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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
O RESGATE DA MEMÓRIA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE MOÇAMBICANA: REMINISCÊNCIAS DE IMANI
EM MULHERES DE CINZAS, DE MIA COUTO
Mestranda: Tani Gobbi dos Reis
Orientadora: Profa. Dra. Silvia Helena Pinto Niederauer
FREDERICO WESTPHALEN,
DEZEMBRO DE 2017.
TANI GOBBI DOS REIS
O RESGATE DA MEMÓRIA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE MOÇAMBICANA: REMINISCÊNCIAS DE IMANI
EM MULHERES DE CINZAS, DE MIA COUTO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração
em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia
Helena Pinto Niederauer, como requisito final para obtenção do
Título de Mestre em Letras.
FREDERICO WESTPHALEN,
DEZEMBRO DE 2017.
SUMÁRIO
COMENTÁRIOS INICIAIS ...................................................................... 5
1 A ESCRITA LITERÁRIA EM ÁFRICA LUSÓFONA ................................10
1.1 DO SURGIMENTO AO SÉCULO XXI – BREVES NOTAS SOBRE A LITERATURA DE
MOÇAMBIQUE ......................................................................................14
1.2 MIA COUTO E A ESCRITA POÉTICA DE MOÇAMBIQUE ...............................25
2 O RESGATE DA MEMÓRIA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE:
MULHERES DE CINZAS .......................................................................29
2.1 DA DIVERGÊNCIA À CONVERGÊNCIA: LIMIARES ENTRE O DISCURSO HISTÓRICO E
O DISCURSO LITERÁRIO EM MULHERES DE CINZAS ........................................32
2.2 ENTRE A MEMÓRIA, O SILENCIAMENTO E O ESQUECIMENTO: A NARRATIVA ...46
2.3 A VOZ DE IMANI E A IDENTIDADE MOÇAMBICANA ....................................51
3 VOZES (QUASE) SILENCIADAS ..........................................................60
3.1 AS GUERRAS POLÍTICAS E PESSOAIS ....................................................69
3.2 O AFETO E AS CINZAS: SEMPRE IMANI ..................................................83
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................90
REFERÊNCIAS ....................................................................................93
5
COMENTÁRIOS INICIAIS
Os africanos por muitos anos foram alvo da desatenção mundial;
melhor seria dizer, do não querer ver que o problema existe, seja no meio
econômico, político ou social. Vitimados pelo domínio de colonizares do
Velho Mundo (portugueses, ingleses, franceses...), ainda hoje o continente
sofre com as consequências deixadas pela busca de território, poder,
riquezas, enfim... tudo quanto a Colônia pôde extrair desse chão, levou. E
não somente a bens materiais nos referimos, pois grande foi o efeito
simbólico dessas invasões sobre o povo nativo. O impacto da colonização
atingiu suas raízes culturais, apresentaram-lhes uma nova religião (o
catolicismo), um novo idioma (a língua do colonizador) e uma nova cultura (a
cultura europeia/ariana), transformando o modo de viver desses
colonizados. Entretanto, apesar da imposição cultural e religiosa, a ação da
colonização não foi suficiente para desligá-los de suas raízes, pois a tradição
do povo africano sempre apareceu como mais forte do que a dos invasores
estrangeiros; tanto que por décadas sofreram com o domínio desses
colonizadores, adaptaram-se aos novos costumes, mas não deixaram de
praticar a sua cultura, mística e religiosidade, e preservaram seus diferentes
idiomas nativos, o que anuncia a continuidade de sua própria tradição
identitária.
Tudo isso nos reserva uma memória e história, as quais se buscam por
meio de rastros de uma lembrança que não se quer esquecer ou, mais que
isso, não se deve esquecer, pois o esquecimento e o ato de não relembrar um
passado gera o apagamento de uma memória e, assim, acentua sua
invisibilidade que, para os africanos, não se delimita apenas nos campos
6
econômico, político e social, mas também no literário. E, é a partir da escrita
literária e do estudo dessa que começa uma busca por um passado
reinventado e pelo princípio de formação da identidade nacional, com a
retomada de uma memória histórica e de seu território, combatendo a
invisibilidade gerada pelo colonialismo, enfrentando os silenciamentos
causados pela história do branco colonizador, na qual eles (colonizadores)
são os narradores e personagens, narrativas em que não há espaço aos
negros colonizados.
Pelo envolvimento dessas questões contextuais, quando refletimos
sobre o espaço em que se insere a literatura e sobre as disciplinas que seu
estudo envolve, notamos que há uma ligação entre o histórico e o social; da
mesma forma, entre o estético e ideológico, ao que traduz Ricardo André
Ferreira Martins como crítica intrínseca e crítica extrínseca, conforme o
autor explana:
Os estudos literários foram marcados muitas vezes, ao longo do
século XX, pela ausência quase absoluta de inter-disciplinaridade e
pela tensão dialética entre crítica intrínseca e crítica extrínseca, sendo que a primeira defendia, em diversos momentos, que a leitura
do texto deveria realizar-se única e exclusivamente através do texto,
sem o recurso à história, à filosofia, à sociologia, à psicanálise, como
se o texto fosse um dado puro e imanente em si [...] por outro lado, a
crítica extrínseca, que apontava para os fatores supostamente externos ao texto, muitas vezes partia para uma leitura puramente
documental e diacrônica do texto, lendo-o em diversos momentos
como o simples painel das mudanças sociais em forma de escritura.
Importa dizer que ambas as abordagens, do modo como eram
tratadas pela crítica acadêmica, não conseguiam enxergar o que hoje
parece óbvio aos estudiosos do fenômeno literário, aos adeptos de uma teoria da literatura mais interdisciplinar e aberta: o fato de que
o texto literário é extrínseco e intrínseco ao mesmo tempo, ao mesmo
tempo diacrônico e sincrônico, sobretudo quando consideradas
ambas as perspectivas, e que não é mais possível abrir mão de
leituras esclarecedoras de um texto literário em nome de um purismo estético que desconsidera que a própria estética contém em
si um princípio e uma escolha ideológica, histórica, social e
culturalmente situados e construídos. Portanto, um fenômeno
saturado de historicidade e de ideologia como qualquer outro
(MARTINS, 2011, p. 201-202).
Nesse sentido, o estudo literário abrange tantos campos quanto
diversas áreas disciplinares, o que tem proporcionado não somente um
avanço da teoria literária, se comparado à análise crítica realizada no século
passado, como também apresentando a construção linguística do texto
7
literário como resultante da estrutura social-linguística de um contexto
histórico, e não apenas pela estética, mas imbuído de uma visão de mundo e
de ideologias. Complementa o autor:
Estudar o texto literário é também estudar história, filosofia,
antropologia, sociologia, psicanálise, biografia, linguística, teoria da
literatura, hermenêutica, atentando-se para os elementos
sincrônicos e diacrônicos presentes no texto, documentais e monumentais, intrínsecos e extrínsecos. Logo, estudar literatura é
também ter a percepção de que o texto literário, como a própria
literatura, é uma construção histórica, cultural e socialmente
situada, cuja imanência revela apenas um dos aspectos de sua
historicidade radical e inescapável (MARTINS, 2011, p. 203).
Ao recorrer aos estudos de Jeanne Marie Gagnebin, encontramos a
mesma indicação interdisciplinar nos estudos de literatura comparada,
principalmente entre a escrita e a memória, autobiografia e memória, trauma
e memória. Assim conjuga a autora:
[...] Na história, na educação, na filosofia, na psicologia o cuidado
com a memória fez dela não só um objeto de estudo, mas também
uma tarefa ética: nosso dever consistiria em preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz,
tradições, vidas, falas e imagens (GAGNEBIN, 2006, p. 97).
Revelando-se como um estudo baseado nos princípios da memória e
da identidade, provocadas por um fato histórico traumático, essa pesquisa
realiza uma investigação da narrativa literária, tendo como objeto de análise
o livro Mulheres de cinzas, de Mia Couto, enquanto (con)formadora da
identidade moçambicana através de uma retomada da memória e história de
um povo, usando os termos de Gagnebin (2006) preservando, salvando,
resgatando um passado desaparecido. Portanto, essa apreciação tornou-se
possível justamente porque houve a ampliação nos campos da teoria
literária, tornando-a interdisciplinar. Ainda sobre o aspecto da memória e da
história, apresentamos, à luz da análise, o olhar do “desaparecido” na
grande história – aferimos esta como a história oficializada – em que sua
memória, identidade e história estão subordinadas, silenciadas, quando não
apagadas.
8
Mulheres de cinzas traz à luz da ficção romanesca o colonialismo
português em solo moçambicano, que ultrapassou quatro décadas (de 1505
a 1975), deixando marcas profundas naquele povo. Por este viés, pode-se
perceber a conformação identitária a ser construída pelos moçambicanos, a
partir dos resquícios que a ocupação portuguesa deixou. Muitos são os
aspectos lusitanos que foram incorporados pelos nativos africanos daquele
país, como por exemplo, a oficialização da língua portuguesa no país.
A recapitulação desse período histórico de Moçambique se dá por meio
do diálogo entre a história oficial e a oral, sendo também um ponto
norteador do romance de Mia Couto. Sua narrativa apresenta uma
reelaboração da história sob a ótica do colonizado, com base nas questões
aquém da história oficializa – referimo-nos à história contada pelos brancos,
recuperando uma “história” que é desconhecida ou foi negligenciada pela
Grande História.
Após esse apanhado geral, direcionamos nosso olhar à literatura em
solo africano especificamente às ex-colônias portuguesas, priorizando
Moçambique, país onde se desenvolve a narrativa de Mulheres de cinzas, e
que também é a nação de origem do autor da obra, Mia Couto. Para isso, o
presente estudo divide-se em duas partes teóricas, iniciando com “A escrita
literária em África Lusófona”, em que abordamos sinteticamente o
desenvolvimento da atividade literária nos países africanos, ex-colônias de
Portugal, conduzindo a pesquisa para a formação cultural e literária
especificamente em Moçambique, e destinamos um espaço especial a Mia
Couto, por além ser o autor do livro estudado e um dos autores
moçambicanos que se tornou referência em diversos países, mas também
por se tratar de um dos atores do processo de descolonização de
Moçambique, e com ele fechamos o primeiro capítulo. Para o que se
propõem, recorremos aos estudos de Manuel Ferreira, José Pires Laranjeira,
que apesar de defender o conceito de negritude, utilizamos sua pesquisa por
apresentar uma proposta de periodização literária nos países africanos de
língua portuguesa, Ana Mafalda Leite, entre outros.
Na seguinte parte teórica está o capítulo “O resgate da memória e a
construção da identidade: Mulheres de cinzas”. Para fundamentar os temas
9
tratados nas subseções, que são: os limiares entre história e ficção, memória
e identidade, recorremos aos teóricos: Paul Ricoeur, Jeanne Marie Gagnebin,
Inocência Mata, Jane Tutikian e mais alguns estudiosos que nos trazem em
suas pesquisas tópicos basilares para estruturar o segundo capítulo.
Finalizada a fundamentação teórica, partimos para a análise do livro
de Mia Couto, originando o terceiro capítulo “Vozes (quase) silenciadas”, em
que analisamos na narrativa de Mulheres de cinzas aspectos que nos
remetem a um passado histórico através de um resgate da memória da
personagem Imani, ao que se pode verificar uma conformação identitária em
relação às divergências e emoções em contato com o estrangeiro.
E assim, encerramos nossas discussões nas “Considerações finais”, na
qual tentamos englobar os assuntos desenvolvidos nos capítulos anteriores à
luz de nosso ponto de vista, fortalecido pelo cunho acadêmico-científico.
10
1 A ESCRITA LITERÁRIA EM ÁFRICA LUSÓFONA
“A literatura africana de expressão portuguesa nasce
de uma situação histórica originada no século XV,
época em que os portugueses iniciaram a rota da
África [...]”.
(Manuel Ferreira)
Para iniciar os estudos sobre o desenvolvimento da atividade literária
em países africanos de língua oficial portuguesa, utilizamos, principalmente,
os estudos de José Pires Laranjeira, Manuel Ferreira, Jane Tutikian, Ana
Mafalda Leite, Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha Taborda Moreira.
Os estudos, cada um a seu modo e de acordo com seu recorte de
investigação, traçam o desenho das manifestações literárias desde o período
de descoberta das regiões africanas que se tornariam colônias de Portugal, o
início da colonização em continente africano até a criação de uma literatura
colonial e, sucessivamente, a pós-colonial.
No artigo “Panorama das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”
Fonseca e Moreira (2007), informam que o surgimento das literaturas
africanas lusófonas remete a um
longo processo histórico de quase quinhentos anos de assimilação de parte a parte e, por outro, conscientização que se iniciou nos anos 40
e 50 do século XIX, relacionado com o grau de desenvolvimento
cultural nas ex-colônias e com o surgimento de um jornalismo por
vezes ativo e polêmico que, destoando do cenário geral, se pautava
numa crítica severa à máquina colonial (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 13)
Os já mencionados José Pires Laranjeira, em “Mia Couto e as
literaturas africanas de língua portuguesa”, e Manuel Ferreira, em
11
Literaturas africanas de expressão portuguesa, concordam com as tese de
uma periodização da literatura africana, defendendo, inicialmente, duas
fases fundamentais: a “Época Colonial” e “a Época Pós-colonial”
(LARANJEIRA, 2001, p. 185). O período literário definido como Colonial
configura-se com a vinda a lume dos primeiros textos, esses escassos e
esparsos, que tinham a África como assunto, não sendo necessariamente
textos literários, quanto menos africanos. Já a segunda fase, Época Pós-
colonial, caracteriza-se como um princípio de libertação da vida colonial,
caminhando para uma literatura emancipada (LARANJEIRA, 2001).
Ao ser questionado sobre o surgimento e desenvolvimento da literatura
africana de língua oficial portuguesa, Manuel Ferreira expõe que:
Os portugueses chegaram à Foz do Zaire em 1482 e, em 1575,
fundaram a primeira povoação portuguesa, São Paulo de Assunção de Loanda, hoje capital de Angola. Dos primeiros contatos com o
Reino do Congo dá-nos testemunho a correspondência trocada entre
os reis do Congo e os reis de Portugal, além de documentos, como
relatórios dos padres jesuítas de Angola. Mas o aparecimento de uma
actividade cultural regular na África associa-se intimamente à criação e desenvolvimento do ensino oficial e ao alargamento do
ensino particular ou oficializado, à liberdade de expressão e à
instalação do prelo, que se registam a partir dos anos quarenta do
século XIX (FERREIRA, 1986, p. 12).
Portanto, nos países africanos de língua oficial portuguesa, a largada
para a atividade cultural está intimamente ligada à oficialização da língua
portuguesa e ensino dessa aos povos colonizados. Ao contar com a
instalação do prelo, surge, em 1849, o primeiro livro publicado em solo
africano: Espontaneidades da minha alma, do angolano José da Silva Maia
Ferreira, livro de poemas africanos em língua portuguesa. Tal publicação é
um divisor de águas entre os períodos literários da África lusófona: a Época
Colonial da Época Pós-colonial (LARANJEIRA, 2001; FERREIRA, 1986).
Ferreira assim apresenta a questão:
[...] A primeira, literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao
homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura
colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por
acidente, por vezes visto paternalisticamente e quando tal acontece,
é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou
coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o
12
desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura
superior. [...] Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. [...] Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do
homem negro [...] (FERREIRA, 1986a, p. 14-15).
As manifestações literárias no período colonial apontam o europeu
como personagem principal e, por meio dele, apresenta-se o desbravador de
terras em que não há condições para ser habitada ou onde não se consegue
viver; esse homem branco é uma figura superior em relação aos povos
nativos de África, um espécime de herói que, mitificado nas manifestações
literárias da época, torna o africano colonizado um ser inferior, exótico. Sua
figura, quando encontrada nas narrativas, volta-se à animalização ou a
coisificação do ser. Contextualmente, essa literatura surge das experiências
de viagens, em uma “época em que o mundo cristão reconhecia o direito à
dominação, à depredação e até a barbárie” (FERREIRA, 1986a, p. 12). Logo,
percebemos que tanto a historiografia como a literatura portuguesa – fruto
das aventuras Além-Mar – testemunham um esforço de escritores, homens
da ciência, escritores de viagens etc. para o enobrecimento da cultura
lusíada, ao passo que tenta o nivelamento com a ciência e as demais
literaturas europeias (FERREIRA, 1986a).
Se, durante muito tempo o africano foi caracterizado como um homem
inferior, exótico, selvagem, aos olhos do português colonizador, a perspectiva
se altera a partir da emancipação política do país, o que caracteriza a fase
Pós-colonial. Pires Laranjeira indica o princípio de transição entre a fase da
Literatura Colonial para a Literatura Pós-Colonial, assim:
A formação e o desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, desde o primeiro livro impresso, em 1849, até a
actualidade, passaram pela construção do ideal nacional no
discurso. No discurso literário, o nacionalismo foi a antecipação da
nacionalidade, modo específico de a escrita se naturalizar como
própria de uma Nação-Estado em germinação. A consciência
nacional, no discurso literário, atravessou, assim, diversos estádios de evolução, desde meados do século XIX até a actualidade
(LARANJEIRA, 2001, p. 185).
O período transitório apontado por Laranjeira (2001) inicia com a
consciência de nacionalidade, que se vincula à independência das colônias
portuguesa, em 1974; desse modo, começam a surgir os primeiros indícios
13
de uma literatura nacional, “liberta” das obrigações impostas pelo
colonialismo, para tentar se assumir emancipada.
Assim, um dos territórios da enunciação pós-colonial é o
desvelamento da continuidade da lógica colonial de dominação,
agora internalizada, para além dos interrelacionamentos global/local nas relações internas transversais, que cruzam o interior destas
sociedades. Este deslocamento do olhar para o interior, para as
relações de poder internas torna-se, neste contexto, um dos critérios
configuradores da estética pós-colonial [...] (MATA, 2006, p. 18)
E citando Hall (2003), Inocência Mata pressupõe que sendo a estética
pós-colonial caracterizada “pela persistência dos muitos efeitos da
colonização e, ao mesmo tempo, por seu deslocamento do eixo colonizador/
colonizado ao ponto de sua internalização na própria sociedade
descolonizada” (HALL, 2003, p. 110 apud MATA, 2006, p. 18) é possível
verificar o efeito sobre a ideia de nação/nacionalidade que viria a se formar.
Importante salientar que nos países africanos de língua oficial
portuguesa, a saber: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São
Tomé e Príncipe,
o escritor africano vivia, até a data da independência, no meio de duas realidades às quais não podia ficar alheio: a sociedade colonial
e a sociedade africana. A escrita literária expressava a tensão
existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque
iria sempre utilizar uma língua europeia, era um “homem-de-dois-
mundos”, e a sua escrita, de forma mais intensa ou não, registrava a tensão nascida da utilização da língua portuguesa em realidades
bastante complexas (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 14).
Percebe-se, então, que os escritores, durante o período colonial,
desdobraram-se entre as línguas nativas de seus países e a apropriação da
língua do colonizador em um processo de hibridez linguística. De acordo com
Ana Mafalda Leite,
As literaturas africanas de língua portuguesa encenaram [...] a criação de novos campos literários, fazendo coexistir na
maleabilidade da língua, a escrita com a oralidade, numa harmonia
híbrida [...] (LEITE, 2003, p. 21).
14
Se, por um lado, as literaturas africanas incorporaram a língua do
colonizador, por outro, hoje, ainda há o “simultâneo momento de
(in)definição, de partilha e de ruptura com a literatura do país colonizador”
(LEITE, 2003, p. 35), o que torna seu estudo necessário e um ‘lugar’ de
múltiplas possibilidades de investigação. Para este trabalho, interessa
conhecer a formação da literatura moçambicana, para que se possa,
posteriormente, perceber-se, pela escrita coutiana, em especial na narrativa
Mulheres de cinzas, o processo de (re)configuração da identidade
moçambicana, também a partir do convívio entre nativo e colonizador.
1.1 Do surgimento ao século XXI – breves notas sobre a literatura de
Moçambique
Com a proposta de aprofundar o conhecimento histórico sobre
Moçambique e, da mesma forma, debruçar-se sobre a literatura
moçambicana, quem é seu escritor e qual é o papel da literatura na
consolidação da identidade nacional moçambicana, Patrick Chabal arrola
essas e outras questões em seu livro Vozes moçambicanas: literatura e
nacionalidade (1994). O estudo de Chabal aponta como necessário
apresentar uma fundamentação material para “[...] começar a construir
interpretações plausíveis sobre a génese da literatura moçambicana e seu
papel no Moçambique colonial e pós-colonial” (CHABAL, 1994, p. 7),
mostrando que tais questões são oriundas e consequências do
desenvolvimento histórico de Moçambique e devem ser associadas ao seu
contexto. Ainda, o autor indica que “Se hoje se questiona a identidade ou o
papel da literatura moçambicana é porque Moçambique é um país recém-
independente em que a construção da identidade nacional está ainda em
processo” (CHABAL, 1994, p. 7-8). A isso se associa à idealização de uma
cultura nacional moderna com vistas à concretização de um estado-nação
moderno. Assim expõe Chabal:
O estudo do desenvolvimento da literatura num país como
Moçambique levanta duas questões fundamentais. A primeira tem a
ver com as “origens” de uma literatura, ou seja, o processo em que a
15
escrita numa dada área geográfica passa a ser encarada como sendo
sua literatura. A segunda, com o papel que a literatura pode ter – e muitas vezes tem – na identidade cultural e política num estado-
nação (CHABAL, 1994, p. 14).
A tentativa de obter-se uma definição de literatura moçambicana está
intimamente ligada ao contexto social e político das eras colonial e pós-
colonial; por isso, é necessário correlacioná-la com essas duas esferas, além
de contar com a participação de fontes históricas para a compreensão dessa
produção literária. Logo, ao passo que se faz necessária à visão e ao
entendimento do que é literatura nacional, torna-se importante sublinhar a
forma com que a literatura denunciou e motivou a estrutura cultural de
manifestos políticos que conduziram à criação e consolidação do estado-
nação (CHABAL, 1994). Orientando-se pelas questões políticas e culturais
em África, Chabal explica que:
A literatura é uma componente central da identidade cultural de
todos os estados-nação, apesar de evidentemente ser muito mais do
que isso. Nessa perspectiva, a moderna literatura é melhor entendida historicamente como uma das mais importantes formas de produção
cultural através das quais um estado-nação pode ser identificado. É
neste sentido que se fala de literatura russa, italiana ou norueguesa,
como referência, em simultâneo, a uma literatura específica de um
dado país e a uma tradição cultural própria. Formulada desse modo a questão parece simples pelo facto de já conhecermos o que é a
Rússia, a Itália ou a Noruega, pois aceitamos que estes países
tenham uma tradição cultura “nacional” (CHABAL, 1994, p. 15).
Alertando para as diferenças culturais e simbólicas entre os países do
Primeiro Mundo – de onde provem os colonizadores -, Chabal (1994) levanta
a diferença entre o desenvolvimento e aceite de uma cultura nacional
oriunda de países do antigo continente para o reconhecimento de uma
cultura nacional em solo colonizado – citados como Terceiro Mundo:
[...] A análise do desenvolvimento das antigas colónias exige o
entendimento da interacção entre a sua evolução cultural “indígena”
e “colonial”. Também requer um conhecimento da relação entre
cultura e política na transição do período colonial para o pós-
colonial. [...] (CHABAL, 1994, p. 15-16).
A narrativa de ficção proveniente de moçambicanos iniciou em 1950,
com a publicação de um conto de João Dias, na cidade de Coimbra,
16
chamado Godito. Posteriormente, em 1952, com a iniciativa da Secção de
Moçambique da Casa dos Estudantes do Império, surge nova publicação de
autores oriundos de Moçambique: trata-se da obra Godito e outros contos, de
João Dias (FERREIRA, 1986b). Com base no segundo livro Literaturas
africanas de expressão portuguesa, de Manuel Ferreira (1986b, p. 99), “[...]
não se sabe se os responsáveis pela iniciativa (Orlando de Albuquerque e
Vítor Evaristo) tinham a exacta consciência de que escreviam a primeira
página da história da ficção moçambicana [...]”.
Os textos que existiam até então eram de natureza colonialista e não
poderiam ser considerados como ficção moçambicana, pois não teriam
nenhuma semelhança com o que chamamos, hoje, de literatura africana de
língua portuguesa, como é o caso d’O livro da cor, de 1925, livro de contos de
João Albasini, ainda que esse invista no ponto de vista histórico em sua
narrativa (FERREIRA, 1986b).
