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AR TIGOS Unitermos: ceticismo médico, epidemiologia clínica, filosofia médica, medicina de resultados O autor conceitua medicina baseada em evidências e se reporta aos critérios e razões dos defenso- res desta estratégia. O trabalho visa mostrar os riscos existentes na “sacralização” deste novo paradigma assistencial e pedagógico na sua forma de alcançar a verdade absoluta, principalmente considerando-se algumas dificuldades na aquisição de publicações de alto nível e no fato de a medicina clínica ser uma arte e não ciência exata - ainda mais quando se tenta passar a idéia de que existem mais evidências do que a medicina efetivamente tem, quando se sabe que os quadros clínicos mais complexos não dispõem de elementos suficientes para decisão mais convincente. Coloca em dúvida a “absolutização” da idéia de um padrão em saúde baseado em evidências e o risco decorrente da alarmante profusão de publicações - que chega, anualmente, a 30 mil sobre assuntos biomédicos e, para cada matéria específica, cerca de 300 artigos e 100 editoriais por mês, onde a leitura de alguns mostra franca oposição à de outros, fato esse que, na visão do articulis- ta, torna ainda mais complicada a situação do médico na ponta do sistema. Concluindo, deduz que o ideal seria buscar um equilíbrio nas teorias fisiopatológicas consagradas, na experiência pessoal e no resultado das investigações clínicas. Genival Veloso de França Professor visitante da Universidade Estadual de Montes Claros/MG 23 32 Os riscos da medicina baseada em evidências Genival Veloso de França 1. Os fundamentos A medicina baseada em evidências, segundo seus ardentes defensores, seria a utilização racional e judiciosa da melhor evidência científica disponível para se tomar decisões sobre cuidados aos pacientes. Ou o processo de sempre descobrir, avaliar e encontrar resultados de inves- tigação com base nas decisões clínicas (1). Significa, assim, o emprego do que se depreende melhor dos resultados científicos disponíveis procedentes da pes- quisa e investigação, e não do que possam dispor as teo- rias fisiopatológicas e a autoridade ou experiência indivi- dual. Uma medicina baseada na análise estatística de Bioética 2003 - vol. 11 - nº 1 Bioética nº 11 de 27-11-2003 12/1/03 9:23 AM Page 23

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Unitermos: ceticismo médico, epidemiologia clínica,filosofia médica, medicina de resultados

O autor conceitua medicina baseada em evidências e se reporta aos critérios e razões dos defenso-res desta estratégia. O trabalho visa mostrar os riscos existentes na “sacralização” deste novoparadigma assistencial e pedagógico na sua forma de alcançar a verdade absoluta, principalmenteconsiderando-se algumas dificuldades na aquisição de publicações de alto nível e no fato de amedicina clínica ser uma arte e não ciência exata - ainda mais quando se tenta passar a idéia deque existem mais evidências do que a medicina efetivamente tem, quando se sabe que os quadrosclínicos mais complexos não dispõem de elementos suficientes para decisão mais convincente.Coloca em dúvida a “absolutização” da idéia de um padrão em saúde baseado em evidências e orisco decorrente da alarmante profusão de publicações - que chega, anualmente, a 30 mil sobreassuntos biomédicos e, para cada matéria específica, cerca de 300 artigos e 100 editoriais por mês,onde a leitura de alguns mostra franca oposição à de outros, fato esse que, na visão do articulis-ta, torna ainda mais complicada a situação do médico na ponta do sistema. Concluindo, deduz queo ideal seria buscar um equilíbrio nas teorias fisiopatológicas consagradas, na experiência pessoale no resultado das investigações clínicas.

Genival Veloso de FrançaProfessor visitante da Universidade Estadual de Montes Claros/MG

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Os riscos da medicina baseada em evidências

Genival Veloso de França

1. Os fundamentos

A medicina baseada em evidências, segundo seus ardentesdefensores, seria a utilização racional e judiciosa damelhor evidência científica disponível para se tomardecisões sobre cuidados aos pacientes. Ou o processo desempre descobrir, avaliar e encontrar resultados de inves-tigação com base nas decisões clínicas (1).

