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TRANSCRIÇÃO 1 DA AULA DE 16 DE SETEMBRO DE 2006 – PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO O SER COMO OBJETO DA INTELIGÊNCIA INTRODUÇÃO: DUAS DIMENSÕES DA VIDA HUMANA Professor: Na última aula, nós estávamos tratando das duas dimensões da vida humana: a vertical e a horizontal. A vida humana tem duas questões fundamentais que precisam ser resolvidas durante a sua vida. Ele é o único animal capaz de transcender para o absoluto e capaz de antecipar [conscientemente] a sua própria morte. A capacidade humana de conceber a morte e o absoluto é algo completamente dispensável em termos biológicos. E isso ocorre justamente devido à presença de uma inteligência abstrata no indivíduo. A inteligência abstrata somente encontra sua justificativa na capacidade de conceber o mundo do puro espírito e o mundo transcendente, de modo que um ser humano passa ter um problema duplo na sua existência: 1) ele precisa saber algo sobre o absoluto; 2) ele precisa ser capaz de integrar esse conhecimento na vida dele como um todo. Ele não pode ficar apenas pensando no absoluto e dedicando-se à inteligência. Como ele resolverá esse problema? Resolverá na medida em que existir em toda atividade humana uma referência ao transcendente. Em tudo que ele fizer, mesmo o que fizer apenas em nome das necessidades biológicas, será inserida esta dimensão transcendente. Toda e qualquer atividade humana implica nisso para que seja propriamente humana: que seja um casamento do mundo terrestre com a dimensão celeste. Aluno: Como um todo? 1 Transcrição, títulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em maio de 2006. Versão não revista pelo autor da aula. [N.T.].

O Ser Como Objeto Da Inteligência - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

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O Ser como Objeto da Inteligência Luiz -Gonzaga de Carvalho Neto

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  • TRANSCRIO1 DA AULA DE 16 DE SETEMBRO DE 2006

    PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

    O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA

    INTRODUO: DUAS DIMENSES DA VIDA HUMANA

    Professor: Na ltima aula, ns estvamos tratando das duas dimenses da

    vida humana: a vertical e a horizontal. A vida humana tem duas questes

    fundamentais que precisam ser resolvidas durante a sua vida. Ele o nico animal

    capaz de transcender para o absoluto e capaz de antecipar [conscientemente] a sua

    prpria morte. A capacidade humana de conceber a morte e o absoluto algo

    completamente dispensvel em termos biolgicos. E isso ocorre justamente devido

    presena de uma inteligncia abstrata no indivduo. A inteligncia abstrata somente

    encontra sua justificativa na capacidade de conceber o mundo do puro esprito e o

    mundo transcendente, de modo que um ser humano passa ter um problema duplo na

    sua existncia:

    1) ele precisa saber algo sobre o absoluto;

    2) ele precisa ser capaz de integrar esse conhecimento na vida dele como

    um todo.

    Ele no pode ficar apenas pensando no absoluto e dedicando-se

    inteligncia. Como ele resolver esse problema? Resolver na medida em que existir

    em toda atividade humana uma referncia ao transcendente. Em tudo que ele fizer,

    mesmo o que fizer apenas em nome das necessidades biolgicas, ser inserida esta

    dimenso transcendente. Toda e qualquer atividade humana implica nisso para que

    seja propriamente humana: que seja um casamento do mundo terrestre com a

    dimenso celeste.

    Aluno: Como um todo?1 Transcrio, ttulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em maio de 2006. Verso no revista pelo autor da aula. [N.T.].

  • Professor: Isso para que o ser humano tenha uma vida completa. Uma

    vida humana completa implica que o sujeito seja capaz de cruzar estas duas

    dimenses em cada uma das suas atividades. O primeiro problema seria isso:

    como eu posso conhecer melhor o que o Absoluto, o que a

    Transcendncia, o que Deus?

    O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA

    Neste primeiro problema surge uma questo fundamental: o objeto da

    inteligncia abstrata o ser enquanto tal. O objeto dos sentidos e da imaginao no

    o ser, mas os modos de existir. Estes so uma espcie de participao no ser. Por

    exemplo: falar um modo de existir ou de ser. Andar outro, respirar outro,

    pensar outro: todos estes so modos de ser. Mas nenhum deles o prprio ser. Por

    exemplo: se o sujeito fala, falar alguma coisa, mas falar no andar. Andar no

    comer e assim por diante. Cada uma destas modalidades possui uma analogia com as

    outras atividades e essas analogias se fundam justamente no ser, pois todos estes so

    modos de efetividade. Ento, a primeira coisa que a inteligncia capta ao perceber

    algum modo de existncia ou atividade concreta que tal objeto , de algum modo,

    real. A primeira percepo que se tem de uma coisa que ela real. Mas esta

    percepo imediatamente passa para o fundo da conscincia e a ateno se volta

    para a formalidade prpria daquele objeto e no para o seu carter de ser enquanto

    ser. Volta-se para a qididade dela. Ao perceber uma pedra caindo ou a gua de

    um rio fluindo, a primeira percepo da inteligncia que aquilo algo. E o

    segundo passo perceber quais so as qualidades distintivas deste algo e que o

    diferenciam de qualquer outro ser. Embora a inteligncia seja feita para o ser, a

    psique humana no feita para voltar sua ateno fundamentalmente para o ser, mas

    para as formas particulares do ser. Esta a primeira tenso que precisa ser resolvida

    para uma vida humana completa. De algum modo, tenho que balancear essa

  • tendncia psquica de me voltar apenas para um modo de existncia particular e

    dirigir-me para o carter de ser.

    [Aluno pede mais um exemplo.]

    Professor: Veja bem, escolham um objeto que vocs no saibam exatamente

    o que . Por exemplo: este objeto em cima da mesa [e aponta para um enfeite

    localizado sobre a mesa].

    Aluno: uma urna!

    Professor: Veja bem, voc olhou isso e imediatamente a sua ateno se

    voltou para as caractersticas que diferenciam isso entre os objetos ao redor. Mas

    antes, para que eu pudesse perceber isso, eu tive que perceber esse objeto como um

    ser. Esta coisa se apresentou como uma realidade. Ele exerceu alguma efetividade

    sobre a minha pessoa. Esta efetividade o carter de ser deste objeto. Se a minha

    ateno se voltasse pelo tempo suficiente para essa efetividade do objeto sobre o

    sujeito, eu captaria claramente o que ser. No o que ser urna, mas o que ser.

    Mas o objeto ser pertence ele mesmo ordem transcendente. Porque nada que

    captvel pelos sentidos apenas ser ou ser em um sentido puro, mas ser isto ou ser

    aquilo.

    Aluno: um existente!

    A PERCEPO INICIAL DO SER

    Professor: um existente , exatamente! um modo de ser. Esta impresso

    do ser somente um mnimo inicial [na percepo] do ser humano. A psique do

    sujeito pode apagar isso e dizer: voc nem sabe se isso existe. Mas para que a

    psique humana deturpe esta percepo a ponto de dizer que isso nada, primeiro

    voc teve que captar que isso ser. O primeiro problema, ento, esse: desenvolver

    a percepo do ser. O segundo passo apropriar-me da captao do ser enquanto tal.

    Por qu? Porque a diferena entre o ser e o nada absoluta2. Este o primeiro

    2 Conferir Filosofia Concreta de Mrio Ferreira dos Santos [N.T.].

  • indcio ou a primeira nota que o sujeito possui sobre o mundo transcendente, a

    diferena entre o ser e o nada. perceber que no existe intermedirio entre ser e

    no ser. No existe algo entre o nada e o que . Pode existir algo que mais ou menos

    uma coisa, isto , mais ou menos uma mesa ou uma urna, mas no pode existir

    alo que mais ou menos . No existe algo que mais ou menos humano, algo que

    mais ou menos cavalo, mas no pode existir alo que mais ou menos .

    Aluno: Se existisse, seria um meio termo entre o ser e o nada.

    Professor: Mas no h um meio termo entre o ser e o nada.

    [Aluno comenta sobre o ser e o nada na Criao do Gnesis3.]

    Ento, esta captao a primeira notcia a respeito do ser. Para que o

    sujeito possa ter uma idia clara sobre o que Deus, primeiro preciso perceber

    isso. Ele, primeiramente, precisa perceber essa diferena entre o ser e o nada.

    Aluno: Por qu?

    Professor: Por que o ser no objeto da psique. Porque a inteligncia

    abstrata no um ato da psique. Ela um elemento que est na psique humana, mas

    ela no , por si, uma atividade psquica.

    [Aluno faz uma pergunta pedindo para retomar alguns pontos da explicao

    a partir de um exemplo baseado na percepo do perigo de uma ona.]