Em defesa de João Dias, Manuel Ferreira (1986b) explica que mesmo
malsucedido na ficção moçambicana em solo português, a pouca experiência
do autor (João Dias) não a torna uma experiência irrelevante,
[...] Porque se a qualidade literária das suas narrativas se recente de imaturidade, própria de juventude, a verdade é que o ponto de vista
do narrador é a de alguém consciente da sua condição de colonizado,
e reage. Veementemente. A relação colonizado/colonizador é dada em
termos críticos e desalienantes. Traz, assim, para a ficção, e pela
primeira vez, o homem moçambicano, o negro moçambicano, enquadrado num sistema colonialista [...] (FERREIRA, 1986b, p. 99).
João Dias faz de sua obra Godito e outros contos a primeira
manifestação de consciência literária moçambicana voltada ao nacionalismo,
percebendo que a literatura configura-se em um meio de se comunicar e
pincelar seu ponto de vista, sua percepção de mundo, e necessidade de
reação frente ao colonialismo. Ao se expressar, o autor reage à condição de
colonizado imposta pelo sistema colonialista. Da mesma forma, é pela
primeira vez que aparece o moçambicano – homem, negro – na narrativa de
ficção literária, essa imbuída de racismo e denunciando a exploração a que o
negro estava corriqueiramente sujeito (FERREIRA, 1986b).
17
Em território moçambicano, a ficção moçambicana aparece nos fins de
1950, distanciando-se quase dez anos da publicação, em Coimbra, da obra
de João Dias, citada por Manuel Ferreira como o primeiro sinal de
consciência e reação frente à situação de colonizado. Em Moçambique, a
ficção nacional parte de uma atividade editorial, com a publicação de contos
em periódicos, como o Itinerário e O Brado Africano, e contou com a
colaboração de vários autores, dentre eles Sobral de Campos, Ruy Guerra,
Virgílio de Lemos, José Craveirinha e Rui Cartaxana. E essas iniciativas “[...]
Terminam por ser das primeiras tentativas, em Moçambique, da narrativa
moçambicana” (FERREIRA, 1986b, p. 100).
A partir do pontapé inicial, dado pela imprensa, ao publicar contos que
se referem à Moçambique, obras literárias compostas por narrativas
moçambicanas começaram a surgir. Foi criada, inclusive, a Colecção
Prosadores de Moçambique, na qual foram incluídas obras de vários autores,
configurando a Colecção como um projeto coletivo. Manuel Ferreira assim
escreve: “De uma maneira geral todos estes autores são prosadores dotados.
E falam do que conhecem. Simplesmente o que conhecem (ou sentem) os
limita para um aprofundamento da realidade complexa que os circunscreve
[...]” (FERREIRA, 1986b, p. 100-101). Ainda que seus conhecimentos fossem
restritos e estaria Moçambique em uma complexa conjuntura que os
delimitava, conforme Ferreira, os autores tinham um talento especial para
compor suas prosas.
As obras que vinham a lume acabaram se distanciando da proposta
sugerida por João Dias, em que o narrador, percebendo sua condição de
colonizado, reage intensamente, promovendo a crítica ao sistema colonial e a
desalienação dessa relação colonizado/colonizador, sem esquecer de que é
na sua ficção que aparece pela primeira vez o homem negro e o homem
moçambicano na narrativa. A esse respeito Ferreira (1986b) indica:
Aparentemente o narrador dir-se-ia combater o racismo e as
incompreensões e injustiças ao nível dos homens e da máquina
oficial, mas o que subjaz, julgamos, é uma coisa diferente: a visão do narrador em salvar o que possa ser salvo. Noutros termos a
superfície drena-se o intento de serem encontradas formas sociais,
políticas, culturais que possibilitem o reajustamento de uma
sociedade em desequilíbrio e célere mutação, mas sob o signo da
18
filosofia emblematicamente inscrita na “multicontinentalidade” e na
“multirracialidade”. O sentido, afinal, seria este: um novo país (colónia) em velhas estruturas “reactualizadas”. [...] Estas obras não
poderão ser postas de lado, até, como se disse, o seu nível estético as
defende, mas a verdade é que se pretendermos ver nelas a África, o
homem negro, o homem moçambicano, pouco nos dizem a esse
respeito. (FERREIRA, 1986b, p. 102).
A ideologia proposta por João Dias retoma seu curso na ficção
moçambicana com a publicação de Nós matámos o cão tinhoso, de Luís
Bernardo Honwana, em 1964. Sobre sua obra, Manuel Ferreira aponta:
[...] Excelente narrador, experiência pessoal vivida na sua própria
condição de negro, Luís Bernardo Honwana, apesar da sua
juventude (as narrativas foram redigidas algumas, cremos, por volta de 18 anos de idade) faz do universo moçambicano o centro da
análise das suas narrativas. A relação dialética
colonizado/colonizador é dada, pelas formas mais subtis, através de
várias personagens e situações. Situações de exploração, de
incompreensão, de injustiça, de alienação, desalienação, e do sonho
e da esperança [...] (FERREIRA, 1986b, p. 102-103).
Honwana aborda, em sua narrativa, Moçambique e suas relações com
o contexto do país, trazendo as diversas situações da condição de ser negro e
moçambicano a partir de sua particular condição de negro. Sua linguagem
tem a prerrogativa do português básico apropriado, devido à realização de
aquisições linguísticas moçambicanas (FERREIRA, 1986b). Ainda, Manuel
Ferreira aponta a gramática de Honwana como uma gramática
moçambicanizada e flexionada para a atividade literária, passando a ser
realidade a uma literatura africana, o que antes era tido como hipótese:
Mas o valioso é que mesmo assim a gramática de L. B. Honwana é
uma gramática moçambicanizada e ductilizada, para o exercício
superior da criação literária. Então, a crença numa literatura
africana, a partir do português, a vários níveis, já não é mera hipótese, mas uma realidade válida, multinacional, e de futuro
radioso. (FERREIRA, 1986b, p. 103).
Um ano após a publicação de Nós matámos o cão tinhoso (1964), surge
Portagem (1965) que, além de ser o primeiro romance moçambicano, é
também uma importante contribuição de Orlando Mendes para a narrativa
moçambicana, pois amplia o campo trilhado por João Dias e por Luís
Bernardo Honwana, caracterizando esses autores e suas obras como
19
exemplos mais próximos da inserção da realidade do universo de
Moçambique. Portagem tem Maputo como o local da ação e os personagens
são figurações de negros, mestiços e brancos (FERREIRA, 1986b):
[...] a tónica é da adaptação ou inadaptação do mestiço numa
sociedade africana minada pela presença do europeu. Elemento
perturbado, o mestiço balanceia entre o envolvimento de relações
europeizadas e o apelo africano que nele reside, se desenvolve, e termina, finalmente, por reencontrar-se, em definitivo, no seu
destino histórico de africano [...] (FERREIRA, 1986b, p. 103-104).
O romance de Mendes aponta a dificuldade dos africanos e mestiços e
suas adaptações e/ou inadaptações em Maputo, onde há uma marcante
presença do europeu. A exemplo do contexto social criado por Mendes,
imaginamos um filho mestiço que nasceu do envolvimento de uma negra
com um português (ou vice versa) – dedução realizada pelas palavras que se
referem à (in)adaptação nessa sociedade africana devastada pela massiva
presença de europeus. Nesse caso, o mestiço passa por um conflito interior
que oscila entre o universo europeu e o universo africano. A narrativa ainda
dá sinais de que o destino do africano depende de um reencontro consigo
mesmo, sua história, sua tradição e sua cultura; também, abandonando as
influências portuguesas, percebe-se tal narrativa como um indício para uma
nacionalidade/nacionalismo moçambicano.
Nas produções literárias de João Dias, Luís Bernardo Honwana e
Orlando Mendes ficam impressas a contribuição mais precisa, coerente e
mais próxima da realidade de Moçambique (FERREIRA, 1986b). A narrativa
literária moçambicana voltada para a africanidade, promovendo a criação de
um nacionalismo; aponta também para a defesa de seu território e para a
concretização do ideal de um novo país, livre do domínio do colonizador,
iniciando assim os passos para a era Pós-Colonial na literatura africana de
expressão portuguesa, fase essa em que, para Jane Tutikian, a literatura
procura seus próprios caminhos:
[...] caracteriza-se por mudanças histórico-culturais bastante fortes,
o que leva a transformação social, e que, evidentemente, numa espécie de fluxo-contínuo, vai ter reflexos profundos na literatura.
Depressa se passa da apologia da independência e do chamado
20
orgulho pátrio para a constatação das dificuldades impostas pela
História colonial e nacional (TUTIKIAN, 2006, p. 27).
Em estudo publicado em 2001, pela Revista de Filología Románica,
José Pires Laranjeira aponta, com base na literatura angolana, seis fases
estético-literárias – que se dividem entre os períodos Colonial e Pós-Colonial,
“[...] tendo em conta essas suas grandes divisões periodológicas, de caráter
histórico e literário, mas sobretudo desde 1849, quando foi publicado o
primeiro livro impresso em África (mais precisamente em Angola)”
(LARANJEIRA, 2001, p. 185). Trata-se da publicação de Espontaneidade da
minha alma, poemas de Maia Ferreira, sendo esse o marco inicial das fases
sugeridas por Pires Laranjeira como uma proposta de “sintetização de
processos, movimentos e tendências” (LARANJEIRA, 2001, p. 186). Explica o
autor:
Consideremos a literatura angolana como paradigmática, isto é, como um modelo de irradiação a partir do qual podemos estabelecer
fases aplicáveis as outras, evidentemente de um modo não mecânico,
tendo em atenção que cada urna tem o seu percurso específico, se
bem que no contexto colonial de domínio português, interessando
delimitar os contornos comuns que, textual e contextualmente, as
explicam e aproximam, tanto como das literaturas portuguesa e brasileira, mais do que de outras (LARANJEIRA, 2001, p. 186).
As fases indicadas por Laranjeira sempre iniciam ou têm seu fim
provocado por uma produção inovadora, como publicação de um livro,
antologia ou revista que apresente qualquer nova alteração estética.
Conforme salienta o autor:
Convém ainda ter em conta que, por exemplo, certos processos realistas, como a prática da descrição objectivante ou a inclusão de
frases de uma língua africana no texto em português, característicos
do oitocentismo, são intensificados e passam a predominar em certos
autores ou movimentos do século XX, podendo, por isso, concluir-se
que traços do regionalismo, do casticismo ou da africanidade
passaram a ser tomados como determinantes de novas estéticas com vista ao aprofundamento nacionalista dos textos (LARANJEIRA,
2001, p. 186).
Cada uma das fases literárias que seguem trazem consigo novas
perspectivas à valorização nacional, pois começam a caminhar para o fim do
21
deslumbramento em relação à herança cultural lusíada, propiciando espaço
ao localismo dos países colonizados. Conforme se lê logo na primeira fase,
proposta por Laranjeira (2001), caracterizando-se pelo Baixo-romantismo,
[...] de clara adopção portuguesa, embora também com contributos
franceses e ingleses. O seu populismo cultural pode chamar-se
exógeno, na medida em que as apetências populares, em formas e
temas, dizem respeito à herança cultural lusíada, apresentada como paradigma a seguir com inequívoco deslumbramento, cedendo o
passo às coisas angolanas somente em termos de encomiástica
referencialidade espacial ou onomástica, não propriamente social,
histórica ou política [...]. De algum modo, é como se uma ideologia de
apreço pela aristocracia [...] convivesse descomplexadamente com, por exemplo, formas poéticas hauridas nas barcarolas venezianas, nos lieds germânicos ou nas modinhas brasileiras, ao mesmo tempo
que se usa a medida popular portuguesa da redondilha maior
(LARANJEIRA, 2001, p. 187).
Com o passar do tempo (décadas de 80 e 90, do século XIX), o negro
surge nos textos, sob a ótica da inferioridade – se comparado à figura
europeia –, porém com possibilidades de ascensão social. Outra novidade é a
participação do negro e da negra como personagens que anseiam à
integração social, caracterizando a segunda fase literária, indicada por
Laranjeira (2001), chamada de Negro-realismo1 (LARANJEIRA, 2001).
Segundo o autor:
[...] o Realismo, igualmente de inspiração portuguesa, deixa as suas
marcas [...]. Tendo em atenção que o negro surge tratado nos textos,
se bem que do ponto de vista de um complexo de inferioridade,
enquanto indivíduo com possibilidades de ascensão social, com
frequência como figura central [...], chamamos a esta fase a do
Negro-realismo [...] que vai sensivelmente até 1900, é co-natural à “imprensa livre” e assume o negro (mais particularmente, a negra)
como personagem ou figura que aspira à integração na sociedade [...]
(LARANJEIRA, 2001, p. 187).
As ideologias são mostradas nos textos literários sob diversas formas.
Ocorre, então, a presença de narrativas que iniciam um protesto pela
igualdade e fraternidade, anunciando a batalha pelos direitos humanos,
introduzindo uma conduta consciente de aspirações por autonomia e
1 Laranjeira informa ser esse um “termo criado para indicar uma realidade literária
específica de África, bastante aproximada dos Negrismos americanos” (LARANJEIRA, 2001,
p. 187).
22
“reagindo às guerras de ocupação movidas pela potência colonizadora”
(LARANJEIRA, 2001, p. 188), além de promover a vida cultural popular
urbana ou do mato, demarcando seu regionalismo, originando a crioulidade,
em oposição à figura do europeu colonizador.
Dessa forma, se estabelece a terceira fase literária, chamada
Regionalismo Africana (de 1901 a 1941), a qual se subdivide em outros dois
momentos: nativismo e tipicismo. Este último, por sua vez, se inclina a dois
tipos de tipicismos: ao tipicismo folclorista e costumbrista; e ao tipicismo
mais localista e regionalista (LARANJEIRA, 2001). Para Pires Laranjeira
(2001, p. 188), o nativismo no Regionalismo Africano:
[...] transforma-se numa subtil, mas decidida, primeira “insurgência” anti-metropolitana. Caracteriza-se ideologicamente por um
autonomismo supraclassista, com origem nos ideais republicanos,
maçónicos, logo se associando a um pan-africanismo moderado,
permitindo aceder, por essa mistura subversiva, à modernidade
possível, vazada num conservadorismo formal e retórico (LARANJEIRA, 2001, p. 188).
No entanto, entre 1926 a 1941, essa rebelião intelectual sofre com o
rigoroso golpe de Salazar, na ditadura do Estado Novo, que extingue a
imprensa livre. Nesse período surge o tipicismo (LARANJEIRA, 2001).
Segundo o autor, por um lado, ocorre no tipicismo folclorista e costumbrista:
[...] evocativo, reconstituidor da vida cultural urbana ou do mato [...].
É uma estética da evasão, da hiper-realizaçao do real, típica, em África, de um regionalismo, conquanto “útil”, sobretudo estilizador,
turístico, para usar uma metáfora depreciativa, ou seja,
inconsequente quanto ao nacionalismo.
Por outro lado, deparamos com um outro tipicismo mais localista e
regionalista, portanto, telúrico, de integração continental (de africanidade, sim, mas não necessariamente manifesta e veemente),
a que anda associado algum orgulho negróide, alguma, ténue,
“personalidade africana”, que se pode caracterizar politicamente
como protonacionalista, de um geo-estrategismo de grande alcance
cultural [...] ou, pelo menos, propondo modestas vias ideologicamente
reformistas e esteticamente conservadoras [...] (LARANJEIRA, 2001, p. 188-189).
Pires Laranjeira conclui essa fase afirmando que: “[Estamos] perante
uma verdadeira criação de crioulidade (de assunção de uma diferença não-
portuguesa), ou, em direcção distinta, de entrada no funil de
23
estrangulamento histórico (da estreita portugalidade)” (LARANJEIRA, 2001,
p. 189).
Entre 1942 e 1960, inaugura-se a quarta fase literária, proposta por
Laranjeira, chamada de Casticismo, marcado pelo
aprofundamento da opção anti-colonial, como corolário lógico de
uma actividade literária que compreendia o esforço de uma
consciencialização como serviço cívico ou, se é possível a
contradição, enquanto ética social com fundamentos na história e na cultura imperecível de um povo (LARANJEIRA, 2001, p. 189).
Afetada pela conjuntura contextual da época, em que se acentua a
escolha anticolonial e surgem os primeiros movimentos em prol da
independência política das colônias africanas, a atividade literária reconhece
sua função social e histórica, e não poupa esforços para a conscientização de
um patriotismo, fundamentada na história e cultura do povo. A literatura,
no Casticismo, afirma-se pela “procura da permanente herança dos povos,
da sua intra-história, profunda, imperecível, dialéctica, criadora e
transformadora” (LARANJEIRA, 2001, p.189). Esse período ainda é marcado
pela instauração da Negritude, um “movimento de aproximação genuína ao
povo africano e sua herança” (LARANJEIRA, 2001, p. 190), em que:
[...] estão em foco as classes e o mundo do trabalho, da produção de
riquezas coloniais (com seus contratos, serviçais, agricultores,
operários, mas também pastores, além de grupos restritos e outros,
marginais), através de processos discursivos virados para a sugestão de concretude social e quotidiana, em que o pormenor, a notação
descritiva, tem grande relevo (LARANJEIRA, 2001, p. 190).
Por assim dizer, nessa fase, também, ocorre a: “[...] assunção de uma
postura da classe proletária que tende a colar-se à pele mais generalizante
da categoria do colonizado” (LARANJEIRA, 2001, p. 190), e, por conta de ser
o colonizado a categoria mais abrangente que a do negro, os autores
africanos de idioma português assumem a Negritude, como:
[...] realização cultural do pan-africanismo, sobretudo os que estavam morando fora da África, cultuando com orgulho a raça, as
culturas tradicionais (tribais), relativas ao mato e ao campo, numa
estética do retorno ideal às origens, de reencontro com um passado
grandioso, utopia da felicidade [...] (LARANJEIRA, 2001, p. 190).
24
Na década de 60, do século XIX, com o início da luta armada para a
libertação nacional, surge também um movimento de resistência, em que
predominam a orientação ideológica e política explicitamente
anticolonialista, originando a quinta fase literária, nomeada de Resistência
(19610-1974), tendo em seu corpus literário a presença da temática de
guerrilha, com alusões revolucionárias, e o discurso do gueto, uma vez que
surgem escritores de baixa escolaridade em meio a escritores de escolaridade
com nível superior. “Essa literatura cria textualmente a nacionalidade, antes
da sua existência política” (LARANJEIRA, 2001, p.191), acentuando o
posicionamento anti-imperialista, o nacionalismo, a espacialização das zonas
libertadas e do exílio. Devido à censura da época colonial, os escritores
camuflavam o ideal revolucionário nas narrativas por meio da “revolta
individual (em conotação com a revolução coletiva), às vezes sob a máscara
de um existencialismo mitigado, estranho, quase incompreensível nesse
contexto de leitura” (LARANJEIRA, 2001, p.191), caracterizando assim a
estética da sugestão e da alusão.
Com a chegada da independência política aos países sob o domínio
português ocorre “uma transformação radical nas estruturas de poder, da
sociedade, da economia e da cultura, em que se verificou uma mudança não
menos radical no percurso das literaturas” (LARANJEIRA, 2001, p.192),
marcando a sexta fase literária, a Contemporaneidade (de 1975 a 1998),
período em que o nacionalismo reforça a inspiração literária e os ânimos
patrióticos. Abre-se espaço para os heróis da revolução, promovido pela
estética do orgulho pátrio, com vistas à tentativa de superação da marca
colonial, à criação de uma estética pós-colonial, e à aspiração pela
democracia e autonomia. Porém, conforme alerta Pires Laranjeira, essas
mudanças tornaram-se significativas apenas após a primeira década da
independência
A superação dos traumas políticos, ideológicos e literários tornou-se
possível somente após a primeira década de independência política
(recorde-se a questão, empolada ou não, com ou sem adequação
teórica, da subserviência das literaturas africanas perante modelos alienígenas, europeus ou não) (LARANJEIRA, 2001, p. 192).
25
Ainda pelas palavras de Laranjeira tal superação do estigma colonial
foi consolidada através do existencialismo ou misticismo, encontrando
nesses a sua materialização (LARANJEIRA, 2001). Para finalizar essa fase, o
autor afirma que em alguns casos: “se trata, finalmente, de exorcizar os
derradeiros fantasmas e medos de cruentas guerras e ameaças de perda de
independência” (LARANJEIRA, 2001, p.192), enquanto que em outros,
“persistem na revisão crítica dos fantasmas e das ameaças concretas,
decerto por o presente reavivar traumas do passado” (LARANJEIRA, 2001,
p.192-193).
Por fim, o ideal de uma reinscrição na história e de um novo país que
surge segue em vários autores, por meio de suas publicações. Um exemplo
bastante significativo está em Mia Couto, filho de portugueses, mas nascido
na cidade da Beira, Moçambique, em 1955. A esse autor destinamos a
próxima seção.
1.2 Mia Couto e a escrita poética de Moçambique
“A história determina a escrita do escritor, mas este,
por meio dessa escrita, tenta libertar-se”.
(Roland Barthes)
Natural de Moçambique, Mia Couto nasceu na cidade da Beira, em
1955. Filho de portugueses que passaram a maior parte do tempo de suas
vidas em Moçambique. Sua afeição pela escrita origina-se da atividade que
seu pai, Fernando Couto, desenvolvera no país africano. Jornalista e
escritor, Fernando Couto tem em sua carreira alguns livros de poesias
relativas à Moçambique. Segundo o website oficial de Mia Couto2:
Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu
em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de uma família de emigrantes portugueses. O pai, Fernando Couto,
natural de Rio Tinto, foi jornalista e poeta, pertencendo a círculos
intelectuais, tipo cineclubes, onde se faziam debates. Chegou a
escrever dois livros que demonstraram preocupação social em
2 MIA COUTO. Biografia, bibliografia e premiações. Disponível em:
<http://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/>. Acesso em: 16 maio
2017.
26
relação à situação de conflito existente em Moçambique. Mia Couto
publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira, com 14 anos. Iniciava assim o seu percurso literário dentro de uma área
específica da literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a
escrever as suas obras em prosa (MIA COUTO).
As primeiras publicações de Mia Couto seguiram o exemplo do pai,
com publicações literárias e depois se volta para a atividade jornalística, no
jornal Notícias da Beira, periódico da cidade, no qual o autor moçambicano
publicou seus primeiros poemas, iniciando, precocemente, aos catorze anos,
sua atividade literária.
Após completar os estudos secundários, aos dezessete anos, Mia
Couto deixa sua cidade natal para cursar medicina, em Lourenço Marques,
hoje Maputo, capital de Moçambique. Abandona o curso mais tarde, em
1974, para cursar jornalismo, incentivado, não somente pelo modelo do pai,
mas também, pelo contexto da época, pois Moçambique transitava pelo
período de profundas transformações políticas, marcado pelas guerras de
libertação e independência do país. Couto atuou como colaborador da Frente
de Libertação de Moçambique (FRELIMO), foi diretor da Agência de
Informação de Moçambique (AIM), participou da revista semanal Tempo e do
jornal Notícias. Retorna para a Universidade, em 1985, para finalizar sua
graduação, dessa vez, opta pelo curso de biologia, redirecionando sua vida
para um novo rumo. Como biólogo, foi responsável pela conservação
ambiental da Ilha de Inhaca (LARANJEIRA, 2001).
Como escritor, teve seu primeiro livro de poemas lançado em 1983,
Raiz de orvalho, seguido por dois livros de contos: em 1986, Vozes
anoitecidas, e Cada homem é uma raça, em 1990. Obras que concederam
visibilidade ao autor, não apenas em solo moçambicano e português, mas
também em outros países, com a tradução de suas obras para o inglês e
italiano. Seu sucesso nas obras publicadas, encontramos no estudo de
doutoramento de Ilse Vivian, conforme expresso:
O alcance público da obra de Mia Couto pode ser observado pela quantidade de reedições. O primeiro romance do escritor, Terra sonâmbula, lançado em 1992, alcança, em 2009, pela editora
Caminho, a sua décima edição; Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, lançado em 2002, alcança, pela mesma editora, em
27
2008, a quarta edição. Sua obra é, hoje, traduzida em mais de vinte
e dois países (VIVIAN, 2014, p. 35).
Diante de tamanha façanha para um escritor proveniente de um país
emergente, Couto destacou-se também pelo recebimento de diversos prêmios
nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da sua
obra literária. Dentre eles, sublinhamos o Prêmio Camões, em 2013, o qual
se caracteriza por ser o prêmio mais importante da literatura de língua
portuguesa, a reconhecer a qualidade de um autor de língua portuguesa pelo
conjunto da sua obra. Além do fato de ser “[...] o único escritor africano que
é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente,
eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira número cinco, que tem
por patrono Dom Francisco de Sousa” (MIA COUTO).