Significa, assim, o emprego do que se depreende melhordos resultados científicos disponíveis procedentes da pes-quisa e investigação, e não do que possam dispor as teo-rias fisiopatológicas e a autoridade ou experiência indivi-dual. Uma medicina baseada na análise estatística deBi

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efeitos. Em suma, uma medicina de resul-tados.

Desta forma, o conceito de medicina baseadaem evidências condiciona-se ao fato de que asdecisões clínicas e os cuidados de saúde devemembasar-se nas evidências atuais, que chegampor publicações científicas especializadas emestudos e trabalhos e podem ser criticamenteavaliadas e recomendadas. Ou seja, que a apli-cação dos meios e métodos médicos deva con-centrar-se na informação obtida na literatura“cientificamente válida e relevante”, com dire-ta implicação à prática médica dos cuidados desaúde. Isto redunda, necessariamente, nabusca incessante da localização da “informa-ção precisa”.

Da avaliação solitária e subjetiva do clínicopassa-se a reconhecer como de valor científicoapenas as informações oriundas da pesquisa decientistas de peso em estudos demorados ecom expressivo número de pacientes observa-dos nos serviços de excelência.

Segundo esta concepção de medicina, caso sepermanecesse apenas na experiência individualperder-se-iam os avanços oferecidos pela ciên-cia atual, os quais são capazes de ampliar emelhorar a atenção nos cuidados da saúde dosindivíduos e comunidades. E mais: como talmetodologia é utilizada por múltiplos agentesde saúde os programas são avaliados na suamelhor forma de utilização, o que significaintegrar uma consagrada experiência científicaa toda a equipe, como a melhor evidência dis-ponível.

Algumas vezes até podemos ter dúvidas sobreuma melhor proposta de atenção à saúde emcertas circunstâncias e contingências. Oumesmo alguma dificuldade para saber se tantoinvestimento é justo e imprescindível. Todavia,o que se deve considerar é a convicta delibera-ção de estarmos fazendo o que se nos apresen-ta como melhor e mais adequado ao paciente,e que este esteja recebendo o mais apropriadoàs suas necessidades e circunstâncias.

Mesmo que a saúde seja aceita e consagradacomo um bem social da maior relevância e quea utilização racional dos recursos a ela aplica-dos seja de imperiosa obrigação, não se podeadmitir que a política de assistência à saúdeindividual ou coletiva torne-se uma práticavoltada apenas à contenção de gastos, ou, piorainda, ao lucro desmedido. Não se pode retirardo paciente a melhor assistência dentro do queé disponível, justo e necessário.

No complexo exercício da arte médica hátrês níveis de incertezas que não podem seromitidos numa análise como esta: a primei-ra refere-se ao próprio paciente, pois sabe-mos que as pessoas são tão diferentes emseus aspectos físicos e emocionais como desi-guais são os seus destinos; a segunda, asdúvidas originadas no domínio de tantosmeios tecnológicos e condutas recomenda-das, algumas vezes tão conflitantes entre sique parece existir não apenas uma medicina,mas muitas. Por fim, a própria postura domédico baseada em suas convicções, expe-riências, cultura e, até mesmo, habilidadespessoais (2).

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Além disso, é evidente que a boa prática médi-ca sempre resultará da experiência, responsabi-lidade, competência e respeito à dignidade doassistido. Ou seja, aquela na qual as pessoassão tratadas com respeito, sentimento e efi-ciência.

Pelo visto, ao defender-se a liberdade e expe-riência pessoal do médico não se está defen-dendo as práticas não-convencionais ou proce-dimentos desnecessários, nem muito menosaceitando todas as terapêuticas como efetivas eeficazes.

A facilidade de analisar e utilizar a clínica prio-rizada em evidências não está na disponibilida-de e domínio de todos os que exercem a medi-cina. E estas publicações, com raras exceções,são de utilidade discutível na prática clínica dodia-a-dia. Perde-se muito tempo com consul-tas e o resultado, em nível de resolubilidade, éaté certo ponto desprezível.

Por sua vez, a barreira idiomática ao acesso aalgumas informações é fato incontestável e aslimitações de meios e recursos em determina-das áreas torna a medicina baseada em evidên-cias uma utopia nunca alcançada. As experiên-cias trocadas entre clínicos de mesma área deconcentração e que atuam numa mesma reali-dade têm se mostrado mais proveitosas.