    Professor: Exatamente, a primeira impresso de que h algo diante de

    mim. Imediatamente depois, voc captou um modo distintivo: um ser perigoso. No

    caso da ona, a sua ateno se voltou para uma caracterstica distintiva por uma

    questo de sobrevivncia. Nesta hora, com a ona, no possvel parar e pensar

    sobre a diferena entre o ser e o nada. preciso pensar sobre a diferena entre ser

    comido pela ona e no ser. Devo pensar simplesmente: o que fao para a ona

    no me atacar?. Mas justamente este conflito entre uma necessidade biolgica ou

    corprea e uma necessidade da inteligncia que leva a psique a se colocar a servio

    da corporalidade na maior parte do tempo. No momento em que voc olha a ona e

    pensa em fugir dela, por que voc est fazendo isso? Para sobreviver. Voc no est

    3 O relato do Gnesis foi tema de uma das aulas anteriores deste curso [N.T.].

  • fazendo isso por uma necessidade da sua inteligncia abstrata. Naquele momento

    voc no age apenas motivado pela sua inteligncia abstrata, mas faz aquilo porque

    voc precisa sobreviver. A psique humana faz isso durante o tempo todo, mesmo

    que no seja para sobreviver. A ateno da psique sai do ser para a qididade ou

    espcie da coisa. E da espcie passa para um acidente particular. De modo que a

    ateno tende, quase que constantemente, a ficar nos acidentes particulares das

    coisas. isso que impede uma captao do transcendente. Se a sua ateno ficasse

    apenas no ser do objeto, voc captaria naquele ser particular o prprio ser e no

    apenas a qididade daquele objeto. O ser simplesmente . Por exemplo: em vez de

    imaginar um objeto temvel, vamos considerar um objeto desejvel. Ao perceber um

    objeto desejvel, tende-se a fazer algo e tomar posse daquele objeto. Na posse deste

    objeto, voc frui dele. A ateno, no processo da fruio, passa do objeto ou do

    modo de ser do objeto para o prprio processo de fruio. Ento, por exemplo, voc

    est comendo uma maa maravilhosa. Assim, a sua ateno vai se voltando da ma

    para o efeito que ocorre em voc. Esse o mesmo processo. Primeiro voc captou o

    ser da maa. Em segundo lugar, voc captou um conjunto de acidentes que tornam

    aquela ma perfeita. E, em terceiro lugar, voc se voltou para o efeito daquela maa

    sobre voc. Isso acontece porque o ser efetivo. Sendo efetivo, como se o ser

    pressionasse na sua direo. Todo ser uma presena4. Primeiro voc percebe o ser.

    Em seguida a sua ateno vai seguindo o fluxo do ser: da causa5 at o efeito.

    [Aluno faz uma pergunta sobre o Ser.]

    A INVESTIGAO SOBRE O SER

    Professor: Surge o problema seguinte: em que consiste o ser das coisas que

    so? O que ser? O que se urna? O que ser cavalo? O que ser cachorro? E

    assim por diante.

    4 Conferir Ser e Conhecer de Olavo de Carvalho. 5 De modo que se pode definir causa como aquilo que produz ser como Mrio Ferreira dos Santos explicou em Ontologia e Cosmologia [N.T.].

  • [Aluno pergunta sobre o sentido de Ser.]

    Professor: No se trata de ser como categoria. No o ser no sentido lgico,

    como gnero supremo6. o ser no sentido ontolgico[, relativo pergunta]: o que

    ser?

    [Aluno pergunta sobre a capacidade humana de se conscientizar desta

    percepo do ser enquanto ser.]

    Professor: Consegue, mas no um hbito natural. Por qu? No um

    hbito natural porque a primeira nota do ser justamente a sua efetividade. Todo ser

    atua como se irradiasse de si para outro. Esse conceito fundamental, esse conceito de

    ser, ele que vai dar o fundamento para todas as concepes sobre o mundo. Por

    exemplo: por que uma virtude melhor do que a outra? Por que uma obra feita

    segundo a arte melhor do que uma outra que no feita conforme aquela arte?

    Em tudo isso, a diferena fundamental que uma mais ser do que a outra. A

    virtude um modo de ser e o vcio um modo de no ser. Todos os conceitos

    fundamentais da vida humana derivam a sua essncia ou caracterstica principal (..?)

    da diferena entre o ser e o nada.

    [Aluno pede mais uma explicao.]

    Professor: Um vcio uma forma de privao, uma forma de no ser

    aquilo que voc poderia ser. Um vcio uma ausncia, um no ser.

    Aluno: Como j dizia Santo Agostinho.

    Professor: Exatamente, como j dizia Santo Agostinho.

    [Aluno comenta sobre a sua dificuldade em perceber o Ser.]

    UM EXERCCIO FUNDAMENTAL DE PERCEPO DO SER

    Professor: Diante da dificuldade da psique [em perceber o Ser, que

    prprio do intelecto], a soluo que os filsofos encontraram para isso foi usar os

    interesses pessoais que a pessoa j possui. Ento, voc tem um talento profissional,

    6 Conferir Isagoge de Porfrio, traduzido e comentado por Mrio Ferreira dos Santos.

  • isso corresponde a um campo da realidade. Isso implica que voc prestar ateno

    em alguns objetos. Em parte voc usar essa tenso para que voc possa

    compreender a estrutura daqueles objetos, para que voc possa modific-los. Mas j

    que voc presta ateno tanto tempo naquilo, de vez em quando voc vai prestar

    ateno no ser daquilo. Voc pode captar o ser daquilo.

    [Aluno pede mais uma explicao.]

    Professor: Veja bem, trata-se de uma ateno. Ainda no um projeto

    analtico. Trata-se de um projeto que vai lhe levar a percepes fundamentais sobre

    aquilo para que os projetos analticos sejam bem fundamentados. Por exemplo:

    posso fazer uma anlise completa da realidade a partir do pressuposto de que no eu

    no sei se as coisas so reais ou no7. Posso partir do pressuposto de que eu no

    saiba se o mundo existe ou no existe8, como se ele fosse apenas uma iluso da

    minha mente. Isso acontece! Por que isso acontece? Simples, porque o sujeito no se

    voltou para a captao do que o Ser. No percebeu que o processo analtico deve

    vir depois9. Essa tenso pode ser comparada com a situao do sujeito que est perto

    de uma fogueira. O que acontece com quem est perto de uma fogueira? Sente calor.

    e seu corpo comea a se esquentar. Mas se voc ficar mais tempo, voc ficar mais

    quente. Voc ser um pouco fogueira. como se aquilo tivesse sido capturado.

    Com a idia de ser acontece a mesma coisa. Se voc pegar os objetos simplesmente

    para perceber enquanto ser, como que aquela idia assimilada? claro que o

    sujeito no conseguir prestar ateno em coisas completamente irrelevantes para

    ele10. mais fcil fazer esse exerccio pensando em algo que voc gosta. como na

    seguinte conto budista:

    havia um rei que recebeu a visita de um monge budista. Este lhe contou

    sobre os princpios e o simbolismo do budismo, mas o rei disse-lhe que somente

    queria saber das prprias jias. Era a nica coisa que lhe interessava neste mundo

    eram as suas jias. O monge, ento, disse-lhe que no havia nenhum problema 7 O que seria uma espcie de abandono do problema ontolgico e da percepo do ser [N.T.].8 Ou o mundo como um todo, ou algum aspecto particular como as relaes causais, por exemplo [N.T.]. 9 Parece lembrar o simbolismo do mercrio e do enxofre em uma das artes tradicionais medievais [N.T.].10 E poderia at mesmo ser prejudicial! [N.T.].

  • nisso e pediu-lhe que, no final de cada dia, o rei ficasse contemplando a beleza das

    jias com a condio de que ficasse prestando ateno apenas na beleza das jias

    sem deixar que a teno se volte para o gozo que voc sente diante desta beleza. O

    monge pediu-lhe que fizesse isso diariamente por meia hora. Passou o tempo e o rei

    se iluminou

    O que significa, nesta histria, o alcance da iluminao? simples! No

    que o sujeito passe a fazer uma anlise do conceito de ser, mas ele fica to inebriado

    com a contemplao do ser que, em tudo que ele olha, a partir de determinado

    momento, que ir perceber se aquela coisa mais ou menos do que ela pode ser.

    como se ele possusse um critrio fundamental para a avaliao das coisas [enquanto

    seres].

    Aluno: No to abstrato, ento?

    Professor: No to abstrato, mas a ateno ir se voltar para um objeto

    completamente abstrato [que o Ser]. Por exemplo: se h uma maa diante de voc,

    sua ateno ir se voltando para cada uma das qualidades dela, como sua

    consistncia, aroma ou cor. Mas, a cada vez que a sua ateno se voltar para cada

    um destes acidentes, voc retoma o objeto inicial, pensando: este o perfume da

    ma ou esta a cor da ma.

    Aluno: A tendncia fugir, mas devo voltar para o objeto inicial.

    Professor: Volte-se para o objeto inicial.

