomenologia da consciência do tempo. A criação das coisas – ou,
parafraseando Rosenzweig, no “fundamento perpétuo das coisas”401 – tem na religião uma
criação original, primeira, simbólica e metafórica. O processo narrativo, tanto na religião
como nas grandes literaturas das comunidades, são motivados pela aporia do tempo. Ri-
coeur carrega influências de Agostinho na questão da distensão da alma – a ideia do interva-
lo.402 Conforme a primeira parte do primeiro volume de Tempo e Narrativa, sobre as aporias
da experiência do tempo, na qual Ricoeur apresenta o confronto da alma humana da intentio
e distentio animi, o tempo se torna “palpável” para o ser humano, i.e., o ser humano começa
a se relacionar com o tempo de modo mais direto, em face à intriga, de Aristóteles, referen-
ciando-se ao tempo através da narrativa.403 Se a originalidade de Agostinho reside na refle-
xão da intentio-distentio, a de Ricoeur, aplicada à dobra da religião, pressupõe a identidade
do si que acontece pela tarefa da narrativa. “Narramos coisas que consideramos verdadei-
ras”404, escreve Ricoeur acerca da aporia do tempo. Em outras palavras, a narrativa mostra o
tempo, sobretudo o tempo das coisas importantes. Enquanto o tempo fenomenológico se
atém à consciência individual, o tempo cosmológico aborda o início do tempo com as coisas
criadas, i.e., a origem de sentido na finitude. O tempo, em nenhuma das duas abordagens,
não é visível nem palpável. O sensível se apresenta no movimento das coisas, mesmo que
não seja possível a apreensão total do que é o tempo. Entretanto, a percepção subjetiva e
397 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996, p. 74. 398 Cf. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté I: Le volontaire et l’involontaire, Paris: Aubier, 1988 399 Cf. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté II: Finitude et culpabilité, Pais: Aubier, 1998. 400 “From death, it is from the fear of death that all cognition of the All begins.” ROSENZWEIG, Franz. The Star
of Redemption, 2005, p. 9. 401 “The everlasting primordial world”, ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption, 2005, p. 9. 402 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, p. 100. 403 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, pp. 14-15 e p. 21. 404 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 21.
96
objetiva do tempo é possível pala tarefa do reconhecimento de si na narrativa. Pela narrativa
há uma nova compreensão do tempo.405 Para Ricoeur, portanto, “o tempo torna-se tempo
humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua
significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal”406. Com efei-
to, a narrativa torna o tempo pensável e, na especificidade da tese, o mito é a narrativa ori-
ginal de uma percepção temporal pensada, cíclica ou linearmente, que coloca no cerne da
filosofia e da teologia a abertura de um mundo possível. Diferentemente do estilo da feno-
menologia do tempo de Husserl ou do tempo ontológico de Heidegger407, a contribuição de
Ricoeur enfatizada para este momento está no tempo se tornar pensável pela narrativa. Em
outras palavras, a narrativa levanta o véu do tempo. Sendo ela a chave para a identidade de
si e a chave para o reconhecimento do si no tempo408, a hermenêutica do si, interpelada na
esfera da temporalidade, possibilita à reflexão do tempo estar além de qualquer impensável
ou abstrata ao ponto de um fluir sem relação com o si.409 O tempo é percebido existencial-
mente devido a vivência do antes e do depois, de modo a formar uma narrativa. Portanto, a
narrativa, para Ricoeur, é chave para a temporalidade.
A aporia do tempo permite a compreensão da função da narrativa, sobretudo na des-
crição de mundo que os mitos pretendem.410 Tal compreensão, após a apresentação dos as-
pectos centrais do tempo e da narrativa, possibilita explicitar, nesta pesquisa, a questão da
religião como narrativa. Para tal tarefa, é mister analisar a fenomenologia da consciência do
tempo, em Ricoeur.
405 A dialética do vir a ser, do ter sido e do se fazer presente. Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1,
2010, p. 61. 406 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, pp. 14-15 e p. 93. 407 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, pp. 101-102. 408 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 81. 409 Husserl caminha pela intuição do instante, que esconde uma mediação. Não há inteiramente uma intuição do
passado; há a lembrança do passado. O caminho de Ricoeur procura ir além do caminho de Husserl, como
também além do caminho de Heidegger (que segue Husserl apontando para as êxtases do tempo). A concei-
tuação de Husserl e Heidegger esconde algumas aporias do tempo, enquanto Ricoeur explicita o que é, para
ele, realmente a relação com o tempo. 410 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:
Indiana University Press, 2010, pp. 81-82.
97
II.2.3 A fenomenologia da consciência do tempo
A concepção de tempo na história das civilizações, seja ela unívoca ou plurívoca, foi
responsável, em grande parte, pelas leituras de textos religiosos.411 Antes de pensar a exege-
se bíblica, Ricoeur, em diálogo com Eliade, procura investigar a aporia do tempo naquilo
que ele denominou de consciência do tempo. Para ele, o tempo, enquanto um produto final
da cultura científica, é basicamente linear e possui algumas características para sê-lo. Como
uma linha, o tempo é: unidimensional; um contínuo sem fim, que pode ser interrompido a
qualquer momento; pode ser dividido em intervalos; os intervalos podem ser comparados
entre si; as unidades e intervalos temporais podem ser numeradas e enumeradas. Desta for-
ma, o tempo, conforme dado em nossa consciência pelo rigor das considerações científicas
atuais vigentes, pode receber atribuições de duração, contabilidade e qualificação. No caso,
é justamente a aplicação dos números ao tempo que este é compreendido em tal linearidade,
segundo Ricoeur.412
Independente das investigações já feitas sobre o tempo – como as de Stephen Toul-
min e Judith Goodfield, nas quais ambos demonstram a passagem progressiva e moderada
da escala do tempo histórico em direção a um tempo na condição de fenômeno natural –, a
primeira função da fenomenologia da consciência do tempo é “explorar a variedade dos
aspectos qualitativos do tempo, os quais poderiam, por sua vez, pavimentar o caminho para
uma nova abordagem da multiplicidade de padrões temporais inaugurados pela religião
comparada”413. Com isso, a segunda função da fenomenologia da consciência do tempo, ao
livrar a pesquisa da sujeição de conceitos lineares ou universais do tempo, procura fornecer
aparatos hermenêuticos para a interpretação dos padrões religiosos da temporalidade. As
reflexões da dobra da religião localizam e revelam sentidos escondidos acerca do tempo no
estudo das religiões comparadas e demonstram as relações com aspectos qualitativos do
tempo em outras áreas do conhecimento, tanto na fenomenologia como, por exemplo, na
411 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14. 412 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 15. 413 “It is one of the functions of the phenomenology of time-consciousness to explore a variety of qualitative
aspects of time, which could, in turn, pave the way for a fresh approach to the multiplicity of temporal pat-
terns opened up by comparative religion”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomeno-
logy of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and
Prospect, p. 16.
98
literatura – uma vez que esta é um campo inesgotável de exploração sobre a consciência do
tempo.414
O primeiro passo da fenomenologia da consciência do tempo está na distinção da
experiência da atualidade [nowness] e presentidade [presentness], em relação ao conceito
isolado do instante pontual.415 A experiência da atualidade denota um passado que se pode
lembrar e um futuro que se pode esperar. É um presente vivo e intencional.416 Por sua vez, a
ideia do instante remonta à ruptura da continuidade do tempo, diferenciando-se qualitativa-
mente. O instante, para a fenomenologia da consciência do tempo, seria um estado discreto
irredutível da atualidade conferido na relação complexa entre pastness, nowness e futurity
enquanto experiência de ruptura na continuidade linear do tempo.417 Segundo Agostinho, o
agora é constituído pela transição entre memória, atenção e expectativa. No entanto, o agora
é transitório em seu próprio modo, sobretudo se comparado à eternidade – que é entendida
como o eterno agora de Deus. Há, por isso, uma experiência dupla de transição e transação
que leva à uma transitoriedade, cuja concepção se diferenciaria da escala temporal (que se-
ria a extrapolação de um distanciamento da passagem do tempo).
II.2.4 As noções plurais do tempo cíclico e linear aplicadas ao tempo mítico
Ao resgatarmos o trabalho da fenomenologia da consciência do tempo no tempo mí-
tico, Ricoeur alerta que, ao estilo de Mircea Eliade, é necessária a compreensão do tempo
mítico em seu próprio termo, i.e., “não o avaliar contra o seu adversário alegado, nossa con-
cepção moderna de tempo linear”418. Acompanhando os fundamentos em Mythe 3,
414 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16. 415 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16. 416 Cf. o modelo metafórico do mito, In: RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: En-
cyclopaedia universalis, 1971, p. 532. 417 “The complex interlocking relationship between nowness, pastness, and futurity confers a ‘thickness’ to
nowness irreducible to the discrete status of the instant as a mere abstract break in the linear continuity”. RI-
COEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGA-
WA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16. 418 “It (mythical time) has to be understood on its own terms, that is, without measuring it against its alleged
opposite, our modern concept of linear time”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenome-
nology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and
Prospect, p. 19.
99
L’interprétation philosophique419, um importante artigo publicado na Encyclopaedia uni-
versalis, de Paris, em 1971, Ricoeur estabelece que “o mito é considerado aqui como uma
forma de discurso que suscita uma pretensão de significado e de verdade”420. Ricoeur, mes-
mo com raízes calvinistas421, desconstrói os mitos vigentes e aprofunda os estágios da refle-
xão do mito. Há uma narrativa filosófica e há uma narrativa mítica. Ao contrário de uma
opor-se a outra, a narrativa mítica é uma linguagem que ajuda a própria filosofia. Motivado
pelo estudo da simbólica do mal, a narrativa mítica apresenta uma lógica e um mundo, dife-
rente da argumentação filosófica, porém vinculado ao mundo real. A condição do mito é
possível pela temporalidade. A objeção inicial de Ricoeur, neste caso, encontra-se no tempo
cíclico. Para este caminho, Ricoeur sugere, como ponto de partida, dois dos célebres traba-
lhos de Mircea Eliade: Tratado de História das Religiões422 e O Mito do Eterno Retorno423.
Ao analisar as ideias e comportamentos das religiões arcaicas e primitivas, Eliade
percebeu, inspirado no “eterno retorno” de Friedrich Nietzsche, que havia, dentre os textos
analisados, uma “tendência do Espírito ao retorno ao Todo-Um”424. Eliade sustentou que
eram tendências de reintegração e unificação do ser humano para superar os contrários e
realizar a androginia. Segundo ele, uma busca de ser humano perfeito, que supriria todas
contradições e alcançaria a unidade-totalidade em uma origem primordial, narrada em mitos
e vivenciada em ritos. Tão logo Ricoeur observou que a implicação básica da filosofia de
Eliade está na exemplaridade. Citando Eliade, Ricoeur escreveu sobre a primordialidade e
exemplaridade do mito. A especulação mítica, antes da gnose e das construções antignósti-
cas, reportam à “narrativa tradicional sobre acontecimentos que tiveram lugar na origem dos
tempos, destinada a fundar a ação ritual dos homens dos dias de hoje e, de maneira geral, a
419 RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis. XI, Paris, En-
cyclopaedia Universalis France, 1971, 530-537pp. 420 “Le mythe sera envisagé ici comme une forme de discours que élève une prétention au sens et à la vérité”.
RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 530. 421 João Calvino faz uma distinção simples de narrativa e de mito, sendo o mito apenas um modo de narrar o
mundo. 422 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2002, 479p. 423 Cf. ELIADE, Mircea. O mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70. 1969. 174p. A melhor obra para a in-
trodução ao pensamento de Eliade. “Quando me perguntam em que ordem meus livros devem ser lidos, sem-
pre recomendo que se comece pelo presente trabalho (O Mito do Eterno Retorno)”. ELIADE, Mircea. O Mito
do Eterno Retorno, p. 13. 424 ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino, 1989, p. 120.
100
instituir todas as formas de ação e de pensamento através das quais o homem se compreende
a si mesmo no se mundo”425. Segundo Ricoeur,
o mito não se esgota na sua função explicativa, ele não é apenas uma ma-
neira pré-científica para procurar a causa ou uma fabulação de tomada de
valor presciente e exploratória em direção à dimensão da verdade que não
se identifica com a verdade científica; parece que o mito expressa um po-
der de imaginação e representação.426
Na metafísica tradicional, a imaginação é tida como a função de trazer à esfera con-
ceitual coisas ausentes ou não existentes. Para Platão, a imaginação, pela mimesis, está a um
passo da verdade (o ser eterno) por ser uma cópia da aparência.427 Kant, Schelling, Hegel e
Bergson estudaram o poder da imaginação na esfera conceitual e a dicotomia que dela ad-
vém. Ricoeur, entretanto, indo além de Platão e dos demais filósofos, segue a alternativa de
Aristóteles da imaginação enquanto “imitação criativa”, na qual a ficção apenas imita por-
que recria a realidade em um nível maior. Deste modo, Ricoeur vê na imaginação a trans-
cendência da dicotomia na linguagem poética.428 O mito é, enquanto linguagem poética –
ou, mito-poética –, uma outra abordagem que não se limita na lógica empirista do conceito.
Por outro lado, o mito e a atividade criativa da imaginação não se limitam, por exemplo, ao
estruturalismo.429 Em face de o modelo estrutural do mito e de a imaginação, há diferença
notável entre uma filosofia estruturalista e um estudo estrutural de textos determinados.430
Ricoeur não faz filosofia estruturalista – mesmo tendo sido acreditado que se tornara estru-
turalista em A Metáfora Viva, ao colocar em prova o método fenomenológico – pois, para
ele, uma análise estrutural de textos é mais apropriada, afinal “é uma maneira de fazer justi-
ça ao texto e de o levar ao melhor das suas articulações internas, independentemente das
425 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 21. 426 “le mythe s’épuise pas dans sa fonction explicative, qu’il n’est pas seulement une manière pré-scientifique de
chercher les causes et que la fonction fabulatrice elle-même a valeur prémonitoire et exploratoire à l’égard de
quelque dimension de la vérité qui ne s’identifie pas avec la vérité scientifique ; il paraît bien que le mythe
exprime une puissance d’imagination et de représentation dont on n’a encore rien dit tant qu’on s’est borné à
la qualifier de ‘maîtresses d’erreur et de fausseté’” RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophi-
que”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531. 427 KEARNEY, Richard, Poetique du possible: Phenomenologie herméneutique de la figuration. Paris: Beau-
chesne, 1984, p. 14-16. 428 Para um trabalho mais detalhado sobre a imaginação e a religião em Ricoeur, cf. VANHOOZER, Kevin J.
Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology, 1990, p. 9-10. 429 A discussão entre o estruturalismo e o símbolo em Ricoeur não é central nesta tese. Para um maior aprofun-
damento sobre o assunto, cf. RICOEUR, Paul. “Le symbolisme et l’explication structurale”, In: Cahiers in-
ternationaux de Symbolisme, 2, 1964, n° 4, pp. 81-96. 430 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126.
101
intenções do autor e, portanto, da sua subjetividade”431. Há, em partes, aspectos estruturalis-
tas em Ricoeur – uma vez que a autonomia da semântica do texto escapa do autor e significa
por si mesma. No entanto, há distinção entre a filosofia estruturalista e a filosofia de Ri-
coeur. Enquanto ele é familiar da prática estrutural, há conflito, sobretudo, com o estrutura-
lismo de Lévi-Strauss – para este, segundo Ricoeur, havia um “transcendentalismo sem su-
jeito transcendental”432. Sendo o mito uma forma de discurso autônomo e original, Ricoeur
insere a ciência semiótica e o estruturalismo no prolongamento linguístico.433 A diferença,
neste aspecto, segundo Ricoeur, está no final de L’Homme nu434: a despeito da admiração,
Ricoeur aponta para o caráter ontológico do papel da imaginação no mito, enquanto, basi-
camente, “Lévi-Strauss escolheu o domínio de objetos que é afim à sua teoria”435. Eviden-
temente isso não esgota a discussão entre ambos os autores, mesmo porque o modelo estru-
tural foi analisado por Ricoeur na perspectiva da mito-lógica.436 Entretanto, tal suposição
delimita a abordagem pela qual a tese da dobra da religião pretende, seguindo o modelo
ricoeuriano de reflexão: a não eliminação dos aspectos linguísticos da análise dos mitos e a
pergunta pelo sentido das narrativas míticas que denotam exemplaridades na imaginação e
representação.437
A palavra imagem provém do grego φάντασιμα, fantasia, que, conforme Aristóteles,
são as coisas sensíveis, porém sem matéria.438 Trata-se da ficção da própria vida. A raiz de
imagem está no latim imago – cuja relação encontra-se, também, com mimesis, imaginação,
mago e magia. Imagem, em sua origem e seu papel ficcional, segundo Richard Kearney,
resgata a importância da abordagem reflexiva no exercício criativo das possibilidades. “Não
há ação sem imaginação... e de várias maneiras: no plano de projeto, no plano da motivação
e no plano do poder fazer”439. É nesta dinâmica, por exemplo, que Ricoeur interpreta a obra
431 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 432 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 127. 433 Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531. 434 Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques, vol. 4: “L’Homme nu”, Plon: Paris, 1971. 435 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 129. 436 “Pour Claude Lévi-Strauss, le représentant le plus important de cette école en France, la mythologie doit être
considérée comme une ‘mytho-logique’”. Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”,
In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531. 437 RICOEUR, Paul. “Le symbolisme et l’explication structurale”, In: Cahiers internationaux de Symbolisme, 2,
1964, n° 4, p. 96. 438 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, p. 620. 439 “Pas d’action sans imagination... Et cela de plusieurs manières : au plan du projet, au plan de la motivation et
au plan du pouvoir même de faire.” RICOEUR, Paul. “L’imagination dans le discours et dans l’action”, In:
Du texte à l’action. Éditions du Seuil: Paris, 1986, p. 224.
102
A Estrela da Redenção, de Franz Rosenzweig440, ao trabalhar a questão da imagem na cate-
goria de figura. “Uma das chaves nos é dada”, escreve Ricoeur, “pelo maravilhoso encontro,
em francês, entre as duas palavras figure [figura] e visage [rosto], mas que a especulação
judaica já tinha aproximado a partir da expressão bíblica a face de Deus”.441 O trabalho da
reflexão na imagem – ou, como a antropologia religiosa de Rosenzweig, a figura – possibili-
tam, pela imaginação, a união de sentidos divergentes (figura e rosto) em outra figuração.
Assim sendo, a face de Deus, na união de dois aspectos – o que Merleau-Ponty chamaria de
membrure442 – possibilitam a singularidade, mesmo quando a linguagem é múltipla e com-
plexa. O exercício da imaginação, neste caso, abre camadas de linguagem que possibilitam
outras dimensões de um dizer sobre Deus.
A questão da imaginação e linguagem, para Ricoeur, com inspirações heideggeria-
na443, trabalham juntas, de modo a avançar a passagem do possível ao ato.444 Além da espi-
ritualidade judaica (ilustrada com Rosenzweig anteriormente), essa dinâmica desdobra o
papel do mito na exemplaridade. A exemplaridade se dá pela repetição ritualística de um
paradigma. Nas palavras de Eliade: “O homem é obrigado a regressar aos actos do Antepa-
sado, enfrentá-los ou repeti-los, não os esquecer, em suma, seja qual for a vida escolhida
para operar esse regressus ad origenem.”445 O objetivo da exemplaridade é o retorno e a
regeneração total da vida e do ser. Isso pode ser ilustrado pelo ioga: as técnicas do yogui
buscam a reintegração e unificação de diferentes modalidades do ser com o todo. “A reinte-
gração total, isto é o retorno à unidade, constitui para o espírito indiano o objetivo supremo
de toda existência responsável.”446 Tal retorno às origens torna a dinâmica ritualística cícli-
cas. O movimento direto e indireto do modelo de criação, ao ser repetido, denota certa cir-
cularidade – apesar desta circularidade não ser, para Ricoeur, o centro fundamental a respei-
to do tempo mítico.447 O fim não é a meta, mas, para o homo religiosus, a origem é o objeti-
440 ROSENZWEIG, Franz. The Start of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005. 441 Cf. RICOEUR, Paul. Leituras 3 – Nas fronteiras da filosofia, 1996, p. 68. 442 i.e., os membros que compõem um corpo. 443 A influência de Heidegger em Ricoeur é sutil, mas congruente com as etapas da relação entre a imaginação e
o possível na filosofia: Moglichkeit (a possibilidade); Seinkonnen (potencialidade para ser), e Ermoglichen
(tornar possível). Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New
Jersey: Humanities Press Internation, Inc., 1995, p. 36. 444 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur. Presses Universitaires de France: Paris, 2006, p. 43. 445 ELIADE, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. Lisboa: Edições 70. 1957, 199p., p. 47. 446 ELIADE, Mircea. Yoga: Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena. 1996, 398p., p. 112. 447 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
103
vo final de toda cosmogonia. O tempo mítico de Eliade está no retorno. “O essencial é que
há sempre uma concepção do fim e do princípio de um novo período do tempo, baseada na
observação dos ritmos cósmicos”448, escreve Eliade sobre a renovação periódica da vida e o
eterno retorno às origens, que é basicamente a repetição de atos cosmogônicos.
Apenas mais tarde “os hebreus foram os primeiros a descobrir o significado da histó-
ria como epifania de Deus”449 e, com o profetismo, pela primeira vez uma religião passaria
a valorizar a história enquanto evento na linearidade temporal. O judaísmo e o cristianismo
perdem, portanto, a característica do eterno retorno.450 Segundo Eliade, a história é o terror
das sociedades primitivas451: ritualizar-se e inserir-se no tempo é negar a história e suas
consequências.452 As religiões perdem sua dimensão histórica e preferem o estatuto ontoló-
gico, pois a história pode ser abolida e, por conseguinte, renovada, várias vezes, antes do
eschaton final. O mito, portanto, é a experiência pessoal que vai legitimar a renovação e o
retorno às origens. Desta forma, há algumas aporias nas quais Ricoeur oferece algumas ino-
vações além de Eliade. Para Ricoeur, não se deveria expressar ou descrever o modo mais
arcaico da temporalidade mítica em termos filosóficos que já foram esboçados. No caso,
Ricoeur se refere ao modelo platônico da exemplaridade transferido à esfera do sagrado e do
profano, a despeito dos termos platônicos terem sua eficiência e mérito na apreensão do
sentido mítico, uma vez que não há o aspecto da periodicidade em Platão.453 A exemplari-
dade do mito, sustentada por Eliade e desenvolvida por Ricoeur, inclui o paradigma da
atemporalidade [in illo tempore] do mito.
A dimensão cíclica se dá pela periodicidade da repetição do modelo no ritual. Num
gesto teogônico, uma variedade de relações e possibilidades é inaugurada na dinâmica ritual
de periodicidade e exemplaridade. Ricoeur faz lembrar a importância de Georges Dumézil e
seu trabalho sobre o tempo e o mito.454 O ritual da repetição de um modelo pode ter três
formas: continuo, ocasional e periódico. O ritual contínuo (comida, sexo) é diferenciado do
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 19. 448 ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 67. 449 ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 119. 450 Paul Tillich, no livro Era Protestante, diz que a história antiga (grega) é cíclica e circular, e nas tradições
monoteístas, em especial a cristã, a história é linear e teleológica. 451 Cf. ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 162. 452 Cf ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 109. 453 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20. 454 Cf. DUMÉZIL, Georges. “Temps et mythes”, In: Recherches philosophiques 5 (Paris, 1935/1936), pp. 235-
251.
104
ritual ocasional (nascimento, matrimônio, sepultamento), que, por sua vez, encontram a ri-
tuais derivados de ambos os dois mencionados e politicamente escolhidos para comporem o
ritual periódico. É no estudo da instituição das três formas dos rituais que seria possível
aprofundar a variedade das relações entre o tempo sagrado e o tempo profano.455 No entan-
to, esta solução – ou, se preferir, esta taxionomia – é, para Ricoeur, insuficiente, uma vez
que a história comparada das religiões pode descobrir outros modos de temporalidade e ri-
tualidade que não cabem neste modelo. Ricoeur propõe um outro horizonte para a tempora-
lidade. Eliade se esforçou, em seus trabalhos, por abolir o tempo. A crítica da abolição do
tempo não é apenas de Ricoeur, mas também é a crítica de tantos outros teóricos (contra os
quais André Guimarães, em sua tese doutoral O Sagrado e a História456, tentou refutar). Se
Eliade quis anular toda e qualquer concepção de tempo, seja para escapar das aporias da
temporalidade ou por um desejo, antes de qualquer noção de tempo, para desconstruir as
noções já elaboradas, propondo um novo tempo mítico, a originalidade em seu pensamento
reside na regeneração do tempo pela repetição dos atos cosmogônicos arquetípicos.457 A
rigor, há, nesta vertente da fenomenologia religiosa, a abolição do tempo pela imitação do
arquétipo e a repetição dos atos paradigmáticos.458 A imaginação da renovação é uma das
características do tempo para os arcaicos que implicaria na anulação do passado – como
seria, para a os duas atuais, a função da celebração do ano novo que enterra o ano anterior e
inaugura um ano prestigioso.
A abolição do tempo se trata, segundo Ricoeur, de uma solução trágica para o para-
doxo do tempo sagrado e do tempo profano. O próprio Eliade nota que esta solução não é
exclusiva das formas religiosas arcaicas. Há, sobretudo no pensamento Oriental, formas
sofisticadas de meditação, principalmente no budismo, que buscam a anulação do tempo
sem se inserirem na dinâmica da regeneração do tempo pela repetição de atos cosmogôni-
cos. A abolição do tempo na dialética entre o sagrado e o profano constituiria, para Ricoeur,
apenas uma solução dentre outras possíveis. Um dos pontos essenciais para a reflexão do
455 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20. 456 In: GUIMARÃES, André Eduardo. O sagrado e a história: fenômeno religioso e valorização da história à luz
do anti-historicismo de Mircea Eliade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 457 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20. 458 ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno, p. 62.
105
tempo mítico, segundo Ricoeur, está na insistência da plurivocidade das concepções religio-
sas.459 É diante deste dilema que Ricoeur aponta dobras hermenêuticas.
II.2.5 Um ritmo do tempo, um ritmo da dobra do ser
Ricoeur introduz um conceito novo e importante: a estrutura rítmica do tempo.460 No
caso, a humanidade não se encontra mais na esfera da repetição ritual, mas na sucessão de
intervalos fortes e fracos e na ocorrência periódica dos mesmos padrões e das mesmas oca-
siões.461 Há uma dimensão cíclica no ritmo, entretanto, essa contempla a plurivocidade do
que é cíclico na sua decorrência. Trata-se da “unidade rítmica” referida e aplicada por Ri-
coeur na exegese bíblica do tempo da criação.462 A noção do ritmo – que é um ritmo exis-
tencial de reconhecimento e testemunho dos inícios e para os inícios – possui uma caracte-
rística própria na tipologia da temporalidade do sagrado e do profano. Pode haver retornos
no ritmo, ou melhor, recursos no ritmo, sem necessariamente haver uma dinâmica cíclica. A
circularidade, enquanto parte daquilo que Ricoeur chama de recursos dos padrões rítmi-
cos463, não comprometeria o curso aberto do tempo. É suficiente, neste momento, falar em
ocasiões recorrentes, segundo Ricoeur. As ocasiões recorrentes seriam, e.g., “de cada vez
que” e “todo sétimo dia”.464 Neste âmbito, pode-se falar em “tempo certo”, “aproveitar o
momento”, carpe diem. São possibilidades do tempo profano que instauram breves enxertos
na religiosidade que identifica esta percepção do momento com o destino, em algumas per-
cepções religiosas.
459 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 21. 460 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 22. 461 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 22. 462 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 2001, p. 86-87. 463 “recurrence of rhythmic patterns”. Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of
Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect,
p. 22. 464 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 22.
106
Trata-se de uma fase da qual se pode investigar a passagem do “grande tempo”465
para a noção da sucessão das eras ou dos anos. Uma vez que em Eliade o Cristianismo foi o
grande responsável pela linearidade do tempo, distinguindo essencialmente o que seria tem-
po cíclico e tempo linear,466 em Ricoeur “o significado das palavras ciclo, período e repeti-
ção foram enriquecidos consideravelmente. A questão não seria mais aquela da regeneração
do tempo pelo ritual mas um chamado à liberdade espiritual, da libertação da ilusão cósmi-
ca”467. A hipótese original de Ricoeur consiste em: existe na concepção do tempo cíclico
dos mitos uma plurivocidade ampla de modo que implicaria em aspectos “quase lineares”
do tempo.468 O tempo não precisa ser necessariamente linear nem cíclico. Há as duas di-
mensões na temporalidade. O tempo do mito comporta a dinâmica de retorno ao propiciar
uma vivência temporal cíclica. No entanto, esta vivência pode ser também de expectativa,
de um olhar adiante, um ponto no futuro, ou seja, uma narrativa escatológica. Estas são pis-
tas para compreendermos a variedade de estilos narrativos da Bíblia, onde em um mesmo
livro pode-se encontrar textos poéticos, dogmáticos ou até mesmo sapienciais, como tam-
bém o selamento da aliança do ser humano (em sua condição finita) à sabedoria divina (em
sua condição infinita). O resultado desta dinâmica do tempo mítico é justamente a capaci-
dade humana, i.e., o ser humano capaz, uma ontologia do possível, uma realização do ser no
mundo inserido na aporia do tempo.
II.3 O mito enquanto um portador de mundos possíveis
Fez-se notar a importância dos estudos sobre o tempo e a narrativa para a fundamen-
tação da tese. Em especial, o destaque do tempo mítico e a narrativa religiosa, no trabalho
da a fenomenologia da consciência do tempo, insere a questão da temporalidade e da narra-
465 “The great time”. Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consci-
ousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 22. 466 Cf. em O Mito do Eterno Retorno. 467 “As is easy to see, the meaning of the words cycle, period, repetition, have been considerably enriched. The
question is no longer that of the regeneration of time by ritual but a call for an act of spiritual freedom, for a
deliverance from the cosmic illusion”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology
of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Pros-
pect, p. 25. 468 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 25.
107
tividade na religião. Uma das funções da narrativa se encontra na linguagem da fé.469 A tra-
dição religiosa traz consigo uma linguagem que, por sua vez, orienta a mito-poética e indica
um possível para a tarefa do reconhecimento de si. O discurso religioso, a rigor, em lingua-
gem própria, inaugura o testemunho, que é o dizer de alguma coisa do tempo. O testemunho
religioso implica um “caminho do meio” pelo tempo cíclico e linear. A experiência do tem-
po é variada e ela não precisa ser linear ou cíclica, mas, antes, é a experiência temporal que
fornece a identidade do indivíduo. Pela variedade de percepções temporais e a possibilidade
de vivências religiosas, a identidade narrativa se coloca como uma tarefa hermenêutica e
interpretativa da vida e do si, de modo que os possíveis se tornam palpáveis pela orientação
das narrativas que interpelam o cogito.
Partindo das considerações estabelecidas, a capacidade humana é, portanto, uma
questão de ordem hermenêutica. Em tributo a John Nuveen – cujo trabalho fora contempla-
do pela cadeira de teologia filosófica –, Ricoeur faz notar algumas suposições que reforçam
a distinção entre a religião e filosofia pela linguagem, principalmente na questão da consci-
ência do tempo.470 “A primeira argumentação não afirma que a linguagem, enquanto ex-
pressão linguística, é a única dimensão do fenômeno religioso”471. A linguagem é, com mo-
tivações na temporalidade, o primeiro aspecto palpável da identidade religiosa.472 A questão
pela qual Ricoeur se interessa vai além: “Aquilo que pode ultimamente ser a natureza da
aclamada experiência religiosa acontece na linguagem e é articulada em um idioma, e o lu-
gar mais apropriado para interpretá-la em seus próprios termos é investigar em suas expres-
sões linguísticas”.473 O percurso de Ricoeur é semelhante ao de Eliade, no que diz respeito à
importância e autonomia do discurso religioso e a preservação da linguagem da fé. Em sua
dinâmica própria, o mito não é insignificante ou vazio, mas digno de análise pois “alguma
coisa é dita de modo que outros tipos de discursos não poderiam dizer”474 (tais como o dis-
469 Cf. RICOEUR, Paul. “Le langage de la foi” [texte transcrit à partir d'enregistrements et revu par l'auteur], In:
Bulletin du centre protestant d'études, 16, 1964, pp. 17-31. 470 Cf. RICOEUR, Paul. Philosophy and Religious Language. The Journal of Religion. Vol. 54, No. 1, January.
The University of Chicago. 1974, pp. 71-85. 471 “The first contention does not say that language, that linguistic expression, is the only dimension of the religi-
ous phenomenon”. RICOEUR, Paul. Philosophy and Religious Language, p. 71. 472 Aqui a linguagem é entendida, em termos gerais, como discurso. Cf. RICOEUR, Paul. Teoria da Inter-
pretação, pp. 11-13. 473 “Whatever utimately may be the nature of the so-called religious experience, it comes to language, it is articu-
lated in a language, and the most appropriate place to interpret it on tis own terms is to inquire into its lin-
guistic expression”. RICOEUR, Paul. Philosophy and Religious Language, p. 71. 474 “Because something is said that is not said by other kinds of discourse”. RICOEUR, Paul. Philosophy and
108
curso ordinário, científico ou poético). Desta forma, dentre as características da linguagem
religiosa apontada por Ricoeur, o mito não busca ser apenas uma narrativa cheia de sentido,
mas também verdadeira. É na ameaça do tempo onde ocorre a dobra em direção aos mitos e
a narrativa religiosa torna-se real e verdadeira para aquele que a vive. Em um de seus últi-
mos artigos acerca da metodologia do estudo em religião, Ricoeur apresentou o papel da
fenomenologia da consciência do tempo no estudo dos mitos e comentou da importância e
urgência de um trabalho sobre a tipologia do tempo mítico.475 Um leitor atento poderá notar
que Ricoeur se preocupou primeiro, ao pensar a religião, com a questão do símbolo. Entre-
tanto, há em seus trabalhos, sobretudo os artigos e textos em revistas e capítulos de livro,
uma passagem do símbolo para o mito. Esta escolha de Ricoeur (do símbolo para o mito)
não é simples e sua transição é rigorosa. Ele está na tradição, como Eliade, que “encontra no
mito uma forma significativa de discurso”476. Esta força significativa de discurso é forte
justamente por portar uma das questões mais profundas do ser humano: a passagem do tem-
po. O mito, ao portar uma resposta ao tempo fugidio e promover um preenchimento do ser,
é a linguagem da dobra da religião. É devido a esta ambição do mito que as narrativas de
eternidade tornam possíveis as diversas vivências na finitude da temporalidade.
II.3.1 Consciência do tempo e a possibilidade de mundos
Em diálogo constante com Eliade, vale notar, Ricoeur desconfia do acesso à uma vi-
são de totalidade de modo imediato. Para Ricoeur, como também para Merleau-Pony, a per-
cepção é gradual. Enquanto Eliade foi levado a reforçar o polo organizador de seu trabalho,
i.e., a polaridade sagrado e profano, para compensar as suspeitas de polimatia que lhe foram
atribuídas, Ricoeur não simpatiza com tal opção. “Sentia uma grande resistência à oposição
Religious Language, p. 71. 475 “This is why I am tempted to say that this tragic resolution constitutes only one extreme of the range of solu-
tions provided by religions to the relation between sacred and profane time. (A typology of the range of eva-
luationss attached to this relation would be a worthwhile project)”. RICOEUR, Paul. “The History of Reli-
gions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of
Religions: Retrospect and Prospect, p. 21. 476 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive
Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 81.
109
sagrado/profano, ligada ao que eu considera um uso abusivo do simbólico; o que levara a
preferir a noção de ‘metáfora’, estrutura a meu ver mais dominável”477, afirmou.
O diálogo entre Ricoeur e Eliade é rico tanto para a pesquisa em Ciências da Reli-
gião quanto para as descobertas acerca da religião na obra de Ricoeur. Ambos filósofos se
diferenciam, no fundo, em três aspectos. O primeiro é a pertinência da oposição entre sa-
grado e profano. Para Eliade esta oposição é a base do desenvolvimento de sua pesquisa, ao
passo que Ricoeur se atentava mais à oposição santo e pecador. O segundo aspecto é o pa-
pel do texto, da escrita. Escreve Ricoeur: Eliade “considerava que eu sobrevalorizava o pa-
pel da textualidade na produção de sentido; para ele, o nível textual era, se não superficial,
pelo menos um fenómeno de superfície, em comparação com uma profundidade feita de
oralidade e de sentimento”478. E o terceiro aspecto está na hipótese de uma compreensão
imanente do fenômeno religioso. Ricoeur acompanha as recomendações de Eliade: o fenô-
meno religioso deve ser compreendido a partir dos seus próprios termos, por “aquilo que
nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado”479. O caminho para tal em-
preendimento, inaugurado pela hermenêutica da suspeita, encarnado na justaposição confli-
tual a tarefa negativa, está na via longa e a reflexão sobre as narrativas, símbolos, diálogo
com estruturalistas, psicanálise etc. Ricoeur aponta a repercussão de tal empreendimento
como uma introdução ao pensamento hermenêutico-fenomenológico no campo da filosofia
da religião. Para ele, a troca em diferentes áreas é sempre benéfica.
De um lado, uma hermenêutica da fenomenologia da consciência do tempo
pode libertar o nosso pensamento do modelo exclusivo de tempo enquanto
a sucessão pura de instantes naturais representados metaforicamente por
uma linha – uma linha indiferente com os eventos que a configuraram.480
Por conta do ato libertador, a fenomenologia recebe atenção para alguns aspectos
não lineares da temporalidade. A reflexão é aberta para novas concepções de tempo – anun-
ciadas pelos mitos. Por outro lado, a descrição da concepção de tempo gerada pelas religi-
ões que configuraram os paradigmas da cultura Ocidental podem também enriquecer alguns
477 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 57. 478 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 57. 479 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões, 2002, p. 1. 480 “On the one hand, a hereneutical phenomenology of time consciouness may liberate our thought from the
exclusive model of time as a pure succession of neutral instants metaphorically represented by a line—a line
indifferent to the events that punctuate it.” Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenome-
nology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and
Prospect, p. 26.
110
aspectos da temporalidade no caso da própria fenomenologia não ser suficiente. Toda cultu-
ra comporta símbolos e mitos, os quais trazem uma variedade de mundos nas diferentes re-
ligiões. Torna-se, então, decisivo para Ricoeur o estudo comparativo das religiões enquanto
etapa fundamental para uma hermenêutica dos mitos e uma fenomenologia da consciência
do tempo. Pergunta o filósofo: qual seria o valor de uma hermenêutica que não colocaria em
tensão as experiências religiosas e os conflitos das interpretações?481 A temporalidade é a
realidade de toda condição humana. O papel dos mitos é responder à este problema com
narrativas que configuram sentidos que não podem ser apreendidos em outras formas de
discursos.482 Sendo um espaço para a compreensão de si e do mundo, o mito propicia um
tempo especial, diferenciado do cotidiano, mas que não exclui de si os atritos e as supera-
ções que dele advém. O mito, deste modo, é vivido como a mediação construtiva entre tra-
dição e história, de modo que ambos elementos são mantidos em tensão para uma relação
criativa.483 O mito, assim como o símbolo, na tensão criativa da linguagem nos limites da
tradição e da história, abre o ser para o mundo e, consequentemente, promove mundos pos-
síveis na história do indivíduo. Não apenas a esfera do mito, mas a diversidade das narrati-
vas bíblicas, cada qual com uma possibilidade temporal, assumem uma moldura no pensa-
mento que constitui a narrativa e o tempo da narrativa na meditação dos estilos literários.484
Deste modo, a tarefa da dobra da religião, no trabalho da aproximação do tempo helênico e
o tempo bíblico, não esgota a aporia do tempo, mas, antes, possibilita ao ser uma consciên-
cia além do ser – além das fissuras que limitam o ser.
481 “For what would be the use of comparative religion if it did not aim at producing an echo in the midst of our
own experience, and if, at the price of some painful tensions and conflicts, it did not enlarge our own self-
understanding, by contrasting what we understand with what we do not understand of the religions of
others?” Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”.
In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 29. 482 Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 536. 483 “Myth can thus be salvaged as a constructive mediation between tradition and history, maintaining both ele-
ments in a relationship of creative tension.” KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Herme-
neutic Imagination, 1995, p. 88. 484 RICOEUR, Paul. “Biblical Time”, In: Figuring The Sacred: Religion, Narrative, and Imagination, 1995, pp.
179.
111
II.3.2 Consciência de ser e do além do ser
A fenomenologia da consciência do tempo desperta a questão do ser nas aporias. A
dobra da religião promove a intersecção de um trabalho de pensamento antropo-ontológico
e reflexivo. Ao propor a reflexão sobre o ser e o além do ser, a tese da dobra da religião
parte das reflexões ontológicas de Ricoeur sobre o “além da ontologia”485 e leva em consi-
deração a dinâmica do mito e do símbolo – mito e símbolo, neste estágio da pesquisa, assim
como nas considerações de A Simbólica do Mal, são tratados como sinônimos – que projeta
o leitor para um além do ser. A ontologia e o além do ser de Ricoeur não se trata de uma
metafísica idealista, mas uma abertura de horizontes. A começar, segundo ele, pela exaustão
da ontologia em autores como Martin Heidegger, Gabriel Marcel e Merleau-Ponty, os quais
fizeram o máximo para recompor a ontologia além do fim da metafísica.486 O retorno à on-
tologia seria um paradoxo, uma vez que o ser humano não abandona a esfera ontológica. O
retorno mais apropriado, segundo Ricoeur, é o caminho do ser pela linguagem. As vias que
convergem na ontologia direcionam às capacidades de um mundo possível na consciência
que habita o próprio mundo da vida. O além não diz respeito a um valor prescritivo, um
além metafísico, muito menos a designação de alguma região extra-mundana, sobrenatural.
Segundo Gilbert Vincent, “se o além”, em Ricoeur, “fosse um outro domínio da realidade,
seria necessário supor que o nosso mundo é inferior ao mundo, sendo necessário um com-
plemento para ser mundo”487. Ao falar de “outro mundo”, Ricoeur fala do próprio mundo na
pluralidade de suas possibilidades. Escreve Ricoeur sobre isso:
A proposição de mundo que, na linguagem bíblica, chama-se mundo novo,
nova aliança, Reino de Deus, é o “objeto” do texto bíblico desdobrado di-
ante do texto, “objeto” visado diretamente, além da suspensão do discurso
descritivo, didático, informativo.488
485 Cf. RICOEUR, Paul. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia universalis. XII, Paris, Encyclopaedia
Universalis France, 1972, p. 106. 486 Cf. RICOEUR, Paul. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia universalis. XII, Paris, Encyclopaedia
Universalis France, 1972, p. 107. 487 “si l’au-delà étai un autre domaine de réalité, il foudrait supposer que notre monde est moins que le monde,
qu’il a besoin d’un supplément pour être le monde”. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p.
110. 488 “La proposition de monde qui, dans le langage biblique, s’appelle monde nouveau, nouvelle alliance,
Royaume de Dieu, est la “chose” du texte biblique déployée devant le texte, “chose” visée directement, au-
delà de la suspension du discours descriptf, didactique, informatif”. RICOEUR, Paul. “Herméneutique de
l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), 1977, p. 42.
112
O desdobramento e desmembramento ontológico, na tarefa negativa e no distancia-
mento hermenêutico, seguem na possibilidade de outro mundo habitável. Pelo Deus inomi-
nável, nomeia-se, em sentido e reciprocidade, a despeito da finitude humana, os sentidos
mais profundos e misteriosos do ser. Em A Simbólica do Mal, a especulação do mal – a
transição entre a falibilidade e a falta – inicia-se sob o signo da dialética do finito e do infi-
nito.489 O mal, enquanto aporia, impõe um desafio à teologia e à filosofia, afinal ele aparece
na questão mais profunda de Deus: sua onipotência e seu aspecto absolutamente bom. O
mal está na fratura linguística e, enquanto tal, “é um enigma a ser decifrado”490. A inquieta-
ção agostiniana da origem do mal e a resposta moral ao problema não satisfaz Ricoeur. A
razão do mal proposta pela ambivalência do sagrado, encontrada em Rudolf Otto e Mircea
Eliade também não basta. O mal radical em Kant está relacionado ao problema da liberdade
e da inclinação humana às suas apetições.491 Herdeiro de Kant, Ricoeur propõe o caminho
da liberdade e do mal na fratura linguística e ontológica. O mal é um problema a ser abor-
dado no plano do pensamento, sentimento e ação.492 O pecado original remete ao que se
pode denominar de “originalidade do mal”, i.e., a condição do falso saber de um saber. O
mal, para Ricoeur, se inicia na falha linguística ao coração de todo enclausuramento do ser
total.493 Pela filosofia reflexiva é possível alcançar a interioridade e o retorno de si próprio
diante do mal.494 O desdobramento ontológico não pode esquecer-se do problema do mal. O
mal é possível de ser pensado numa esfera simbólica, uma vez que o mal é um falso saber
de um saber. O mal moral (pecado) e o mal sofrido (ontológico) encarnam o drama da exis-
tência e o dilema da teodiceia.495 Em A Simbólica do Mal, no seio da fratura do mal, o termo
em questão é “retomada”, i.e., uma “repetição que já não é religião vivida e que ainda não é
filosofia”496. Segundo Ricoeur, em um artigo na revista Igreja e Teologia, da Faculdade de
Teologia de Paris, publicado no mesmo ano do lançamento do segundo volume da Filosofia
da Vontade, a metáfora do mal no pecado original trata-se de uma confissão do mal humano
489 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, p. 20. 490 RICOEUR, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, SP: Papirus, 1988, p. 8. 491 Cf. KANT, Immanuel. A religião dentro dos limites da simples razão, 2008, p. 368. 492 RICOEUR, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia, 1988, p. 17. 493 RICOEUR, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia, 1988, p. 18. 494 Cf. Du texte à l’action, p. 29; Réflexion faite: autobiographie intellectuelle, p. 15; e Parcour de la reconais-
sance, pp. 137-139. 495 O termo teodiceia foi criado por Leibnitz para designar a justificação da bondade de Deus contra os argumen-
tos tirados da existência do mal no mundo. Cf. o verbete de teodiceia In: LALANDE, André. Vocabulário
técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Matins Fontes, 1999, p. 683. 496 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 20.
113
pela consciência religiosa no qual o pecado original, em sua dimensão simbólica – e espon-
tânea – no termo de um ciclo de experiências vivas, refere-se à uma pretensão de explicação
ou racionalização do mal.497 Os mitos são as narrativas que incorporam as expressões es-
pontâneas e vividas na retomada do si. Ricoeur faz notar que os mitos elevam a dignidade
do símbolo à uma dimensão do pensamento moderno.498 A esfera simbólica do mal é ampli-
ada nas narrativas míticas que se encontram na dialética do finito e do infinito. Estas narra-
tivas descobrem a situação de todo ser humano. Deste modo, o mito é a narrativa na qual o
discurso sobre o ser humano é incorporado pela retomada de um outro caminho possível a
despeito de qualquer adesão religiosa ou escola filosófica.499
Ricoeur evoca o conceito de angústia de Kierkegaard, no qual há “uma dupla perda
do ser humano no infinito sem finitude, ou no finito sem infinitude, na realidade sem possi-
bilidade”500. O sentimento de falta surge no desdobramento ontológico nos aspectos de des-
tino e da liberdade.501 Não se trata de uma falta ética ou moral, mas existencial: “tornar-se
si-mesmo é falhar na concretização da totalidade, que permanece contudo o objetivo, o so-
nho, o horizonte indicado pela Ideia de felicidade”502. Em suma, o desdobramento ontológi-
co é experienciado como falta na medida em que o destino pertence à liberdade e anuncia a
ontologia quebrada na fratura linguística. Um empreendimento semelhante é realizado em
Tempo e Narrativa, cujo caráter temporal da consciência da finitude funda a experiência
humana na narrativa.503 No prefácio à obra Le temps et les philosophies, Ricoeur enfatiza a
experiência do tempo como um momento ontológico da autenticidade da existência na es-
trutura da vida.504 O momento ontológico é o lugar de todas as experiências humanas, prin-
cipalmente as aporias. Assim, a condição do ser, em suas fraturas, é pensada a partir da
queda, da temporalidade e da narrativa no reconhecimento do si, do ser.
497 RICOEUR, Paul. “Le ‘Péché Originel’: étude de signification”, In: Eglise et Théologie. Bulletin trimestriel de
la Faculté de Théologie Protestante de Paris, 23, 1960, décembre, pp. 15. 498 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 22. 499 A despeito da crítica reducionista, a a hermenêutica dos símbolos professa um outro homem, a saber, o sim-
bolismo do espírito forte presente nas personagens míticas que promoveram mudanças e implicaram no pen-
samento e reflexão de quem lê suas histórias. Cf. RICOEUR, Paul. “Le 'Péché Originel': étude de significa-
tion”, In: Eglise et Théologie. Bulletin trimestriel de la Faculté de Théologie Protestante de Paris, 23, 1960,
décembre, pp. 28-29. 500 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 331. 501 Esta ambição se tornará mais visível no último estágio da pesquisa, quando o tema do destino estiver relacio-
nado ao espiral de uma antropologia filosófica na vida de Ricoeur. 502 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 331. 503 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1, 2010, p. 9. 504 Cf RICOEUR, Paul. “Preface”, In: Le temps et les philosophies, 1978, p. 28.
114
Seguindo os esclarecimentos feitos, a implicação do ser e do além do ser toma a crí-
tica e a hermenêutica no próprio método da fenomenologia da consciência do tempo. Mes-
mo sendo o mito o lugar dos eventos do início dos tempos, com o propósito de narrar fun-
damentos para os eventos e rituais atuais505, toda aproximação ao mito deve ser feita criti-
camente. A hermenêutica da suspeita não é dispensada na dobra da religião e faz-se neces-
sária para a boa reflexão do ser nas intersecções da vida. A crítica ao mito, conforme Ri-
coeur enfatizou numa entrevista à Richard Kearney506, dá-se pelo problema da possibilidade
da perversão do mito.
Isso significa que não podemos nos aproximar do mito no nível da inge-
nuidade. Devemos observá-lo por uma perspectiva crítica. Apenas pela re-
apropriação seletiva que podemos ter consciência do mito. Não somos mais
seres primitivos, vivendo na esfera imediata do mito. O mito, para nós, é
sempre mediado e opaco. Pois o mito expressa a si mesmo através de divi-
sões particulares de funções de poder, várias de suas formas recorrentes
tornaram-se desviantes e perigosas, e.g., o mito do poder absoluto (fascis-
mo) e o mito do bode expiatório (antissemitismo e racismo). Não se justifi-
ca mais falar em “mito em geral”. Nós devemos avaliar criticamente o con-
teúdo de cada mito e as intenções básicas que os animam. O ser humano
moderno não pode se livrar dos mitos nem descartar seu valor. O mito
sempre estará conosco, mas devemos sempre abordá-lo criticamente.507
Um agir bom e justo avalia o conteúdo mítico criticamente. Na faculdade do reco-
nhecimento de si, as faculdades das ações não significam a priori um agir bom. Ao refletir
sobre a autonomia pessoal do ser humano que age, Ricoeur constata que “o mal é o ato de
alguém e um produto da liberdade”508. Entre a “instância crítica” e a “fundação do mito”, há
505 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013, p. 21. 506 Cf. RICOEUR, Paul. “Myth as the Bearer of Possible Worlds”, In: KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur:
The Owl of Minerva, 2004, pp. 117-125. 507 “This means that we can no longer approach myth at the level of naiveté. We must rather always view it from
a critical perspective. It is only by means of a selective reappropriation that we can become aware of myth.
We are no longer primitive beings, living at the immediate level of myth. Myth for us is always mediated and
opaque. This is so not only because it expresses itself primarily through a particular apportioning of power
functions, as mentioned earlier, but also because several of its recurrent forms have become deviant and dan-
gerous, for example, the myth of absolute power (fascism) and the myth of the sacrificial scapegoat (anti-
Semitism and racism). We are no longer justified in speaking of ‘myth in general’. We must critically assess
the content of each myth and the basic intentions which animate it. Modern man can neither get rid of myth
nor take it at is face value. Myth will always be with us, but we must always approach it critically”. RI-
COEUR, Paul. “Myth as the Bearer of Possible Worlds”, In: KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The
Owl of Minerva, 2004, p. 120. 508 “Le mal est le fait d’un personne et un produit de la liberté”. RICOEUR, Paul, apud VALLÉE, Marc-Antoine.
“Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez La-
chelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 152.
115
uma conexão essencial que pode ser perdida pela prática do mal. Há inúmeros mitos genuí-
nos que podem ser reinterpretados em torno de libertação – tanto pessoal como coletiva.509
A análise da simbólica do mal é necessária para distinguir, pela fenomenologia da confis-
são, repetições que promovem boas políticas de memórias em suas simbolizações ou repeti-
ções que promovem a alienação do ser nas políticas de memórias difundidas na cultura. É
nesta dinâmica – a integração da repetição em simpatia e imaginação na reflexão – que a
máxima “o símbolo dá o que pensar” se faz urgente.510 Símbolo, ao lado da esfera do mito, é
tanto mediação como compreensão de mundo – principalmente um outro mundo possível. O
ser humano está encerrado em um mundo. O conceito de mundo é essencialmente mítico.
Tomado de Gabriel Marcel a reflexão o mistério na religião, Ricoeur pergunta: quanto po-
demos conhecer da vida? Quanto fica em mistério? O mistério do ser é um dos temas favori-
tos de Marcel.511 A dinâmica mistério, encarnação e reconciliação, de Marcel, é possível
pela raiz da palavra mistério. Do sânscrito my-, surgiu mythos, mysterium e mundus. Mito,
mistério e mundo compactuam de um fundo comum. No nível da ingenuidade referem-se à
uma compreensão da vida e um modo de ser no mundo.
Compreender os mitos e símbolos mais antigos é, também, compreender os mitos e
os símbolos atuais e, principalmente, o mundo. Na perspectiva da ingenuidade, o ser é in-
termediário na condição humana: está entre os anjos e os animais; está, em suma, para si
mesmo, dentro de si próprio.512 Deste modo, o mito levanta a questão da compreensão em
todas as esferas da vida.513 Ricoeur pensa, à vista disso, em linguagem mítico-simbólica e
mito-poética enquanto uma linguagem de símbolos multivalentes que fornece ao mito di-
mensões poéticas e psicológicas. O fornecimento reside na fundação para a reflexão, ao in-
vés de ser propriamente uma reflexão ontológica. Encontra-se na esfera da pré-compreensão
da fenomenologia no primeiro exercício filosófico que descola o ser. Escreveu Ricoeur:
“incapaz de falar sobre isso (a alma) na linguagem científica, isto é, no discurso sobre o Ser
imutável, o filósofo expressa-o na linguagem alegórica, e, então, na linguagem do mito”.514
509 RICOEUR, Paul. “Myth as the Bearer of Possible Worlds”, In: VALDÉS, Mario J. A Ricoeur Reader: Reflec-
tion and Imagination. Toronto: University of Toronto Press, 1991, p. 127. 510 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 36. 511 DORNISCH, Loretta. Faith and Philosophy in the Writings of Paul Ricoeur. The Edwin Mellen Press: New
York, 1990, p. 12. 512 Cf. RICOEUR, Paul. Fallible Man. Chicago: Henry Regnery Co., 1965. p. 6. 513 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive
Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 22. 514 “Unable to speak of it (the soul) in the language of Science, that is, in the discourse on immutable Being, the
116
Portanto, a característica ontológica do ser intermediado por mitos e símbolos consiste no
próprio ato de existir mediado pelas modalidades e níveis de realidade que estão no si e fora
do si.515
II.3.3 Considerações intermediárias
O mundo mediado pelo mito e o símbolo não se limitam em ciências exatas e lógi-
cas, mas se amplia, enquanto um fenômeno concreto, na realidade religiosa, artística, psico-
lógica e poética. Segundo David Rasmussen, ao trabalhar com Ricoeur como o objeto de
sua obra, é possível haver uma correlação positiva entre a linguagem mítico-simbólica e os
modos de discursos atuais, sobretudo o científico. É possível, e portanto implícito na filoso-
fia de Ricoeur, um diálogo e uma co-existência. “Esta correlação afirmaria a linguagem mí-
tico-poética em sua forma primária e em sua forma secundária (interpretada hermeneutica-
mente) associada à antropologia filosófica, um entendimento do ser humano que requere tal
linguagem”516. Aqui falaria o homo symbolicus e a forma de ser pelo símbolo antes da lin-
guagem racional e lógica. David Rasmussen menciona Ernst Cassirer (onde o símbolo é
apenas uma forma de discurso entre as outras) e Wittgenstein (onde a linguagem é formula-
da para expressar a quinta-essência, ou, se preferirmos, a mais perfeita racionalidade huma-
na). A partir disso Rasmussen pergunta: porque um filósofo deveria considerar a linguagem
mítico-simbólica em seu trabalho? O estudo da linguagem mítico-simbólica teria algo a con-
tribuir à filosofia? A resposta à essas questões encontra-se no pensamento de Ricoeur.
“Como o símbolo, o pensamento de Ricoeur é multivalente”517. Ao mesmo tempo é centra-
do e rigoroso metodologicamente com o tema que lhe é trabalhado. Diferente de Mircea
Eliade, cujo pensamento centraliza-se no homo religiosus, ou de Paul Tillich, cujo pensa-
mento estabelece a filosofia e a teologia nos mesmos domínios lineares do pensamento, co-
philosopher expresses it in the language of allegory, and then in the language of myth.” Cf. RICOEUR, Paul.
Fallible Man. Chicago: Henry Regnery Co., 1965. p. 13. 515 “Man’s ontological characteristic of being-intermediate consists precisely in that his act of existing is the very
act of bringing about mediations between all the modalities and all levels of reality within him and outside of
him.” Cf. RICOEUR, Paul. Fallible Man. Chicago: Henry Regnery Co., 1965. p. 6. 516 RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive In-
terpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 2. 517 “Like the symbol, Ricoeur’s thought is multivalent”. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language
and Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 3.
117
mo também de Rudolf Bultmann, cujo pensamento enfatizou a conversão individual diante
de todas as narrativas518, Ricoeur situa o universo dos mitos na esfera da vida individual e
coletiva. Mais ainda, “o universo dos mitos permanece um universo quebrado”519. A ontolo-
gia quebrada volta em questão no fundo do mito e do símbolo religioso. Pelo universo que-
brado do mito, o pensamento de Ricoeur levanta a questão do sentido de um novo modo.520
Ricoeur sugere uma nova direção para a filosofia apontando para uma hermenêutica feno-
menológica. Este percurso é sugerido a partir do tema central dos trabalhos de Ricoeur: a
questão do ser. Acompanhando Rasmussen, a obra de Ricoeur se concentra em responder
sistematicamente os problemas do entendimento da natureza humana.521 Portanto, o projeto
de Ricoeur, a respeito da linguagem mítico-simbólica e mito-poética, em seu estágio inicial,
na ingenuidade, é semelhante ao de Eliade: uma indagação de que há algo no mito e no sím-
bolo cujo sentido e significado a sociedade contemporânea esqueceu. Para o exercício refle-
xivo desta questão, Ricoeur passou da fenomenologia eidética, de Husserl, à fenomenologia
hermenêutica; mais especificamente, “ele procurou se mover da fenomenologia eidética da
categoria husserliana (a forma clássica da fenomenologia) à fenomenologia da linguagem
incorporada ao método hermenêutico”522. Segundo Bultmann, a quem Ricoeur redigiu arti-
gos sobre sua obra, a correlação da linguagem religiosa e da antropologia filosófica é nega-
tiva. Ricoeur, contrariando Bultmann, sugere um caminho produtivo para essa correlação e
auxilia no enxerto hermenêutico. Com isso, mantem-se a aporia no horizonte e promove-se
dobraduras na ontologia quebrada.
O exercício hermenêutico da suspeita é o primeiro passo para uma compreensão de
mundo apropriada, mesmo se este mundo for considerado sagrado. Explicar mais é compre-
ender melhor, e compreender melhor é viver melhor. Devido o teor antropológico do traba-
lho de Ricoeur, prefere-se falar, a partir deste momento, em mito-poética para a referência à
narrativa religiosa que funda mundos e através da identidade narrativa oriunda da tempora-
518 RICOEUR, Paul apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvriè-
res: Paris, 2008, p. 43. 519 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 363. 520 RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive In-
terpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 3. 521 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive
Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 3. 522 “Ricoeur is a rigorous methodologist. A foremost interpreter of Husserl, he has attempted to move beyond an
eidetic phenomenology of a Husserlian type (the classical form of phenomenology) to a phenomenology of
language incorporating a hermeneutic method”. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and
Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 4.
118
lidade torna o ser humano capaz. E dentre as narrativas mais primordiais, as mito-poéticas
específicas de Ricoeur, encontram-se as reflexões sobre a leitura bíblica e os desdobramen-
tos que delas advém.
CAPÍTULO III
ENTRELAÇAMENTOS DA DOBRA:
ORIGEM DO POSSÍVEL E POÉTICA DA ESPERANÇA
“O silêncio é a linguagem do sagrado.
Todas as outras linguagens são ecos.”
Jean Yves Leloup
Até aqui, a tese reforçou o aspecto singular do pensamento de Paul Ricoeur deixar-se
guiar por desvios em meio as aporias. Alguns desses desvios são assumidos, por seus leito-
res, como turnos. Pode-se afirmar que em Ricoeur há turnos filosóficos os quais se corres-
pondem aos interesses de cada fase de seu trabalho. Em termos de conteúdos, a distinção
entre teologia e filosofia guarda um dos primeiros turnos no pensamento de Ricoeur. No
prefácio de O Si-mesmo Como Outro o filósofo suspende a nomeação de Deus e se atém
num discurso estritamente agnóstico.523 Entretanto, em outro desvio, o teônomio divino é o
foco de atenção da reflexão. Em termos metodológicos, o momento da fenomenologia, se-
523 “A questão de Deus, na qualidade de questão filosófica, se mantém em suspenso, de um modo que pode ser
considerado agnóstico”. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro, 2014, p. XL.
120
guido pelo da hermenêutica e alcançando o da poética, representa o aspecto do turno nos
desvios. É difícil averiguar quando ocorre a separação (se houver alguma exclusiva) entre o
turno da fenomenologia ou o turno da poética. Tampouco pensa-se na negação de um em
função do outro. Preferimos os momentos de foco e de interesse (desvios). Os desvios são
integradores e complementares. A via longa é um desvio: em vez de dizer algo diretamente,
a tarefa negativa e a dupla adesão não escondem o véu da hermenêutica ricoeuriana, que
assume os desvios no ato filosófico. “Compreender tudo, até mesmo a religião”524, observa
Lachelier, com quem Ricoeur concorda e completa: “a filosofia, com efeito, não pode parar
a meio do caminho; no começo, ela fez o juramento da coerência; deve manter até ao fim a
sua promessa”525. Constantemente na fronteira da filosofia, desde os trabalhos A Simbólica
do Mal (1960), Pensando Biblicamente (1986) e Hermenêutica Bíblica (2000), décadas de
trabalho sobre o discurso bíblico, mítico e simbólico, a tese da dobra da religião resgata o
lugar da religião nos desvios da tarefa filosófica. A despeito da soberania da hermenêutica
na obra ricoeuriana, há outros turnos, periferias e encontros de ideias que, por si, compor-
tam também as mesmas preocupações do autor: a ontologia quebrada, o reconhecimento do
si, a capacidade para a alteridade. A dinâmica da não exclusão de um pelo outro denotam
intersecções e preocupações que acompanham a “possibilidade de ser” (segundo Ricoeur,
em “The Power of the Possible”, o pouvoir-être ou, ainda, para Kearney, o peut-être), inau-
gurado pela leitura religiosa de mundo e motivado pela tarefa negativa. Trata-se, a rigor, de
uma possibilidade escatológica. Em suma, o desvio é a correlação da realidade com outros
modos de realidade para alcançar a ontologia quebrada. A dobra é uma superação na tarefa
do reconhecimento de si diante dos desafios colocados pelas questões aporéticas.
O eixo da ontologia quebrada reside na articulação crítica entre a ontologia grega de
Aristóteles e a teologia bíblica do evento da revelação de Deus no Monte Sinai. As fontes
não-filosóficas de pensamento contribuem para a reflexão assim como a filosofia e as ciên-
cias naturais.526 Diferente da literatura grega, em estilo homérico, cujo imaginário literário
comporta estilos acabados, uniformemente iluminados, visualizados e devidamente expres-
sados, a narrativa bíblica guarda apenas o que interessa para a realização de sua ação. Há
524 “Tout comprendre, même la religion”, expressão utilizada por Ricoeur emprestada da tarefa filosófica de
Jules Lachelier. Cf. BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A
l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique. Editions Labor et Fides: Genève, 2011, p. 8. 525 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 365-366. 526 Cf. BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des
herméneutiques philosophique et biblique, 2011, p. 9.
121
saliência nos pensamentos e sentimentos decisivos e culminantes para a ação, enquanto o
restante encontra-se em segundo plano.527 A narração, para Ricoeur, já é uma ação. Trata-se
do caso da fé de Abraão, cuja ato de crença reporta à uma modalidade de ser propagada pela
narrativa – de tradição oral, subseguindo por escrita. Interessa, ao texto bíblico, o ato e a
reação de Abraão diante de seu chamado – diante da ontologia quebrada. O chamado é res-
pondido em oração. Em sua reflexão sobre a invocação, em Trabalho e Palavra528, Ricoeur
faz notar que a prece, enquanto ato de discurso e prática em resposta à um chamado, ao ser
interpretada não poderia ser isolada de seu contexto, isolada daquilo que Gilbert Vincent
chama de “economia simbólica complexa”; ou ainda, aquilo pelo qual o próprio Ricoeur
denominou por valores fundamentais nas grandes arquiteturas da fala e da escrita, moldando
as memórias dos eventos, das palavras, das pessoas.529 Ricoeur não se refere apenas ao Sitz
im Leben, mas também às dimensões existenciais de finitude, quebra e separação do indiví-
duo em relação ao sagrado interpelado. A ação pede por palavra e a palavra pede por ação.
Entretanto, o restante que poderia compor o cenário da narrativa, em face à ação, es-
conde-se na sombra da incompletude da linguagem religiosa.530 A falta de expressividade e
precisão nas narrativas do texto bíblico é característica de textos que pretendem algum sen-
tido além deles próprios. Textos assim, conforme notou Erich Auerbach, “precisam de in-
terpretação”531. A Bíblia é para Ricoeur uma fonte inesgotável de interpretação e interação
com a vida. A tese da dobra da religião iniciou-se na aporia que persistiu por toda a vida de
Ricoeur: a relação entre teologia e filosofia. Nesse diálogo, surge uma intersecção: a nome-
ação de Deus. Sendo a dobra dos inícios e dos princípios, motivado pelo estudo da tempora-
lidade, da finitude e da alteridade, o ato de nomear Deus implica em outros desdobramentos,
tais como o lugar da linguagem e o temporalidade, em esfera de interesse autônomo. En-
quanto narrativa do religioso, a Bíblia, na tradição cristã ricoeuriana, promove a reciproci-
dade no pensamento do autor, tanto como objeto de estudo quanto inspiração de fé.
527 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Editora Perspectiva, São
Paulo, 2001, p. 9. 528 Vai de encontro a tradição medieval do ora et labora. RICOEUR, Paul. Histoire et vérité. Paris: Le Seuil,
1955, p. 221. 529 “une des grandes architectures de parole et d'écriture que ont structuré la mémoire d'événements, de paroles,
de personnalités, également dotés d'une valeur fondatrice”. RICOEUR, Paul, apud VINCENT, Gilbert. La re-
ligion de Ricoeur, 2008, p. 51. 530 Para outras informações sobre a incompletude da linguagem religiosa, cf. VINCENT, Gilbert. La religion de
Ricoeur, 2008, p. 54-69. 531 Dentre as interpretações, encontra-se o mais belo elogio à fé de Abraão em Kierkegaard. Cf. AUERBACH,
Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, 2001, p. 9.
122
Convém retomar alguns aspectos não explorados da relação entre a filosofia e a teo-
logia para seguir com a dobra da religião após a análise da situação hermenêutica e o papel
do tempo na narrativa. Segundo Ricoeur,
Eu me comprometo com a autonomia da filosofia e penso que não tomei
emprestado em meus trabalhos argumentos do domínio dos escritos bíbli-
cos judaicos ou cristão. Se alguém utilizar esses escritos, não se trataria de
argumentos de autoridade. Eu situo no mesmo plano a tragédia grega ou a
história de Israel, a especulação metafísica neoplatônica ou a interpretação
patrística dos escritos bíblicos. Consequentemente, não há um lugar privi-
legiado para a religião em geral, ou para a tradição judaico-cristã, ou para a
argumentação filosófica. Porém, se alguém disser, “Mas se você não fosse
cristão, se você não se reconhecesse no movimento da literatura bíblica,
não teria se interessado pelo problema do mal ou, talvez, no aspecto poéti-
co no sentido mais amplo, ou o aspecto criativo do pensamento humano”.
Bem, à essa objeção, eu faço todas as concessões e digo que ninguém co-
nhece a origem da ordem das próprias ideias filosóficas. Nós todos somos
“visitados” – se assim se pode dizer – por projetos, por pensamentos, de
modo que ninguém pode explicar completamente a motivação última de
seus interesses especulativos. Neste ponto, eu não tenho pretensões. Eu sou
como qualquer outra pessoa. Ninguém é o dono da origem de seus pensa-
mentos.532
O cristianismo oferece pensamento, mas não argumentação. Isto é, no movimento da
dobra, o cristianismo torna-se um espaço de reflexão ao invés de se apoderar de dogmas e
doutrinas inquestionáveis. Nesta direção, Ricoeur defende-se de acusações de cripto-
teologia533 uma vez que a teologia, em relação com a filosofia, oferece sentido, oferece tema
e oferece questão no lugar de argumentos de autoridade ou metafísico. Ricoeur não mistura
os gêneros por precaução metodológica e, principalmente, porque prefere afirmar uma refe-
532 “I am very committed to the autonomy of philosophy and I think that in none of my works do I use any
arguments borrowed from the domain of Jewish or Christian biblical writings. And, if one does not use
these writings, it is not an argument from authority. I mean that, for example, I put on the same plane
Greek tragedy or the histories of Israel, neo-Platonic metaphysical speculations or the patristic interpreta-
tions of the biblical writing. As a consequence, there is no privileged place for religion in general, or for
the Judeo-Christian tradition, in philosophical argumentation. But, if someone says, “Yes, but if you we-
ren’t Christian, if you did not recognize yourself as belonging to the movement of biblical literature, you
would no have been interested in the problem of evil or, perhaps, in the poetic aspect in the broadest sense,
or the creative aspect of human thought”. Well, to this objection, I make all the concessions one wants by
saying that no one knows where the ideas which organize oneself philosophically come from. We are all
“visited” – if I can say so – by projects, by thoughts, and no one can entirely account for the ultimate mo-
tivation of his speculative interests. And, on this point, I am not found wanting; I am not any worse off
than anyone else. No one is the master of the origin of his thoughts .” Cf. RICOEUR, Paul In: REAGAN,
Charles E. Paul Ricoeur: His Life and His Work. Chicago & London: The University of Chicago Press,
1996, p. 125. 533 Cf. RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990, p. 37.
123
rência dupla.534 O respeito e a autonomia que o filósofo oferece a cada uma das áreas do
conhecimento é resultado da prática hermenêutica do distanciamento e da suspeita, elucida-
do no capítulo anterior. Conforme sugere Emmanuelle Lévy535 como também Christophe
Pisteur536, Ricoeur prossegue além da hermenêutica francesa que o precedeu para alcançar
as contribuições da autonomia de cada narrativa para que a contribuição de cada uma seja
ressaltada. A originalidade do empreendimento filosófico de Ricoeur na religião reside na
ênfase de um pensamento bíblico genuíno e autônomo. Em um de seus primorosos estudos
acerca a religião, com destaque ao judaísmo e cristianismo, Pensando Biblicamente537 –
elaboração em parceria do amigo André La Cocque –, Ricoeur se propôs a desenvolver as
possibilidades conceituais de diversos temas bíblicos. “O meu pressuposto neste livro é que
há um pensamento nos escritos bíblicos”.538 Isso significa, de acordo com a hermenêutica
trabalhada na referida obra, que o pensamento não foi esgotado exclusivamente pela filoso-
fia grega. Há pensamento na diversidade dos gêneros literários e constituições dos textos
bíblicos. A ideia de que a Bíblia tem um pensamento é uma consequência do que se tornou
num dos motos de Ricoeur: o símbolo dá o que pensar. A hermenêutica do símbolo não se
trata apenas de interpretar o símbolo, mas, para Ricoeur, não se trata apenas disso. O símbo-
lo, motivado por Kant539, levanta questões e propõe questões para a própria filosofia. O
símbolo dá o que pensar é uma palavra que não é só para a hermenêutica do mito e dos sím-
bolos na teologia. A questão do símbolo é proposta para o ser humano. Neste caso, também
ao filósofo. A filosofia não é suficiente somente com seus argumentos: há outras questões
que surgem pela reflexão do símbolo. Além do símbolo, o estudo da Bíblia, na perspectiva
da hermenêutica da existência, possibilita o aprofundamento de diversos aspectos resgata-
dos pela tarefa negativa. Da hermenêutica bíblica, Ricoeur espera que ela permita ao filóso-
fo e ao religioso compreender melhor o sentido de palavras como fé, crença, religião e sal-
vação540 – frutos da aporia e da tarefa negativa. Portanto, o pensamento bíblico é um espaço
534 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 221. 535 LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue de
Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p. 361. 536 PISTEUR, Christopher. “La raison et ses confins: Ricoeur el la religion dans le limites de la simple raison”,
In: BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des
herméneutiques philosophique et biblique., p. 15-16. 537 Cf. RICOEUR, Paul, LA COQUE, André. Pensando Biblicamente. Bauru, SP: EDUSC, 2001. 538 RICOEUR, Paul. “Ricoeur Comments after Jeanrond’s ‘Hermeneutics and Revelation’, In: JUNKER-
KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge to Think God, p. 58. 539 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 132-134. 540 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 39.
124
inaugurado pela dobra da religião para a leitura, interpretação e vivência da esfera do sagra-
do.
III.1 Hermenêutica e pensamento bíblico
A tese da dobra da religião encontra na Bíblia a narrativa promissora de entrelaça-
mentos da vivência religiosa. Não apenas no que se refere à vivência religiosa, mas, no tra-
balho da aporia da temporalidade, Ricoeur declara, na conclusão de Tempo e Narrativa: “o
que chamou a minha atenção para esses limites externos da narrativa foi a exegese bíbli-
ca”541. A Bíblia hebraica, nas observações de Ricoeur, é uma fonte original sobre a relação
do tempo com a eternidade. É devido a amplitude do maciço narrativo bíblico que Ricoeur
afirma: “existe efectivamente um pensamento bíblico”542. O trabalho de pensamento bíblico
está ao lado da reflexão filosófica. Ricoeur fala de “hermenêutica filosófica” e “hermenêuti-
ca bíblica”.543 Não de tratam de dois mundos separados, como se Jerusalém estivesse frente
a Atenas. A rigor, há mais compatibilidade do que contrariedade.
Insisto no fato de que temos o direito de falar de um pensamento bíblico,
na origem do imenso labor teológico que se desenvolve através das escritu-
ras do antigo Israel, e tal por falta de uma linguagem especulativa, pois o
dito pensamento bíblico só dispõe, para se exprimir, dos gêneros narrativo,
legislativo, profético, hímnico e sapiencial. No entanto, um ‘dizer Deus’
variado abre-se, pelo seu giro polêmico, à crítica interna e externa.544
Em A Simbólica do Mal, Ricoeur busca comparar as diferentes perspectivas do mal
anexadas aos diferentes tipos de narrativas – trágico, órfico, bíblico.545 Um dos discursos
principais, na primeira aporia da dobra, refere-se ao discurso profético. Proferido “em nome
de...”, ao invés de pretender importância superior diante dos outros, “trata-se de questões
sobre o conteúdo do conceito de revelação”546. A relação entre revelação e inspiração ins-
541 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 460. 542 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236. 543 RICOEUR, Paul. Do Texto à Acção: Ensaios de Hermenêutica II. RÉS-Editora, Ltda: Porto-Portugal, 1989,
pp. 125-138. 544 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 225. 545 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 68. 546 “Le discours prophétique, discrous prononcé “au nom de...”, ce n’est pas parce qu’il accorderait à ce discours
une importance supérieure à celle des autres. La raison de ce choix est de nature “critique” : il s'agit de s'in-
terroger sur la teneur de la notion de révélation.” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 92.
125
taura o discurso profético. Em “Nomear Deus”, Ricoeur critica os exageros da leitura profé-
tica, na qual a “teologia da Palavra”, expressa no termo “palavra de Deus”, deixa-se enganar
pela singularidade da abordagem. Segundo Gilbert Vincent, Ricoeur propõe a pluralidade, a
polifonia e a polissemia do corpo Bíblico.547 Tal proposta, encontrada no livro Hermenêuti-
ca Bíblica, sugere que a interpretação e a polissemia do texto bíblico caminham juntas no
âmbito da interação dos diferentes gêneros literários. Do profético, Ricoeur parte ao discur-
so narrativo, o qual volta-se para algumas estruturas de interpretação da experiência humana
devido a capacidade deste compreender, sob o conceito de revelação, um sentido tanto reli-
gioso como não-religioso da própria experiência humana.548 Trata-se, a rigor, de uma com-
preensão que pode entrar em harmonia com o apelo não vinculativo da revelação bíblica e
permitir a abordagem hermenêutica de cunho filosófica com viés religioso.
É inerente à dobra da religião a crítica interna e externa no religioso e no filosófico,
nos diversos gêneros literários, perfazendo-os em conjunto na reflexão do teônimo. Enquan-
to leitor da Bíblia, o exercício de Ricoeur, no desafio da diversidade dos gêneros literários,
refere-se à uma leitura compreensiva da relação interna ao texto e externa (no caso, da sua
relação com outras abordagens de pensamento). A filosofia, neste caso, ao lado da religião,
torna-se um discurso segundo: “a filosofia procede de uma elucidação segunda de uma ne-
bulosa de sentidos que incluem um caráter pré-filosófico”549. É da característica da dobra a
reflexão a partir da distinção entre a crítica filosófica e o discurso simbólico. Tal distinção
insere-se no contexto da “nebulosa de sentidos” ao invés de portar contradições aparentes.
A tarefa da hermenêutica bíblica, no contexto da nebulosa de sentidos e na tarefa da com-
preensão de temas como a fé, a crença e a salvação, tem um fim comum: como conhecer a si
mesmo? A via longa de Ricoeur, contrastada com a via curta de Heidegger, pressupõe que o
indivíduo só pode chegar a si mesmo através das próprias obras, mediante a interpretação
dos sinais de sua existência, pela reflexão crítica sobre seus atos e expressões. A linguagem
dá acesso ao mundo e a interpretação dos símbolos, signos e expressões culturais torna-se
547 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 93. 548 “Se tourner vers quelques structures d’interprétation de l’expérience humaine, pour y discener les traits à
travers lesquels quelque chose, depuis toujours, se laisse comprendre sous l idée de révélation en un sens non
religieux du terme. C’est cette compréhension qui peut entrer en consonance avec l’appel non contraignant de
la révélation biblique.” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 94-95. 549 “La philosophie procède par élucidation second d’une nébuleuse de sens que comporte d’abord un caractère
préphilosophique”. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté II: Finitude et culpabilité, Pais: Aubier, 1998,
p. 24.
126
fundamental para o conhecimento de si e do outro. A via longa, enquanto método herme-
nêutico, possibilita a reflexão crítica da narração. Este breve itinerário implica numa dimen-
são existencial: a vida está aberta, as histórias se interpolam e constituem o “tempo da vi-
da”. Ricoeur, portanto, motivado pela complexidade do seu empreendimento, explora uma
terceira via: “a vida de uma interpretação criadora de sentido, fiel ao impulso, à doação de
sentido do símbolo e, simultaneamente, fiel ao juramento de compreensão do filósofo”550. A
terceira via, cuja dobra aponta para o pensamento bíblico, inaugura o aforismo proposto na
obra A Simbólica do Mal: “o símbolo dá que pensar”.551
A tese da dobra da religião inclui a reflexão do símbolo que se relaciona diretamente
ao pensamento bíblico. Motivado por Kant, mais uma vez, o pensamento bíblico, segundo
Ricoeur, é um modo não-filosófico552 de pensar que entra na filosofia, “que transmitem os
profetas, os coletores das tradições mosaicas e das outras tradições, e que se manifesta no
‘dito’ dos sábios e desse Oriente do qual os hebreus fazem parte”553. Ricoeur trabalha a Bí-
blia enquanto um espaço pensável.554 O pensamento se situa numa área simbólica e cultural.
O símbolo, ao dar o que pensar, possibilita, para Ricoeur, registrado na conclusão de A Sim-
bólica do Mal, que “uma filosofia instruída pelos mitos surge num certo momento da refle-
xão, e, para lá da reflexão filosófica, deseja dar respostas a uma certa situação da cultura
moderna”555. Nesta perspectiva, pensar a Bíblia pressupõe algumas tarefas e a teologia,
além de narrativa, passa a ser uma teologia descritiva.
Dentre as tarefas destinadas ao pensamento que se dobra com a religião está o reco-
nhecimento de si pelas narrativas religiosas, sobretudo a narrativa bíblica. A dobra, em sua
eficiência, resgata a reflexão da heterogeneidade literária do corpo bíblico. A pluralidade
dos tipos de representação de mundo precisa ser destacada, como também a pluralidade de
550 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 366. 551 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 366-367. 552 Para Ricoeur, o não-filosófico faz parte do filosófico. Ricoeur usa a não-filosofia (e ele não é o único a fazer
isso) com questões que despertam a filosofia. O conflito das interpretações carrega o diálogo da filosofia com
a não-filosofia. Marx, Freud e o culturalismo de Nietzsche são os principais interlocutores. E a Bíblia, para
Ricoeur, é também fonte de não-filosofia para a filosofia. A filosofia ricoeuriana incorpora e dialoga a não-
filosofia, mantendo o confronto. Assim como a não-filosofia de Hölderlin é um dos grandes temas da filoso-
fia de Heidegger, a não-filosofia bíblica é um dos temas centrais da hermenêutica de Ricoeur. Tanto a aporia
como não-filosófico é produtivo para Ricoeur. Cf. ABEL, Olivier. “Ricoeur sceptique?”, In: Hommage à
Paul Ricoeur. Journée de la philosophie à l’UNESCO, 2004, p. 24-25. 553 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236. 554 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 62. 555 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 366.
127
representações de Deus e do ser humano no ato de nomeação. Cada gênero literário se refere
às maneiras diversas de um modo singular de fixar a representação das coisas válidas como
o sensível ou o senso da realidade. O reconhecimento desta etapa metodológica se dá pela
hermenêutica da suspeita. A hermenêutica da suspeita é fundamental para a compreensão
bíblica de Ricoeur. Em A Função Hermenêutica do Distanciamento556 ele destaca a impor-
tância da crítica à religião como também a produtividade da crítica para a religião. O pro-
blema da afirmação religiosa não é apenas teológica, mas filosófica. A natureza do discurso
religioso bíblico pode ser aceitável tanto para o crente como para o descrente. A intenção de
cada um diante do texto é variável. Entretanto, a função do distanciamento promove um
fundo comum ao diálogo e o pensamento. Trata-se, sobretudo, da questão da compreensão
do discurso bíblico. O distanciamento eleva as aporias e reflete a hermenêutica bíblica em
sua esfera, inserindo na tarefa as demais contribuições de outras áreas do conhecimento –
e.g., a disciplina da história – para uma melhor compreensão dos eventos bíblicos. “Ricoeur,
em um texto não publicado, define o processo histórico da formação do cânon e o seu cará-
ter impossível de negar. Com isso, é evidente que o processo histórico da formação do câ-
non bíblico coloca em questão a noção de ‘texto inspirado’”557
Sobre isso, Ricoeur declarou:
Uma leitura de ordem histórica não se embaraça com preconceitos dogmá-
ticos, e a leitura oficial da igreja também não pode contentar-se com igno-
rar soberanamente o que é revelado por um trabalho arqueológico, como a
decifração dos manuscritos do Mar Morto. A leitura filosófica dos textos
bíblicos não poderia, por sua vez, ignorar a vertente confessional, nem as
investigações histórico-filológicas.558
No limite do filosófico com o teológico, pelo advento do cânon bíblico separou-se os
demais textos religiosos (inclusive os apócrifos) dos textos considerados sagrados – no caso,
aqueles que guardavam autoridade para as comunidades. Ricoeur sempre enfatizou a plura-
lidade dos gêneros bíblicos para dar autonomia ao leitor e às variedades de experiências
556 RICOEUR, Paul. “La fonction herméneutique de la distanciation”, in: BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds)
Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p.
201-215 557 “Ricoeur, dans un texte non publié, met en évidence le processus historique de la formation du canon et son
caractère impossible à nier. Il est donc évident que cela remet en question la notion de ‘texte inspiré’”. RIC-
OEUR, Paul. “Le Canon entre le texte et la communauté”, apud LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte
biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue de Théologie et de Philosophie. Genève-
Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p. 364. 558 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 223.
128
religiosas mediadas pela linguagem religiosa da Bíblia. A diversidade dos gêneros promo-
vem algumas interpretações do mesmo. Ricoeur não concorda que o fechamento do cânon
tornaria o texto bíblico resistente a qualquer inovação significativa. Há uma relação estreita
entre tradição e inovação. A tradição, enquanto herança das formas literárias, relaciona-se
dialeticamente com a inovação. Esta relação acontece pois, segundo Ricoeur, ao trabalhar a
tríplice tradição-tradicionalidade-Tradição, em Tempo e Narrativa, o tempo que separa o ser
humano do passado não encerra a existência, mas transmite o sentido das coisas.559 A pas-
sagem da tradição para a inovação repercute significados fortes. A parábola, enquanto ex-
travagância das narrativas e despojamento de si, é o lugar do hermeneuta, pois, inspirado na
vida de Jesus, elas oferecem discursos que enriquecem a dialética da tradição e inovação.
Ricoeur, segundo evidencia Gilbert Vincent, possui um interesse especial pelas pa-
rábolas bíblicas.560 O seu primeiro registro está na leitura feita por ele da parábola do bom
samaritano, dos anos 1950. Conforme cresceu o seu interesse pelas formas literárias bíbli-
cas, cresceu a sua preferência pelas parábolas. Na leitura das parábolas, Ricoeur constata:
“os elementos se apoiam uns aos outros na oposição”.561 As parábolas não compõem em um
corpo literário distinto. A especificidade das parábolas está, justamente, na vastidão das
suas relações com outros elementos narrativos. Basicamente, há um entrelaçamento na his-
tória na estória. A exemplo, a questão dos milagres. Os milagres são como as parábolas.
Nota Gilbert Vincent que, para Ricoeur, antes de qualquer resposta precipitada acerca da
veracidade ou não dos milagres, a questão da experiência religiosa, para ser pertinente, deve
ser observada sob a perspectiva hermenêutica.
As experiências religiosas mediadas pela linguagem religiosa são representadas nas
teologias querigmáticas, nas quais há diferenciação e oposição à leitura filosófica. A oposi-
ção Jerusalém e Atenas é acentuada apenas em leituras confessionais. São elas, as leituras
confessionais, que trazem enfoques específicos sobre o cânone bíblico.562 A multiplicidade
559 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol. 3, 2010, p. 374. 560 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 130. 561 “Les éléments se soutiennent en s’opposant mutuellement”. RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le
Cerf: Paris, 2001, p. 213. 562 O cânone já é uma interpretação. O Cânone do Novo Testamento já é uma interpetação da igreja primitva. A
teologia querigmática estipula o cânone como interpretação base para a igreja, entretanto, a escolha dos livros
bíblicos carregam interpertações anteriores à composição do cânone. A própria palavra “cânone” (i.e., “me-
dida”, “medida de interpetação”) é uma palavra hermenêutica. A Teologia da Libertação, neste sentido, é um
cânone dentro do cânone bíblico. Ou seja, uma chave hermenêutica, um princípio hermenêutico para a inter-
pretação do livro todo. Ricoeur não concorda com a leitura dogmática do fechamento fixo do cânone, pois o
129
das leituras é garantida pela parcialidade e unilateridade das respectivas hermenêuticas. O
meio cultural de cada época é determinante para a formulação de uma leitura confessional.
A exemplo, no seio do judaísmo haviam escolas rabínicas, das quais uma, provavelmente,
impôs a sua interpretação diante da comunidade judaica, formando, assim, uma política de
memória judaica. No caso do cristianismo, a saber, há os diferentes enfoques teológicos em
cada um dos quatro evangelhos, como também a diversidade de interpretações na teologia
confessional na história do pensamento cristão – a mencionar, Lutero, que fez da Epístola
de Romanos o cânone para a hermenêutica luterana.563
As variações não são, necessariamente, contraditórias para Ricoeur e elas podem
conviver, assim como convivem diferentes gêneros literários no corpo bíblico. Para isso, há
a meditação bíblica, cuja ação aplica a noção de compreensão de si à comunidade que tem
um determinado texto comum como normativo. O cânon é, neste âmbito, o reflexo da pró-
pria comunidade que é interpelada pela leitura de seus textos. A hermenêutica do distancia-
mento situa o papel da Bíblia no espaço de circulação e comunicação de textos, possibili-
tando as experiências da crença e o pensar sobre Deus.564
III.1.1 Fundamentos de meditações bíblicas
Feita uma introdução geral da hermenêutica bíblica em Ricoeur, a polissemia do
símbolo implica em diferentes descrições míticas, as quais coexistem entre si. Tratam-se de
incursões no percurso da narrativa. O cativeiro da liberdade, na narrativa adâmica, a título
de exemplo, é o resultado da escolha humana, i.e., não se refere à manifestação da natureza
humana, tampouco a apresentação de um mal substancial ou originário. Isto porque, de mo-
do semelhante, a fé cristã, segundo Ricoeur, é entendida como ato, um ato de confiança e de
crédito à uma história, uma narrativa fundamental: a narrativa dos Evangelhos.565 O volun-
trabalho da interpretação (possível) é uma outra intepretação (possível). Portanto, o essencial da hermenêuti-
ca não é fechar o conjunto de obras (como é importante para Northrop Frye ou Milton Schwantes), mas pos-
sibilitar a interpretação de um cânone aberto. 563 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 229. 564 Para outras informações sobre a noção do distanciamento na hermenêutica teológica de Ricoeur, cf.:
BÜHLER, Pierre. “Ricoeur’s Concept of Distanciation as a Challenge for Theological Hermeneutics”, In:
VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion.
Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011, p. 151-165. 565 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, pp. 68-69.
130
tário não apenas configura a relação do indivíduo com os textos de sua tradição como tam-
bém denotam a postura meditativa da religião que possibilita a convivência das diferenças.
Diante dos Evangelhos e a diversidade de narrativas bíblicas, Ricoeur interessa-se, sobretu-
do, enquanto filósofo, pelos escritos que a tradição judaica classificou como nebiim, i.e.,
aqueles que foram diferenciados da Torá: Provérbios, Salmos, Eclesiastes. Para ele, esses
textos, no ato religioso da crença e descrença, podem ser lidos em contraste com Homero,
Hesíodo, os poetas trágicos e os pré-socráticos – ou seja, os textos fundadores da cultura
helenística em contraposição à cultura hebraica. Este movimento é possível ao leitor que
conhece os limites de cada abordagem literária. “É indispensável”, declarou Ricoeur em
uma entrevista, “quando penetramos no universo da interpretação bíblica, distinguir bem os
diferentes tipos de leitura e de abordagem, sem o que temos a impressão de um constante
diálogo de surdos”566. As diferentes leituras e interpretações feitas do texto bíblico, a des-
peito da preferência individual e da predominância de alguns símbolos, apontam para obje-
tivos diferentes, como também partem de pressupostos que não são apenas distintos, mas
opostos. Ademais, as oposições e a preferência de cada leitor por uma determinada escola
bíblica não coíbem a leitura e a interpretação do texto sagrado.
A meditação bíblica parte da teoria das quatro fontes do Antigo Testamento (javista,
eloísta, deuteronômica e sacerdotal).567 A hipótese considerava que estas fontes se estende-
ram durante sete ou oito séculos de composição do texto das narrativas bíblicas. A partir de
tal hipótese, pôde-se estabelecer uma identidade nas proclamações e querigmas judaicos –
contrapondo judaísmo e helenismo. Entretanto, como aponta Ricoeur, possivelmente as es-
crituras tiveram um lugar num tempo mais curto, como também sua unificação pode ter si-
do, de certo modo, imposta pelas autoridades persas.568 Entretanto, a meditação bíblica não
se restringe na questão das fontes. Há um problema mais específico: o texto bíblico possui o
estatuto de inspiração divina. Emmanuelle Lévy destaca três possibilidades para esta ques-
tão: (1) o texto bíblico é literalmente inspirado e ditado por Deus; (2) o texto bíblico não é
literalmente inspirado, mas há uma relação com a Palavra de Deus; (3) o texto bíblico não é
566 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, pp. 222-223. 567 Vale notar que a teoria das fontes recebeu contestações e avançdos, de modo que sua hipótese não é mais
exclusiva hoje. Cf. RENDTORFF, Rolf. The Canonical Hebrew Bible: A Theology of the Old Testament.
Blandford: Deo Publishing, 2005. 568 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 223.
131
inspirado de qualquer forma.569 Lévy acompanha a dialética entre história e verdade de Ri-
coeur e afirma que os extremos devem ser evitados. No caso, em termos teológicos, o fun-
damentalismo da inspiração literalmente atribuída à Deus seria uma opção indefensável,
uma vez que as afirmações propostas pelo fundamentalismo são perigosas à reflexão primei-
ra. A posição de Ricoeur, não diferente, declara: “não são as palavras que são inspiradas,
mas a proposição de mundo feita pelo texto que é a Palavra de Deus”.570
Ainda sobre a inspiração que implica na revelação, escreve Ricoeur:
Colocar acima de tudo a “coisa” do texto é deixar de colocar o problema da
inspiração das escrituras nos termos psicologizantes de uma insuflação de
sentido a um autor que se projeta nos textos, ele e suas representações; se a
Bíblia pode ser dita revelada, isso deve ser dito da “coisa” que ela diz; do
novo ser que ela desdobra. Eu diria, então, que a Bíblia é revelada na me-
dida em que o novo-ser de que se trata é, por sua vez (ele mesmo), relevan-
te para o mundo, para toda a realidade, incluindo a minha existência e a
minha história. Em outras palavras, a revelação, se a expressão deve ter um
sentido, é um traço do mundo bíblico.571
A meditação bíblica incorpora a revelação no texto, do texto e pelo texto. É neste
sentido que Ricoeur afirma: “A linguagem religiosa faz sentido pelo menos para a comuni-
dade de fé, quando ela a usa para compreender a si mesma ou para ser compreendida por um
público de fora”572. A linguagem religiosa, na dinâmica da mito-poética, revela conteúdos e,
principalmente, um mundo aos leitores. Os pressupostos ontológicos da filosofia e da lin-
569 Cf. LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue
de Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p.
361. 570 “Ce ne sont pas les mots que sont inspirés, mais la proposition de monde faite par le texte qui est Parole de
Dieu.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique philosophique et herméneutique biblique”, In: BOVON, F.
ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux
& Niestlé, 1975, p. 222. 571 “Mettre au-dessus de tout le ‘chose’ du texte, c’est cesser de poser le problème de l’inspiration des écritures
dans les termes psychologisants d’une insufflation de sens à un auteur qui se projette dans le texte, lui et ses
représentations; si la Bible peut être dite révélée, cela doit Être dit de la ‘chose’ qu’elle dit; de l’être nouveau
qu’elle déploie. J’oserais dire alors que la Bible est révélée, dans la mesure où l’être-nouveau dont il s’agit
est lui-même rélevant à l’égard du monde, de la réalité toute entière, y compris mon existence et mon histoi-
re. Autrement dit, la révélation, si l’expression doit avoir un sens, est un trait de monde biblique”. RIC-
OEUR, Paul. “Herméneutique philosophique et herméneutique biblique”, In: BOVON, F. ROUILLER, G.
(Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975,
p. 222-223. 572 “Le langage religieux est sensé, a un sens, au moins pour la communauté de foi, lorsque celle-ci en use pour
se comprendre elle-même ou pour se faire comprendre par une audience étrangère”. RICOEUR, Paul. “La
philosophie et la spécifité du langage religieux”, In: BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur:
un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique, 2011, p. 236.
132
guagem religiosa implicam na revelação do discurso religioso originário. A revelação é uma
forma de discurso que implica em outras aporias do ser, tal como o testemunho.573
III.1.2 A meditação da revelação
A revelação, enquanto a passagem da narrativa para o ser, tem motivações teológicas
e possibilita a mito-poética, i.e., a vivência da narrativa religiosa revelada. Conforme obser-
va Werner Jeanrond, Ricoeur se interessou, sobretudo, ao invés por uma teologia sistemáti-
ca, pelo tema da revelação motivada por “incursões intermitentes no campo da exegese bí-
blica”574. Estas incursões originadas em questões da narrativa acontecem devido o interesse
de Ricoeur pela linguagem da fé e os diversos gêneros literários contidos no discurso bíbli-
co e possíveis de serem pensados na exegese. A saber, curiosamente, o tratamento filosófi-
co-exegético, contemplado em suas reflexões acerca da Bíblia, possibilitaram o trabalho de
autores, como Werner Jeanrond, em propor a revisão do conceito de revelação por uma no-
va crítica da teologia bíblica e da teologia sistemática.575 Neste sentido, a revelação é discu-
tida por Ricoeur em termos de uma ideia-limite.576 Enquanto ideia-limite, a revelação é o
espaço do reconhecimento de si nas situações-limites. Gilbert Vincent faz notar que a hete-
rogeneidade literária do corpo bíblico e a incapacidade do texto bíblico comportar todas as
revelações implica no aspecto da incompletude da linguagem religiosa.577 O conhecimento
de si – tarefa tanto da filosofia quanto da religião – se inicia, diante do pensamento promo-
vido pelo símbolo, na saga bíblica inspirada e revelada.578 Segundo uma breve nota de Ri-
coeur em um artigo na Revista do Instituto Católico de Paris, em 1988, a relação entre a
interpretação da Escritura e a compreensão do si, motivado por Santo Agostinho, é fundado-
573 Para uma interpretação mais detalhada acerca da revelação (o Revelado, geoffenbarte, e o manifesto, offenba-
re), consultar: MARION, Jean Luc. The Visible and the Revealed. Bronx, NY: Fordham University Press,
2008. 574 RICOEUR, Paul. “Intellectual Autobiography”, In: The Philosophy of Paul Ricoeur. The Library of Living
Philosophers XXII, ed. Lewis Edwin Hahn. Chicago: Open Court, 1995, p. 41. 575 Cf. JEANROND, Werner. “The Significance of Revelation for Biblical Theology”, In: JUNKER-KENNY,
Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge to Think God, p. 49 576 RICOEUR, Paul. Essays on Biblical Interpretation, 1980, p. 93. 577 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p.
114. 578 Para outras interpretações acerca do papel da revelação na leitura dos textos sagrados, cf.: DULLES, Avery.
“The Symbolic Structure of Revelation,” In: Theological Studies, 41, no. 1, The Catholic University of Ame-
rica, March 1980, 51-73pp.
133
ra no projeto da religião.579 Este projeto não remove do sujeito os paradoxos oriundos das
situações-limites, mas enfatiza a importância do papel da religião no processo do reconhe-
cimento de si. É, portanto, pelas aporias do tempo e da revelação que a religião se inscreve
na tarefa do reconhecimento de si pelas mediações significativas, mesmo cercada de incom-
pletudes linguísticas e fraturas existenciais.
A incompletude da linguagem religiosa traz surpresas para o conhecimento de si nas
narrativas da saga bíblica. “Além da surpresa, o que resta?”580, pergunta Ricoeur acerca da
relação entre o voluntário e o involuntário na esfera religiosa que acompanha estranheza. De
qual surpresa Ricoeur se refere? O filósofo pensa sobre as descobertas arqueológicas581 in-
contestáveis, a inexistência de traços ou rastros, ocupações ou edificações, de determinadas
passagens bíblicas (como a grande antiguidade de Abraão, a incrível abertura do Mar Ver-
melho, os 40 anos no deserto, a conquista de Canaã etc.). Conforme notado anteriormente
nesta pesquisa, Ricoeur declara, sobre a variedade de gêneros literários, que “a leitura mais
interessante parece ser uma leitura às avessas”582. E acrescenta:
Partir-se-ia do Deuteronômio, cuja estranheza Espinosa foi um dos primei-
ros a sublinhar, bem como das histórias de Judá e de Israel compreendidas
entre a monarquia de David e o Exílio – histórias culpabilizantes, marcadas
pelo sinete deuteronômico –; em seguida, remontar-se-ia em direção ao
maciço mosaico da doação da Lei e, mais aquém ainda, em direção às len-
das dos patriarcas, colocadas sob o signo da bênção e da promessa em vez
do mandamento e da acusação; a leitura terminaria pela visão sacerdotal de
uma criação boa, arruinada pelo homem, tal como a lemos no primeiro ca-
pítulo do Gênesis.583
No exercício das leituras diversas, estimulada pelas surpresas e pela estranheza, é in-
teressante à dobra da religião o papel do confronto entre a herança da teologia da Lei sob o
signo de Moisés e a teologia da bênção e da promessa sob o signo de Abraão com a cultura
579 RICOEUR, Paul. “Le sujet convoqué. À l’ecole des récits de vocation prophétique”, In: Revue de l’Institut
Catholique de Paris, 1988, no. 22, p. 83. 580 “Beyond the surprise, what remains?”, RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 76. 581 A respeito de descobertas arqueológicas, em especial, Ricoeur segue as descobertas arqueológicas tradicion-
ais que representaram a escola de Albrecht Alt (usadas por Von Rad). A arqueologia, até então, retrata uma
época da pesquisa e Ricoeur tem a mesma limitação (que é da época em questão). Em Vivo até a morte! Ric-
oeur já nstra conhecimento das descobertas arqueológicas recentes e se deu conta da reviravolta de alguns as-
suntos bíblicos. Portanto, o termo “incontestável”, utilizado na pesquisa, é limitado pelo contexto cultural do
filósofo e deve ser pensado no âmbito da contribuição da arqueologia bíblica ao invés de incontestar a arque-
ologia bíblica. Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2009, p.77-78. 582 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 224. 583 Tal declaração acompanha a teologia do Antigo Testamento de Von Rad. RICOEUR, Paul. A Crítica e a
Convicção, 2009, p. 224.
134
helenística. Ao invés de esgotar o mistério, pelo contrário, preserva-se a insondabilidade do
mistério em símbolos, em narrativas e em aspiração à metáfora. A estrutura da linguagem
religiosa, em sua incompletude, é a própria estrutura do ser quebrado. Deste modo, símbolo,
narrativa e metáfora formam, em conjunto, o processo de significação e transmissão de
mundos. Concentrar-se no símbolo é acompanhar, exclusivamente, o trabalho da simbólica
do mal. Entretanto, o símbolo possui diversas formas e desdobramentos, tendo, ao lado da
hermenêutica, a tarefa o reconhecimento do si.584 A polissemia do símbolo alcança a narra-
tiva bíblica e a diversidade de gêneros literários e possibilita a recepção plural do texto.
Nesta dialética, há, no pensamento bíblico, um esvaziamento e um aniquilamento do si [dé-
pouillement de soi] na tarefa do reconhecimento do si na ontologia quebrada.
III.1.3 A revelação da meditação
O problema da revelação contempla o mistério inserido na primeira dobra: a nomea-
ção de Deus. A despeito dos nomes bíblicos, por que não é possível um consenso comum e
geral no ato de nomear Deus? Por que existe uma total impossibilidade da linguagem ou por
que há a fratura da linguagem? O tetragrama hebraico YHWH, para o nome de Deus, decla-
ra a impossibilidade de nomear Deus plenamente. A finitude e a linguagem impossibilitam o
acesso total ao divino. A expressão “Eu sou o que sou” é uma evasiva de dizer quem é
Deus? Pela fratura da linguagem, motivada por uma relação aberta e franca, a dobra da reli-
gião, iniciada no teônimo, não pretende ser exclusiva, mas, no paradigma da leitura parce-
lar, situa o exercício da reflexão entre dois textos distintos – e.g., o científico e o confessio-
nal. O caráter múltiplo da dobra, ao permitir várias dobras, coloca o indivíduo diante de
uma estratégia de configuração da multiplicidade das formas de denominar Deus no texto
bíblico. Uma vez que a nomeação divina só se faz na diversidade de discursos e de tipos
literários bíblicos, para Ricoeur, “poder-se-ia dizer que na Bíblia a nomeação de Deus apa-
rece circulando entre os múltiplos tipos de discurso, colocando-os em conjunto e talvez es-
capando a cada um deles e a todos de uma perspectiva de fuga no horizonte”.585 A dobra,
584 THOMASSET, Alain. “Biblical Hermeneutics, the Art of Interpretation, and Philosophy of the Self: A Tribu-
te to Paul Ricœur and Paul Beauchamp”, In: Ethical Perspectives 9, Centre Sèvres, Paris, 2002, p. 49. 585 “En ce sens, on pourrait dire que dans la Bible la nomination de Dieu apparaît comme circulant entre les
multiples types de discours, les faisant tenir ensemble et peut-être échappant à chacun et à tous dans une vi-
135
motivada pelo caráter plural e aporético da filosofia de Ricoeur, não pretende ser exclusiva,
i.e., impedir ou esgotar outras dobras, assim como o nome de Deus na narrativa do Êxodo,
do mesmo modo, não esgota o que a narrativa diz sobre Deus, sobre seu nome ou sua pro-
posição ontológica.586 “Segundo Ricoeur, existe uma multiplicidade do rosto de Deus em
virtude dos diferentes gêneros existentes na Bíblia”587. A novidade não se instaura mais na
identificação da variedade de estilos literários bíblicos, mas na excedência de um conceito
monolítico do nome divino. O tema das faces de Javé comporta as variadas concepções de
Deus numa mesma estrutura (a Bíblia) com pontos de intersecção (a dobra). Deste modo, a
revelação não é única de uma instituição ou exclusiva de uma determinada autoridade. A
revelação, pela mediação do texto bíblico, pede por dobras e a tarefa hermenêutica coloca o
desafio da interpretação.
A dobra da religião tem na hermenêutica filosófica o seu método. Para Ricoeur, a ta-
refa da hermenêutica filosófica é dupla: “reconhecer efetivamente na representação religiosa
o outro da reflexão filosófica; dar dela uma interpretação que, sem poder ser derivada da
reflexão, possa estar de acordo com ela. O outro da filosofia é, na tradição cristã, a figura
crística”588. A meditação bíblica – cujo exercício assume o método hermenêutico – é revela-
da pela revelação nas narrativas bíblicas. “Que é um sujeito que se situa na recepção do
‘Grande Código’?”589, questiona Ricoeur sobre a recepção bíblica. Motivado pelas orienta-
ções hermenêuticas, a revelação, antes de preceitos dogmáticos, trata-se de mediação: a re-
ciprocidade entre o indivíduo religioso e o texto sagrado. O texto bíblico não é apenas uma
abertura diante outros textos, mas, segundo François Dosse, uma abertura de contextos e de
mundos.590 A dupla tarefa hermenêutica possibilita, no exercício da leitura e recepção da
abertura de mundos, o descobrimento do ser. Tal dinâmica promove desdobramentos de
sée de fuite à l’horizon.”. RICOEUR, Paul. “Herméneutique: Les finalités de l’exégèse biblique”. In:
BOURG, Dominique, LION, Antoine. La Bible en Philosophie: Approches contemporaines. Les Éditions du
Cerf: Paris, 1993, p. 39. 586 RICOEUR, Paul. “Herméneutique: Les finalités de l’exégèse biblique”. In: BOURG, Dominique, LION,
Antoine. La Bible en Philosophie: Approches contemporaines. Les Éditions du Cerf: Paris, 1993, p. 40. 587 Cf. MARTINS, Maria Manuela Brito. “As razões hermenêuticas para ‘Pensar a Bíblia’”, In: HENRIQUES,
Fernanda (Org.) A filosofia de Paul Ricoeur: Temas e percursos. Ariadne Editora: Coimbra, 2006. p. 387. 588 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 29. 589 No caso, Ricoeur faz referência ao título do livro Le grand code. La Bible et la littérature, de Northrop Frye,
traduzido no Brasil por O Código dos Códigos (Boitempo Editorial, 2004). Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e
a Convicção, 2009, p. 147. 590 “Le texte biblique nést pas suelement dans une situation d’ouverture sur d’autres textes, mas sur des contex-
tes, sur d’autres mondes.” DOSSE, François. Paul Ricoeur: un philosophe dans sons siècle, 2012, p. 239.
136
aporias e questões profundas do ser. A revelação da primeira meditação bíblica em Ricoeur
refere-se à aporia do mal. Essa aporia encontra-se tanto na reflexão filosófica como na reli-
giosa. O mal é o “outro comum” das duas áreas de conhecimento e sua interpretação depen-
de do esforço alocado na tarefa hermenêutica ao dialogar os dois domínios do saber. Dito
isto, o mito etiológico de Adão é, segundo Ricoeur, “a tentativa mais extrema para desdo-
brar a origem do mal e do bem”591. Há a intenção de uma função instrutiva, na saga bíblica,
ao descrever, consistentemente, origens – no caso, a origem radical do mal diante das ori-
gem mais primordial: o caráter ontologicamente bom das coisas no mundo. Mais importante
que o problema da veracidade escriturística da Bíblia está o juízo da fundação de políticas
de memória que autoriza a sia mesma através das histórias que são contadas pela saga bíbli-
ca e pela tradição.592 Não apenas a crítica exegética atual, mas também Homero, Hesíodo e
os trágicos gregos auxiliaram Ricoeur a situar-se diante dos profetas de Israel e dos filóso-
fos pré-socráticos.593 O mito adâmico, neste sentido da fundação de políticas de memória, é
mais um mito do desvio [écart] do que um mito da queda.594 No desvio ocorre a produção
de pensamento bíblico.
O mito, pela consciência do tempo, remonta sempre à origem primordial e ao ser
humano ideal. A justificação por Javé da monarquia, como também a historicidade alegada
ao longo de toda a história da humanidade, denotam a primordialidade na narrativa e apon-
tam para uma teologia política – a qual Ricoeur também denomina por “corpo político-
teológico”.595 O reconhecimento de si pela leitura sugere o espaço privilegiado da Bíblia e
interpela vida, existência e reflexão no corpo político-teológico.596 A figura de Abraão refle-
te funções de autoridade para os eventos subsequentes. As genealogias da Bíblia comportam
políticas teológicas, cuja escala, se respeitada, oferece sentido à história em totalidade. Ain-
da nestes méritos, a endogamia hebraica está nas estruturas da concepção do judaísmo como
uma grande família – que perdera seus traços no decorrer da história (simbolicamente repre-
591 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 252. 592 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 78. 593 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 222. 594 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 253. 595 Cf. GREISCH, Jean. “Lire, interpéter, comprendre”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECAS-
TEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011,
p. 26-27. 596 Cf. GREISCH, Jean. “Lire, interpéter, comprendre”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECAS-
TEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011,
p. 26-27.
137
sentados pela separação de Israel, ao norte, e da Judeia, ao sul). A unidade genealógica legi-
tima a entidade política-teológica que configura a identificação de Israel e dos judeus.597
O que Ricoeur declara sobre esta construção política feita através da saga bíblica? A
construção política constitui uma forma de ser que implica numa leitura de mundo possível.
Primeiramente, a política, nos termos bíblicos, é encarada como a esfera social laica que
dialoga com a fé. Não se trata da negação da fé, muito menos da interação dos domínios do
político e do religioso. A ligação entre a política e a religião reside na inspiração ou na in-
tenção. Trata-se da inspiração de uma fé que doa um olhar bom aos pensamentos e ações
profanas, enquanto a política, em seu caráter comum, apresenta outras faces de uma realida-
de plural contingente a história que possibilita à fé significar.598 Com isso, deve ser enfati-
zado, na esfera política da religião, a recepção da narrativa bíblica enquanto história presu-
midamente verdadeira, i.e., história presente fundadora de sentido e de mundo – diferente-
mente das histórias da Ilíada e Odisseia, que possuem funções ficcionais ao lado da história
política. A intenção da fé é ler a Bíblia não apenas como uma narrativa mito-poética
[mythopoetical], mas uma narrativa com um poder mito-político [mythopolitical], a serviço
de aplicações política-teológicas (permitindo, historicamente, ambições teocráticas).599 A
tarefa hermenêutica do conhecimento de si segue as descobertas arqueológicas para não
depender de discursos políticos que utilizam a Bíblia para compor normas e práticas.
Qual o limite entre a mito-poética, na qual Ricoeur localiza a fonte das aporias e sen-
tidos, e a mito-política, cujo papel pode comprometer o reconhecimento de si? A medida,
para ele, encontra-se na possibilidade de um mundo bom e justo. Ricoeur toma emprestada a
expressão “aumento icônico”, de François Dagognet, cujo sentido remonta ao efeito de revi-
talizar o significado de uma narrativa em função de sua importância e efeito exercido em
uma segunda narrativa.600 A mito-poética implica no aumento icônico das representações
vividas pelo leitor das narrativas bíblicas. Não apenas na questão da justiça, mas todas ou-
tras questões de virtudes e ética são prolongadas pelo aumento promovido pelos textos sa-
597 Em um estudo dedicado à esfera política do cristianismo, Ricoeur alerta sobre o risco de qualquer forma de
autoritarismo oriundo de determinadas leituras bíblicas, de modo que tais leituras, na paixão clerical e teocrá-
tica, podem mascarar qualquer autoridade ou uso político da religião pela tentação de comandar o nome de
Deus. RICOEUR, Paul. “Pour un christianisme prophétique”, In: Les chrétiens et la politique (Dialogues),
1948, pp. 84-85. 598 RICOEUR, Paul. “Pour un christianisme prophétique”, In: Les chrétiens et la politique (Dialogues), 1948, p.
86. 599 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death. The University of Chicago Press: Chicago, 2007, p. 80. 600 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 69.
138
grados. Este aumento icônico se dá pela relação entre os movimentos de extensão e intensão
da leitura da narrativa.601 Da narrativa adâmica até Cristo, há uma ética do possível, que está
na intensão da narrativa, que se contrai e tenciona as possibilidades, movimento de veemên-
cia, e na extensão da mesma, que desenvolve e aumenta os sentidos de uma ética possível.
Neste sentido, a dobra da religião descobre e revela o texto sagrado que, na tensão da apo-
ria, pelo ofício filosófico, aponta questões fundamentais de um mundo possível. O caminho
da dobra, na tarefa negativa, é a descoberta da ontologia do possível.
III.2 A origem de um possível
O método ricoeuriano é reflexivo, fenomenológico, hermenêutico, narrativo e poéti-
co. A despeito da dificuldade em situar o pensamento de Ricoeur, assim como em Platão, a
filosofia do autor tem na via longa o caminho da aporia e os desvios do mito e do símbo-
lo.602 A filosofia não é exclusiva, ela não está sozinha no empreendimento do pensamento.
Ricoeur trabalha com os discursos não-filosóficos. Em Les incidences theologiques des re-
cherches actuelles concernant le langage Ricoeur trabalha a extensão do mito.603 A narrati-
va mítica tem como característica a dilatação do tempo, alcançando a origem e o fim da
existência. O mito remete aos eventos do início com o propósito de fornecer fundamentos
para os eventos e rituais atuais. O núcleo imaginário implica uma fundação mito-poética na
compreensão do si e da sociedade. Trata-se, sobretudo, no retorno das origens da identidade,
das questões últimas. Na ambiguidade do mito – enquanto extensão da estrutura simbólica
e, ao mesmo tempo, enquanto alienação da estrutura simbólica – há um trabalho de amplia-
ção e restrição do ser. Entretanto, conforme nota Ricoeur, o mito não deve ser interpretado
literalmente, uma vez que ele é essencialmente simbólico.604 A não-literalidade do mito re-
monta à ideia de origem.
601 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 69. 602 ABEL, Olivier. “Ricoeur sceptique?”, In: Hommage à Paul Ricoeur. Journée de la philosophie à l’UNESCO,
2004, p. 10. 603 RICOEUR, Paul. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le langage. Paris: Institut
d’Études Ecuméniques, (s/a), p. 65-85. 604 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 371.
139
III.2.1 Religião e origem
Neste momento da pesquisa alcançamos, após a passagem pela hermenêutica bíblica,
a indicação apontada pela dobra da religião por excelência: a questão da origem e do possí-
vel. O trabalho filosófico de Ricoeur fundamenta-se na ontologia e a origem possui um sen-
tido especial neste horizonte. A origem, conforme apresentada na tese, motivada por Kant,
refere-se diretamente à fenomenologia do possível de Ricoeur. Ora, a origem trata-se sobre
o fundamento [Grund] das máximas – tanto as máximas más como as máximas boas. O ges-
to hermenêutico por excelência é o de refletir as origens do ser. Tanto a origem temporal
(que convém à narrativa – no caso, a narrativa da saga bíblica) quanto a origem racional
(que inclina nos atos do indivíduo livre e racional) trazem significações para a ação humana.
Ricoeur recorre a Karl Jaspers a respeito da origem:
Esta é a situação de fato: além de todos os conhecimentos que podemos
adquirir, somos finalmente forçados a encontrar o nosso próprio caminho a
partir de um não-saber que permanece sendo a sua origem verdadeira; e aí
nos tornamos responsáveis, não apenas por tal ato particular, mas por nós
mesmos.605
Está em questão não apenas o reconhecimento de si pelo exercício do acesso às ori-
gens, mas o domínio do si na tarefa de viver nas fraturas. Diz Jaspers: “gostaríamos de obs-
curecer a fonte original, não entender o silêncio”606. Motivado por Kant e Jaspers, a origem
é o pensamento que fala por si só ao si. As questões morais e a ordem do pensamento filosó-
fico surgem na tarefa do reconhecimento e, ao invés de encerrar caminhos ou explicações,
abre as possibilidades de regeneração.607 Neste âmbito, a questão da origem implica na for-
ça da dobra da religião ao dispor de fundamentos para um trabalho de pensamento filosófico
cujo horizonte envolve a religião e a linguagem da fé.
Dentre os conceitos de origem, a ideia de originalidade – na qual há um certo ana-
cronismo, suspensão do tempo, o tempo dos tempos – que caracteriza o pensamento hebrai-
co e cristão comporta uma outra estrutura diferente do tempo histórico e cronológico. O que
605 JASPERS, Karl. “Le mal radical chez Kant” apud RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da
Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filosofia, 1996, p. 27. 606 JASPERS, Karl. “Le mal radical chez Kant” apud RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da
Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filosofia, 1996, p. 27. 607 Cf. RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 27.
140
importa, para Israel, é a história da salvação.608 O discurso que parece opor-se à história
assinala a confissão comunitária que promove a distensão da narrativa. A narrativa pode
captar e realizar elementos não narrativos pela profundidade dos mitos e dos símbolos –
elementos que não cabem no tempo chronos. Os documentos cristãos, por sua vez, inserem-
se no tempo kairos, o qual se situa no nível da ação. A narrativa das origens não é um texto
voltado a si mesmo, mas voltado à vida do indivíduo religioso. Sua leitura implica na recep-
ção do texto no nível da ação.
A origem, segundo penso, não funciona como um primeiro, primeiro de
uma série como um começo de que poderíamos datar, mas como aquilo que
está sempre já lá no seio de uma palavra atual. Trata-se, portanto, de um
anterior que é mais da ordem do fundamental que do cronológico.609
Acerca da aporia da origem, Ricoeur intui uma “semântica da profundidade”.610 Se a
dobra da religião, no jogo da linguagem, transita pela superfície, é na profundidade que se
encontra a reflexão das narrativas, sobretudo a de origem. A profecia, no âmbito da semân-
tica da profundidade, “é um tipo de narrativa para o futuro”611, onde o futuro é projetado
com as cores da experiência do passado. A estrutura da promessa, no discurso profético,
coloca a narrativa em órbita, permitindo-a, ao mesmo tempo, o movimento da extensão e da
expansão. O profeta opera no interior da narrativa uma fissura que tem, como consequência,
a desconstrução para a construção de um mundo. Os primeiros 11 capítulos de Gênesis não
são lidos mais apenas como narrativa mítica da origem, mas como uma profecia a partir do
fim.612 O fim, em termos de finalidade, é a relação com Deus. Todas as narrativas, desde
Adão, Abraão até Jesus Cristo, encontram-se nas origens e nos fundamentos da narrativa
bíblica que, pelo conhecimento de si mesmos, conhecem a mais inesgotável das aporias:
Deus.
608 Cf. RICOEUR, Paul. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le langage. Paris:
Institut d’Études Ecuméniques, (s/a), p. 66. 609 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 233. 610 Cf. RICOEUR, Paul. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le langage. Paris:
Institut d’Études Ecuméniques, (s/a), p. 81. 611 “La prophétie est une sorte de récit au futur”. RICOEUR, Paul. Les incidences theologiques des recherches
actuelles concernant le langage. Paris: Institut d’Études Ecuméniques, (s/a), p. 82. 612 Cf. RICOEUR, Paul. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le langage. Paris:
Institut d’Études Ecuméniques, (s/a), p. 83.
141
III.2.1 A poética da origem
A origem, na dobra da religião em Paul Ricoeur, enquanto método de pensamento,
está na distinção entre a filosofia e a teologia; enquanto abordagem reflexiva, está na leitura
de mundos possíveis. A origem, seguindo a tradição kantiana [Ursprung]613, é poética e cru-
za polos de reflexão (como a polaridade início e fim). O papel da hermenêutica bíblica não é
mais suficiente, pois, pelo movimento da poética, há o entrelaçamento da hermenêutica bí-
blica com a hermenêutica filosófica. A palavra “entrecruzamento” [entrecroisement], se-
gundo Pierre Bühler, é uma expressão utilizada frequentemente por Ricoeur e aparece em
momentos decisivos do pensamento do autor614, como, a título de exemplo, no título do ca-
pítulo “O entrecruzamento da história e da ficção”, do terceiro volume de Tempo e Narrati-
va615. De semelhante modo, a relação entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bí-
blica acontece na esfera do entrecruzamento, da intersecção proveniente da dobra.
Segundo Pierre Bühler, “há a necessidade da dualidade dinâmica entre hermenêutica
bíblica e hermenêutica filosófica, porque vai, em ambos os lados, do confronto da imagina-
ção para a aporia, até em suas implicações existenciais.”616. A aporia é, para Bühler, em seu
ponto de partida, existencial devido o confronto da hermenêutica filosófica com o trabalho
da imaginação. É neste ponto em que a realidade e a crença religiosa se interagem com a
hermenêutica bíblica. Acompanhando a passagem da hermenêutica do texto à hermenêutica
da ação, em Do Texto à Ação617, Ricoeur aponta aos elementos da criatividade provenientes
da imaginação.
A aporia permeia o pensamento de Ricoeur como um todo. Em sua primeira grande
obra, os dois volumes de Voluntário e Involuntário, a aporia já estava presente e o tema da
613 Cf. RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 25-27. 614 BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre. FREY,
Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophi-
que et biblique., 2011, p. 89. 615 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3: O Tempo Narado. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 310. 616 “Il y a nécessaire dualité dynamique entre herméneutique biblique et hermenéutique philosophique, parce
qu’il en va, de part et d’autre, d’une confrontation de l’imagination à l’aporie, jusque dans ses connotations
existentielles.” BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER,
Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneuti-
ques philosophique et biblique., 2011, p. 91. 617 Cf. “Imagination in Discourse and in Action”, In: From Text to Action: Essays in Hermeneutics, II. Evanston:
Northwestern University Press, 1991. p. 168-187.
142
poética, além de ter sido contemplado indiretamente, receberia atenção exclusiva num ter-
ceiro volume dedicado à uma poética da vontade. A poética atravessa toda a obra de Ri-
coeur.618 Em Voluntário e Involuntário e em Tempo e Narrativa Ricoeur declara que as apo-
rias devem ser compreendidas poeticamente.619 Na obra Voluntário e Involuntário Ricoeur
situa sua reflexão na relação paradoxal entre a transcendência e a liberdade. A poesia, para
ele, é a arte de conjurar a criação do mundo pela palavra. Isso significa a morte do si, na
esfera da aporia de liberdade.620 Pelos mitos e arte, a vida humana tem uma compreensibili-
dade que não é só da razão científica, mas de ordem poética. Como uma inspiração pneuma-
tológica, a poética sugere experiências radicais que apontam para a transcendência da liber-
dade, próximo a uma filosofia religiosa na qual a revelação é fundamental para a liberdade.
Neste sentido, a poética é explorada com mais intensidade na hermenêutica bíblica, onde
demonstra sua importância e articulação no pensamento de Ricoeur. Devido à busca ricoeu-
riana por uma poética da liberdade, segundo Alain Thomasset, “a categoria de ‘poética’
procura responder a questão fundamental da existência humana em relação à Transcendên-
cia”621. Das questões fundamentais acerca da poética, Ricoeur inclui a dimensão da narrati-
va, da alteridade622 e os estudos da noção do amor. Interessa-nos, neste estágio da pesquisa,
a poética da linguagem, i.e., as figuras da liberdade que suscitam a esperança na experiência
da palavra revelada.623 A revelação se dá em símbolos e narrativas, de modo que a compre-
ensão se torna uma das tarefas da hermenêutica bíblica.
A poética da Bíblia, na esfera da origem, vive de tensões simbólicas e narrativas.624
Pela dinâmica da revelação as tensões são produtivas na medida em que o exercício da
compreensão é colocado no centro da poética da dobra da religião.
618 Cf. THOMASSET, Alain. Paul Ricœur, une poétique de la morale: aux fondements d’une éthique, herméneu-
tique et narrative dans une perspective chrétienne. Leuven: Leuven University Press, 1996, p. 324. 619 Cf. RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3 – O Tempo Narrado, 2010, p. 271-279. 620 RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté I: Le volontaire et l’involontaire, Paris: Aubier, 1988, pp. 32-33. 621 “La catégorie de la “Poétique” vise à répondre à la question fondamentale de l’existence humaine dans son
rappor à la Transcendance.” THOMASSET, Alain. Paul Ricœur, une poétique de la morale: aux fondements
d’une éthique, herméneutique et narrative dans une perspective chrétienne. Leuven: Leuven University Press,
1996, p. 324. 622 Cf. os estudos referente a “pessoa”, em O si-mesmo como outro. 623 Para descrições mais detalhadas sobre a poética da linguagem em Ricoeur, cf.: NKERAMIHIGO, Théoneste.
L’homme et la transcendance. Essai de poétique dans la philosophie de Paul Ricoeur. Paris-Namur: P. Le-
thielleux, 1984. 624 Tensões entre a narrativa e a profecia, a profecia e a salvação, a salvação e a narrativa prescritiva e himinca,
entre outras variedades de estilos bíblicos. Cf. THOMASSET, Alain. Paul Ricœur, une poétique de la mo-
rale: aux fondements d’une éthique, herméneutique et narrative dans une perspective chrétienne. Leuven:
143
Compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao
texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao
texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência
respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo.
A compreensão torna-se, então, o contrário de uma constituição de que o
sujeito teria a chave. A este respeito, seria mais justo dizer que o si é cons-
tituído pela “coisa” do texto.625
A compreensão das narrativas sagradas implica na ampliação e interação dos três pa-
péis da poética: a poética do discurso, a poética da ação e a poética da existência.626 A op-
ção ao agnosticismo é uma saída para a aporia, no sentido de permitir a aporia no pensa-
mento ao invés de esgotar uma reflexão com a teologia ou a filosofia. A adesão dupla de
Ricoeur é fortalecida pela aporia e a autonomia que ela oferece ao pensamento que dialoga
hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica nos mesmos termos.627 As aporias, observa
Bühler, “quando não são ocultas pelos discursos, mas reveladas em seus conteúdos existen-
ciais, permitem percorrer caminhos novos, levando à sabedoria”628. A hermenêutica bíblica
é um caminho possível motivado pela transcendência e pela aporia da liberdade em discus-
são com a vontade. Seu fim é, enquanto dobra, a sabedoria da vida.
Retomando a questão da poética na originalidade, a ideia de origem não se coincide
necessariamente com a de começo no tempo está no lugar sapiencial nas escrituras bíbli-
cas629, i.e., a dimensão existencial da sabedoria que vai além dos gêneros narrativo e profé-
tico (a pesar de que sua funcionalidade está no gênero narrativo). Na tensão dos estilos poé-
ticos bíblicos, Ricoeur possui especial apreço pelo gênero sapiencial, uma vez que esse esti-
lo literário comporta questões da origem. Há vestígios cronológicos, segundo Ricoeur, na
reflexão sobre a origem (como a historicidade), entretanto, a meditação é orientada pela
poética ao invés de uma investigação empírica acerca das coisas originais, de modo que o
pensamento acerca da origem, na dobra da religião, implica na tarefa do conhecimento de si
Leuven University Press, 1996, p. 346. 625 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias, 1990, p. 58. 626 BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre. FREY,
Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophi-
que et biblique. Editions Labor et Fides: Genève, 2011, p. 92. 627 Sobre a adesão dupla, cf. Cf. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Au-
tomne, 1994, pp. 6-7. 628 “Les apories, lorsqu’elles ne sont plus occultées par le discours, mais dévoilées dans leur teneur existentielle,
permettent de parcourir des cheminements nouveaux, menant à la sagesse”. BÜHLER, Pierre. “Lire, agir,
sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur:
un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique, 2011, p. 91. 629 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 233.
144
mesmo na ontologia quebrada e o reconhecimento da identidade narrativa pelo texto que,
em linguagem religiosa, media a experiência religiosa e reforça a hermenêutica do si.
A despeito da pretensão alta do projeto filosófico de Ricoeur, a aporia do reconhe-
cimento de si pelo texto sagrado encontra limites. A mesma linguagem que abre o mundo
poeticamente pela leitura das narrativas bíblicas limita-o pela própria linguagem. Emmanu-
elle Lévy faz notar o papel da tradução no processo de leitura dos textos sagrados.630 A
hermenêutica de Ricoeur se refere à etapas como mundo do texto, distanciação e apropria-
ção.631 Dessas etapas é formulada uma hermenêutica que situa como ponto de partida da
reflexão o mundo da vida. Ao estudar um texto, estuda-se um mundo – que é duplo: o mun-
do do qual o texto se refere e o mundo do próprio texto. O mundo do texto exterioriza o
indivíduo fora de si mesmo e o distancia do real em direção à um tempo que é novo. Há, no
percurso do reconhecimento, uma dinâmica de projeção e recepção do mundo do texto. Ne-
la, o texto é capaz de transformar o leitor e a realidade que o cerca. Neste sentido, não ape-
nas a leitura e interpretação, mas, sobretudo, a tradução não é um fenômeno exclusivo entre
dois idiomas, devido ao sistema linguístico, no interior de seus sistemas gramaticais, faz-se
valer a frase “compreender é traduzir”.632 Portanto, para Ricoeur, a dimensão poética da
originalidade inclui a complexidade dos processos de tradução.
A atividade do reconhecimento de si, no acesso a múltiplas possibilidades, não pro-
curará a gênese ou o motivo de existência, de modo empírico ou estrutural, mas buscará o
impacto da diversidade de leituras. Tal motivação provoca uma “heterogeneidade radical
dos exercícios de leitura”633, contrapondo-se a abordagem científica e a poética. Trabalhará
a tradução no âmbito da “fidelidade versus traição”634. A tradução é um exercício que se dá
entre a fidelidade e a traição. No âmbito da poética, não há tradução perfeita. Entretanto, há
a tradução mais justa, que leva a poética ao ser possível. Comumente o tradutor, motivado
pelos pressupostos da vida boa, precisa tecer decisões que dividem sua fidelidade entre a
630 Cf. LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue
de Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p.
336-338. 631 Cf. LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue
de Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p.
358. 632 “Comprendre, c’est traduire”. RICOEUR, Paul. Sur la tradiciton, Paris: Bayard, 2004, p. 22. 633 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 1998, p. 12. 634 634 Cf. LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In:
Revue de Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV,
p. 360.
145
fonte do texto, a linguagem ou o leitor. Mesmo no limite inerente ao ato de traduzir, o jogo
das polaridades desempenha, de acordo com Emmanuelle Lévy, um papel positivo: ela lem-
bra que a comunicação humana é feita no risco da incompreensão, do mal entendido, impli-
cando uma tarefa de interpretação inevitável para todo interlocutor envolvido.635 Não há
tradução mecânica. Toda tradução é interpretação e toda interpretação é um ato de compre-
ensão. O sistema da língua depende da cultura. A polissemia nas palavras e no mundo da
vida possibilitou a noção do cânon e a interpretação do texto inspirado. A Bíblia tem na sua
origem a tradução de um mundo interpretado. É neste sentido que, mais importante que a
tradução, Ricoeur prefere a poética para o reconhecimento do si na narrativa. E é nesta dire-
ção que a dobra da religião aponta um horizonte, acompanhando as reflexões de uma onto-
logia do possível.
III.3 A fenomenologia do possível
A hermenêutica bíblica na leitura da dobra da religião, i.e., o trabalho de pensamento
na aporia do tempo na ontologia quebrada intermediada pela narrativa bíblica, é orientada
por uma fenomenologia do possível. A dobra da religião se coloca como uma possibilidade
que acontece na própria possibilidade de ser humano. O ser humano, na perspectiva da do-
bra da religião, é, essencialmente, possibilidade.636 A referência encontra-se em diversas
passagens bíblicas; para ilustrar: “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é mani-
festado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos seme-
lhantes a ele; porque assim como é o veremos.” (1 João 3:2) A possibilidade refere-se, inici-
almente, ao ato integral do ser na realização do cogito. O poder de ser e o que ainda não é,
a título de exemplo, ao trabalhar com a obra de Rudolf Bultmann, Ricoeur distingue a des-
crição filosófica da possibilidade formal da existência autêntica e a descrição teológica que
anuncia a realização dessa possibilidade. Em suas palavras, acerca da raiz do problema
hermenêutico da possibilidade, “é toda uma meditação sobre a palavra, sobre a reivindica-
635 LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue de
Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p. 361. 636 VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and
theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 7.
146
ção da palavra pelo ser, que se impõe aqui, portanto, toda uma ontologia da linguagem, se a
expressão ‘palavra de Deus’ deve ser uma expressão sensata”637. Está em jogo uma antropo-
logia suscetível de conceitualidade justa, a qual, em suma, resulta num pensamento ético. A
questão da possibilidade implica na questão das possibilidades éticas.638 “Nós criamos pos-
sibilidades imaginárias que nunca poderão ser realizadas ou nós descobrimos possibilidades
reais que podem se tornarem reais?”, questiona Kevin Vanhoozer ao introduzir o tópico da
possibilidade na reflexão ricoeuriana.639 Segundo Richard Kearney, a variação imaginária
que separa o desejo da realidade é pautada pela dimensão metafísica do ser e não ser. 640 A
questão da possibilidade é acompanhada pela imaginação ao referir-se à produtividade da
realidade. Segundo Ricoeur, a ficção transforma a realidade, inverte-a e descobre-a. Em
suas palavras, “devemos restaurar o duplo sentido do verbo inventar em descobrir e cri-
ar”.641 É, resumidamente, neste sentido em que a dobra da religião se apresenta originalmen-
te na reflexão da ontologia do possível.
III.3.1 A ontologia do possível
A ontologia do possível estava em gestação em alguns autores no século XX. Traba-
lhado por alguns leitores de Ricoeur642, o possível, cuja motivação filosófica advém, sobre-
tudo, de Heidegger643, é um dos horizontes assumidos pela dobra da religião na tarefa da
hermenêutica do si. Ricoeur herda a discussão acadêmica da ontologia do possível e inter-
preta-a de modo original, sobretudo nos possíveis da religião. Ricoeur acompanha a filoso-
637 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 334. 638 A ética será abordada na última parte desta pesquisa. 639 “Do we create imaginary possibilities which can never be realized or do we discover real possibilities that can
become actual?” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in
hermeneutics and theology, 1990, p. 9. 640 Cf. KEARNEY, Richard, Poetique du possible: Phenomenologie herméneutique de la figuration. Paris: Beau-
chesne, 1984, p. 15. 641 “In short, we must restore to the fine word invent its twofold sense of both discovery and creation.” Cf. RI-
COEUR, Paul. The Rule of Metaphor. London, Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 306. 642 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New Jersey: Humani-
ties Press Internation, Inc., 1995.; STIVER, Dan. Theology after Ricoeur: New Directions in Hermeneutical
Theology. Westminster: Westminster John Knox Press, 2001; BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between
Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington: Indiana University Press, 2010, 230p.; HUS-
KEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good. Peter Lang Publishing, Inc.: New
York, 2009. 643 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, pp. 35-36.
147
fia do possível de Martin Heidegger644, Ernst Bloch645 e Jürgen Moltmann646. A metafísica
ocidental é desconstruída para dar lugar à uma ontologia da primazia dos possíveis. O real
possível é o real realizado, de modo que a ética se situa nas possibilidades.
A ontologia do possível, diferentemente das ontologias metafísicas, rompe com as-
pectos substancialistas de pensamento e trabalha na esfera de possibilidades realizáveis. A
existência, para Ricoeur, não é definida por uma metafísica anterior, mas pela possibilidade
de realização, um movimento dinâmico de estar acontecendo – os sentidos múltiplos do ser.
Ricoeur, neste sentido, reinterpreta Aristóteles na questão do ato e da potência, principal-
mente na metafísica.647 A relação entre ato e potência, em Aristóteles, dominados pela no-
ção de “o ser enquanto ser”, apontam para as questões de substância e acidente.648 Resumi-
damente, Ricoeur herda a ontologia aristotélica do ato enquanto possível realizado. A po-
tência [dynaton] carrega os possíveis que poderão ou não serem realizados. Não há, a rigor,
uma substancialidade metafísica; há um movimento de acontecimento das coisas.649 O pos-
sível exigido pela linguagem, como modalidade de juízo, é o possível da esfera hermenêuti-
ca que trabalha a ontologia quebrada para uma ontologia do possível. A ontologia do possí-
vel, portanto, é uma ontologia do sentido no tempo, do que se realiza e do que não se reali-
za. Não se trada exclusivamente da ontologia de vigor metafísico de Aristóteles, mas da
importância do possível no pensamento de Heidegger para Ricoeur.
Em Heidegger, o ser humano é compreendido, basicamente, a partir dos seus possí-
veis. O Dasein – o lugar da manifestação e da compreensão do ser – é preparado pela ques-
tão da temporalidade e da historicidade na ontologia do possível.650 A palavra essência, a
rigor, não se refere ao que é, mas ao que está sendo e ao que é possível ser. Essência [lt.
esse] diz sobre um modo de ser.651 Tratar do modo de ser das coisas é tratar a essência das
coisas. Enquanto para a fenomenologia husserliana, tratam-se de unidades ideias de signifi-
cado que se dão à intuição essencial652, para Heidegger a essência, além de ser o modo de
644 Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. 645 Cf. BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol 1, 2 e 3. São Paulo: Contraponto Editora, 2005. 646 Cf. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola, 2010. 647 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp.
163-165. 648 Cf. RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, pp. 206-207. 649 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 224. 650 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 36. 651 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 226-230. 652 Cf. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 230.
148
ser das coisas, tem a ver com a esfera do possível, do realizado. Em suma, coloca-se o ser
na esfera dos possíveis e do realizável. A reinterpretação heideggeriana do ato e da potência
de Aristóteles privilegia a dinâmica da possibilidade do ser realizado e Ricoeur herda do
filósofo alemão a questão do possível em diálogo com Aristóteles.653
Ricoeur desenvolve a questão do possível e Richard Kearney é um dos seus leitores
que melhor aprofundou esta questão. As obras de Richard Kearney, ao lado de Kevin Va-
nhoozer, a partir deste ponto, são fundamentais para a tese da dobra da religião. Frutos de
seus diálogos e estudos com Ricoeur por mais de trinta anos de pesquisa, textos como The
God who May Be: A Hermeneutics of Religion654 e Enabling God655 carregam a dinâmica da
dobra religiosa na hermenêutica do autor. Keaney estudou com Ricoeur, dentre algumas
questões da filosofia – a principal: a poética e a imaginação – sobre o possível [possible].656
Vanhoozer, por sua vez, aplicou a filosofia ricoeuriana à uma paixão do possível – na per-
mitiu uma chave de leitura da hermenêutica filosofia mediada pela adesão religiosa.657 Nes-
te sentido, a importância do pensamento religioso de Ricoeur para outros pensadores atuais,
como Jean-Luc Marion, Michel Henry, Richard Kearney e Olivier Abel, representa a virada
teológica hermenêutica, motivada pela proposta filosófica do autor.658 Em seus estudos,
motivado pela reflexão do voluntário em Ricoeur, está a relação do homem capaz com o
Deus capaz.659 Kearney aponta o início deste projeto à uma ontologia do possível, à partir
do homem capaz, que levaria, ao final, à uma escatologia do possível – portanto, como con-
clui Kearney, à uma ideia de um Deus capaz.660 Segundo Kearney, o aspecto central de seus
trabalhos acerca do possível demonstra o lugar entre a fragilidade e a capacidade humana,
entre o sofrer e o agir. Tal lugar não é negligenciável para Ricoeur e é assumido pelo filóso-
fo como o espaço privilegiado de reflexão.
653 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, pp. 68-69.. 654 KEARNEY, Richard. The God who May Be: A Hermeneutics of Religion. Indiana University Press, 2002. 655 In: MANOUSSAKIS, John P. (Ed.) After God: Richard Kearney and the Religious Turn in Continental Phi-
losophy. Fordham University Press: New York, 2005. 656 Sobre o papel de Ricoeur em outros pensadores no contexto da filosofia francesa, consultar: BENSON, Bruce
Ellis; WIRZBA, Norman (Ed.) Words of Life: New Theological Turns in French Phenomenology (Perspecti-
ves in Continental Philosophy (Paperback Unnumbered). New York: Fordham University Press, 2010. 657 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics
and theology, 1990. 658 Ver, por exemplo, MANOUSSAKIS, John Panteleimon (Org.). After God: Richard Kearney and the Reli-
gious Turn in Continental Philosophy. Bronx, NY: Fordham University Press, 2006. 659 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capable – Autour de Paul Ricoeur. Presses Universitaires de France: Paris, 2006, pp. 39-47. 660 KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle.
L’homme capable – Autour de Paul Ricoeur., 2006, p. 39.
149
A ontologia do possível relaciona-se diretamente à dobra da religião. A filosofia está
plenamente realizada; há os possíveis da filosofia. Do mesmo modo, a religião não está to-
talmente realizada; há os possíveis da religião. Assim, a religião não se apresenta acabada e
nem pronta; a religião está sendo. A religião carrega o aspecto aberto da hermenêutica. É
uma dobra de possíveis filosóficos e teológicos. Portanto, a aproximação da dobra da reli-
gião com a filosofia se dá pela ontologia do possível. A questão do possível em Ricoeur,
entre os extremos da condição humana, parte da ontologia (ser), da possibilidade (capacida-
de) e da temporalidade (finitude). Segundo o projeto heideggeriano, a natureza humana não
é fixa e o destino do ser depende unicamente de si próprio. A compreensão do ser humano,
para Heidegger, dá-se nas possibilidades.661 De Heidegger, Ricoeur acompanha a possibili-
dade e a temporalidade, enquanto rejeita a existência “autêntica” – i.e., o ser no mundo que,
ao reconhecer sua finitude, enfrenta-a firmemente em si próprio. Ricoeur sugere o trabalho
da narrativa, sobretudo, na aporia do tempo, para a tarefa do reconhecimento do si.662 A
obra Tempo e Narrativa é, neste sentido, a proposta mais original de Ricoeur. Segundo Va-
nhoozer,
Ricoeur oferece uma “correção narrativa” ao projeto de Heidegger, a qual
confere uma orientação mais promissora à noção da existência autêntica e
coloca a análise das possibilidades existenciais em fundamentos hermenêu-
ticos firmes.663
A narrativa – destaque para os mitos – oferece, em sua condição da narração, possi-
bilidades para o ser que vão além da imediatidade do mundo. A exemplo, a narrativa da
queda, como analisada em A Simbólica do Mal, já contém em si a possibilidade para o bem
ou para o mal. Não por acaso os primeiros trabalhos de Ricoeur, motivados pela fenomeno-
logia, privilegiaram a questão da vontade. A filosofia da vontade segue a fenomenologia
eidética de Husserl, a reflexão noemática. Em Método e tarefas de uma fenomenologia da
vontade, Ricoeur trabalha com a relação da percepção e a aparência no ato da consciência e
retoma a originalidade do método fenomenológico:
661 Sobre a relação de Ricoeur com Heidegger acerca do possível, cf.: DASTUR, Françoise, “ La critique ricoeu-
rienne de la conception de la temporalitédans. Être et temps de Heidegger”, In: Archives de Philosophie,
2011/4 Tome 74, p. 565-580. 662 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol 3 – O Tempo Narrado, 2010, p. 29. 663 “Ricoeur offers a "narrative correction'' of Heidegger's project which gives a more hopeful orientation to the
notion of authentic existence and puts the whole analysis of existential possibilities on firmer hermeneutical
foundations.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in her-
meneutics and theology, 1990, p. 19-20.
150
A fenomenologia aposta na possibilidade de pensar e de nomear, até na flo-
resta dos afetos, até na corrente do fluxo de sangue. A fenomenologia
aposta nesta discursividade primordial de todo vivido que o torna apto para
uma reflexão que seja implicitamente um “dizer”, um légein. Se a possibi-
lidade de dizer não estivesse inscrita no “querer dizer” do vivido, não seria
a fenomenologia o lógos dos phainómena.664
Sem tomas grandes desvios, vale notar, para a discussão da ontologia do possível na
dobra da religião, a contribuição da fenomenologia com a intencionalidade, i.e., a primordi-
alidade da consciência de algo. O significado (a essência, i.e., o eidos, segundo Husserl) de
algo, adiantando o recorte da tese, implica na variedade de possibilidades da essência. A
variação imaginária é um dizer dos possíveis do que é manifestado, de acordo com a per-
cepção da essência do objeto visado.665 Trata-se, pela questão do ser, no nascimento da fe-
nomenologia, do problema autônomo da maneira de aparecer das coisas.666 A questão do
possível recai sobre o próprio método fenomenológico de Ricoeur, no qual os princípios
fenomenológicos do que é manifestado e percebido são incorporados na dialética das possi-
bilidades. Segundo ele, ao analisar as possibilidades da fenomenologia,
há uma terceira possibilidade para a fenomenologia: é que ela não esteja
nem em tensão com uma ontologia, nem a caminho para a sua supressão
em uma ontologia; é que ela seja a redução sem retorno de toda ontologia
possível; é que não haja nada a mais no ser ou nos seres senão aquilo que
aparece ao homem e pelo homem.667
Na ontologia do possível, a definição da essência de algo pode ser empreendida co-
mo “o conjunto imaginado de suas possibilidades”668. No trabalho fenomenológico da von-
tade, a fenomenologia, enquanto a tarefa do conhecimento de si, é a “a exegese de si mes-
mo” [Selbstauslegung]669. Na tarefa da exegese de si mesmo, pela imaginação das possibili-
dades, o possível é anterior ao real. “A presença do homem no mundo”, escreve Ricoeur em
O Voluntário e o Involuntário, “significa que o possível precede o real e abre o caminho
para ele; uma parte do real é uma realização voluntária de possibilidades antecipada por um
664 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 65. 665 Em Meditações Cartesianas, Husserl exemplifica com a imagem da mesa, cujos os componentes básicos que
formam a mesa são invariáveis, independente da posição, tamanho e cor do objeto visado. 666 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 150. 667 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 154. 668 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics
and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 21. 669 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 14.
151
projeto”670. O projeto do qual Ricoeur se refere trata-se da possibilidades da potencialidade
de cada indivíduo. Evidentemente, a possibilidade é delimitada pelas condições que são
oferecidas ao indivíduo. Para retomar um exemplo de O Voluntário e o Involuntário, assim
como um mundo de possibilidades é aberto ao passageiro que embarca em um trem, o mes-
mo mudo é limitado pelas possibilidades oferecidas pela técnica do trem. Portanto, a ordem
da existência, na reflexão ricoeuriana de mundo, é preferível à ordem das coisas. A fenome-
nologia de Ricoeur é pautada por estas considerações ontológicas e existenciais e segue na
direção de outras possibilidades mais, como a possibilidade de uma vida cuja dobra do ser
encontra-se na religião.
III.3.2 Imagens do possível
Fundamental para o método da ontologia do possível é retomar a hermenêutica do
distanciamento e a via longa de Ricoeur na dimensão da possibilidade. A ontologia do pos-
sível se encontra entre dois polos alternativos: a onto-teologia tradicional, que pensou o ser
enquanto substância ou presença, como em Platão, por um lado, e a desconstrução desta
onto-teologia, proposta por Derrida como “metafísica da presença”. A via longa de Ricoeur,
que evita as duas extremidades, contém a promessa de que os seres humanos, frágeis e fini-
tos, são capazes apesar de. Neste sentido, Ricoeur segue a filosofia de Merleau-Ponty onde
o Eu posso [Je peux] precede o Eu penso [Je pense].
Para entender bem esse termo capacidade, é preciso voltar ao “eu posso”
de Merleau-Ponty e estendê-lo do plano físico ao plano ético. Sou esse ser
que pode avaliar suas ações e, estimando bons os objetivos de algumas de-
las, é capaz de avaliar-se, estimar-se bom. O discurso do “eu posso” é sem
dúvida um discurso em eu. Mas a tônica principal deve ser posta no verbo,
no poder-fazer, ao qual corresponde no plano ético o poder-julgar. A ques-
tão é então saber se a mediação do outro não é necessária no trajeto da ca-
pacidade à efetivação.671
670 “The presence of man in the world means that the possible precedes the actual and clears the way for it; a part
of the actual is a voluntary realization of possibilities anticipated by a project” RICOEUR, Paul, apud VA-
NHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and
theology, 1990, p. 22. 671 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro, 2014, p. 198.
152
Em primeiro lugar, é preciso apoiar-se com solidez na fenomenologia do “eu posso”.
Enquanto discurso do eu, a tarefa da hermenêutica no si já apresenta uma saída para a reli-
gião em relação íntima com a filosofia. Desde a dynamis de Aristóteltes até o conatus de
Espinoza, Ricoeur desenvolve uma fenomenologia do possível que abre novas imagens pos-
síveis para a religião, cf. registrado no artigo The Power of the Possible.672 Em uma confe-
rência, ele menciona a importância da “fenomenologia do Eu posso”:
A analogia da ação se joga sobre uma fenomenologia altamente diferencia-
da do eu posso falar, eu posso agir, eu posso narrar e me responsabilizar, a
saber, a capacidade de designar a mim mesmo. Então, eu diria que é a fe-
nomenologia do eu posso que contrasta e me permite privilegiar a leitura
do dunamis-energieia no nível de sua capacidade de articular o discursos
fenomenológico.673
A atestação, ao lado do testemunho, tem no indivíduo religioso o destino da religião.
No artigo “O destinatário da religião: o homem capaz”, Ricoeur fundamenta no ser humano
capaz a reflexão acerca do destino da religião. O próprio ser humano capaz é o destinatário
da religião, cuja experiência humana e expressões míticas encontram compreensão e expli-
cação na esfera do sagrado. Opondo-se a qualquer dicotomia entre ética e ontologia, o ser
humano capaz, na tarefa negativa e no reconhecimento de si, examina a contribuição da
religião para o indivíduo e a sociedade. Segundo Ricoeur, a religião se reporta ao ser huma-
no capaz para transformar o auto-conhecimento em reconhecimento e ação diante da que-
da.674 Este movimento é viável na medida em que o teônimo desdobra as capacidades e pos-
sibilidades do ser.
672 Cf. RICOEUR, Paul. “The Power of the Possible”, In: KEARNEY, Richard. Debates in Continental Pholoso-
phy: Conversations With Contemporary Thinkers. Fordham University Press: New York, 2004. 673 “L’analogie de l’agir se joue sur une phénoménologie très différenciée du je peux parler, je peux agir, je peux
me raconter et de l’imputabilité, à savoir la capacité de me désigner moi-même. Alors je dirais que c’est la
phénoménologie du je peux qui tranche et qui me permet de privilégier la lecture du rapport dunamis-
energieia au niveau de sa capacité d’articuler le disours phénoménologique”. RICOEUR, Paul apud
KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle.
L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, 2006, p. 40. 674 Cf. “Le destinataire de la religion: l’homme capable”. Archivio di Filosofia (Filosofia della religione tra etica
e ontologia) 64/1-3 (1996) 19-34. Reproduit dans Philosophie de la religion entre éthique et ontologie. Édité
par M. OLIVETTI, Padoue: Casa Editrice Dott, 1996.
153
III.3.3 Um nome divino possível, um ser humano possível
Richard Kearney, motivado por Ricoeur, desenvolve a questão do possível e apro-
funda a esfera do ser humano capaz e do Deus capaz. O percurso do reconhecimento do ser
humano diante às narrativas que constituem seu mundo leva à uma ontologia do possível, à
partir da capacidade que está ao alcance da humanidade. Na teologia, este ser humano capaz
é caracterizado por uma escatologia do possível. É neste sentido que o nome divino inaugu-
ra não apenas uma outra ontologia, mas, também, uma ideia de um Deus capaz.675 Segundo
Kearney, o aspecto central da possibilidade ricoeuriana está no lugar entre a fragilidade e a
capacidade humana, entre o sofrer e o agir. Tal lugar não é negligenciável para Ricoeur. Há
uma via media neste lugar.676 A ontologia do possível se encontra entre dois polos alternati-
vos: por um lado a onto-teologia tradicional (que pensou o ser enquanto substância ou pre-
sença) e por outro a desconstrução desta onto-teologia (proposta por Derrida como “metafí-
sica da presença”). A via media de Ricoeur, que evita estas duas extremidades, contém a
promessa de que os seres humanos, frágeis e finitos, são capazes apesar de tudo.
Assim, a fenomenologia do possível de Ricoeur está inserida no domínio da ação da
paixão humana. O Eu posso está estruturado na ideia do ser que age e sofre. “O ser humano
como ser ativo/eficaz/dinâmico”677. É neste sentido que Ricoeur chega à uma fenomenolo-
gia da atestação678. Se para Aristóteles o poder [la puissance] pode ser conhecido somente
pelo ato (deve-se conhecer o ato para conhecer o poder), para Ricoeur a atestação é “um
conhecimento do poder”679. Este conhecimento de poder está diretamente relacionado à
questão do ser que encontra a sua força na nomeação do nome divino, à questão do ser que
atesta uma expressão-limite que lhe confere força e sentido; a exemplo, a manifestação do
nome divino no Monte Sinai.
675 KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle.
L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, 2006, p. 39. 676 Por via media entende-se o caminho do meio, o equilíbrio entre extremidades. KEARNEY, Richard.
“L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle. L’homme capablre –
Autour de Paul Ricoeur. p. 40. 677 Cf. “A Colloquio con Ricoeur”, In: TURALDO, Fabrizio. Verita de Metodo: Indagini su Paul Ricoeur. Il
Poligrafo: Padoue, 2000. 678 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 42. 679 RICOEUR, Paul apud KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors
série, Revue trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 42.
154
III.3.4 Eu sou o que sou: entre Aristóteles e o Deus do Sinai
A auto-apresentação de Deus no Sinai é um dos eventos com maior foco de reflexão
de Ricoeur em seu trabalho sobre a hermenêutica bíblica. Para Ricoeur, a nomeação do no-
me divino configura mundos – os quais, no âmbito da religião, seriam as tradições. As tra-
dições são espaços de orientações para a vida, onde organiza-se a fé da decisão e orientação
moral pela memória cultural e os usos da linguagem, pelo valor da semântica das palavras,
pela crença no nome divino e suas práticas ritualísticas.680 É deste modo que uma das faces
mais importantes da religião encontra-se na esperança.681 A teologia do nome divino denota
esperanças que se confrontam com o mundo da vida, de modo que a nomeação do divino
inaugura um novo horizonte. A esperança não é apenas expectativa. A vida mediada pela
narrativa bíblica é uma vida que traz em si a esfera da esperança na reflexão diária.682 A
manifestação originária de Deus no texto bíblico – considerada por muitos biblistas como a
porta de entrada à narrativa bíblica – encontra-se na revelação de Deus a Moisés no Monte
Sinai.683 É diante nessa narrativa que explora-se a dinâmica do nome divino que aporta es-
perança (e outras qualidades pertinentes à vida religiosa abertas pela dobra da religião no
trabalho da hermenêutica do si).
O ponto de partida desta ontologia é a articulação crítica entre a ontologia grega de
Aristóteles e a teologia bíblica do evento da revelação de Deus no Monte Sinai. Em Êxodo
3,14 encontra-se o famoso registro da nomeação de Deus684, importante tanto para a religio-
sidade judaico-cristã como para a filosofia de Paul Ricoeur: 685אהיה אשר אהיה, ehyeh asher
ehyeh, comumente traduzido por “eu sou o que sou”. A tradição associou o ser hebraico e o
ser grego. Entretanto, uma pequena nota exegética deve ser feita. “O Ser para os gregos
nunca coincide com um Deus”686. Enfatiza Ricoeur: “Foram as ‘teologias do Antigo Testa-
mento’, como diz Gilson, que introduziram uma problemática da existência distinta daquela
680 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 103-104. 681 Tal tema será contemplado ao final deste capítulo. 682 Teologias como a de Jürgen Moltmann deram a devida ênfase neste aspecto da esperança na vivência religio-
sa. 683 Para o aprofundamento acerca deste acesso privilegiado, conferir os textos de Von Rad e Milton Schwantes. 684 Ricoeur menciona Etienne Gilson e o seu trabalho sobre a “metafísica do Êxodo” (In: The Spirit of Medieval
Philosophy, New York: Charles Scribner’s Sons, 1936), no qual Gilson declara: “O Êxodo estabelece o
princípio a partir do qual a filosofia cristã será erigida” GILSON, Etienne apud RICOEUR, Paul. Pensando
Biblicamente, 2001, p. 375. 685 Cf. KITTEL, Rudolf, Biblia Hebraica, p. 82. 686 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 376.
155
da ousía”687. No caso da tradição grega na hermenêutica bíblica, o tradutor da Septuaginta
insere nela o verbo grego ειμι688, introduzindo o conceito grego do “ser entidade” (“Eu sou
o ente”689). Segundo Werner Schmidt, um dos principais teóricos sobre o mundo do Antigo
Testamento, o ser do Antigo Testamento “não significa um ser em si absoluto”690, mas, con-
forme sugeriu o biblista Milton Schwantes, seu discípulo, um “estar aí/presente/atuante”691.
De certo modo, são sugestões de tradução, na tentativa da aproximação de um possível sen-
tido mais fiel, da enigmática fórmula do nome de Deus que não poupou intérpretes ao longo
dos séculos.692 A tradução maios apropriada, segundo Ricoeur, é a de Franz Rosenzweig,
cuja interpretação coloca o verbo no gerúndio: não mais o Ser eterno, nem mesmo o existen-
te [der Seiende], mas o “existindo” [der Da-Seiende].693 Ricoeur se interessou pelo episódio
do Êxodo 3,14 e o verbo ser, pois, para ele, esta narrativa comporta tanto a esfera da voca-
ção (Moisés) como a da especulação (a questão do verbo ser). As traduções de Martin Buber
e de Franz Rosenzweig demonstram uma espécie de irrupção especulativa no meio narrativo
devido a utilização particular que se fez do verbo ser. Conforme conclui Ricoeur sobre essas
traduções, “assim, é preciso dar lugar, na Bíblia, a um registro especulativo”694. A especula-
ção, que também faz parte da Bíblia, reforça a existência do pensamento bíblico. Há uma
maneira de pensar e de ser não filosófica. O principal contraste da maneira de pensar e ser
não filosófica é dialogado com Aristóteles.
Como a ontologia de Aristóteles se aproxima da revelação do Sinai? A ontologia é a
arte da distinção e da centralidade, em um único ponto, do discurso filosófico. Nesta centra-
lidade, Aristóteles propõe, no livro IV, da Metafísica, o estudo da ontologia em quatro eta-
pas: as categorias; o ser em ato e o ser em potência; o ser verdadeiro e o ser falso; o ser ne-
687 A ontologia de Aristóteles baseia-se na transição do ser enquanto ser para a substância (ousía), constratan do
com a ontologia do Sinai, cujo movimento não se atém na ousía, mas aponta para uma narrativa da criação
da não-filosofia do Antigo Testamento. Cf. RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristó-
teles, 2014, p. 264. 688 Septuaginta: Id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes. Edição de Alfred Rahlfs. Stuttgart:
Privileg. Weertt. Bibelanstalt, 1950. v. 2. 689 SCHIMIDT, Werner H., A fé do Antigo Testamento, 2002, p. 105. 690 SCHIMIDT, Werner H., A fé do Antigo Testamento, 2002, p. 104. 691 SCHWANTES, Milton. História de Israel: local e origem. São José dos Campos: Editora Com Deus, 2004.
144p., p. 154. 692 Para um estudo mais detalhado sobre a variedade de interpretações de Êxodo 3,14, cf. o artigo “Êxodo 3.14:
da interpretação à tradução” In: RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001. 693 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 383. 694 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236.
156
cessário o ser por acidente.695 Destas, a relação entre ato e potência encontram-se em posi-
ção privilegiada no pensamento de Ricoeur. Ao trabalhar sobre o limite das categorias do
ser em Aristóteles, Ricoeur constata que indiferença na existência de um ser em Aristóteles,
de modo que a relação entre Deus e os seres se situa na causalidade ao invés da eficiência
produtora.696 A este respeito, Ricoeur sugere: “É o encontro com o Deus de Israel – que
mais ‘cria’ as coisas do que deixa imitar seu sereno pensamento do pensamento – que pro-
vocará a renovação do aristotelismo”697. Não apenas a renovação do aristotelismo, mas do
próprio pensamento na religião, cuja motivação encontra-se no deslocamento da ontologia
quebrada para as possibilidades do ser. Ricoeur, portanto, trabalha com a questão da potên-
cia aristotélica, mas não se restringe à ela. Há a ontologia do possível em Aristóteles e há a
ontologia do possível no Sinai. Ricoeur extrai do Sinai a metafísica tradicional. “Eu sou o
que sou”, muitas vezes interpretado como o absoluto, é recebido por Ricoeur no sentido de
Martin Buber e Franz Rosenzweig: “eu sou o que serei”. Essa recepção privilegia os possí-
veis históricos para a nomeação de Deus. O teônimo, na reflexão aporética, vivencia possí-
veis históricos. No Antigo Testamento, o possível histórico de Deus vai desde um nome que
promove reconhecimento (Sinai) até um Deus militar (Israel). Ao não identificar Deus como
uma metafísica divina, Ricoeur abre os possíveis divinos, de modo que no possível histórico
de Jesus, Deus será um Deus gracioso, um Deus amoroso, um Deus que aponta um horizon-
te para a humanidade. Em suma, ao aproximar-se de Aristóteles, Ricoeur reinterpreta o filó-
sofo grego, como também o Sinai, anunciando um possível divino que caminha ao lado da
filosofia do justo, do bem e da ética.
Nos limites da tradução e dos encontros interpretativos ao longo dos séculos, “se-
gundo Ricoeur, trata-se de uma transformação escatológica da ontologia grega”698, escreve
Kearney sobre o movimento dinâmico da ontologia do nome divino. Segue Ricoeur: “É re-
almente o verbo ser, mas sem significado encontrado pelos gregos”699, conclui ele.
695 “Selon les catégories, selon l’être en acte et l’être en puissance, selon l’être vrai et l’être faux, selon l’être
nécessaire et l’être par accident”. Cf. RICOEUR, Paul. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia
universalis. XII, Paris, Encyclopaedia Universalis France, 1972, p. 97. 696 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 263. 697 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 263. 698 “Ricoeur voit bien qu’il s’agit d’une transformation eschatologique de l’ontologie grecque” KEARNEY,
Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle. L’homme
capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 45 699 “C’est vraiment le verbe être, mais dans aucune des significations rencontrées par les Grecs”. RICOEUR,
Paul apud KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue
157
Há uma espécie de alargamento do significado do verbo ser, que é o signi-
ficado de ser-com, de ser-fiel, é o ser do acompanhamento de um povo,
mas é realmente um outra dimensão de ser. Quando Aristóteles disse que
havia uma variedade de significados do ser, ele não previa o ser do Êxodo
3.14. Então, eu sou a favor do alargamento da ontologia em vez de uma re-
versão da passagem da ontologia do domínio grego ao domínio hebraico700.
Importante destacar o excesso de significação implícito no têonimo. Esse excesso,
segundo Ricoeur, “cria uma situação hermenêutica excepcional: a abertura para uma p lura-
lidade de interpretações do verbo usado”701, no caso, o verbo de Deus. A ontologia do nome
divino no Sinai, a despeito dos comentários e tentativas de tradução do nome ao longo da
história do pensamento, adianta a ontologia do possível, a qual, segundo Ricoeur, o “eu sou
o que sou” contém a dimensão da promessa, da esperança e, consequentemente, da possibi-
lidade, do ser possível. A revelação do nome divino, em sua dimensão ontológica, tornar-se,
deste modo, em um advento do presente e do futuro.702 É pela possibilidade de ser, que
aponta para uma promessa e uma esperança, que há dinamismo no nome divino, notou Ri-
coeur no capítulo “Da interpretação à tradução”, em Pensar a Bíblia703. Pelo dinamismo do
nome divino, no exercício criativo e humilde da interpretação, vieram inúmeras interpreta-
ções sobre o verbo de Javé, a exemplo, “eu sou a vivência”, relacionado ao verbo divino ao
verbo arcaico hawah, jahwesh, i.e., o vivente, aquele que vive, conforme notou Abraham
Heschel; ou, ainda, “eu sou o que serei”, como propõe Martin Buber em sua tradução do
Antigo Testamento para o alemão. São traduções dinâmicas e que envolvem mundos, mun-
dos que receberam a narrativa do nome divino e traduziram-na para suas respectivas cultu-
ras. Outra tradução convincente, segundo Ricoeur, é a de Harmut Gese, em O Nome de
Deus no Antigo Testamento: “Eu me mostrarei no que me mostrarei, como aquele que se
trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 45 700 “Il y a une sorte d’élargissement du sens du verbe être, c’est le sens de l’être-avec, de l’être-fidèle, c’est l’être
de l’accompagnement d’un peule, mais c’est vraiment une autre dimension de l’être. Quand Aristote a di
qu’il y a une variété de significations de l’être il n’avait pas prévu l’être de l’Exode 3.14. Donc, moi je suis
pour cette sorte d’élargissement de l’ontologie plutôt que pour un renversement de l’ontologie en passant du
domaine grec au domaine hébraïque”. RICOEUR, Paul. Colloquio, p. 254. apud KEARNEY, Richard.
“L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle. L’homme capablre –
Autour de Paul Ricoeur, p. 45 701 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 359. 702 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, 2006, p. 45 703 Título traduzido ao português no Brasil como Pensando Biblicamente. Cf. RICOEUR, Paul. “De
l’interpretation à la traduction”, In: RICOEUR, Paul. Penser la Bible. Éditions du Seuil: Paris, 1998.
158
mostrará”704. É na variedade da extensão polissêmica que o nome divino é recebido em uma
determinada sociedade e cultura, onde é compreendido, traduzido e vivenciado pelas pesso-
as que se permitem mediar através dos conteúdos deste nome. Tal dinâmica de transmissão
e recepção, a despeito das limitações ou interpretações de cada pensador, denota um modo
de ser, que é o modo de ser interpolado pela narrativa do nome divino.
III.3.5 Eu posso o que posso: uma ontologia do nome divino
A articulação crítica entre a ontologia grega de Aristóteles e a teologia bíblica do
evento da revelação de Deus no Monte Sinai é fundamental para a compreensão da dobra da
religião na origem da possibilidade, pois o diálogo entre a ontologia do possível de Aristóte-
les e a ontologia do possível no Sinai denotam que a própria dobra da religião implica em
possíveis. A hermenêutica do si, no coração do reconhecimento de si mediado pelo teônimo,
promove a atitude da dívida e da confiança pelo movimento do “eu posso” do homem ca-
paz.705 Deste modo, a “possibilidade de ser” é escatológica – le possible eschatologique.706
A ontologia do Sinai, em sua esfera dinâmica e larga, implica na vivência da esperança e da
escatologia no âmbito da possibilidade de ser. No caso da ontologia do nome divino, para
Ricoeur, indo além do diálogo entre Aristóteles e o Sinai, surge um alargamento, uma “bre-
cha”, que Kearney sugere acontecer na passagem do homem capaz para o Deus capaz. A
escatologia torna-se, portanto, o “segredo” intelectual e espiritual, de acordo com Ri-
coeur.707 A passagem do ser ao além do ser – característica ainda não muito clara na obra de
Ricoeur, mas que é perceptível em uma análise minuciosa de suas preocupações ontológicas
– acontece discretamente em um espaço onde surge, sucintamente, ao final de algumas aná-
lises hermenêuticas e religiosas, um horizonte escatológico no qual Ricoeur pode, à partir
dele, articular teologia e filosofia – movimento que realizou com cuidado e ressalvas duran-
te seu trabalho, para que não fosse confundido por teólogo.
704 “Ich erweise mich als der ich mich erweisen werde”, GESE, Harmut apud RICOEUR, Paul. Pensando bibli-
camente, 2001, p. 384. 705 Cf. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, p. 10. 706 Cf. cf. Ricoeur em “The Power of the Possible”, o pouvoir-être ou, ainda, para Kearney, o peut-être 707 Cf. RICOEUR, Paul. “The Poetics of Language and Myth”, In: Debates in Continental Philosophy. Published
by Fordham University Press. Published in print August 2004, p. 99.
159
Deste modo, é fundamental notar ainda que a escatologia em Ricoeur – o horizonte
inaugurado pela nomeação do divino – é, segundo Kearney, a escatologia do Deus capaz
que vai ao encontro litúrgico do homem capaz. Este encontro dá-se desde um entrelaçamen-
to confessional, como nas narrativas ritualísticas708, até o quiasma erótico no livro bíblico
Cântico dos Cânticos, onde está a chamada “A Metáfora Nupcial”709. Portanto, para Kear-
ney, o centro da escatologia ricoeuriana estaria no selamento da aliança no ser humano tanto
como sabedoria e desejo. É neste ponto da hermenêutica que Ricoeur fala de uma nomeação
de um Deus discreto que respeita o incógnito da intimidade, de corpos com outros corpos.
E, conforme elucida Kearney, é precisamente no entre-dois deste corpo-a-corpo que o dese-
jo divino atravessa o desejo humano.710 É no vai-e-vem nupcial que o Eu posso do homem
capaz encontra seu eco no Tu podes do Deus capaz – capaz de ser nomeado –, e vice-versa,
diante de uma alteridade burberiana autêntica do Eu-Tu. É, portanto, um movimento duplo
de sensibilidade e espiritualidade, de imanência e transcendência, de finitude e infinitude,
que comporta a função metafórica do nome divino em Paul Ricoeur.711 O resultado do traba-
lho do ser humano capaz na ontologia do nome divino reside na esperança.
III.3.6 A esperança da ontologia
Após a análise das esferas da origem e da ontologia do possível, a dobra da religião
alcança uma das esferas mais nítidas na hermenêutica bíblica de Ricoeur: a esperança. A
filosofia do possível e o projeto da esperança fazem pensar a dobra da religião na ontologia
quebrada. Segundo Gilbert Vincent, para Ricoeur o aspecto mais importante da religião está
na esperança.712 Talvez a esperança é o assunto mais visível em uma aproximação geral
sobre a religião no filósofo. Entretanto, não se trata da única originalidade no pensamento
religioso de Ricoeur. Sua palpabilidade orienta para uma reflexão além das tradicionais
questões da fé ou do amor. A leitura de Ricoeur do texto A religião nos limites da simples
708 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 46 709 Cf. RICOEUR, Paul. Penser la Bible. Éditions du Seuil: Paris, 1998. 710 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 46 711 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-
trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 46 712 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 21.
160
razão, de Kant, indica uma justificação filosófica da capacidade e da esperança.713 Encon-
tra-se no centro da questão o desdobramento da religião em sua tríplice textura, i.e., as per-
guntas pela espera, pelo saber e pela ação: “Que me é permitido esperar?”, “Que posso sa-
ber?”, “Que devo fazer?”. A esperança responde algumas aporias, sem a pretensão de esgo-
tá-las. A aporia da morte, no coração do mal, só é resolvida com o salto da esperança, i.e., o
paradoxo da ressurreição. O mal arruína as possibilidades de modo que, para Ricoeur, a
questão mais forte trata-se da disposição para o bem. A ressurreição é a linguagem mito-
poética para a possibilidade de um pensamento que não se restringe à esfera do trágico. En-
quanto a morte é, na linguagem de Jürgen Moltmann, “o machado do nada”714, a ressurrei-
ção, para Ricoeur, é um sinal metafórico de que a vida não termina com a morte. Em suma,
a morte é acompanhada de sentido, de modo que a reflexão da morte, ao ser respondida com
a ressurreição, aponta para o trabalho da própria aporia do mal. Segundo ele, o mal radical e
a esperança se cruzam e recruzam no pensamento religioso: “o mal afetando o processo da
religião do começo ao fim, e a esperança afirmando-se estritamente contemporânea à irrup-
ção do mal”715. O cruzamento do mal e dos meios de regeneração constituem a estrutura da
esperança. A esperança é uma das direções mais longas da dobra da religião, o prolonga-
mento das aporias pela reflexão duplamente mediada: a explicação filosófica e a tradição
religiosa. Trata-se, portanto, de um trabalho hermenêutico no lugar da crítica, uma vez que
Ricoeur acompanha a hermenêutica filosófica da esperança de Kant.
A dobra da religião adentra numa esfera onde a aporia implica teologicamente a
possibilidade de pensar o que que realmente existe de possível. A primeira tarefa deste em-
preendimento é pensar a possibilidade de salvação. A possibilidade de salvação recorre às
aporias para as quais ela aponta. A aporia do bem e do mal e a aporia da morte para Ricoeur
é resolvido com o paradoxo da esperança, da graça e da ressurreição. A esperança, deste
modo, está no além: não um além [au-delà] substancial, mas um além de horizonte.716 He-
rança, sobretudo, de Kant, uma das maiores contribuições da religião encontra-se na tríade
713 Cf. RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 21. 714 A redução do tudo ao nada, cf. Cf. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança, 2010, cap. III, pp. 181-
288. Também em: RICOEUR, Paul. “Le Dieu crucifié de Jürgen Moltmann”, In: Les quatre fleuves n°4, Pa-
ris, Seuil,. pp. 109-114. 715 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 21. 716 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 22.
161
cristã de fé, esperança e caridade. Parte-se das tensões possíveis quando Ricoeur propõe a
reflexão da redenção. Ele enfatiza o teor da utopia: “a ideia de utopia tem, de fato, grande
importância teológica: é um dos caminhos indiretos de esperança, um dos desvios pelos
quais a humanização do homem é buscada tendo em vista uma divinização final”717. A espe-
rança é a trilha que promove o movimento do ser para o além do ser. Para ilustrar, é possí-
vel comparar o pensamento de Ricoeur à metáfora de uma montanha: o indivíduo sobe uma
montanha e alcança o limite. O que está além, do outro lado, o lado de lá, é o possível pela
fé. O lado de cá é o possível pela esperança. Não se trata de projetar o ser para o lado de lá,
o além, mas descer a montanha e viver o lado de cá com a fé e esperança (a segunda inge-
nuidade)718. A dobra da religião abre caminhos os quais, segundo Ricoeur, não seriam pos-
síveis na ontologia mesma. Em suma, a imagem da passagem do ser para o além do ser é o
movimento dinâmico e criativo da dobra na religião. Não se trata de uma metafísica em di-
reção a qualquer transcendência nomeável, mas da mudança de horizonte: um novo horizon-
te aberto em ato esperançoso. A religião não alcança apenas a compreensão da fé, intellec-
tus fidei, mas, principalmente, a compreensão da esperança, intellectus spei.719
A compreensão da esperança envolve a adesão às ideias de ressurreição e graça. Na
dobra da religião, para além do bem e do mal e para além da aporia da morte, há a graça e
há a ressurreição. Para Ricoeur, a graça de Deus aparece na narrativa bíblica720 e na história.
Diante da dinâmica do nome divino e da esperança, em seu primeiro livro póstumo, publi-
cado em 2008, Ricoeur concluiu que a mediação de sua religiosidade pelo nome divino é
um acaso transformado em destino por uma escolha contínua.721 Este acaso (ter nascido em
lar cristão e ter recebido a tradição do nome divino que lhe fora transmitido) o fez cristão. O
que é um cristão para Ricoeur? “Um cristão: alguém que professa a adesão primordial à
vida, palavras e morte de Jesus”722. Ricoeur acompanha a tradução de André Chouraqui da
717 “The idea of Utopia indeed has great theological import: it is one of the indirect paths of hope, one of the
roundabout paths on which the humanization of man is pursued in view of an eventual divinization.” Cf. RI-
COEUR, Paul. History and Truth. Northwestern University Press: Evanston, Illinois, 1992, p. 123. 718 A crença polida pela crítica. Cf. RICOEUR. Paul. Da interpretação: ensaios sobre Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. 719 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 111-112. 720 Cf. a ilustração feita por Ricoeur sobre a parábla do bom samaritano. RICOEUR, Paul. “Le socius et le pro-
chain”, In: Histoire et vérité, Points Seuil: Paris, 2002, 408p., p. 99. 721 “‘Un hasard transformé en destin par un choix continu’: mon christianisme”. RICOEUR, Paul. Vivant jus-
qu’à la mort: suivi de fragments, 2007, p. 99. 722 “A Christian: someone who professes a primordial adhesion to the life, the words, the death of Jesus”. RIC-
OEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69.
162
palavra grega pistis (que poderia ser traduzia por “fé”) por “adesão”.723 Ricoeur adere à pro-
fundidade e ao mistério de Javé, nome que determina uma tradição e interpelação na vida,
na adesão pela leitura existencial dos Evangelhos. Esta adesão o faz refletir sobre o papel do
nome divino na vida, fazendo-o elaborar uma filosofia que vai da atestação à possibilidade,
de modo que o acaso não é mero acaso pois é assumido como escolha e transformado em
continuidade pela esperança. É neste âmbito que acontece uma teologia do nome divino em
Paul Ricoeur, sobretudo uma teologia narrativa que transmite um modo de ser, uma cora-
gem de ser, através de um nome carregado por uma tradição que transmite metáforas e mi-
tos que ajudam a viver. Este é o horizonte possível da filosofia ricoeuriana e o movimento
da dobra da religião – que será finalizado no capítulo seguinte.
III.3.7 Considerações intermediárias
A dobra da religião, enquanto leitura de mundo pelo viés da filosofia e da teologia,
além dos limites das antigas tradições e autoridades religiosas, é um laço de reconhecimento
e libertação do eu.724 O exercício hermenêutico, de cunho filosófico, explora significados do
texto cujo fim abre mundos possíveis.725 Leitura e interpretação constituem os primeiros
conceitos de uma hermenêutica geral que encontra na dobra da religião um espaço criativo
para seguir em novas interpretações. Em Ricoeur, é mais importante a pluralidade dos gêne-
ros literários à especificidade de cada natureza literária. Igualmente, tão importante é a vari-
edade de percursos e cruzamentos implicados na relação entre texto e vida do leitor. A re-
cepção do texto sagrado e a aplicação dele na vida se torna, portanto, numa questão central,
uma vez que, segundo Ricoeur, “pensar a ‘palavra de Deus’ é aceitar engajar-se em cami-
nhos que talvez se percam”726. O caminho perdido não é um fim ou término de uma cami-
nhada, mas a figura da dobra que implica em caminhos possíveis. O caminho que pode se
perder é a possibilidade que surge no desdobramento de uma ação interpelada pelo sagrado.
Heidegger citado por Ricoeur:
723 RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort, 2007, p. 101. 724 Cf. RICOEUR, Paul. “Le sujet convoqué. A l’école des récits de vocation prophétique [conférence à l’Institut
Catholique de Paris, 1987]” Revue de l’Institut Catholque de Paris 28 (1988) octobre-décembre, 83-99. 725 DOSSE, François. Paul Ricoeur: un philosophe dans sons siècle, 2012, p. 240. 726 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 335.
163
É apenas a partir da verdade do ser, que se deixa pensar a essência do Sa-
grado. É somente a partir da essência do Sagrado que se deve pensar a es-
sência da divindade. É somente na luz da essência da divindade que pode
ser pensado aquilo que deve nomear o nome de Deus.727
Ao comentar sobre o hiato que existe entre a nomeação de Deus no Sinai e o restante
do texto bíblico, Ricoeur sugere que a polissemia do teônimo é produtiva e amplia a com-
preensão do si pela sua condição plural e intraduzível. “O Ser, diz Aristóteles, é dito de
muitas maneiras. Por que não dizer que os hebreus pensaram o ser de uma maneira no-
va?”728, questiona Ricoeur. A dobra da religião enfatiza a possibilidade de pensamentos
novos pela própria dinâmica do nome de Deus. Um destes sinais é respondido por Ricoeur
na cristologia, pela qual a proposição “Deus é um” passa, na leitura do Novo Testamento,
para “Deus é amor”.729 O desvio poético é libertador e, ao mesmo tempo, possibilitador.
“Submeter Deus à disjunção de ser ou não ser, uma disjunção humana por excelência, é
submeter Deus a um critério de existência, a condições de possibilidade, portanto, a um
princípio de razão sobre o qual poderíamos manter domínio”730. Para a fenomenologia do
possível e o movimento da dobra da religião, toda restrição que o teônimo pudesse ampliar
é resistida, no ato reflexivo, nas implicações do pensamento que passou pelo crivo da crítica
– sobretudo a crítica de Nietzsche. Neste sentido, a ambição de qualquer tentativa de buscar
a essência de Deus, segundo Ricoeur, “deve ser substituída pela força do testemunho e pela
dimensão ética da Revelação”731. Ética e testemunho são algumas das dobras da religião no
pensamento de Ricoeur que apontam para o elemento da esperança. A compreensão da es-
perança é um dos frutos mais belos da religião732, tendo em sua fundação simbólica a figura
de Cristo como um autêntico esquema de esperança.733 A leitura do texto bíblico é feita à
luz da esperança. Nesta matriz, a compreensão da narrativa repousa na dialética da ética e
da moral. Enquanto as interpretações tradicionais inclinam-se à moral, em detrimento da
727 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo, apud RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações,
1978, p. 335. 728 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 382. 729 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 382. 730 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 381. 731 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 380. 732 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 74. 733 “la figure christique soit un authentique schématisme de l'espérance”. RICOEUR, Paul. Lectures 3, Paris: Le
Seuil, Points Essais, p. 32.
164
visão institucional, Ricoeur propõe a desconstrução deste modelo de leitura para uma reno-
vação enriquecedora da narrativa bíblica pela interpretação ética da esperança.734
A dobra da religião, portanto, converge da ontologia quebrada e das fraturas para
uma ontologia do possível e uma poética da esperança.735 Na variedade das possibilidades
do ser, dentre os textos bíblicos preferidos de Ricoeur, um em especial, em Cântico dos
Cânticos, ilustra poeticamente a reflexão proposta da origem de um mundo possível no pa-
pel da linguagem religiosa736:
Debaixo da macieira te despertei, ali esteve tua mãe com dores; ali esteve
com dores aquela que te deu à luz. Põe-me como selo sobre o teu coração,
como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro
como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veemen-
tes labaredas. As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios
afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, cer-
tamente o desprezariam. (Cânticos 8:5-7)
Desta forma, há um horizonte existencial e ético, original e justo, apontado pela do-
bra da religião. Neste movimento, o engajamento do si e das possibilidades do ser, na di-
mensão poética na qual o pensamento de Ricoeur abarca, remetem, ao final, à uma dobra
existencial possível no espiral de uma antropologia filosófica.
734 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 81. 735 No capítulo sobre “Penser en philosophe la traadition judéo-chrétienne”, François Dosse demonstra o hori-
zonte da poética na filosofia de Ricoeur, possível pelo trabalho na esfera da esperança religiosa. Cf. DOSSE,
François. Paul Ricoeur: Un philosophe dans son siècle, 2012, p. 226. 736 RICOUER, Paul apud KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors
série, Revue trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, 2006, p. 46
CAPÍTULO IV
A DOBRA DA RELIGIÃO:
O ESPIRAL DE UMA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
“Acreditar apenas nas possibilidades não é fé,
mas mera filosofia”
Sir Thomas Browne, Religio Medici
A repercussão do trabalho de Ricoeur sobre a religião na teologia e na filosofia é
significativa. O livro de Gilbert Vincent, La religon de Ricoeur737, utilizado nos momentos
decisivos dessa pesquisa, demonstra a abrangência da religião no pensamento de Ricoeur.
Sua contribuição não se restringe apenas ao conhecimento da religião, mas oferece um pa-
norama seguro à tese acerca dos pontos de contato do projeto filosófico do autor com a reli-
gião. Entretanto, dentre os pensadores cuja influência de Ricoeur foram mais explícitas em
suas teses, Richard Kearney é, talvez, um dos mais significativos738, ao elaborar uma inter-
737 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008. 738 Um dos seus trabalhos originais, fruto da hermenêutica religiosa de Ricoeur, pode ser conferido em:
KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New Jersey: Humanities
Press Internation, Inc., 1995.
166
pretação da religião cujo centro encontra-se na possibilidade de Deus enquanto ser capaz e,
por fim, a sua teoria do anateísmo.739 Motivado pelo diálogo da religião com as demais ci-
ências e pelo agnosticismo ricoeuriano, o anateísmo trata, a rigor, de um exercício herme-
nêutico que pretende retomar a possibilidade do sagrado na discussão filosófica para o sécu-
lo XXI. O subtítulo em inglês, Retornar a Deus após Deus, assim como o título em francês,
Deus está morto, viva Deus!, anunciam a ambição de se pensar Deus além do teísmo e do
anateísmo – de se ter fé mesmo após a perda da fé. Neste trabalho, a ontologia do possível é
elevada para que o encontro com o estrangeiro e o diferente inaugurem diálogos produtivos
para novos pensamentos acerca de Deus.740 Seguindo a reflexão da ontologia do possível,
em The God Who May Be, Kearney explora os horizontes abertos pela questão da possibili-
dade de Deus no pensamento filosófico e religioso na tentativa de não depositar em nenhu-
ma escola ou tradição a herança das ideias significativas para a nomeação de Deus.741 O ser
humano capaz é germinado na reflexão do Deus capaz, de modo que a tarefa do reconheci-
mento humano ganha força e sentido na devida reflexão do Deus capaz.
Jean-Luc Marion, um dos mais importantes fenomenólogos na atualidade, sobretudo
na França, demonstra heranças do legado ricoeuriano em seu trabalho filosófico. Em O Vi-
sível e o Revelado742, Marion, em estilo próprio, articula a noção do possível e da revelação
para constituir uma filosofia da religião cujo horizonte encontra-se na justificação da reve-
lação. Ao lado da tentativa em elaborar um método ao mesmo tempo eficientemente feno-
menológico e teológico743, a revelação é assumida enquanto o centro da relação do sujeito
falante e do ouvinte no qual o próprio discurso já se trata da revelação mediadora. O revela-
do é crível pela primordialidade da crença no discurso recebido a na esperança de que tal
recepção possibilite a experiência de vivência.744 A revelação, na reflexão do possível, é o
ato que torna visível as coisas essenciais do si e abre horizontes até saturar o revelado.745
Para Marion, a possibilidade de revelação desprende a fenomenologia de pretensões de mo-
739 Cf. KEARNEY, Richard. Dieu est mort, vive Dieu: Une nouvelle idée du sacré pour le IIIe millénaire:
l’anathéisme. Paris: NiL Éditions, 2011. 740 KEARNEY, Richard. Dieu est mort, vive Dieu: Une nouvelle idée du sacré pour le IIIe millénaire:
l’anathéism, 2011, pp. 338-339. 741 Cf. KEARNEY, Richard. The God who May Be: A Hermeneutics of Religion, 2002, p. 45. 742 MARION, Jean-Luc. The Visible and the Revealed. New York: Fordham University Press, 2008. 743 “The lived experience of faith remains because the I that experiences it first believes” Cf. MARION, Jean-
Luc. The Visible and the Revealed, 2008, pp. 8-13. 744 MARION, Jean-Luc. The Visible and the Revealed, 2008, p. 9. 745 MARION, Jean-Luc. The Visible and the Revealed, 2008, p. 9.
167
do que libere a força original e autêntica da fé religiosa e suas implicações.746 Em David
Rasmussen, as indicações acerca do mito e do símbolo partem da antropologia filosófica de
Ricoeur, estendendo a interpretação da mito-poética para o trabalho da linguagem mito-
simbólica.747 Olivier Abel, um dos principais curadores do pensamento e da memória de
Ricoeur hoje, resgatou o debate entre filosofia e teologia no pensamento do autor e traba-
lhou com as categorias do perdão e da promessa.748 Esses são apenas alguns exemplos, ao
lado de muitos outros que poderiam ser aprofundados749, para demonstrar a repercurssão da
hermenêutica religiosa de Ricoeur na filosofia e teologia. A releitura da teologia após a obra
de Ricoeur, feita por Dan Stiver750, levanta a filosofia reflexiva e o método da compreensão
na hermenêutia bíblica. O trabalho na hermenêutica religiosa de Ricoeur desperta a possibi-
lidade de variedades teológicas por privilegiar a filosofia reflexiva ao invés de comportar
uma dogmática ou sistemática.751 Na mesma direção, Kevin Vanhoozer destacou a impor-
tância de uma releitura da narrativa bíblica interpelada pela filosofia ricoeuriana da ontolo-
gia do possível, sobretudo a paixão pelo possível nos Evangelhos752, enquanto Rebecca
Kathleen Huskey elaborou uma filosofia centrada na esperança ricoeuriana753. Por fim, o
texto de Boyd Blundell – que mais chegou próximo da dobra da religião – desenvolveu a
noção dos movimentos de desvio e retorno, situando, precisamente, a gênese de tais ações
nas tensões estaladas entre a teologia e a filosofia.754
A breve síntese faz notar as principais heranças ricoeurianas na filosofia e teologia.
Para além dos autores mencionados, com a originalidade da tese da dobra da religião, no
746 “Christians, have no fear, be rational! And you, who do not believe in Christ, be reasonable, do not fear his
great reason!” MARION, Jean-Luc. The Visible and the Revealed, 2008, p. 145. 747 RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive In-
terpretation of the Thought of Paul Ricoeur. The Hague: Netherlands, 1971. 748 Cf. ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: La promesse et la règle. Éditions Michalon: Paris, 1996. 749 Daniel Frey, Pierre Bühler, Christophe Pisteur, Jérôme Porée, Kathrin Messner, Nanine Charbonnel, Elian
Cuvillier, Hans-Christoph Askani, Jean-Luc Petit e René Heyer, Cf. BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.)
Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique.
Editions Labor et Fides: Genève, 2011. 750 STIVER, Dan. Theology after Ricoeur: New Directions in Hermeneutical Theology. Westminster: Westmin-
ster John Knox Press, 2001. 751 Cf. SUVEN, Dan R. “One Philisipohy, Many Theologies: A Hermeneutical Spiral from Ricoeur to Theo-
logy”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and
Religion, 2011, pp. 74-75. 752 VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and
theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990. 753 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good. Peter Lang Publishing, Inc.: New
York, 2009. 754 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:
Indiana University Press, 2010.
168
primeiro capítulo dessa pesquisa foi observado que o projeto de Ricoeur, desde o início de
seu método fenomenológico até o arco hermenêutico (a hermenêutica do símbolo, a herme-
nêutica do texto e a hermenêutica da ação755) evidenciado no último estágio de suas obras,
é, segundo Gilbert Vincent, um projeto antropológico.756 A dobra da religião se apoia no
caráter antropológico da filosofia de Ricoeur para traçar as possibilidades oriundas do pen-
samento que se desdobra a partir do posicionamento duplo de referência: a adesão religiosa
e o agnosticismo filosófico. Seguindo as recomendações de Alain Thomasset, a relação en-
tre a reflexão hermenêutica filosófica e o discurso teológico é delicada e implica, necessari-
amente, em um estudo aprofundado e alargado.757 O aprofundamento e alargamento, no ho-
rizonte da pesquisa, encontra-se na dobra da religião que repercute, dentre a variedade dos
trabalhos filosóficos analisados, em um pensamento original acerca do fenômeno religioso.
Para tal empreendimento, no estágio final, a tese propõe que em Ricoeur há um espiral de
uma antropologia filosófica para a ação da dobra da religião. Neste sentido, segundo Do-
menico Jervolino, o trabalho filosófico de Ricoeur é melhor representado na imagem de um
espiral.758 A vida e a obra de Ricoeur não se encaixam no movimento de um círculo, o qual
se fecharia em si mesmo, em retornos exclusivos. Em Ricoeur, o fim denota um novo início,
sem o abandono do movimento anterior, mas em direção ao enriquecimento do universo da
linguagem pelo desdobramento no espiral de uma vida.
A respeito do espiral de uma vida intermediada pela filosofia, vale notar a relação
autonomia do texto e soberania do autor, conforme Ricoeur retoma em diversos momentos
de sua pesquisa.759 Estamos no seguinte dilema: “o que o texto significa interessa agora
mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu”760. A autonomia semântica é fundamen-
tal para a filosofia de Ricoeur, isso é indiscutível. Entretanto, a noção do espiral anuncia a
755 Cf. RICOEUR, Paul. Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle, 1995, p. 61. 756 “À en juger selon l'ordre des raisons – qu'il ne faut pas confondre avec celui des motivations personnelles –,
le projet de Ricoeur est donc de nature anthropologique.” Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur,
2008, p. 28. 757 Cf. THOMASSET, Alain. Paul Ricœur, une poétique de la morale: aux fondements d'une éthique, herméneu-
tique et narrative dans une perspective chrétienne. Leuven: Leuven University Press, 1996, p. 232. 758 “En regardant rétrospectivement l’itinéraire philosophique de Ricoeur, nous sommes tentés d’y percevoir
une logique de développement en spirale. C’est pourquoi dans ses ouvrages les plus tardifs nous voyons
revenir cette recherche sur la volonté – inscrite en fait dans le cadre d’une anthropologie philosophique –
qui avait inspiré son projet de jeunesse.” Cf. JERVOLINO, Domenico, « La question de l’unité de l’œuvre
de Ricœur à la lu-mière de ses derniers développements », Archives de Philosophie 4/ 2004 (Tome 67), p.
660. 759 Cf. RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, 2009, pp. 47-48. 760 RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, 2009, pp. 47.
169
não soberania do texto sobre o autor. Qualquer soberania trata-se de uma falácia. Segundo
Ricoeur,
a falácia intencional, que sustenta a intenção do autor como critério para
qualquer interpretação válida do texto. E, por outro, o que eu chamaria, de
modo simétrico, a falácia do texto absoluto: a falácia da hipostasiação do
texto como uma entidade sem autor.761
As autonomias apenas tornam mais complexas as relações. Em uma primeira leitura,
o sentido do texto é privilegiado. Uma segunda leitura pede algo mais, para ir além do texto
para o contexto. Pela relação dialética do significado autoral e dimensão do texto, Ricoeur
propõe no livro Conflito das Interpretações três níveis da tarefa hermenêutica: o plano se-
mântico (expressões da vida fixada pela escrita762), o plano reflexivo (entre a questão do
mundo e da interpretação763) e o plano existencial (a etapa existencial, situado entre lingua-
gem e vida764). Esse percurso pode esclarecer a posição filosófica de Ricoeur e sua relação
com o espiral, apontado por Jervolino, e a dimensão existencial, por outros leitores.
O pensamento de Ricoeur, em seus desvios – a exemplo, o movimento do “mundo
do texto” para o “mundo diante do texto” e a apropriação pessoal desta correlação – deno-
tam o espiral, tanto no pensamento como da vida no filósofo.765 Segundo Ricoeur, a o reco-
nhecimento de si pela leitura implica em um espiral que se move continuamente entre a aná-
lise e a apropriação dos mundos.766 O espiral – diferentemente de ciclos ou círculos, cujos
movimentos sustentam uma tradição ou um dogma imutável – promove a força do dobra-
mento, i.e., a dinâmica do presente que se vai para o adiante. A tese faz notar que a filosofia
da vontade se estrutura em forma espiral. A frase de Ricoeur sobre a fé, “um acaso trans-
formado em destino por uma escolha continua”, representa, na religião, o espiral da filosofia
da vontade: o acaso é involuntário, a transformação é voluntária, o destino é involuntário e a
escolha contínua é voluntária. A dinâmica interna da obra de Ricoeur reflete o espiral de
uma vida. Por essas considerações, a dobra da religião é uma dobra existencial que tem seu
761 RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, 2009, pp. 47. 762 RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações, 1978, p. 14. 763 RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações, 1978, p. 17. 764 RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações, 1978, p. 21. 765 Cf. SUVEN, Dan R. “One Philisipohy, Many Theologies: A Hermeneutical Spiral from Ricoeur to Theolo-
gy”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Re-
ligion, 2011, p. 70. 766 SUVEN, Dan R. “One Philisipohy, Many Theologies: A Hermeneutical Spiral from Ricoeur to Theology”,
In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion,
2011, p. 70.
170
movimento no espiral de seu pensamento. A objeção existencial do espiral, cuja matriz en-
contra-se em um projeto de antropologia filosófica, possui, brevemente, três fases. A pri-
meira, em torno do ano 1950, refere-se à fé que se questiona filosoficamente. Nesta fase, as
primeiras obras de Ricoeur, em personalismo, encontram apoio na filosofia da vontade (Vo-
luntário e Involuntário) e questões do símbolo e do mito (A Simbólica do Mal). Na imagem
do espiral, os trabalhos primogênitos não são abandonados com o desenvolvimento da car-
reira, mas retomados em fases seguintes com novos alargamentos e outros horizontes. As
preocupações religiosas que abarcam na dobra da religião, portanto, estão presentes desde o
início do trabalho de Ricoeur (conforme já notado no primeiro capítulo desta pesquisa). Em
termos filosóficos, a dobra é o movimento do ser em direção à religião e o movimento da
religião em direção ao ser que se move em espiral. A segunda fase, a partir de 1965, refere-
se às obras de hermenêutica (Metáfora Viva e Tempo e Narrativa). Os temas anteriores fi-
cam à deriva enquanto as preocupações com a linguagem ocupam o centro do seu pensa-
mento. Neste momento, a narrativa e a metáfora encadeiam-se em novos desdobramentos.
Na terceira (e última) fase, em novos espirais, o uso das primeiras preocupações filosóficas
(a filosofia da vontade) e a hermenêutica retornam: a partir de 1990, com a publicação de O
Si-mesmo Como Outro, Ricoeur enfatiza o trabalho de uma filosofia da ação no processo da
hermenêutica do si.767 Surgem, então, interesses por categorias próprias, tais como o justo, a
pequena ética, a economia do dom, o perdão difícil, a recapitulação (ou o retorno sobre si),
o si-mesmo como um outro. Torna-se mais nítida a inserção dos diversos seguimentos traba-
lhados em um projeto único de uma antropologia filosófica em forma de espiral.768
Concebida como uma antropologia filosófica, segundo Jervolino, a obra de Ricoeur é
uma exegese do ser humano capaz, uma hermenêutica das capacidades humanas769; um pen-
samento apaixonado pelos desvios, para Olivier Mongin770; uma filosofia que, de acordo
com David Pellauer, procura as questões transcendências na imanência das fraturas huma-
nas771. O espiral, tendo como ponto de partida a ontologia da capacidade humana, promove
767 Especificamente na religião, desenvolvido com mais intensidade no artigo: “La structure symbolique de
l'action”, In: Actes de la 14e Conférence internationale de sociologie des religions (Symbolisme), Stras-
bourg, Lille, Secrétariat C.I.S.R., 1977, pp. 29-50. 768 Cf. JERVOLINO, Domenico, « La question de l’unité de l’œuvre de Ricœur à la lu-mière de ses derniers
développements », Archives de Philosophie 4/ 2004 (Tome 67), pp. 661-662. 769 Cf. JERVOLINO, Domenico. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine. Ellipses: Paris
2002, pp. 47-49. 770 MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 34. 771 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2007, pp. 22-23.
171
os desdobramentos na vida de Ricoeur pelos desvios na tarefa do destino assumido. O espi-
ral de uma antropologia filosófica correlaciona-se com a sua própria vida de modo que sua
vida acontece em suas obras.772 O movimento da dobra e do espiral são tensionados pelo
acaso e destino – dimensões involuntárias – para que a escolha e a transformação – esferas
voluntárias – capacitem o ser humano para a possibilidade de ser.
IV.1 O acaso de um espiral
Presente desde o início de seu empreendimento, acaso e destino tornam-se evidentes
– e igualmente importantes – na última fase do espiral antropológico de sua filosofia, na
qual Ricoeur assume categorias existenciais (a crença, a ética, o testemunho, o reconheci-
mento, a fenomenologia do agir etc.) como o desdobrar de um destino. Em A Simbólica do
Mal (i.e., logo no início de sua carreira filosófica), Ricoeur assume a dimensão do destino
ao refletir sobre a tragédia de Jó: “converter liberdade e necessidade em destino”773. Que
significa assumir o destino? Para a religião, todo ato é “repetição” de uma cosmogonia que
cria e recria um estatuto ontológico. Segundo Ricoeur, a repetição não deve ser motivada
pela retribuição que cada indivíduo receberia de Deus, mas pelo impulso desinteressado de
Jó (cf. Jó 1,9). Diz Ricoeur: “Eis o que está em jogo: renunciar de tal modo à lei da retribui-
ção que não só se renuncia a invejar a prosperidade dos malvados, como também se suporta
a desgraça do mesmo modo como se aceita a boa fortuna, isto é, como um dom de Deus”774.
Uma afirmação que denota a herança calvinista no filósofo. O impulso desinteressado ins-
taura o caminho para a visão ética do mundo ao assumir, assim como Jó (e o próprio Ri-
coeur), um percurso entre o agnosticismo e a visão penal da história e da vida. Desinteres-
sado na medida em que a exigência de retribuição dá lugar a fé inverificável, uma fé no
Deus Absconditus [Deus oculto], no qual o acaso é transformado em destino ao assumir a
responsabilidade da ação e a posição da própria vida.
Por um lado, como acabamos de afirmar, o trágico é invencível, pelo me-
nos a um certo nível de nossa experiência do mal cometido e do mal sofri-
772 Tanto que, em uma conversa pessoal com David Pellauer, confidenciou-o preferir ver as pessoas discutirem a
sua obra do que falarem dele. Cf. PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2007, pp. 14-15. 773 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 340. 774 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 341.
172
do; por outro, a teologia trágica é inconfessável, impensável; o trágico é
invencível ao nível do homem e impensável ao nível de Deus. A teogonia
erudita é, então, o único meio de tornar a tragédia ao mesmo tempo inven-
cível e inteligível; ela consiste, em último caso, em colocar o trágico na
origem das coisas e em fazê-lo coincidir com uma lógica do ser, por meio
da negatividade.775
A negatividade é importante à compreensão da preeminência do símbolo e do mito
do mal, sobretudo ao papel da religião no espiral da filosofia filosófica. A negatividade,
trabalhada em História e Verdade776 e, com enfoque na religião, em The Religious Signifi-
cance of Atheism777, exerce a função de orientação para uma positividade. Assim como a
tarefa negativa, não há prejuízos nas aporias se assumidas no desenvolvimento do si no des-
tino. Para Ricoeur, opondo-se a Jean-Paul Sartre, a liberdade que nega a finitude – a nega-
ção da negação existencial – funda-se na afirmação do valor interior do ser concebido como
um tornar-se, um ser possível.778 A filosofia de Ricoeur, no espiral de sua vida, não se ren-
de ao trágico nem se acanha com o acaso. O destino é o paradigma do agir e do sofrer.779 O
sacrifício de Cristo simboliza os confins do humano e justapõe a realidade ao horizonte da
dobra e a figura de Jó suscita o trabalho da negatividade no espiral de via de Ricoeur. O
destino, no âmbito involuntário, não pode ser evitado – assim como a finitude. Entretanto,
pode ser modificado e incorporado no espiral de vida e na dobra religiosa. Destino, para
Ricoeur, é assumir o estatuto para aquilo que se está construído. No projeto da dobra, evita-
se a acídia.780 Em outras palavras, retomando o pensamento de Píndaro, “torna-te quem tu
és”. A tarefa da hermenêutica da filosofia ricoeuriana, portanto, inclui o desafio ontológico
da dobra da religião que implica em algumas considerações acerca da condição humana –
que reflete o próprio projeto de Ricoeur.
Enquanto a questão teórica se refere à dobra da religião, o desenvolvimento das
questões teóricas acompanham o espiral de vida de Ricoeur. A unidade da dobra da religião
está ligada ao percurso de vida do filósofo que encontra nas preocupações da hermenêutica
775 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 346. 776 Cf. “Negatividade e Afirmação Primária”, In: RICOEUR, Paul. History and Truth. Evanston: Northwestern
University Press, 1965, pp. 305-328. 777 Cf. “Religion, Atheism, and Faith”, In: RICOEUR, Paul. The Religious SIgnifcance of Atheism, 1969, pp. 59-
98. 778 RICOEUR, Paul. History and Truth, 1965, p. 318. 779 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 348. 780 “A acídia é outro grande tema esquecido. Ela se refere à tristeza que queima o homem que se recusa a atingir
a estatura a que está chamado, humana e espiritual. Ele recusa o bem que Deus preparou para ele, a filiação
divina e a auto-realização, que é o grande fim da moral.”. LAUAND, Jean. O Intérprete do Logos, p. 31.
173
do si a negatividade: a tarefa negativa a serviço do bem e da vida justa. A vocação filosófica
de Ricoeur marca o primado da dobra da religião. A dobra da religião é uma nova perspec-
tiva na filosofia de Ricoeur. Inaugurada pela nomeação de Deus, ao encontrar na mito-
poética a fundamentação para esse primado, a ambição fundamental da tese propõe uma
tomada progressiva do assumir o destino por parte de Ricoeur, alcançando a ética possí-
vel.781 Para a hermenêutica da religião e a reflexão do destino, é necessário considerarmos a
dimensão da ética (que será aprofundada no desenvolvimento deste capítulo). O destino é
visto na perspectiva da ação ética. Segundo Ricoeur,
todos estes aspectos do destino, na medida em que estão implicados na li-
berdade e não opostos a ela, são sentidos necessariamente como falta. Sou
eu que suscito o Inelutável, em mim e fora de mim, ao desenvolver a mi-
nha existência. Esta já não é a uma falta de num sentido ético, no sentido
de uma transgressão da lei moral, mas num sentido existencial: tornar-se
si-mesmo é falhar na concretização da totalidade, que permanece contudo o
objeto, o sonho, o horizonte indicado pela Ideia da felicidade. Na medida
em que o destino pertence à liberdade como a parte não escolhida de todas
as nossas escolhas, ele deve ser experienciado como falta.782
O destino, para Ricoeur, é, em suas palavras, “como uma dobra ou vinco que a liber-
dade contraiu”783. O destino invoca a tarefa do assumir a si-mesmo.784 A vida de Ricoeur foi
um progressivo assumir a si-mesmo. Ricoeur procurou fazer da sua filosofia um progressivo
assumir de si-mesmo, sobretudo nas situações mais complicadas de sua vida (o mal sofrido).
Deste modo, a vida de Ricoeur é existencialmente a sua própria filosofia.785 Isso é traduzido
na questão do justo, da memória, do perdão (difícil); reconhecimento, atestação, testemu-
nho. Enfim, a fase final desta pesquisa procura oferece lugar à demonstração do existencia-
lismo e da religião na dobra.786 Para Ricoeur, em suas notas, os filósofos existencialistas
781 “A hermeneutic evaluation of myth involves not just epistemological considerations but ethical ones.”
KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 89. 782 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 331. 783 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, 2009, p. 331. 784 Em virtude da coragem da aceitação do acaso e a transformação do mesmo em destino, o trabalho filosófico
de Ricoeur, em muitos de seus estágios, apresenta a hermenêutica de si como tarefa fundamental de uma
filosofia motivada pela fenomenologia do agir e uma ontologia do possível. Cf. o terceiro tópico do prefácio
de O Si-Mesmo como um Outro, “Rumo a uma hermenêutica do si-mesmo”. 785 Para um estudo detalhado sobre a correlação entre a vida de Ricoeur e sua obra, cf. JERVOLINO, Domenico.
Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine. Ellipses: Paris 2002. 786 O problema da existência, abordado na filosofia, em especial no existencialismo, e na religião, sobretudo a
cristã, não é esgotado por nenhuma das duas abordagens exclusivamente. Para Ricoeur, desde o início de sua
carreira, as diferentes abordagens são alternativas radicais do cruzamento entre liberdade e existência. Ambas
esferas comungam as aporias e promovem indicações para o ser. A diferença, na tarefa do reconhecimento,
174
lembram à fé cristã as questões decisivas das quais não se deve esquecer, dentre elas, a
questão da liberdade e da alteridade (ou, o problema da comunicação com as outras pesso-
as).787 No sentido forte da palavra existência, introduzida por Kierkegaard, o existencialis-
mo tem como tarefa o trabalho da clarificação pessoal, pelo método descritivo (comumente,
a fenomenologia) no esforço para recuperar o sentido de ser humano. Neste esforço, a liber-
dade – o poder de escolha – e a alteridade – a capacidade do reconhecimento de si no diálo-
go – possibilitam a reflexão que a religião pode tomar para caminhos mais atuais e mais
profundos. Segundo Ricoeur, “o caminho existencial de filosofar parece colocar um fim na
posição fictícia do problema das relações entre filosofia e fé cristã”788. A despeito de a teo-
logia, no plano da escatologia cristã, não excluir a noção de progresso na reflexão teológi-
ca789, a leitura da dobra da religião infere sobre a existência individual em termos filosóficos
e hermenêuticos. Tal descrição toma um movimento orientado por uma intenção de totali-
dade, presente no efeito da dobra da religião, situando, desde o início do empreendimento
filosófico, o lugar da fé religiosa. A dobra da religião, enquanto dobra existencial, não ex-
clui a esfera concreta da história, mas situa o indivíduo, na força criativa da fé, como o cria-
dor de sua história, particular e única, mediada pela religião, sem que se perca o contato
com a dimensão da própria história. “A religião constitui para a filosofia”, situa Ricoeur
acerca da filosofia na linguagem religiosa, “um exterior específico, uma alteridade da qual
ela só pode dar conta em sua própria margem, em seus próprios confins e, se assim podemos
nos expressar, sobre a borda interna da linha de separação entre o transcendental a-histórico
e o religioso histórico”790. Trata-se, sobretudo, de sentido: o sentido aberto pelo processo do
reconhecimento de si que tem fé no sentido. Não se deve imaginar qualquer alienação histó-
rica por conta da motivação religiosa e esperançosa no processo do reconhecimento do indi-
víduo. Está num dos projetos existenciais de Ricoeur o resgate do ser no corpo, na esfera
reside no esforço simultâneo e mutuo de uma dubla compreensão, uma dupla adesão, uma dupla paixão, em
suma, uma dupla espiritualidade. Cf. RICOEUR, Paul. “Le renouvellement de la philosophie chrétienne par
les philosophies de l’existence”, In: Le problème de la philosophie chrétienne (Les Problèmes de la Pensée
Chrétienne) » Paris, P. U. F., 1949, pp. 43-67. 787 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation, 6,
1951, reimpresso em Reveu de Théologie et de Philosophie, 138, 2006, pp. 307-314. 788 “La façon existentielle de philosopher me paraît mettre fin à une position fictive du problème des rapports de
la philosophie et de la foi chrétienne.” RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In:
La Revue de l'Evangélisation, 6, 1951, p. 313. 789 Cf. RICOEUR, Paul. “Le christianisme et le sens de l’histoire. Progrès, ambiguïté, espérance”, In:
Christianisme social, 59 (1951), pp. 261-274. 790 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da
Filosofia, 1996, p. 17.
175
individual, e na história de sua cultura, na esfera social.791 A abertura no processo histórico
realizada pela fé implica, no coração da hermenêutica da dobra da religião, na esperança,
sobretudo a esperança, a despeito dos aspectos dramáticos e inquietantes da história. Em
suma, a dobra existencial inclui a ambiguidade do processo racional e o plano histórico na
esfera da esperança.792
De certo modo, os grandes filósofos existencialistas respeitaram o lugar da religião,
concordando ou discordando dela, para que o existencialismo encontrasse os problemas
comuns da liberdade e da alteridade, a saber: Kierkegaard e Nietzsche, os pais do existenci-
alismo, cujas filosofias foram possíveis por dialogarem com o cristianismo; Sartre e a tarefa
do homem intransferível a Deus; Jaspers e a reinterpretação da “religião bíblica”; Marcel e
sua dívida com as afirmações cristãs e as virtudes teológicas.793 A originalidade da fé pode
ser redescoberta pela filosofia existencial, pois, nas palavras de Ricoeur, “eu não creio no
pecado, mas na libertação do pecado; a essência do cristianismo é a salvação”794. Enquanto
a religião tem em uma de suas finalidades a promessa (a promessa dos grandes eventos e da
revelação), o existencialismo, em seu caráter descritivo e fenomenológico, ao lado das pro-
messas, elucida as situações e as possibilidades humanas.795 A noção do destino, motivado
pela adesão religiosa, na qual assume a liberdade e o reconhecimento de si, serve-se do exis-
tencialismo para sobrecarregar-se de otimismo e espiritualidade, uma vez que as questões e
os caminhos do existencialismo não são em vão para a fé religiosa que busca a liberdade
791 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation, 6,
1951, pp. 146-147. 792 “La foi dans un sens, mais dans un sens caché de l’histoire est donc à la fois le courage de croire à une signi-
fication profonde de I’histoire la plus tragique et donc une humeur de confiance et d'abandon au coeur meme
de la lutte, – et un certain
refus du système et du fanatisme, un sens de l’ouvert. Mais en retour il n’est pas mauvais que I’espérance reste
toujours en prise avec I’aspect dramatique, inquiétant de I’histoire. C'est précisément quand I’espérance n’est
plus le sens caché d’un non-sens apparent, quand elle s’est déliée de toute ambiguïté qu’elle retombe au
progrès rationnel et rassurant, qu’elle vise à l’abstraction morte ; c’est pourquoi il est nécessaire de rester at-
tentif à ce plan existentiel de I’ambiguïté historique, entre le plan rationnel du progrds et le plan surrationnel
de I’espérance.” RICOEUR, Paul. “Le christianisme et le sens de l’histoire. Progrès, ambiguïté, espérance”,
In: Christianisme social, 59, 1951, p. 274. 793 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation, 6,
1951, p. 313. Sobre a influência do existencialismo de Karl Jaspers em Ricoeur, cf. RICOEUR, Paul. “Philo-
sophie et Religion chez Karl Jaspers”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 37, 1957, pp. 207-
235. 794 “Je ne crois pas au péché, mais à la délivrance du péché ; l’essence du christianisme est le salut et le péché
n’est découvert que dans le geste même qui en délivre”. RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la
Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation, 6, 1951, p. 314. 795 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation, 6,
1951, p. 314.
176
humana e a comunicação justa entre os indivíduos. Assumir a si mesmo, na tarefa do desti-
no, inclui a vida na própria filosofia. Em Ricoeur, esta inclusão manifesta-se existencial-
mente e circula, sempre elevando os estágios, no percurso do reconhecimento filosófico e
pessoal.
IV.1.1 O desdobramento metafórico do acaso
O espiral de vida aparece como uma narrativa de si.796 A filosofia de Ricoeur é uma
narrativa de si-mesmo. A narrativa de si-mesmo retrata as fases (sugeridas aqui em três
momentos) de sua obra. Em Vivo Até a Morte! Ricoeur declarou: “eu sou, por um lado, um
filósofo, nada mais, até mesmo um filósofo sem um absoluto, preocupado, dedicado e imer-
so em uma antropologia filosófica”797. Neste estágio final da pesquisa, afirma-se: a dobra
da religião é uma antropologia do ser humano capaz que tem em seu enxerto hermenêutico
a religião. Não se trata de uma apologia religiosa, mas do ser humano que encontra nas apo-
rias da vida força e capacidade para pensar, agir e viver. A vida de um filósofo que habitou
duas esferas inicialmente distintas, mas complementares, é marcada pelo pensador media-
dor. Segundo Kevin Vanhoozer,
para começar, Ricoeur media pensadores na história da filosofia. Por
exemplo, ele lê Kant até Hegel e Hegel até Kant. Esta “habitação mútua”
reflete a esperança de Ricoeur em que todos os pensadores estão, de certo
modo, “na verdade”. Ricoeur também esforça-se por mediar a filosofia
Anglo-Saxã e Continental, duas tradições que frequentemente falam uma
sobre a outra. A carreira pessoal de Ricoeur reflete sua ambição de media-
ção: ele assumiu, simultaneamente, cadeiras em Paris e Chicago por muitos
anos. Entretanto, talvez mais significativo para a teologia é a mediação dos
métodos e objetivos de diferentes disciplinas. A sua teoria narrativa traz
uma contribuição original, por exemplo, na mediação da alegação da ver-
dade da história e da ficção, as duas maiores formas de narrativa. Uma das
características mais impressionante é a essa capacidade imaginativa para
796 Para informações mais detalhadas a respeito do diálogo entre o existencialismo e a fé, cujo trabalho demons-
tra a narrativa do si em diálogo com o pensamento filosófico, cf. RICOEUR, Paul. “Note sur
l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation (Le Christianisme devant les cou-
rants de la pensée moderne), 6 (1951), pp. 143-152. Uma reflexão parecida, que questiona a dicotomia entre
vida e pensamento, pode ser averiguada em: RICOEUR, Paul. “L'homme de science et l'homme de foi”, In:
Le Semeur, 50 (1952), novembre, pp. 12-22. 797 “I am, on one side, a philosopher, nothing more, even a philosopher without an absolute, concerned about,
devoted to, immersed in philosophical anthropology”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69.
177
mediar oposições aparentemente irreconciliáveis. Ricoeur é um mediador,
portanto, não por ele “portar o pecado”, mas por “portar o sentido” distante
e fazê-lo inteligível ou próximo. Ricoeur é talentoso em fazer compatíveis
ou mutuamente dependentes posições que era aparentemente opostas. Este
“trazer próximo” (meta-pherein=“trans-ferir”) é também a essência da me-
táfora, um “ver junto”, que associa domínios aparentemente distintos em
sentidos os dispõem em uso criativo. (...) Ricoeur não poupa esforços para
trazer o mundo da Bíblia “próximo” ao indivíduo do século vinte ao criar
“aproximações” filosóficas das ideias teológicas. Ao fazer isso, Ricoeur
espera ajudar aqueles que estão cegos para a graça para “ver” novamente.
É justo, então, que a forma favorita de linguagem do Ricoeur, a metáfora,
deve caracterizar o espírito da hermenêutica filosófica de Ricoeur. A medi-
ação de Ricoeur é metafórica.798
A tese da dobra da religião desenvolve o pensamento de Ricoeur sob a rubrica da
metáfora, que opera no conflito de interpretações e variações de sentidos que vão da finitude
à infinitude, do ser humano falível ao ser humano capaz, da virada ao destino. A metáfora é
um momento teórico decisivo que permite à linguística e aos estudos literários uma concen-
tração capaz de enriquecer a análise dos fenômenos religiosos e ser a linguagem caracterís-
tica da religião.
Melhor do que o símbolo, de fato, a metáfora é, como dissemos, uma enti-
dade de linguagem cuja existência chama para o compromisso interpretati-
vo do seu leitor, o intérprete sendo encarregado, menos de destacar um
798 “To begin with, Ricoeur mediates thinkers in the history of philosophy. For instance, he reads Kant
through Hegel and Hegel through Kant. This ‘mutual indwelling’ reflects Ricoeur’s hope that all thinkers
are to some extent ‘in the truth’. Ricoeur also attempts to mediate Anglo-Saxon and Continental philoso-
phy, two traditions which often talk past each other. His personal career reflects this mediating ambition:
he simultaneously held professorial chairs in Paris and Chicago for a number of years. Perhaps o f most
significance for theology, however, is Ricoeur’s mediation of the methods and goals of different discipli-
nes. His narrative theory makes an original contribution, for example, in mediating the truth claims of his-
tory and fiction, the two major forms of narrative. One of the most impressive features of Ricoeur’s philo-
sophy is precisely this ability imaginatively to mediate seemingly irreconcilable oppositions. Ricoeur is a
mediator, then, not because he ‘bears sin’, but because he ‘bears meaning’ from afar and makes it intelli-
gible or near. Ricoeur is particularly gifted in making positions which at first blush seem mutually exclu-
sive to appear compatible and even mutually dependent. This ‘bringing near’ (meta -pherein=‘trans-fer’) is
also the essence of metaphor, a ‘seeing together’, which associates seemingly disparate realms of meaning
and puts them to creative use. (...) Ricoeur ultimately strives to bring the world of the Bible "near" to the
denizen of the twentieth century by creating philosophical ‘approximations’ of theological ideas. By so
doing, Ricoeur hopes to enable those who are blind to grace to ‘see’ again. It is only fitting, then, that Ri-
coeur’s favorite form of language, the metaphor, should itself characterize the spirit of Ricoeur’s herme-
neutic philosophy. Ricoeur’s mediation is metaphorical.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in
the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cam-
bridge, 1990, p. 5.
178
sentido que já está lá, embora pouco aparente, menos do que explicitá-lo
do que inventá-lo, com o risco de traí-lo.799
Um breve adendo sobre a metáfora para o sentido no acaso deve ser ludibriado. Tan-
to símbolo como metáfora habitam a esfera do duplo sentido. Ao invés de realizar uma filo-
sofia da linguagem, Ricoeur trabalha através da linguagem. O símbolo é um modo de metá-
fora enquanto a metáfora é um mecanismo inovador da linguagem. A metáfora acompanha
o trabalho dos símbolos e os prolonga por conter um excedente de significação.800A imagi-
nação linguística passa pela metáfora, de modo que a variação de mundo se deve, na capa-
cidade linguística, ao processo metafórico de narração do mundo. Trata-se de um estágio
criativo da linguagem que vai além do símbolo e no qual introduz-se um desvio que faz di-
zer algo novo. Segundo David Pellauer, “este aspecto transgressivo ou transformativo da
metáfora é o que a torna capaz de criar novo significado ao perturbar a ordem da lógica
existente, ao mesmo tempo que o gera sob nova forma”801. A metáfora age como reagente
inovador linguístico, enquanto o símbolo é uma metáfora que se impõe numa tradição, prin-
cipalmente uma tradição de origens. Para além da experiência de palavras e de conceitos, a
metáfora situa o ser em sentidos profundos de interpretação capazes de revelar aspectos on-
tológicos. Dito de outra forma, o processo metafórico, ao lado do processo simbólico, é a
relação do ser humano com aquilo que o constitui.802 Por isso a metáfora é viva, é uma me-
táfora vigente (usadas, relembradas ou esquecidas).
O símbolo, por sua vez, é uma metáfora com uma força tradicionante maior; um im-
pacto de poder imaginativo maior. Entretanto, o mecanismo da produção do símbolo é o
mesmo da metáfora. A metáfora é a força criadora de sentido na linguagem. “Não há outra
maneira de fazer justiça à noção de verdade metafórica”, escreve Ricoeur, “do que incluir a
incisão crítica do ‘não é’ (literal) na veemência ontológica do que ‘é’ (metafórico)”803. A
filosofia deve compreender os limites do discurso conceitual para explorar um novo nível da
799 “Mieux que le symbole, en effet, la métaphore est, comme nous l'avons rappelé, une entité langagière dont
l’existance appelle l’engagement interprétatif de son lecteur, l’interprète étant chargé, moins de surligner un
sens déjà là, bien que peu apparent, moins de l'expliciter, que d'inventer, au risque de trahir”. VINCENT,
Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 54. 800 RICOEUR, Paul. “Metáfora e símbolo” In: Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 2009, p. 45-69. 801 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 95. 802 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145. 803 RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor, apud PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, p. 98.
179
linguagem no discurso figurativo e ontológico da metáfora.804 A dobra da religião denota
inovação metafórica, transgressão de sentido, resistência linguística. A poética de Ricoeur
não se restringe à literatura, pois a poética se insere num esfera de primazia linguística, mas
capaz de outras poiesis. É na fase intermediária, na qual Ricoeur trabalhou a hermenêutica,
que o símbolo é ampliado para a metáfora e a narratividade. A nova dimensão não abandona
as etapas anteriores. Entretanto, no desenvolvimento filosófico, o símbolo aparece como um
processo metafórico da linguagem que produz “metáforas fortes”: aquelas que adquirem
uma força social tão grande que passam a ter valores ontológicos que ofuscam a metáfora,
como, por exemplo “Deus”. A metáfora é identificada praticamente com a pessoa divina, o
ser divino, no entanto, trata-se de uma metáfora: do sânscrito dia e luz aplicado a Deus. A
força simbólica concentra um significado no qual a metáfora passa a dar lugar quase que ao
objeto mesmo.
Portanto, a dobra tem em sua linguagem a interpretação metafórica dos mitos.805 A
fenomenologia da consciência do tempo é o método da dobra da religião e a interpretação
metafórica dos mitos é a linguagem da própria dobra religiosa. Além do método e da lin-
guagem, a metáfora, em termos gerais, é importante porque na linguagem ela é a encarnação
do possível. A metáfora remove o mecanismo da língua de um movimento linear ou endó-
geno. A metáfora abre a língua para muitos possíveis, de passagens à novos horizontes.
Sendo a própria vida de Ricoeur, no movimento da metáfora – o encontro de pontos distin-
tos – e na passagem do ser para o além do ser – a tarefa da superação –, uma dobra existen-
cial, a dobra não é apenas a descrição de uma ideia, mas a própria vida de Ricoeur. A pró-
pria vida de Ricoeur é a dobra. Como demonstra-se esta ambição? Nos entrelaçamentos da
dobra, a virada religiosa e o destino acontecem justamente na medida em que Ricoeur man-
tém seu caminho de pensar-se cristão, mas constantemente voltado com o ser cristão na prá-
tica, existencialmente. Segundo ele, a linguagem religiosa articula a função da existência
humana no plano da experiência individual, de modo que o pensar da existência humana é a
reflexão sobre uma vida reconhecida na virada do destino.806 É neste momento, portanto,
que surge a originalidade da tese: a dobra da religião na fenomenologia do possível com a
804 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 465-469. 805 Para um estudo mais detalhado acerca da interpretação metafórica dos mitos, cf. JOSGRILBERG, Rui. “O
mito: uma interpretação metafórica”, In: Estudos em Antropologia e Lingaugem, São Paulo: Factash Editora,
2014, pp. 11-126. 806 RICOEUR, Paul. “Foi et philosophie aujourd'hui”, In: Foi-Éducation (Week-end Versailles), 42, 1972, n°
100, juillet- septembre, p. 5.
180
sofisticação teológica da interpretação metafórica da virada religiosa no destino. Tal em-
preendimento apontará para a dobra existencial, cuja novidade ressalta o agnosticismo filo-
sófico e a adesão religiosa de Ricoeur, destacando as possibilidades e as originalidades de
uma vida interpelada pelo saber acadêmico e pela tradição religiosa. Com esta questão,
mostra-se que o pensamento de Ricoeur é um pouco sobre dar conta que a dobra não é ape-
nas uma questão da esfera do pensamento, mas assume proporções existenciais da sua pró-
pria vida no mundo.807 Não se trata simplesmente de uma reflexão abstrata ou de autoridade.
A possibilidade é uma possibilidade de existência. O ponto de chegada, pela virada religio-
sa, é o destino, de onde emerge a novidade e a figura da dobra da religião.
IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial
A narratividade de uma vida: a filosofia de Ricoeur é a narração de sua vida.808 O
fluir do tempo é percebido como uma narrativa. A trama, que é o tempo, entrelaçado em
sequência, pela narrativa desdobra-se o tempo. A abstração temporal acompanha a narrati-
vidade da vida de Ricoeur e sua auto-interpretação na filosofia. As etapas da vida de Ri-
coeur se correlacionam com os estágios de sua filosofia de modo que o enriquecimento con-
tribui ao espiral de uma vida e ao projeto de seu pensamento. A vocação filosófica de Ri-
coeur o permite desenvolver o destino em termos de filosofia e fé. O destino é um desdo-
bramento filosófico da narratividade. Em Tempo e Narrativa, ao trabalhar a aporia do tempo
e a intriga, Ricoeur esclarece: “seguimos, pois, o destino de um tempo prefigurado a um
tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado”809. Ou seja, no projeto filosófi-
co da hermenêutica de si no destino, há, segundo o autor, um círculo entre o ato de narrar e
o ser temporal. A temporalidade encarna a linguagem na medida em que a narrativa confi-
807 Cf. escreveu em um artigo, em 1971, sobre as contribuições da linguagem à teologia da palavra, a teologia da
palavra tem em seu centro o elo entre a narratividade da vida e a narratividade da religião. Deus é palavra, de
modo que o ser humano é a sua própria palavra. Neste sentido, o testemunho é o predicado da teologia da pa-
lavra, de modo que a confissão religiosa é ao mesmo tempo a inteligibilidade de uma fé pessoal com o
diálogo atual secular. Tem-se, neste sentido, o aspecto do si, o “eu” que fala e que professa, reconhecendo na
narrativa fenomenológica da religião o dizer da própria vida na religião. RICOEUR, Paul. “Contribution d'u-
ne réflexion sur le langage à une théologie de la parole”, In: Exégèse et herméneutique (Parole de Dieu), Par-
is, Seuil, 1971, pp. 301-319. 808 Sobra a narratividade da vida na filosofia de Ricoeur, encontra-se, numa fase mais madura de sua sintese, em:
RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments, Mars, 2007. 809 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 95.
181
gura e refigura a experiência temporal810 e permite todo um trabalho de pensamento na in-
completude da linguagem e na compreensão de si. O destino, enquanto desdobramento filo-
sófico da narratividade, torna-se no resgate do cogito pela hermenêutica motivada pela do-
bra que situa o ser para além das aporias.
A despeito da eternidade mito-poética e da fugacidade das coisas pela finitude, há,
nesta dialética, a tarefa do reconhecimento do eu. A dobra da religião resgata a individuali-
dade no comunitário.811 Não se trata de uma via exclusiva do individualismo, mas de estipu-
lar a importância das impressões individuais para o início de qualquer dobra.812 Em seus
próprios termos, Ricoeur coloca no início da caminhada teológica o indivíduo. “Se questio-
nado sobre a sua teologia pessoal, Ricoeur responderia que tal assunto não deveria ser im-
portante para os outros, pois cada pessoa deve perguntar por suas próprias questões acerca
de Deus, o si e o mundo, em seus próprios meios.”813 Neste sentido a dobra da religião é
uma dobra existencial. “Ninguém está interessado em minha vida; afinal, a minha vida é o
meu trabalho”, afirmou Ricoeur.814 Vida e obra se confundem ao ponto no qual a dobra que
antes poderia ser somente intelectual implica no movimento da vida. A formulação da filo-
sofia da esperança denota a relação pessoal de Ricoeur com Deus e a implicação da dobra
existencial na filosofia. A sua vida marcada por dificuldades – órfão ainda criança, prisio-
neiro de guerra na Segunda Guerra Mundial, suicídio do filho Olivier – encontram corres-
pondência, de certa forma, em seus projetos filosóficos.815 O empreendimento filosófico de
Ricoeur é engajado com a ação. A dupla adesão é metodológica (filosofia e teologia) e tam-
bém existencial (acadêmico e cristão). É possível notar, segundo as observações de Rebecca
Huskey, que a obra e a vida de Ricoeur, em conjunto, permitem a visão positiva da humani-
dade, do mundo e de Deus, mesmo diante das adversidades.816 Pela ontologia do agir e suas
810 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 96. 811 Para uma reflexão mais detalhada acerca do indivíduo na fratura ética que acompanha a perspectiva de Ric-
oeur, cf. STRAWSON, Peter. Les Individus, Paris: Éd. du Seuil, 1984. 812 Não por acaso, para Ricoeur, Deus tem a ver com a singularidade – que é pensada na individualidade. RI-
COEUR, Paul. O único e o singular, 2002, p. 41. 813 “If questioned directly on the matter of his personal theology, Ricoeur would likely respond that such details
should no matter to others, for each person must as her own questions about God, self, and world, and in her
own way” HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good. Peter Lang Publishing,
Inc.: New York, 2009, p. 184. 814 “No one is interested in my life; and besides, my life is my work”. REAGAN, Charles E. Paul Ricoeur: His
Life and His Work. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1996, p. 72. 815 Cf. REAGAN, Charles E. Paul Ricoeur: His Life and His Work, 1996, pp. 4-8. 816 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 185.
182
implicações éticas, o horizonte do pensamento ricoeuriano tende à superação.817 Tanto a
vida do filósofo como o seu trabalho, na hermenêutica do si, são integradores e instrutivos,
afinal ambos estão engajados e comprometidos com o mundo da vida. A gratidão inicia-se
no reconhecimento do si diante do mistério e do absurdo, diante da ameaça e da finitude da
vida. Viver é dizer “sim” para a vida. Ao invés de um grito primitivo, a vida humana encar-
na um “sim” primitivo.818 A filosofia de Ricoeur, ao estar a serviço da vida, diz respeito à
uma reflexão sobre a existência humana. Não apenas o pensamento das condição humana,
mas o gesto, a postura e a ação positiva. Deste modo, a religião confere dobras para a com-
preensão da existência humana. Se para Sartre o inferno são os outros819, para Ricoeur o
outro é a condição privilegiada para a tarefa do reconhecimento, sobretudo a alteridade. A
religião e a leitura bíblica contribuem significativamente para a ontologia do agir820, da re-
flexão do si, do haver o eu a despeito de, da pluralidade de ideias, da alteridade, da ação
recíproca e da mutualidade.
Em tempo, parte da motivação para o a despeito de e o apesar de provém da reflexão
ricoeuriana da compreensão ética. Tal termo é colocado em diálogo com a noção trágica de
Deus na possibilidade do mal cometido e do mal sofrido. “O mais extraordinário documento
da antiga ‘sabedoria’ do Próximo-Oriente, respeitante ao regresso da compreensão ética à
compreensão trágica de Deus em si mesmo, é o livro de Jó”821. Com referência ao mal so-
frido, Ricoeur assume uma posição filosófica onde há uma dialética entre o “Jó da resigna-
ção” e o “Jó da fé”.822 Ricoeur se resigna ao mal sofrido, mas assume o Jó da esperança, o
Jó da fé. O modelo de fé para Ricoeur é a figura de Jó.823
817 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 183. 818 John Macquarrie sobre Ricoeur e o dizer “sim” para a vida: “He criticized the dualism and pessimism of Sar-
tre and also the one-sidedness of those existentialists who have stressed anxiety as the basic human affect.
Ricoeur claims that joy has an equal claim to be regarded as an ‘ontological effect’, that is to say, a clue to
the human condition, and that an affirmative relation to being can be maintained over against feelings of alie-
nation” Cf. John Macquarrie, apud VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ri-
coeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 15. 819 SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 123. 820 O engajamento ontológico, em seus três momentos de investigação, presente nas obras de Ricoeur, com des-
taque para O Si-Mesmo Como um Outro, é a abertura de temas filosóficos para a reinterpretação e reapropria-
ção pela potencialidade de significação e do reconhecimento do si. Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur,
1998, p. 184. 821 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 336. 822 Cf. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, pp. 82-83. 823 Jó é o personagem bíblico que melhor representa a figura trágica para Ricoeur, “que serve de pedra de toque à
visão ética do mundo e a estilhaça”. Jó é aquele que sofreu o mal sofrido sem explicação e sua inocência im-
plica na reflexão sobre o justo diante do mal. Em outras palavras, “a figura de Jó testemunha a irreduti-
183
Este movimento de pensamento que tentaremos assinalar, apoia-se na pró-
pria visão ética: onde Deus é percebido como origem da justiça e fonte da
legislação, o problema da sanção justa é levantado com uma seriedade sem
precedentes; o sofrimento surge como enigma quando a exigência de justi-
ça já não o pode compreender; este enigma é o produto da própria teologia
ética; é por isso que a virulência do livro de Jó não tem equivalente em ne-
nhuma cultura; o lamento de Jó supõe a plena maturidade de uma visão éti-
ca de Deus; quanto mais claro se torna Deus como legislador, mais obscuro
se torna como criador; a irracionalidade do poder compensa a racionaliza-
ção ética da santidade; eis que se torna possível voltar a acusação contra
Deus, contra o Deus ético da acusação; surge, então, a pouco sensata tarefa
de justificar Deus: nasce a teodiceia.824
A lamentação de Ricoeur, “Por que eu?”, e seu questionamento inspirado no grito do
salmista, “Até quando, Senhor”825, denunciam o mal sofrido na vida de Ricoeur. Ricoeur
segue o caminho de Jó, que é o aceitar (em termos de resignação) para abrir o caminho da
vida no espiral de sua filosofia. Resumidamente, é preciso da fé para assumir o acaso e
transformá-lo em destino. A afirmação diante do mal implica nas categorias pertinentes da
dobra religiosa, por exemplo, a esperança, o perdão, a fé e o testemunho.
IV.2.1 Espiral e pertença religiosa na dobra da vida
Inicialmente, as categorias existenciais de Ricoeur reportam a uma fenomenologia
pragmática da ação – uma praxis “boa”, que restitui a ação humana naquilo que Ricoeur
denominou de “filosofia analítica da ação”.826 A ética encontra-se no horizonte da filosofia
ricoeuriana e caminha ao lado da dobra da religião. Atitudes éticas de ação implicam em
destino. O destino é uma virada religiosa.827 O trabalho do filósofo que se coloca no espiral
motivado pela religião lê o mundo também com a inquietação proveniente da religião. A
leitura bíblica, no pensamento de Ricoeur, está diretamente relacionada à compreensão do
si. “O crente que procura compreender a si mesmo compreendendo melhor os textos de sua
bilidade do mal escandaloso ao mal de falta”. Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 333. 824 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 333. 825 Cf. RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Papirus: Campinas, 1988, pp. 48-50. 826 Um estudo dedicado à relação entre ética e ação pode ser conferido no quarto capítulo de Écrits et confé-
rences 2, “Implication éthique de la théorie de l’action”, pp. 65-90. 827 Para mais detalhes sobre a virada religiosa, cf. MANOUSSAKIS, John P. (Ed.) After God: Richard Kearney
and the Religious Turn in Continental Philosophy. Fordham University Press: New York, 2005.
184
fé”.828 Em O homem da ciência e o home da fé, Ricoeur, ao questionar a pretensão dos hori-
zontes das atitudes”, invoca a modalidade da compreensão ao invés da verdade.829 Compre-
ender, e compreender melhor, é a dinâmica da leitura bíblica do ponto de vista da fé. “Para
compreender o texto, devo crer naquilo que o texto me anuncia; mas o que o texto me anun-
cia não é dado em parte alguma senão no texto. É por essa razão que precisamos compreen-
der o texto para crer”830. Em termos hermenêuticos, na dinâmica da compreensão e da cren-
ça, a dobra possui circularidade. Inicia-se com a adesão religiosa. É importante para Ricoeur
a ideia (no sentido kantiano de ideia, quer dizer, a abertura do pensável, do concebível) da
relação de adesão.831 O a adesão, que é uma sensação pertença [appartenance], segue com
o testemunho – que é a narrativa da pertença – para a vivência medida pela pertença. Há
ingenuidade e consentimento. O conflito da ingenuidade – a primeira ingenuidade – assume
o distanciamento. Distante dos problemas e interposições iniciais, o ser humano, ameaçado
pelo tempo, pela finitude e pelas mesmas questões existenciais, encontra a confiança. O
conhecimento de novas aporias e a maturidade implicam na ação confiante da pertença e da
atestação.832 Há uma pertença novamente – a segunda ingenuidade. Tal movimento asseme-
lha-se a Kierkegaard, que diz haver, quando reflete sobre a relação indivíduo e comunidade,
uma dinâmica de abandono – abnegação – do mundo por parte do indivíduo, um ato forte
de escolher ser si mesmo e, depois, voltar ao mundo modificado.833 A hermenêutica do si de
O Si-Mesmo Como Outro, que converge com a noção de testemunho de Jean Nabert, trata-
se não apenas da análise do cogito cartesiano, mas também da humilhação nietzscheana e os
desafios que provém da crítica filosófica para o círculo hermenêutico da compreensão do si
na adesão religiosa.
828 “Le croyant qui cherche à se comprendre en comprenant mieux les textes de sa foi”. Cf. RICOEUR, Paul,
apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 91. 829 No caso, Ricoeur contrapõe os modelos de mundo e insere a reflexão da contribuição do horizonte da fé dian-
te dos limites de modelos de horizontes. Cf. “L’unité du monde sur laquelle se détachent toutes les ‘attitudes’
est seulement l’horizon de toutes ces attitudes.” RICOEUR, Paul. “L'homme de science et l'homme de foi”,
In: Le Semeur, 50, 1952, novembre, p. 21; “Démythologisation et herméneutique”, Nancy, Centre Européen
universitaire, 1967, p. 32. 830 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 326-327. 831 “relation d’appartenance”, influência de Gadamer. 832 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167-168. 833 “A interioridade exigida é aqui a da abnegação ou renúncia de si, que não se define mais proximamente em
relação com a noção do amor da pessoa amada (do objeto), mas sim em relação com auxiliar a pessoa amada
a amar a Deus. Daí segue que a relação de amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido.
A interioridade do amor deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa.” KIER-
KEGAARD, Soren. As Obras do Amor. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 156.
185
Destaca-se o artigo Croyance na Encyclopaedia Universalis.834 Diante da filosofia, a
virada da crença se dá pela força da singularidade das palavras na ação humana, sobretudo a
ação do crer.835 Por um lado há o problema filosófico da crença, i.e., o pensamento que se
direciona à veracidade das proposições e enunciados da crença. Por outro lado, aquele no
qual Ricoeur coloca sua reflexão, está a dinâmica da crença no círculo da pertença religiosa,
cujo enigma do ter por verdade é mantido na aporia do pensamento para a compreensão do
ato de crer.836 A despeito dos autores analisados no extrato, a investigação sobre a crença se
dá no plano filosófico da compreensão e distinção da experiência e dos horizontes que con-
figuram o ato do crer.837 A centralidade da crença está na noção de atestação na pertença
religiosa, que se distingue e se situa entre a doxa aristotélica e a opinião epistêmica.838 Na
perspectiva cartesiana e na hermenêutica do si, a crença é a atestação de ser si-mesmo e agir
mesmo no sofrimento.839 A atestação do si diferencia o “quem” do “quê” (a pessoa da coisi-
ficação), de modo que o sujeito possa reconhecer-se na tarefa hermenêutica que pergunta
pelo sentido daquilo que se crê. Segundo Olivier Mongin, é pela força da atestação que se
pode renunciar ao vazio depressivo da aporia.840 Ricoeur afirma que a hermenêutica do si se
distancia do cogito exaltado de Descarte e do cogito caído de Nietzsche, a despeito da con-
tribuição dos mestres da suspeita, para um equilíbrio de representação pós-kantiana da tare-
fa do reconhecimento do si.841
Resgata-se, na esfera da crença e da hermenêutica do si, a dialética da imprevisibili-
dade e do papel da alteridade. A atestação é o movimento da ação na hermenêutica do si . O
involuntário assumido na esfera voluntária se dá pela apelação possível da hermenêutica do
si na ação. A crença é o possível da hermenêutica do si assumido no destino. Responder à
imprevisibilidade, no ato do crer, é agir eticamente. Interpelado pelo texto sagrado da tradi-
834 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. V, Paris, Encyclopaedia Universalis France,
1969, pp. 171-176. 835 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 171. 836 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 172. 837 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 174. 838 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167. 839 “L’attestation peut se définir comme l’assurance d'être soi-même agissant et souffrant”. RICOEUR, Paul
apud MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167. 840 MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 170. 841 “En tant que créance sans garantie, mais aussi en tant que confiance plus forte que tout soupçon, l'herméneu-
tique du soi peut prétendre se tenir à égale distance du cogito exalté par Descartes et du cogito déclaré déchu
par Nietzsche” RICOEUR, Paul apud MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 170.
186
ção mediadora, o agir responsável implica em alteridade ética.842 A “arquitetura textual dos
corpos cristãos”, conforme trabalhada por Gilbert Vincent, abre o reconhecimento do si na
imprevisibilidade diante das narrativas e tradições religiosas (no caso, a cristã) da qual o
indivíduo pertence e se interage com outros que também creem. Podemos conferir um cui-
dado didático semelhante em O Si Mesmo como um Outro, onde Ricoeur afastou o religioso
da abordagem filosófica, de modo que este é visto sob a voz da consciência. No caso, ele
adotou os termos de “linguagem de transição”, ou ainda, uma espécie de armistício, para
distinguir o filosófico e público da dimensão pessoal e comunitária.843 No âmbito da crença,
Ricoeur escreveu sobre “uma relação fraterna com os seres em uma espécie de amizade
franciscana com a criação, encontrar o gracioso, o perdoado, o inesperado, o impensável: é
aqui que a ‘comunhão dos santos’ faz sentido”844. A crença é o elemento que identifica e
promove a relação fraterna do ser humano com a criação e os outros demais indivíduos.
Em uma de suas últimas palestras, aos 29 de Novembro de 2000, sobre o tema “A
crença religiosa”, Ricoeur sintetizou o papel da religião dizendo: a religião é a restauração
da bondade humana.845 Olivier Abel enfatiza o aspecto da religião em Ricoeur ser uma
oportunidade de fazer o bem. Não se trata de um empreendimento novo, muito menos de
uma ontologia reformulada, mas de um caminho que parte da ontologia quebrada e aponta
para um humanismo ético. A possibilidade para o bem e a postura ética é uma das heranças
do calvinismo no pensamento de Ricoeur. A religião, como a capacidade do ser humano
fazer o bem, é uma herança de Aristóteles, Espinoza e, sobretudo, Kant (principalmente
Kant)846. A religião é o interlúdio da bondade humana; interlúdio, pois não é início nem fim:
é meio para uma ética do possível pela crença em um nome divino. Seguimos a indicação de
Vincent: a possibilidade de fazer o bem acontece ne encontro das confusões (como, por
842 Sobre a ética, o ethos radical, Ricoeur pretende ir além da ética moral das estrutura ternária para uma ética
suscetível de fornecer um fio condutor na reflexão das outras camadas da constituição de pessoa. Em suma, a
“aspiração a uma vida realizada – com e para os outros – em instituições justas” RICOEUR, Paul. Leituras 2
– A Região dos Filósofos, 1996, p. 164. 843 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 237. 844 “Se soustraire à la fascination de la puissance, habiter ce monde sans le dominer, renouer une relation frater-
nelle aux êtres dans une sorte d’amitié franciscaine pour la création, retrouver le gracieux, le gracié,
l’imprévu, l’inouï : c’est ici que la ‘communion des saints’ prend son sens”. Texto publicado originalmente
em História e verdade. In: RICOEUR, Paul, apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur.s, 2008, p. 51. 845 In: RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo]. Produção de Mission 2000 en France. França,
Universités Numériques Thématiques, 29 de Novembro 2000. 1 vídeo digital online, 80 min. Colorido. Som.
Disponível em: http://www.canal-u.tv/video/universite_de_tous_les_savoirs/la_croyance_religieuse.1186
Acessado em: novembro de 2012. 846 Ricoeur acompanha as considerações de Kant em A Religião nos Limites da Simples Razão.
187
exemplo, a oposição “fé” e “obediência”847). Dos aspectos fraturados na religião – destaca-
dos por Ricoeur em suas obras – os que relacionam-se à crença para a dobra da religião são:
o caráter incompleto da linguagem religiosa e a compreensão de si.848 O primeiro refere à
linguagem fraturada que é insuficiente até na religião – denominado de incompletude da
linguagem religiosa. A crença, neste caso, é a possibilidade que se faz presente na reconsti-
tuição da fissura linguística na incompletude da linguagem religiosa. O segundo, a compre-
ensão do si – que é um empreendimento da própria filosofia de Ricoeur – é pela crença a
possibilidade do reconhecimento do si na tarefa hermenêutica que lida com textos sagrados.
Segundo Ricoeur, a crença e confiança do testemunho não estão na esfera do conhecimento
dedutivo nem com a evidência empírica. A crença e a confiança religiosa que passa pelo
testemunho se enquadra na categoria de compreensão e interpretação.849 Este movimento
leva ao sentimento de pertença religiosa e desdobra as preocupações do reconhecimento do
si e da bondade humana numa ética. A dobra em Ricoeur caracteriza-se como um entrela-
çamento do pensamento religioso com a vida – e também, em certas medidas, com o ato
filosófico. O entrelaçamento mais original é o nome de Deus.
Para a continuação da reflexão sobre o acaso e o destino da religião, deve ser enfati-
zada a dimensão ontológica da linguagem na religião. A vida, para Ricoeur, reflete-se lin-
guisticamente, de modo que a religião tem em seu centro a autonomia da linguagem e o
problema da interpretação – e, consequentemente, da compreensão de si.850 Para o recorte
específico da tese, assumir o destino implica na reflexão linguística, a despeito dos limites
hermenêutico, pois implica em retornar à vida. Este é o problema central da linguagem em
Ricoeur: mesmo com as fraturas, é preciso retornar à vida.851 A linguagem estabelece um
intervalo reflexivo, pelo qual o ser humano se reconhece, testemunha e age. A linguagem é
existencialmente e ontologicamente deslocada, de modo que ela não possui continuidade e
imediaticidade com o mundo: ela é interpretativa. Embora há um fundo ontológico, a lin-
847 Para uma discussão mais detalhada sobre o sasunto, cf. RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia
Universalis. 1969, p. 173-176. 848 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 122. 849 “La croyance-confiance du témoignage second sur le témoignage premier, absolu, ne coïncide ni avec le sa-
voir déductif, ni avec la preuve empirique. Il relève de la catégorie de la compréhension et de
l’interprétation.” 850 Cf. “La métaphore et le problème central de l’hermnéneutique”, In: RICOEUR, Paul. Écrits et conférences 2.
Hermeneutique. 2010, pp. 91-93. 851 Cf. RICOEUR, Paul. Do texto à acção: Ensaios de Hermenêutica II. RÉS-Editora, Ltda: Porto-Portugal,
1989, pp. 122-123.
188
guagem é um lugar revelador mas com carência de fundo. Portanto, a linguagem, sobretudo
a linguagem religiosa, para Ricoeur, em sua condição incompleta, é mediação que tem uma
descontinuidade ontológica e pede por interpretação. A carência existe por conta da fratura
linguística e do acaso que permeia o mistério – e de todos os mistérios, o mais significativo,
aquele que fornece movimento à dobra da religião, é o mistério da nomeação de Deus.
IV.2.2 Do acaso e do destino de Deus
Na última fase do espiral de Ricoeur encontram-se considerações sobre a narrativi-
dade filosófica da vida de Ricoeur. Esta narratividade filosófica não é uma biografia intelec-
tual. Antes, ela culmina, no seu último estrato de vida (após os anos 1990), das questões
religiosas nas categorias criadas em sua filosofia (a ética menor, o justo, o si-mesmo como
um outro). Dentre as passagens do espiral, a que questão de Deus é inesgotável, pois está
relacionada às origens e torna possível as condições para a esperança. A onto-teologia, a
despeito de responder o ser, é uma limitação de Deus. Segundo Ricoeur, Deus e o ser devem
ser pensados não no sentido da fusão dos termos, mas no sentido da convergência dos con-
ceitos.852 A questão se Deus é o ser ou outra coisa não deveria, para Ricoeur, ocupar o cen-
tro da reflexão, uma vez que ela está além da capacidade humana de apreensão conceitual.
Os limites do pensamento humano deveriam ser contemplados na aproximação desta ques-
tão. O que resta dizer sobre Deus? A resposta ricoeuriana, ao aproximar o acaso da decisão
no final de sua vida, prefere, no lugar da palavra “Deus”, a expressão de Schelling: “fundo
sem fundo”.853 Deus é a primeira questão que implica na dobra no pensamento do filósofo.
Não obstante, é fundo sem fundo pela inesgotável fonte de reflexão que advém desta ideia-
limite. Entretanto, sem a pretensão de secar o tema, Ricoeur vai além e surpreende com uma
resposta teológica, a mesma de João: “Deus é amor”.854 Se a fórmula “Deus é amor” é mais
eficiente que “Deus é o ser”, “Deus é o fundo sem fundo”, Ricoeur responde com a metáfo-
ra, ao sugerir a complexidade do amor na mesma esfera da complexidade da abordagem de
852 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 358. 853 Ricoeur desenvolve sua reflexão entre “Deus” e o “fundo sem fundo” na resposta da primeira pergunta ao
final de sua palestra. Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 854 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 183.
189
Deus. O ser é respondido de diversas maneiras, enquanto o amor é vivido na expressão-
limite, daquilo que Huskey denominou de sobreposição sincrônica.855
A sobreposição sincrônica, ao lado dos outros termos como justaposição conflitual,
dupla adesão e situação-limite, demonstra a complexidade do pensamento de Ricoeur na
tentativa de efetuar uma dobra que não restrinja outras dobras.856 A dobra original é o teô-
nimo. Deve-se esclarecer que a representação de Deus que não se esgota nem se limita é
devido o próprio movimento da dobra na sobreposição sincrônica. O exemplo retomado é a
revelação de Deus a Moisés no Sinai. “Encontrar Deus na narrativa de Moisés da sarça ar-
dente não é a mesma coisa que encontrar a própria sarça ardente”857. Há uma diferença entre
a sarça ardente e Deus na narrativa da sarça ardente. A sobreposição sincrônica coloca iden-
tidade e diferença no seio da narrativa. Do mesmo modo, a descrição de Deus se difere de
um conhecimento de Deus. A expressão-limite é a realidade linguística da nomeação de
Deus. Na tarefa da dobra da religião, Deus é aquele que aponta, mas não é igual ao que se
refere. A identidade e a diferença da manifestação de Deus na sarça ardente é a condição do
têonimo que não se limita no campo semântico do verbo ser, do hebraico hyh, ou do grego
einai.858 É necessário ao divino “ser o que é”. Trata-se de uma metáfora da expressão-limite
de Deus enquanto apontador que não é idêntico ao que se refere. A sarça ardente quer dizer
que Deus não é a sarça nem o fogo, mas algo além, que não pode ser apreendido pela duali-
dade. Em suma, Deus se manifesta, mas se difere do manifestado. Não é esta dinâmica da
própria dobra que desvia um caminho sem o renegar, possibilitando a ida e a volta, a mu-
dança e o movimento da primeira e a segunda ingenuidade?
A fratura está no limite da identidade da narrativa com a diferença da vida. A sobre-
posição sincrônica deste limite, pela fratura linguística, ressalta a incompletude do conhe-
cimento de Deus, o hiato aparente da impossibilidade da definição de Deus. Entretanto, há a
possibilidade de uma descrição de Deus na qual Ricoeur situa a sua filosofia e hermenêutica
religiosa. Das nomeações surgem dobras. A ontologia de Jó está no poder de falar e de ou-
vir, de narrar e de escutar, que leva a poiesis, i.e., o ato de criação no mais amplo sentido.
855 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 182. 856 Motivado pela adesão dupla, o pensamento do autor é inclusivo, no que diz respeito aos temas diversos, ao
invés de propor uma exclusão que desse originalidade metafísica à espiritualidade. Cf. RICOEUR, Paul. “De
l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, pp. 6-7. 857 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 182. 858 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 353.
190
Cristo não deve ser equivalente a Deus, segundo Ricoeur, afinal a nomeação de Cristo é
uma dobra na expressão-limite.859 Ricoeur, influenciado pela demitologização de Rudolf
Bultmann860 e a hermenêutica de Gerhard Ebeling, interpreta Cristo como um evento lin-
guístico, um acontecimento da palavra.861 Entre a ontologia bultianna e a hermenêutica ebe-
lingiana, o enfoque reside no teor existencial da recepção da palavra e a implicação dela no
ser. Dito isto, para entender Cristo é necessário entender o Deus de Jesus que é chamado de
Cristo.862 Há uma passagem do enigmático teônimo de Êxodo 3.14 para o Evangelho de
João 8.58, que afirma: “Antes de Abraão ser, Eu sou”. Para o cristão, Cristo é aquele que
auxilia na compreensão de Deus. Para Ricoeur, Cristo é um dos usos do verbo grego einai
estendido de Deus a Cristo863. A dinâmica do símbolo – aquilo que dá a pensar – de Jesus
enquanto símbolo de Deus864, fornece elementos para o entendimento de preocupações úl-
timas. Conforme escreveu Ricoeur em Nomear Deus, trata-se de colocar a palavra para tra-
balhar.865 A tarefa se dá no exame do mundo desdobrado pela palavra trabalhado na própria
palavra.866
A dobra se vale de diversos movimentos, inclusive o ateísmo. O teísmo deve passar
pela crítica ateia. Para Ricoeur, o ateísmo pode ser uma ponte entre a religião e a fé.867 Con-
forme ele escreveu em O Significado Religioso do Ateísmo, o ateísmo deve destruir o Deus
moral em sua condição de poder último de acusação e de proteção.868 É necessário construir
uma fé pós-crítica. O trabalho de Ernst Bloch, cuja declaração de que apenas um bom cris-
tão pode ser um bom ateu ou um bom ateu pode ser um bom cristão, acompanha o pensa-
mento da totalidade na esfera quebrada da fratura.869 A ambiguidade do ateísmo é o movi-
859 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 183. 860 Influenciado em parte, pois, para Bultmann, o mito deixa de ser mito, enquanto para Ricoeur o mito continua
sendo mito. 861 “Un autre théologien a beaucoup compté pour Ricoeur dans cette période, c'est Gerhard Ebeling. Post-
bultmanien, is a particulièrement insisté sur la parole, sur le Christ comme événement de langage, comme
advenir de la parole.”DOSSE, François. Paul Ricoeur: un philosophe dans son siècle, 2012, p. 233. 862 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 183. 863 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 362. 864 A teologia de Roger Haight, sacerdote católico jesuíta norte-americano, acompanha, de certa forma, a filoso-
fia de Ricoeur ao propor em sua obra Jesus, símbolo de Deus uma leitura cristológica cujo centro estaria no
simbolo religioso da figura de Cristo na preservação do mistério de Deus. Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbo-
lo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2005. 865 RICOEUR, Paul. “Nomear Deus”, In: Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, p. 186. 866 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 184. 867 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 187. 868 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism. Columbia University Press: New York and London,
1969, p. 82. 869 Cf. BLOCH, Ernst. Atheism in Christianity. New York: Verso, 2009.
191
mento que pode até implicar numa nova fé, segundo a sua abordagem religiosa. Do mesmo
modo que a metafísica poderia ser considerada numa nova fé para a tragédia clássica, ou a
fé de Jó poderia ser considerada uma nova fé para as leis arcaicas professadas em sua épo-
ca870, o reconhecimento de si na sobreposição sincrônica que se dá no mistério do teônimo
tem a tarefa de cavar debaixo da superfície para encontrar a dinâmica da fé e o sentido reli-
gioso tanto do ateísmo como do cristianismo.871
Ricoeur conclui sua reflexão sobre Deus e o ateísmo: “Um ídolo deve morrer para
que um símbolo do Ser possa falar”872. Ao invés de consolação (de um Deus que fala) há a
afirmação. Pela Palavra, Deus se afirma. “Se pudermos dizer que Deus é algo”, conclui
Huskey após a leitura de Ricoeur, “a nossa melhor afirmação seria que Deus é o logos, e é
através do logos que conhecemos e temos o nosso ser”.873 A dobra da religião coloca uma
perna na filosofia e a outra na teologia. Da filosofia, o trabalho da linguagem permite ques-
tionar a natureza da própria linguagem e, consequentemente, de Deus. Todavia, é da própria
condição da linguagem o acesso ao si, um movimento de regressão às questões fundamen-
tais e últimas. Estando Deus na esfera da linguagem – na esfera do pensamento, segundo
Lachelier – e na dinâmica do símbolo, a preocupação de Ricoeur é evitar o esvaziamento da
reflexão-Deus para qualquer idolatria ou dogmatismo. Estas reflexões acompanham a espiri-
tualidade da alegria do sim que vem da tristeza do não. i.e., um “não” ao Deus fundamenta-
lista é um “sim” ao Deus encarnado e possível. O caminho da linguagem aponta para o
Deus encarnado e possível na dimensão simbólica. “Enquanto símbolo, seria a parábola do
fundamento do amor; a contra partida, na teologia do amor, da progressão que nos leva de
uma mera resignação do Destino para o vida poética”874, declarou Ricoeur num texto de
1969.
Em suma, a questão de Deus, pela dobra, está intimamente relacionada às possibili-
dades. Assim como Levinás e Tillich, Ricoeur experimentou o Holocausto e tantas outras
870 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação da filosofia e ateísmo na esfera religiosa segundo Ricoeur,
cf. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, pp. 84-91. 871 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 88. 872 “Such, I believe, is the religious significance of atheism. An idol must die, in order that a symbol of Being
may speak”. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 98. 873 “If we must say that God is something, our best assertion may be that God is logos, and it is through logos
that we have our being and that being is made known to us” HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on
Hope: Expecting the Good, 2009, p. 189. 874 “As a symbol it would be a parable of the ground of love; it would be the counterpart, in a theology of love,
of the progression which led us from a mere resignation of Fate to a poetic life” RICOEUR, Paul. The
Religious Significance of Atheism, 1969, p. 98.
192
fraturas da existência. É necessário pensar em um novo Deus ou em um outro Deus. A in-
fluência de Heidegger e Levinas se faz presente: Ricoeur nos apresenta um Deus pós-
teísmo, i.e., um “Deus pós-religião”. A partir disso, abre-se a noção do Destino, usado em
letra maiúscula propositalmente pelo autor. O destino está presente no coração de sua fé. O
destino assumido vira poética. Grande parte do conjunto da obra de Ricoeur aponta para a
poética.875 Ela não é o fim de sua filosofia, mas um dos horizontes, assim como a religião.
Pelo destino os entrelaçamentos, e.g., Deus, perdão e esperança são efetuados e concretiza-
dos.
IV.2.3 O difícil caminho do religioso
O horizonte da dobra da religião pressupõe um caminho do religioso. Encontra abri-
go na lição de Ricoeur, ao concluir sua obra monumental Tempo e Narrativa: “Uma teoria,
seja ela qual for, alcança sua expressão mais elevada quando a exploração do campo em que
sua validade se verifica termina no reconhecimento dos limites que circunscrevem seu do-
mínio de validade”876. Elevar a narrativa bíblica à fenomenologia da consciência do tempo
faz notar, ao leitor motivado pela dobra existencial, os limites de cada narrativa na refigura-
ção do tempo pela narrativa. A revelação de Deus no Sinai não permite de modo nenhum
reduzir a eternidade à imutabilidade de um presente estável, mas anunciar a fidelidade de
Deus na história de seu povo.877 A ampliação gradual dos limites da narrativa acompanha os
gêneros literários bíblicos. Em Gênese 1-11, o patrimônio cultural da humanidade, prepara-
se um tempo novo (evento do êxodo); o caráter transitório da vida é explorado nos Salmos e
no livro de Eclesiastes. Segundo Ricoeur, “essa diversidade de tonalidade combina com um
pensamento essencialmente não especulativo, não filosófico, para o qual a eternidade trans-
cende a história do meio da história”878. A refiguração do tempo pela narrativa extrapola
limites entre o ser e o além dos ser. “Ora, é sempre num mundo possível diferente que o
tempo se deixa ultrapassar pela eternidade”879. Conforme já observado no terceiro capítulo,
875 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 38-39. ABEL, Olivier. “Ricoeur sceptique?”, In: Hommage à
Paul Ricoeur. Journée de la philosophie à l’UNESCO, 2004, p. 10-12. 876 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 441. 877 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, pp. 448-449. 878 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 450. 879 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 458.
193
sobre a questão da hermenêutica bíblica, a exegese bíblica chamou a atenção inicial de Ri-
coeur acerca dos limites da temporalidade.880 A Bíblia, ao invés de esgotar a aporia do tem-
po, alia-se à tarefa do mistério do tempo e, em tal exercício, “suscita, antes, a exigência de
pensar mais e de dizer de outra forma”881. Trata-se, portanto, de uma fonte, não exclusiva,
mas de inspiração, para a hermenêutica do si. O núcleo duro da consistência da dobra da
religião encontra-se no espiral de uma vida que se reconhece na medida em que busca além
das aporias e responde com narrativas significativas. Este empreendimento permite ao indi-
víduo os passos para o reconhecimento e a capacidade.
A dobra do teônimo implica diretamente sobre a terminologia filosófica do “homem
capaz”, o “ser humano capaz”. O difícil caminho do religioso (subtítulo da palestra A Cren-
ça Religiosa882) insere a esfera da crença na tarefa da hermenêutica do si pelo problema da
linguagem. “É pelo o meu desejo de ser, pelo o meu poder de existir, que o crescimento
religioso pode me alcançar”883, atestou Ricoeur. A ontologia da dobra se dobra para o possí-
vel linguístico. Trata-se de uma nova figura assumida pela atestação para um horizonte de
vida cujo caminhar não se restringe apenas ao pensamento e implica numa ação.884 A filoso-
fia de Ricoeur não se restringe nos campos do saber, mas se abre para as fissuras da condi-
ção humana.885 Partindo da distinção entre agir e caminhar, praxis e pathos, o homem capaz
é aquele que age e sofre ao mesmo tempo. Nas fissuras da existência, Ricoeur elenca quatro
momentos do ser humano capaz: (1) a capacidade da palavra de um locutor que pode dizer
algo sobre alguma coisa a qualquer pessoa, i.e., o discurso; (2) a capacidade de ação do
agente encarnado capaz de produzir as mudanças no mundo, de tornar possíveis os eventos;
(3) a capacidade, de narrar, i.e., o sujeito que a partir de uma narrativa histórica busca sua
identidade narrativa; (4) e, por fim, a capacidade de imputação de um sujeito moral respon-
880 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 460. 881 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 463. 882 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo]. Produção de Mission 2000 en France. França,
Universités Numériques Thématiques, 29 de Novembro 2000. 1 vídeo digital online, 80 min. Colorido. Som. 883 “C’est en mon désir d’être, dans mon pouvoir d’exister que la flèche du religieux peut m’atteindre” Cf. RI-
COEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 884 Importante para Ricoeur é a noção de ação. Em outras palavras, a praxis, enquanto ação humana, em sua
complexidade, apontam para a implicação ética da filosofia motivada por uma fenomenologia do agir. Sobre
a hermenêutica da ação e sua relação com a praxis com implicações éticas no pensamento de Ricoeur, Cf. os
capítulos seis a oito de O Si-mesmo como um outro. 885 DOSSE, François. “Une phenomenologie de l’agir”, In: Paul Ricoeur: Un philosopphe dans sons siècle, 2012,
pp. 68-69.
194
sável pelos atos dos quais se reconhece ser o verdadeiro autor.886 É na incapacidade de se
dizer algo, de se contar algo ou de ser algo que a possibilidade surge. Além disso, é na ne-
gação da impossibilidade de algo (a tarefa negativa) que, segundo Ricoeur, a mensagem
religiosa se destina ao ser humano capaz que se encontra na tarefa do ser entre a capacidade
e a incapacidade. Neste momento, podemos aprofundar o difícil caminho do religioso no
caminho da dobra da religião.
Segundo Ricoeur, “nós podemos dizer que o religioso está ligado fundamentalmente
ao fundo da bondade original, mantido em cativeiro e escondido”. Esta dimensão da religião
remete à palavra enquanto libertação da bondade humana.887 O tema da bondade humana,
inserido na raiz da finitude e das aporias, é fruto das meditações ricoeurianas sobre A Reli-
gião nos Limites da Simples Razão, de Kant. O misterioso fundo da bondade sustenta-se na
tripla articulação do fenômeno religioso utilizado pelo próprio Kant: o plano simbólico, o
plano das crenças e o plano da existência comunitária. No plano simbólico, e.g., na cultura
ocidental – que é judaica ou cristã – o símbolo pode ser pensado em termos de “simbolismo
cristão”. Este símbolo, dentre outros, exerce a capacidade de intervenção no plano da ima-
ginação. Trata-se de um relacionamento original com o mundo como evento fundador de
sentido que, na dobra da religião, implicam em ação bondosa e justa. No plano da crença, a
saber, é o ato da recepção das boas novas cristãs anunciadas pelas narrativas religiosas
apontam para o mesmo fim da praxis do bem. “Crer” é, em suma, “”acreditar no discurso
dos outros que testemunharam a favor do poder de regeneração do símbolo de Cristo”888.
Crê-se, no plano individual e comunitário, pelo bem comum e pelas instituições justas. Faz-
se presente a ética e a justiça na mediação do simbolismo fundamental e a crença intelectual
que serve para o pensamento das qualidades de uma crença em algo que inspira e motiva
para um viver correto e bondoso. Neste sentido, é mais preciso, para Ricoeur, falar de “crer
886 “Capacité de parole d’un locuteur qui peut dire quelque chose sur quelque chose à quelqu’un: discours. Capa-
cité d’action d’un agent incarné capable de produire des changements dans le monde, de faire arriver des
évènements. Capacité de raconter, d’un sujet historique en quête d’identité narrative. Enfin capacité
d’imputation d’un sujet moral responsable des actes dont il se reconnaît être l’auteur véritable.” Cf. RI-
COEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 887 “On peut dire toutefois dès maintenant que le religieux aura fondamentalement partie liée avec ce fond de
bonté originaire tenu captif et caché, en un mot avec la libération de la bonté.” Cf. RICOEUR, Paul. La cro-
yance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 888 “Croire en la parole de ces autres qui témoignent en faveur de la puissance de régénération du symbole chris-
tique”. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.
195
em” do que “crer que”.889 A crença em algo se inicia na recepção do teônimo e a esperança
de uma possibilidade boa para a existência. A dificuldade do caminho religioso encontra-se
no paradoxo da impossibilidade de se fazer o bem quando se está chamado para tal tarefa.
Não por acaso Ricoeur declarou: “o religioso tem por função a abertura do fundo da bonda-
de antes mantido em cativeiro”.890
IV.2.4 O caminho da sabedoria prática
A dificuldade do caminho pede por capacidade e possibilidade. O ser humano capaz é
o destinatário da religião e pelo espiral de uma vida torna possível o fundo de bondade. A
ação da sabedoria opõe-se ao fatalismo, ao interpretar, em um movimento dialético positivo,
os eventos que figuram o horizonte da expectativa.891 Na mediação do símbolo, da crença e
da convivência comunitária, motivado pelo caráter da bondade da e justiça, a inquietação
proveniente dos problemas impostos pela existência encontram na religião “a capacidade
extraordinária de tornar o homem ordinário capaz de fazer o bem”892. Seguindo Kant, deve
ser destacado constantemente, a face luminosa da religião está na ação boa e justa. Seguindo
as orientações de Kant, no livro História e Verdade, Ricoeur evoca a parábola do bom sa-
maritano para ilustrar o fim ético da religião diante da fatalidade e do trabalho das apori-
as.893 Neste âmbito, a finalidade da religião é ética e a vocação fundamental da religião é
moral, i.e., a capacidade de se fazer o bem.894 Os medievais sustentavam conceitos éticos de
“noções comuns”; Kant, a concepção da autonomia do sujeito moral; Ricoeur, “a relação
primordial entre uma liberdade que surge e uma regra que se direciona a um sujeito capaz
889 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 890 “Le religieux a pour fonction la délivrance du fond de bonté des liens qui le tiennent captif”. RICOEUR, Paul.
La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 891 “To avoid the pitfall of fatalism, Ricoeur points to the necessity of always interpreting our ‘being-affected-by-
the-past’ in positive dialectical tension with our horizon of expectancy.” KEARNEY, Richard. Poetics of
Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 82. 892 “La capacité extraordinaire de rendre l’homme ordinaire capable de faire le bien”. 893 Cf. RICOEUR, Paul. “Le socius et le prochain”, In: Histoire et vérité, Points Seuil: Paris, 2002, 408p., p. 99. 894 A despeito da particularidade de cada uma no pensamento do filósofo, ética e moral perfazem o mesmo cam-
po do que podemos denominar de “sabedoria prática”. Cf. RICOEUR, Paul. “Ethique et morale”, In: Lectures
I. Paris: Seuil, 1991, p. 256.
196
de imputação”895. Ser capaz de fazer o bem está no nível da articulação entre a posição do si
e a imposição da regra, i.e., a aporia da autonomia. Trata-se da primazia da ética sobre a
moral. Em outras palavras, da visada em “vida boa” com e para outrem em instituições jus-
tas.896 A capacidade efetiva de agir para o bem, na dobra da religião, encontra-se na auto-
nomia do sujeito que se reconhece na tarefa do ser mediada pela hermenêutica do si que tem
no teônimo e nas aporias religiosas a possibilidade concreta da ação justa.
Ao examinar a ação, além de Kant, Ricoeur reporta a Paul Tillich e a seu conceito de
“a coragem de ser”897. A coragem opera a articulação entre o religioso e a moral de modo
que a ação ultrapassa os conteúdos normativos para alcançar o agir segundo o bem comum.
Para o caminho do bem, a coragem, longe de esgotar o tema do amor – a finalidade da ética
da dobra da religião –, como um ato humano, como matéria de avaliação, é um conceito
ético; como autoafirmação do ser de alguém é um conceito ontológico.898 Segundo Tillich,
“coragem do ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles
elementos de sua existência que entram em conflito com sua autoafirmação essencial”899. A
dobra, em sua condição reflexiva e em ato corajoso, implica a meditação do reconhecimento
de si e do outro para o caminho do bem. Com isso, na autoafirmação da religião em sua do-
bra, motivado pela coragem de ser e pela confiança incondicional, o ser humano capaz es-
capa da primeira ingenuidade e não ostenta diferença extraordinária na segunda ingenuida-
de.900 Este é o percurso da dialética entre sedimentação e inovação, presente nos dois pri-
meiros volumes de Tempo e Narrativa. O exame da hermenêutica, na busca pela potência
do ser que se sedimenta e se inova, contempla a religião em si mesma na tarefa do reconhe-
cimento, porém, consciente e reservada de vícios. A “violência simbólica” da inquisição,
das guerras religiosas, das contradições de corpos, do sacrifício das religiões arcaicas , na
895 “Le rapport primordial entre une liberté qui se pose et une règle qui s’adresse à un sujet capable
d’imputation” RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 896 O componente primeiro da ética aristotélica do “viver-bem”, “vida verdadeira”, i.e., a “vida boa” é aquilo que
deve ser noemado em primeiro lugar porque é o próprio objeto da visão ética. Cf. RICOEUR, Paul. O Si-
mesmo como um outro. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 186-187. 897 “A coragem de ser” é uma expressão (também título do livro filosófico) de Paul Tillich, no qual ele trabalha a
ansiedade e a falta de sentido em relação ao fundamento do ser: a fé absoluta. Cf. TILLICH, Paul. A Cor-
agem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 146p. 898 Cf. TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 3. 899 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 3. 900 “A coragem participa da auto-afirmação do ser-em-si, participa da potência do ser que prevalece contra o não-
ser”. Cf. TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 140. Deste modo, a essência da coragem combina de
Tillich com a tarefa hermenêutica de Ricoeur.
197
condição de “vícios da religião”, de inovações quebradas, denunciam a propensão para o
mal mesmo na própria religião (que tem em seu discurso a inclinação para o bem). Trata-se,
portanto, de renunciar o sonho de uma super-religião que pretende qualquer totalização.901
Evidentemente o caminho religioso, pela adesão de cada indivíduo, evoca a fundação do
próprio indivíduo em seus símbolos e narrativas que sustentam a sua identidade no mundo.
Entretanto, a preocupação religiosa e os sentimentos religiosos não devem ser identificados
como o fim último da existência individual nem coletiva. Essas preocupações e sentimentos
são comuns na condição humana, transponíveis ou comunicáveis de uma religião à outra,
justamente pela queda original e a finitude. Isto quer dizer, a ideia de uma super-religião
(que pretende ser a única narrativa possível de uma fenomenologia da consciência do tem-
po) perde a capacidade de perceber as manifestações comuns diversas nas singularidades da
vida. A reflexão do sentimento de dependência absoluta – o sentimento religioso por exce-
lência – segundo Shcleiermacher, é proposto como a precedência da palavra à toda palavra
articulada no discurso.902 Em termos mais apropriados, para o caminho da religião, Ricoeur
recorre a Tillich a respeito da dimensão religiosa de uma confiança incondicional a despeito
do acaso, um compromisso total, apesar de qualquer hesitação ou dúvida. A confiança in-
condicional, a despeito do acaso, em ato corajoso, vai ao encontro do pensamento de Ri-
coeur em assumir o acaso no destino.
O intricamento do caminho religioso com a sabedoria prática está na religião como
ideia-limite. Tal ambição encontra-se na articulação do tripé kantiano do símbolo funda-
mental, da crença intelectual e da mediação comunitária com o “fundo sem fundo”, de
Schelling. A ideia-limite de uma religião, ao entendimento de Ricoeur, mesmo no fundo do
abismo, responde com sentidos para a vivência individual e comunitária por aquilo que ele
denomina de “o simbolismo do bem”. A religião é um elogio à possibilidade do bem e uma
opção pela ação justa. Na tarefa da dobra da religião, Ricoeur resgata o simbolismo da torre
de Babel ao enfatizar a dimensão linguística inerente na religião. Um ponto em comum en-
contra-se no trabalho da tradução. A linguagem, assim como a religião, não é universal. Há
línguas maternas e línguas estrangeiras. A capacidade do aprendizado de outros idiomas,
901 “La première à prendre en compte est qu'il faut renoncer au rêve d'une super-religion.” RICOEUR, Paul. La
croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 902 “Ainsi le sentiment de « dépendance absolue » dont parle Schleiermacher, que j’interprète entre autre comme
la précédence de la parole à toute parole articulée en discours”. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse.
[Filme-vídeo], 2000.
198
pela “hospitalidade linguística”, permite a transição e compreensão em diferentes culturas,
em diferentes mundos. Esta dinâmica aproxima-se da crença religiosa em meio a outras
crenças e transporta, no plano da linguagem, a possibilidade do conhecimento e reconheci-
mento de outras tradições religiosas. A exploração das diferentes crenças religiosas é uma
das tarefas da dobra da religião na intenção de compreender e traduzir outros mundos para o
próprio mundo. A ação boa e justa, a finalidade da religião, comporta a interpretação ricoeu-
riana da sensibilidade com o outro, com o diferente.903
A “sabedoria prática”, da qual Ricoeur aponta no final de sua meditação acerca da
crença religiosa, é a ação do bem diante da violência mimética no campo religioso.904 A
sabedoria prática constitui a prática diária da tolerância.905 O encontro de diferentes religi-
ões e convicções, na via da tolerância, pode iniciar um movimento progressivo de uma as-
censão árdua. O estado da subida alcança outros degraus, nos quais a confissão religiosa e o
princípio de justiça se tornam comum. O direito de igualdade para confessar uma determi-
nada religião é garantido pela tarefa do reconhecimento do outro em sua individualidade.
Estas reflexões podem ser enaltecidas com a própria vida de Ricoeur e seu diálogo interno
acerca das aporias religiosas. Segundo ele,
no buraco da minha convicção, da minha convicção, eu reconheço que há
um fundo que eu não controlo, nem pela linguagem, emoção ou ação. Eu
discirno no fundo da minha adesão uma fonte de inspiração que, pela sua
exigência de pensamento, sua força de mobilização prática e sua generosi-
dade emocional, ultrapassa a minha capacidade de acolhimento e de com-
preensão.906
Metaforicamente, Ricoeur remete à imagem do cume de uma montanha. Para ele, a
adesão religiosa, sendo esta uma das questões centrais implicadas pela dobra da religião, é
tida como um equilibrar-se no cume da montanha, no qual o gesto do equilíbrio separa o
903 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 904 Para maiores informações sobre a violência mimética, consultar: GIRARD, René. A violência e o sagrado.
São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990. 391p. 905 “Je voudrais tirer une ultime conséquence de mon interprétation du phénomène de la violence dans le champs
religieux. C’est une conséquence pratique, plus assurée que les précédentes et relevant de ce que j’appelle la
« sagesse pratique ». Elle concerne l’usage quotidien de la tolérance. RICOEUR, Paul. La croyance religieu-
se. [Filme-vídeo], 2000. 906 “Au creux même de ma propre conviction, de ma propre confession, je reconnais qu’il y a un fond que je ne
maîtrise ni par le langage, ni par l’émotion, ni par l’action ». Je discerne dans le fond de mon adhésion une
source d’inspiration qui par son exigence de pensée, sa force de mobilisation pratique, sa générosité émo-
tionnelle, excède ma capacité d’accueil et de compréhension” RICOEUR, Paul. La croyance religieuse.
[Filme-vídeo], 2000.
199
caminho justo e bom do caminho leviano e mal. Na figura da sociedade, uma montanha
nunca está sozinha: ela faz parte de uma cadeia composta por outras montanhas. A tolerân-
cia exagerada corrompe o ceticismo e torna a diferença indiferente. O desafio inerente na
dobra da religião é enraizar a crença no solo da montanha, assim como uma língua nativa, e
abrir-se lateralmente, amplamente, i.e., abrir-se para outras crenças (no caso de diferentes
religiões) e outras línguas (no caso de diferentes culturas). O solo da língua nativa não é o
único solo possível, assim como a religião praticada não é a abordagem exclusiva de mundo
– mas o alargamento de um mundo possível. Como manter-se no cume da montanha sem
perder a identidade religiosa? Este é o grande desafio invocado por Ricoeur ao fim de uma
de suas últimas reflexões sobre a crença religiosa.907 Para este desafio, a dobra da religião
evoca o destino.
IV.3 Destino da dobra
No centro da tensão entre a educação religiosa e a formação intelectual, para Ri-
coeur, conforme registrado em sua autobiografia, havia uma convicção ímpar, cujo movi-
mento instiga o espiral de uma antropologia filosófica que tem na dobra da religião um âni-
mo singular: um sentimento profundo de que a palavra humana é precedida pela palavra de
Deus.908 Trata-se de um sentimento que o instigará para a ampliação e a compreensão da
reflexão da ideia-limite, de modo a contemplar tanto o discurso filosófico como o “confes-
sante” nos domínios da via longa. Aqui o espiral de Ricoeur segue o questionamento de uma
epistemologia da interpretação em relação à uma ontologia da compreensão.909 A saber, a
dobra da religião toma o seu ponto de partida na distinção entre filosofia e religião e situa
na aporia do teônimo a origem deste movimento. É precisamente aqui, na totalidade herme-
nêutica e existencial, que o caráter fundamental do trabalho é exposto na dobra existencial
resgata o sentido escondido de textos, i.e., o sentido simbólico de uma vida que não cabe em
descrições ou conformidades.
907 RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000. 908 RICOEUR, Paul. Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle, 1995, p. 14. 909 Cf. MARTINS, Maria Manuela Brito. “As razões hermenêuticas para ‘Pensar a Bíblia’”, In: HENRIQUES,
Fernanda (Org.) A filosofia de Paul Ricoeur: Temas e percursos. Ariadne Editora: Coimbra, 2006. p. 382.
200
A dobra da religião, no limite da aporia, é uma dobra existencial por não poder viver
conforme os cânones estreitos das instituições e dos paradoxos. Ela pede não apenas pelo
incansável exercício do pensamento, mas pela ação, ou seja, o engajamento ontológico, éti-
co e justo nascido em resposta aos eventos vividos. A religião, enquanto narrativa, é uma
réplica à aporia de modo a torná-la produtiva.910 Nesta atitude, o acaso transformado em
destino – a fronteira do pensamento religioso de Ricoeur – é assumido na esfera individual e
também na esfera intelectual.911 Trata-se de uma dobra pensada, uma dobra refletida, uma
dobra que alcança a existência na medida em que a fé é uma fé assumida como destino.
Inaugurada pela nomeação de Deus, ao trabalhar sobre o encontro entre duas culturas – no
caso, a cultura hebraica do nome de Deus e a cultura helênica do Ser – Ricoeur conclui que
tal encontro, “ocorrendo por acaso, tornou-se um destino, por meio da obra secular de entre-
laçamento conceitual”912. O questionamento mais refinado aponta para o não esgotamento
dos acasos do teônimo que se tornaram em destino na história do pensamento e da religião.
Por que não supor que o escritor bíblico procedeu como os filósofos gregos
e ergueu a um nível até então desconhecido um verbo que era tão comum
em sua língua como o verbo ser em grego, latim ou nas línguas contempo-
râneas? Em outras palavras, por que não supor que Êxodo 3.14 estava
pronto dede o início para acrescentar uma nova região de significado à rica
polissemia do verbo ser, explorado diferentemente pelos gregos e seus her-
deiros mulçumanos, judeus e cristãos?913
Há uma originalidade singular do acaso transformado em destino, a iniciar pela di-
mensão enigmática do Tetragrama. A mesma originalidade encontra-se na vida de Ricoeur.
Retomamos a declaração mais importante para a dobra da religião quando o filósofo descre-
ve a sua fé religiosa: “um acaso transformado em destino por uma escolha contínua”914. O
910 Dentre as máximas acerca da aporia da temporalidade, Ricoeur sustenta: “A réplica da narratividade às apori-
as do tempo consiste menos em resolver as aporias do que em fazê-las render, em torná-las produtivas”.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 441. 911 Cf. a conclusão de A Simbólica do Mal, a hipótese do trabalho de Ricoeur é de ser impossível simplesmente
justapor reflexão e confissão – filosofia e religião. O tema do acaso é comum à filosofia e à teologia, de mo-
do que uma nem outra pode parar no meio do caminho da reflexão, mas alargar a interpretação e a coerência
dos sentidos em reflexão mutua. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, pp. 365-366. 912 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 362. 913 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 363. 914 “‘Un hasard transformé en destin par un choix continu’: mon christianisme”. RICOEUR, Paul. Vivant jus-
qu’à la mort: suivi de fragments. Éditions du Seuil, Mars 2007, p. 99.
201
destino em questão é o individual, em contraponto ao destino heideggeriano da historicidade
de uma comunidade.915 Relaciona-se ao desapego do si.916 Segundo Ricoeur,
Em certo sentido, esse desapego de si mesmo é parte da ordem reflexiva. É
tanto uma ética como um ato especulativo. E isso significa renunciar não
apenas os objetos empíricos que são ordenados pela razão, mas também
aqueles objetos transcendentais da metafísica que poderiam ainda fornecer
suporte para pensar o incondicionado.917
A reflexão do destino torna-se possível pelo desapego e desprendimento das coisas
que não ajudam na tarefa do reconhecimento do si. A primeira dobra efetuada, a saber, a
possibilidade do nomear Deus, desprende-se de conceituações formais e dogmas institucio-
nais para uma abstração no lugar de afirmações originárias. A fenomenologia do possível
assumida no destino implica necessariamente numa ética – que é uma ética possível. Com
isso, deve-se desenvolver o destino de uma vida interpelada pela dobra da religião. No des-
tino, alguns elementos são configurados pela dobra. Dentre eles, a ética é o seu elemento
mais notável.
IV.3.1 A ética do possível
Até então, a questão do ser se faz central na filosofia e na hermenêutica religiosa de
Ricoeur. Segundo Gilbert Vincent, a questão do ser, sobretudo na esfera da religião, não é
apenas linguística, mas ética.918 Isto quer dizer que há um projeto ético no pensamento de
Ricoeur, cujo horizonte insere a religião na ontologia quebrada. A ética de Ricoeur trabalha
na bifurcação entre filosofia e teologia. A ética não é consequência da nomeação de Deus.
Ricoeur trabalha a questão ética na bifurcação da filosofia e da teologia. Como ele trabalha
nessa bifurcação, ele se arrisca a buscar os lugares de intersecção na fase mais madura.919 A
bifurcação não é de imediato visível. Ela se torna visível na demonstração da dobra. A ética
915 Cf. RICOEUR, Paul. “Narrative Time”, In: Critical Inquiry, Vol. 7, No. 1, On Narrative, 1980, p. 183. 916 Cf. RICOEUR, Paul. Essays on Biblical Interpretation. Minneapolis: Fortress Press, 1980, p. 71. 917 “In one sense, this letting go of self is still part of the reflective order. It is both an ethical and a speculative
act. And it means renouncing not only the empirical objects that are ordered by reason, but also those trans-
cendental objects of metaphysics that might still provide support for thinking the unconditioned.” RICOEUR,
Paul. Essays on Biblical Interpretation. Press, 1980, p. 72. 918 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 111. 919 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251.
202
se torna aparente no trabalho da ética filosófica, aspectos da ética grega920, kantiana, hegeli-
ana, husserliana e heideggeriana. A questão do bem e do mal é colocada, em termos filosó-
ficos, na tragédia, enquanto, na teologia, em termos da graça. A aporia leva Ricoeur a bus-
car a questão da ética acima da aporia do bem e do mal. A questão do bem e do mal é uma
fratura. A fratura é tão profunda que “o mal na religião tende então a tornar-se o mal da
religião”921. Religião e ética sofrem o que a ontologia sofre também: ela é fraturada, é que-
brada. O ser humano vivencia a ética em sua não realização plena. Há possibilidades da vida
boa, mas sempre relativo ao absoluto que inexiste. A tarefa do reconhecimento de si nas
possibilidades se insere na fratura ética, na qual a distinção do justo acontece apesar da pos-
sibilidade real do mal. O tema do mal continua aporético. Entretanto, a linguagem humana é
sintoma da profunda fratura que a criação sofre.922 Tal fratura não se supera apenas com a
linguagem. Há a necessidade de que Deus fale para que esta superação seja possível. No
falar de Deus aparece a graça e o perdão. E na recepção da graça e do perdão, surge a res-
posta e a responsabilidade.
O principal da palavra de Deus e da linguagem, enquanto palavra de salvação e pa-
lavra de esperança, é a graça e o perdão. A resposta ética é a recepção do paradoxo da graça
e do paradoxo do perdão. A ética não soluciona a aporia, mas possibilita a afirmação de
Deus na graça e no perdão. Graça e perdão é a proposta de Ricoeur para o trabalho da refle-
xão do bem e do mal realizado na encarnação da aporia.923 Apesar de a questão não resolver
os problemas do bem e do mal na teologia e nem na filosofia, pela aporia o problema se
mantém, e na revelação há a possibilidade de uma esperança que não é dada na esfera do
bem e do mal. A esfera do bem e do mal é uma limitação humana e um outro horizonte deve
surgir. A ética é um dos entrelaçamentos da dobra que acontece na virada religiosa e o des-
tino. A dobra da religião situa a ética do possível no coração da própria religião, aquilo que
denominamos como a primeira dobra da religião: o nome de Deus.
Ricoeur segure, ao analisar a dificuldade de uma teologia do nome de Deus após os
séculos de filosofia – e, sobretudo, após as críticas de Nietzsche –, que “a ambição do pen-
920 A exemplo, o termo “vida boa”, utilizado por Ricoeur em seus trabalhos maiores, é uma herança da filosofia
ética grega. 921 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica Filosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo-
sofia, 1996, p. 39. 922 Cf. RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 86. 923 Cf. o último capítulo, “Liberdade na luz da esperança”, do livro Ensaios sobre a interpretação bíblica. RI-
COEUR, Paul. Essays on Biblical Interpretation. Minneapolis: Fortress Press, 1980, p. 107-115.
203
samento deve ser substituída pela força do testemunho e pela dimensão ética da Revela-
ção”924. Não podemos manter Deus sob o domínio humano, mas podemos submeter a ética
ao juízo divino. A ética, na esfera da ética do possível, é uma das dobras da religião no des-
tino humano. Ao destacar o papel de Emmanuel Levinas acerca da alteridade, “a face de
outros, como uma recorrência ética, pode ser o traço do Deus da Torá”925, conclui ele. Em
Deus Sem Ser926, Jean-Luc Marion, o mais brilhante filósofo-teólogo, segundo Ricoeur, é
brilhante justamente por partir das desafiadoras provocações a filosofia nietzscheana da
morte de Deus.927 O trabalho de Ricoeur incorpora, assim como Marion, a crítica filosófica
no limite e dialoga com a exegese de motivações existenciais. Se há uma ética possível, ela
deve assumir o crivo da vida em todas as suas dimensões e pluralidade, contradições e am-
biguidades, para, então, responder ao problema ético.928
Para a compreensão do projeto ético de Ricoeur, é necessário, em primeiro lugar,
destacar o percurso da via longa – conforme a incorporação da crítica filosófica no pensa-
mento religioso – e, posteriormente, o lugar da preocupação com o ser. Comum em todos os
seus trabalhos, a noção das mediações que permitem a reconfiguração do mundo toma como
base e ponto de partida a possibilidade. Ricoeur pensa na relação entre a realidade e a possi-
bilidade do melhor, no melhor mundo possível. Sobre isso, ele afirmou:
É sempre a partir do real ou da retrospecção sobre o real que o possível de-
ve ser concebido. Esta é a verdade contida na crítica bergsoniana da prima-
zia do possível sobre o real. Mas a capacidade da consciência ao projeto
nos obriga a inverter a precedência do real possível. Um evento torna-se
possível – uma possibilidade específica – porque eu o projeto. A presença
do homem no mundo significa que o possível supera o real e prepara o ca-
minho para ele.929
924 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 380. 925 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 380. 926 MARION, Jean Luc. God Without Being. Chicago: University of Chicago Press, 1991. 927 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 380. 928 Neste âmbito, Ricoeur aponta a profundidade de sua inquietação, que contemplaria, do ponto de vista filosó-
fico, na ideia da prioridade do outro – e toda questão levantada em O si-mesmo como um outro. Cf. RI-
COEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 929 “C’est toujours à partir du réel ou par rétrospection sur le réel que le possible doit être conçu. C’est la part de
vérité que contient la critique bergsonienne du primat du possible sur le réel. Mas l’aptitude de la conscience
au projet nous contraint à renverser la préséance du réel sur le possible. Un événement devient possible –
d'une possibilité spécifique – parce que je le projette. La présence de l’homme dans le monde signifie que le
possible devance le réel et lui frayer la voie.” RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté. Paris, Aubier,
1950, p. 53.
204
A ética do possível, conforme observado, é uma resposta ao chamado da vida. Para
Ricoeur, “a ética se define para mim pelo desejo da vida boa, com e para os outros, e no
desejo de instituições justas”930. Este projeto pode ser aberto na dobra da religião que tem a
sua origem no têonimo. A revelação do nome divino, faz notar Ricoeur, “é a resposta a uma
objeção que em si constitui um segmento de uma narrativa de chamamento”931. Deus, na
esfera da linguagem, responde à responsabilidade do indivíduo, assim como respondeu a Jó.
Faz-se notar a importância da imagem de Jó para a identidade religiosa de Ricoeur.932 Se-
gundo ele, tudo se inicia na revelação. Para Jó, a revelação está além do sinal: está na voz
de Deus. Jó não é o objeto mas o sujeito da relação: Deus fala a Jó.933 Há uma correlação
entre os eventos no mundo e o tornar-se, i.e., a realização do ser, segundo Ricoeur para Jó.
“Ouvir a Palavra torna possível ver o mundo em ordem”934, i.e., não se trata de uma respos-
ta, de uma solução, mas de uma dissolução pelo efeito dos eventos do mundo interpelados
pela confissão. A filosofia grega também percebeu algo semelhante. “A unidade do Ser e do
Logos torna possível ao ser humano pertencer ao todo enquanto fala do ser”.935 Há uma tro-
ca entre a palavra e a Palavra, que diz sobre o ser. A experiência de Jó, a qual Ricoeur tanto
se identifica, não é física, espiritual nem mística; ela é textual, é pela linguagem fratura-
da.936 Pela linguagem é possível associar as diferentes esferas da vida, como a poética e a
material, possibilitando a revelação.
O Deus não metafísico, i.e., o Deus da fé, aquele que é nomeado na primeira dobra
da religião, implica em questões para a filosofia que tem também uma atitude de fé – como
a filosofia de Ricoeur e tantos outros (e.g., Jean-Luc Marion). A graça e o perdão são fato-
res incluídos pela nomeação de Deus, os quais não são encontrados em outros pensamentos
com a exclusividade dada pela religião à estes tópicos. Ao nomear Deus, o ser humano se
coloca Coram Deo, i.e., na presença de Deus. O ser humano é obrigado a responder Coram
930 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 931 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 358. 932 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 178. 933 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 90. 934 “The hearing of the Word makes possible the sight of the world as order: ‘With the hearing of the ear, I have
heard thee, but now my eyes sees thee’.” RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism., 1966, p.
90. 935 “The unity of Being and Logos makes it possible for man to belong to the whole as a speaking being”. RI-
COEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 90. 936 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 94.
205
Deo. A resposta é o caminho para a responsabilidade e implica em responsabilidade ética.937
A ética e a ontologia se iniciam no chamado e na resposta. A dobra da religião caracteriza-
se pelo entrelaçamento da vida com a as situações limites. O lugar da revelação do nome
divino está no interior da órbita ética do mandato.938 Segundo Rosenzweig, os hebreus, na
condição de escravos, no êxodo, não buscavam uma aula ex cathedra de Moisés referente à
existência necessária de Deus. “Eles necessitavam, como seu hesitante líder, de uma certeza
que Deus estava próximo deles”939. A nomeação de Deus mantém a obscuridade do nome e
se faz presente no caminhar dos escravos no êxodo. “São os eventos, atos, pessoas que ates-
tam que o injustificado é superado aqui e agora, podendo abrir novamente o caminho para a
afirmação original”940, comenta Gilbert Vincent acerca da possibilidade aberta pela religião
que implica em dobras na vida. A despeito de qualquer hiato na fratura linguística dos no-
mes divinos, o teônimo efetua a sua dobra: ele traduz não apenas sentido, mas testemunho e
dimensão ética da revelação que seu nome exige. A ética do possível, portanto, não se trata
apenas de um domínio do conhecimento, mas de uma face de Deus que se mostra na face
humana justa que diz o nome divino.
O sentido de uma dependência radical, na medida em que se reata ao sim-
bolismo da criação, não deixa o homem face à face com Deus, mas o situa
no meio de uma natureza (...) objeto de solicitude, de respeito e de admira-
ção (...). O amor ao próximo, em sua forma extrema de amor aos inimigos,
encontra no sentido supra-ético da dependência do homem-criatura seu
primeiro vínculo com a economia da dádiva.941
A articulação da hermenêutica filosófica com a hermenêutica teológica é o trabalho
de pensamento original da dobra da religião que aponta para uma ontologia do agir ético. A
ontologia do agir, segundo Kathin Messner, implica um entrecruzamento das hermenêuticas
937 Apesar de a nomeação de Deus implicar na ética, nem todos aqueles que nomeiam Deus às vezes desenvol-
vem a preocupação ética. A relação do ser humano que nomeia Deus já está situando a ética como algo ne-
cessário. A ideia de Coram Deo provoca resposta. A conversa de Adão e Eva, Caim e Abel, com Deus, é o
estar diante de. A resposta do posicionamento implica na responsabilidade. Ela é sempre diante de alguém. 938 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 359. 939 ROSENZWEIG, Franz apud RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 383. 940 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 121. 941 “Les sens d’une dépendance radicale, dans la mesure où il se rattache au symbolisme de la création, ne
laisse pas l’homme face-à-face avec Dieu, mais le situe au milieu d’une nature (...) object de sollicitude, de
respect et d’admiration (...). L’amour du prochain, sous sa forme extrême d’amour des ennemis, trouve
dans le sentiment supra-éthique de la dépendance de l’homme-créature son premier lien avec l’économie
du don”. Texto publicado originalmente em Amor e justiça. In: RICOEUR, Paul, apud VINCENT, Gilbert.
La religion de Ricoeur., 2008, p. 51.
206
bíblicas e filosóficas no campo do amor e da justiça.942 O ser humano capaz é o modelo da
articulação entre amor e justiça. Neste sentido, o trabalho de Ricoeur aponta para uma ética
hermenêutica e uma hermenêutica ética. A linguagem da justiça é a prosa, enquanto a lin-
guagem do amor é a poética.943 A religião, para Ricoeur, é, a rigor, mediada pela linguagem.
A mediação tem a capacidade de unir, na mesma esfera linguística, pela metáfora, a lingua-
gem do amor e da justiça na religião.944 A primeira tarefa da dialética do amor e da justiça,
inspirado na linguagem religiosa, é de reconhecer a desproporção entre o formalismo das
expressões e a característica da justiça.945 Para isso, é necessário tomar o desvio da via lon-
ga, pois a distância entre o amor e a justiça é uma aporia. Não por acaso, Messner sustenta
manter a “tensão viva” para que a dialética do amor e da justiça possa, enquanto tarefa do
reconhecimento de si, possa ser uma tensão a favor do amor.946 Para isso acontecer, o lado
prático do amor e da justiça precisa ser fomentado na tarefa filosófica e teológica na refle-
xão da ética.
Ricoeur concorda com Rosenzweig acerca do projeto ético na religião. “A figura do
Si por excelência é a do herói trágico”947, observa Ricoeur, e Rosenzweig completa: “o he-
rói trágico da Antiguidade não é nada além do Si meta-ético”948. A mito-poética é acompa-
nhada pela ética. Foi destacada, ao longo da tese, a tensão mantida entre filosofia (ontolo-
gia) e teologia (religião). Ao trabalhar esta tensão, na crônica A Condição do Filósofo Cris-
tão, Ricoeur observou: “é assim que a tensão também é diálogo”949. É condição da dobra da
religião o diálogo, a alteridade, a via longa que encontra na racionalidade e na confissão
942 MESSNER, Kathrin. “Au croisement des herméneutiques philosophique et biblique”. In: BÜHLER, Pierre.
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 74. 943 MESSNER, Kathrin. “Au croisement des herméneutiques philosophique et biblique”. In: BÜHLER, Pierre.
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 75. 944 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e Mard de Launay, 2009, p.
220-245. 945 MESSNER, Kathrin. “Au croisement des herméneutiques philosophique et biblique”. In: BÜHLER, Pierre.
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 75. 946 MESSNER, Kathrin. “Au croisement des herméneutiques philosophique et biblique”. In: BÜHLER, Pierre.
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 76. 947 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 79. 948 “The tragic hero of antiquity is nothing other than the metaethical Self”, ROSENZWEIG, Franz. The Star of
Redemption, 2005, p. 82. 949 RICOEUR, Paul. Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filosofia, 1996, p. 144.
207
uma reflexão na perspectiva da esperança. Trata-se de uma “alteridade integral”950, cuja
finalidade encontra pactos de acordo, de congruência e de convivência mutua, sobretudo,
representados no auge da mito-poética. Trata-se de uma filosofia da imaginação religiosa.
Tal filosofia, ao acompanhar A Religião nos Limites da Simples Razão, de Kant, pretende
uma ética do sublime. Assim como o mundo é metalógico e Deus é metafísico, o herói das
grandes narrativas é meta-ético. Entretanto, um si apenas meta-ético não é suficiente. A cor-
relação entre as três dimensões criação, Deus e ser humano, na dinâmica do diálogo – ou
seja, da “alteridade integral”, pois não se pretende apenas o diálogo em si, mas a transfor-
mação pela alteridade – possibilita a ética. Do mesmo modo que um Deus que não pode
amar fecha-se em si mesmo e o mundo que não tem exterior não é mundo, o herói, “senhor
de seus ethos”, não pode ser ético sem a exterioridade e a relação com as duas outras esferas
da vida: o outro (o mundo) e o outro divino (Deus).951 A ética se faz presente na alteridade.
O trabalhos de O Si mesmo como um outro, de Ricoeur, a obra de Levinas, e Eu e Tu, de
Martin Buber, têm em comum o horizonte ético. A dobra da religião abre possibilidades
para a vida ética. “Estamos em plena ética”952, escreveu Ricoeur acerca da correlação entre
a figura da criação, a figura da revelação e a figura da redenção em Rosenzweig. A ética é
imperativo na dobra da religião pelo qual o mandamento “amarás o teu próximo” é elevado
no mais alto grau: é neste momento, justamente no mandamento do amor pelo próximo, que
o si é confirmado em seu lugar.953 O lugar do indivíduo no mundo compartilha de horizon-
tes comuns nas religiões. A despeito de diferenças, a preocupação religiosa busca a verdade
(ou, como diz Rosenzweig, a Verdade Eterna954). Tomando emprestada o centro da Estrela,
a eternidade, segundo Ricoeur, “designa uma qualidade do tempo ligada a uma experiência-
limite, a de uma certa imobilização do tempo, ao contrário do tempo cronológico que sucede
a si mesmo sem fim”955. Enquanto para o povo judeu há a “comunidade de sangue”, i.e., um
950 Expressão utilizada por Ricoeur para tratar da capacidade da fenomenologia para abrir a intencionalidade da
consciência para a diversidade de afecções correspondentes ao papel da religião. RICOEUR, Paul. Leituras 3
– Nas Fronteiras da Filosofia, 1996, p. 166. 951 Cf. RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas
fronteiras da filosofia, 1996. p. 79. 952 Cf. RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas
fronteiras da filosofia, 1996. p. 73. 953 “For man must love his neighbor as himself. Like himself. Your neighbor is ‘like you’. Man must not deny
himself. Precisely here, in this commandment of love of the neighbor, his Self is finally definitively confir-
med in its place”. ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption, 2005, p. 257. 954 Para mais detalhes acerca da relação entre a verdade e a eternidade, cf.: ROSENZWEIG, Franz. The Star of
Redemption, 2005, p. 403. 955 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
208
modo de ser judaico orientado pelas gerações – ou seja, figurado pela vida –, para o indiví-
duo cristão há a “membresia de uma igreja”, i.e., um modo de ser cristão orientado pelas
missões – ou seja, figurado pela via. O simbolismo em questão trata da interposição entre
vida e via, na qual um modo de ser privilegia a vida e o outro, a via. “A ideia original de
Rosenzweig é que essas duas maneiras de eternizar a experiência concreta são duas aborda-
gens incompletas e concorrentes, que concorrem para visar a Verdade”. A despeito do modo
de ser, a Verdade, tal qual é apresentada nas reflexões religiosas, implica no trabalho do si,
do conhecimento de si diante do mundo e no reconhecimento do outro. Ricoeur retoma os
trabalhos de Stéphane Mosès, Gershom Scholem, mas, sobretudo, Emmanuel Lévinas e sua
contribuição ao estudo da alteridade para a ética.956 Em suma, via, vida e verdade estão in-
timamente ligadas e implicam num trabalho todo de pensamento.
A dobra da religião, enquanto lugar de interseção dos temas entrelaçados até aqui, tem
na ética a solidez que sustenta sua autonomia. A dobra da religião é uma via para a vida que
é verdadeira. A despeito da pluralidade de linguagens e tradições religiosas – o que deno-
minou Lévinas por “impossível reunião”957 – a dobra da religião narra uma poética na mito-
poética. Nela, as interseções possibilitam entrelaçamentos típicos da religião, nos quais a
tarefa negativa, pela fratura, oferece questões à filosofia das quais um pensamento compli-
cado não poderia deixar de considerar. Ética, perdão e graça são alguns dos entrelaçamentos
do movimento da dobra. A dobra da religião, portanto, é a dobra da própria existência na
vida do indivíduo interpelado pelas interpretações metafóricas dos textos sagrados e os con-
teúdos que deles advém.
IV.3.2 Vivo até a morte: a escatologia da graça
A expressão “vivo até à morte” [vivant jusqu’à la mort], título da primeira obra pós-
tuma de Ricoeur, comporta consigo a escatologia da graça.958 A esperança é uma da aporias
teiras da filosofia, 1996. p. 75. 956 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-
teiras da filosofia, 1996. p. 66. 957 LÉVINAS, Emmanuel apud RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Ro-
senzweig”, In: Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, 1996. p. 66. 958 CF. BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre.
209
mais profundas de Ricoeur. Ela situa a aporia da esperança na imaginação que produz repre-
sentações que sustentam o desejo pela continuidade da existência. No início de sua carreira,
no Voluntário e Involuntário, a teoria do consentimento959 implica para a dobra da religião a
interpretação da esperança enquanto a destituição total diante da morte. Nas palavras de
Ricoeur, “toda existência ‘faz a diferença’ em Deus”960. A chave para esta certeza é a graça.
“Apenas a ideia da graça. Confiança na graça. Eu não pertenço nada. Não espero nada para
mim; peço por nada; Renunciei – Eu tento renunciar! – aclamando, exigindo”.961
Trata-se, segundo Bühler, da última aporia em Ricoeur: a possibilidade de nada
ser.962 A aporia do tempo, a ameaça pela finitude, não exclui a possibilidade do nada na re-
flexão motivada por uma escatologia, em outras palavras, não exclui a possibilidade do es-
quecimento de indivíduo por Deus. Na tensão desta aporia, Deus pode fazer nada dos indi-
víduos. Assim como Deus criou o mundo indecifravelmente, abandonar o ser pode ser parte
do projeto divino. A diferença da hermenêutica filosófica e do discurso religioso encontra-
se neste limite: Ricoeur se volta para a nomeação de Deus, o “tu” da relação, e adentra na
esfera da prece.963 Ricoeur, em espírito de oração, diz: “Deus, você fará o que bem entender
comigo. Talvez nada no final. Eu aceito não ser mais”964. A aceitação do destino é a possibi-
lidade real e concreta para a abertura de horizontes. A dobra da religião aponta para as in-
terseções possíveis, dentre elas, o papel do pensamento bíblico enquanto uma fissura de
reflexão na tarefa da hermenêutica do si. Assim, “uma outra esperança além do desejo de
continuar vivendo surge”965. Segundo Olivier Abel no prefácio de Vivo até a Morte!, “a
questão não diz respeito mais de um luto infinito para alguém que, como muitas vezes na
história da humanidade, morreu sem razão, mas antes de um reconhecimento infinito no que
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 102. 959 RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté I: Le volontaire et l’involontaire, Paris: Aubier, 1988, p. 417-452. 960 “It is then a relation to this becoming of God that the meaning of an ephemeral existence can in turn be sche-
matized as a ‘mark’ in God. Every existence ‘makes a difference’ in God”. Cf. RICOEUR, Paul. Living up to
Death, 2007, p. 43. 961 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 44. 962 CF. BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre.
FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques phi-
losophique et biblique, 2011, p. 98. 963 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 45, e BÜHLER, Pierre. “Lire, agir, sentir. Quand
l’imagination s’aiguise à l’aporie” In: BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe
lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique, 2011, p. 98. 964 RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 44. 965 “Then, a hope other than the desire to continue existing arises”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p.
44.
210
se refere a alguém que não nasceu para nada – e isso talvez poderia ser dito de todos”966. O
método da dobra da religião é o assumir o destino a despeito de, apesar de, não para a justi-
ficação de uma origem, mas para a libertação e realização de um fim. A dobra redireciona o
agir e o sentir de uma vida que, mesmo com a possibilidade do nada, faz acontecer a possi-
bilidade para o bem. A prática diária da prece, aliado ao exercício agnóstico da suspeita,
colocam o ser no centro da fratura e da quebra para tencionar os limites de modo que a ten-
são, em motivação boa, seja produtiva e criadora de novas possibilidades de ser.
IV.3.3 Apesar da morte, há graça do perdão
Ricoeur nunca escreveu um compêndio de religião ou teologia sistemática pois, se-
gundo ele, “a unidade da verdade é apenas uma tarefa intemporal, pois é a primeira de uma
esperança escatológica”967. A finitude e o involuntário geram aporias e atritos no pensamen-
to de Ricoeur. É na esfera da finitude e do involuntário que acontece a afirmação prática do
“apesar de...”, “a despeito de...” [un dépit de...].968 O apesar, segundo Ricoeur, é o “apesar”
da esperança.969 Isto quer dizer, citando Kant, “ao homem que, além de um coração corrup-
to, continua ainda a ter uma boa vontade, deixou-se a esperança de um retorno ao bem de
que se desviara”970. Ricoeur almeja, segundo Vincent, transformar toda e qualquer intepre-
tação do absoluto, qualquer alusão ao absoluto, a luz de um conceito hermenêutico cardeal
da esperança, especialmente à luz do sentido da expressão “a despeito de...”.971 Pois a espe-
rança dobra o cotidiano das palavras e atos em direção à toda afirmação prática. Neste sen-
tido, a esperança, em Ricoeur, corresponde à expressão paulina d’autant plus, “ainda mais”,
a fotiori. Em uma conferência, Ricoeur reforçou o seu conceito de fé como uma atitude ab-
966 “The question then is no longer one of an infinite grieving for someone who, as all too often in human his-
tory, died for no reason, but rather one of infinite recognition as regards someone who was not born for
nothing—and this perhaps should be said of everyone”. ABEL, Olivier, In: RICOEUR, Paul. Living up to
Death, 2007, p. xxii. 967 "I maintain that the unity of truth is a timeless task only because it is at first an eschatological hope." RI-
COEUR, Paul. History and Truth, 1965, p. 55. 968 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 225. 969 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo-
sofia, 1996, p. 27. 970 KANT, Immanuel. Religião nos limites da Simples Razão (Textos Clássicos de Filosofia). Covilhã: Lusosofia
Press, 2008, p. 52. 971 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 120.
211
soluta de confiança, a despeito da possibilidade das tragédias e do nada.972 Com a esperan-
ça, outros temas são levantados pela dobra da religião, como a graça e o perdão.
Segundo Werner Jeanrond, uma das maiores contribuições de Ricoeur à teologia e à
filosofia da religião é o tema inescapável da “condição hermenêutica da humanidade”973. A
posição de Ricoeur reflete o papel da hermenêutica para a uma vivência de mundos possí-
veis na fratura da realidade. A possibilidade da fratura é que a ética implica no julgar. A
fratura implica em julgamento e condenação. Neste ponto levanta-se a possibilidade de um
novo elemento à ética que vem da religião que é a graça e o perdão de Deus. A ética de Ri-
coeur não se resolve no lado do bem e do mal, mas no lado do paradoxo da graça e do per-
dão. O perdão não é totalmente explicável. Perdoa-se quem não tem direito. Há uma fratura
no aspecto do perdão. A hermenêutica do si abre as possibilidades de modo que o perdão é
uma escatologia da memória, i.e., a confrontação entre o perdoável e o imperdoável.
Em momentos difíceis Ricoeur dizia: “Eu devo honrar a vida!”974. Tanto que, em um
de seus colóquios, em 2000, declarou que se ele tivesse outra vida, teria escrito uma filoso-
fia da vida.975 Não por acaso, em seu desejo de transformar a morte num ato de vida, que
seu primeiro livro póstumo recebeu o título de Vivant jusqu’à la mort.976 [Vivo até a morte],
em tradução portuguesa. A vida só é possível pelo perdão. O perdão é o pensamento em ato,
para uma escatologia da memória, um futuro possível. Há muitos temas que não são muito
importantes para outros filósofos, mas para Ricoeur são questões centrais, como, por exem-
plo, o perdão: o perdão, para Ricoeur, é uma questão que tem a ver com a filosofia e o não
filosófico da filosofia que abre o tempo. O perdão tem a capacidade de não negar o realiza-
do, mas se manter na força do possível. O homem falível se mantém como o homem capaz.
O perdão é um dinamismo forte para o homem capaz e com ele acompanha o dizer forte,
que é o testemunho, e o gesto forte, que é a compaixão.
972 “Enfin, je dirai que la foi, dans ce qu’il y a de moins articulè, de moins confessionnel, c’est aussi une attitude
d’absolue confiance”. O texto da conferência não está publicado, mas disponível no arquivo do Fonds Ric-
oeur. Cf. RICOEUR, Paul. “Comprenre la Bible”. In: Archives Fonds Ricoeur, dossier 70.2. Confé-rences-
Carrefours 1970, Eglise Réformés de Belgique, p. VI/11. 973 JEANROND, Werner, apud JUNKER-KENNY, Maureen. In: “Preface”, Memory, Narrativity, Self and the
Challenge to Think God, p. 2. 974 “Il faut honorer la vie!” RICOEUR, Paul apud VANSINA, Frans D. Paul Ricoeur Bibliography Primaire et
Secondaire. Uitgeverij Peeters: Paris, 2008, p. XXIV. 975 Cf. SIMMS, Karl. Paul Ricoeur. London: Routledge, 2003, pp. 102-103. 976 No Brasil, Vivo até a morte. WMF Martins Fontes: São Paulo, 2012.
212
IV.3.4 Testemunho e compaixão
Das intersecções já retratadas, o testemunho e a compaixão são dois elementos que
devem ser destacados enquanto implicações da dobra. A reflexão da categoria do testemu-
nho vem de Jean Nabert977, com os seus Éléments pour une éthique.978 Ricoeur concorda
com Nabert e diz: “Nabert, com quem estou absolutamente de acordo, levanta o problema
nos termos seguintes: de que modo é que a consciência empírica, com as suas enfermidades,
as suas limitações, poderia alguma vez unir-se à consciência fundadora? É necessário traçar
alguns pontos fundamentais. De fato, são “conceitos preparatórios” formulados por Ricoeur
para legitimar filosoficamente seu conceito de testemunho. Segundo Gilbert Vincent, o tes-
temunho é o espaço legal das afirmações religiosas. Neste espaço, Ricoeur fala de uma nova
modalidade “alética”. O testemunho é verdadeiro em sua particularidade, ostentando duas
características: um discurso insubstituível e original.
O testemunho amplia o si.979 Há um alargamento do ser. O alargamento
[l’élargissement], que se dá no testemunho, refere-se a uma conjunção paradoxal entre uma
superabundância esperada e de um protesto insistente.980 Neste sentido, a questão não está
na veracidade do testemunho, se o seu conteúdo é verdadeiro ou falso, mas se é crível ou
não crível. Segundo Vincent, a conclusão que podemos tirar do testemunho, em Ricoeur, é
que este não depende totalmente da heteronomia, como também não propõe apenas a auto-
nomia. Há a “vontade sujeitada”, a qual Ricoeur acentua frequentemente em seus textos,
que permeia entre a liberdade e a violência (paradoxo da política), uma confusão dos extre-
mos implícita na ética. No caso da religião, destaca Vincent,
o paradoxo da heteronomia estaria intimamente ligada à dupla instável que
formam dependência e submissão, a difícil afirmação da primeira como
uma dependência condicional que encontra dificuldades para resistir às
pretensões de certas autoridades absolutistas que exigem a rendição incon-
dicional, abdicação incondicional, pela razão, de seus direitos de examinar,
criticar e julgar.981
977 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 252. 978 Cf. NABERT, Jean. Élements pour une éthique. PUF: Paris, 1923. 979 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 118. 980 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 122. 981 “Le paradoxe de l’hétéronomie serait intimement lié au couple instable que forment dépendance et soumissi-
on, la difficile affirmation de la première comme d’une dépendance conditionnelle ayant peine à résiter aux
prétension de certaines autorités absolutistes, que exigent soumission sans condition, abdication incondition-
213
Uma das fraturas promovidas pelo paradoxo da heteronomia, aponta Ricoeur, “é
provavelmente o fato da compaixão”.982 A compaixão, na face do amor, é o destino final e
último da dobra da religião. Este destino promove, no retorno à espiritualidade, o sentimen-
to por um poder de criação, uma sensação generosa, unindo o sujeito ao dom e a caridade.
Segundo Ricoeur, em entrevista para Hans Küng, há um fundo místico comum a todas reli-
giões que não é traduzível pela linguagem.983 O silêncio e a caridade juntos são a melhor
forma de comunicar a verdade da experiência mística. Conforme já observado, a finalidade
da religião, na ação, é o fazer bem. A justiça – uma das imagens da religião atual984 – tem
na justificação da espiritualidade silenciosa e hermenêutica a tarefa da abolição o mal pela
prática do amor. Neste sentido, cabe à dobra da religião a expressão de ações justas e senti-
mentos de caridade ao invés da violência da convicção religiosa ou de fórmulas dogmáticas.
“É através das exceções, rupturas, excessos e subversões que o amor, ao se voltar aos exclu-
ídos das esferas históricas da justiça, ajuda a justiça a romper as fronteiras que confinam
dentro dos limites do clã, da tribo, do povo, da nação e dos aliados”985. A dicotomia presen-
te no pensamento de Ricoeur (a tarefa negativa, a dupla adesão etc.) refere-se ao indivíduo e
o percurso do reconhecimento de sua identidade. No que diz respeito ao comunitário e a
esfera política, na aporia da justiça universal, Ricoeur sugere o incansável trabalho do reco-
nhecimento e do respeito. A intenção universal da justiça alcança as esferas singulares e
pessoais, sem que se cometa a singularização do amor. É neste sentido que o retorno da es-
piritualidade se mostra como a renovação da capacidade para a alteridade.986 Com isso,
enaltece-se o espiral de vida, cujo movimento acompanha a dobra existencial e as implica-
ções da religião para uma vida boa em instituições justas.987
nelle, par la raison, de ses droits à examiner, critiquer et juger.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée
de révélation”, In: La révélation (collectif), Bruxelles: Faculté Saint-Louis, 1977, p. 51. 982 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251. 983 “Un fonds mystique de ce qui est le plus fondamental dans chaque religion et n’est pas facile à traduire dans le
langage, mais frôle un profond silence commun à tous”. RICOEUR, Paul, “Entretien Hans Küng – Paul Ric-
oeur”, In: KEARNEY, Richard. Dieu est mort, vive Dieu: Une nouvelle idée du sacré pour le IIIe millénaire:
l’anathéisme, 2011, p. 339. 984 Cf. a motivação soteriológica e social da Teologia da Libertação, cujos desenvolvimentos podem ser encon-
trados nos clássicos dos teólogos da libertação. 985 “C’est par des exceptions, des ruptures, des excès, des subversions, que l’amour
tourné vers les exclus des sphères historiques de justice aide la justice à
briser les frontières qui d’abord la confinent dans les limites du clan, de la
tribu, du peuple, de la nation, des alliés.”. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no.
12, Automne, 1994, p. 8. 986 RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, p. 9. 987 Cf. RICOEUR, Paul. “Attestation: entre phénoménologie et ontologie”, In: GREISCH, Jean. KEARNEY,
214
IV.4 A dobra da religião: o desdobrar de um destino
Neste momento final da pesquisa, assumimos a dobra da religião como o desdobrar
de um destino na esfera filosófica e vivencial. Em La promesse et la règle Olivier Abel ofe-
rece fundamentos para a leitura existencial da vida e obra de Ricoeur mediada pela religião.
Segundo Abel, no decorrer de sua obra Ricoeur promove turnos, desvios e viradas alternati-
vamente em direção à diferentes horizontes: existencialismo, filosofia da vontade, teoria da
metáfora, narrativa e história, mitos, aporias, teoria política e jurídica.988 Estas viradas cor-
relacionam-se aos estágios de vida do filósofo. Nas palavras de Abel, trata-se da diversidade
de horizontes. Abel sintetiza em uma imagem a diversidade de horizontes ricoeurianos: Ri-
coeur, enquanto filósofo, é como um eclipse: é luz e sombra ao mesmo tempo.989 A intera-
ção de dois polos é elevada na esfera da religião e tem o seu produto mais vindouro no diá-
logo dos domínios em questão. A dobra da religião é um assumir filosófico da religião, em
meio as aporias, em conflito com as extremidades, para uma tarefa filosófica a partir da ma-
nifestação de Deus. Neste sentido, a dobra é essencialmente fenomenológica: “aparecimento
do ser” (Husserl), “o que se mostra” (Heidegger), tanto em redução quanto em doação, o
fenômeno deixa-se engajar-se originalmente para ser percebido. A partir deste momento, a
tese concluirá as reflexões acerca da dobra da religião tendo em vista a tarefa do reconheci-
mento de si no desenrolar dos acasos assumidos em destino.
Ricoeur trabalhou, conforme enfatiza Gilbert Vincent, com a perspectiva hermenêu-
tica.990 É nesta perspectiva que a leitura bíblica pede pela compreensão de si. Afinal, a nar-
rativa ricoeuriana é o desejo de sabermos quem nós somos verdadeiramente.991 Ricoeur pro-
cura pensar um tipo de narrativa quebrada, na qual fazem-se possíveis as leituras de hori-
zontes possíveis. Uma história de milagre não diz respeito apenas à narrativa, mas ao senti-
do apontado para e pelo leitor que a lê. O que o milagre quer dizer? Por que essas histórias
se dão como histórias verdadeiras? São questões de fé; ou, até mesmo, “fé literária”. Uma
Richard. Métamorphoses de la raison herméneutique, Cerf: Paris, 1991, pp. 381-403 988 ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: La promesse et la règle. Éditions Michalon: Paris, 1996, p. 15. 989 ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: La promesse et la règle, 1996, pp. 15-16. 990 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 214. 991 “Car la narration, c’est d’abord l’ancrage dans ce désir de savoir qui nous sommes vraiment”. ABEL, Olivier.
Paul Ricoeur: La promesse et la règle, 1996, p. 26.
215
vez que Ricouer não trabalha com a categoria do impossível, mas do impensável992, o pen-
samento é a casa da fé, uma vez que o impensável impossibilita qualquer possibilidade de
horizonte. Para ilustrar, em L’herméneutique biblique a significação – a possibilidade pen-
sável – das histórias de milagres diz respeito ao curso da vida ordinária ser rompido. Há
surpresa. O inesperado chega e a pessoa é interpelada pelo impensável.993 As parábolas evo-
cam, na mesma direção, um instante entre a tradução das palavras e da vida. É o limite do
ser e do dizer; o instante do entrelaçamento da vida com a narrativa; a ação mesma de Je-
sus.994 Da parábola à fé há uma extravagância que poderíamos situar, na força criativa, co-
mo de uma poética da parábola à uma poética da fé. E é em meio a diversidade de horizon-
tes, os possíveis pensáveis e a poética da esfera religiosa que há uma singularidade na dobra
da religião: a nomeação de Deus.
O teônimo oferece sentido na tarefa da compreensão do si. O crente que procura
compreender a si mesmo, segundo Ricoeur, compreende melhor os textos de sua fé.995 Nesta
dinâmica, Deus é o silêncio da experiência na leitura interpretativa da Bíblia motivada pelo
conhecimento de si. A idolatria – o oposto da fé – identifica o incondicionado no condicio-
nado, i.e., situa Deus na superfície da hierofania. A dinâmica criativa da dobra da religião,
na insondabilidade da manifestação e no mistério da revelação, joga Deus em outra revela-
ção. O nome divino diz respeito sobretudo a uma revelação. O lançar da luz divina pretende
todas as outras luzes, por isso a metáfora da iluminação é fundamental para a religião. Cris-
to é questão de manifestação. A fé é decisão de aceitação dos fenômenos saturados.996 A fé
consiste em crer numa significação impensável. O nome divino, na pessoa de Jesus, repre-
senta a intuição saturada que excede o modo do ser. Na insondabilidade da revelação, a res-
surreição impõe uma outra forma possível (Marcos 16:12) e provoca, pelo brilho de sua
própria luz, um princípio de manifestação. Segundo Jean-Luc Marion, a teologia, enquanto
manifestação, está na dialética do conhecer e do reconhecer.997 A apreensão do sentido tem
na revelação o fenômeno próprio da revelação. Com isso, o teônimo, em seu caráter revela-
992 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 131. 993 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique, 2001, p. 213. 994 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique, 2001, p. 132. 995 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique, 2001, p. 91. 996 Saturado diz respeito quando a intuição, que dá sentido, é maior que o sentido do objeto, saturando-o em
outros sentidos. 997 MARION, Jean-Luc. The Visible and The Revealed. New York: Fordham University Press, 2008, p. 148.
216
tório, é o movimento da própria dobra da religião, uma vez que pela nomeação uma nova
forma de pensamento acontece e outros horizontes surgem.
A dobra da religião abre a possibilidade do reconhecimento do si no destino. Trata-
se de uma tarefa filosófica de um pensamento religioso motivado pela leitura hermenêutica
do mundo. Tal empreendimento complica a vida, i.e., insere dobras, plicas, na variedade
original e singular do pensamento movido pelo confronto das aporias. O testemunho é a
trama da dobra da religião, uma vez que este, na difícil afirmação da dependência do acaso,
exige entrega e redenção incondicional. Enquanto a crítica filosófica prepara testemunhos
justos, a compaixão livra o amor de apegos institucionais no retorno à espiritualidade du-
plamente aderida pela razão filosófica e a contemplação religiosa diante dos acasos. Segun-
do a história de Ricoeur, são conhecidos os eventos trágicos de sua vida – nasceu no período
da Primeira Guerra Mundial, perdeu os pais na infância, foi prisioneiro na Segunda Guerra
Mundial, o filho Olivier se suicidou quando jovem. Muitos desses eventos, abstraídos na
reflexão filosófica existencial, apresentam-se em forma de aporias no pensamento do filóso-
fo.998 O acaso é incorporado na tarefa do reconhecimento para a abertura de horizontes no
destino. O acaso de ser criado pelo avô e pelo tio o impulsionou para o estudo. Tratam-se de
acasos trágicos – quebrados – transformados em destino (um horizonte justo). Destes acasos
trágicos, surge a pergunta pelo mal e a preocupação da força do mal na história. Ricoeur
assume como destino o reconhecimento do mal e, ao mesmo tempo, a busca pela compreen-
são e superação (parcial) do mal. O que foi acaso se torna, pelo gesto voluntário, em desti-
no, ao assumir a direção da própria vida. A dobra da religião resgata o aspecto existencial
da filosofia ricoeuriana, cuja produção intelectual se correlaciona à vida de Ricoeur. O en-
trelaçamento entre vida e obra é sintetizado na expressão de fé de Ricoeur: o acaso (invo-
luntário) transformado (voluntário) em destino (involuntário) por uma escolha (voluntária)
contínua. A dialética existencial assume o acaso individual (o acaso do estudo em se tornar
filósofo; o acaso de ser cristão de tradição protestante) em destino (história). Estes acasos
foram produtivos uma vez que a meditação tirou deles o produto bom e justo.
Seguindo o existencialismo de Kierkegaard, que também possui um fundo religioso,
o exercício do confronto das aporias visando horizontes para a possibilidade de ser apontam
998 Cf. a apropriação dos eventos trágicos transformados em motivos filosóficos abordados no primeiro capítulo
“La traversée existentialiste”, de DOSSE, François. Paul Ricoeur: un philosophe dans sons siècle, 2012, pp.
33-44.
217
para uma “poética do religioso”999. A região da poética do religioso é o espaço criado pela
dobra da religião no qual o espiral antropológico é o aprofundamento da dialética do volun-
tário e o involuntário. Desta forma, destaca-se, no estágio final da pesquisa, a poética da
dobra da religião: uma dobra existencial no desdobrar de um destino. A poética, em seu
poder de criação, permite à dobra da religião se inspirar na vida e na obra de Paul Ricoeur
para edificar um meio de pensamento no qual o labor filosófico e a hermenêutica religiosa,
na mesma esfera de preocupações, possibilitam, exclusivamente, reflexões justas e boas ao
lado do que outras ciências podem oferecer. O acaso é o involuntário por excelência, ao
passo que o destino é a vocação assumida na historicidade dos eventos que impulsionam o
ser. A participação transforma os impulsos e os eventos como destino. O assumir-se evita a
fuga do acaso existencial e seus eventos involuntários. A esfera voluntária, cercada por aca-
sos trágicos, mas também acasos que favoreceram o destino, é a possibilidade de ser na vida
do filósofo e de qualquer pessoa que não poupa esforços para a árdua tarefa do reconheci-
mento de si e da vivência em instituições justas.
O espiral, em seu destino, se manifesta em expressão antropológica filosófica, entre-
tanto, faz-se notar que esta expressão é, em última instância, existencial. Ao longo do espi-
ral de uma antropologia filosófica, Ricoeur dialoga mais com os pensadores opostos ao in-
vés dos cristãos. Suas reflexões destinadas ao ateísmo1000, em bom tom, ganham destaque
nos questionamentos que delimitam as grandes questionamentos e refinam o papel da reli-
gião. A “suspensão agnóstica”1001, praticada pelo autor em seus exercícios filosóficos, com-
portam a coexistência da reflexão filosófica com a hermenêutica religiosa. Por causa deste
esforço, a reflexão permite o trabalho das aporias com as diversas esferas de expressões – a
título de exemplo, em Freud, Ricoeur apresenta o centro da suspeita religiosa na psicanálise,
as críticas freudianas acerca do sagrado, mas, também, o valor da psicanálise para a reli-
gião.1002 O desdobrar de um destino privilegia o diálogo e o aprendizado, em todas as dire-
ções, de modo que as diferentes categorias do pensamento incorporam o contraditório para
versar sobre o bem possível. As novas categorias desenvolvidas por Ricoeur, como a supra-
999 “La region de la ‘poétique du religieux’.” RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations,
no. 12, Automne, 1994, p. 9. 1000 Por exemplo, “L’Athéisme de la psychanalyse freudienne”, In: Concilium. Revue inter-nationale de théolo-
gie (Problèmes frontières), 2, 1966, n° 16, pp. 73-82. 1001 Cf. DOSSE, François. Paul Ricoeur: Un philosophe dans son siècle, 2012, p. 225. 1002 Cf. RICOEUR, Paul. “L’Athéisme de la psychanalyse freudienne”, In: Concilium, 2, 1966, n° 16, pp. 77-79.
218
ética, a economia do dom e a fronteira da religião, promovem reflexões sobre o caráter do
religioso e a possibilidade de se fazer o bem, a despeito da fratura e do nada.
Portanto, a dobra da religião, em sua face de dobra existencial, aponta para um espi-
ral de uma antropologia filosófica da própria vida de Ricoeur que mostra-se como uma
reflexão do ser humano capaz. Ao refletir sobre “o retorno do espiritual”, já próximo a fase
final de seu trabalho, em 1994, Ricoeur escreveu que a religião tem sentido na ação do pla-
no poético e meta-ético do dom, da caridade e do amor.1003 A meditação sobre a espirituali-
dade se situa entre uma antropologia do agir humano e uma pneumatologia do amor supra-
ético. A tese da dobra da religião, portanto, resgata as contribuições anexas e, através das
meditações sobre as qualidades inerentes na religião do ser humano capaz, inspirada no
fundo místico ricoeuriano, a dobra da religião se demonstra como uma poética sobre do re-
ligioso na qual se evidencia o espiral existencial da própria vida de Ricoeur. O espiral exis-
tencial encarna a reflexão do ser humano capaz que tem em seu enxerto hermenêutico a re-
ligião, sobretudo a inserção da religião nas demais esferas de pensamento. Neste movimen-
to, a vida de Ricoeur – e a vida de qualquer pessoa que se coloca na tarefa da reflexão das
aporias – se torna um pouco sua filosofia e a sua própria filosofia se torna, em retorno, a sua
vida. A última fronteira, portanto, é o acaso assumido como motivação para horizontes pos-
síveis. O acaso levou Ricoeur a questionar o mal e, por conta das adversidade oriundas dele,
a confrontar a aporia do mal com a aporia da graça. O destino assumido é a confrontação da
aporia do mal com a aporia da graça. O espiral, inicialmente, em seu método, é antropoló-
gico, entretanto, na dialética entre o ato filosófico e o testemunho religioso, torna-se um
espiral existencial, uma vez que o fechamento da dobra se encontra, enquanto movimento
ontológico, na correlação entre filosofia e vida, tendo o seu auge, nesta pressuposição, na
religião.
1003 Cf. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, pp. 6-7.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tese O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul Ricoeur iniciou-se no tra-
balho de pensamento invocado na intersecção entre a filosofia e a teologia. “O que acontece
apesar de tudo na intersecção?”1004, questionou Ricoeur em entrevista para Edmond Blatt-
chen. O confronto das duas tradições de pensamento foi possibilitado por Ricoeur ter visto
com bons olhos, ao final de sua vida, um trabalho original na intersecção. O filósofo deixou
indicações de uma tarefa cujo ponto de partida encontra-se na nomeação de Deus: “na ten-
são entre o Deus inominável e os nomes divinos, há todo um trabalho de pensamento”1005. O
trabalho de pensamento acerca do teônimo, trabalhado a partir das aporias e da ontologia
quebrada, orientou a reflexão do papel da religião no pensamento filosófico de Ricoeur nes-
ta pesquisa. Considerando a incompletude da abordagem do tempo mítico e da necessidade
do aprofundamento dedicado à narrativa religiosa, indicando, por fim, uma poética do
ser1006, foi vasculhado, em diversos trabalhos do autor, desde livros até materiais em forma
de artigo ou capítulo de livro – a maioria destacado no corpo do texto da pesquisa ou listado
nas referências bibliográficas – o aprofundamento em temas acerca da religião e da teolo-
gia1007, invariavelmente, sem a pretensão de que o trabalho de Ricoeur fosse confundido
1004 RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 24. 1005 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular, 2002, p. 24. 1006 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-
GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect. Macmillan Publishing Com-
pany: London, 1985, p. 13. 1007 “Si l’on rassemblait tous les textes consacrés par Ricoeur à l’étude de l’horizon de la croyance – car tel est
probablement, en matière de religion, l’objet principal de ses préoccupations –, on parviendrait à un volume
220
com uma obra sistemática acerca da religião.1008 A dobra da religião tem na nomeação de
Deus um trabalho de pensamento original na coexistência entre filosofia e religião.1009 Ao
propormos a pesquisa acerca da dobra da religião, alertamos, inicialmente, que evitamos o
equívoco da primazia religiosa. O filósofo manifestou, em 1948, logo no início de sua car-
reira filosófica, segura desconfiança em relação à ideia de uma “filosofia cristã”1010. Ele não
poupou esforços para distinguir, em seu projeto filosófico, teologia de filosofia. Entretanto,
há uma bifurcação produtiva entre as duas áreas. As possibilidades advindas da bifurcação
produtiva, ainda pouco exploradas, são diversas. A dobra da religião não é manipulação
nem fuga do pensamento; é, antes, uma das possibilidades de se entrar na realidade para
mostrá-la em sua profundidade e complexidade. A religião, quando vista como um meio
para o reconhecimento de si e do mundo, é como um espelho da redenção para a ação justa
e concreta. A linguagem religiosa, pela simbólica e a ontologia quebrada, implica na refle-
xão do ser humano capaz na intersecção das mito-poéticas.
A mito-poética é a força do logos ético com a poética do mito para prevenir que nar-
rativas e tradições limitem a existência humana. A da mito-poética não esgota os temas do
começo nem da fundação. O tempo mítico, característico da fenomenologia da consciência
do tempo ricoeuriana, é um trabalho de pensamento aberto sobre a apreensão das simboliza-
ções e das narrativas acerca da condição humana.1011 Toda mitologia implica em conflito de
interpretações, de modo que estes conflitos, pela tensão criativa da postura de um filósofo
que espera por horizontes bons, geram liberdade. Conforme destacou Ricoeur, não somos
mais seres primitivos vivendo na esfera imediata do mito.1012 Entretanto, a mito-poética abre
mundos pelo exercício hermenêutico das aporias. Conforme observa Richard Kearney, a
liberdade, sendo uma aporia, oriunda da ética do logos e da poética do mito, permite ao ser
humano imaginar novas realidades pela própria possibilidade do ser humano imaginar-se
si important qu’il indiquerait un production dépassant de loin, ne serait-ce que quantitativement, celle de tout
autre philosophe.” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 12. 1008 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 45. 1009 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: “Nomear Deus” (1977). In Leituras 3: Nas Fronteiras da Filo-
sofia. 1010 Cf. RICOEUR, Paul: Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 137. 1011 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KI-
TAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14. 1012 “We are no longer primitive beings, living at the immediate level of myth.”, In: KEARNEY, Richard. On
Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 120.
221
como ele é.1013 Deve-se aproximar do mito, portanto, com o aparato da hermenêutica da
suspeita, i.e., deve-se aproximar do mito criticamente, mesmo porque a própria narrativa
mítica pede pelo equilíbrio entre a crítica e a convicção ao apontar horizontes possíveis.1014
Buscou-se, com isso, edificar a tese na correlação da razão filosófica com a herme-
nêutica teológica, tendo, como ponto de partida, a nomeação de Deus para demonstrar a
originalidade de um desvio existencial. A dobra da religião se refere à tarefa do reconheci-
mento do si perante a falta de sentido na finitude ao atribuir sentido na nomeação de Deus.
Não apenas doação de sentido, como qualquer outra, mas o sentido latente de uma vida
aberta e não limitada pela finitude quando se coloca no exercício contemplativo da media-
ção e meditação bíblica. Em Tempo e Narrativa Ricoeur explora a noção da “fusão dos ho-
rizontes”1015 – quando o indivíduo incorpora o mundo do texto como o mundo diante do
texto – e, nesta dinâmica, pode-se efetuar as dobras inerentes na tarefa do reconhecimento.
Søren Kierkegaard, em seu livro As Obras do Amor, ao comentar sobre as expressões trans-
postas, diz que o termo bíblico transposto por unanimidade é edificar.1016 No sentido espiri-
tual, edificar é construir para o alto a partir de fundações. Segundo Ricoeur, edificar consis-
te na “construção de um sentido espiritual sobre um sentido literal”1017. O edifício da tese,
alegoricamente, eleva as coisas fundamentais – e literais – para que, deste modo, a ênfase
recaia na originalidade que tais fundamentos permitiram existir: a construção de um saber
que transpõe a filosofia e a teologia sobre as fundações de um pensamento duplamente me-
diado pelo ato da nomeação do divino. A pesquisa teve nas aporias e na ontologia quebrada
a transposição do caminho pelo qual o reconhecimento do si trilha no pensamento crítico e a
adesão religiosa. A hermenêutica, na condição de metodologia, atinge tanto a exegese quan-
to a filosofia. Interpretar é, na tarefa negativa, estender o sentido do texto sagrado e, ao
mesmo tempo, incorporar demais elementos da cultura nesse empreendimento. A dinâmica
entre compreensão e explicação amplia-se na medida em que a exploração dos mitos e das
narrativas religiosas coincidem com a investigação do mistério.
1013 KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 91. 1014 “Modern man can neither get rid of myth nor take it at is face value. Myth will always be with us, but we
must always approach it critically”. RICOEUR, Paul. “Myth as the Bearer of Possible Worlds”, In: KEAR-
NEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 120. 1015 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, Capítulo 7, “Para uma hermenêutica da consciência histó-
rica”. 2010. 1016 KIERKEGAARD, Søren. As Obras do Amor. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 241. 1017 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 325.
222
Enquanto comumente a filosofia e a teologia procuram evitar aporias – com metafí-
sicas ou dogmas –, Ricoeur, com a sabedoria que lhe é pertinente, admite a aporia em seu
método e trabalha com os limites. À nenhuma ciência compete a totalidade e o conhecimen-
to último, de modo que a tarefa negativa e a dupla adesão colocam o indivíduo na tarefa
hermenêutica do “explicar mais para compreender melhor”. Pelas aporias, a articulação en-
tre filosofia e teologia é produtiva e pontos de interseção se tornam criativos. As intersec-
ções se tornam possíveis pela ontologia quebrada.1018 Com isso, a primeira dobra, a nomea-
ção de Deus, aprofunda o caráter fenomenológico, hermenêutico e existencial da filosofia
ricoeuriana. A ontologia quebrada faz evitar a reconstituição do ser pela religião, salvando o
sentido da existência da apologia religiosa. Ao invés de uma metafísica, o pensamento na
intersecção do teônimo promove situações de tensão e desdobramentos de uma vida comum
cuja resposta às aporias resgatam aspectos da religião, tais como a bondade, a poética, a
esperança, o testemunho, a ética e o perdão.
No início de sua carreira filosófica, Ricoeur propôs, discretamente, que a filosofia do
filósofo de expressão cristã é, motivada por Kant, uma ciência dos limites.1019 A tese da
dobra da religião tem em seu método a ciência dos limites para evitar o círculo sistemático
de leituras que aproxima o indivíduo de práticas institucionais inconscientes e o distancia
dos desafios do ser. “Como superar este ‘círculo hermenêutico’?”, pergunta Ricoeur na con-
clusão de A Simbólica do Mal, após pensar acerca dos vícios que impossibilitam a indicação
de novos horizontes. “Transformando-o em aposta”, responde o filósofo. A dobra é uma
aposta que acontece no “apesar de...”, no “a despeito de...”. Marcado por desvios e retor-
nos1020, a tese assumiu na religião a aposta hermenêutica e existencial da possibilidade de
ser a despeito da fratura e da ontologia quebrada.1021 Levemente diferente da aposta do “sal-
to da fé”, de Kierkegaard, a dobra da religião é uma aposta enquanto desvio produtivo de
um pensamento envolvido no espiral de uma antropologia filosófica.1022 O espiral oferece a
1018 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 66. 1019 Cf. RICOEUR, Paul. “Note sur les rapports de la philosophie et du christianisme”, In: Le Semeur, 1936, n°9,
p. 556. 1020 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington,
2010, p. 65. 1021 JEANROND, Werner, apud JUNKER-KENNY, Maureen. In: “Preface”, Memory, Narrativity, Self and the
Challenge to Think God, p. 2. 1022 “À en juger selon l’ordre des raisons – qu’il ne faut pas confondre avec celui des motivations personnelles –,
le projet de Ricoeur est donc de nature anthropologique.” Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur,
2008, p. 28.
223
perspectiva de uma disciplina que se situa nas polaridades da existência, motivada e funda-
da na dupla compreensão, dupla adesão, dupla paixão e dupla espiritualidade.1023 Tal duali-
dade é pensada no artigo sobre o retorno da espiritualidade. A economia do pensamento da
dobra da religião interage os dois regimes existenciais, as duas maneiras de ser no mundo: a
filosófica e a religiosa.1024 Concebida na veia de uma antropologia filosófica, segundo Jer-
volino, a obra de Ricoeur é uma exegese do ser humano capaz, uma hermenêutica das capa-
cidades humanas1025; um pensamento apaixonado pelos desvios, para Olivier Mongin1026;
uma filosofia que, de acordo com David Pellauer, procura as questões transcendências na
imanência das fraturas humanas1027. Neste contexto, a dobra da religião, na tarefa do reco-
nhecimento do si, faz-se como o reflexo da teofania em Jó: “como na tragédia, a teofania
final não lhe trouxe [Jó] qualquer explicação, mas mudou a perspectiva”1028. Se a dobra da
religião aponta para um horizonte, o seu caminho inverso – i.e., o retorno ao espiral que dá
continuidade às dobras no pensamento de Ricoeur – é igualmente original, de modo que a
descrição filosófica implica na narrativa da vida de Ricoeur. Compreender a religião pela
filosofia ricoeuriana é compreender a religiosidade que reflete a si mesma sem perder o con-
tato da filosofia com a vida. Em uma conferência em Estrasburgo, de 1988, na Faculdade
Protestante de Teologia, Ricoeur afirmou:
A leitura sábia pode se tornar num tipo de experiência do pensamento no
qual a adesão confessante é revivida no modo do “como se”. Para concluir,
eu gostaria de insistir sobre a necessidade para a leitura confessante passar
pelo crivo da leitura sábia, da sua distanciação objetivante. É o preço a pa-
gar para que a fé não seja uma violação da honestidade intelectual.1029
A leitura sábia oferece à compreensão da filosofia por matrizes da religião subsídios
para as ciências humanas acerca de um entendimento mais amplo da condição humana. A
1023 RICOEUR, Paul. “Le renouvellement de la philosophie chrétienne par les philosophies de l'existence”, In:
Le problème de la philosophie chrétienne, 1949, p. 67. 1024 Cf. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, pp. 6-7. 1025 Cf. JERVOLINO, Domenico. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine. Paris: Ellipses,
2002, pp. 47-49. 1026 MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 34. 1027 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2007, pp. 22-23. 1028 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 340. 1029 “En ce sens, la lecture lavante peut devenir une sorte d’expérience de pensée dans laquelle l’adhésion con-
fessante est revécue sur le mode du "comme si". J’aimerais insister, pour conclure, sur la nécessité pour la le-
cture confessante de passer par le crible de la lecture savante, de sa distanciation objectivante. C’est le prix à
payer pour que la foi ne soit pas une violation de l’honnêteté intellectuelle.” RICOEUR, Paul. “Herméneuti-
que: Les finalités de l’exégèse biblique”. In: BOURG, Dominique, LION, Antoine. La Bible en Philosophie:
Approches contemporaines, 1993, p. 51.
224
dobra da religião é, desse modo, uma dobra existencial com raízes nas aporias comuns. Ini-
cia-se com a dobra da religião, na esfera do pensamento, e fecha-se com a dobra existencial,
na esfera da vida. Esse é o método pelo qual Ricoeur se mantém durante o seu percurso.
Mesmo diante das aporias, conflitos ou contradições, Ricoeur assume o seu destino e, por
conta deste gesto corajoso, desenvolve preocupações éticas, que nunca deixaram de existir
desde o início, mas que se acentuam no final de sua vida. As grandes questões, como a von-
tade, a liberdade e o mal, a título de exemplo, possuem relação com o projeto humanista e
ético devido o filósofo ter assumido o seu destino. A dobra não se encontra, portanto, numa
dobra teórica da filosofia. Trata-se de uma dobra que evidencia o caráter ontológico do pen-
samento ricoeuriana. Em outras palavras, a motivação existencial de Ricoeur alia-se à moti-
vação autobiográfica num movimento dialogal entre o humano e o divino no reconhecimen-
to de si pelo mundo do texto.
A dobra da religião se manifesta como uma tarefa que permanece ser pensada na
meditação de uma vida situada entre a filosofia e a teologia. Parafraseando Ricoeur em seu
prefácio a Bultmann1030, a dobra da religião não está ao lado ou para além, tampouco contra
a obra de Ricoeur, mas, de certa forma, vai por baixo, logo abaixo da superfície, desdobran-
do camadas do ser e abrindo outras possibilidades existenciais no sentidos oferecidos pelos
textos filosóficos e religiosos. A tese não deixa de ser uma leitura da hermenêutica religiosa
de Paul Ricoeur. Sem perder o centro de sua hipótese fundamental, a dobra, enquanto mo-
vimento ontológico, correlaciona filosofia e vida, tendo o seu auge, nesta pressuposição, na
religião. Qual a lição que se pode destacar nesta etapa final para a dobra da religião? Aquela
a qual Olivier Abel aprendera com Ricoeur, quando ele diz que se ele pudesse guardar ape-
nas uma coisa do que seu amigo Ricoeur lhe disse, seria: “get on with life”1031 [siga com a
vida]. Para Abel, segundo Ricoeur há duas grandes dificuldades para se aceitar na vida: a
mortalidade e vulnerabilidade do desafeto. Mesmo diante da dificuldade da aceitação e da
convivência com os temas difíceis, segundo William Schweiker, existe um “prospecto para
um novo humanismo” em Ricoeur.1032 Seria a dobra da religião este novo humanismo? A
tese sugere que a dobra da religião é uma das características do novo humanismo e uma das
possibilidades do reconhecimento do ser. A dobra da religião compreende, envolve e pleni-
1030 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 335. 1031 Cf. ABEL, Olivier. In: RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. ix. 1032 Cf. SCHWEIKER, William. “Paul Ricoeur and the Prospects of a New Humanism”, In: KAPLAN, David M.
(Org.) Reading Ricoeur. State University of New York Press: Albany, 2008.
225
fica o ser humano capaz para as diversas dimensões de uma vida engajada com a realização
do bem. Pela esperança, a religião, na tarefa hermenêutica do reconhecimento de si, é o des-
dobramento da existência humana com fins bons. Não por acaso “um ídolo deve morrer para
que um símbolo do Ser possa falar”1033. A poética da dobra da religião envolve o acaso de
uma religião que se apresenta como o destino de um religioso. A dobra abre elementos de
superação para o reconhecimento de si na luta contra as fraturas linguística e ética. Desta
maneira, o acaso transformado em destino por uma escolha contínua, enquanto expressão de
fé, é recebido como providência, uma vez que nele encontra-se o chão criativo para os hori-
zontes possíveis.
No solo criativo da transformação dos acasos em vida possível, ao concluir o grande
projeto reflexivo da tese, retoma-se a poética da dobra da religião. O pensamento de Ri-
coeur é comparável, conforme já mencionado na pesquisa, à imagem de uma montanha. No
percurso do reconhecimento, o indivíduo sobe uma montanha e alcança o limite. O que está
além, do outro lado, o lado de lá, é o possível pela fé. O lado de cá refere-se ao possível pela
esperança. O testemunho é o dizer sobre as coisas do outro lado que modificam, em ato de
compaixão, o mundo da vida do lado de cá da montanha. Mesmo apesar dos acasos e dos
eventos trágicos, é possível uma vida transformada pela tarefa da hermenêutica do si e a
vivência de símbolos religiosos e mito-poéticas. Não se trata de projetar o ser para o lado de
lá, o além, mas descer a montanha e viver o lado de cá com a fé e esperança. Este movimen-
to é comparado à segunda ingenuidade.1034 O ser e o além do ser situa a possibilidade da
existência no confronto da aporia do mal (fratura) com a aporia da graça (“vivo até à mor-
te”). A dobra da religião abre caminhos que, segundo Ricoeur, não seriam possíveis de se-
rem abertos na ontologia mesma. A imagem da passagem do ser para o além do ser é o mo-
vimento dinâmico e criativo da vida e da obra de um filósofo que se permitiu ser mediado
pelos acasos, transformando-os em graça, com fé, para um destino além das próprias expec-
tativas. Esta postura filosófica e existencial denota uma espiritualidade do caminho, pois
encontra-se no percurso da dobra da religião o ato do reconhecimento do si e da ação justa.
Indiferente com deuses que pedem exclusividade e separação, a manifestação religiosa, cor-
relacionada à situação concreta da vida, remete aos modos da justiça e da possibilidade para
1033 “Such, I believe, is the religious significance of atheism. An idol must die, in order that a symbol of Being
may speak”. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 98. 1034 Cf. RICOEUR. Paul. Da interpretação: ensaios sobre Freud, 1977, p. 45.
226
o bem reconciliador. Ainda que a religião não esgote as aporias da vida e nem reconstitua a
ontologia quebrada, a dobra da religião, em linguagem mito-poética, torna-se a justiça da
vida que ainda se tem. Esta é a esperança ricoeuriana que aparece no amanhecer de um ho-
rizonte alcançado pela dobra da religião.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
De fazer muitos livros não há fim;
e o muito estudar é enfado da carne.
(Eclesiastes 12.12)
A bibliografia é dividida em três partes. A primeira refere-se aos livros, artigos,
entrevistas e videos de Paul Ricoeur. A segunda, aos materiais sobre Paul Ricoeur.
E a terceira, aos demais textos consultados.
É de práxis na pesquisa científica mencionar neste item apenas os textos citados no
trabalho. No entanto, inúmeros manuscritos foram investigados e estudados para a
composição desta tese. No corolário da pesquisa julgamos listar não apenas as
obras citadas, mas também os materiais consultados que não foram citados no texto.
I. Trabalhos de Paul Ricoeur
LIVROS
RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e
Mard de Launay. Lisboa: Edições 70, 2009.
______. A hermenêutica bíblica. Rio de Janeiro: Loyola, 2006, 325p.
______. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp,
2007, 535p.
228
______. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 500p.
______. À l'école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 2004
______. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013.
______.; FOESSEL, Michaël; LAMOUCHE, Fabien. Anthologie. Paris: Éditions
Points, 2007.
______. Autobiografía intelectual. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visíon, 1997.
______. Do texto à acção: Ensaios de Hermenêutica II. RÉS-Editora, Ltda: Porto-
Portugal, 1989.
______. Écrits et conférences 2: Herméneutique. Paris: Éditions du Seuil, 2010.
______. Ensaios sobre a interpretação bíblica. São Paulo: Novo Século, 2004,
184p.
______. Essays on Biblical Interpretation. Minneapolis: Fortress Press, 1980.
______. Être, essence et substance chez Platon et Aristote, Seuil: Paris, 2011.
______. Fallible Man. Chicago: Henry Regnery Co., 1965.
______. Figuring the Sacred: Religion, Narrative, and Imagination. Minneapolis:
Fortress Press, 1995.
______. From Text to Action: Essays in Hermeneutics, II. Evanston: Northwest-
ern University Press, 1991.
______. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008, 183p.
______. Histoire et vérité. Paris: Le Seuil, 1955.
______. History and Truth. Evanston, Northwestern University Press, 1965.
______. Interpretação e Ideologias. 4ª ed. Trad. Hilton Japiassu. RJ: Francisco
Alves, 1990.
______. Introduccion a la Simbolica del Mal. Buenos Aires: Ediciones Megápo-
lis, 1976, 244p.
______. L’herméneutique biblique. (présentation et traduction par François-
Xavier Amherdt), Paris: Cerf, 2001.
______. Lectures I. Paris: Seuil, 1991.
______. Leituras 2. A Região dos Filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.
______. Leituras 3. Nas Fronteiras da Filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
______. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le lan-
gage. Paris: Institut d’Études Ecuméniques, (s/a).
______. Living up to Death. The University of Chicago Press : Chicago, 2007.
229
______. Na Escola da Fenomenologia. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, 360p.
______. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1978.
______. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, SP: Papirus, 1988,
53p.
______. O si-mesmo como outro. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
______. O único e o singular. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
______. Parcors de la reconnasissance. Trois études. Paris: Éditions Stock, 2004.
______. Philosophie de la volonté I: Le volontaire et l’involontaire, Paris: Aubier,
1988
______. Philosophie de la volonté II: Finitude et culpabilité, Pais: Aubier, 1998.
______. Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle. Paris: Éditions Esprit,
1995.
______. Ser, Essência e Substância em Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
______. Soi-même comme un autre, Paris: Seuil, 1990.
______.; LaCOQUE, André. Pensando biblicamente. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
______.; LaCOCQUE, André. Penser la Bible. Paris: Éditions du Seuil, 1998.
______. Tempo e Narrativa 1. A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2010.
______. Tempos e Narrativa 2. A configuração do tempo na narrativa de ficção.
São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. Tempo e Narrativa 3. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. Temps et recit, tome 1: L'intrique et le recit historique. Paris: Seuil,
Points Edition, 1991.
______. Temps et récit tome 2, Configuration Dans Le Recit De Fiction. Paris:
Seuil, Points Edition, 1991.
______. Temps et récit, tome 3, Le temps raconté. Paris: Seuil, Points Edition,
1991.
______. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:
Edições 70, 2009, 134p.
______. The Course of Recognition. Massaschusetts: Harvard University Press,
2005.
230
______. The Just. Chicago: The University of Chicago Press, 2000.
______. The Rule of the Metaphor. London and New York: Routledge Classics,
1978.
______. The Religious Significance of Atheism. Columbia University Press: New
York and London, 1969.
______. The Symbolism of Evil. Boston: Beacon Press, 1969.
______. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments. Éditions du Seuil, Mars 2007,
p. 99.
CAPÍTULOS DE LIVROS
RICOEUR, Paul. “Herméneutique: Les finalités de l’exégèse biblique”. In:
BOURG, Dominique, LION, Antoine. La Bible en Philosophie: Approches
contemporaines. Les Éditions du Cerf: Paris, 1993, pp. 27-51.
RICOEUR, Paul. “Herméneutique philosophique et herméneutique biblique”, In:
BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exer-
cices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975.
______. “Le temps et les philosophies – Introduction”, In: UNESCO (Org.) Le
temps et les philosophies. Paris: Payot, 1978. pp. 11-29.
RICOEUR, Paul. “The Canon between the Text and the Community”, In:
POKORNY, Petr, ROSKOVEC, Jan. Philosophical Hermenutics and
Biblical Exegesis. Gulde Druck: Tübingen, 2002, pp. 7-26.
RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time
Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Reli-
gions: Retrospect and Prospect. Macmillan Publishing Company: London,
1985.
RICOEUR, Paul. “The Power of the Possible”, In: KEARNEY, Richard. Debates
in Continental Pholosophy: Conversations With Contemporary Thinkers.
Fordham University Press: New York, 2004
RICOEUR, Paul. “The Poetics of Language and Myth”, In: KEARNEY, Richard
(Org.) Debates in Continental Philosophy: Conversations With Contempo-
rary Thinkers. New York: Fordham University Press, 2004.
231
ARTIGOS 1035
RICOEUR, Paul. “Accomplir les Ecritures selon l’Un et l'autre Testament”. In:
RICŒUR, Paul; SCHLEGEL, Jean-Louis. Paul Beauchamp, un bibliste
atypique. Esprit, No 6, juin 2001, 36-45. (II.A.705)
______. “A unidade do voluntário e do involuntário como ideia-limite”, In: Bole-
tim da Sociedade Francesa de Filosofia, Universidade de Coimbra: Unidade
I&D LIF, Sessão de Sábado, 25 de Novembro de 1950. Disponível em:
http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/a_unida
de_do_voluntario3
______. “Bultmann: Une théologie sans Mythologie” [suivi d'un annexe Existen-
tiel-Existential], In: Cahiers d'Orgemont (Importance de la théologie de
Rudolf Bultmann), 1969, n° 72, mars-avril, 21-37, 38-40 (II.A.253)
______. “Christianity and the Meaning of History, Progress, Ambiguity, Hope.”
In: The Journal of Religion, Vol. 32, No. 4 (Oct., 1952), pp. 242-253 Publi-
shed by: The University of Chicago PressStable URL:
http://www.jstor.org/stable/1200105 Acessado em: 05/04/2011
______. “Comprenre la Bible”. In: Archives Fonds Ricoeur, dossier 70.2. Confé-
rences-Carrefours 1970, Eglise Réformés de Belgique, pp. VI/1-23.
______. “Contribution d’une réflexion sur le language à une théologie de la paro-
le”, In: Revue de théologie et de philosophie, 18 (1968), n° 5-6, 333-348.
(II.A.237)
______. “Contribution d'une réflexion sur le langage à une théologie de la paro-
le”, In: Exégèse et herméneutique (Parole de Dieu), Paris, Seuil, [1971],
21,5x14, 301-319 (II.A.271)
______. “Croyance”, In: Encyclopaedia universalis. V, Paris, Encyclopaedia Uni-
versalis France, [1969], 30x21,5, 171-176. (II.A.246)
1035 A maioria dos artigos aqui elencados encontram-se no acervo do Fonds Ricoeur (83, boulevard
Arago, 75014 Paris, França). A fim de facilitar a investigação crientífica dos leitores, os artigos
adquiridos nesta instituição, além de terem suas referências citadas conforme as normas, possuem,
ao final de cada referência, o código correspondente nos arquivos do Fonds Ricoeur segundo o
trabalho de Vansina, disponível em: VANSINA, Frans D. Paul Ricoeur Bibliography Primaire et
Secondaire. Uitgeverij Peeters: Paris, 2008.
232
_______. “Culpabilité tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de
philosophie religieuses, 33 (1953), 285-307. (II.A.53)
______. “De l'esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne 1994,
6-12p. (II.A.561)
______. “Démythologisation et herméneutique” [texte transcrit à partir d'enregis-
trement au magnétophone], Nancy, Centre Européen universitaire, 1967,
27x21, 32 p. (II.A.222)
______. “Doctrine de l'homme. Traits dominants de notre modernité. Anthropolo-
gie philosophique”, In: Les cahiers du Centre Protestant de l'Ouest, 1966,
n° 5, 19-30 (II.A.206)
_______. “Du conflit à la convergence des méthodes en exégèse biblique”, In:
Exégèse et herméneutique (Parole de Dieu), Paris, Seuil, [1971], 21,5 X14,
35-53. (II.A.268)
______. “Entretien avec Paul Ricoeur: Questions de Jean-Michel Le Lannou”,
Revue des sciences philosophiques et théologiques, 74, 1990, no.1, janvier,
p. 87-91. (II.A.454)
______. “Entretien. Le philosophe analyse la manière dont il vit sa foi chrétienne.
Paul Ricoeur : ‘Je vis sur des frontières des échanges et des empruntes’”. In:
Le Figaro, 1998, n°16797, 15-16 août (II. A. 655)
______. “Ética e Moral”. In: Coleção Textos Clássicos de LusoSofia, Covilhã,
2011, pp. 3-21.
______. “Exorde. 'Comme si la Bible n'existait que lue...'”. In: Ouvrir les Écritu-
res. Mélanges offerts à Paul Beauchamp (Lectio divina, 162). Édité par P.
BOVATI; R. MEYNET. Paris: Cerf, 1995, 21-28. (II.A.583)
______. “Expérience et langage dans le discours religieux”, In: H. J. ADRIAAN-
SE, Paul RICOEUR, Jean GREISCH. L'herméneutique à l'école de la
phénoménologie, Editions Beauchesne, 1995, 159-179. (II.A.595b)
______. “Foi et philosophie aujourd'hui” [exposé suivi de réponses à des questi-
ons], In: Foi-Éducation (Week-end Versailles), 42 (1972), n° 100, juillet-
septembre, pp. 1-13 (II.A.292)
______. “Herméneutique de l’idée de Révélation [avec une discussion avec E.
Levinas, D. Coppieters, etc.]”, In: La révélation (Publications des Facultés
233
universitaires Saint-Louis, 7) Bruxelles, Facultés universitaires Saint-Louis,
1977, 23 x 15,5, 15-54, 207-236. (II.A.333)
______. “Individu et identité personnelle”. In: Sur l'individu (Colloque de Ro-
yaumont sur «L'individu», 1985). Paris: Seuil, [1987], 54-72. (II.A.408)
______. “Interprétation du mythe de la peine” [communication de P. Ricoeur sui-
vie d'un débat avec C. Bruaire, etc.], In: Archivio di Filosofia (II mito délia
pena), 37 (1967), nos 2-3, 23-42, 53-62 (II.A.212)
______. “Intersubjectivité, socialite, religion. Entretien avec P. Ricoeur” [propos
recueillis par A. Danese], In: Notes et documents Institut International «J.
Maritain» (Torrette di Ancona),1986, n° 14, 75-83. (II.A.403)
______. “L’appel de l’action. Réflexions d’un étudiant protestant”. In: Terre
nouvelle. Organe des chrétiens révolutionnaires, Paris, 1935, n° 2, juin, 7-9.
(II.A.1)
______. “La crise de la Démocratie et la Conscience chrétienne”, In:
Christianisme social, 55 (1947), 320-331. (II.A.9)
______. “La condition du philosophe chrétien” [sur R. M.EHL, La condition du
philosophe chrétien], In: Christianisme social, 56, (1948), 551-557.
(II.A.13)
______. “La pensée grecque. Ernst HOFFMANN, Plato. Victor GoLDSCHMIDT,
La religion de Platon [comptes rendus]”, In: Revue d'histoire et de
philosophie religieuses, 31 (1951), 240-244. (II.A.30)
______. “La question de l'humanisme chrétien”, In: Foi et Vie, 49 (1951), 323-
330. (II.A.38)
_______. “L'homme de science et l'homme de foi”, In: Le Semeur, 50 (1952),
novembre, 12-22. (II.A.49)
______. “La critique de la religion” [texte transcrit à partir d'enregistremenett rse
vu par l'auteur], In: Bulletin du centre protestant d'études, 16 (1964), n°* 4-
5, 5-16. (II.A.171)
______. “L'Athéisme de la psychanalyse freudienne”, In: Concilium. Revue inter-
nationale de théologie (Problèmes frontières), 2 (1966), n° 16, 73-82
(II.A.201)
234
______. “L'interprétation non religieuse du christianisme chez Bonhoeffer” [ex-
posé et discussion], In: Les cahiers du Centre Protestant de l'Ouest, 1966,
n° 7, 3-15, 15-20 (II.A.207)
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discussion avec H. Corbin, etc.], In: Le langage. II. Langages. Actes du
XIIIe Congrès des Sociétés de philosophie de langue française» Neuchâtel,
La Baconnière, [1967], 23x14, 129-137, 138-145. (II.A.208)
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re et de philosophie religieuses (Hommage à Pierre Burgelin) 55 (1975), n°
1, 13-26. (II.A.317)
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(1979), n° 1,209-230. (II.A.345)
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LLER, G. (Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture.
Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975.
______. “La logique de Jésus. Romains 5”, In: Études théologiques et religieuses,
55 (1980) n° 3, 420-425 (II.A.352)
______. “La structure symbolique de l'action”, In: Actes de la 14e Conférence
internationale de sociologie des religions (Symbolisme), Strasbourg 1977»
Lille, Secrétariat C.I.S.R., 1977, 21,5x14,5,29-50. (II.A.334)
______. “L’attribution de la mé-moire à soi-même, aux proches et aux autres: un
schème pour la théologie philosophique?”, In: Archivio di filosofia, 69,
2001, p. 21-29. (II.A.704)
______. “La nécessaire parole [de dire le droit... et de pardonner]”. Propos receui-
llis par D. KAREK TAGER [dans le cadre d'un dossier 'Punir a-t-il un
sens?']" In: L'Actualité religiseuse, 1996, no. 141, 15 frévrier, 35-37.
(II.A.615)
______. “Le Chrétien et la Civilisation occidentale”, In: Christianisme social.
Revue Sociale et Internationale pour un Monde Chrétien, 54 (1946), 423-
436. (II.A.6)
______. “Le christianisme et le sens de l’histoire. Progrès, ambiguïté, espérance”,
In: Christianisme social, 59 (1951), 261-274. (II.A.36)
235
______. “Le discernement des esprits”, In: Esprit, août-septembre, 1996, 197-
199. (II.A.622)
______. “Le destinataire de la religion: L’homme capable”, In: Archivio de filoso-
fia, n° 1-3, 19-34 (II.A 604)
______. “Le Dieu crucifié de Jürgen Moltmann”, In: Les quatre fleuves n°4, Pa-
ris, Seuil,. 109-114 (II.A.318)
______. “L’herméneutique de la sécularisation. Foi, Idéologie, Utopie”. In: Ar-
chivio di Filosofia (Ermeneutica della secolarizzazione). Atti del Colloquio
internazionale, Roma 1976. 46 (1976), no. 2-3, 49-68. (II.A.327)
_______. “Le « Péché Originel » : étude de signification”, In: Eglise et Théologie.
Bulletin trimestriel de la Faculté de Théologie Protestante de Paris , 23
(1960), décembre, 11-30 (II.A.129)
______. “Le prix Paul VI est attribué au philosophe Paul Ricoeur”, In: Notre Pro-
chain, décembre, 2003, 6-12. (II.A.736)
______. “Le récit interprétatif. Exégèse et Théologie dans les récits de la Passion
(Sommaire. Summary)”, In: Recherches de science religieuse (Narrativité et
théologie dans les récits de la passion) 73 (1985), n° 1 , janvier-mars, 17-38,
12, 14. (II.A.384)
______. “Le langage de la foi” [texte transcrit à partir d'enregistrements et revu
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