Nestes últimos anos, ocorreu uma verdadeiraenxurrada de publicações médicas, algumas emnotória contradição, o que torna ainda maiscomplicada a decisão dos médicos, principal-mente dos que atuam na ponta do sistema.

Isto, sem dúvida, reflete negativamente sobreas ações de saúde, não apenas pelos gastos des-necessários e tempo perdido, mas pelos prejuí-zos que pode trazer aos pacientes. Atualmente,publica-se no mundo uma média de 30 milrevistas biomédicas/ano – o que faz com quealguém que queira estar mais ou menos atua-lizado com temas específicos deva ler cerca de300 artigos e 100 editoriais por mês, veicula-dos em revistas de grande destaque (3).

2. Os riscos

No instante em que a medicina baseada emevidências tenta “clicherar” o atendimentobaseado unicamente em dados estatísticos,fugindo da avaliação da experiência pessoal ecapacidade de conduta do médico diante decada caso, desfaz o conceito de que “não exis-te doenças e sim doentes”.

De onde provém o conhecimento médico dia-riamente aplicado na prática profissional? Seráno material existente na literatura mais sofisti-cada das revistas do Primeiro Mundo?Certamente não! É da experiência pessoal dodia-a-dia, embora isto não queira dizer que suacultura também resulte da experiência de tantosoutros que publicam ou divulgam seus conheci-mentos. É fato inegável que o conhecimentoestá enraizado na experiência pessoal de acordocom o repetido na prática diária do médico, semque isto se constitua em propriedade intelectualou lhe dê, sempre, o selo da autoridade. E nemsempre as decisões mais acertadas são as dos quepossuem maior experiência.

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O risco da “sacralização” deste novo padrãoassistencial e pedagógico de alcançar a verdadeabsoluta é o de que o modelo de “paradigmas”estabeleça que espécie de problemas deva serestudada, que critérios devam ser utilizadospara avaliar uma solução e que procedimentosexperimentais possam ser julgados como acei-táveis (4). Nesse contexto, o que se verifica, namaioria das vezes, é a mudança de um paradig-ma por outro sempre que haja dúvidas neste ounaquele conceito (crise). Entre outros, pode severificar uma mudança desde que haja elevaçãode custos assistenciais.

Sabe-se que muitas das práticas terapêuticasnão avaliadas ou não recomendadas pelainvestigação científica de alta evidência têmem certos casos um efeito positivo e o pacien-te as solicita. É ético recusar uma práticaterapêutica pelo fato de não estar baseadanuma evidência científica, como no caso dasopções da chamada medicina alternativa? Oque fazer?

A prática médica sempre se baseará num pro-jeto que alie a arte clínica e o cálculo das pro-babilidades. Por isso, já se disse que a medici-na clínica, por mais avançada seja, sempre seráa ciência das probabilidades e a arte das incer-tezas. Mesmo que uma ou outra evidência, pormais aparente, revele-se expressivamentedenunciadora não deve ser concluída como“fato”. No entanto, até podemos concordarcom as evidências se as mesmas forem dirigi-das visando balizar determinadas condutas,nos seus aspectos éticos ou deontológicos,caracterizadas pela má prática.

É necessário que se entenda que o fato dedeterminado procedimento ser tecnicamentecorreto não implica necessariamente, de formaabsoluta, que seja eticamente certo. Assim, oato médico criterioso pode ser visto por doisaspectos: o do procedimento correto e o daretidão moral (5). Exige, portanto, criteriosaanálise de cada caso para que as coisas fiquemno seu devido lugar: no expresso cumprimentoda lex artis e no respeito à dignidade de cadapessoa.

Por outro lado, se fizermos uma leitura maisatenta no atualmente publicado em revistas dealto nível e grande circulação - como NewEngland Journal of Medicine, JAMA e BritishMedical Journal, entre outras - veremos quenos trabalhos por elas apresentados não existenenhum critério para fundamentar “evidên-cia”. Ressalte-se também ser necessário tertempo para pesquisar na Internet e dispor deum acervo regular de revistas especializadas -além do problema da barreira idiomática, quedificulta ou limita o entendimento das infor-mações para a devida aplicação do que se con-sidera evidente, o que torna esta tarefa difícil ecomplexa.