    A DIFERENA ENTRE O SER E A QIDIDADE

    Deve-se comear pela pergunta o que ser? E no se deve responder essa

    pergunta com a qididade da coisa. Se Quando a mente se volta para o que ser

    ma, a ateno, quase imediatamente, se volta para o que distingue aquela fruta do

    abacate ou das outras. E, por meio desta pergunta passa para a qididade da coisa.

    diferente de voc se perguntar em que consiste ser ma? A inteligncia humana

  • opera em dois planos simultaneamente: o plano das essncias das coisas e o plano

    das qididades das coisas.

    Aluno: O que qididade?

    Professor: Qididade a caracterstica daquilo que .

    Aluno: Qididade?

    Professor: Por exemplo: a maa tem a sua respectiva qididade. Esta a

    caracterstica que responde pergunta: o que a ma? Por exemplo: a qididade do

    homem expressa como animal racional, que a resposta para a pergunta: o que

    o homem?. A qididade uma abstrao feita a partir da pergunta sobre o que a

    coisa.

    Mas antes, ontologicamente anterior ao ser ma, h o ser: ser ma ser.

    Para ser ma preciso ser. Ao pensar sobre o que ma, aprende-se muito sobre

    caractersticas de todas as mas. J sabe muito sobre a qididade da ma. Mas

    perceba, quando prestar ateno na ma, que algo precede a qididade dela. Porque

    a qididade da ma corresponde a um modo de participar do ser. A estrutura

    intrnseca da ma um modo de ser. E assim por diante, para cada objeto.

    Professor: Por exemplo: quando eu era mais novo, gostava muito de

    matemtica. Mas um dia prestei ateno nesse objeto e me perguntei: o que ser

    nmero11? Prestar ateno no que ser nmeros inevitavelmente me levou questo

    sobre o que ser. [Neste exerccio de contemplao do ser,] recomendvel que a

    pessoa se volte para aquele objeto para o qual ela naturalmente atrada. Na medida

    em que a nossa ateno naturalmente vai da percepo do ser das coisas para ns

    mesmos, a nossa ateno segue um curso anlogo ao da luz. A luz bate nos objetos e

    se volta para o olho humano. Todo objeto que atrai a nossa mente tem essa

    caracterstica. Mas o que est irradiando estas informaes? Em que consiste ser isto

    que irradia estas informaes.

    O EXERCCIO DE IMERSO NO SER DE UMA ATO11 Pergunta que Mrio Ferreira dos Santos se fez em Pitgoras e o tema do nmero e Edmund Husserl se fez em Filosofia da Aritmtica.

  • Darei um outro exemplo. Voc j reparou que, quando voc est

    trabalhando, h uma etapa do trabalho em que o processo consciente. Nestas

    ocasies voc est testemunhando o que Ser. Em outras ocasies no assim, de

    modo que o trabalho se torna inconsciente. Voc no percebe as etapas seguintes

    enquanto voc realiza aquele trabalho. Mas ele no inconsciente no sentido

    comum desta palavra, como se estivesse sem nenhum controle. Ele inconsciente na

    medida em que voc desconhece o controle dele. Quando este trabalho acaba, voc

    tem a percepo exata deste momento. Mas ele se ocorre espontaneamente, de certo

    modo. Aquele trabalho que voc faz diariamente acaba se tornando espontneo, de

    modo que a sua ateno no fica mais vigiando o processo. As coisas at acontecem

    exatamente da maneira como deviam acontecer. Sabe o que aconteceu? o

    seguinte: naquele breve perodo, a sua conscincia ficou absorvida no ser daquele

    trabalho.

    [Aluno pede mais uma explicao.]

    Professor: s vezes a gente faz as coisas no piloto automtico. Voc pode ir

    no banheiro no piloto automtico, perfeitamente, porque aquilo pode ser mal feito

    mesmo que no ter problema. Mas no trabalho no assim: nem sempre se pode

    entrar no piloto automtico.

    Aluno: O piloto automtico do Arton Senna no era um piloto

    automtico. Ele dizia que era como se entrasse em um tnel.

    Professor: O que acontecia? A conscincia dele ficava imersa no ser

    daquele ato12. E a inteligncia dele tambm ficava imersa no ser daquele ato.

    Aluno: Ele j sabia se devia deixar o carro a um milmetro de um obstculo.

    Ele no via mais nada [e simplesmente acertava].

    12 Conferir definio da filosofia de Olavo de Carvalho, pai do professor Luiz Gonzaga: a filosofia a unidade da conscincia na unidade do ser e vice-versa [N.T.].

  • Professor: Vocs lembram daquela histria do arqueiro zen13? O que

    acontecia era a imerso do ser do mestre no ser do objeto [tratado pela sua arte] e

    daquele processo.

    Aluno: Como acontecia com o Arton Senna.

    Professor: Exatamente! Antes era como se o sujeito testemunhasse aquele

    ser de fora, mas agora ele passou para dentro daquilo.

    Aluno: Isso raro!

    Professor: raro, mas pode ser treinado. O sujeito pode ser educado para

    isso.

    Aluno: No um talento extraordinrio, mas um treinamento.

    Professor: Um treinamento14!

    Aluno: At conseguir fazer bem feito.

    Professor: At entrar no ser daquilo e submergir naquela atividade. E,

    ento, no mais ele que faz, mas o ser daquilo que faz. Quando se diz que o

    prprio sujeito que faz, significa que o seu psiquismo individual que faz, em vez

    da inteligncia. Mas naquele momento [magistral] a inteligncia [que est se

    manifestando, no simplesmente o sujeito que est agindo com o seu psiquismo].

    No o fulano de tal!

    Aluno: o Ser!

    Professor: o Ser!

    Aluno: Isso pode acontecer com qualquer um?

    Professor: Com todo mundo! A vida fica melhor na proporo em que mais

    pessoas fizerem isso. No somente as coisas ficam mais bem feitas, mas esse

    processo renova o sujeito.

    [Aluno comenta sobre esta experincia.]

    Professor: Exatamente! Naquele momento como se a pessoa recebesse um

    prmio!

    13 Conferir a aula anterior em que o professor Luiz explicou um exemplo relacionado [N.T.].14 Conferir alguma das aulas anteriores deste curso, onde se fez observaes sobre o aprimoramento em uma arte, especialmente a aula entitulada esttica escolstica [N.T.].

  • O que essa imerso no ser? Naquele momento, o que operou quando eu

    estava neste piloto automtico? O que foi isso que operou? Quem fez isso? Se no

    fui eu que fiz, quem fez?

    Aluno: Essa a pergunta do Santo Agostinho?

    Professor: Sim, essa a pergunta dele15. Essa pergunta pode partir de

    qualquer objeto. Quanto mais a pessoa se aproxima da resposta dessa pergunta

    nmero um, mais se aproxima de um critrio que permite avaliar todas as coisas

    [que so].

    [Aluno pergunta sobre a pergunta acerca do Ser.]

    Professor: Exatamente. O objeto desta pergunta primeira o Ser. E [nesse

    processo] voc chega concluso de que voc est no Ser de fato . Por qu? Mesmo

    a qididade de algo somente pode ser compreendida quando h uma captao

    suficiente do Ser. Voc somente vai compreender uma mesa, por exemplo, se voc,

    em alguma medida, compreender que ela . Se a minha ateno se voltar

    prematuramente para a anlise, eu no saberei se a estrutura alcanada no final da

    anlise corresponde a algo real ou no.

    [Aluno pergunta sobre essa condio da anlise.]

    Professor: [A anlise feita] somente pode ser compreendida se houver uma

    captao suficiente do Ser.

    INVESTIGANDO O ASPECTO INCONDICIONADO DA REALIDADE

    Se o sujeito investigar o que opera nesses momentos perfeitos em que no

    h interveno da prpria psique, o sujeito perceber que algo dotado de liberdade.

    No se pode pegar essa arte do arqueiro zen [por exemplo] e formar uma clula de

    reproduo dela que funcionar automaticamente. Por exemplo: existe uma frmula

    para construir um prdio direito, existe uma frmula para dirigir um carro

    perfeitamente, mas no existe uma frmula para voc se tornar o sujeito que dirige 15 Conferir aula de Olavo de Carvalho sobre Santo Agostinho do curso Histria Essencial da Filosofia[N.T.].

  • perfeitamente. No existe uma frmula para imbuir isso em uma pessoa. Existe uma

    parte da realidade que condicionada e outra que incondicionada. Por exemplo: na

    prpria arte de construir um prdio, existe uma parte que condicionada. a parte

    bem dada da qididade da coisa: o que um edifcio, o que pedra e destas

    qididades, voc deduz as propriedades, com as quais voc monta uma estrutura.