A narrativa de Mia Couto está vinculada a um período de grande
importância para a formação de uma nação moçambicana, estando
diretamente ligada à construção de uma identidade cultural nacional. Além
disso, evidencia-se o fato de a escrita de Mia Couto trazer à luz a questão da
voz feminina em uma cultura de opressão, o que proporciona a seus
romances e contos, para exemplificar apenas suas produções em prosa, uma
relevância ainda mais profunda, como fica manifesto em: Mulheres de
cinzas, nosso objeto de estudo. Outra característica da escrita coutiana é a
criação de novos vocábulos, conforme se reconhece em seu website e em
diversos estudos sobre o autor:
Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias
raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua
relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e
muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra
inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se
refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada
em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de
mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas,
subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias.
Mia Couto é um excelente contador de histórias (MIA COUTO).
Notamos na narrativa Mulheres de cinzas todas essas características
apontadas nesse trecho que vem a caracterizar a escrita de Mia Couto, pois
28
percebemos em sua produção literária o seu vínculo com sua terra,
Moçambique. Da mesma forma, encontramos nessa narrativa o cuidado
dispensado às histórias de um passado que se faz vivo na lembrança de
muitos moçambicanos, as quais Mia Couto traz para a literatura em forma
de romance, conforme podemos observar em nosso objeto de análise.
29
2 O RESGATE DA MEMÓRIA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE:
MULHERES DE CINZAS
Eis o que faz a guerra: a gente nunca mais regressa a
casa. Essa casa – que outrora foi nossa –, essa casa
morre, nunca ninguém nela nasceu. E não há leito,
não há ventre, não há sequer ruína a dar chão às
nossas memórias.
(Mia Couto)
Mulheres de cinzas, de Mia Couto, publicado no Brasil em 2015, pela
editora Companhia das Letras, tem como tema as ocupações sofridas,
durante o período colonial, pelo continente africano, mais especificamente, o
sul de Moçambique, país de origem do autor. O livro é o primeiro volume
publicado da trilogia: As areias do imperador. Em 2016, o segundo volume,
Sombras da água, é publicado, sendo a sequência narrativa do primeiro
tomo. Tem-se, na composição dessa trilogia, um retorno a um passado, ou a
um certo passado, remetendo-nos ao século XIX, que foi um período crucial
tanto para a história de Moçambique como para a história de Portugal,
momento esse em que guerras civis foram vividas pelas duas nações:
Moçambique por ser o território colonizado e ainda em disputa pela sua
ocupação, enquanto que Portugal lutava para manter o controle das áreas
dominadas.
As areias do imperador caracteriza-se por estabelecer um diálogo com
o tempo histórico, que coloca em causa a ideia de um passado que nos foi
transmitido ao retomar um acontecimento central em Moçambique, que
foram as guerras pelo poder do território. O primeiro volume publicado -
Mulheres de cinzas - volta-se à época em que o sul do país era denominado
Estado de Gaza e governado pelo último grande líder africano: Ngungunyane
30
ou Gungunhane, como era chamado pelos portugueses. Já os portugueses
que chegavam ao território vinham à procura de riquezas ou como
deportados pelo seu país de origem – como foi o caso de pessoas enviadas
para defender Portugal em solo africano. No entanto, o choque cultural que
houve entre esse contato foi uma situação marcante e predominante em
cada nativo moçambicano e no recém-chegado estrangeiro português,
conforme expresso no diálogo entre a jovem moçambicana Imani e Germano
de Melo, sargento português, enviado a Nkokolani para ser um informante in
loco de Portugal:
A moça disse tudo isso sem pausa para respirar. Onde aprendeste tudo isso?, perguntei, a medo. Não tive que aprender, respondeu. Sou feita de tudo isso. O que me tiveram que ensinar foram as histórias dos brancos. - Mas tu não és católica? - Sou. Mas tenho muitos outros deuses. (COUTO, 2015, p. 287, grifos do autor)3.
Essa transcrição apresenta o choque cultural existente entre ambos, o
que causa um pavor no sargento português. Dentre as questões que
podemos levantar a respeito do espanto do português, envolve desde o
domínio da língua portuguesa por uma garota africana, como o fato de ele
fazer estadia em um local de território português em solo africano, figurando
mais como um estrangeiro do que detentor da região. E, para ampliar seu
desespero, é o único branco a habitar aquelas ‘terras exóticas’ e, ainda, pelo
fato de que sua comunicação com os demais africanos depende de Imani,
uma moça africana.
Mulheres de cinzas apresenta em primeiro plano Imani, uma garota
moçambicana, de quinze anos, advinda de uma pequena tribo, os VaChopi,
que se localizava no litoral de Moçambique. Imani recebeu uma educação
baseada nos princípios educacionais de Portugal, obtendo o absoluto
domínio da língua portuguesa e mantendo sua língua local, oriunda da
cultura africana.
3 COUTO, Mia. Mulheres de cinzas. 1. ed. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Todas as demais citações foram retiradas dessa edição, passando-se a indicar, então,
apenas o número da página.
31
O militar Germano de Melo foi enviado ao vilarejo de Nkokolani, onde
vive a família de Imani, para participar da batalha contra o imperador
Ngungunyane, que ameaçava o domínio das Terras da Coroa, em
Moçambique, tinha como missão governar o posto militar português de
Nkokolani, implantar um quartel militar naquele lugar e avisar a Coroa
portuguesa sobre a situação da colônia, através de cartas contendo seu
relatório de viagem. No entanto, para o império de Portugal, Germano de
Melo é um militar desertor da Coroa lusitana e, como pena, é condenado
pelo Conselho de Guerra ao degredo na África por ser um dos militares que
participou da revolta de 31 de Janeiro de 1891 - data que marca o primeiro
movimento revolucionário que teve por alvo a instauração de um regime
republicano em Portugal (SOUSA, 1990).
Conforme a primeira carta do sargento Germano ao Conselheiro José
d’Almeida, em 21 de novembro de 1894, da cidade Lourenço Marques, na
qual expressa que a presença de um militar representaria os interesses
portugueses, ajudaria a estabelecer fronteiras entre os impérios português e
africano, pois era preciso manter a região sob o domínio de Portugal:
Escreve-lhe o humilde subordinado de Vossa Excelência, sargento
Germano de Melo, destacado para capitanear o posto de Nkokolani e,
nessa fronteira com o inimigo Estado de Gaza, representar os
interesses dos portugueses. Esta é a primeira vez que endereço um relatório a Vossa Excelência. Tratarei de o não maçar restringindo-
me aos factos de que creio Vossa Excelência deve ter conhecimento.
(p. 30)
Imani e Germano estabelecem uma relação de trabalho, pois estava ela
encarregada de ser a intérprete entre ele, representante da Coroa
portuguesa, e os africanos. Imani foi escolhida para ser intérprete, devido ao
seu conhecimento e domínio da língua portuguesa, tanto quanto de sua
língua nativa, txitxope. Zamparoni (2009) afirma que pouco se fez para
aplicar o estudo da língua portuguesa aos moçambicanos e, por isso, uma
pequena parcela teve o aprendizado do idioma Português, e mesmo os que
aprenderam não perderam e/ou afastaram-se do seu idioma local, gerando a
mestiçagem da língua:
32
[...] a atuação do colonialismo em Moçambique, no que tange à
língua portuguesa, foi irrisória, sobretudo porque o país nunca levou a cabo uma efetiva e ampla política educativa que pudesse incluir no
universo da lusofonia a imensa maioria da população. Os poucos
atores que nesse universo foram incluídos fizeram dela uso muito
distinto daquele que os agentes coloniais poderiam esperar: não só
usaram a caneta como uma zagaia, voltando o controle que tinham da língua contra o cotidiano opressivo, como a recriaram, ao
incorporar palavras, expressões e formas das várias línguas locais e
falares populares que circulavam pelos espaços urbanos,
subvertendo os cânones e criando as bases para a reinvindicação de
uma moçambicanidade (ZAMPARONI, 2009, p. 27-28).
Para o estudo que se propõe sobre Mulheres de cinzas, fez-se
necessária a apreciação de alguns conceitos sobre o entrelaçamento da
história e ficção, memória e identidade, constituindo a base teórica para a
análise da narrativa, levando em consideração os aspectos de construção
psicológica das personagens e sua conexão com as nações a que pertencem.
A partir dos relatos de Imani e Germano, representantes dos dois polos:
respectivamente, moçambicano e português, delineia-se a construção do
país africano, em meio a lutas internas e à violência do colonizador. Às vozes
conflitantes, tanto de idioma quanto de interesses políticos e sociais, surge o
espaço do afeto, o que, talvez, seja o nascimento de uma trégua simbólica
para a construção de um novo Moçambique.
2.1 Da divergência à convergência: limiares entre o discurso histórico e
o discurso literário em Mulheres de cinzas
A vida é dialógica por natureza. Viver significa
participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder,
concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as
mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-
se totalmente na palavra, e essa palavra entra no
tecido dialógico da vida humana, no simpósio
universal. (Mikhail Bakhtin)
A narrativa de Mulheres de cinzas, ao recordar um passado histórico
tanto de Moçambique como de Portugal, abre espaço ao diálogo entre a
história e a ficção, em que apresenta uma recomposição de uma história
pretérita sob o olhar do colonizado, fundamentado na cultura nativa e nas
33
literaturas orais dos moçambicanos, abordando questões que a história
oficial tende a não mencionar, ou se quer lembrar.
Para a escrita da trilogia, Mia Couto serve-se de documentos históricos
de Portugal e, especialmente, de relatos orais de moçambicanos, os quais se
caracterizam como uma fonte de informação, de culturas e da literatura ou,
melhor, das manifestações artísticas orais que se originam do país. O relato
do passado pela ótica dessas histórias marginais em relação à Grande
História – a história oferecida como oficial – torna possível uma
(re)humanização dessas pessoas, através das personagens que se inserem na
narrativa. Tais figuras são de uma natureza muito rica para a construção de
um discurso histórico mais humano, afastando-se do ponto de vista do
julgamento, pois retrata um passado que não envolve apenas os
imperadores, mas atinge a todos quantos viveram aquele passado único, que
deixou consequências para as gerações futuras.
Se por um lado – o ficcional – a narrativa de Mulheres de cinzas oferece
ao leitor a história pelo olhar do marginalizado, não podemos deixar de
mencionar que a mesma narrativa também retrata o contexto histórico dos
países envolvidos na trama e na “oficial”. O panorama histórico da narrativa
de Mia Couto presentifica uma história passada de Moçambique e de
Portugal e representa personagens ‘míticos’ já conhecidos pela história de
ambos países. Conforme o próprio autor expõe em nota introdutória da obra:
Esta narrativa é uma recreação ficcional inspirada em factos e
personagens reais. Serviu de fonte de informação uma extensa
documentação produzida em Moçambique e em Portugal e, mais
importante ainda, diversas entrevistas efetuadas em Maputo e
Inhambane (p. 9).
Por considerar a história oficializada com seus fatos históricos e, ao
mesmo tempo, apresentá-la pelo viés do colonizado, além de recuperar uma
tradição e proporcionar uma revisão do passado, é que Mulheres de cinzas
pode ser considerado um romance histórico em que há um dialogismo entre
os discursos histórico e ficcional, sem que um anule o outro, pelo contrário,
cria um trânsito em que tempo e espaço entrelaçam-se pelos mesmos
caminhos com a finalidade de “[...] produzir figuras complexas de identidade
34
e diferença, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão [...]”
(TUTIKIAN, 2006, p. 16). E essa transição dá origem ao dialogismo entre as
narrativas do discurso histórico e as do discurso ficcional, tornando esse
diálogo entre a história e literatura uma das marcas da literatura
contemporânea, produzindo sobre a narrativa um efeito histórico-
documental (TUTIKIAN, 2006). Como já nos dizia Mikhail Bakhtin, na
epígrafe que abre essa seção, a vida é por si só é dialógica, o homem é o
sujeito participante ativo desse dialogismo que é a vida e através da palavra
perpetua-se, entrando em uma esfera universal.
Para iniciar o estudo sobre os discursos histórico e literário, pensamos
no perpassar das fronteiras da história e da ficção, mencionados por Jane
Tutikian (2006), em que ocorre a presentificação de um fato histórico e uma
revisão crítica da identidade, a partir da verdade histórica, que promove o
efeito de diálogo entre as narrativas histórica e ficcional. Para entender essas
confluências, recorremos a Paul Ricoeur, especificamente ao capítulo “O
entrecruzamento da história e da ficção”, que compõe o terceiro volume da
obra Tempo e narrativa (1997), para, assim, ter subsídios para elucidar sobre
a ficcionalização do discurso histórico e, da mesma forma, acerca da
historização do discurso ficcional e sua tênue diferença na figuração do
tempo (RICOEUR, 1997).
A obra do filósofo possibilita a interpretação da relação entre o tempo
histórico e o tempo ficcional, indicando que é pelo ato de narrar que se
efetivam as aproximações entre os propósitos do historiador e do
romancista. E que é pelo ato de leitura, como um momento hermenêutico,
que se caracterizam tanto as narrativas históricas, quanto as ficcionais.
Nesse caso, o ato de leitura agiria como momento ímpar, pois é quando
ocorre a efetuação do texto, que tem por base a refiguração do tempo em
ambos os discursos. Portanto, as aproximações e distanciamentos entre o
discurso histórico e o ficcional dependem do leitor como sujeito participante.
A esse respeito, Ricoeur afirma que:
[...] a teoria da leitura criou um espaço comum para os intercâmbios
entre a história e a ficção. Fingimos acreditar que a leitura só
interessa à recepção dos textos literários. Ora, não somos menos
35
leitores de história do que de romances. Todas as grafias – e, dentre
elas, a historiografia – dependem de uma teoria ampliada da leitura. Decorre daí que a operação de envolvimento mútuo mencionada há
pouco tem sua sede na leitura. Nesse sentido, as análises do entrecruzamento da história e da ficção que vamos esboçar são da
alçada de uma teoria ampliada da recepção, cujo momento
fenomenológico é o ato da leitura. É numa tal teoria ampliada da
leitura que a reviravolta se dá, da divergência à convergência, entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção (RICOEUR, 1997, p. 316).
Segundo Ricoeur (1997), as confluências entre a narrativa histórica e a
narrativa de ficção ocorrem a partir da prática da leitura, pois cada narrativa
aplica a configuração do tempo de uma forma específica para o que se
propõe discursiva e ideologicamente. No caso do tempo histórico, as lacunas
deixadas pela marcação temporal são preenchidas com outros fatos
consequentes desse primeiro indício, transformando a narrativa linear,
concisa e objetiva; enquanto que a narrativa ficcional possibilita ao leitor
uma maior intervenção reflexiva no ato da leitura, pois o tempo da narrativa
não tem compromisso com o tempo cronológico, nem com sua linearidade. A
narrativa ficcional, dessa forma, subverte a norma do tempo cronológico,
adquirindo o leitor a prática interpretativa da narrativa:
[...] a história, como dissemos, reinscreve o tempo da narrativa no
tempo do universo. Trata-se de uma tese “realista”, no sentido de que
a história submete a sua cronologia à única escala de tempo, comum
ao que chamamos de “história” da terra, “história” das espécies vivas e “história” do sistema solar e das galáxias. Essa reinscrição do
tempo da narrativa no tempo do universo, segundo uma única
escala, continua sendo a especificidade do modo referencial da
historiografia (RICOEUR, 1997, p. 317).
Sobre esse vínculo entre as narrativas da história e da ficção, através
da reinscrição do tempo no discurso, Ricoeur (1997) supõe que, para
interligar o tempo da narrativa ao tempo do universo, faz-se necessário
recorrer a conectores e que a eles cabe a tarefa de alterar o tempo para que
fique legível aos olhos humanos, como o faz o calendário, atuando como
signos que, além de identificar o tempo, também o interpreta. Para o filósofo,
o papel do imaginário representa um ponto fundamental para a construção
da história uma vez que seria necessário instituir conectores para
administrar a relação entre o tempo vivido ao tempo do mundo. O
imaginário, nas narrativas históricas, está vinculado às reverências do ter
36
sido, conforme a expressão do autor, atitude essa que não desvaloriza o tom
realista dessas pesquisas, contudo aceita certo aspecto do tempo nas
conclusões históricas (RICOEUR, 1997).
Outra ferramenta que atua como signo na figuração do tempo é o
rastro, através do qual se identifica a passagem de coisas, as quais não se
pode mais ver, mas que certamente existem em dado tempo e/ou espaço. O
fenômeno do rastro realiza também o papel de operador intelectual do tempo
que, pelo viés do imaginário, procura complementar as lacunas do
conhecimento. A essa significação do rastro, Ricoeur (1997) inflige o valor de
efeito-signo, que seria inferir que “a coisa presente [...] vale por uma coisa
passada” (RICOEUR, 1997, p. 320):
Evidentemente, é no fenômeno do rastro que culmina o caráter
imaginário dos conectores que marcam a instauração do tempo histórico. Essa mediação imaginária é pressuposta pela estrutura
mista do próprio rastro como efeito-signo. Essa estrutura mista
exprime abreviadamente uma atividade sintética complexa, em que
se compõem inferências de tipo causal aplicadas ao rastro como
marca deixada e atividades de interpretação ligadas ao caráter de
significância do rastro como coisa presente que vale por uma coisa passada. [...] São justamente as atividades de preservação, de
seleção, de agrupamento, de consulta, que mediatizam e
esquematizam, por assim dizer, o rastro, para transformá-lo na
última pressuposição da reinscrição do tempo vivido (o tempo como
um presente) no tempo puramente sucessivo (o tempo sem presente). Se o rastro é um fenômeno mais radical do que o do documento ou
do arquivo, em compensação é o processamento dos arquivos e dos
documentos que faz do rastro um operador efetivo do tempo
histórico. O caráter imaginário das atividades que mediatizam e
esquematizam o rastro é atestado no trabalho de pensamento que
acompanha a interpretação de um resto, de um fóssil, de uma ruína, de uma peça de museu, de um monumento [...] (RICOEUR, 1997, p.
320).
Esses conectores realizam a interpretação imaginativa dos rastros e
assumem o papel de signos, transformando o vestígio em prova concreta do
passado, além de avançar as fronteiras da ficção e da história, pois entramos
no terreno da suposição. Outro papel desempenhado pelo imaginário para
lhe completar o sentido é o afigura-se. Sobre isso, Ricoeur (1997, p. 323)
define que a “função representativa da imaginação histórica se aproxima do
ato de se afigurar que”, promovendo uma aproximação entre a narrativa
37
histórica da ficcional, pois ambas apelam às intervenções imaginárias na
refiguração do tempo.
Ainda, Ricoeur (1997) explica que, quando historiadores procuram
reconstituir as verdades históricas, pelo imaginário, como num face-a-face,
aproximam as narrativas ficcional e histórica. Todos os rastros permitem
conferir à intensão do passado um preenchimento quase intuitivo, por isso
traços do imaginário são constantes tanto na narrativa de ficção quanto na
narrativa historiográfica:
[...] Tão logo admitimos que a escrita da história não se ajunta de fora ao conhecimento histórico, mas dele é solidária, nada se opõe a
que admitamos também que a história imita em sua escrita o tipo de
armação da intriga herdados da tradição literária. [...] Ora, esses
empréstimos tomados à história pela literatura não poderiam ser
confinados no plano da composição, portanto, no momento de configuração. O empréstimo diz respeito também à função
representativa da imaginação histórica: aprendemos a ver como
trágico, como cômico etc. determinado encadeamento de
acontecimentos. O que justamente faz a perenidade de certas
grandes obras históricas, cuja fiabilidade propriamente científica o
progresso documentário, porém, erodiu, é o caráter exatamente apropriado de sua arte poética e retórica à sua maneira de ver o
passado. A mesma obra pode, assim, ser um grande livro de história
e um admirável romance. O espantoso é que esse entrelaçamento da
ficção à história não enfraqueça o projeto de representância desta
última, mas contribua para sua realização (RICOEUR, 1997, p. 322-323).
O empréstimo literário à narrativa histórica permitiu uma função
representativa da imaginação, particularmente a sua maneira de ver o
passado, acarretando em uma contribuição da ficção para a representância
da história. O que o filósofo julga como espantoso – a leitura de um livro de
história como um romance – somente é possível através do pacto de leitura,
estabelecido entre a voz narrativa e o leitor implicado. De todo modo, os
historiadores não deixam de buscar no gênero romanesco formas sutis de
reefetuar suas narrativas, de repensar os meios e fins, não se restringindo de
reelaborar uma situação, para que esse possua a vivacidade de um discurso
interior (RICOEUR, 1997).
Ao tratarmos a interpretação imaginativa como enriquecedora das
mediações entre os discursos histórico e literário, recorremos ao que o
romancista português José Saramago, no ensaio “O diálogo com a história”,
38
publicado no livro O conhecimento da literatura (1990), organizado por Carlos
Reis), apresenta sobre o entrecruzamento da história e da ficção.
Saramago (1990) começa seu ensaio exemplificando que um
historiador, não satisfeito com o que expressava com a História, passou a
escrever romances históricos para equilibrar essa necessidade de se libertar:
“[...] Foi buscar às possibilidades da ficção, à imaginação, à elaboração livre
sobre o tecido histórico perfeitamente definido, o que sentira faltar-lhe
enquanto historiador: a complementaridade duma realidade[...]”
(SARAMAGO, 1990, p. 501).
O romancista português salienta que o mesmo historiador sempre fará
outras viagens no tempo por onde já passara, e esse tempo deixou de ser
uniforme, passou a fazer parte da História. Mas, com a revisão das imagens,
das novas interpretações, o historiador vai retomando sucessivamente a
imagem histórica que o passado lhe apresentava. No entanto, nessa tarefa de
recordar o passado, de acordo com Saramago, haverá sempre, “uma grande
zona de obscuridade, e é daí, segundo entendo, que o romancista tem seu
campo de trabalho” (SARAMAGO, 1990, p. 502).
Para Saramago, o romance histórico pode seguir duas vertentes da
História: a primeira consistirá em reproduzir os fatos fielmente; assim, a
ficção estará a serviço da fidelidade que se quer inatacável, será ela discreta
e respeitosa; inversamente, a outra será mais ousada, e usará os dados
históricos necessários apenas para entretecer a narrativa ficcional, que se
manterá predominante: “Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das
verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista
inconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância narradora”
(SARAMAGO, 1990, p. 502-503). Justificando a proximidade entre história e
ficção, o autor diz que:
[...] o historiador realiza uma rarefacção do referencial, criando uma
espécie de malha larga, perfeitamente tecida, mas que envolve
espaços de obscurecimento ou de redução dos factos. Deste ângulo, parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente
próximo da ficção, dado que, ao rarefazer o referencial, procede a
omissões, portanto a modificações, estabelecendo assim com os
acontecimentos relações que são novas na medida em que são
incompletas [...] (SARAMAGO, 1990, p. 503).
39
Regressamos ao estudo do filósofo Paul Ricoeur (1997), desta vez por
outro ângulo, ou seja, sobre a historicização da ficção, o que tem relação
com a exposição de Saramago. As considerações de Paul Ricoeur (1997)
sobre essa é que a função do tempo é tão-somente indicar a organização da
narrativa, isto é, o tempo na narrativa ficcional não tem obrigação com a
linearidade temporal e com a cronologia, função característica do tempo nas
narrativas históricas. As pistas que marcam a narrativa ficcional estão na
escolha de tempos e modos verbais que, com efeito, promove, no leitor, a sua
localização espaço-temporal em relação a um dado momento e/ou tempo.
Para Ricoeur (1997), outra função da ficção, em relação à história, é
transmitir significações temporais que o cotidiano não permite perceber.
Novamente, temos a similitude entre as narrativas quando o autor
explana: “se a ficção é quase histórica, tanto quanto à história é quase
fictícia” (RICOEUR, 1997, p. 329), tal reconhecimento ocorre através do
pacto entre autor e leitor, no momento da leitura, quando há a percepção de
que os acontecimentos relatados, de uma forma ou outra, pertencem ao
passado da voz que narra.
A essa conformidade entre as narrativas, Ricoeur afirma que se a
ficção se parece com a história por trazer à tona acontecimentos ‘irreais’
como se fossem fatos passados, através de uma voz narrativa, a história se
parece com a ficção, por relatar acontecimentos reais, completados em sua
passadidade, pela intuitividade e vivacidade originadas pela presença
narrativa (RICOEUR, 1997).
Dessa relação entre a história e a ficção surge o fenômeno do
verossímil. Recorremos a Aristóteles, filósofo grego, para obter sua
contribuição acerca da aproximação entre as narrativas da história e da
ficção, levando em consideração a verossimilhança entre as narrativas
através do ato narrativo:
é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que
aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo
a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o que primeiro escreveu em
prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um
escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido
(ARISTÓTELES, 1964, p. 278).
40
A possibilidade criativa no ato narrativo aliado à verossimilhança das
narrativas é que promove a aproximação das fronteiras entre a história e a
ficção literária. Em perspectiva semelhante à de Aristóteles (1964), Paul
Ricoeur (1997) sugere uma justaposição entre as narrativas, possibilitando
seu entrecruzamento. Segundo o autor, é durante o ato da leitura, por meio
da refiguração do tempo, que a história se entrecruza com a ficção
(RICOEUR, 1997). Dessa transcendência de limiares entre os discursos da
história e da ficção, na reconfiguração do tempo, Ricoeur explica que:
[...] o entrecruzamento entre a história e a ficção na refiguração do
tempo se baseia, em última análise, nessa sobreposição recíproca,
quando o momento quase histórico da ficção troca de lugar com o
momento quase fictício da história. Desse entrecruzamento, dessa
sobreposição recíproca, dessa troca de lugares, procede o que se convencionou chamar o tempo humano, em que se conjugam a
representância do passado pela história e as variações imaginativas
da ficção, sobre o pano de fundo das aporias da fenomenologia do tempo (RICOEUR, 1997, p. 332, grifos do autor).
Para contribuir com o aporte teórico acerca das narrativas históricas e
ficcionais, compartilhamos a tese de doutoramento de Silvia Helena
Niederauer, a qual sinaliza que o discurso histórico é uma das principais
fontes que embasam o discurso do romance histórico, tanto que a temática
fronteiriça dos termos aparece em vários estudos para a apreciação de
determinadas obras. Assim se refere a autora:
a história sempre foi fonte inesgotável de inspiração para os ficcionistas. Tanto assim que história e literatura foram
consideradas, através dos tempos, como espelhos da humanidade e,
por isso, sempre se questionou o caráter de suas relações
interdisciplinares (NIEDERAUER, 2007, p. 14),
A autora afirma que o discurso histórico ficcional abre caminhos para
a reflexão, polêmica e revisão crítica sobre a historiografia, deixando de ser
retrato de determinada época, para atuar além do inconsciente dos leitores
(NIEDERAUER, 2007). Temos, portanto, “[...] uma reinterpretação da
história, através da transfiguração artística e da criação de um universo que
se caracteriza pelos anseios e dados subjetivos dos escritores”
(NIEDERAUER, 2007, p. 15). Ainda,
41
[...] Tem-se em mente, desde já, que o discurso histórico e o ficcional
se cruzam e se mesclam conforme o intento dos autores. O texto histórico procura ordenar os fatos a partir dos rastros deixados no
presente, os quais precisam ser interpretados, de modo a revelarem
algum acontecimento do passado, que se encontra prestes a ser
esquecido (NIEDERAUER, 2007, p. 18).
Ao indicar os vestígios deixados por um passado, que é retomado com
a interpretação desses rastros que marcam o presente, a citação de
Niederauer (2007) conversa com o conceito de rastro e sua significância
definido por Ricoeur (1997). No entender de Silvia Niederauer (2007), assim
como de Ricoeur (1997), há um empréstimo entre as narrativas históricas e
ficcionais, por meio do modo narrativo de um e da pesquisa histórica e
vestígios do outro:
A historiografia narrativiza e analisa os fatos, a fim de que se
compreenda, a partir de tais vestígios, o que poderia ter ocorrido na
realidade. A ficção, por sua vez, pode recair no discurso histórico,
apropriando-se dele na pesquisa em que se embrenha o autor, a fim
de realizar suas criações. Por meio desse expediente, são preenchidas as lacunas que a imaginação autoral aí vai buscar, para
compor o universo privado e afetivo dos seres humanos
representados (NIEDERAUER, 2007, p. 18).
Confirmando sua tese de que é através da narração que a significação
acontece nas narrativas da História e/ou da ficção, da mesma forma a
participação da imaginação e reflexão dos autores; atrelada à linguagem que
envolve ambas narrativas, temos também o papel da forma e do conteúdo
nessas narrativas, conforme Niederauer ressalta:
A ficção narrativa e a História são, inegavelmente, senhoras de
linguagem, imaginação e reflexão. E, se é lícito generalizar, em
ambas, a narração é a forma, que traz consigo um território de nexos
causais e temporais que se tecem desvelando significados. Na
literatura, os significados encontram-se justamente no ato de problematizar causas e tempos em benefício de novas circunstâncias
poéticas que, muitas vezes, têm por meta a própria linguagem feita
conteúdo. Na História, o conteúdo impõe-se à linguagem como um
fim em si mesmo, ainda que ela seja aí um componente dos mais
relevantes (NIEDERAUER, 2007, p. 22).
A autora também destaca as relações entre a narrativa histórica e
ficcional, entre semelhanças e diferenças, sua criação através da
42
consciência, com a pretensão do real por meio da linguagem e suas
referências espaço-temporais, conforme expressa:
Para discutir a relação entre discurso literário e discurso histórico,
parte-se do que se considera como suas diferenças e semelhanças. O
primeiro seria consciência possível; o outro, consciência pura. Ambos pretendem representar a realidade e são construídos por meio da
linguagem, estruturando-se em relações temporais e espaciais.
Entretanto, se a História parece vir assinalada pela competência em
reconstruir fatos e feitos do passado remoto ou recente, buscando
apreender significados, essa é uma tarefa da imaginação do presente
que, quando se lança à interpretação dos fatos e acontecimentos, se submete ao recurso das fontes documentais. A História, portanto,
está cerceada pelo critério de verdade, mesmo que a seleção das
fontes implique uma interpretação e um marco teórico, expressivos
da subjetividade do historiador (NIEDERAUER, 2007, p. 22).
Novamente, temos a tese de que a interpretação dos fatos, com anseios
de incutir significância ao passado, procede de uma imaginação do presente
e da subjetividade do autor, no ato de narrar, estabelecendo uma
configuração de verdade, em maior ou menor grau.
Tendo em vista a similitude de narrativas históricas e literárias,
tomamos essa problemática para o desenvolvimento da base teórica que
sustentará parte da análise da narrativa Mulheres de cinzas. A criação
ficcional que leva consigo dados referenciais, ou seja, históricos, e trazem
esses de várias formas, seja na temporalização, na modalização e/ou na
espacialização da trama, constituindo os aspectos determinantes do
romance histórico, permitindo a denominação destas obras “como romances
históricos e o sentido destes elementos que marcam hoje um distanciamento
em relação ao romance histórico romântico”, conforme explica Eunice de
Morais (2011, p. 2).
Para a autora, as características determinantes do romance histórico
são: coexistência de transição entre o mundo ficcional e historiográfico;
enredo localizado em um passado histórico e reconhecido pelos leitores e,
por fim, distância temporal entre o passado e o presente do leitor implícito
(público alvo – que se pretende atingir) e dos leitores reais, sendo que é no
passado em que ocorre o desenrolar dos fatos e, também, onde atuam os
personagens (MORAIS, 2011).
43
Os termos e definições de modalização, espacialização e
temporalização são descritos por Prieto (2003, p. 177-178 apud MORAIS,
2011, p. 104) como operações narratológicas básicas no processo de
transformar a história em discurso narrativo.
Sobre modalização, Prieto define como sendo as vozes presentes na
narrativa e a relação delas com o narrado e seus interlocutores, ou seja,
quem fala, para quem, como e de onde fala. Conforme as palavras da autora,
são os “aspectos que se refieren a la enunciación narrativa: quién habla en el
texto (la voz) e a quién (narratário o lectores representados); y quién ve o quién
o conoce la historia narrada: la perspectiva o focalización” (PRIETO, 2003
apud MORAIS, 2011, p. 104). Encontramos traços de modalização na
narração de Imani, logo ao iniciar a trama:
Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime.
Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele cabiam todos os
astros, os vivos e os que morreram. Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de casa com uma peneira na mão. Ia escolher o
melhor dos sóis. Com a peneira recolhia as restantes seis estrelas e
trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por trás da
nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de criaturas celestiais. Um
dia, caso precisássemos, iríamos lá desenterrar estrelas. Por motivo desse património, nós não éramos pobres. Assim dizia a nossa mãe, Chikazi Makwakwa. Ou simplesmente a mame, na nossa língua
materna (p. 14, grifos do autor).
Esse trecho serve de exemplo de modalização, conforme expresso por
Prieto (2003), uma vez que apresenta a voz narrativa que conhece o que está
a falar, descrever, pois além de relatar o ritual que sua mãe realizava todas
as manhãs, “traduz” a palavra “mãe”, pois a menina transita entre duas
línguas, a sua de origem e o português, remetendo ao modo simples que
chamavam Chikazi Makwakwa. Outro indício de modalização é a passagem
em que Imani reflete sobre a planície de Inharrime, indicando o local da
trama e de onde fala: “Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele
cabiam todos os astros, os vivos e os que morreram” (p. 14).
Quanto à temporalização, por sua vez, trata-se das marcas temporais
expressas na narrativa como dia, mês e/ou ano, reforçando seu caráter
histórico e situando a diegese em um tempo passado em relação ao tempo
presente do leitor, proporcionando a distinção entre o passado o presente
44
(PRIETO, 2011 apud MORAIS, 2011). A temporalização ocorre no romance
em estudo em vários momentos, pois em cada carta escrita por Germano de
Melo, sargento do império português, ele insere a data; também, quando a
narradora onisciente Imani faz uma indicação temporal da trama: “Naquela
manhã de janeiro de 1895, as janelas que deixara abertas fizeram crer que
uma criança acabara de nascer” (p. 19). O caráter de ficcionalização do
histórico fica assegurado, também, com a indicação dessas marcas
temporais.
Sobre espacialização, Pietro sugere que o termo se refere ao espaço
narrativo; espacialização é definida como as descrições de lugares, objetos,
ambientes, os quais têm como função recuperar a temporalidade do passado
vivido e ainda ativar a memória do leitor. Espacialização ou espaço narrativo,
simplificadamente, pode ser conceituado como descrição de espaços e
ambientes em que as personagens circulam e onde as ações acontecem
(PRIETO, 2003 apud MORAIS, 2011, p. 113).
A espacialização aparece, por exemplo, quando Imani narra um fato
ocorrido nos arredores de sua casa, situando o leitor no espaço-temporal da
narrativa:
Naquela manhã a única pegada era a de um simba, esses felinos
que, na calada da noite, farejam as nossas capoeiras. A mãe foi
conferir as galinhas. Nenhuma faltava. [...] A vassoura corrigiu,
firme, a noturna ousadia. A memória do felino se apagou em
segundos. Depois a mãe afastou-se pelos atalhos para recolher água no rio. Fiquei a vê-la desvanecendo-se na floresta, elegante e hirta
nos seus panos garridos (p. 20).
Assim, Mulheres de cinzas apresenta as características propostas por
Eunice de Morais (2011), caracterizando-se como um romance histórico, em
que a narrativa ficcional caminha ao lado da narrativa histórica,
[...] Nesse sentido, a ficção tomaria empréstimos da história tanto
quanto a história toma empréstimos da ficção. É esse empréstimo recíproco que me autoriza a formular o problema da referência cruzada entre a historiografia e a narrativa de ficção. Esse problema
só poderia ser desconsiderado numa concepção positivista da
história que ignorasse a parcela da ficção na referência por vestígios,
e numa concepção antirreferencial da literatura que ignorasse o alcance da referência metafórica em toda poesia. [...]
45
Contudo, onde se cruzam a referência por vestígios e a referência
metafórica, senão na temporalidade da ação humana? Não é o tempo
humano que a historiografia e a ficção literária refiguram em comum, cruzando nele seus modos referenciais? (RICOEUR, 2010, p. 140,
grifos do autor).
Com as premissas de Paul Ricoeur e de Jane Tutikian, finalizaremos
os fundamentos sobre o entrelaçamento dos discursos histórico e ficcional. A
autora ainda postula que a formação de uma literatura de resistência
acontece a partir desse entrelaçamento discursivo – da ficção com a história
–, possibilitando uma outra leitura desse discurso, favorecendo a
constatação de uma outra identidade e, ainda, propicia para o não
silenciamento de vozes de sujeitos marginalizados diante da história oficial:
Ora, sendo a literatura resistência, resultado e reinterveniência no
tempo histórico, pela sua força como matriz geradora e definidora do
social, tornando-o aberto à ação, as narrativas transnacionais de migrantes, colonizados ou exilados, ocupam espaço cada vez mais
relevante, criando uma nova (e mais real) imagem discursiva na
confluência entre a História e a literatura, possibilitando que seja
lida de um outro modo.
É nessa confluência, a partir da própria confluência de espaço e de tempo, de diferenças culturais, marcada por inclusões, e exclusões,
colaborações e contestações, que a identidade nacional (política e
cultural) ganha outra face, novos signos (TUTIKIAN, 2006, p. 26).
E por proporcionar, através do resgate ao desaparecido, ao passado,
retomando uma memória esquecida ou sequer levada em consideração, da
mesma forma, valorizando vidas e tradições, é que a literatura tem em sua
essência o poder de transformar culturas, de onde se serve a constituição de
identidades (TUTIKIAN, 2012). E por ter esse caráter de resistência frente ao
sistema imperialista que permanece nas esferas políticas, sociais e culturais,
a literatura torna-se fundamental para a transformação de identidades e
culturas, ao passo que realiza uma transição entre História e literatura,
favorecendo o resgate sociocultural.
Ainda à luz dos estudos de Gagnebin (2006), a distinção entre o
discurso dito histórico oficial do não-oficial, em que tem-se o sofrimento e o
anonimato, aqueles e aquilo que não têm nome, a autora afirma que a
narrativa não-oficial retoma esses temas desconsiderados pela grande
história:
46
Em primeiro lugar o sofrimento [...] Em segundo lugar aquilo que
não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que
mesmo a memória de sua existência não subexiste – aqueles que
desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus
nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o
que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável,
numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo – principalmente –
quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido.
(GAGNEBIN, 2006, p. 54).
Faria Mia Couto de Imani, o que Jeanne Marie Gagnebin conceitua
como um “narrador trapeiro [...] que recolhe os cacos, os restos os detritos
[...] pelo desejo de não deixar nada se perder”? (GAGNEBIN, 2006, p. 53-54).
Seguindo a visão da autora, e então começa a surgir uma possível resposta,
essa narradora tem por objeto os acontecimentos que são/foram deixados de
lado pelo discurso histórico oficial, como por exemplo, trazer à narrativa o
olhar do colonizado e os sujeitos dessa história subordinada, esquecida,
apagada pelo discurso oficial, por esse definido como “algo que não tem
significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com
que a história oficial não sabe o que fazer” (GAGNEBIN, 2006, p. 54).
Enfim, partimos em direção de outro pilar teórico que sustentará a
análise do estudo. Trata-se da memória e sua relação com o tempo e com a
história. Conforme o que Jane Tutikian sugere sobre a produção de uma
memória histórica pela literatura, “[...] Mesmo na imposição do discurso
autoritário, a literatura se propõe com alternativas e opostas: contra o fixo e
o codificado, com as plurissignificações e o dialogismo: memória, história e
ficção se permeiam” (TUTIKIAN, 2006, p. 19-20).
2.2 Entre a memória, o silenciamento e o esquecimento: a narrativa
[...] A única coisa a fazer, então, não é esperar por uma vida depois da morte [...] mas sim tentar manter
viva, para os vivos e através da palavra viva do poeta,
a lembrança gloriosa dos mortos, nossos antepassados
outrora vivos e sofredores como nós.
(Jeanne Marie Gagnebin)
Ao tratar de termos que se referem à memória e, concomitantemente e
não por oposição, ao esquecimento, nos servimos dos estudos de Jeanne
47
Gagnebin, precisamente Lembrar escrever esquecer, de 2006, no qual a
filósofa suíça aborda as mais diversas questões relativas à narrativa oral e
escrita enquanto ferramenta para enfrentar o esquecimento e silenciamento
de histórias e memórias passadas. Assim corrobora a autora:
[...] Desde Platão, o diálogo oral representa a vivacidade de uma
busca em comum da verdade — e se esta última escapa da tentativa
de sua apreensão, ela ao mesmo tempo se revela nessas palavras
compartilhadas, mas efêmeras. A escrita, por sua vez, deseja perpetuar o vivo, mantendo sua lembrança para as gerações futuras,
mas só pode salvá-lo quando o codifica e o fixa, transformando sua
plasticidade em rigidez, afirmando e confirmando sua ausência —
quando pronuncia sua morte (GAGNEBIN, 2006, p. 11).
E por se tratar de algo fugaz, conforme Jeanne Gagnebin expressa,
mas que, por vezes, pode tornar-se codificado e fixo, possibilitando seu
resgate, é que a retomada de uma memória, seja oral ou escrita, propicia o
não esquecimento. No silenciamento tem-se consciência dos fatos, porém,
por conveniência ou necessidade, tende-se ao “abafamento” dos fatos, casos
e rastros, causando o silenciamento de passados, memórias, lembranças;
trata-se da retirada da oportunidade de voz de grupos minoritários,
geralmente, na tentativa de apagar suas histórias e, nesse caso, atingindo
suas raízes, identidades, culturas e tradições, a formação do ser enquanto
sujeito pessoal e social. Conforme elucida Ricoeur no primeiro volume da
sua obra Tempo e Narrativa (2010), - “A intriga e a narrativa histórica” -,
sobre a narrativa o filósofo atribui que:
[...] Narrar, acompanhar, entender histórias é apenas a
“continuação” dessas histórias não ditas. [...] No entanto, a
prioridade dada à história ainda não contada pode servir de instância crítica ante qualquer ênfase no caráter artificial da arte de
narrar. Contamos histórias porque, afinal, as vidas humanas
precisam e merecem ser contadas. Essa observação ganha toda a
sua força quando evocamos a necessidade de salvar a história dos
vencidos e dos perdedores. Toda a história do sofrimento clama por vingança e pede narração (RICOEUR, 2010, p. 129).
Ao transitar pelos terrenos da história e da memória, recorremos à
obra História oral: memória, tempo, identidades, de Lucilia Delgado (2006).
Para a autora, a memória é a base sobre a qual se constroem e se deixam
fixar percepções individuais, bem como coletivas; é um elemento constitutivo
48
do autorreconhecimento como pessoa e como membro de uma coletividade
pública ou privada. Assim se refere Delgado ao discorrer sobre a memória e
história: “Memória e História são processos sociais, são construções dos
homens, que têm como referências as experiências individuais e coletivas
inscritas nos quadros da vida em sociedade” (DELGADO, 2006, p. 50).
Nas literaturas africanas de língua portuguesa, no que tange à
construção literária, em especial em Mulheres de cinzas, corpus de análise
desse estudo, a narrativa que realiza um diálogo entre o passado e o
presente, promove uma revisão dos fatos de um passado, proporcionando
novas significações, simbólicas talvez, servindo ao que Inocência Mata
atribui como “‘textos-memória’ da História dos países” africanos de língua
portuguesa (MATA, 2006, p. 17, grifos da autora), e por assim dizer tem uma
expressa ligação com o percurso histórico desses países, muitas vezes
coincidindo com sua própria existência (MATA, 2006).
[...] No seu período de emergência e consolidação dos sistemas
literários, em que a literatura funcionou como subsidiária da
afirmação nacional e identitária face à ideologia colonial, essas
literaturas fizeram-se, grosso modo, relatos de nação em devir. Nesta marcha, o discurso prevalecente era aquele que buscava sintetizar as
diferentes vozes (afinal, as diferentes visões sobre o processo de
afirmação anticolonial), partilhar memórias históricas e forjadas e
colectivizar angústias e aspirações. Hoje, porém, em período pós-
colonial, essas literaturas continuam a trilhar o caminho da nação.
No entanto, ao invés de uma “nação higiénica”, este ainda relato de nação tem vindo a fazer-se pela encenação da fragmentária memória
incómoda de diferenças, intolerâncias, conflitos, traições e
oportunismos, numa enunciação narrativa predominantemente de
modo evocativo, através da qual se convoca um passado bem
diferente daquele antes textualizado – histórico, não já idealizado (MATA, 2006, p. 17-18).
Já nos referimos à literatura africana de língua portuguesa em
capítulo anterior, portanto, cabe-nos aqui ressaltar a questão da
importância da literatura para a formação de uma nação, por meio da
retomada de um dado passado histórico à luz de novas construções
narrativas, baseadas em memórias fragmentadas, trazendo à margem as
diferenças, conflitos e oportunismos, como aponta muito bem Inocência
Mata (2006), narrativas essas que deixaram (ou tentam deixar) para trás o
passado colonial, esse que já está textualizado e idealizado pela ótica dos
49
lusitanos. Encontramos base nesse processo (re)construtivo da memória na
escrita de Jeanne Gagnebin; segundo a autora rememorar é:
[...] em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,
aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,
solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma
atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas
ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de
não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A
fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação
do presente (GAGNEBIN, 2006, p. 55).
Essa reflexão sobre o passado, com a expectativa de um novo presente,
com a intenção de dar visibilidade aos esquecidos e, assim, uma chance de
lembrança, uma memória, é possível quando se tem testemunhas dessa
história, através da função de ouvintes, pois “somente assim poderia essa
história ser retomada e transmitida em palavras diferentes.” (GAGNEBIN,
2006, p. 57). A autora propõe uma ampliação do conceito de testemunha,
sugerindo que testemunha não necessariamente é aquele que presenciou o
fato, configurado como testemunha direta, mas aquele que ouve a narração
até o fim, mesmo que insuportável, e que aceita que suas palavras levem
adiante a história do outro:
[...] não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a
transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento
indizível, somente essa retomada de reflexiva do passado pode nos
ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 57).
Se a cada nova rememoração é realizado um novo ato de construção,
como se ‘reescrevesse’ a cena”, Mulheres de cinzas rememora um tempo
pretérito da história moçambicana, a fim de poder refletir sobre as
implicações da colonização e sua violência com relação à terra e aos seus
habitantes. Por este viés, as vozes narrativas da história transitam entre
suas memórias e seu presente, revelando, aos poucos, o seu estar no mundo
naquela situação de oprimido/opressor, da qual ambos são protagonistas.
50
Em Mulheres de cinzas, com relação ao “dever de memória”, a
rememoração é pela voz de Imani, conforme observamos no trecho em que a
garota relembra uma fábula narrada por seu avô:
Tsangatelo encostou-se à termiteira para narrar uma velha e gasta
fábula. Era noite, os deuses autorizavam-no a contar histórias. Desta
vez, porém, improvisou uma nova encenação. Ergueu-se para ficar
do tamanho da noite. E quando falou parecia que se expressava num idioma novo que nascia das suas palavras. Como se apenas os
deuses o escutassem. Esta é a história que Tsangatelo narrou:
“Havia algures uma guerra antiga, num tempo em que nenhum lugar
tinha ainda nome. A batalha estava nos preparativos iniciais, nesse
momento em que guerreiros possuem tanta fé que deixam de se ver a si mesmos, frágeis e tomados pelo mundo. Os dois exércitos se
perfilavam para o confronto quando um enorme clarão rasgou os
céus. Uma incandescência de uma estrela varreu o firmamento. Os
soldados tombaram, momentaneamente cegos. Quando voltaram a si
tinham perdido a memória, desconhecendo para que serviam as armas que traziam nos braços. Eles então se desfizeram das lanças,
zagaias e escudos e olharam uns para os outros, sem saber o que
fazer. Até que, perplexos, os chefes rivais se saudaram. A seguir os
soldados se abraçaram. E, quando voltaram a olhar a paisagem, não
mais viram território para conquistar, mas terra para cultivar.
Por fim, os homens dispersaram. No regresso a suas casas, escutaram a mais antiga canção de embalar, entoada nas infinitas
vozes de uma única mulher.” (p. 120-121).
Sua reflexão sobre os preparativos de uma cerimônia em homenagem
aos seus antepassados demonstra sua percepção sobre ela própria, sobre
sua tribo e a estimativa de um final – não muito feliz:
Os preparativos da cerimónia requeriam um esforço de todos nós. A
mim coube-me o trabalho mais afastado de casa: toda a tarde andei
catando lenha. E fui recolhendo pau e gravetos como se fossem
pedaços de mim que reagrupava debaixo do braço. [...]
Começava a anoitecer e ainda não havia empilhado toda a lenha no pátio. Foi quando o sino da igreja começou a tocar sozinho. As aves
levantaram voo, assustadas, e os aldeões buscaram refúgio nas suas
casas. O cego da aldeia, que nunca saía à rua, surgiu na praça.
Havia anos que tinha voltado da guerra sem aparente ferimento. Mas
a guerra tinha-lhe entrado na cabeça, apagando-lhe os olhos por
dentro. O cego escutou o adejar das aves à sua volta e declarou: - Meus irmãos, estes são os últimos pássaros! Olhem bem para eles que nunca mais o voltarão a ver.
Rodopiou como se dançasse com os seus pés cegos, os braços abertos em asas (p. 118, grifos do autor).
51
Imani ao narrar esse acontecimento, expõe um dos efeitos da guerra,
ainda que sem ferimento exposto, os guerrilheiros voltam como se tivessem
perdido o dom da visão, e ao prever um novo combate anuncia ser esse um
dos últimos momentos de paz, em que ainda há pássaros a voar. O processo
de rememoração faz-se imprescindível para evidenciar a complexidade
daquele momento histórico pelo qual passa Moçambique e, também, para
que se entenda o que, a partir daquela situação, ainda está por vir. Imani
nos dá pistas de sua identidade fragmentada, ao comparar-se com a lenha
que aos poucos recolhia, como se nessa ação estivesse recolhendo a ela
mesma.
2.3 A voz de Imani e a identidade moçambicana
Chamo-me Imani. Este nome que me deram não é um nome. Na minha língua materna “Imani” quer dizer “quem é?”. Bate-se a uma porta e, do outro lado,
alguém indaga: - Imani?
Pois foi essa indagação que me deram como
identidade. Como se eu fosse sombra sem corpo, a
eterna espera de uma resposta.
(Mia Couto)
Imani, a personagem criada por Mia Couto para narrar a história de
Mulheres de cinzas, revela-se não somente como uma indagação: “quem é?”,
mas se percebe que a dúvida mais insistente é “quem sou?”, questão
implícita nesse excerto e confirmada no transcorrer da narrativa.
Sua dúvida parte de vários condicionantes - antes de ser chamada de
Imani, teve outros nomes: Layeluane, nome herdado de sua avó paterna, o
qual recebeu conforme manda a tradição; depois, foi batizada por sua mãe
com o nome de “Cinza”; posteriormente, foi chamada por “a Viva”, uma vez
que suas irmãs, levadas pelas grandes enchentes, faleceram. E sobre isso a
personagem revela:
Era assim que me referiam, como se o facto de ter sobrevivido fosse a
única marca que me distinguia. Os meus pais ordenavam aos meus
irmãos que fossem ver onde estava a “Viva”. Não era um nome. Era
um modo de não dizer que as outras filhas estavam mortas (p. 16).
52
Sua reflexão e dúvida sobre a própria identidade, ou ausência dela,
avançam na narrativa. Em um diálogo com um homem que se sustenta com
os restos de guerra, Imani diz não ter nome:
E já se ia embora quando se arrependeu e, arrastando ruidosamente
a sacola, girou à minha volta até me interpelar: - Como te chamas?
- Eu? Eu não tenho nome – respondi.
Foi como se o tivesse golpeado. Deixou tombar o saco e o seu
conteúdo rolou pelo chão. Avançou para mim, com o braço hasteado: - Nunca mais digas isso. Queres saber como se mata alguém de verdade? Não é preciso que lhe cortes o pescoço ou lhe espetes uma
faca no coração. Basta que lhe roubes o nome. É isso que mata os vivos e os mortos. Por isso, minha filha, nunca mais digas que não tens nome (p. 259-260).
Imani explica que recebeu por nome um nome nenhum, quando seu
pai retoma o controle acerca da escolha de um nome para a garota:
[...] A certa altura o meu velho reconsiderou e, finalmente, se impôs. Eu teria por nome um nome nenhum: Imani. A ordem do mundo, por
fim, se tinha restabelecido. Atribuir um nome é um ato de poder, a
primeira e mais definitiva ocupação de um território alheio. Meu pai
que tanto reclamava contra o império dos outros, reassumiu o estatuto de um pequeno imperador (p. 16-17, grifos do autor).
O que é nosso nome se não nosso próprio eu? Somos a materialização
de um ideal, personalidade, identidade, tradição, e ter por nome um nome
nenhum, faz com que Imani viva esse conflito entre o “eu” e o “ser”, fato que
caracteriza a personagem e sua vida:
Não sei por que me demoro tanto nestas longas explicações. Porque
não nasci para ser pessoa. Sou uma raça, sou uma tribo, sou um
sexo, sou tudo o que me impede de ser eu mesma. Sou negra, sou
dos VaChopi, uma pequena tribo no litoral de Moçambique [...] (p. 17).
Ao refletir sobre o papel da personagem principal de Mulheres de
cinzas, Imani, a consideramos como representante moçambicana, de uma
nação que começa a se formar. Para iniciar os estudos sobre o
desenvolvimento dessa nova nação que dá os primeiros sinais de que está a
se estabelecer, buscamos em Jane Tutikian (2006) os pilares que
sustentarão a conceituação entre nação e identidade, assim como no estudo
53
de Stuart Hall (2005) acerca da identidade, da mesma forma, Jodelet (2005)
contribui para o conceito de construções representacionais.
Faz-se necessário o desdobramento de conceitos como o de identidade,
enquanto representação pessoal e de uma nação, visto que a personagem
central nos oferece primários indícios de que a trama trata-se de uma
simbologia à nação moçambicana, que começa dar seus primeiros passos
para a independência de Portugal – mas isso, ainda, é um sonho distante.
Stuart Hall (2005) afirma que “a identidade passa a ser definida
historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um ‘eu’ coerente” (HALL, 2005, p. 13). Seguindo esse viés,
percebemos que Jane Tutikian (2006) comunga do mesmo pensamento de
Hall (2005), quando afirma que identidade e diferença mantêm um elo
através do qual é possível estabelecer o que somos e o que não somos,
originando, portanto, uma relação de interdependência. Nessa mesma
esteira reflexiva, encontramos no estudo de Silva (2000) a afirmação de que
“[...] Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da
identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (p. 75).
E, para haver esta constatação é necessário o reconhecimento do outro
como ser diferente de nós; o binarismo entre nós/eles marca o início deste
reconhecimento. Por conseguinte, a identidade é relacional, apontada pela
diferença (WOODWARD, 2000). E desse ato em que o indivíduo compreende
a si mesmo e o seu vínculo com o mundo estabelecemos a existência de uma
identificação, em que o pertencimento atua de forma simbólica e serve para
classificar as relações e o mundo. Da mesma forma, “a identidade é marcada
por meio de símbolos” (WOODWARD, 2000, p. 9). O reconhecimento de si
como pertencente a um grupo implica no compartilhamento de costumes,
tradições, idiomas, de uma identidade comum.
Se pressupuser a ideia de homogeneidade social ou sociocultural,
aqueles que não atenderem às expectativas do considerado comum serão
classificados como o outro na “escala social”. Assim, “a identidade tem
relação direta com a alteridade, que significa distinção; o outro que é
distinto, diferente do mesmo” (FERNANDES, 2006, p. 3).
54
Tomaz Tadeu da Silva (2003), juntamente com Stuart Hall (2005) e
Jane Tutikian (2006) concorda não ser a identidade uma ideia fixa, mas que
está em constante mudança, relativamente influenciada pelas relações de
representações e de poder sociais; ou seja, não é algo natural, mas sim
condicionado ao ser para pertencer ao grupo social ao qual está embutido.
Temos então que identidade é algo móvel, fluido, e sofre alterações
através de um poder social e sua representatividade. Para desmembrar esses
termos, avançamos, em partes, nos estudos de Tutikian (2006) e Silva
(2003), a começar pelo fato de ser a identidade um termo fluido, móvel, não
fixo e nem permanente. Jane Tutikian explica que essa liquidez do termo
associa-se ao fato de que na identidade ocorre “[...] uma espécie de
transformação contínua em relação às formas de representação ou
interpelação desses mesmos sujeitos dentro dos sistemas culturais”
(TUTIKIAN, 2006, p. 12). E que mesmo as fronteiras, sejam elas geográficas,
históricas, ideológicas e culturais, sofrem uma variação e se redefinem
(TUTIKIAN, 2006). Para explicar a questão da representação, Tomaz Tadeu
da Silva afirma que:
[...] Certamente existem certas condições “sociais” que fazem com
que os grupos se vejam como tendo características em comum:
geografia, sexo, “raça”, sexualidade, nação. Mas mesmo essas
condições sociais têm de ser “representadas”, têm de ser produzidas por meio de alguma forma de representação. Aquilo que um grupo
tem em comum é resultado de um processo de criação de símbolos,
de imagens, de memórias, de narrativas, de mitos que “cimentam” a
unidade de um grupo, que definem a sua identidade. [...]
É na intersecção entre representação e identidade que podemos localizar o caráter ativo de ambas. A representação não é um campo
passivo de mero registro ou expressão de significados existentes. [...]
Por meio da representação travam-se batalhas decisivas de criação e
de imposição de significados particulares: esse é um campo
atravessado por relações de poder. A identidade é, pois, ativamente
produzida na e por meio da representação: é precisamente o poder que lhe confere seu caráter ativo, produtivo (SILVA, 2003, p. 47).
As leituras da realidade propostas por meio da representação
possibilita-nos compreender e interpretar dada realidade. E esse processo de
construção representacional fornece meios para se assimilar uma realidade
não familiar, tornando-a cabível e compartilhável entre componentes de um
55
grupo. E dessa interação notamos atitudes e sentidos que delineiam
comportamentos, conforme explana Jodelet:
[...] cada vez que exprimimos uma ideia, uma concepção, uma
adesão, dizemos algo de nós mesmos. Aderir a uma representação é
particular de um grupo, de uma ligação social, mas também expressa algo de sua identidade que pode ter um efeito sobre a
construção do objeto (2005, p. 315).
Através da representação politizada surgem as identidades
subordinadas, essas caracterizadas por estarem à margem, em determinado
regime dominante/totalitário, sendo sempre uma identidade marcada, “é a
identidade subordinada a que carrega a carga, o peso, da representação”
(SILVA, 2003, p. 49). Por exemplo,
[...] Numa sociedade em que o regime dominante de representação privilegia a cor branca, a desonestidade de uma pessoa branca é
apenas isso: a desonestidade de uma pessoa branca (“normal”). Em
troca, a desonestidade de uma pessoa negra só pode representar a
inclinação natural de todas as pessoas negras à desonestidade. [...]
(SILVA, 2003, p. 49).
Fruto de sua pesquisa de pós-doutoramento, Jane Tutikian apresenta
em seu livro Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência
das nações de Língua Portuguesa, de 2006, uma ampla revisão dos
pressupostos teóricos sobre identidade e nacionalidade aos pesquisadores de
literaturas de língua portuguesa, especificamente dos países africanos que
são ex-colônias de Portugal e que têm o português como idioma oficial.
Maria Luíza Remédios, logo na apresentação do livro, explicita os
temas que recebem destaque no estudo de Tutikian, levando em
consideração a teoria do multiculturalismo e da teoria da narrativa, e suas
repercussões na Literatura das ex-colônias portuguesas:
[...] A identidade de povos que, historicamente, fixam-se na década
de 80 do século XX, quando enfrentam desafios para
independentizar-se e para legitimar-se enquanto nação. Os
acontecimentos que marcam as últimas décadas do século XX, como
a grande movimentação histórica e cultural, a queda de barreiras
econômicas no Leste Europeu, a abertura da China ao capital estrangeiro, a configuração de uma Nova Ordem Mundial, as guerras
internas nas recém-libertadas ações africanas de língua portuguesa,
a independência do Timos Leste, também apontam para as
56
literaturas consideradas terceiro-mundistas que passam a interessar
aos estudiosos do primeiro mundo. Justamente essa literatura é o foco de estudo de Jane Tutikian que, ao constatar que uma época,
uma cultura, uma história chegam ao fim, outra surge e nela se deve
pensar a literatura e muito mais a identidade nacional que se
relaciona intimamente à língua e à tradição, sem deixar de lado o
mito, o folclore, e sistemas sócio-político-econômicos... (REMÉDIOS, 2006, p. 9-10).
Tutikian (2006), após explanar sobre o contexto econômico-social das
décadas que findaram o século XX, já explicitado por Maria Luíza Remédios,
expõe a necessidade de se pensar ainda mais a literatura, assim como
pensar sobre a questão da identidade dos países africanos dominados pelos
portugueses em uma nova era que se inicia; período, aliás, em que também
surge o interesse em estudar as literaturas produzidas pelo terceiro mundo.
E sobre as questões da nação e identidade em período de
descolonização, a autora indica quais são/foram os elementos fundamentais
para essa composição do nacionalismo e da identidade própria:
A identidade de uma nação passa a relacionar-se a uma série de
elementos que vão da língua à tradição, passando pelos mitos,
folclore, sistema de governo, sistema econômico, crença, arte, literatura etc., passado e presente, mesmo e outro, não sendo,
portanto, um fenômeno fixo e isolado [...] (TUTIKIAN, 2006, p. 11-12, grifos da autora).
Portanto, o conceito europeu de nação entra em crise, conforme
aponta a autora:
[...] O conceito universal de nação, exportado pela Europa, no século
XIX, como o espaço limitado por fronteiras naturais e tudo o que
havia dentro desse espaço: uma língua, uma crença, um sistema
político e econômico, e um certo sentido nacional, entra em crise no
século XX (TUTIKIAN, 2006, p. 12).
Com esse novo paradigma de nação que rompe com as fronteiras e
seus limites ocorre a assimilação do termo nação com a ideia de identidade
nacional, pois segundo Jane Tutikian:
[...] é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e
elas estão na cultura, donde se reforça a idéia de que a nação não é
uma entidade plenamente formada, mas sujeita a mecanismos de
57
inclusão e exclusão, o que confere, ainda, maior relevância à questão
da identidade nacional [...] (TUTIKIAN, 2006, p. 12).
E a recuperação da identidade passa pelo resgate de certos valores
nativos, formado em raízes específicas:
[...] seja para tentar resgatar a tradição, seja para tentar construir
uma nova tradição, buscando, através da derrubada ou do resgate de mitos, uma idéia mais próxima daquilo o que é o homem, a nação e a
identidade nacional ou cultural e política contemporaneamente, isto
é, diante das movimentações espácio-culturais da História recente
(TUTIKIAN, 2006, p. 16).
A luta pela libertação nacional e a implantação de uma consciência
nacional ocorreu após o surgimento de clandestinas organizações políticas,
Assim, não é demais afirmar-se que o nacionalismo está presente, e
tanto mais nítido pela condição histórica nas literaturas emergentes
a partir de suas premissas sócio-históricas, com uma reflexão própria, que busca soluções particulares, seja nas abordagens
estéticas, seja nas abordagens históricas, ao colocar-se contra a
política assimilacionista da metrópole, voltando-se para a
desalienação e a conscientização, através de seus temas de
resistência. Temas esses que, além de serem unicamente de reação ao imperialismo, voltam-se, também, para a terra, deslocando-se
para busca e preservação das fontes da cultura popular e raízes
nacionais autênticas (TUTIKIAN, 2006, p. 19).
Assim, a resistência desses agrupamentos políticos, tendo em vista a
libertação nacional, a conscientização e a desalienação frente ao sistema
imperial, são apresentados pela literatura, intentando a busca da formação
de uma nacionalidade e de uma cultura autêntica:
Ainda que entre a cultura que olha e a que é olhada se produza um
espelhamento, ainda que a binaridade de inferior/superior se
exponha, ainda assim, o processo todo não é, inicialmente, tão pacífico quanto se imagina. O outro ainda permanece como contrário.
O outro ainda é o outro, não importa o discurso geral de prosperidade
que traga consigo, nos períodos colonial e pós-colonial inicial, onde o sentimento nacional aguça a identidade utópica (TUTIKIAN, 2006, p.
14).
Pendendo o pensamento para o que a autora determina como o fator
de diferenciação entre as fronteiras, a cultura, averiguamos em Morin (s.d.)
que a cultura tem por característica moldar os sujeitos à medida que forma
58
os seres humanos como indivíduos e membros de uma espécie e de uma
sociedade. Conforme o autor: “estamos em uma sociedade e a sociedade está
em nós, pois desde o nosso nascimento a cultura se imprime em nós. Nós
somos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é em nós e depende
de nós.” (MORIN, s.d., p. 4).
Buscamos um aparato sobre a questão da cultura também no estudo
de Jeanne Gagnebin, onde encontramos que:
[...] Poderíamos dizer que ela [a cultura humana] se caracteriza pela
capacidade de entrar em comunicação com o outro e de proceder a
uma troca. O outro tem diversas formas: pode ser a terra-mãe, e aqui
cultura remete à agricultura, à troca entre trabalho humano e a
natureza; o outro também designa o outro homem, os deuses, a dimensão do sagrado: aqui a cultura se confunde com o culto e com
a troca no sacrifício. Enfim, o outro é o outro homem, na sua
alteridade radical de estrangeiro que chega de repente, cujo nome
não é nem dito nem conhecido, mas que deve ser acolhido, com
quem se pode estabelecer uma aliança através de presentes, embrião
de uma organização política mais ampla (GAGNEBIN, 2006, p. 21).
Gagnebin (2006), com essa proposta de cultura humana, possibilita-
nos o entendimento de que a cultura está vinculada às formas variadas de
relação com o outro. Assim, abordamos a questão do imperialismo, que
trazia consigo uma imposição cultural, social, religiosa, econômica, nos mais
diversos modos de viver dos povos colonizados, com a falsa ideologia de levar
a civilização a esses povos bárbaros ou primitivos, segundo o olhar europeu
(TUTIKIAN, 2006):
Ora, diante desse quadro de transformação e complexidade da ordem
mundial de que não passam incólumes as nações emergentes,
aquelas que são frutos do ciclo descolonizador do século XX, questões como nacionalismo, identidade e alteridade, terminam
ocupando espaço em textos nacionais dos mais diversos estatutos,
ficcionais ou não (TUTIKIAN, 2006, p. 17).
As primeiras manifestações artísticas e literárias em solo
moçambicano surgem em um período imperialista e, nesse contexto, as
narrativas simbolizaram uma arma poderosa de resistência frente ao
império, conforme Tutikian:
59
[...] O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas é fundamental na relação império versus cultura. As
narrativas de emancipação na Africana de língua portuguesa, por
exemplo, terminaram tornando-se elementos de forte mobilização de
povos e forte arma de resistência, além de uma tentativa de
fortalecimento ou de resgate de identidades locais, até porque a
literatura é fonte de cultura e cultura é fonte de identidade (2006, p. 15, grifo da autora).
Temos assim, conforme Tutikian (2006), que a literatura, como uma
expressão simbólica dessas ex-colônias, representa um foco de resistência ao
imperialismo, sendo um produto da cultura e capaz de reinventar a cultura e
a história criadas pelo processo de colonização.
Pela arte literária, passa a ocorrer uma catarse via narrativa
moçambicana, em relação à europeia, na qual entra em cena o negro
moçambicano, em que começa a surgir um espaço para os moçambicanos
desenvolverem suas culturas e tradições por meio do campo literário.
Surgem:
[...] a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora
cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades
camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos
refugiados políticos e econômicos. Quer dizer, cada vez mais, as
culturas nacionais estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas (TUTIKIAN, 2006, p. 15).
Uma literatura firmada nas narrativas orais, vinculada aos povos
locais e seus contextos, com uma perspectiva diaspórica, advinda de
relações culturais entre o colonizador e o colonizado, com um apagamento
identitário, afirma a manutenção de sua memória como uma forma de
resistência ao sistema colonialista.
60
3 VOZES (QUASE) SILENCIADAS
De repente fiquei muda, varreu-se-me todo português.
E, quando tencionei falar na minha língua natal,
enfrentei o mesmo vazio. Inesperadamente, não
possuía nenhum idioma. Dispunha apenas de vozes,
indistintos ecos.
(Mia Couto)
O romance Mulheres de cinzas recupera o período de final do século
XIX, época em que Moçambique enfrentava batalhas internas, resultante dos
conflitos entre as diferentes tribos africanas, além das lutas entre o império
Português e o império de Gaza: o primeiro para assegurar a posse da
colônia, o segundo para reconquistar esse território, as terras do sul de
Moçambique. A narrativa traz com toda maestria de Mia Couto a confluência
entre a história oficial e a ficção, em que o trânsito ocorre uma vez que o
autor parte de fatos, locais e personagens já conhecidos pelo discurso
histórico, transformando-os ou agregando-os com o discurso literário,
possibilitando, através desse, novas perspectivas:
Ninguém terá memória de António Enes. E o valente Mousinho de
Albuquerque será um descolorido vencido. Sobreviverá o Estado de
Gaza com a sua gloriosa história. Sobreviverá Gungunhane, o único
grande herói. Esse negro brilhará como já brilharam um César, um
Alexandre Magno, um Napoleão, um Afonso de Albuquerque. E a estátua do rei africano figurará um dia numa praça de Chaimite.
Gerações de cafres adorarão o imperador africano como eterna prova
do heroísmo e do valor da sua raça (p. 183-184).
Em carta ao Conselheiro José d’Almeida, Germano de Melo faz menção
a conhecidas personagens da história oficial, como Napoleão, César e
61
Alexandre Magno, colocando Ngungunyane ao mesmo nível de figuras
sacralizadas pelo discurso histórico.
A narrativa coutiana apresenta Imani, moçambicana de quinze anos,
educada segundo os padrões de Portugal; e através de sua lembrança o
romance histórico retorna ao século XIX, rememorando o período da
colonização de Moçambique pela Coroa portuguesa e as outras guerras
internas em busca do domínio das terras moçambicanas: “Os imperadores
têm fome de terra e os seus soldados são bocas devorando nações [...] A
nossa terra estava a ser abocanhada” (p. 15). Além de Imani, a narrativa é
composta pelas cartas de um soldado português condenado ao degredo na
África, Germano de Melo, caracterizando-se como relatórios de viagem, em
que o sargento descreve as dificuldades encontradas em solo africano, como
expõe em pormenores sua estadia em Nkokolani, essas cartas são
endereçadas ao seu superior e confidente, Conselheiro José d’Almeida, sendo
através dessas que se mantem o vínculo do sargento com sua terra natal,
conforme expresso em sua carta de 5 de junho de 1895:
À força de aqui estar, só e abandonado, sinto que me vou
convertendo num outro Sardinha: mais casado com esta gente, mais
próximo destes negros que dos meus próprios compatriotas. Vossa Excelência é o meu único amigo, a única ponte que me liga a
Portugal (p. 182).
Imani e Germano de Melo são as vozes narrativas que irrompem o
silêncio desse período da história de Moçambique, recapturando fatos pelo
olhar do marginalizado e esquecido pela história oficial – o africano – e
apresentando um novo viés pela ótica do branco colonizador, o da simpatia e
empatia pelo povo nativo:
Descubro, enfim, meu caro Conselheiro, nestes tristes sertões uma humanidade que em mim mesmo desconhecia. Esta gente,
aparentemente tão distante, tem-me dado lições que não aprenderia
em nenhum outro lugar (p. 187).
Na voz do português estão a saudade, a solidão e a distância de sua
terra natal, conforme sua confissão ao Conselheiro José d’Almeida, em que
pronuncia sua tristeza e solidão em solo africano e, mesmo com a aparente
62
diferença entre os nativos e os colonizadores, sente por eles apreço e respeito
pelo que tem aprendido com os moçambicanos. Na voz de Imani está a
lembrança da África, sua história, seus mitos e sua cultura e através dela o
caráter denunciativo de abuso aos negros surge, revelando sua função de
intermediadora entre as nações:
E dei comigo a pensar: nós, os negros, sabemos mexer numa pá
incomparavelmente melhor que outra qualquer raça. Nascemos com
essa habilidade, a mesma que nos faz dançar quando precisamos de
rir, rezar ou chorar. Talvez porque há séculos sejamos obrigados a enterrar, nós mesmos, os nossos mortos, que são mais que as
estrelas. Outra razão haveria: os europeus teriam certamente, lá na
terra deles, negros escravos que fariam esse trabalho [...] (p. 73).
Ainda que não conhecesse outras que terras que não as suas, Imani
percebe além das fronteiras a falta de habilidade de portugueses com os
serviços braçais e manuais, ao mesmo tempo em que nota serem eles – os
nativos – capazes de efetuar com destreza essas tarefas, da mesma forma
que aprenderam a conviver com as muitas mortes causadas pelas guerras e
seguir a diante.
O caráter denunciativo da narrativa sobre silenciamento forçado aos
negros e moçambicanos aparece explicitamente em dois momentos, um na
sexta carta do sargento Germano endereçada ao Conselheiro José d’Almeida,
quando ele relembra a execução de negros que havia participado, em
Lourenço Marques, como integrante do esquadrão de fuzilamento:
[...] Na mira das nossas espingardas estava um grupo de pretos
revoltosos que havia sido capturado no dia anterior. Como era de
costume, o pelotão era composto apenas de portugueses. À minha frente alinhavam-se os condenados: todos adolescentes,
quase crianças. Nenhum deles tinha sido julgado, ninguém os
escutara em português ou na sua língua nativa. Os que iam morrer
não tinham voz. Naquele momento, não sei que transtorno, quiçá
motivado pelo medo ou por má consciência, me fez pensar que aqueles que iam morrer já traziam suficiente culpa de nascença: a
raça que tinham, os deuses que não tinham. [...]
Não deixo de pensar nem por um instante que aqueles jovens pretos,
tão distantes de cor e feição, se pareciam, afinal, comigo. Como eles,
também eu me revoltara. Como eles, também eu ousara apontar as
armas contra os poderosos. Talvez tenha sido por isso que a espingarda se encravou e o projétil explodiu dentro da câmara. Essa
bala continua deflagrando eternamente dentro de mim. Se fosse ave,
já há muito teria soçobrado, de tanto grão na asa (p. 150-151).
63
Nessa carta enviada ao seu conselheiro, Germano de Melo apresenta
certa preocupação em relação a seus atos cometidos contra garotos negros,
muitos deles crianças ainda, conforme se observa nas próprias palavras do
sargento. Revela um exame de autoconsciência e chega a conclusão de que
cometera o mesmo erro que cometeram com ele quando do seu julgamento.
Aos negros não é dada a oportunidade de defesa, nem em idioma português
e sequer em sua língua nativa, demonstrando a falta de cuidado e de
preocupação para com os negros.
Outro momento em que se revela o apagamento dos negros
moçambicanos ocorre na reflexão de Imani sobre seu irmão Mwanatu, o qual
pouco fala em toda sua apresentação como sentinela do aquartelamento
militar português em Nkokolani, recobrando-a quando abandona sua farda e
“volta” a ser negro, ou seja, retorna às suas raízes:
Depois da morte da nossa mãe, Mwanatu voltou a instalar-se em
nossa casa. O pai recebeu-o como se ele nunca tivesse saído. Sem palavra e sem nenhuma atenção. Aquele que regressava era um
estranho, um mero visitante a quem empresta uma esteira. Mwanatu
aparentava estar menos lerdo, mas ainda a contas consigo mesmo.
Sentado na sombra do quintal, reganhava raízes. Contemplávamo-lo
a medo. Porque o seu braço ganhara a forma da espingarda que,
durante meses, ele havia empunhado dia e noite (p. 292).
A epígrafe que abre esse capítulo refere-se ao momento em que Imani
aguardava a chegada de Germano de Melo, em Nkokolani, sabendo de suas
obrigações para com o militar. Ao servir de intérprete, esperava-o a beira do
rio Inharrime, caminho por onde chegara acompanhado de outro português,
Mariano Fragata: “um civil muito moreno e distinto” (p. 63), segundo a
caracterização de Imani. A ausência de fala descrita pela jovem
moçambicana ocorre no momento em que Germano de Melo apresenta Imani
a Fragata. Germano, que já ouvira fala corretíssima de Imani, pede para que
ela fale um pouco para que Fragata a escute. A garota sente como se tivesse
perdido a habilidade de falar, tanto no idioma português, como no txitxope,
sua língua nativa. O sargento entende como um ato de timidez, mas Imani
estava era possuída por diversas vozes, que ecoavam de seu interior, sem
saber a qual seguir, qual trazer a público. Entendemos esse momento como
uma consequência do ambiente em que Imani vivia, em que existiam
64
diversos idiomas em contato e/ou conflito, por exemplo, o português, o
txitxope, o xizulu, o shizulu entre outros dialetos nativos. Também sinaliza o
conflito identitário de Imani, pois ela demonstra não saber a que nação – se
moçambicana ou portuguesa – pertence, sendo Imani conhecedora do
idioma, religião e cultura de ambos os países. Por ser esse um conflito da
personagem principal do romance, podemos relacionar essa inquietação
identitária como algo existencial aos colonizados de Moçambique no século
XIX, uma vez que Imani representa essa nação e seu povo.
Ao conduzir a narrativa pela lembrança de uma jovem moçambicana,
Mia Couto, em Mulheres de cinzas, dá voz às mulheres e mesmo os não-
ditos, os silenciamentos, têm um efeito ainda maior, pois Imani mais pensa
do que fala e manifesta-se mais por meio de seu pensamento e reflexões
silenciosas do que externaliza o que sente, o que pensa e como vê as
situações pelas quais sua aldeia e, por extensão, seu país está a passar,
nesse caso, afirmamos que o silêncio também é um ato comunicativo. A
exemplo do silenciamento que “comunica”, temos o momento em que Imani
usa o silêncio como resposta a uma ordem de Katini que lhe disse para ser
ao sargento “o que todas as mulheres são neste mundo” (p. 97):
Em silêncio, finquei os pés na areia como se estancasse um rio. E
era o choro que eu estancava. Melhor teria sido deixar o pranto
acontecer. Dizia a nossa mãe que, quando choramos, a alma segue o
exemplo da Terra, sob a chuva: torna-se barro. E o barro dá-nos
casa, o barro é quem molda a nossa mão (p. 97).
Imani que servia de intérprete entre o sargento e os demais
moçambicanos estava encarregada de ensinar ao Germano a língua local,
devido ordens do império português, e agora haveria de exercer o papel de
mulher ao recém-chegado português. Imani insatisfeita com a determinação
do pai, mas para não questioná-lo, silencia-se e trava a vontade de chorar,
pois também seria um ato de reivindicação sobre a ordem.
Vemos na narrativa que o silêncio ganha um outro significado em um
diálogo entre Imani e sua mãe: “São assim os homens, explicou: têm medo
das mulheres quando elas falam e mais medo ainda quando ficam caladas”
(p. 28). O silenciamento, nesse caso, nos dá margem para refletir sobre a
65
relação entre o homem e a mulher moçambicanos. Podemos aferir que a
mulher é vista como autoridade e deve ser respeitada, ao demonstrar ser
muito mais perigoso o que a mulher pensa em relação ao que ela externaliza,
pois em seu silêncio a mulher revela muito mais sua sabedoria, cabendo o
pensamento apenas a essa. Como podemos observar em um diálogo entre
Imani e Germano, em que a garota o corrige quanto à pronúncia do nome do
imperador africano:
[...] Olha bem para ela, Imani, porque esta arma é que vai vencer o
Gungunhane.
- Desculpe. Mas é Ngungunyane que se diz, senhor sargento. Se não conseguir dizer pode sempre chamar-lhe Mudungazi. Mas é importante chamarmos os inimigos pelos nomes certos... - Ai sim? Pois então escuta: esta arma é uma Kropatcheck. Ora diz lá Kropatcheck, a ver se consegues... A diferença é que eu não precisaria nunca de dizer o nome de uma
espingarda. E Germano teria que pronunciar todos os dias o nome
do imperador africano. Era o que devia ter dito. Mas guardei-me, submissa (p. 158-159, grifos do autor).
A sabedoria da moça vai além do que lhe ensinaram nas missões: está
manifesta em seu pensamento, sua lembrança. Lembramos que o período
em que se passa a reflexão de Imani é o de Moçambique ainda colônia de
Portugal, século XIX, momento em que depender de uma mulher para
atividades além das tarefas do lar é incomum, quase inaceitável ser ela a
responsável pelo diálogo entre duas culturas distintas; também, tal postura
leva a outra pista que indica ser a mulher detentora de uma autoridade e
sabedoria que lhe permite participar da vida em sociedade.
O silenciamento do homem frente à mulher é percebido, por exemplo,
quando Imani vai em busca de seu pai, após uma briga entre Chikazi e
Katini, aferindo outra vez uma capacidade superior da mulher nessa relação
quando Imani descreve que seu pai sem palavras para concluir uma frase
em que mencionava sua esposa:
As sombras eram já extensas quando parti em busca do meu pai,
sobraçando um cesto onde gorgolejava uma garrafa de vinho, em cujo rótulo se podia ler a letras gordas: Vinho para o preto. A lua
cheia acendia a dormente paisagem. Os meus pés decalcaram na
areia as recentes pegadas do velho Katini. Quem mais, na aldeia,
usava botas? Aos poucos me surpreendi como ele se tinha afastado
66
para tão longe. O meu chamamento, trémulo, esmorecia sem eco
nem resposta: - Pai! Pai?!
Cheguei, enfim, a um campo a perder de vista. Parecia uma terra de
lavoura. A confirmar a vocação da paisagem, lá estava o meu pai
ocupado a esgravatar a terra. Os homens VaChopi são os únicos que
lavram a terra, lado a lado com as suas mulheres. Meu pai, na
verdade, lavrava mais era no alambique. Quando cheguei perto, reparei: aquilo que antes parecia uma enxada
era, afinal, um pau afiado na ponta. Ele não sachava, apenas ciscava
no solo como se desenhasse sobre uma infinita tela. - Estou a escrever – disse ele, ao sentir-me perto.
- A escrever?
- Não é só você que escreve... - E o que tanto escreve, pai? - São os nomes de todos os que morreram na guerra.
[...] - Essa sua mãe...
Não completou a frase. Ficou cego para palavras. Essa cegueira
atacava-o sempre que queria falar da mulher. Mastigou o silêncio
como se fosse um fruto amargo. E assim se deixou ficar, imóvel e
vencido (p. 40-41).
Pelos pormenores concedidos, voltamo-nos ao ambiente que circunda
Imani, criando imaginariamente o percurso que a garota faz até chegar ao
local onde se encontra Katini. A impotência do homem frente à mulher fica
clara quando Imani relata que seu pai não encontra palavras para seguir a
frase que falava da mulher, fato recorrente sempre que tencionava falar
sobre ela; a falta de palavras era para Katini como “um fruto amargo” (p. 41)
que mastigava e deixava-se ser vencido pelo silêncio. Esse exemplo nos traz
ainda outros caminhos de interpretação, um deles se dá ao referir à mulher
o domínio da escrita, com a frase: “- Não é só você que escreve...” (p. 41),
quando Katini quer mostrar à filha que também sabe se expressar através da
escrita. Atitude que se confirma quando Chikazi esclarece a Imani que Katini
sente ciúmes das duas:
- Agora, vá buscar o seu pai. Ele sente ciúmes de nós. - Ciúmes?
- De mim, por não lhe dar toda a atenção; de si, porque foi educada pelos padres. Você pertence a um mundo onde ele nunca poderá entrar (p. 27, grifos do autor).
A incapacidade de pertencer ao mundo dos portugueses faz com que
Katini encaminhe dois de seus filhos – Imani e Mwanatu – para receber a
educação dos portugueses através das Missões na igreja, que se fazia em
67
Moçambique, educação essa que ele não tivera; porém, Katini ainda não
desistira de conhecer o idioma do colonizador, conforme relembra Imani o
dia que encontra seu pai a estudar uma “Cartilha para aprender a ler”:
Era quase meio-dia e o pai estava sentado com um livro aberto sobre
os joelhos. Na capa podia-se ler: Cartilha para Aprender a Ler. Havia
muito que eu tinha encontrado o manual entre as velharias deixadas
na igreja. Na altura, fiz questão de lho oferecer. Nunca nenhuma outra dádiva o emocionara tanto. Não havia dia que não passasse as
pontas dos dedos pelas páginas como se as tivesse acabado de criar. Em vez de palavras, disse ele, escuto música. E tamborilava com os
dedos sobre as páginas como se fossem teclas de uma marimba. - Pai, não está com medo dos VaNguni?
- Precisamos amedrontar quem nos quer causar medo. Essa é a razão por que ando a aprender com este livro.
Fechou o caderno com mil cuidados e, com igual esmero, guardou-o
numa sacola de pele. Depois suspirou profundamente (p. 90-91, grifos do autor).
Katini, um verdadeiro adorador da cultura portuguesa, achou na
cartilha uma forma de assemelhar-se aos colonizadores e aprender o idioma
português seria para ele uma das suas armas de combate no enfrentamento
com os invasores VaNguni. O culto à língua era tamanho que Katini tinha
por rotina passar os dedos pelas linhas do manual, que para Imani não
passava de uma velharia; guardava a cartilha com muito cuidado em uma
sacola de pele, induzindo-nos a pensar na importância que esse manual
tinha para Katini Nsambe. Outra pista de que Katini busca parecer-se com o
colonizador está no uso de botas, conforme mostrado no trecho anterior, em
que Imani identifica seu pai como o único a usar botas em toda a aldeia: “Os
meus pés decalcaram na areia as recentes pegadas do velho Katini. Quem
mais, na aldeia, usava botas?” (p. 40).
Anunciando que o ensino da língua portuguesa era restrito a apenas
alguns nativos, promovendo a não interação entre colonizador e colonizado,
mantendo esses dois polos distantes, a narrativa traz a questão do culto à
língua do colonizador, quando Imani, seu pai e sua mãe, visitam tia Rosi,
irmã de Chikazi. Tia Rosi que tem curiosidade e desejo de aprender a ler,
pede a Katini que a ensine:
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[...] A tia tinha estendido no chão os papéis que havia recebido do
meu pai. Assim que o viu assomar, Rosi perguntou-lhe: - Explique como é que faz?
- Faz o quê?
- Como é que uma pessoa consegue ler? Eu queria tanto saber... - Isso demora a aprender, Rosi. - Eu vi como você faz. Você passa o dedo pelas linhas e vai mexendo os lábios. Já fiz o mesmo e não escuto nada. Explique-me qual é o segredo. Eu aprendo rápido.
O pai revirou os olhos e passeou as mãos sobre as folhas que jaziam na poeira. - Para ler esses papéis, Rosi, você precisa ficar parada. Completamente parada, os olhos, o corpo, a alma. Fica assim um tempo, como um caçador na emboscada.
Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso daquilo
que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela. E
iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas dentro das letras estão vozes. Cada página é uma caixa infinita de
vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido. E foi assim que
falou Katini Nsambe.
Rosi ajoelhou-se perante os papéis e permaneceu muito parada, à espera que as letras lhe falassem (p. 229, grifos do autor).
A explicação de Imani demonstra a sutileza de Katini ao perceber a
escrita portuguesa como a voz de várias vozes, essas que seriam ouvidas por
ele ou quem dedicasse sua atenção a isso. A sabedoria de Katini é expressa
por Imani ao inferir que seu pai havia notado que quando lemos, estamos na
verdade ouvindo esse outro: “Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido”
(p. 229). E, ao conhecer o outro sabemos de suas intenções, talvez, essa seja
a razão pelo ensino da língua portuguesa ser restrita à apenas alguns
moçambicanos – para conseguir manter o controle sobre seus colonizados.
O desconforto causado pelo domínio da língua portuguesa pelo povo
nativo é visto na própria narrativa, na décima primeira carta de Germano,
em que o sargento incomoda-se ao ver Imani lendo e escrevendo como se
fosse portuguesa:
[...] A moça já não insiste com as aulas. De outras funções agora se ocupa: arruma, limpa, lava a roupa. Não devia, no entanto, ter
permitido que me arrumasse o quarto. É arriscado, a rapariga sabe
ler, pode-me ir aos papéis. Mas o mal, se é que existe, já está feito. E
não há dia em que Imani não me peça emprestados papéis, um
tinteiro e uma pena para escrever. Sentada na cozinha, rabisca não sei que manuscritos. Confesso-lhe que aquele é o único momento em
que não me dá prazer a sua presença. Acabei oferecendo-lhe uma
pena, um tinteiro e uma resma de folhas com a condição de que
fosse escrever longe, onde eu não a visse. Não sei por que razão me
causa impressão ver um preto escrever. Apraz-me que falem a nossa
69
língua com propriedade e sotaque. Contudo, sinto como uma invasão
o domínio que eles possam ter da escrita (p. 269).
O perigo está para Germano no fato de a garota ter conhecimento e
domínio da língua do colonizador, o que a aproxima dos portugueses,
quebrando a fronteira da comunicação, diálogo e culturas distintas. Dentre
os diversos conflitos abordados na narrativa Mulheres de cinzas – a saber:
pelo território e poder – destacam-se também conflitos como o de identidade,
místico e cultural, ocasionando uma (trans)formação na identidade desses
colonizados, os quais passaram a se assemelhar ao português colonizador,
através de seus hábitos, idioma, religião e cultura. E, desses enfrentamentos
entre impérios, surge o contato que dá origem ao afeto e aparece como uma
possibilidade de trégua nas guerras que devastavam Moçambique e sua
população.
3.1 As guerras políticas e pessoais
[...] fosse nos palcos de dança, fosse nos verdadeiros campos de batalha não se encontra um filho que seja
apenas nosso. Todos os que tombaram são nossos
filhos. As mães da minha terra trazem o luto de todas
as guerras.
(Mia Couto)
Moçambique, que durante muito tempo foi colônia de Portugal, tem
sua história marcada por diversas batalhas entre dois impérios: o africano,
representado pela grande maioria das tribos que se aliaram a Ngungunyane;
e o português, que tem além de seus poucos militares, outras poucas tribos
que apoiaram a Coroa portuguesa em solo africano.
A luta pelo poder, pelo espaço e pelo respeito faz com que surjam
diversas disputas e várias frentes de combate, resultando em várias batalhas
e milhões de mortes:
A nossa terra, porém, era disputada por dois pretensos proprietários:
os VaNguni e os portugueses. Era por isso que se odiavam tanto e
estavam em guerra: por serem tão parecidos nas suas intenções. O
exército dos VaNguni era bem mais numeroso e poderoso. E mais
fortes eram os seus espíritos, que mandavam nos dois lados da fronteira que rasgou a nossa terra ao meio. De um lado, o Império de
70
Gaza, dominado pelo chefe dos VaNguni, o imperador Ngungunyane.
De outro lado, as Terras da Coroa, onde governava um monarca que nenhum africano haveria nunca de conhecer: Dom Carlos I, o rei de
Portugal (p. 17).
Nesse trecho de Mulheres de cinzas averiguamos o retorno a um
passado histórico que perpassa as lembranças de Imani. Retrata o período
das guerras entre os portugueses e tribos africanas, tempo esse marcado por
sangrentas batalhas em busca do domínio das terras. Ainda podemos notar
as crenças culturais e religiosas apresentadas na fala da personagem,
caracterizando os VaNguni como mais poderosos devido as suas crenças; da
mesma forma, chama-nos a atenção o uso de recursos metafóricos para
indicar a divisão das fronteiras, essas que independente de quem era o
imperador, eram dominadas pelos mesmos espíritos que fortaleciam dos
VaNguni.
Imani conta que sua tribo VaChopi surgiu pela necessidade de manter
sua tradição, idioma, cultura e religião frente aos ataques sofridos pela tribo
VaNguni e por seu líder, Ngungunyane. Enquanto que as demais tribos
aliaram-se aos costumes do chefe africano:
Os outros povos, nossos vizinhos, moldaram-se à língua e aos
costumes dos invasores negros, esses que chegavam do sul. Nós, os
VaChopi, somos dos poucos que habitam as Terras da Coroa e que
se aliaram aos portugueses no conflito contra o Império de Gaza.
Somos poucos, murados pelo orgulho e cercados pelos kokholos, essas muralhas de madeiras que erguemos em redor das nossas
aldeias. Por razão desses abrigos, nosso lugar tornara-se tão
pequeno que até as pedras tinham nome. Em Nkokolani bebíamos
todos do mesmo poço, uma única gota de veneno bastaria para
matar a aldeia inteira (p. 17-18).
Este excerto demostra o conflito instaurado entre as tribos africanas
ao colonialismo português, criando uma diferenciação entre os próprios
moçambicanos; também, mostra uma aproximação da tribo VaChopi com os
portugueses e um distanciamento em relação às demais tribos, nesse caso
chamados de invasores, os reais nativos daquele solo. Imani tem consciência
das divergências, o que se reafirma com a designação dos nomes “vizinhos”,
remetendo não somente aos pertencentes do mesmo lugar, mas àqueles que
se aliaram ao império português; e às outras tribos de “invasores”, por serem
71
aliados ao líder africano, e em contravenção pela divisão instaurada em
Moçambique, repercutindo no povo moçambicano.
A narrativa aborda várias etnias existentes em África (leia-se
Moçambique, neste caso), das quais algumas se sobressaem, como por
exemplo, os VaChopi, tribo de onde vem Imani:
Meu avô tinha a minha idade quando as nossas terras foram pela
primeira vez invadidas. Não entendíamos por que motivo essa gente
nos tomava por bichos e apreciava mais o seus bois do que os povos
que submetiam. Não entendíamos por que razão roubavam o nosso gado, matavam a nossa gente e violavam as nossas mulheres.
Chamava-nos de tinxolo, as “cabeças”. Era assim que nos olhavam:
contados como escravos, descontados como bichos. A ferro e fogo,
fundaram um império que passou de avô para filho, de filho para
neto. E era agora este neto, o Ngungunyane, que nos voltava a punir.
A persistência da agressão criou mudanças na nossa gente. O facto é que sempre vivêramos dispersos e entretidos em pequenos conflitos
de vizinhança. Mas aquela ameaça uniu-nos numa única entidade.
Tornámo-nos VaChopi, os “do arco e da flecha”. Resistimos à invasão
dos VaNguni, mantivemos a nossa língua, a nossa cultura, os nossos
deuses. Pagámos caro essa teimosia. O preço para Tsangatelo foi perder-se da sua própria vida (p. 113).
Historicamente, os Chopes foram uma das etnias africanas que mais
resistiram ao domínio de Ngungunyane, que durante três gerações liderou o
império africano, e também o povo mais massacrado por esse imperador. Da
mesma forma, a tribo surge no romance aliada à coroa portuguesa, porém
não integralmente, conforme apresentado na fala de Musisi, tio de Imani,
quando decide procurar por Binguane, líder de outra tribo, frente à
desesperança de que seria protegido pelos portugueses:
[...] E sabem o que é que vou fazer? Vou pedir ajuda a um dos nossos. Amanhã vou falar com Binguane. - Binguane é um muchope? – perguntou o meu pai.
- Pelo menos ficamos entre nós, negros. Binguane habitava na vizinhança de Nkokolani. Era um temido chefe
militar que se opunha ferozmente às hostes VaNguni. Eu já o tinha
visto. Era um homem alto e possante, apesar da idade. Tal como eu, ele era um mestiço de Makwakwa e VaChopi (p. 164, grifos do autor).
Através da rememoração de Imani, o leitor toma conhecimento das
partes envolvidas na ‘guerra’, mimetizada pelo microcosmo da tribo de
Imani, e por extensão que seu país está a passar. Esse era um território de
muitas disputas e, por consequência, Moçambique foi sede de diversas
72
guerras pelo domínio do território. Conforme, podemos notar através da
epígrafe que abre essa subseção, em uma reflexão de Imani quando percebe
no abraço de sua mãe o peso da melancolia carregada pelas mães que
perderam seus filhos nas guerras.
O enfrentamento entre as forças combatentes aparece logo na primeira
carta de Germano, endereçada ao conselheiro José d’Almeida, configurando-
se como sendo o primeiro relatório do sargento, na qual prevê a impotência
de Portugal frente aos ataques das tribos africanas. Ao chegar em Lourenço
Marques, o sargento português hospeda-se na estalagem de Dona Bianca,
italiana que residia há bom tempo ali, e vivencia um verdadeiro massacre
provocado por landins, grupo de rebeldes contra a ocupação portuguesa:
Seja qual for a verdadeira explicação, o facto é que estreei da pior maneira a minha presença em África. Naquele terraço da estalagem,
a italiana fez-me ver em minutos aquilo de que eu já suspeitava: os
nossos domínios, que tão pomposamente chamamos de “Terras da
Coroa”, encontram-se votados ao desgoverno e à imoralidade. Na
maior parte desses territórios nunca nos fizemos realmente
presentes durante estes séculos. E nas terras onde marcámos presença foi ainda mais grave, pois quase sempre nos fizemos
representar por degredados e criminosos. Não existe, entre os nossos
oficiais, nenhuma crença de que sejamos capazes de derrotar
Gungunhane e o seu Estado de Gaza (p. 33-34).
Já em sua primeira carta-relatório ao Conselheiro José d’Almeida,
Germano de Melo deixa transparecer a incredulidade de domínio sob as
terras africanas colonizadas por Portugal, aqui representado por
Moçambique, afirmando que tais “Terras da Coroa” estavam fadadas ao
“desgoverno e à imoralidade”, salientando que os portugueses que
colonizavam as terras eram “degredados e criminosos”, fato esse que
agravava ainda mais o ato de colonização, pois esses deveriam representar
os interesses da Colônia. Germano revela o ruir do domínio que Portugal tem
sobre aquelas terras. De fato, a ocupação portuguesa em Moçambique era
tão frágil que o sargento português deixa clara a desesperança em dominar o
Estado de Gaza e vencer Ngungunyane, e em carta ao Conselheiro relata um
dos ataques dos Vátuas a Nkokolani:
73
O sentimento de culpa de que padeço não tem forma de ser descrito,
Excelência. Ontem houve um ataque a Nkokolani perpetrado pelos abomináveis Vátuas (não sei por que teimo em chama-los assim,
porque eles a si mesmo se designam como VaNgunis). Estes
facínoras mataram, queimaram, violaram. Antes do ataque mandei lá
Mwanatu, para investigar o motivo que levava os locais a
construírem aquelas enormes trincheiras. Não eram abrigos de combate. Eram esconderijos onde esperavam tornar-se invisíveis. O
estratagema não resultou. Os desgraçados foram surpreendidos e
não tiveram defesa contra a cobarde violência dos soldados de
Gungunhane.
Depois da invasão visitei a aldeia e os campos agrícolas mas não tive
coragem senão de olhar, num breve relance, a extensão desolada dessa planície coberta por cinzas que, de quando em quando,
esvoaçavam sem direção (p. 232-233).
O grupo de combatentes do Estado de Gaza era, notavelmente,
superior em quantidade de recrutas e a vitória para esse era certa, pois além
de numerosos, tem-se o registro de que não havia uma representação
promissora de Portugal nessas terras colonizadas, tornando-os vítimas de
sua ocupação. Por fim, a guerra não era apenas entre esses dois polos em
combate, pois havia tantas forças, quantos interesses e várias frentes de
lutas, que falar em uma única guerra torna-se impossível. Germano de Melo,
em seu desabafo, revela sentir-se culpado pela falta de posicionamento
frente ao ataque de Vátuas e por não garantir a segurança de seus aliados, e
revela todas as violências cometidas pelo grupo.
A relação conflituosa entre Portugal e Moçambique também se refletia
na vida dos moçambicanos tanto quanto aos portugueses que residiam no
país africano. De um lado o país colonizado, Moçambique, representado na
narrativa por Imani, de outro o país colonizador, Portugal, tendo como
representante o sargento Germano de Melo. As diferenças partiam desde o
idioma falado, cultura, religião, sem deixar de mencionar a cor da pele, que
em vários momentos fica evidente através dos conflitos entre moçambicanos
e portugueses. A questão pode ser observada no relato da chegada do
primeiro europeu em terras moçambicanas, contada por um mensageiro
enviado por Tsangatelo, avô de Imani, para entregar uma carta de para sua
neta. Na ocasião, Imani pede ao mensageiro porque seu avô quis sair das
terras ao sul, no litoral:
74
Tudo começou numa manhã solarenga da estação das chuvas do ano
de 1862. Até então nunca Tsangatelo havia visto um branco. O primeiro europeu surgiu-lhe montado num cavalo, que era um
animal que ele desconhecia. O cavalo era branco, bem mais pálido
que o montador. O cavalo e o cavaleiro compunham de tal modo uma
inteira silhueta que o avô pensou que se tratava de uma única
criatura. E foi com horror que se apercebeu da intenção do aparecido de se separar da sua metade inferior. O cavaleiro desmontou e
Tsangatelo Nsambe escutou um rasgar de carne e um despedaçar de
ossos. Fechou os olhos para se salvar da visão do sangue espichando
como de um pescoço de galinha. [...]
[...] em poucos segundos, um mar de gente juntou-se em redor do
aparecido. Com receio de ser engolido pela multidão, o estrangeiro voltou a empoleirar-se na sela. Queria ser visto num plano elevado,
como se olham os deuses: em contraluz, em recorte do céu. Do topo
do seu cavalo, o português condescendeu um olhar altivo à sua volta
como se pensasse: tanta gente e nenhuma pessoa!
Junto do cavaleiro alinharam-se mais dois portugueses, igualmente a cavalo. Os animais eram bem diversos, de distintos tamanhos e
cores. Mas os brancos eram iguais: rosto encoberto pelos chapéus de
abas largas, bigodes longos e revirados e os olhos inquietos e
esquivos [...] (p. 242-243).
Pela descrição da personagem, o primeiro português que surge em
Moçambique é visto pelo avô de Imani. Não bastasse o estranhamento devido
à diferença de cor de pele, Tsangatelo vê também pela primeira vez o cavalo,
e cavaleiro e animal são, para ele, uma única criatura e o ato de descer do
cavalo torna-se um horror ao moçambicano: “O cavaleiro desmontou e
Tsangatelo Nsambe escutou um rasgar de carne e um despedaçar de ossos.
Fechou os olhos para se salvar da visão do sangue espichando como de um
pescoço de galinha”, fazendo referência ao seu contexto da época. Logo,
surgem outros moçambicanos para ver aquelas criaturas desconhecidas. E é
quando surgem os outros dois portugueses que percebemos a criação de
uma imagem simbólica de portugueses: “Os animais eram bem diversos, de
distintos tamanhos e cores. Mas os brancos eram iguais: rosto encoberto
pelos chapéus de abas largas, bigodes longos e revirados e os olhos inquietos
e esquivos”, alimentando a concepção que tinham os moçambicanos frente
aos portugueses, que todos são brancos usavam chapéus de abas largas que
encobriam seus rostos, além de terem longos bigodes revirados e os olhos
inquietos e esquivos. Já pelo fato de querer o português ser visto “num plano
elevado, como se olham os deuses: em contraluz, em recorte do céu”, como
se fosse uma pintura, demonstra a ideia que tinham os portugueses de
serem superiores em relação aos negros. O trecho “Do topo do seu cavalo, o
75
português condescendeu um olhar altivo à sua volta como se pensasse:
tanta gente e nenhuma pessoa!” fortalece essa premissa.
O painel histórico em que se sucede a narrativa Mulheres de cinzas
está intimamente ligado ao contexto histórico “oficial”, citando lugares nos
quais ocorreram diversos dos fatos registrados tanto na história de
Moçambique quanto de Portugal, como é o caso de Lourenço Marques, hoje
Maputo, capital de Moçambique; e na nomeação das personagens, muitas
remetendo à figura de alguém já conhecido pelo discurso histórico, e que por
si só já estão vinculadas ao discurso literário, por serem suficientemente
ricas em características e simbolismos, como é o caso de Ngungunyane,
personagem central na história de Moçambique, que aparece na fala de
Dubula, irmão mais velho de Imani, com seu pai, Katini:
- Mais vale Ngungunyane do que um qualquer português.
E explicava: o monarca nguni era um imperador já sem império; os
brancos eram um império sem imperador. Um imperador termina quando morre; um império faz morada na nossa cabeça e permanece
vivo mesmo depois de desaparecer. Era do inferno e não do demónio
que nos deveríamos defender (p. 250).
Os conflitos entre as nações portuguesa e moçambicana estendiam-se
também na família de Imani, como observamos através da constituição
familiar de Imani, em que uma parcela de personagens subordina-se a
Portugal - seu pai, Katini, e seu irmão, Mwanatu -, enquanto que outra,
formada por sua mãe, Chikazi, e seu outro irmão, Dubula, apoia o império
africano. Imani que além de mediadora entre Portugal e Moçambique, torna-
se a fronteira de sua família entre os dois impérios, ficando nesse entremeio
de escolhas:
Os meus irmãos eram a metade do mundo que me restava. Mas eles viviam agora longe do nosso lar. E por isso a casa tinha sido rasgada
ao meio. A mãe sonhava com o mar. Eu sonhava que os meus irmãos
regressavam. De noite acordava chamando pelos seus nomes:
Dubula e Mwanatu. Sentada no escuro, desfilavam por mim os
tempos em que foram meninos e partilhavam o nosso espaço (p. 49).
Dizer que “a casa tinha sido rasgada ao meio” significa na vida de
Imani a separação familiar, pois sua mãe desejava regressar à sua terra
76
natal, no litoral, terras dominadas por Ngungunyane, mesmo lado escolhido
por Dubula; enquanto seu pai e Mwanatu escolheram apoiar o império de
Portugal. E dessa divisão surgem enfrentamentos entre os familiares,
conforme observamos em uma discussão entre Dubula e Katini:
Vezes sem conta pedíamos a Dubula contenção na declarada
simpatia pelo ocupante. O cunhado Musisi não aceitaria esses
delírios. Em desespero de causa, o meu velho insistia, perguntando: - E se, no final desta guerra entre invasores, ganharem os VaNguni? Que diferença faz para nós?
- Se ganharem os VaNguni, eu sempre poderei ser alguém. Que
pessoas seremos se ganharem os portugueses?
Nós que víssemos, disse ele, o exemplo de Maguiguane, o chefe militar de Ngungunyane. Ele não era um nguni, mas tinha sido aceite
e promovido. E prosseguiu, em desafio: no exército lusitano, havia
um único chefe preto? Morreram milhares de negros lutando do lado dos portugueses. Alguma vez se viu uma homenagem, uma
recompensa aos africanos que tombaram? Só o nosso irmão
Mwanatu, que nascera tonto, é que ainda acreditava ter ganho o
respeito dos brancos. Tudo isso falou, empolgado, o mano Dubula (p.
251).
No decorrer desse trecho encontramos uma vez mais a função de
Imani entre os dois impérios: intermediar uma relação. A moça chega a
conclusão de que ela era quem conhecia os argumentos tanto do pai quanto
do irmão, servindo como uma espécie de conciliadora entre pai e filho:
Quando um pai e um filho discutem o verdadeiro motivo da disputa,
é sempre um outro, uma querela mais antiga que as palavras. Eu já
conhecia o desfecho dos argumentos, de um e de outro lado. E era o meu pai quem sempre fechava a querela: - Para mim não interessa a cor da cobra. O veneno que nos mata é sempre o mesmo (p. 251).
As diferenças entre as fronteiras e entre seus familiares no tocante aos
impérios escolhidos para defender, ou melhor, para se proteger, avançam
pelas diferentes personalidades de seus dois irmãos:
As diferenças entre os meus dois irmãos traduziam os dois lados da
fronteira que separava toda a nossa família. Os tempos eram duros e
pediam-nos que escolhêssemos fidelidades. Dubula, o mais velho,
não precisou escolher. A vida escolheu por ele. Ainda menino,
obedeceu aos rituais de iniciação, de acordo com as antigas tradições. Com seis anos foi levado para a mata, onde foi
circuncidado e instruído em assuntos de sexo e de mulheres.
Durante semanas dormiu na floresta, todo coberto com molhos de
77
capim, para que não fosse reconhecido nem por vivos nem por
mortos. Todos as madrugadas a mãe levava-lhe comida, mas não entrava na mata onde os iniciados se concentravam. A desgraça
eterna tombaria sobre a mulher que atravessasse aquele proibido
território.
[...]
Já Mwanatu, o mais novo, foi educado nas letras e nos números. Os rituais que teve foram o dos brancos: católicos e lusitanos. A nossa
mãe alertava: A alma que lhe deram já não se sentava no chão. A
língua que aprendera não era um modo de falar. Eram uma maneira
de pensar, viver e sonhar. E nisso éramos parecidos, eu e ele. Os
receios da nossa mãe eram claros: de tanto comer a língua
portuguesa, não teríamos boca para qualquer outra fala. E seríamos ambos devorados por essa boca (p. 50-51).
Nas reflexões de Imani, a escolha de Dubula em ficar ao lado do
imperador africano, tem relação com a escolha de seu nome e ao
direcionamento dado para a criação de Dubula, que levou em conta a
tradição da tribo:
Desde cedo Dubula se mostrou inteligente e expedito. Deram-lhe um nome zulu e essa escolha já dizia do seu estranho fascínio pelos
invasores VaNguni. Dubula quer dizer “disparo de arma”. Meu pai
deu-lhe esse nome porque, no parto desse filho e já cansado da
espera, empunhou a velha carabina e disparou sobre o teto da casa.
Foi com os nervos, desculpou-se depois. Na verdade, foi aquele
petardo que apressou o parto da criança. Dubula foi fruto de um susto, de uma faísca. Ele era como a chuva, filho de um trovão (p.
49).
Enquanto que Mwanatu foi enviado para a escola das missões e como
Imani recebeu os ensinamentos dos portugueses:
Em oposição, Mwanatu, o mais novo, era lerdo e incapaz. Desde
criança que vivia fascinado pelos portugueses. Essa simpatia fora
encorajada pelo nosso pai, que, ainda com tenra idade, o enviou para
a catequese. E ficou, junto comigo, internado na Missão. Quando
regressou, Mwanatu foi trabalhar como ajudante do sargento Germano, continuando a função que já cumpria com o cantineiro.
Residia no quartel, noite e dia, sem nunca mais nos visitar. Fazia as
vezes de sentinela, fingindo vigiar a porta do português. Tinham-lhe
oferecido um velho casacão militar e um boné de cipaio. Ele adorava
o fardamento, sem entender que aquela encenação era uma fonte de
diversão dos portugueses que por ali passavam. Mwanatu era um esboço de pessoa, uma caricatura de soldado. Dava pena aquele seu
empenho: nunca ninguém levara um afazer tão a sério. Em
contrapartida, nunca antes ninguém fora presenteado com tanta
chacota.
Mais do que ao uniforme, estava preso a uma promessa: a de embarcar um dia para Lisboa e ali ingressar numa Escola do
Exército. Essa viagem era por ele vivida como regresso. Voltava para
78
junto dos “seus”. A lealdade de Mwanatu para com a Coroa
portuguesa envergonhava a nossa família. Com exceção de meu pai, que tinha outro parecer: enquanto estivéssemos sob a proteção da
Coroa lusitana, aquela fidelidade, fosse ela verdade ou fingimento,
dava-nos imenso jeito (p. 50).
Mwanatu cresceu com a esperança de um dia servir ao exército dos
portugueses; porém, no entendimento de Imani, ele não passava de “uma
fonte de diversão dos portugueses que por ali passavam”, pois “era um
esboço de pessoa, uma caricatura de soldado”, porém com tamanha
dedicação que “Dava pena aquele seu empenho: nunca ninguém levara um
afazer tão a sério” (p. 50). Imani revela que ainda que Mwanatu tenha
dedicado seu trabalho ao exército português, recebera em agradecimento
todo tipo de zombaria, apontando para um despropósito e falta de
reconhecimento dos militares para com seu irmão mais novo e também para
com todos os demais moçambicanos. Após a morte de Chikazi, Mwanatu
volta para a casa de seu pai e começa a se transformar:
[...] Desde o seu regresso a casa um sonho o assaltava todas as
noites. Nesse sonho sucedia o seguinte: do topo da árvore onde se enforcara, a nossa mãe ordenava que se desfizesse da espingarda. E
que nunca mais se fizesse passar por cipaio dos portugueses [...].
Ele tinha muitas pessoas brigando dentro dele: um cabo e um Kabweni, um negro e um branco, um cristão e um pagão. Como
tornar-se uma só criatura? Como voltar a ser apenas o seu filho?
Ao descer o vale do Inharrime, o passo do meu irmão era vago e titubeante, revelador de todas essas inquietações. Bruscamente,
porém, mudou de direção e encaminhou-se para o quartel. Ia falar
com o sargento Germano antes de executar a sua promessa. Apesar
de ter abandonado o serviço de sentinela, não perdera a disciplina de
soldado. E precisava de uma bênção para tamanha desobediência.
[...] - Já te esqueceste de que essa arma te foi dada para matares os inimigos de Deus e de Portugal?
- Acho que não.
- Achas? Pois eu, se fosse a ti, devolvia a carabina. Aliás, devias ter feito isso assim que deixaste de ser sentinela. E vais devolver a arma e a farda, essa farda que ainda tens no corpo. Armas, munições e tu próprio pertencem à Coroa portuguesa. - Se não enterrar a arma, o que vou dizer à minha mãe quando ela me visitar nos sonhos?
- Diz-lhe qualquer coisa. Mente, diz que enterraste o raio da espingarda. Ela nunca irá confirmar a tua versão.
- Não fale assim da minha mãe! Não fale...
Mwanatu retirou-se, torcendo as mãos como se fossem panos. E o
português pela primeira vez teve medo do retardado sentinela. Passou-lhe pela cabeça que Mwanatu tinha sofrido de uma grave
regressão: voltara a ser preto. E, como preto que voltara a ser, não
merecia confiança. O sargento agravou ainda mais a sua
79
desconfiança: e se a arma do moço fosse capaz de matar? Seria
preferível, pois, que dela se desfizesse. E autorizou o enterro da Martini-Henry, com fingido remorso [...] (p. 293-296).
Imani percebe que Mwanatu estava mudado. Mwanatu volta para a
casa da família e já não era mais nem o rapaz que servia à Coroa portuguesa
e nem mesmo um chope, estava feito pelas duas metades. Mas, como se
precisasse acertar contas com ele mesmo, volta a firmar suas raízes
moçambicanas após retornar a casa. Essa procura por sua identidade negra
aparece quando Imani refere-se ao fato de que ele “reganhava raízes”,
fazendo com que Mwanatu aos poucos retomasse seu eu moçambicano: “Ele
tinha muitas pessoas brigando dentro dele: um cabo e um Kabweni, um
negro e um branco, um cristão e um pagão. Como tornar-se uma só
criatura? Como voltar a ser apenas o seu filho?” (p. 294). Os conflitos
identitários também circundam Imani e, nesse caso, podemos deduzir que os
nativos que receberam a educação lusitana passam por essas indagações
sobre sua identidade, em meio a tantas informações culturais, educacionais,
religiosas.
O diálogo de Mwanatu com o sargento Germano, transcrito por Imani,
ocorre justamente quando seu irmão regressa as suas raízes moçambicanas,
quando, talvez, tenha encontrado sua verdadeira identidade. E nesse
instante deixa o sargento com medo, pois como negro não inspirava
confiança: “Passou-lhe pela cabeça que Mwanatu tinha sofrido de uma grave
regressão: voltara a ser preto. E, como preto que voltara a ser, não merecia
confiança” (p. 295-296).
As diferenças entre Portugal e Moçambique dão-se, também, de forma
cultural, religiosa e simbólica, configurando-se como outro conflito
vivenciado pelos habitantes dessas terras colonizadas. Citamos uma
conversa entre o tio de Imani, Musisi, e o sargento Germano que, após o
enterro de Chikazi, colocou uma cruz de ferro sobre a sepultura e convidou
os presentes para fazer uma oração. Em oposição à atitude do sargento,
Musisi arranca a cruz e pronuncia palavras no idioma local, txitxope, e conta
com o auxílio de Imani para traduzir sua fala para a língua do sargento:
80
- Eu pergunto, senhor sargento, sendo esse seu Deus o Pai de todos nós e criador de todos os idiomas, será que Ele só entende português? E você, sobrinha, não se limite a traduzir. Diga-lhe como fazemos nós, os pretos. Ou já esqueceu da sua raça, Imani Nsambe?
A minha raça?, perguntei-me, em silêncio. Naquele momento entendi
que a minha tristeza era grande, mas que eu já era órfã antes. Esse
desamparo não era apenas meu, mas de todos os meus irmãos
negros. Essa orfandade não precisa que haja morte. Começa antes mesmo de nascermos.
Debrucei-me sobre a areia onde havia tombado o crucifixo e voltei a
colocá-lo sobre a sepultura da nossa mãe. E lembrei as suas
palavras, nesse seu jeito tão doce de falar: não são os mortos que
pesam. São os que não param nunca de morrer (p. 283).
Após o enterro de Chikazi, percebemos o conflito cultural instaurado
entre Portugal e Moçambique: o primeiro, ao tentar reproduzir sua tradição
cultural e religiosa; o segundo, ao se impor e rejeitar essa invasão. Imani,
além de tradutora e intérprete, é uma espécie de ponte entre as duas
culturas, africana e portuguesa, e por sua proximidade com ambas entra em
um conflito pessoal em relação a sua identidade - já não sabe ela a qual raça
pertence, conforme expressa seu pensamento: “A minha raça?” e seguindo
com sua reflexão a respeito da influência que a presença do colonizador
provoca nos colonizados: “Esse desamparo não era apenas meu, mas de
todos os meus irmãos negros. Essa orfandade não precisa que haja morte.
Começa antes mesmo de nascermos” (p. 283).
Ainda, observamos, por meio de outra reflexão de Imani, o conflito em
relação ao idioma estrangeiro:
Os erros de pronúncia da italiana faziam a língua portuguesa ser
mais doce. Abria as vogais das palavras, arredondava as arestas das consoantes. Certamente ela reprovaria nos exames do padre Rudolfo.
Estava ali patente essa dualidade de critérios. Os brancos podem
falar de variados modos: diz-se que têm sotaques. Só a nós, negros,
não é permitido outro sotaque. Não basta falarmos a língua dos
outros. Temos, que, nesse outro idioma, deixar de sermos nós. (p.
340-341)
Esse raciocínio advém após Bianca, uma italiana residente em
Moçambique, proferir palavras portuguesas com erros de pronúncia, o que
não era permitido aos negros e tais erros os fariam reprovar nos exames do
padre Rudolfo, o educador das missões. Esse pensamento é antecipado pela
fala de Germano de Melo, que diz o seguinte: “Gosto do teu sotaque, Bianca,
81
continua a falar, não pares de me falar” (p. 340), somando-se as diferenças
entre os idiomas e suas extensões.
Dentre todos os conflitos apresentados pelo romance Mulheres de
cinzas, percebemos que um se manifesta em todas as personagens da trama:
o conflito pessoal/identitário. Imani, em diversas reflexões, pega-se a pensar
em quem é realmente, como por exemplo, quando ela é interpelada por seu
tio Musisi, o qual se servia da ajuda de Imani como intérprete para
transmitir uma mensagem ao sargento Germano:
- Eu pergunto, senhor sargento, sendo esse seu Deus o Pai de todos nós e criador de todos os idiomas, será que Ele só entende português? E você, sobrinha, não se limite a traduzir. Diga-lhe como fazemos nós, os pretos. Ou já se esqueceu da sua raça, Imani Nsambe? A minha raça?, perguntei-me, em silêncio. Naquele momento entendi
que a minha tristeza era grande, mas que eu já era órfã antes. Esse
desamparo não era apenas meu, mas de todos os meus irmãos
negros. Essa orfandade não precisa que haja morte. Começa antes mesmo de nascermos (p. 283).
Imani encontra nesse questionamento um gatilho para refletir sobre si,
sua raça, associando a condição de sua nação, seus compatriotas que, antes
mesmo do nascimento, já estavam condicionados a serem órfãos de seu país,
sendo impositivamente agregados ao seu colonizador – Portugal – e a sua
cultura, idioma, religião etc. E por Imani ser essa mistura de identidades,
idioma e culturas, o próprio sargento Germano de Melo esquece que está
diante de uma moçambicana, conforme expresso em sua exclamação: “-
Finalmente, vejo que és africana! Por um momento cheguei a acreditar que
eras portuguesa (p. 159, grifos do autor)”. Essa fala ocorre no momento em
que Imani e Germano escutam Katini ensaiando uma nova composição em
um instrumento musical, chamado marimba. A garota deixa-se tomar conta
pela vontade de acompanhar aquela música através do balanço de seu corpo
e faz Germano perceber que apesar de todos os ensinamentos lusitanos que
Imani recebeu, ela ainda conserva em si uma porção de africanidade.
O conflito identitário reflete-se também na caracterização das
personagens, como em suas vestimentas:
82
Todos neste mundo vivem num único lugar e num irrepetível tempo.
Todos, menos nós, os de Nkokolani. Como os morcegos da lenda, nós morávamos numa encruzilhada de mundos. Uma invisível e
insuperável fronteira atravessava a nossa alma.
Essa duplicidade iria ser provada na manhã em que o tio Musisi
despertou mais cedo do que era de costume, amarrou na cintura o
mais solene dos panos e, sobre o tronco nu, ajustou o casaco que o pai lhe enviara das minas.
O seu corpo recebia assim trajes de dois mundos. [...] Ia visitar
Binguane, com a intenção de requerer aquilo que recusara pedir aos
portugueses: proteção contra os guerreiros de Ngungunyane (p. 174).
Imani, ao relembrar o momento em que seu tio Musisi, recusando-se
pedir ajuda e proteção para os portugueses, vai até uma tribo vizinha,
conversar com o chefe da tribo, faz de sua descrição a extensão do conflito
entre forças, mas também entre identidades e culturas; entretanto, Musisi
compõe-se pelos dois lados em guerra e a divisão entre esses mundos
atravessava-os além de suas fronteiras territoriais, afetava-os em sua
essência. E ainda que Musisi recusasse solicitar a ajuda dos portugueses,
estava ele compondo-se de artifícios europeus, o que vem a casar com a
reflexão de Imani, em um ato de rememoração:
Hoje penso que a nossa mãe estava certa nos seus receios. Onde o filho via palavras, ela via formigas. E sonhava que essas formigas
emergiam das páginas e mastigavam os olhos de quem lia (p. 51-52).
Imani percebe que o receio de sua mãe fazia sentido, ao referir-se à
educação lusitana aos seus filhos. O ensino destinado a Imani e Mwanatu
era, para ela, como formigas que invadem e consomem os olhos e a mente de
quem as vislumbra, como se os tornassem alienados a sua cultura, ensino e
identidade.
Além de conflitos, a narrativa nos apresenta o afeto que surge da
relação entre Imani e Germano, dois seres distintos, representantes de
diferentes nações, em diferentes situações: Moçambique – o colonizado –
Portugal – o colonizador. As pistas indicam que dessa relação algo está por
surgir...
83
3.2 O afeto e as cinzas: sempre Imani
- Gosto de Cinza – disse eu. – Faz-me lembrar anjos, não sei porquê.
- Dei-lhe esse nome para a proteger. Quando se é cinza nada nos pode doer.
Os homens bem me poderiam espancar. Ninguém haveria nunca de me magoar. Era essa a intenção
daquele batismo.
(Mia Couto)
Utilizamos esse diálogo entre Imani e sua mãe, Chikazi, como abertura
de seção, pois entendemos ser um trecho importante na configuração da
trama. Chikazi é descendente de uma família em que as mulheres sofrem
com a violência doméstica, como podemos ver no diálogo entre mãe e filha: “-
A sua mãe também era espancada? / - A avó, a bisavó e a trisavó. É assim
desde que a mulher é mulher. Prepare-se para ser espancada você também (p.
26). Porém, Chikazi sofre de uma doença congênita: “A enfermidade era
congénita: Chikazi Makwakwa não sentia dor. [...] Apenas eu sabia que era
uma deficiência de nascença” (p. 26). Ckikazi queria que Imani, como ela,
não sentisse dor, mas além de tudo, queria que sua filha fosse indistinta,
como as cinzas. Pois “num país assombrado pela guerra dos homens, a
única saída para um mulher é passar despercebida, como se fosse feita de
sombras ou de cinzas” (APRESENTAÇÃO...).
Imani foi educada com base nos princípios portugueses, aprendeu o
idioma do colonizador e o dominava como se fosse nativa da língua, fato que
a faz servir de intérprete ao sargento português, Germano de Melo, conforme
a moça se apresenta ao militar: - Sou Imani, patrão – anunciei-me, numa
desajeitada vénia. – O meu pai mandou-me aqui para o ajudar no que fosse
preciso (p. 62-63, grifos do autor). Fato que proporcionou a aproximação
entre Imani e Germano, pois ninguém mais, além da garota e seu irmão,
Mwanatu, conheciam e dominavam o idioma europeu, tanto quanto sua
língua local.
Outra razão para Imani ser orientada no contato com o português é
que pertencia a uma tribo que apoiava Portugal; e o fascínio pelos
portugueses é de família: inicia com seu avô, Tsangatelo, passando para seu
pai, Katini, e seu irmão, Mwanatu. É na família de Imani que Germano
84
encontra um pouco de Portugal, como observamos em sua segunda
correspondência ao seu conselheiro José d’Almeida:
Mesmo a fechar: disseram-me que há em Nkokolani uma família de
chopes que nos é aficionada e que é totalmente dedicada à nossa
peleja contra o diabo do Gungunhane. Dizem ainda que o chefe dessa família cristã já colocou à minha disposição um filho e uma
filha, ambos falantes do português e educados nos nossos preceitos
lusitanos. Dou graças a Deus por essa providencial ajuda (p. 60).
Com todo envolvimento que passara a ter com a educação, cultura e
idioma do colonizador, Imani vive um conflito identitário, apresentado em
diversos trechos da narrativa pelos seus questionamentos sobre si e em
relação a sua nação, alertando para uma possível generalização da
insegurança quanto à identidade que possui: moçambicana ou portuguesa?
E o preço que Imani pagava por pertencer a esses dois mundos era
alto. Além de suas confusões em relação a si, surgiam-lhe cobranças em
relação a sua condição de mulher moçambicana que era. Como, por
exemplo, na confissão de um sonho recorrente que a assombrava, o de estar
grávida e ser mãe:
Depois entendi: não era um sonho. Era uma visita dos meus entes
passados. Traziam um recado: alertavam-me que eu, com os meus quinze anos, já tardava em ser mãe. Todas as meninas na minha
idade, em Nkokolani, já haviam engravidado. Apenas eu parecia
condenada a um destino seco. Afinal, não era apenas uma mulher
sem nome. Era um nome sem pessoa. Um desembrulho. Vazio como
o meu ventre. (p. 19)
Por ter já quinze anos, Imani já estava atrasada em cumprir com seu
destino de procriar, pois as demais garotas todas já cumpriam esse dever.
Imani associa seu nome – quem é? na língua nativa –à sua condição
existencial. Esse temor convertia-se em fato quando ao retornar para sua
casa, Imani encontra Chikazi no quintal, a sua espera, para contar-lhe que a
mãe de sua melhor amiga havia estado ali, em visita:
A mãe aguardava por mim no quintal. Disse-me que tinha acabado
de sair daqui a sua comadre, mãe de Ndzila, a minha maior amiga de
infância. Fizéramos juntas a escola na Missão. - Ndzila está aqui? – perguntei entusiasmada.
85
A resposta demorou. As palavras foram encolhidas e amaciadas para
não me magoar. - Chegou ontem. Mas o pai dela mandou-a de volta para Chicomo. Não a quer cá. - Por minha causa? - Você é uma má companhia, é o que ele diz. Para esta aldeia, minha filha, você merece grandes suspeitas. O seu destino é ficar solitária, solteira e sem filhos. Agradeça isso ao seu pai.
Era o preço por me ter entregue ao mundo dos portugueses. A
hipótese de rever Ndzila tornou presente algo que fazia por ignorar.
Eu não tinha, em Nkokolani, amigo ou amiga. Mais grave ainda: não
tinha sequer desejo de ter amigos.
A mãe entendeu a minha tristeza e sentou-se ao meu lado. Não me tocou, não me olhou. Como se falasse sozinha foi dizendo: Eu era
mulher e as mulheres de Nkokolani devem pertencer a alguém para
deixarem de ser ninguém. É por isso que às moças solteiras se atribui o nome de lamu, palavra que significa “aquela que espera”. É
um modo de dizer que seremos pessoas apenas depois de sermos
esposas. - Não perca a esperança, filha. Você ainda não deixou de ser uma
lamu.
A certeza daquela condenação era o melhor consolo que a minha mãe me podia oferecer (p. 204-205, grifos do autor).
Chikazi sabia dos empecilhos que Imani enfrentava por pertencer a
duas nações distintas, o que faz com que a garota fique ainda mais isolada
em relação aos demais moçambicanos, pois não inspirava confiança e
ninguém se aproximava dela por ser tão próxima aos portugueses, julgando-
a como má companhia.
Germano de Melo percebe-se abandonado em solo africano, aferindo
um possível desinteresse do império português para com as terras sob seu
domínio e, por extensão, pelo sargento degredado. A respeito do isolamento
conferido ao sargento português, encontramos em duas de suas
correspondências, a primeira correspondência ao Conselheiro José
d’Almeida, datada em 21 de novembro de 1894, reclamando o abandono da
Coroa portuguesa em solo moçambicano:
[...] Do nosso rei e de outras eminências lisboetas não chega uma
palavra de conforto. Pobre reino o nosso que não reina nem aqui nem em Portugal. Pobre Portugal.
Desculpe, Excelência, por este longo e triste desfile de confissões que
são de ordem pessoal. Creio que entenderá que vejo em Vossa
Excelência a figura tutelar de um pai que, confesso, sempre me
faltou. (p. 36-37)
86
Num segundo momento, na carta de 12 de janeiro de 1895, também
endereçada ao Conselheiro José d’Almeida, o seguinte:
Não é apenas o estado decrépito do aquartelamento que tão
intensamente me perturba. Confesso, Senhor Conselheiro, a minha
surpresa em ver tão despovoadas de obras e de gente europeias todas estas extensas regiões. Ingenuamente, mantinha uma ideia
bem diversa sobre a colónia de Moçambique. Pensava que
reinávamos, de facto, nos nossos territórios. Afinal, a nossa presença
limita-se, desde há séculos, à foz de uns poucos rios, que prestam
serviços de aguadas. A triste realidade pode ser assim descrita: não
há senão cafres e baneanes neste imenso sertão. Os raros sinais da nossa presença são adulterados graças a pessoas da laia do
cantineiro (p. 78-79).
Germano de Melo estava encarregado de assegurar os domínios de
Portugal sob aquela região, porém mais luta pela sua sobrevivência do que
pela guarda do território. Entretanto, infere ser um degradado ao invés de
um militar, e oferece indícios de que um novo país está para surgir, o qual
seria sua pátria:
[...] Não me posso queixar do que me coube por pena, perante o veredito destinado à maioria dos revoltados, encarcerados com penas
de ilimitada duração. No meu caso, decidiram pela deportação para o
remoto sertão de Inhambane. Atuaram na esperança de que ali
encontrasse uma prisão sem grades e, por isso, mais asfixiante que
qualquer outro cárcere. Tiveram, todavia, a prudência de me confiar uma falsa missão militar. A italiana está coberta de razão: dentro
desta farda não está um soldado. Está um degredado que, apesar de
tudo, aceita o encargo dos seus deveres. Não tenho, porém, nenhum
ensejo de dar a vida por este Portugal mesquinho e envelhecido. Por
este Portugal que me fez sair de Portugal. A minha pátria é outra e
ela está ainda por nascer. Sei o quanto estes desabafos ultrapassam o tom que devia nortear este relatório. Mas espero que Vossa
Excelência entenda a absoluta solidão em que me encontro e como
esse isolamento me começa a roubar a capacidade de discernir (p.
35-36).
Germano começa a se inquietar com essa reflexão, pois mais do que
salvar a pátria, terá que salvar antes a si, além do que o sargento sofre com
a solidão e abandono por parte da coroa portuguesa, em Nkokolani, o que
afeta suas ações e pensamentos. Em Nkokolani, a pessoa mais próxima a ele
é Imani, a quem se afeiçoa, uma vez que ela é a sua companhia de todas as
horas e, também, é ela a intermediária entre a sua cultura e a dele, o que o
faz sentir-se menos solitário em terras estrangeiras. Por meio da relação que
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se estabelece entre os dois, Imani e Germano, o ‘conflito’ cultural e político
ganha espaço.
Por causa da solidão do português e do conhecimento de Imani da
língua do colonizador surge, entre eles, o afeto, e esse sentimento é
recíproco. Imani era a pessoa mais próxima de Germano, conhecedora
exímia da língua e da cultura de Portugal, o que propiciou a aproximação,
cada vez maior entre os dois. Dada a ausência de outros portugueses no
local, o sargento torna-se um estrangeiro isolado de suas tradições, língua e,
principalmente, isolado de sua nação; e é em Imani que ele encontra a
interlocução necessária para dividir suas angústias e suprir o abandono:
O português estava perturbado, percebia-se pela rouquidão com que se expressou. Fez uma pausa e pousou em mim o azul dos olhos
para me interpelar de modo quase agressivo: Vens por causa das
aulas? Pois acabaram as aulas. - Acabaram? - Continua a visitar-me, mas não me ensines nada. Que eu vim para este fim de mundo para esquecer que existem línguas. Esquecer que existem pessoas, esquecer que tenho um nome...
E estendeu os braços sobre a mesa como se abraçasse o mapa. Assim derramado, repetiu: eu quero é esquecer. Avancei uns passos e
murmurei, a medo: - Posso pedir uma coisa? - O que queres tu? - Posso tocar no seu cabelo?
Sorriu e inclinou a cabeça. A minha mão deixou de ser minha e
apoiou-se no primeiro ombro dele para depois se perder na sua
espessa cabeleira. O português não deve ter percebido o meu pedido.
Movia-me apenas a curiosidade de tocar aqueles cabelos tão diversos dos nossos [...] (p. 193-194, grifos do autor).
Germano de Melo, pelas palavras de Imani, tinha olhos tão claros que
quase causaria uma cegueira. Vejamos a fala de Imani ao receber o sargento:
Relembro o dia em que o sargento Germano de Melo chegou a Nkokolani. [...] Aproximei-me, na altura, curiosa. O sargento
pareceu-me mais alto do que era, acrescentado de tamanho pelas
botas cheias de lama. O que mais notei foi a sombra que lhe toldava
o rosto. Os olhos eram claros, de uma cor quase cega. Uma nuvem
de tristeza, porém, lhe ensombrava o olhar (p. 62).
Nessa confissão de Imani fica evidente um paradoxo, elaborado pela
garota, para descrever o sargento que chegava em Nkokolani. Ao passo em
que ela percebe em Germano uma sombra que lhe cercava o rosto e uma
88
nuvem de tristeza que deixava seu olhar sombrio, ele tinha os olhos tão
claros, de uma cor quase cega. Sua descrição de Germano nos proporciona
pensar na sombra como uma consequência de uma luz e na presença e
ausência de cores: sombra/sombrio versus uma cor/luz que é intensa a
ponto de ofuscar o olhar.
Imani tornou-se, assim, muito mais que intérprete, ela era o elo entre
duas culturas distintas. Imani surpreende o sargento português com seu
domínio da língua portuguesa, e é questionada por ele sobre sua educação
lusitana: “És tu a tal moça? E que bem que falas português, a pronúncia
corretíssima! Deus seja louvado! E onde é que aprendeste? – Foi o senhor
padre que me ensinou. Vivi na missão, na praia de Makomani, durante anos”
responde Imani (p. 63, grifos do autor).
O que ocasiona a aproximação entre o sargento português e a
moçambicana está acima das obrigações de intérprete, pois se trata de um
sentimento afetuoso que os une - Germano de Melo vivia em completo
abandono e Imani era a pessoa mais próxima dele e o entendia como
ninguém. Percebemos na décima carta de Germano de Melo a revelação da
importância que Imani na vida do sargento:
No preciso momento em que redijo esta carta vou sendo atacado por
uma nostalgia que me paralisa. E é deitado que lhe escrevo, e será
por causa dessa posição que a minha tão louvada caligrafia se
converte nestes atabalhoados gatafunhos. É este torpor, Excelência,
que me tem incapacitado para uma missão que, no princípio,
pensava não entender e agora suspeito que nunca chegou a existir. Eis o que fui descobrindo: as aranhas que, logo no primeiro dia,
observei sobre a mesa sempre estiveram dentro de mim. E dentro de
mim fabricaram uma teia que me tolda não apenas os movimentos
mas toda a minha vida.
Dos rolos de sisal, dos panos velhos, das paredes da casa, de tudo isso fabriquei a minha teia. E fiquei aprisionado na esperança de que
este falso quartel fosse meu, fosse português, fosse a minha casa.
Não fui capaz. Uma criatura maior devorou a aranha e a teia. Essa
criatura chama-se África. Nenhuma parede, nenhuma fortaleza
poderia deter essa criatura. E ali estava ela entrando pelas frestas,
na forma de música de marimbas e vozes e choros de crianças. Ali estava transformada em raízes que cresciam entre as rachas dos
tijolos. Ali estava ela residindo nos meus sonhos, invadindo a minha
vida na forma de uma mulher. Imani (p. 236-237).
Junto à declaração de afeto por Imani, encontramos a generalização
desse sentimento do português Germano pela África, solo que fez sua casa,
89
familiarizando-se mais a esse chão do que ao deixado em Portugal, devido a
interferência de Imani. Através da moçambicana, o sargento toma
conhecimento das guerras pessoais daquela gente e, mesmo que aquele
território pertencesse a Portugal, nada seria suficiente para deter as forças
da África:
[...] O que ele fez foi levantar os braços e encher a concha das mãos
com os meus seios. E aconteceu o seguinte: os botões saltaram da
blusa e rodaram tontos pelo soalho. Depois cada um desses
pequenos botões se retorceu e se encarquilhou como se estivesse derretendo diante de um fogo invisível.
E o português persistiu nos seus corporais intentos. Quis resistir,
morder-lhe o braço, atacá-lo com toda a fúria. Mas deixei-me ficar,
parada, na educada submissão de mulher. Naquele momento,
confesso, um estranho torpor me entonteceu: pela primeira vez senti
o meu coração batendo em outro corpo. Os dedos do sargento acariciaram-me os mamilos como se fossem botões feitos de carne. E
demorei-me assim, adiando o propósito de me afastar. - O meu pai deve estar a chegar, vim aqui apenas para o prevenir da visita.
Bruscamente o português se arrumou e se retirou em silêncio. Fiquei
só, a blusa entreaberta. E contemplei o meu peito como se nunca antes o tivesse visto [...] (p. 194, grifos do autor).
É pela linguagem, que ora é expressa por palavras e expressões
próprias da tribo de Imani, ora pelo português corretíssimo dela, que os
laços se estreitam entre Imani e Germano. Apesar de opostos, em termos de
propósitos, são eles que darão forma e destino ao que se passa naquelas
terras. Em determinado momento, eles passam a ser “nós”, pois ambos
necessitam um do outro, a fim de manterem suas vidas e o lugar em que
estão inseridos. Assim, a rememoração do pretérito e de tempos um pouco
mais recentes é fundamental para que se funde uma nova identidade
moçambicana. A partir dos dois universos distintos (Moçambique e Portugal)
inseridos em um mesmo território, surgirá um novo país, fruto da
miscigenação cultural, racial e, talvez, ideológica. Imani é a mulher/terra
que será o elo entre essas forças conflitantes. O aparente silêncio dela é o
germe da força moçambicana, capaz de forjar uma nova sociedade que,
mesmo absorvendo a cultura portuguesa, não esquece sua tradição. Das
cinzas, metaforicamente falando, (re)surge um novo espaço simbólico que
será o novo país, com uma identidade mais própria, proveniente do
entrecruzar de percepções de mundo tão diversas.
90
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] Agora entendo: aprendi a escrever para melhor
relatar o que vivi. E nesse relato vou contando a
história dos que não têm escrita. Faço como meu pai:
na poeira e na cinza escrevo os nomes dos que
morreram. Para que voltem a nascer das pegadas que
deixamos (Mia Couto)
Ao retratar a época em que Moçambique era colônia de Portugal, a
narrativa de Mulheres de cinzas retoma questões relevantes quanto à
construção econômica, social e cultural do país africano e, principalmente,
de seu povo. Impositivamente, por conta da dominação portuguesa,
aprenderam a cultura, a língua, os hábitos e a religião do país europeu,
provocando uma (trans)formação da identidade e da cultura moçambicana.
Ao presentificar um passado distante, a narrativa coutiana em estudo
revela-se permeada pela história, quase memorialística, trazendo à tona a
experiência da memória como (con)formadora de uma identidade que se dará
permeada pelo imbricamento entre a tradição moçambicana e a cultura
lusitana. Salientamos que o livro de Mia Couto aborda não apenas a questão
identitária moçambicana que, durante o domínio português, parece perder-
se de si, pela maneira com que os nativos são apresentados à nova cultura
que lhes é chegada; mesmo assim, permanecem fortemente enraizados na
sua tradição, mantendo-a viva, através de seus rituais, costumes, língua
local, mitos, etc.; mas, também, mostra um povo capaz de defender seu
território e retomar as terras sob o domínio império de Portugal.
O voltar-se para um passado histórico acontece pela ótica de uma
negra moçambicana, que constrói a narrativa a partir de suas vivências,
91
cultura e tradições moçambicanas, fato praticamente desconsiderado pela
história oficial, que apresenta apenas a narrativa pelo ponto de vista do
europeu colonizador, fazendo com que Mulheres de cinzas oportunize aos
povos que tiveram sua voz apagada no discurso histórico revelarem suas
memórias, lembranças, recordações.
Ao conjugar os tempos da história e da ficção, memória e identidade,
notamos a singularidade do romance de Mia Couto, Mulheres de cinzas,
como uma possibilidade de reformulação da história a partir das vivências e
marcas deixadas pelo colonialismo em Moçambique. Ao passo que, levando
em consideração os aspectos de construção física e psicológica das
personagens, assim como sua conexão com as nações a que pertencem, Mia
Couto faz com que sua narrativa contribua para o não silenciamento de
vozes não ouvidas pela história oficial. O autor não somente traz o
marginalizado para a trama como o faz protagonista, proporcionando uma
chance de expor sua voz, história, memórias e lembranças. As cartas de
Germano conversam com o relato de Imani, trazendo os fatos tanto pela
ótica da moçambicana quanto do português; são quatorze capítulos
destinados ao português e quinze à moçambicana, acentuando a
característica da obra de Mia Couto de recuperar o passado pelo olhar do
marginalizado.
Ao findar esse estudo, notamos que Mia Couto teve todo um processo
de captação de informações, procurando fontes e documentos que relatavam
eventos da época da colonização de Portugal em Moçambique, demonstrando
o cuidado com a memória, confirmando o que Jeanne Gagnebin, ao
promovê-la (a memória) diz ser uma tarefa ética, algo que está muito além de
ser apenas um objeto de estudo. Esse cuidado promove além de uma
preservação da memoria, resgate do passado, do desaparecido, do esquecido,
de modo que traz à luz da narrativa literária tradições, vidas, falas e imagens
(GAGNEBIN, 2006), em que o colonizado contribui para esse resgate e
permanência de sua história por meio da literatura. E, é assim, por meio da
criação literária, que os moçambicanos contribuem para o não apagamento,
para o não silenciamento de sua história e de suas vozes, para fazerem-se
presentes também no campo literário, e contribuir para o enraizamento de
92
suas memórias, cultura e tradição, também no cenário desse mundo
globalizado.
Conhecidamente, as cinzas são os vestígios do que o fogo devastou, ou
analisando pela ótica da colorimetria cinza é a cor resultante da mistura
entre as cores branca e preta, em que podemos deduzir ser Imani esse
produto oriundo dessa mistura de cores, culturas, religião, educação,
idioma, de nações, mas também ser os vestígios deixados por essa
devastação que foi a colonização portuguesa em Moçambique. Outra
assertiva é que as cinzas podem ser uma espécie de preparação do terreno
para receber uma nova semente, uma nova nação e identidade que surgem
dessa mistura entre Moçambique e Portugal, como uma espécie de fênix.
A autoridade feminina é vista em Mulheres de cinzas pela personagem
principal da narrativa ser uma mulher, assegurando a ela o direito de se
manifestar, expor seu ponto de vista, relatar sua visão, sua história. Nesse
caso, é Imani quem conduz a narrativa, representando tanto mulheres
quanto moçambicanos. A importância da mulher também se traduz pela
escolha do título do livro, que leva consigo um dos termos que designa o
sexo feminino.
Precisamos conservar na memória os fatos para que não se repitam,
talvez esse seja um dos objetivos do autor ao retratar em sua narrativa
literária alguns dos fatos passados pelo seu território. Jeanne Gagnebin,
citando Adorno, evidencia que a importância do passado se revela pelo modo
que se torna presente, ou seja:
Devemos lembrar o passado, sim; mas não lembrar por lembrar, numa espécie de culto ao passado. [...] a exigência de não-
esquecimento não é um apelo a comemorações solenes; é, muito
mais, uma exigência de análise esclarecedora que deveria produzir –
e isso é decisivo – instrumentos de análise para melhor esclarecer o
presente (GAGNEBIN, 2006, p. 93).
Assim, Imani e Germano, cada um a seu modo, são o estatuto
privilegiado das testemunhas de um tempo de guerra, de lutas pelo poder e
da solidão que lhes é imposta. E será com eles, a partir da partilha da
solidão e dos afetos que surgirá um novo Moçambique, fruto da mistura de
línguas, costumes e tradições que se imbricaram e fundaram a nova nação.
93
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