A medicina não conta com os benefícios daexatidão matemática nem se propõe oferecerpropostas perfeitas e uniformes. É a mais cir-cunstancial das ciências e o ato médico, o maiscircunstancial dos atos humanos. Por isso, oconhecimento médico nunca pode ser certo,mas apenas provável. Em medicina - principal-mente na clínica, que é meramente arte -, oprovável nunca é uma abstração, mas aquilo

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que situa-se entre o possível e o real: a chama-da “probabilidade objetiva”. A arte clínica ébem mais uma ordem do pensar do que do ser.Isto não torna o ato médico baseado na inten-ção menos importante do que o baseado naevidência.

Toda ciência experimental é saber dedutivo, enão indutivo: tem uma dedução empírica,nunca completa, e suas conclusões são sempreprováveis. O princípio aristotélico de que asverdades científicas são sempre certas e verda-deiras tende a modificar-se quando o assuntoem discussão é uma ciência indutiva e experi-mental.

A verdade é que mesmo existindo duas opi-niões opostas (eqüiprobabilismo), defendidaspor pessoas prudentes e qualificadas, qualqueruma delas pode ser adotada e igualmente acei-ta como certa. Ou, ainda, caso haja uma opi-nião defendida por apenas um autor compe-tente e experimentado, a mesma deve ser pru-dentemente seguida (laxismo) (5). Todavia, nalógica da “medicina de resultados” evidênciasincompletas e conflitantes, além de aumenta-rem a incerteza, podem criar ainda mais dúvi-das. Nos âmbitos da urgência e emergênciaisto se verifica com mais razão e resultadosmais graves.

Um dos óbices à incorporação da medicinabaseada em evidências é a falta de condições deacesso às publicações que se multiplicam emtodo o mundo e de análise crítica aos artigos ematérias de periódicos, quando o profissionalnão estaria em condições de elaborar suas pró-

prias conclusões, ficando sempre prisioneirodos autores dos textos, pelo fato de suas publi-cações em revistas de qualidade e conceitogarantidos. Ao lado disto, galopante e progres-sivo excesso de publicações de qualidade duvi-dosa, verdadeiro entulho científico, impõe cri-térios em conceitos e condutas de importânciarelativa (6).

Acrescente-se a resistência dos profissionais àmudança de hábitos quando sente-se segurocom o que faz, ainda mais quando obtémresultados satisfatórios - não é o mesmo que semostrar obstinado a novos meios e condutasque possam reduzir os maus resultados e gas-tos desnecessários.

O risco desta nova ordem é levar as pessoas aacreditarem existir mais evidências do que amedicina realmente tem e apresenta. E mais:em determinadas situações pode até retardar oavanço desta e promover uma falsa opção aosmais jovens (7). Certos conceitos podem estartransformando a medicina numa “sacola detruques” (8). Outro risco é o fato de os profis-sionais jovens aceitarem alguma idéia novanão pela convicção de seu valor científico, mastão-somente pela publicação ser de línguaestranha ou originária de centros alegadamen-te avançados. Ou que se venha desdenhar darelação médico-paciente como um ato român-tico não mais cabível neste programa de exati-dão metodológica (9).

Nenhum expert pode presumir-se de autorida-de incapaz de erro, mesmo não-intencional,porque não existe verdade soberana. Assim, é

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sempre aconselhável não se procurar certezaabsoluta quando tudo se mostra impossíveldiante de decisões instáveis, pois os caminhosda medicina clínica são contingentes e falíveise não há, na sua prática, “verdades derradei-ras”. O conhecimento científico está sempreem franca evolução.

Sempre que possível, deve-se avaliar umaproposição com base nos fatos e na lógicaque a sustentam, e não nas qualidades pes-soais ou no status dos seus defensores (10).Os métodos científicos não são muito dife-rentes das coisas racionais do dia-a-dia. Oque a ciência faz a mais é utilizar-se de tes-tes e controlar estatísticas insistindo narepetição ordenada de suas experiências.Isto, no entanto, não é o mesmo que dizerque a ciência é menos valiosa que a observa-ção dos fatos cotidianos. Mas, no fundo, elasó serve para explicar a coerência das nossasexperiências.