    Metade da arte da arquitetura, da construo e da engenharia isso. E a outra

    metade? a capacidade que se tem de submergir no ser desta arte e fazer a coisa

    bem feita ou produzir um objeto perfeito. Para uma parte, como ela uma seqncia

    de condies, pode-se esquematizar e transmitir para um outro. Posso analisar os

    materiais e formalizar isso, deixando esquematizado em um tratado que poder ser

    passado a um outro.

    Aluno: Isso metade da coisa!

    Professor: Metade [da arte de construir prdios]! Mas se o sujeito que

    aprende essa arte e comea a construir prdios, isso tomar, mais ou menos, um

    tero de sua vida. Ele vai trabalhar oito horas por dia. Mas esse um ser humano

    com capacidade de buscar o Transcendente e gastar [quase] metade da sua vida

    fazendo prdios. No um tremendo desperdcio? Um sujeito passar metade da sua

    vida construindo prdios e outro passar metade de sua vida dando aula e assim por

    diante.

    Qual o nico jeito de no ser um desperdcio? Quando voc exercita uma

    arte regularmente, de tempos em tempos, voc ir se submeter ao ser deste processo.

    Quem no conseguir jamais submergir no ser disso, mudar de profisso, pois no

    agentar.

    E quando voc submergir no ser disso, voc volta e observa o que foi esse

    processo, o que foi essa submisso. Assim voc transformou um trabalho braal

    qualquer em um meio de edificao espiritual. Qualquer atividade humana regular

    pode se tornar um meio de edificao espiritual, desde que se faa isso. preciso

    criar este hbito. Quando o sujeito volta deste estado, ele deve perguntar o que

    aconteceu consigo.

  • Aluno: Na volta!

    Professor: Quando o sujeito volta. Ento, ele deve recordar aquele estado.

    Por qu? Porque se voc no recordar esse estado, voc ir tent-lo reproduzi-lo

    mecanicamente, como se fosse algo da dimenso das coisas condicionadas.

    [Aluno oferece um exemplo relacionado com o regime poltico cubano.]

    Professor: Mas o que acontece? O Ser no Estado cubano no corresponde

    em medida nenhuma ao Ser de Estado. um modo de no ser um Estado, no um

    modo de ser um Estado.

    Aluno: Fica somente com a casca.

    Professor: Exatamente: fica somente com a casca, apenas com a estrutura

    analtica [correspondente ao Estado]. No sustentvel. O modelo ideal do Estado

    cubano no baseado na observao do Ser Estado.

    Aluno: Mas somente na arquitetura [do Estado].

    Professor: Exatamente: na arquitetura ou como na estrutura matemtica.

    [Alunos comentam este exemplo.]

    Professor: Ento, o primeiro passo justamente esse: quando o sujeito

    emerge deste estado, a tendncia justamente a ateno voltar-se para o

    condicionado porque h outras coisas a fazer. Mas, mesmo tendo estas outras

    atividades para fazer, o sujeito deve marcar trs minutos e no brincadeira: so

    trs minutos marcados no cronmetro mesmo. So trs minutos para recordar esse

    estado, mas nesses trs minutos o sujeito deve mesmo fazer isso. E o que vai

    acontecer? simples! Existe um processo, uma regra matemtica sobre o que vai

    acontecer. Ele deve pensar nessa coisa at perceber a diferena que h entre o estado

    condicionado e o estado incondicionado. [Deve notar que] isto que aconteceu no

    devido a nenhum mecanismo, a nenhum processo mecnico. [Deve superar a

    tendncia de] pensar que isso que aconteceu por algum outro motivo. Se chegou

    concluso de que o efeito aconteceu porque tocou aquela msica enquanto estava

    trabalhando, voc deve testar esta causa16. [Neste caso,] coloque a mesma msica de

    16 Para descobrir se h mesmo uma relao necessria entre esta causa e o efeito em questo [N.T.].

  • novo. Depois, v testando as outras possveis causas, uma por uma. Ao chegar no

    limite deste processo, voc [provavelmente] chegar concluso de que [aquele

    resultado em questo] no foi causado por nada fora dele.

    O SIMBOLISMO DO PRIMEIRO DIA DA CRIAO E DO PRIMEIRO

    DOM DO ESPRITO SANTO

    Professor: Isto o primeiro dia da vida espiritual e corresponde ao primeiro

    dia da criao, quando Ele disse ao criar a luz: E Deus separou a luz das trevas.

    Quando o sujeito tenta rememorar este estado e atribui imaginativamente causas a

    este estado e vai testando-as e eliminando-as at que ele esgota [aquelas hipteses] e

    percebe que aquele efeito intrinsecamente diferente deste plano [condicionado].

    Isso a primeira Luz espiritual na vida humana. a percepo de que existe um

    plano que no este da Terra. Isto a primeira percepo do outro mundo.

    Aluno: como se a pessoa percebesse uma ordem17 do Ser?

    Professor: Ainda no a percepo de uma ordem do Ser. a percepo de

    que existe algo que no determinado por causas estranhas sua prpria natureza18.

    Por exemplo: existem inmeros fatores que interferem nas atividades. Por exemplo:

    voc estava passeando alegremente pelo parque quando uma pedra apareceu no seu

    caminho, voc tropeou nela e caiu. O seu passeio pelo parque est condicionado a

    causas que so completamente alheias sua deciso de passear no parque. Todos os

    processos da sua vida so influenciados por causas estranhas [a eles mesmos] ou at

    mesmo hostis. E voc vai descobrir que aqueles processos [incondicionados] no

    possuem causas estranhas a si mesmos: nada pode obstaculiz-los. Voc vai

    descobrir que no sabe de onde veio e para onde vai: no sabe onde comea, nem

    onde termina19. Assim voc percebeu o que o Esprito.

    17 Nesta pergunta, o aluno provavelmente estava pensando no sentido de ordem de Eric Voegelin [N.T.]. 18 Em outras palavras: existe algo absoluto ou incondicionado [N.T.]. 19 Conferir Evangelho de So Joo [N.T.].

  • A percepo humana das coisas espirituais possui uma analogia com a

    percepo [humana] das coisas sensveis. Lembram do mito da caverna20? O sujeito

    estava acorrentado [na caverna escura] e, quando sai, fica cegado [pela luz]. A

    primeira coisa que ele percebe do outro mundo de que ele no tem a menor idia

    de como esse , mas percebe que se tratava de algo que estava presente, pois algo

    causou aquele processo. Algo causou [aquele efeito], mas no se tem a menor idia

    do que foi. E toda vez que tento achar uma causa, a minha imaginao coloca aquela

    causa no plano das coisas condicionadas21. Ento, preciso testar cada uma destas

    causas at esgot-las [e concluir que nenhuma destas causas condicionadas

    produziu o ser do efeito em questo]. Algum poderia pensar que este processo de

    testar a causa poderia prossegui indefinidamente. [Mas no assim:] a pessoa

    poderia prosseguir indefinidamente apenas se o seu psiquismo fosse indefinidamente

    grande. Mas a sua imaginao no indefinidamente grande, tendo um limite.

    Chegar uma hora em que o sujeito testar uma causa ltima que no funcionar e o

    sujeito perceber algo sobre a natureza daquele processo. Perceber que [esse]

    incausado. Se o sujeito prossegue fazendo isso no decorrer dos anos, perceber que

    Deus no foi criado. Que Deus no tem um princpio ou origem.

    [Mas deve-se insistir no teste das causas oferecidas pela imaginao.] O

    psiquismo possui uma inclinao na direo do mundo corpreo porque ela sabe que

    mais ampla do que o mundo corpreo. Este est, em certo sentido, sob o domnio

    da psique. [Assim, o sujeito pensa:] se eu consigo achar a causa do processo, este

    poder acontecer todo dia e, assim, poderei domin-la, terei a chave da vida e

    serei o dono dela. Mas este processo pode acontecer ao contrrio: Descobri que

    no sou o dono da vida, mas, s vezes, ela dona de mim. Isso apenas uma

    questo de se rememorar sistematicamente o processo. Quando se fala em dois

    minutos, no brincadeira: so [apenas] dois minutos mesmo! No se consegue

    rememorar isso durante o tempo todo. So dois minutos!

    20 Conferir livro VII da Repblica de Plato [N.T.].21 Nesta experincia preciso perceber que esta atribuio imaginativa equivocada [N.T.].

  • [Revisando:] ento, em um primeiro estgio, surgiro imaginativamente

    hipteses sobre a causa. Voc ter que testar sistematicamente cada uma das causas.

    Alis, este processo de testar as causas ser, para voc, o critrio para testar se algo

    foi causado pelo Esprito ou no. Se a causa funcionou, [isto implica que] isso no

    do mundo do Esprito, mas do mundo natural. Se a causa funcionar, voc no

    descobriu uma realidade espiritual, mas descobriu uma lei natural. O que vai

    acontecer? O que vai acontecer que esse processo de rememorao e de teste

    constante das causas levar a psique do sujeito a ser assimilada neste processo. No

    comeo, ela sentiu apenas o calor, mas depois ir esquentando tambm. O que

    acontece? A percepo daquele processo vai aumentar. Ele comear a captar

    quando os outros esto naquele processo. Assim, captar que ser as coisas estar

    naquele processo durante o tempo todo. E comear a distinguir o que a natureza

    daquilo, o que aquilo. O sujeito viver uma vida simultaneamente em dois planos

    ou em duas dimenses.

    [Aluno pede mais uma explicao.]

    Professor: Voc trabalha todo dia? Ento, esse processo acontece todo dia.

    s vezes acontece somente na hora em que escrevemos algo, s vezes foi em uma

    conversa.

    Aluno: Dependendo do caso, acontece apenas em algumas decises.

    Professor: s vezes acontece em algumas decises.

    Aluno: Acontece todo dia.

    Professor: Acontece todo dia, mas, s vezes, acontece em algumas coisas

    to pequenas que a pessoa nem d importncia para aquilo. s vezes no ato de

    almoar.

    [Aluno pede um esclarecimento sobre a maneira de identificar esse

    processo.]

    Professor: A pessoa pode passar por esse processo e no sentir nada

    [especial]. Durante aquele processo, como se a psique dele tivesse adormecido

    no ser daquele ato. No decorrer do tempo, isto , dos anos, o que acontecer?

  • Quando a psique dele adormecer naquele processo, ele no adormecer

    completamente. A inteligncia abstrata dele estar desperta naquele processo. Mas a

    sua emoo e sua psique como um todo estar dormindo, mas a inteligncia abstrata

    estar acordada. Mas, no nosso caso, que no temos um treinamento espiritual, o que

    acontece? Quando nossa psique adormece, nossa inteligncia abstrata tambm

    adormece. Tudo adormece [nesse processo].

    Observe quando voc est trabalhando e acontece isso: voc sabe o que

    aconteceu? No, tanto que a sua inteligncia dormiu tambm. Voc dormiu inteiro.

    No foi apenas o seu corpo que dormiu, mas a psique e a inteligncia adormeceram

    naquele processo. Se o sujeito vai rememorando este processo, o que acontecer?

    Chegar uma hora em que, quando a psique dele adormecer naquele processo, a

    inteligncia dele testemunhar o que aquilo [ou o que est acontecendo naquele

    processo]. Assim, quando acontecer um processo assim, [isto , quando] a psique

    adormecer e a inteligncia ficar desperta, ele sentir uma espcie de felicidade que

    ele no tinha como experimentar antes.

    Aluno: Ele est no Ser!

    Professor: Exatamente, a inteligncia dele percebeu o que a realidade do

    Ser.

    [Alunos perguntam sobre o Ser.]

    Professor: Exatamente. Ser com S maisculo.

    [Aluno faz observao sobre o Ser.]

    Professor: Exatamente, aquilo que liga as coisas com a realidade e

    caracteriza as coisas como realidade.

    Aluno: O vnculo do realssimo22!

    Professor: O vnculo do realssimo, exatamente!

    Evidentemente voc ter que partir de uma vida humana comum. Conhecer

    isso a partir do Ser mesmo, ser Deus. Se voc j sabia isso desde o comeo [de sua

    22 Aqui provavelmente o aluno estava pensando no sentido que o filsofo Eric Voegelin atribui a este termo [N.T.].

  • existncia], ento voc Deus23. Ser Deus ter um conhecimento direto do

    incondicionado.

    Existe uma famosa histria do folclore judaico:

    Algum perguntou a Deus:

    - Por que voc criou o mundo?

    Deus respondeu:

    - Eu no podia chorar.

    Isso quer dizer que Ele no podia conhecer a si mesmo passando pelo

    sofrimento. Ento, Ele criou o ser humano, que pode conhecer o Ser partindo de um

    estado de privao. O ser humano pode chegar plenitude. Deus no pode chegar

    plenitude porque Ele j a prpria plenitude.

    Aluno: E a Encarnao de Nosso Senhor Jesus Cristo?

    Aluno: Mas o provrbio judeu!

    Professor: Pode acontecer que um sujeito tenha um talento to

    extraordinrio para isso que ele decida dedicar-se apenas contemplao do Ser.

    Um em cada milho de pessoas pode ter esse talento, mas isso no um modelo de

    vida prtico para a maioria dos seres humanos. A imensa maioria dos seres humanos

    precisa descobrir essa dimenso contemplativa na sua atividade cotidiana, naquilo

    que efetivamente faz.

    A primeira percepo que o sujeito tem sobre esse processo de que isso

    ilimitado24 ou incondicionado: isso no est de modo algum sob o domnio das

    coisas que j so conhecidas. como diz o Cristo:

    O Esprito sopra onde quer e ningum sabe para onde vai ou de onde

    vem25.

    Ele no pode ser determinado por outro [fator]. Se o sujeito percebe isso,

    o suficiente para modificar a vida do sujeito. Por qu? Porque ele perceber, quase 23 O professor est raciocinando aqui por meio de uma reduo ao absurdo [N.T.].24 O que faz lembrar a noo de peiron de Anaximandro. Conferir as explicaes a esse respeito oferecidas pelo professor Olavo de Carvalho no curso de Histria Essencial da Filosofia [N.T.]. 25 Do Evangelho segundo So Joo [N.T.].

  • durante o tempo todo, que existe essa outra dimenso. Quando esse saber da outra

    dimenso se torna um hbito26, surgir a seguinte questo:

    E se isso nunca mais acontecer em mim? O que acontecer comigo se isso

    se apagar completamente em mim?

    Esse o temor de Deus, que o princpio da Sabedoria27. Assim, o sujeito

    realmente fica infundido do temor de Deus como um dom espiritual.

    O SEGUNDO DIA DA CRIAO OU O SEGUNDO DOM DO

    ESPRITO SANTO

    Quando eu tenho esse temor, o que acontecer? O sujeito perceber que no

    pode dominar isso, mas percebe que, quando se vive de um certo jeito, pode-se estar

    mais prximo disso do que quando se procede de outra maneira. [Neste caso,

    percebe-se que] se, por um lado, no se pode dominar o Esprito, pode-se propiciar o

    domnio do Esprito sobre a sua prpria pessoa. Ele pensa: eu no sei como causar

    isso a, mas sei que certas aes minhas impossibilitam esta ao do Esprito em

    mim28. Estas coisas me separam completamente do Esprito. Ento, o sujeito

    concluir que deve criar certas regras de comportamento com este objetivo de

    permitir que o Esprito domine sobre a sua pessoa. Isso j um segundo estgio, que

    corresponde ao segundo dia da criao, quando Deus fez o firmamento no meio das

    guas e separou as guas inferiores das superiores29. H algum lugar da psique que

    como uma barreira: o que estiver para l dessa barreira, ir me separar do Esprito.

    [Por outro lado], satisfazer alguma tendncia para c desta barreira no contraria o

    Esprito. No o causa, mas tambm no o contraria, no me afasta dele.

    26 No sentido aristotlico. Conferir tica a Nicmacos [N.T.].27 Conforme se ensina nos livros sapienciais da Sagrada Escritura, como Provrbios ou Eclesiastes [N.T.].28 Nesta explicao ficou pressuposto a diferena entre causa e condio [N.T.].29 Conferir, a este respeito, o relato da criao no livro do Gnesis e a transcrio da aula do professor Luiz Gonzaga sobre os sete dias da criao [N.T.].

  • Aluno: Mesmo se no tivesse doutrina, se no houvesse religio, isso seria

    assim?

    Professor: Sim! Isso perfeitamente possvel, mesmo quando o indivduo

    transcende o seu ambiente!

    Aluno: Independente dos fatores culturais30.

    Professor: Por exemplo: toda a cincia moral apenas uma anlise abstrata

    daquilo que as pessoas que estavam neste estado fizeram para si mesmas. Porque

    somente estas pessoas sabem o que se pode fazer e o que no se pode fazer [para

    permanecer neste estado espiritual].

    Aluno: Esta atitude do segundo dia tambm corresponde a uma virtude do

    Esprito Santo31?

    Professor: Sim, esta virtude a piedade, que respeitar certos modos de

    agir humano como sagrados e considerar outros como profanos. Assim, h uma

    diviso entre profano e sagrado. Esta distino entre sagrado e profano, neste

    sentido, no ser uma distino formal, como rezar sagrado e sambar

    profano. Embora isso seja verdade no esta regra que se cria neste caso. So

    regras criadas conforme o cotidiano da prpria pessoa, acerca das situaes que se

    criam apenas para aquele indivduo e no para outro. a moral viva dele! Todo esse

    processo ocorre, de certa forma, para todas as pessoas. Isto , todos possuem alguma

    regra de vida, [por mais inconsciente que seja].

    Aluno: Mesmo que seja para se divertir.