Mesmo os defensores mais exaltados destanova ideologia médica não escondem algumasdesvantagens neste método: utilização dedemasiado tempo de pesquisa; elaboração detrabalho intelectual complexo; dificuldade deo profissional fazer uma revisão sistemáticasozinho; falta de subsídios facilmente disponí-veis para resolver a maioria das questões clíni-cas; existência de estudos não-consensuais oucontraditórios e de estudos quase sempre pro-jetados num contexto diferente do qual seencontra o paciente-questão; poucos relatosna literatura médica sobre determinadosmales.

Em algumas oportunidades, o que se verifica,mesmo, é uma política de compensação queem outra coisa não se firma senão na reduçãode gastos com hotelaria, diminuição do tempode internação, restrição de solicitação de exa-mes subsidiários e indisfarçável aviltamentodos salários profissionais – fatores ditados porum sistema empresarial que promove a coloni-zação médica.

É sempre bom lembrar que algumas objeções àchamada medicina baseada em evidências nãoquerem dizer intolerância às inovações advin-das da tecnologia moderna, nem muito menosao que se incorpora de meios e recursos embenefício dos pacientes.

A própria expressão “evidência” - tal qual aquicolocada - mostra-se inconsistente, pois se dizque algo é evidente quando prescinde de provaou dispensa justificação. A evidência é inimigada prova. É a consagração da verdade. Assim,evidente é o que se mostra notório. Mais: oimportante é saber o que se pode considerarcomo “evidência” e quem a determina como“fato concreto”.

Por outro lado, definir evidência em medicinacomo “dados e informações que comprovamachados e suportam opiniões” não é o bastantepara oferecer a esperada segurança. Como qua-lificar uma medicina que se diz evidente, racio-nal e científica quando ela depende tão-só depercentuais levantados em dados estatísticos?E o que fazer, por exemplo, quando se sabe quehá tópicos da medicina prática para os quaisnão existe nenhuma evidência convincente?

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Até podemos entender que muitas das decisõestomadas em epidemiologia clássica baseiem-seem dados estatísticos, na tentativa de criaremnovas “evidências” para a prática das ações emmedicina preventiva. Mas daí a dizer que tallógica deve conduzir e definir as questões denatureza clínica parece exagero. Primeiro, aclínica trata das conseqüências e a epidemiolo-gia das causas; depois, na clínica, o centro dointeresse está no prognóstico através da pre-venção secundária e terciária, e na epidemiolo-gia em fatores de risco na prevenção primária;por fim, a clínica baseia-se no raciocínio dedu-tivo (da doença para o caso concreto) e a epi-demiologia, no indutivo (dos casos para adoença).

A cada crescimento da intervenção tecnológi-ca, com seus meios invasivos, mais surgemresultados atípicos e indesejáveis, onde oslimites éticos da relação custo-benefício tor-nam-se mais discutíveis. O perigo é a criaçãode uma medicina influenciada pela globaliza-ção e interesses de mercado, que nada maisfaz senão afastar-se progressivamente daética. Ou uma medicina prisioneira dasempresas de saúde. Por sua vez, a importân-cia da indústria farmacêutica na edição dasrevistas e promoção de eventos médicos é fatoirrefutável.

No tocante às fontes das evidências existemmuitos interesses financeiros e profissionaisconflitantes entre os que detêm o poder deinformação - onde não falta o patrocínio dasempresas fabricantes de remédios e equipa-mentos médicos.

A obsessão pela quantificação despreza ashabilidades pessoais e pode fazer com que osdados objetivos da anamnese e do examesemiológico tornem-se ‘contaminados’ porvalores estatísticos. Todo conhecimentoquantificado é ideológico e não-científico(11).

O risco das ideologias no campo da saúde resi-de no seu caráter reacionário e centralizadorpor não admitir o pensar ou o agir individual.Sua inclinação é pelas idéias abstratas. E omais desanimador no caso da medicina basea-da em evidências é que quanto mais complexoé o quadro clínico, menos evidências científi-cas ela dispõe para uma convincente tomadade decisão.