    Professor: Mesmo que seja para se divertir. Estas regras derivam desses

    processos terem acontecido sem ateno. A nica diferena entre uma vida espiritual

    e uma vida no-espiritual que aquela uma vida em que isso, esse regrar da vida,

    feito com ateno. [Neste caso], o sujeito para e pensa a esse respeito. Isso feito de

    modo consciente. O objetivo desse processo de rememorao e de ateno

    30 Os alunos parecem estar pensando em termos da doutrina da unidade essencial sobre a qual trataram Gunon e Schuon.[N.T.].31 O aluno se baseou no princpio de que conjuntos que necessariamente possuem as mesmas quantidades de elementos possuiro uma certa analogia estrutural, quase isomrfica. O professor Luiz j ministrou cursos sobre esse assunto cosmolgico para outras turmas [N.T.].

  • consciente justamente chegar a um estgio em que minha inteligncia ficar

    desperta durante esse processo. Porque somente assim eu saberei o que a realidade.

    Saberei no porque eu deduzi formalmente a realidade, mas saberei porque a

    experimente intelectualmente. claro que pode-se fazer uma anlise [filosfica] do

    mundo e chegar concluso de que h a dimenso do transcendente e do imanente,

    do condicionado e do incondicionado e, assim por diante, formando sua

    cosmoviso32. Isto formar uma teoria razoavelmente interessante e aceitvel, mas

    no ser uma experincia do objeto desta anlise. Ser apenas notcia.

    Aluno: Por outro lado voc pode ter a experincia, mas no saber explicar o

    que aconteceu.

    Professor: Exatamente: [pode-se ter esta experincia] e no ter a menor

    idia do que aconteceu ali. O prprio Arton Senna provavelmente nunca tirou as

    concluses sobre aquilo que estava fazendo.

    Aluno: Mas eu acho que ele tirou [algumas concluses], pelas declaraes

    que ele fazia a este respeito. [Aluno oferece alguns exemplos que no ficaram

    gravados claramente.]

    Professor: Ento, [o prprio Senna] retirou algumas concluses porque ele

    percebeu que [aquele seu estado] procedia de algo que ele mesmo no sabia o que

    era e que ele no dominava. [Ento], ele fez o primeiro estgio.

    Aluno: Ao contrrio do Nelson Piquet.

    [Aluno faz uma pergunta sobre o assunto, usando Rei Lear de

    Shakespeare como exemplo.]

    Professor: Exatamente, aquilo no uma vida, mas um tipo, por meio do

    qual, entende-se alguma coisa da nossa prpria vida.

    [Aluno faz mais uma pergunta sobre Shakespeare, pensando na obra A

    arte sagrada de Shakespeare de Martin Lings.]

    Professor: Ele [Shakespeare] observou [provavelmente] a prpria vida e

    descreveu o processo pelo qual se chegou nessa captao [do Ser]. 32 H notveis exemplos destas anlises nas obras de filsofos como So Toms de Aquino e, mais recentemente, Mrio Ferreira dos Santos [N.T.].

  • [Aluno comenta sobre os personagens de Shakespeare.]

    Professor: Exatamente, no d para imaginar a Cornlia [de Rei Lear]

    indo dormir.

    Aluno: Jamais!

    [Aluno pergunta se o professor continuar a descrio dos estgios

    espirituais at o stimo dia.]

    Professor: Visando este processo aqui, no bom descrever todas as etapas

    at o stimo dia, porque, neste caso, a ateno se voltaria para essa anlise abstrata

    deste progresso espiritual, em vez de pensar que deve fazer alguma coisa [especfica

    para conseguir este aprimoramento concretamente33.]

    OUTROS ESCLARECIMENTOS ACERCA DO EXERCCIO DE

    REMEMORAO DA IMERSO NO SER DE UM ATO

    Se algum quiser fazer esse processo de rememorao, ter que faz-lo

    durante a vida toda. Por qu? Porque se algum fizer isso apenas por um dia ou dois

    ou pro algumas semanas, no acontecer nada de especial com ele. E concluir que

    no adianta nada, que ele no serve para isso. Mas perseverem! Por qu? Porque

    neste processo de perseverar, a imaginao comear a produzir rtulos sobre o que

    aquilo. Isso funciona assim por qu? Porque a inteligncia tem uma co-

    naturalidade com o Esprito, mas a alma ou a psique como um todo no tem. A alma

    como um todo possui tanta familiaridade com o outro mundo como possui com este

    mundo. Ento, o que acontece? simples! O Esprito atende aos desesperados. Se a

    pessoa tenta e vai se esgotando, ao se esgotar nesse teste dos rtulos [da

    imaginao], se ele perseverar depois que ele esgotou as hipteses, que ele

    perceber alguma coisa. Se ele parar antes, ele no perceber nada, porque o Esprito

    somente aparece quando voc percebe que no o possui: bem-aventurado os

    33 O autor desta transcrio um pssimo exemplo de aluno que, apesar de acompanhar as aulas do professor Luiz h mais de um ano, buscou apenas essas anlises abstratas, desconsiderando qualquer progresso pessoal [N.T.].

  • pobres de esprito, porque deles o Reino dos Cus34. Este pequeno exerccio vai

    levar o indivduo a perceber que no possui o Esprito. No que o Esprito nunca

    aja nele, mas [o fato] que no se possui o Esprito. E somente quando se percebe

    isso claramente que se pode perceber algo sobre o Esprito.

    Ento, justamente isso: a primeira coisa que ele perceber sobre o Esprito

    que ningum possui o Esprito. Como est nos Provrbios: como um eunuco que

    tenta violar uma donzela, o homem que tenta alcanar a Sabedoria fora. Quer

    dizer que [o ser humano] no tem o equipamento necessrio [para este fim], no ser

    possvel. Deve-se perseverar at o fim para que voc [realmente] perceba que no

    possui o equipamento para dominar o Esprito. [Neste caso], voc aprendeu algo

    sobre o Esprito. Voc aprendeu, por experincia imediata ou direta, que Ele

    indomvel. Isso j saber algo sobre o Esprito. Algo que, apesar de se crer que o

    Esprito indomvel, s vezes a gente age como se ele fosse domvel. Por qu?

    Porque a gente no sabe isso por experincia. Porque eu sei por ter lido em algum

    lugar. [Neste caso], eu sei que isso razovel, mas no se sabe se verdade ou no

    enquanto ainda no se experimentar este processo. H uma diferena entre o

    argumento provvel e a certeza de algo35. Quando o sujeito faz esta rememorao e

    esta tentativa de esgotar a hiptese, o final desse processo ir lev-lo a uma certeza

    acerca da existncia do Esprito que nunca mais sair da conscincia deste sujeito.

    Ele nunca mais pensar, em nenhum momento, que ele pode dominar esse processo.

    Isso uma experincia espiritual.

    [Aluno pede mais uma explicao.]

    Professor: Ao rememorar esse processo de imerso no Esprito ou entrar no

    ser de um ato, pode-se buscar entender isso, testando as causas, que so propostas

    pela imaginao, at obter esta percepo direta e certa de que o Esprito

    indomvel. Este o primeiro encontro do indivduo com deus. O primeiro encontro

    consciente do ser humano com Deus se d assim. claro que temos encontros com

    34 Conferir Sermo da Montanha no Evangelho segundo So Mateus [N.T.]. 35 Conforme foi explicado na teoria dos quatro discursos que Olavo de Carvalho fez a partir do estudo do conjunto da obra de Aristteles. Conferir o livro Aristteles em Nova Perspectiva [N.T.].

  • Deus durante o tempo todo, mas, nestes, a gente no sabe que Deus que est ali36.

    A gente no sabe o que est ali. Mas desta vez pode-se saber conscientemente que se

    est com Deus, porque nada domina aquilo37. A questo importante aqui a

    perseverana no exerccio. A primeira semana ser frustrante porque o sujeito

    perceber que no sabe nada sobre o que aconteceu ali. Ele no capta o que

    aconteceu ali, o que evidentemente frustrante. Mas persevere e v buscando as

    causas. Por qu? Porque esse processo, que frustrante, corresponde, em uma escala

    menor, ao processo pelo qual o Rei Lear passou aps dividir o Reino. O que

    aconteceu? Quando o sujeito est nesse processo de comunho com o Esprito ou

    submerso no ser do ato, justamente o que Lear tinha feito antes da pea

    [comear]. o reino perfeito que ele fez. como se aquele ato [perfeito] fosse o seu

    reino perfeito [como aconteceu com Lear]. O processo de entender aquilo o

    processo inteiro da pea do Lear.

    evidente que, durante esse processo, predominar o elemento de

    frustrao. O ser humano simultaneamente uma imagem de Deus e uma imagem

    do mundo. O ser humano uma imagem de tudo [ou um microcosmos38]. Se

    existe algo de demonaco no mundo, h algo de demonaco no ser humano. Este ser

    demonaco far de tudo para que voc no preste ateno naquilo. De tudo! Usar

    todas as armas que possui, mas, em certo momento, ele gasta [tudo], isto , acabam-

    se os recursos dele. Se o sujeito persevera at que estes recursos [demonacos] se

    esgotem, o sujeito capta algo do Esprito.

    Qual a primeira notcia que se percebe? a notcia sobre essa liberdade e

    independncia do Esprito. Em termos metafsicos, o sujeito deve perceber que o

    Esprito incausado. [O Esprito] no possui uma origem. Ele sempre foi o que . Se

    36 Esta observao faz lembrar que os discpulos de Emas tambm no sabiam que estavam diante do Cristo. Conferir, a este respeito, o Evangelho de So Lucas [N.T.]. 37 O divino tambm aparece como indomvel a So Tom quando v Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitado, segundo o santo relato do Evangelho de So Joo. Tambm apareceu a Moiss quando viu a sara ardente, conforme o santo livro do xodo [N.T.].38 Conforme um texto clssico de uma das artes tradicionais medievais: Na verdade, na verdade, sem dvidas e incertezas:/ o que est em baixo assemelha-se ao que est em cima, e o que est em cima ao que est em baixo, para realizar os prodgios do Uno.

  • o sujeito perceber isso e continuar no exerccio de rememorao, este mudar de

    natureza. O sujeito perceber a segunda notcia sobre o Esprito. Esta

    evidentemente mais importante do que a primeira. O sujeito chegar mais prximo

    do ncleo do prprio Esprito. Cada uma destas experincias vai sendo cada vez

    mais prxima daquilo que o prprio Esprito. O que o sujeito ir perceber no

    estgio seguinte que no somente o Esprito no possui origem, como no possui

    fim. Ele no se esgota. Se aquele processo [bem-aventurado] cessou no foi porque

    o Esprito cessou, mas porque algo em mim mudou. essa percepo que levar o

    sujeito formulao de normas para o seu comportamento. Ele perceber que

    quando age assim, o processo se alonga ou se torna mais freqente e, quando age da

    maneira contrria, o contrrio acontece. E isso vai lev-lo percepo de que o

    Esprito ilimitado, inesgotvel.

    [O professor pergunta se o exerccio proposto ficou claro e aluno pede mais

    um exemplo.]

    Professor: Um exemplo prtico o seguinte: medite sobre aquilo que voc

    gosta [como o rei que amava o ouro]. E outro exerccio o seguinte: perceba, na sua

    atividade cotidiana, quando voc faz um estgio correto pensando no estgio

    seguinte. Por exemplo: sento na cadeira e penso em escrever algo para enviar ao

    fulano. At um certo ponto desse processo, voc est fazendo algo e antecipando

    efeitos, na medida em que pensa nos passos seguintes. Chega um certo momento em

    que o processo de realizar uma etapa parece apagar as etapas seguintes e voc

    esquece o seu plano e vai apenas fazendo aquilo. Enquanto voc est fazendo algo,

    levando em conta as etapas seguintes, o processo cansativo, Se voc fica muito

    tempo trabalhando, no dia, pensando nos fatos seguintes, depois de duas horas, ele

    somente quer descansar porque no agenta mais. Mas se trabalhar fosse apenas

    isso, seria infernal. Mas acontece que nestas duas horas h momentos em que as

    etapas seguintes so esquecidas e voc est simplesmente submerso na etapa atual.

    Voc nem repara nas prximas etapas. Voc est simplesmente fazendo aquilo que

    est fazendo. Em algum momento voc volta para a dimenso temporal e nota que

  • faz um passo depois do outro. O exerccio que estou propondo o seguinte: nesta

    hora em que voc volta para esta dimenso temporal, antes de voc retomar a

    caminhada, rememore este perodo em que voc ficou submerso na fonte do [ser do]

    processo. E pergunte-se: aconteceu ali? O que aconteceu quando estava no ser do

    processo, quando consegui agir sem me esgotar psiquicamente? So estes momentos

    breves que tornam o trabalho suportvel. O exerccio este: quando sa deste

    processo de imerso no ser da atividade atual e voltei a pensar etapa por etapa, antes

    de retomar o curso, irei parar e perguntar: o que foi isso? O que aconteceu? O que

    causou isso?

    [Aluno oferece um exemplo de um mdico, na sua famlia, que fazia algo

    muito similar a este exerccio.]

    Professor: isso! Esse sujeito estava a um passo da santidade. Se ele

    parasse para refletir sobre esse processo da mesma maneira como ele fazia cirurgias,

    ele chegaria santidade.

    [Alunos contam outros exemplos retirados da vida deste mdico notvel.]

    Professor: Este rememorar levar, no decorrer do tempo, ao aumento da

    freqncia dessa experincia.

    [Alunos comentam sobre este exerccio.]

    Professor: Isso pode ser feito em qualquer atividade humana.

    Aluno: Inclusive na vida de estudos.

    Professor: Porque seno a vida de estudos tambm seria um inferno.

    Aluno: No limite, como diz So Paulo [Apstolo]: Nele somos, nos

    movemos e existimos.

    Professor: Isso pode ser feito em qualquer processo mesmo: at enquanto se

    assiste a televiso. A gente falou do trabalho porque esta uma atividade que

    regularmente se tornar um inferno, mesmo que o sujeito seja apaixonado pelo seu

    trabalho. [Ento, o sujeito] pode observar estes momentos em que deixou de ser um

    inferno, [por exemplo]. Isto pode ser feito em qualquer atividade humana.

    [Alunos oferecem outros exemplos, como a alimentao.]

  • Aluno: Qual a diferena entre Alma e Esprito?

    Professor: simples! A alma capaz de sucesso. No que ela seja

    medida pelo tempo, o qual um modo de sucesso. A alma est sujeita a etapas

    sucessivas. Uma atividade psquica exclui outra atividade psquica. Uma cede sobre

    a sucesso da outra. Em um momento estou pensando sobre o que falarei para vocs.

    No momento seguinte, quando falo, tenho que parar de pensar porque quando estou

    pensando no posso falar. Percebem? Um estado psquico sucede ao outro e

    sucedido por outro. Um momento da psique precisa desaparecer para que outro

    surja. O Esprito no assim. O Esprito permanente. O modo de durao do

    Esprito no por sucesso, mas a eternidade.

    Se voc fosse uma pessoa com um forte treinamento espiritual, o seu

    Esprito permaneceria desperto quando sua psique fizesse essa imerso no Ser e

    voc compreenderia diversas coisas sobre o mundo espiritual. E quando voc fizesse

    isso de novo, compreenderia outras coisas, mas essas novas compreenses no

    fariam com que as anteriores cedessem ou desaparecessem da sua percepo [como

    acontece na dimenso psquica]. A fruio e a percepo das coisas [espirituais]

    anteriores no desaparecem. A experincia espiritual somente aumenta, mas no

    cede.

    Aluno: como se voc estivesse em uma sala escura, depois abrisse uma

    janela, depois outra, [depois outra e assim por diante].

    Professor: Exatamente! Uma luz no diminui a anterior. Para o sujeito

    perceber isso39, ter que fazer essa experincia anterior. difcil falar do Esprito

    justamente por causa desse elemento de incomparabilidade entre o Esprito e

    qualquer outra coisa da qual se possa falar.

    Aluno: A alma individual. O Esprito tambm individual?

    39 Parece que o professor Luiz est insistindo em uma percepo que Husserl chamaria de autntica, isto , uma percepo na qual o objeto esteja presente, em contraste com a percepo simblica, na qual o objeto no precisa estar presente. Por exemplo: se penso no meu falecido av Horcio, uma expresso simblica, pois ele no tenho a percepo autntica dele como o aluno tem do professor presente que ministra a aula naquele momento, na sua frente [N.T.].

  • Professor: O Esprito e no individual. Ele toca cada pessoa, mas est

    acima de cada um.

    [Aluno faz mais uma pergunta sobre essa diferena entre alma e esprito.]

    Professor: Entender o que est fazendo no pode ser um processo espiritual.

    Por exemplo: se entendo que estou escrevendo um livro agora ou correndo uma

    maratona. Se a pessoa corre uma maratona e a sua pisque est adormecida enquanto

    a sua inteligncia est desperta, ela no vai entender o que uma maratona. Isso ser

    entendido em outro momento. O que ela entender, [pela ao do Esprito], o Ser

    que est infundindo efetividade a esse processo de correr maratona naquele

    momento. Vai entender, em uma expresso que simblica e deve ser entendida

    com cuidado, o que Deus est fazendo quando voc corre uma maratona. evidente

    que, para voc correr uma maratona ou fazer qualquer outra coisa, Deus precisa

    estar fazendo algo, pois Ele que sustenta todas as coisas no Ser. Mas isso

    normalmente no captado por ns.

    [Aluno pergunta sobre o sentido do termo Esprito.]

    Professor: O Esprito de que estamos falando aqui o prprio Deus.