Outro risco é a tendência de as conclusões dasrevisões continuadas ser norteada pela aceita-ção de trabalhos que apenas se reportam aosresultados que se ajustam aos esperados, e nãoàqueles que revelam conseqüências adversas ounão se enquadram numa determinada linha decritérios estabelecida na seleção dos artigos derevisão – excluindo-os por razões nem semprejustificadas (12).

3. As conclusões

Diante do exposto, fica evidente que ninguémde bom-senso poderia voltar-se contra, ou pelomenos ficar indiferente, a todo este acervo cul-tural e contribuição tecnológica que vem seinserindo às ciências médicas nos últimos tem-pos. Nem tampouco o que daí pode resultar

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como contribuição na luta cada vez mais eficazcontra as doenças e em favor dos melhoresníveis de vida e saúde da população.

Todavia, não se pode admitir serenamente quea medicina abra mão da intuição, das teoriasfisiopatológicas consagradas e da experiênciaclínica pessoal, pois não existe nenhuma aná-lise metodológica nem prova científica apri-morada que não possua como ponto de parti-da a vivência e observação individual na práti-ca profissional. E mais: a medicina baseadaem evidências não é receita pronta e acabada

na orientação de todos os procedimentosmédicos.

O ideal será, sempre, a associação da investi-gação clínica científica, do ensino médico con-tinuado, das teorias fisiopatológicas consagra-das e da contribuição de cada experiência pes-soal. A análise e aplicação racional da infor-mação científica - aliadas à experiência clínicade cuidar de pacientes - direcionadas ao indivi-dual ou coletivo, sob a ótica do humanismoque sempre deu à profissão médica um lugarde destaque.

RESUMENLos riesgos de la medicina basada en evidencias

El autor conceptúa la medicina basada en evidencias y se reporta a los criterios y razones delos defensores de esta estrategia. El trabajo tiene por objetivo mostrar los riesgos existen-tes en la “sacralización” de este nuevo paradigma asistencial y pedagógico en la forma dealcanzar la verdad absoluta, principalmente considerándose algunas dificultades en laadquisición de publicaciones de alto nivel y en el hecho de ser la medicina clínica un artey no una ciencia exacta, más aun cuando se intenta pasar la idea de que existen más evi-dencias de lo que la medicina efectivamente tiene, cuando se sabe que los cuadros clíni-cos más complejos no disponen de elementos suficientes para una decisión más conve-niente. Se coloca en duda el “absolutismo” de la idea de un modelo en la salud basadoen evidencias y en el riesgo decurrente del alarmante exceso de publicaciones que llegaanualmente a treinta mil en asuntos biomédicos, para cada materia específica, y cerca de300 artículos y 100 editoriales por mes, donde la lectura de algunos revela una franca opo-sición a la de otros, hecho que, en la visión del articulista, torna aun más complicada lasituación del médico en la arista del sistema. Concluyendo, se deduce que lo ideal seríabuscar un equilibrio en las teorías fisiopatológicas consagradas, en la experiencia perso-nal y en el resultado de las investigaciones clínicas.Unitérminos: escepticismo médico, epidemiología clínica, filosofía médica, medicina de resultados

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ABSTRACTThe risks of evidence-based medicine

The paper defines the concept of evidence-based medicine and explores the criteria andreasons of those who defend this approach. Given the difficulty experienced by practi-tioners in accessing high-level publications, the study intends to demonstrate the riskinherent in the “sacralization” of this new healthcare and medical training paradigm’sclaim on absolute truth, especially when efforts are made to demonstrate that more evi-dence exists than medicine can actually rely on. As a matter of fact, in the most complexmedical cases there are usually not enough elements available upon which to base con-vincing decisions. The paper furthermore points out that clinical Medicine is an art ratherthan an exact science. It questions the “absolute truth” of a healthcare standard basedupon evidence and demonstrates the confusion ensuing from the alarming profusion ofcontradictory publications (30 thousand a year in biomedicine and nearly 300 articles and100 editorials a month on each specific subject), which complicates the situation of doc-tors at the end of the system even more. It concludes that it would be ideal to find anequilibrium between acclaimed physiopathological theories, personal experience and theresults of clinical investigations. Uniterms: medical skepticism, clinical epidemiology, medical philosophy, results medicine

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