    [Alguns momentos de silncio.]

    Aluno: Esta captao do Ser compreender qual foi a inteno do Criador.

    Professor: Exatamente! Compreender a inteno do Criador em cada uma

    das coisas.

    [Aluno comenta sobre a explicao que os escolsticos davam a isso e

    pergunta sobre a freqncia deste processo.]

    Professor: Esse processo acontecia com milhares de pessoas [na Idade

    Mdia].

    Aluno: Milhares?

    Professor: Milhares, porque, nos mosteiros, eles observavam os talentos

    das pessoas e orientavam-no a fazer esse processo enquanto desenvolviam seus

    talentos, fosse cuidando de ovelhas ou escrevendo.

    Aluno: Mas era uma minoria no conjunto da sociedade!

  • Professor: Mas era o suficiente para garantir a felicidade da sociedade como

    um todo, embora esta possibilidade esteja aberta para todos, a princpio.

    O segredo perseverar neste exerccio. Isto uma Graa divina, pois Deus

    vem em um momento em que ns no estamos preocupados com Ele. Mas trata-se

    de uma ao em que, em uma medida ou outra, precisamos nos preocupar.

    Precisamos nos preocupar com as coisas dos trabalhos, da famlia, etc. Ento Deus

    leva em considerao isso: quando voc fizer uma dessas coisas jogarei uma

    semente em voc; se prestar ateno, captar e vivendo a sua vida, voc viver

    tambm a Minha.

    DOIS PLANOS INTELECTUAIS OU A DISTINO ENTRE DOIS

    ASPECTOS DA INTELIGNCIA HUMANA

    Aluno: Isso ainda ensinado nos cursos de Teologia?

    Professor: Isso parou sistematicamente de ser ensinado nas escolas de

    Teologia por volta do sculo XIV.

    A crise da nossa civilizao tem suas causas l por volta dos sculos XIII e

    XIV40.

    [Aluno pede uma explicao.]

    Professor: A atividade filosfica dos escolsticos tambm era uma atividade

    social que obedecia a regras. Ento, qualquer um pode aprender estas regras e se

    tornar um escolstico ainda hoje. Isso era metade da arte dos escolsticos. Agora

    aproveite essa tcnica filosfica para o seu progresso espiritual. Sem isso, ela

    perder sua vitalidade e desaparecer da sociedade. E foi o que aconteceu! Sem esta

    atividade, a parte formal continua a mesma, mas perde a vitalidade e no se

    consegue mais difundir aquele contedo na sociedade como um todo.

    Aluno: Somente pensar escolasticamente no ir adiantar.

    40 Esta tese defendida, por exemplo,no livro A crise do mundo moderno de Ren Gunon [N.T.].

  • Professor: A vitalidade se atrofia e, por mais certa que [tal filosofia seja],

    no tem fora para agir.

    a essas duas atividades que Aristteles se referia quando disse que se a

    coruja no capaz de ver o Sol, a guia, no entanto, . Quando Aristteles foi

    ficando mais velho, foi adquirindo uma tendncia mais potica e mstica como

    Plato41. Ele estava dizendo que a ave noturna, a coruja, o aspecto da inteligncia

    humana que capaz de analisar as coisas e dividi-las em estruturas formais,

    desenvolvendo as cincias, as artes e a civilizao. Isso tudo muito til, mas, por

    si, no tem vitalidade. Se voc no entender esse outro processo, que o entender o

    Ser, essas coisas formais caducaro. No provocaro um interesse [humano]. Por

    qu? Porque uma civilizao excelente no resolve sequer o problema de uma vida

    humana. A melhor civilizao, por si, no torna um nico indivduo humano feliz.

    Do mesmo modo que o melhor tratado sobre cirurgia no faz, por si, uma nica

    cirurgia. Somente quem faz a cirurgia a pessoa imersa nesse processo. E a

    captao consciente desse processo o que torna o ser humano feliz.

    preciso trabalhar nos dois planos. Por uma lado, estamos constantemente

    analisando as estruturas para tentar entend-las melhor e tentar fazer o mundo ao

    redor um pouco menos pior. Por um lado a inteligncia se volta para isso em cada

    coisa cotidiana que tento fazer melhor, como correr uma maratona melhor ou

    qualquer outra atividade. Mas isso no suficiente! preciso que a inteligncia

    volte, nessas ocasies, e tente entender o que foi aquela submerso.

    [Aluno pergunta sobre o simbolismo do Esprito na orao do sinal da

    cruz.]

    Professor: Por que voc nomeou o Esprito Santo na dimenso horizontal e

    no na dimenso vertical? Justamente porque essa submerso no Esprito estender

    41 Como diz um comentarista, foi se tornando um amigo dos mitos ("filo-mitos") alm de um amigo da sabedoria ("filo-sofia"). Conferir o volume introdutrio de Giovanni Reale sobre a Metafsica de Aristteles [N.T.]..

  • ou ampliar a dimenso horizontal. Voc fez algo para este plano ser mais perfeito.

    Este plano aumentou ou dilatou42.

    [Aluno faz pergunta sobre esta dimenso.]

    GUISA DE CONCLUSO: O INTELECTO E O SENTIDO DA VIDA

    HUMANA

    Professor: Se o sujeito no usar esta dimenso para obter a outra, no ter a

    outra. Quem quer pensar na outra vida acaba no pensando em vida nenhuma, pois

    somente se pode pensar na vida que se tem. Ento, a sua outra vida precisa estar

    nesta aqui. Nada banal para o Esprito. Pode ser banal no plano humano, mas este

    processo espiritual poderia ter acontecido naquele ato [humanamente] banal. Se

    voc rememorar aquele ato [buscando a presena do Esprito ali], ele no menos

    do que o ato do Rei Lear. O Esprito o mesmo tanto em um ato como outro. No

    existem atos banais. O que existe uma mentalidade banal.

    Por hoje est bom, ma h uma lio de casa que no acabar nunca!

    [Aluno pergunta sobre esta tarefa de casa, se ela visa reviver o que

    aconteceu na imerso no Esprito.]

    Professor: No visa reviver o que aconteceu, mas entender o que se passou

    e descobrir qual foi a causa por meio de testes que levaro a excluir as possveis

    causas43. At uma hora em que a imaginao esgota suas possibilidades de atribuir

    causa. Se voc continuar a rememorar depois disso, comear a compreender o que

    o prprio Ser. A primeira coisa rememorar. Quem fez isso sistematicamente,

    cumpriu a finalidade da vida humana. Saber o que esse estado ou compreend-lo

    a finalidade da existncia humana. O objetivo compreender aquilo.

    Aluno: Agora entendi.

    42 Com o sinal da cruz, como se os ombros se ampliassem tambm com a nomeao do Esprito Santo, ao contrrio dos homens sem peito de que trata C.S. Lewis em Abolio do Homem [N.T.].43 At esgotar essa tentativa de compreenso e perceber autenticamente a causa incondicionada, que o Esprito [N.T.].

  • Professor: Porque l no miolo do ser humano h uma inteligncia que

    somente existe para entender o que eterno. Se fizer isso, cumpriu inevitavelmente

    o objetivo da vida. E a prpria vida mundana vai se tornando mais compreensvel e

    mais suave para ele. Por qu? Porque o Esprito dilata este plano tambm! Dilata

    tanto at o ponto em que as vidas dos santos ultrapassam os limites das leis naturais.

    A vida do santo passa a ser mais ampla do que as leis naturais44, de tanto que essa

    recordao do Esprito dilatou a alma dele.

    Aluno: o contato com o Sublime!

    Aluno: Isso possvel?

    Professor: Sim, isso perfeitamente possvel para qualquer um! Porque esse

    estado surgir vrias vezes na sua vida e isso um dom gratuito de Deus.

    Mas preciso parar e perguntar o que isso?

    Sei que h uma tendncia nossa de achar que a vida espiritual apenas para

    pessoas nobres e excelentes e pensar o seguinte: como no sou uma pessoa nobre e

    excelente, no devo buscar a vida espiritual; afinal, somente gosto de assistir

    televiso, jogar vdeo game, ir em festas, de pescar, correr maratonas, etc.

    Aluno: Isso o que temos!

    Professor: Ento pratique esse exerccio durante essas atividades que voc

    gosta. Pare dois minutos no meio da festa e reflita sobre esse estado espiritual.

    Porque j uma felicidade descobrir uma atividade na qual voc regularmente entra

    nesse estado [de imerso no Ser]. Descobrir as atividades em que acontece isso com

    a gente dar as oportunidades. E pode ser qualquer coisa! Basta sair do estado e

    rememorar o que foi aquilo.

    Aluno: Nota dez!

    Aluno: Muito bom!

    44 Ele penetra em um crculo mais amplo do que o prprio crculo das leis naturais, conforme o simbolismo dos esquemas de crculos concntricos dos medievais [N.T.].

    O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA