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FAJE - FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
Raimundo Donato
REINO DE DEUS E CONVERSO
ESTUDO BBLICO-TEOLGICO-PASTORAL
Dissertao apresentada ao Departamento de
Teologia de Faculdade Jesuta de Filosofia e
Teologia FAJE, como requisio parcial obteno
do ttulo de Mestre em Teologia.
rea de Concentrao: Teologia Sistemtica
Orientador: Prof. Dr. Johan Konings
BELO HORIZONTE 2010
A mensagem de Jesus muito simples, sempre mais teocntrica. O que novo e
totalmente especfico na sua mensagem dizer: Deus est em ao agora, esta a
hora em que Deus se mostra na histria, de um modo que supera tudo o que
aconteceu at agora, como seu Senhor, como o Deus vivo.
Joseph Ratzinger
INTRODUO
Como servio f eclesial e, portanto, Igreja, a teologia , antes de tudo,
um servio ao reino de Deus1, que se visibiliza na prtica da justia, da
solidariedade e da caridade a favor do povo de Deus. A teologia, enquanto
reflexo sistemtica do ensinamento da Revelao e do magistrio da Igreja,
ilumina e fundamenta a prxis eclesial.
O sintagma reino de Deus/dos Cus abarca o pensamento central da
mensagem de Jesus. Ele inicia sua pregao anunciando que o reino de Deus
estava chegando (Mc 1,15). Toda a sua pregao e atuao tm como tema
central esta verdade fundamental: o Reino de Deus chegou, est presente. Uma
1 1 Usaremos normalmente a expresso reino de Deus, a no ser onde o estudo do
contexto de Mateus impe a expresso equivalente Reino dos Cus.
2
dificuldade que se percebe de incio o fato de no se saber quais so os
contedos precisos deste Reino de Deus que Jesus anuncia. O que que
Jesus queria indicar com semelhante sintagma? Jesus nunca definiu os
contedos do Reino. Jesus falava do reino de Deus como se os seus ouvintes
entendessem os seus contedos e os seus contornos.
Usaremos normalmente a expresso reino de Deus, a no ser onde o
estudo do contexto de Mateus impe a expresso equivalente reino dos Cus. 2
Cf. SOBRINO, J. Centralidad del Reino de Dios, p. 472-423.
A categoria reino de Deus central na teologia latino-americana. J foi
abordada por Jon Sobrino, Joo Batista Libanio, Juan Luiz Segundo, Incio
Neutzling, Igncio Ellacura, dentre outros, sob diferentes enfoques teolgicos.
Para Jon Sobrino, a categoria reino de Deus a via com maior capacidade de
organizar sistematicamente o todo da teologia2.
Na dcada de 1990, a Amrica latina passou por uma nova fase histrica,
que gerou profundas mudanas no modo de se conceber a realidade. Dois
acontecimentos afetam negativamente, e com intensidade, a utopia e o
profetismo do cristianismo: o pentecostalismo e o secularismo. Esses
acontecimentos tendem a mostrar que o tema do reino de Deus/ dos Cus seria
radicalmente irrelevante no contexto atual.
Diante da ideia de fim do mundo, colocado na cabea das pessoas,
sobretudo pelo pentecostalismo, surgiu a ideia da destruio do mundo, quase
como um aniquilamento csmico. Porm, necessrio frisar que Jesus nunca
falou a respeito da destruio do mundo. Jesus fala de reino de Deus/ dos Cus, e
ele v esse Reino dentro da perspectiva da teologia proftica, como um grande
processo evolutivo que j comeou e que culminar na plenificao desse
mundo, dessa histria. Esta ltima plenificao o reino de Deus em plenitude.
muito mais bblico entender o mundo em termos de uma ltima plenificao,
ideia que foi retomada pelo Conclio Vaticano II. A partir dessa constatao de
uma interpretao errnea do final dos tempos, torna-se necessrio um estudo a
respeito da categoria teolgica reino de Deus. Como tal, essa categoria
portadora de densa fora semntica e inseparvel da realidade pessoal de Jesus.
A categoria reino de Deus possibilita adequada compreenso da totalidade da
mensagem de Jesus. O reino de Deus/dos Cus quer significar para ns a
soberania de Deus sobre todas as coisas (Sl 22,28), quando todas as coisas esto
em perfeita harmonia com sua vontade (Mt 6,10). Deus est agindo na histria
2 2 Cf. SOBRINO, J. Centralidad del Reino de Dios, p. 472-423.
3
humana, redimindo-a em Cristo a fim de fazer com que sua vontade soberana
seja conhecida e experimentada pelos homens (Ef 1,5-9; Rm 12,1-2).
Procuraremos entender Jesus, nesta dissertao, a partir da sua profunda
comunho com Deus, seu Pai, sem a qual nada se pode compreender e a partir da
qual Ele se torna presente no hoje da nossa histria. Acreditamos que, sem essa
dimenso da comunho entre Jesus e o Pai, tudo permanece na obscuridade, e a
tarefa teolgica se torna mera especulao vazia de significado e de pertinncia,
sobretudo, para a f.
No Captulo 1, apresentamos o status quaestionis sobre a pregao de
Joo Batista e de Jesus nas percopes de Marcos 1 e Mt 3-4. Queremos analisar e
desenvolver os dois temas principais da pregao de Joo Batista e de Jesus: a
converso e o reino de Deus. Mostraremos como eles foram abordados nos
diferentes perodos da histria da Igreja, enfocando de modo especial trs autores
da atualidade - Joseph Ratzinger, Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura - que
fizeram a redescoberta da categoria reino de Deus, presente nas pginas do
Evangelho e ofuscada ao logo dos sculos.
No Captulo 2, nos deteremos de forma mais pormenorizada na figura de
Joo Batista como nos transmitiram os Evangelhos. Joo Batista sabe que sua
misso a de estar ali como algum que prepara o caminho a outro totalmente
misterioso; que toda a sua misso est orientada para esse outro, que o mais
forte que ele (Jo 1,30-33). Com a pregao de Joo Batista, as profecias (Is
40,3; Ml 3,1; Ex 23,20) se tornam realidade. Por isso, a pregao de Joo era
profundamente carregada de novidade. E o batismo que ministrava era batismo
de converso para o perdo dos pecados. Esse captulo pretende mostra o carter
escatolgico da pregao de Joo Batista.
No Captulo 3, analisaremos a pregao de Jesus Cristo sobre o reino de
Deus/ dos Cus. Esse Reino tem carter universal, no se restringe raa de
Israel. O captulo mostra a esperana de Israel sobre a vinda do Messias e, com
isso, o Reino. Jesus com sua pregao afirma que o Reino esperado j chegou.
Essa a novidade. Ele prega o Reino presente e atuante no mundo atravs da sua
pessoa. Por meio de Jesus, o Deus do Reino e Deus da Vida continua agindo na
histria humana, transformando todas as estruturas de morte em vida.
No captulo 4, aprofundaremos o sentido do Reino anunciado por Jesus.
As curas e os exorcismos sero vistos como sinais da presena libertadora e
salvadora do reino de Deus. Analisaremos tambm algumas parbolas para maior
compreenso da expresso reino de Deus. Os destinatrios do Reino so as
crianas e os pobres. Depois, ser feita pequena considerao a respeito do atraso
4
do Reino, que ainda no chegou de forma definitiva. E, por fim, falaremos da
Igreja enquanto intermediria entre a inaugurao do Reino e sua plenificao no
fim dos tempos.
No captulo 5, trabalharemos o tema do reino de Deus e a converso
pastoral da Igreja na Amrica Latina. Procura-se apontar pistas para a reflexo da
prxis eclesial. A teologia ajuda a Igreja a entender seu futuro e a caminhar em
direo a ele. Em sintonia com o Conclio Vaticano II e tambm com o
Documento de Aparecida, prope-se a converso pastoral, entendida como
converso estrutural da Igreja, caminho necessrio para se chegar, enquanto
comunidade de fieis, ao reino de Deus. Neste captulo, nos restringimos anlise
do reino de Deus a partir do contexto latino-americano. No se tem a pretenso
de aprofundar questes teolgicas, eclesiolgicas ou dogmticas, mas, sim,
lanar luzes que norteiem o agir eclesial em direo ao reino de Deus. O captulo
desemboca na Espiritualidade da obedincia, pois, a exemplo de Jesus Cristo, o
reino de Deus se instaura na obedincia ao Pai. Quanto mais dceis e obedientes
a Deus, mais o reino se aproxima de ns. Inversamente, quanto mais
desobedientes, mais nos afastamos do Reino, isto , de Deus.
impossvel falar de Deus sem senti-lo e sem ser agente da missio Dei no
mundo. impossvel falar de Deus sem sentir Deus, sem agir em Deus, sem
experiment-lo. Fazer teologia, hoje, significa falar de Deus e do homem, e agir
no mundo a partir dos valores do reino de Deus. A esperana do reino de Deus
impulsiona o cristo a inserir-se na misso de transformar o mundo: Venha o teu
Reino, seja feita a tua vontade, como no cu, assim na terra (Mt 6,10). 13
1. Problema, estado da questo e explorao inicial
Segundo o evangelho de Marcos, a pregao de Jesus pe em primeiro
plano o anncio da proximidade do reino de Deus e a exigncia de converso que
esta Boa-Nova implica (Mc 1,14-15). Tal mensagem provoca perguntas, tanto
em relao com o momento em que Jesus a proclamou quanto em relao a ns,
hoje. o que pretendemos aprofundar neste estudo.
1.1- A pergunta pelo significado da converso e do reino de Deus
Joo batizava e pregava a converso em vista do evento escatolgico,
interpretados por ele principalmente como juzo (Mt 3,10). Jesus anunciava a
proximidade do reino de Deus e exortava converso em vista deste (Mc 1,15).
Se o reino de Deus exige converso, a primeira concluso que da se tira de que
sua chegada no algo automtico, algo que se imponha sem a participao do
5
ser humano. A converso, primeira vista, parece apontar para uma mudana de
atitude que faa com que a mensagem da proximidade do Reino seja uma Boa
Notcia. Isso provoca imediatamente uma segunda reflexo: de quem se exige tal
mudana?
Os evangelhos de Marcos e Mateus, que priorizamos neste estudo, mas
tambm o de Lucas, a seu modo, relatam, de modo impactante, como veremos, o
anncio da proximidade do reino de Deus como incio da pregao de Jesus. Que
significavam para os contemporneos de Jesus e seus discpulos o reino de Deus
e a converso? Quais as conotaes que esses termos evocavam nos seus
coraes? Estavam preparados para entender ou tinham o corao endurecido,
necessitado de mudana, de converso? Como ressoavam essas palavras aos
ouvidos deles como indivduos e como povo de Deus?
Por outro lado, se trazemos essa mensagem para nosso horizonte podemos
fazer perguntas semelhantes. Ser que entendemos por reino de Deus e por
converso a mesma coisa que Jesus anunciava, ou ser que, no decorrer dos
sculos, os termos perderam o sentido original e, quem sabe, at nos afastaram
daquilo que Jesus quis dizer? Como se apresenta a ns hoje aquilo que Jesus quer
dizer com a exigncia da converso em vista do reino de Deus? Como
imaginamos, hoje, o reino de Deus e o que significa converso para ns como
indivduos e como comunidade, como Igreja?
1.2 - As respostas na reflexo da Igreja
Antes de entrar no estudo dos textos neotestamentrios, e para ampliar o
horizonte deste estudo, tentaremos ouvir algumas vozes representativas da
reflexo teolgica de nossa comunidade de f em torno da mensagem bblica.
1.2.1 - Os antigos
O cristianismo primitivo, com a demora do advento do reino de Deus, viu-
se obrigado a adequar-se ao mundo. At ento, os cristos haviam se limitado a
aceitar as circunstncias polticas e a evitar conflitos com o poder estatal (cf. Rm
13,1-7; 1Pd 2,13-17), j que se pensava que o fim fosse iminente. Com a
mudana, comeam os problemas e as diversas interpretaes sobre a relao
entre o reino de Deus e a histria do mundo. As duas posies fundamentais
nesta poca primitiva pr-crist, so: o quiliasmo e a espiritualizao, e tanto
uma como a outra, apoiam-se numa exegese particular de textos do Novo
Testamento3.
3 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
6
O quiliasmo a crena na chegada de um reinado de mil anos de paz e de
felicidade, seguido do juzo universal e do fim do mundo. Apoia-se em Ap 20,1-
6, e foi defendido por Tertuliano, Irineu e Lactncio, entre outros. Reflete a
esperana escatolgica do reino de Deus. Tratava-se de se consolar e de suportar
o Estado pago e suas perseguies, as quais so entendidas como sinais do fim
que comea. Evitou-se um conceito privado e meramente individual da salvao4.
A espiritualizao a posio oposta anterior, e defendida por
Clemente de Alexandria e por Orgenes, apoiando-se numa interpretao
interiorizada de Lc 17,21: O reino de Deus est dentro de vs. E, assim, o reino
de Deus se transforma em ideal tico e em meta do esforo de perfeio que o ser
humano deve fazer5.
Orgenes caracterizou Jesus como a autobasilia, ou seja, Jesus a
personificao do reino de Deus. Nele se pode contemplar o Reino acontecendo
na terra. O Reino, para Orgenes, no uma coisa, no um espao de domnio
como um reino do mundo. pessoa: o Reino Jesus 6.
A escatologia, que se pode entrever no conceito do reino de Deus do
cristianismo pr-constantiniano, acentua o carter de no cumprimento e de
gratuidade absoluta dele. A Igreja vista como realidade provisria, temporal e
contingente que o prprio Deus levar sua consumao7. Igreja e reino de Deus,
embora relacionados entre si, de forma alguma so idnticos e no se
harmonizam com nenhum Estado poltico. Essa situao mudar drasticamente
com Constantino.
A reviravolta poltica de Constantino traz consigo mudana radical na
concepo do reino de Deus, que, no contexto da poltica imperial, vai se
transformar numa categoria teolgico-poltica8. O representante mximo desta
teologia poltica do reino de Deus Eusbio de Cesareia, que v em Constantino
a representao do Logos celeste, em nome do qual o imperador deve assumir o
domnio sobre a terra. A monarquia divina e a poltica so manifestaes do
nico regime universal de Deus, que se manifesta no imprio terrestre de
Constantino, no qual se torna presente o reino de Deus e no qual se enquadra a
Igreja terrena. A misso do imperador a de realizar a soberania de Deus ou de
Cristo na terra, transformando-se, assim, no rgo destacado da vontade divina.
No governo de Constantino, devia se tornar realidade o plano de Deus
4 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
5 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
6 RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59.
7 Cf. Did. 10,5-6; Irineu, Adv. Haer. 5,26 in: BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
8 BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
7
concernente ao mundo: conduzir a histria humana ao verdadeiro conhecimento
de Deus9.
Eusbio legitima a dignidade imperial baseando-se no Antigo
Testamento10
. Neste contexto, o conceito de reino de Deus perde o seu contedo
escatolgico e passa a ser um prolongamento e uma exaltao do presente11
.
Na poca patrstica, os Pais da Igreja foram muito influenciados pela
filosofia grega. Tentavam fazer uma ponte entre a f crist e o pensamento grego.
Eles conceituaram o Reino, somente, em categorias espirituais. O governo de
Deus era espiritual.
Agostinho de Hipona rejeita a interpretao do reino de Deus que davam
tanto o quiliasmo quanto os imperialistas. Em sua crtica, prope a teoria das
duas cidades, uma civitas Dei, em que reina o amor de Deus, e uma cidade
terrena, onde o amor de si mesmo que governa 12. Agostinho explica, em A
Cidade de Deus, a origem das duas cidades,
Dois amores fundaram, pois duas cidades, a saber: o amor prprio, levado ao
desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si prprio, a
celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela
busca a glria dos homens e tem esta por mxima glria a Deus testemunha de sua
conscincia13.
Para explicar sua teoria sobre as duas cidades, Agostinho ocupa a segunda
parte de sua obra. Nela tratar tanto da origem (cap. XI-XIV) e desenvolvimento
(cap. XV-XVIII) das duas cidades, quanto de seus respectivos fins (cap. XIX-
XXII)14
.
Agostinho no identifica a civitas terrena com o Estado e muito menos
equipara a civitas Dei Igreja. Agostinho entende que pertencem civitas Dei
todos os homens que se deixam guiar pelo amor de Deus15
, estando ou no dentro
das barreiras visveis da Igreja.
Os dois tipos so ideais e se definem pelas respectivas concepes de paz:
a paz terrena (ausncia de guerras...) e a paz celeste (a tranquilidade, a ordem...).
As fronteiras de ambos os reinos se confundem no tempo e sua separao ser
9 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
10 Cf. Vita Const. 1,12
11 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
12 BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
13 AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 169 (cap. XXVIII).
14 Cf. AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 19.
15 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
8
real s no juzo final. Agostinho recusa tanto uma realizao intramundana do
conceito de reino de Deus como a integrao da Igreja no Imprio cristo. E, com
isto, sua pretenso de levar a cabo este reino de Deus como realidade intra-
histrica16
. Destaca a condio escatolgica deste Reino que foge soberania e
manipulao humana. Rebate as pretenses de poder cesaropapista e ressalta o
valor especfico e relativo da cidade terrena em sua funo de servio Cidade
de Deus.
Agostinho, em A Cidade de Deus, inicia uma teologia da histria.
Descobre um fio condutor que move a histria, comeando com a prpria
criao, movendo-a atravs dos tumultos e das agitaes do mundo (cidade
terrena), e se conclui com a realizao do reino de Deus (Cidade de Deus). Para
Agostinho, a histria tende a se completar na lei divina.
Com o tempo, sua doutrina foi se mitigando. Esquecendo o carter
idealista de ambos os reinos, acabou por identificar a cidade terrena com o
Estado, e a Cidade de Deus, com a Igreja. Foi o comeo da problemtica
medieval, que teve duas caractersticas principais: a) controvrsia entre reino e o
sacerdcio, em que o primeiro tinha de se submeter ao segundo, se no quisesse
transformar-se em inimigo de Deus; b) desescatologizao da teologia, j que a
Igreja, identificada com a Cidade de Deus, une-se com o sacro Imprio, ao se
apresentarem juntos como portadores terrenos das esperanas escatolgicas17
.
Nesse perodo, com raras excees, a expresso reino de Deus aparece nos
escritos dos santos Padres e, por conseguinte, desaparece dos manuais.
Agostinho, como vimos, trabalhou o tema do reino de Deus identificando-o com
a cidade celeste, na obra Civitas Dei. Depois, a expresso silencia-se no
pensamento teolgico antigo.
1.2.2 - A Idade Mdia e Moderna
A Idade Mdia foi uma poca marcada pelas pretenses, tanto da Igreja
quanto do Imprio, em relao ao reino de Deus18
. A ideia do rei sacerdote (rex
et sacerdos) tinha sua base no Antigo Testamento e na concepo constantiniana.
Os imperadores carolngios pretenderam assumir a direo da Igreja universal,
baseando-se na ideia da unio eclesial e estatal de toda a cristandade, identificada
com o reino de Deus que j se via cumprido nela. Os imperadores creram que sua
misso, pela vontade divina, era a de impor o reino de Deus na terra. Isto ,
16
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681 17
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681 18
15 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.
9
deviam preparar os povos, mediante poltica adequada, para a chegada do
Imperador celestial. Isto foi chamado Sacro Imprio.
A reao por parte da Igreja no tardou: aconteceu a denominada luta das
investiduras. Seu objetivo foi a liberdade da Igreja perante as pretenses
religioso-polticas do Imprio. A Igreja, entendida como Igreja hierrquica e
clerical, reivindica sua identidade com o reino de Deus. Eram os anos de
Gregrio VII, Inocncio III, Bonifcio VIII19
.
A Igreja eximia o Imprio da antiga pretenso de tornar efetivo o reino de
Deus. Competia ao sacerdcio fazer isso, aproveitando a religiosidade poltica do
poder estatal. Esta a ideia que subsiste em instituies como a trgua de Deus
ou nas cruzadas. As fronteiras espaciais do reino de Deus se identificam com as
da cristandade20
.
A disputa para ver quem era o administrador do reino de Deus se
desenvolveu, cada vez mais, como luta entre a Igreja e o Estado. Por
consequncia desta pretenso da Igreja, produziu-se uma secularizao crescente
que resultou na emancipao do Imprio. Esta situao fez surgir movimentos
contra as pretenses absolutistas, tanto da Igreja quanto do Estado, atravs da
interpretao crtica do conceito reino de Deus.
Joaquim de Fiore, monge cisterciense do sculo XII, ficou famoso por sua
teoria da histria dividida em trs perodos: o do Pai (Antigo Testamento), o do
Filho (Novo Testamento) e o reino do Esprito Santo, ou do amor. As pessoas da
Trindade passam a ser, portanto, para Joaquim de Fiore, realidades teolgicas e
histricas. Teolgicas, pela sua prpria natureza; histricas por estarem
associadas a perodos cronolgicos e estruturais da histria humana. Joaquim de
Fiore anunciava um reinado vindouro do Esprito, caracterizado pela
humanidade, pelo servio e pela imitao de Cristo, que preceder o reino de
Deus definitivo21.
O mtodo pelo qual Joaquim imaginava que o fim dos tempos e a nova
idade estariam prximos (1260) baseava-se num clculo do nmero de geraes
aproximado em cada idade: cada uma teria a durao aproximada de quarenta
geraes, e cada gerao duraria mais ou menos trinta anos. Com base nessas
premissas, Joaquim chegou concluso de que o eschaton se daria por volta de
126022
. Assim, podemos dizer que procurava preparar a Cristandade para uma
19
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 20
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 21
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 22
Cf. COHN, Na senda do milnio, p. 90.
10
transformao radical que se daria muito em breve, como ecloso do Esprito
Santo na Terra.
A Igreja era, para ele, simples realidade transitria. Joaquim de Fiore no
pretendia atac-la diretamente. Sua doutrina foi acolhida pelos franciscanos
espirituais, que a transformaram em crtica acirrada contra a Igreja. Para eles, o
reino de Deus j comeava nas comunidades fraternais23
.
A condenao da doutrina de Joaquim de Fiore teve por consequncia a
nfase na hierarquia clerical, a desescatologizao da teologia, a identificao do
reino de Deus com a Igreja concreta 24. Alm disso, sups a eliminao de todo
o potencial de crtica positiva Igreja e uma fixao desta em suas formas e
contedos histricos concretos. A teoria da histria dividida em trs perodos deu
origem a erros gravssimos milenaristas. Todos os erros milenaristas surgidos
posteriormente no Ocidente tiveram raiz em Joaquim de Fiore, inclusive o
terceiro Reich de Hitler se inspirou no terceiro reino de Joaquim de Fiore 25. As
heresias mais virulentas da Idade Mdia tiveram relao com as doutrinas
joaquimitas. Os primeiros a serem contaminados pelos erros joaquimitas foram
os chamados Espirituais Franciscanos, depois os Pseudo-apstolos, os
dolcinianos, os gibelinos, entre os quais, Dante26
.
A mstica dominicana, dentre outras, espiritualizou o conceito de reino de
Deus e acentuou o seu carter individual. O reino de Deus surge no fundo da
alma, unindo Deus e o homem de forma espiritual (Eckhart, Tauler)27
.
Lutero elaborou a doutrina sobre os dois reinados, baseada na de santo
Agostinho. Com ela, se desprende da concepo catlica teocrtica da Igreja e
tambm dos iluminados. A justificao pela f, na pregao do evangelho,
constitutiva do regime espiritual de Deus, que visvel, e a caracterstica
constitutiva do regime temporal a lei. Este ltimo regime , em si, ambivalente
e, embora o cristo deva exerc-lo com f, deve salvar a sua autonomia.
Na Idade Moderna, a partir do sculo XVI, produz-se a queda dos diversos
planos - religioso, social, poltico, geogrfico - que haviam configurado a
imagem medieval do mundo. Esta mudana atinge, tambm, a concepo de
reino de Deus, que no pode mais se articular em uma representao concreta,
com possibilidade de se tornar realidade atravs do poder, tanto eclesistico
23
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 24
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 25
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 26
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 27
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.
11
quanto estatal. As diversas concepes do reino de Deus passam a ser tarefa de
uma filosofia ou de uma teologia especulativas.
O iluminismo acolheu o conceito do reino de Deus, despojou-o de sua
forma histrica e o transformou em ideia racional.
No sculo XIX, volta-se a produzir mudana no conceito do reino de
Deus. A escola de Tubinga retoma o reino de Deus como conceito teolgico-
moral. O reino de Deus est a servio da interpretao da Igreja e da existncia
crist como realidade histrico-salvfica, cuja presena temporal j est marcada
pela chegada do Reino, que ocorreu em Cristo e pela esperana de sua
consumao pela ao de Deus28
.
Por ltimo, teria que se mencionar a doutrina marxista ou a utopia de
Bloch, nas quais o reino de Deus entendido de forma totalmente secularizada.
1.2.3 - Alguns autores da atualidade
Queremos, neste tpico, tratar o enfoque que dado ao reino de Deus na
atualidade e, para entender isto, apresentaremos uma viso muito geral de trs
autores: Joseph Ratzinger, Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura,
procurando perceber como abordam a questo do reino de Deus.
Ao se recuperar o Jesus histrico e o significado revelador de sua
existncia terrena, descobre-se um fato central para a cristologia: Jesus no fez de
si mesmo o centro de sua pregao. Ento, quais so as realidades centrais da
vida e da pregao de Jesus? Na vida e na pregao de Jesus, qual a relao
com o reino de Deus e com o Deus do Reino?
O Vaticano II procurou tirar as consequncias do conceito reino de Deus
fundamentado na Bblia, e se conscientizou de suas implicaes para a
autocompreenso do cristianismo. Desta forma, volta-se a entender a Igreja como
povo de Deus contingente, temporal e a caminho. Sua consumao reservada a
Deus, mas a Igreja deve se tornar crvel, em sua histria e mediante sua
mensagem e prxis, pois nela se torna presente a esperana de salvao definitiva
(LG 3; 9; GS 39,72).
A Igreja se v como comunidade de irmos e de irms, portadora, guardi
e sinal antecipado dessa esperana, que deve dar expresso digna de crdito,
tanto com sua palavra, quanto com sua ao29
. O reino de Deus se transforma
28
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 29
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683.
12
em paradigma da salvao universal para todos os seres humanos, vares e
mulheres, e, embora sua consumao seja obra exclusiva de Deus, requer a
necessidade do esforo humano30
.
Na dcada de 50, aparece fortemente na teologia do Novo Testamento a
ciso entre o Jesus histrico e o Cristo da f. Existe a tendncia de se fixar o
pensamento teolgico no Cristo da f em detrimento do Jesus histrico, esboado
de forma to atual e sempre nova nos Evangelhos. Com o surgimento da
pesquisa histrico-crtica, buscou-se entender, atravs da crtica das fontes, se
nas narrativas evanglicas tudo era verdadeiramente histrico, autntico. Isso
resultou em relativismo histrico e uma estranheza hermenutica31
. O
relativismo histrico consiste em constatar que no se possui uma imagem
historicamente confivel de Jesus, mas, mesmo que se tivesse, restaria o
problema de que esse personagem, enquanto inserido em um contexto histrico,
acabou por se diluir nesse mesmo contexto, logo, Jesus foi menos singular e
absoluto do que se acreditava32
. E, como se no bastasse essa constatao, ainda
surge a estranheza hermenutica que afirma que, mesmo que fosse possvel
encontrar o Jesus histrico por meio documental e fontes confiveis, isso no
bastaria, pois, sempre se esbarraria na distncia abissal da histria de um Jesus
que isolou-se em seu mundo passado, cheio de exorcismos e estranhos temores
pelo fim do mundo33.
A histria da pesquisa sobre o Jesus histrico uma histria de sempre
novos distanciamentos e aproximaes em relao a Jesus. Por isso bom frisar
que a histria das imagens cientficas a respeito de Jesus de maneira nenhuma
esgota a histria das imagens de Jesus, pois essa ser sempre mais rica do que
aquela34
.
A partir dessa breve introduo, percebemos que o foco, na atualidade, se
volta mais para a pessoa de Jesus, em busca de encontrar os seus reais contornos,
o que, por sinal, importante para a credibilidade e razoabilidade da f. Nesta
busca, porm, acaba-se por supervalorizar o mensageiro e ofuscar a sua
mensagem (o reino de Deus). Diante disso, priorizaremos estudar a mensagem de
Jesus o reino de Deus e ver como alguns telogos contemporneos procuram
redescobrir essa categoria teolgica, que foi o centro norteador do Jesus
histrico.
30
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 31
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 32
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 33
THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 34
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20.
13
Cabe apontar aqui a valorizao do estudo histrico-crtico pelo
Magistrio da Igreja. Em 1943, o papa Pio XII escreveu a Encclica Divino
afflante spiritu, que se tornou um importante ponto de referncia e um passo
muito significativo do magistrio, indicando caminhos para a aplicao correta e
coerente do mtodo histrico-crtico teologia catlica. Outro passo significativo
do magistrio foi a Constituio Conciliar Dei Verbum, sobre a divina revelao.
Alm disso, so tambm importantes dois documentos da Pontifcia Comisso
Bblica: A interpretao da Bblia na Igreja, lanada em 1993, e O povo judeu e
a sua Escritura Sagrada na Bblia crist, lanado em 2001, os quais oferecem
um juzo amadurecido no campo da exegese catlica35
.
Nessa busca por resgatar, no pensamento teolgico contemporneo, a
categoria reino de Deus, iniciamos com o telogo Joseph Ratzinger, (papa
emrito Bento XVI). Nossa pesquisa se limita ao seu livro intitulado Jesus de
Nazar, especificamente ao captulo 3 intitulado: O Evangelho do Reino de
Deus, onde faz uma releitura atual da categoria reino de Deus. Como ele
mesmo explica no prefcio, essa a primeira parte de seu projeto de contribuir,
enquanto telogo, e acima de tudo, enquanto cristo, com a verdade sobre a
pessoa de Jesus, que vem ao mundo com a desafiante misso de inaugurar o reino
de Deus. E esse passa a ser o contedo central da sua misso36
.
Ratzinger, no prefcio de Jesus de Nazar, afirma que, dentre os exegetas
catlicos do sculo passado, o mais significativo foi Rudolf Schnackenburg37.
Schnackenburg, em sua obra: A pessoa de Cristo no espelho dos quatro
Evangelhos (1993), procurou ajudar os cristos que professam a f em Cristo e
que se sentem inseguros por causa da pesquisa histrica, a fundamentarem a f
na pessoa de Jesus Cristo como o portador da salvao e redentor do mundo38
.
Ratzinger inicia o captulo terceiro mencionando Mc 1,14-15, onde o
Evangelista relata a priso de Joo Batista e o incio da atividade missionria de
Jesus com a clebre expresso: Completou-se o tempo, o reino de Deus est
prximo. Convertei-vos e acreditai no Evangelho 39. Ratzinger, recordando o
35
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 12. 36
Para Ratzinger, o anncio do reino de Deus forma realmente o centro da palavra e do ministrio
de Jesus. Uma indicao estatstica pode sublinhar isto: a expresso reino de Deus ocorre no
conjunto do Novo Testamento 122 vezes; destas, encontra-se 99 vezes nos Sinticos e, destas, de
novo, 90 pertencem s palavras de Jesus. No Evangelho de S. Joo e nos restantes escritos do
Novo Testamento, a expresso representa um papel muito limitado. Pode-se dizer: enquanto o
eixo da pregao pr-pascal de Jesus a mensagem do reino de Deus, a cristologia constitui o
centro da pregao apostlica ps-pascal (RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.) 37
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10. 38
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10. 39
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57.
14
sentido primignio do termo Evangelho, ressalta que, na sua origem, nem sempre
foi uma Boa-Nova, pois esta palavra designava as mensagens que vinham do
imperador romano 40 que, na maioria das vezes, poderia ser tudo, menos uma
Boa Notcia. A mentalidade da poca era que o que vinha do imperador seria
uma mensagem redentora, no uma simples notcia, mas uma mudana do
mundo para o bem41.
Quando o termo evangelho foi assumido pelos escritores dos
Evangelhos passou por uma reinterpretao, ou seja, foi elevado ao grau mais
alto de significado e eficcia. Para Ratzinger, o que o imperador, que se fazia
passar por Deus, sem razo pretendia, isso acontece aqui: mensagem cheia de
poder, que no simples discurso, mas realidade42. Com a mudana semntica
do termo evangelho, esse adquire uma fora eficaz que entra no mundo como
fora transformadora43. O evangelista Marcos entende a Boa-Nova que Jesus
anuncia como Evangelho de Deus, e, com isso, ressalta que no so os
imperadores romanos que iro salvar o mundo, mas Deus44. Quer dizer, aquilo
que os imperadores, que se julgavam senhores do mundo civilizado, pretendiam
realizar ao fazer uso do termo Evangelho, no conseguiam na realidade, pois lhes
faltava o poder eficaz para isso. Porm, quando o Evangelho se torna palavra de
Jesus, esse o potencializa e garante a sua realizao, porque entra em ao o
verdadeiro Senhor do mundo, o Deus vivo45.
Segundo Ratzinger, quando Jesus anuncia que o reino de Deus est
prximo, colocada uma marca de tempo, algo de novo acontece. E exigida
uma resposta do homem a esta oferta: converso e f46. Aqui ele indica um
ponto importante do nosso estudo: converso. A converso a reposta do ser
humano proposta do anncio de Jesus. a porta de entrada para o reino de
Deus, por isto a Boa-Nova.
Ratzinger se detm no pensamento de Alfred Loisy, que afirmou: Jesus
anunciou o Reino e o que veio foi a Igreja47. Percebe que o discurso de Loisy
carregado de certa ironia, mas tambm de tristeza. Em vez da grande esperana
do reino de Deus, do mundo novo renovado por Deus, algo totalmente diferente
40
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 41
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 42
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 43
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 44
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 45
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 46
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 47
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.
15
e to pobre! chegou, a Igreja48. Ratzinger procura, ento, mostrar a questo
mais profunda e fundamental que est por detrs, no uma questo meramente
eclesiolgica, mas, sim, cristolgica, visto dizer respeito relao do reino de
Deus com Cristo. Sem essa correta relao, fica comprometida nossa
compreenso de Igreja49
.
Para aprofundar a relao que existe entre Jesus e o Reino, Ratzinger
analisa a concepo de Reino nos santos Padres. Por exemplo, Orgenes
entendia Jesus como a autobasilia, isto , como o reino de Deus em pessoa50.
Comentando Orgenes, afirma que,
A expresso Reino de Deus seria ela mesma uma cristologia oculta: no prodgio
que Deus mesmo estar nEle presente entre os homens, que Ele a presena de
Deus, conduz os homens para Ele atravs do modo como Ele fala do Reino de
Deus51.
Outra concepo de Reino que Ratzinger ressalta a concepo idealista,
iniciada tambm por Orgenes. O Reino se encontra no interior do prprio ser
humano. Quer dizer, no est fora do homem, em um local qualquer do mundo,
mas na interioridade do homem. A ele cresce, e a partir da que ele atua.52
Uma terceira dimenso que Ratzinger salienta pode ser designada de
explicao eclesiolgica. O reino de Deus e a Igreja so colocados de um modo
distinto um em relao ao outro e mais ou menos aproximados um do outro53.
Para o telogo, a explicao eclesiolgica influenciou a teologia do sculo XIX e
do incio do sculo XX, onde se via a Igreja como realizao do Reino no interior
da histria.
Citando a teologia liberal do incio do sculo XX, recorda Adolf von
Harnack, que via o reino de Deus como dupla revoluo em relao ao judasmo
do primeiro sculo. Enquanto no judasmo tudo tendia ao coletivo, para o povo
da eleio, Jesus priorizava o indivduo e tinha reconhecido precisamente o valor
infinito do indivduo e o tinha constitudo fundamento de sua doutrina. A
segunda oposio, segundo Harnack, era de natureza cultual. No judasmo, o
cultual (e com ele o sacerdcio) tinha dominado; Jesus teria colocado de lado o
cultual, estruturando sua mensagem de um modo estritamente moral54. Jesus no
48
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 49
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 50
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 51
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 52
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60. 53
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60. 54
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61.
16
olhava para os aspectos exteriores de pureza ou santificao, mas os interiores.
Sondava a alma do ser humano. A ao moral de cada um, as suas obras de
amor so decisivas, independentemente do fato de cada um entrar no Reino ou
dele ser excludo55.
Ratzinger, aps comentar algumas tendncias teolgicas que foram
surgindo ao longo da histria, chega categoria de Reino, que foi o centro da
mensagem de Jesus. Reino, para a corrente reinocntrica, significou
simplesmente um mundo no qual domina a paz, a justia e o respeito pela
criao56. Este Reino representaria o objetivo final da histria. O seu fim
ltimo. E as religies teriam a tarefa de conjuntamente propagar esse Reino57
.
Porm, por causa do secularismo, Deus desapareceu e, com isto o
reinocentrismo tornou-se uma utopia quase irrealizvel. Ratzinger prope, como
alternativa de um mundo ateu, o regresso fonte de onde emana o Evangelho:
o prprio Jesus real58
. Observa que, quando se fala de Reino, no deve se tratar
de algo iminente ou a constituir-se, mas, sim, da realeza de Deus sobre o
mundo, a qual, de um modo novo, se torna acontecimento na histria59.
De modo muito acessvel ao intelecto humano e, ao mesmo tempo, com
profundidade e amadurecimento reflexivo, Ratzinger conclui que, quando Jesus
fala do reino de Deus/dos Cus, no est criando uma megaestrutura, ou algo que
esteja para alm deste mundo. Mas est to somente falando e anunciando Deus,
simplesmenteDeus e precisamente o Deus vivo, que capaz de agir de modo
concreto no mundo e na histria e que j est exatamente agora em ao60. Em
outras palavras, Jesus est dizendo: Deus existe61.
Ratzinger nos leva a pensar que a mensagem de Jesus muito simples e
profundamente teocntrica, e que a novidade da sua pregao consiste em afirmar
categoricamente que Deus est em ao agora, esta a hora em que Deus se
mostra na histria, de um modo to original, que supera tudo o que aconteceu at
agora, como seu Senhor, como o Deus vivo62. Ainda observa que a traduo
55
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61. 56
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 57
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 58
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 59
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 60
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 61
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 62
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64.
17
reino de Deus insuficiente, pois seria melhor se se falasse da condio
senhorial de Deus ou da soberania de Deus63.
O segundo telogo Jos Antnio Pagola, que, j h certo tempo, vem se
dedicando ao estudo da figura de Jesus e, de modo especial, reinterpretando sua
mensagem sobre o Reino. Faremos uma breve explanao de sua obra Jesus:
Aproximao Histrica, recentemente traduzida para o portugus.
No contato com a obra de Pagola, percebemos a elaborao de um
estudioso que, alm de dedicar boa parte de sua vida ao estudo do Jesus histrico,
tambm um cristo profundamente fascinado pela figura de Jesus Cristo, como
deixa transparecer em seus escritos. Pagola afirma na apresentao de seu livro
que, Jesus o melhor que a humanidade produziu. O potencial mais admirvel
de luz e de esperana com que ns, seres humanos, podemos contar64. O
objetivo do autor possibilitar aos cristos um contato mais prximo com a
pessoa histrica de Jesus de Nazar, sem cair em abstraes de cunho metafsico
ou elucubraes, que mais afastam que aproximam de seu objetivo.
Pagola, no decorrer da obra, tentando ajudar os leitores, enfoca pontos
que, para ele mesmo, ainda no so claros e fceis de serem entendidos e
professados pela f, como tradicionalmente explicada. Assinala que tem
dificuldades em crer num Cristo sem carne, ou seja, tem dificuldade em
acreditar no Jesus da F com ausncia do Jesus histrico, ou em um Jesus
doutrinrio, que somente pode ser encontrado nos manuais teolgicos e no, na
realidade concreta da existncia humana. Adverte sobre o risco de se reduzir a
pessoa de Jesus a um mero objeto de culto, desprovido de sua condio de
profeta do reino de Deus.
Pagola procura ressaltar que no h como chegar ao genuno Jesus, se esse
for desvinculado do Reino. Jesus e o Reino esto em perfeita relao. O que
ocupa o lugar central na vida de Jesus no Deus simplesmente, mas Deus com
seu projeto sobre a histria humana, que culminar com o advento do Reino
definitivo.
O objetivo que perpassa toda a obra o de resgatar a memria a respeito
desse profeta itinerante e carismtico que nasceu e viveu na Palestina, no
primeiro sculo da era crist, e que acreditava ser o Filho de Deus e o
anunciador de uma Boa Notcia de salvao, que consistia na proximidade do
reino de Deus (Mc 1,15). Sua inteno com a obra colocar Jesus disposio
63
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 65. 64
PAGOLA, Jesus, p. 11.
18
de todos, pois sua vida e a mensagem que traz consigo no so propriedade
exclusiva dos cristos, mas patrimnio da humanidade.
Pagola opta pela perspectiva narrativa com a inteno de aproximar o
leitor, crente ou no, do Jesus histrico. Esse o mrito da obra: levar o leitor a
fazer uma experincia semelhante experincia vivida por todas aquelas
pessoas que se encontraram com Jesus, e, assim, aprender com o prprio
Mestre tudo aquilo a que hoje temos acesso pelos evangelhos, mas de que no
temos compreenso satisfatria. O caminho de acesso ao Jesus histrico,
proposto por Pagola, o seguimento a Jesus. Esse seguimento brota de um
encontro pessoal com Jesus, seguido de profundo fascnio que,
consequentemente, leva proposta de Jesus para segui-lo (Mt 4,19) e resposta
generosa de seguimento.
No captulo 3, Pagola esboa um Jesus que um buscador singular de
Deus65, mas de um Deus cujo agir se pauta sobre a compaixo e a misericrdia.
um Deus que quer entrar no corao do povo. Por isso, Jesus vai ao deserto.
Anseia por ouvir esse Deus que, no deserto, fala ao corao66 de forma
amorosa e compassiva. Pois, segundo Pagola, a melhor metfora para expressar a
ideia de Deus a do Deus compassivo67. Jesus, ento, a externalizao da
compaixo divina. Em seu falar e agir, revela o Deus das compaixes. No
captulo 5, desenvolve esse belssimo tema da compaixo, denominando Jesus de
Poeta da Compaixo/ Misericrdia68.
De acordo com Jesus, o reino de Deus uma oportunidade que ningum
dever deixar passar. preciso arriscar tudo que for preciso para conseguir
acolh-lo69. A partir dessa proposio, Pagola comea a se questionar: Ter
razo Jesus? Onde se esconde esse tesouro que ele descobriu? [...] Em que
consiste essa fora salvadora de Deus, que j est transformando secretamente a
vida?70. Pagola comenta que, diante de todos esses questionamentos, Jesus
procurou responder com as parbolas mais belas e comovedoras que jamais
saram de seus lbios71. E todas elas convidam a intuir a incrvel misericrdia
de Deus, como apresentada na cativante Parbola do pai bom72.
65
PAGOLA, Jesus, p. 87-107. 66
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 88. 67
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 88. 68
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 145-186. 69
PAGOLA, Jesus, p. 158. 70
PAGOLA, Jesus, p. 158-159. 71
PAGOLA, Jesus, p. 159. 72
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 159.
19
Jesus um profundo apaixonado pelo reino de Deus: este o norteia e d
sentido a sua vida. Esse amor profundo que Jesus tem pelo reino de seu Pai faz
com que traduza na histria, em gestos efetivos, a Boa-Nova que recebeu de seu
Pai. A Boa-Nova de Jesus consiste em poder afirmar, com certeza, que Deus
est se empenhando em construir uma vida mais ditosa para todos. O sinal
concreto de que Deus est realmente agindo na histria comprovado na
atividade de Jesus, atravs de sua pregao e dos milagres que realiza. O anncio
do Reino realizado por Jesus desenvolvido, por Pagola, no captulo 6, com o
ttulo de Curador da Vida73. Nesse captulo, sintetiza o ministrio de Jesus
enquanto fora curadora de Deus74, que cura os enfermos do mal fsico e
tambm espiritual e liberta o ser humano das foras do demnio75. Jesus tinha
o poder de despertar energias desconhecidas no ser humano, criando com
isso as condies necessrias para que se restabelecesse a sade. No
ministrio de Jesus, Pagola perscruta sinais de um mundo totalmente novo que j
est irrompendo e transformando a realidade deste mundo76
.
Outro trao importante de Jesus para Pagola a acolhida aos pobres. H
uma identificao de Jesus com os ltimos da sociedade de seu tempo. Jesus vai
aos poucos ensinando que o caminho para chegar a Deus no passa
necessariamente pela religio institucional, pelo culto ou ritos pomposos, mas
pela compaixo para com os mais pequeninos. Trata-se de uma grande revoluo
religiosa provocada por Jesus, que abre um novo caminho de acesso a Deus, que
passa pela acolhida e compromisso com os necessitados, sobretudo os mais
pobres. Esse tema Pagola desenvolve no Captulo 7, cujo ttulo Defensor dos
ltimos77. Nesse captulo, Jesus aquele que, ao anunciar a Boa-Nova do Reino,
restabelece a dignidade para os indesejveis da sociedade.
No captulo 8, temos mais uma das novidades de Jesus apresentadas por
Pagola: ele amigo das mulheres78. Diante da discriminao sofrida por elas,
Jesus lana um olhar diferente sobre elas, dando-lhes maior visibilidade e
presena. Mostra como as mulheres fizeram parte do grupo dos discpulos desde
o incio, permanecendo fieis, todo tempo, a Jesus e causa do Reino. O autor
sugere que elas estiveram presentes na ltima ceia e tiveram um papel de
protagonistas na origem da f pascal. Merece ateno a belssima reflexo que o
73
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 191-214. 74
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 202-206. 75
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 206-212. 76
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 212-214. 77
PAGOLA, Jesus, p. 219-252. 78
PAGOLA, Jesus, p. 255-283.
20
autor faz sobre Maria Madalena, a melhor amiga de Jesus79. Pagola apresenta
Maria Madalena como fiel seguidora de Jesus e testemunha da Ressurreio80
.
Desse modo, Pagola oferece um novo modo de reinterpretar a figura histrica de
Jesus e, com isso, reinterpretar o sentido do reino de Deus inaugurado por ele.
Um terceiro autor o telogo jesuta espanhol, IGNCIO ELLACURA.
Para Ellacura, o reino de Deus aquela realidade que Jesus viveu e anunciou
at com a prpria morte. Jesus assumiu totalmente a vontade do Pai, de modo
que sua morte aceita como consequncia de sua fidelidade incondicional ao Pai
e ao reino de Deus. o Reino de Deus que se torna realidade com Jesus e na
existncia dos que recebem sua Boa notcia81. Ellacura insiste em que a morte
de Jesus no deve ser vista como fato isolado, mas em conexo com toda a sua
misso. A morte na cruz a sntese da vida de Jesus.
A realidade do reino de Deus presente em Jesus e realizada atravs de seus
gestos, liga-se prxis crist atual. Ellacura aponta para uma prxis crist que se
desenvolve no esprito de Jesus. A ocorre uma circulao hermenutica que vai
do Reino prxis, mas que volta da prxis ao Reino, com o que ambos os plos
se vo reinterpretando pela presena e o influxo do Esprito de Cristo82. A
relao entre o reino de Deus e a prxis construtiva e explicitadora do alcance
de ambos, a partir das situaes concretas. Isso evidencia que o reino de Deus
no algo abstrato ou meramente terico, mas, o fundamento e o sentido da
Ellacura acredita que necessria uma adequada compreenso do anncio
do Reino, a partir do interior da insero em uma prtica concreta. Nessa prtica,
incluem-se, de modo estrutural, os elementos constitutivos da prtica do prprio
Jesus. O Reino de Deus o fim de uma prxis crist iniciada em nome de Jesus
e sustentada na esperana ativa que flui do Ressuscitado e de sua presena nova
na histria83.
Ellacura reconhece que h um grau de condicionamento nessa forma de
aproximao do contedo do reino de Deus. Porm, no ocorre um
reducionismo do Reino a uma prxis ou realidade meramente temporal.
79
PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 80
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 81
SCHNACKENBURG, Signoria e Regno di Dio, p. 139. 82
ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 83
ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468.
21
Essa formulao da noo de reino de Deus possibilita uma contnua atualizao
histrica da prpria prtica de Jesus84
.
Ellacura entende que no se pode, pura e simplesmente, identificar o
reino de Deus com determinadas prticas de libertao, pois seria
reducionismo. Porm, para que se possa falar de Reino, de modo pertinente e
credvel, preciso que ocorram acontecimentos histricos concretos que sejam
libertao para quem se encontra oprimido. Assim, se torna razovel aceitar-se
que a supresso da misria, da explorao, da fome etc., sejam sinais
comprobatrios de que o reino de Deus j chegou.
Uma das grandes contribuies de Ellacura para o pensamento atual sobre
o reino de Deus a articulao que faz entre a noo de reino de Deus e a vida de
f concreta dos cristos que leva a uma prxis libertadora. Ou seja, o reino de
Deus como realidade concreta e atuante na vida do povo, libertando contra as
foras hostis presentes na histria. Nesse sentido, o seguimento a Jesus e seu
Reino algo concreto. Exige uma prxis concreta. Tanto os cristos como as
comunidades de f esto imbudos do valor histrico e transcendente do reino de
Deus. Por isso, se fala da esperana de um mundo onde se respeite a dignidade
dos mais fracos85
.
A abordagem que Ellacura faz sobre a vida e a atuao de Jesus acentua o
que Jesus fez, relacionando seus gestos com a justia e a converso pessoal e
eclesial a Jesus Cristo e ao reino de Deus. H ntima ligao entre o contedo
cristolgico e a eclesiologia. A Igreja chamada a seguir Jesus no servio
solidrio humanidade. E, no seguimento solidrio a Jesus, o Reino vai
acontecendo e mudando a realidade do mundo.
1.2.4 - A voz da Igreja hoje
A Igreja, na atual transformao da Amrica Latina, luz do Conclio
Vaticano II, apresenta, especialmente, dois grandes documentos conciliares: a
Lumen Gentium, com a nova compreenso da Igreja; e a Gaudium et Spes, que
situa a Igreja dentro do mundo de hoje. Percebemos, assim, na Igreja Catlica do
ltimo meio sculo, uma retomada do conceito do reino de Deus nos documentos
84
Esta compreenso do significado do reino de Deus encontra sua fundamentao no evangelho
de Lucas que, segundo Schnackenburg, pode ser considerado um evangelho histrico. O
evangelista traa a linha da histria da salvao de maneira tal que a presena de Jesus no
mera preparao para o futuro da soberania de Deus. Para Lucas, a fora escatolgica do Reino
de Deus j est atuando eficazmente no presente e se manifesta nos bens salvficos atuais,
sobretudo no Esprito Santo que age na existncia dos discpulos (cf. SCHNACKENBURG, Signoria
e Regno di Dio, p. 140.). 85
Cf. ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468.
22
conciliares Lumen Gentium (LG 3; 9; 35) e Gaudium et Spes (GS 39; 72) e na
teologia da libertao.
1.2.4.1- O Conclio Vaticano II: Igreja Povo de Deus a caminho
do Reino
O Conclio Vaticano II, XXI Conclio Ecumnico da Igreja Catlica, foi
convocado pelo papa Joo XXIII, em 25 de dezembro de 1961, e aberto em 11 de
outubro de 1962, atravs da bula papal Humanae Salutis86
. O Vaticano II foi o
que poderamos chamar de o sonho de Joo XXIII. Duas palavras sintetizam o
que pretendia com o Conclio: aggiornamento e dilogo, como bem observou um
insigne participante87
. Duas realidades que se completam, mas que tambm se
implicam mutuamente.
O Conclio e as prprias encclicas de Joo XXIII olham com especial
carinho e cuidado para todas as situaes concretas que ferem a dignidade
humana e colocam em risco a vida, depondo contra os valores da justia e da
fraternidade, sinais do Reino que a Igreja, no seguimento de Jesus, chamada a
construir. Com o Conclio Vaticano II, repensa-se o lugar social da Igreja, que
deve estar inserida no mundo, com a finalidade de ferment-lo com o fermento
bom do Evangelho, oferecendo a todos, sem excluso, direitos reconhecidos,
dignidade respeitada, enfim, vida nova e plena (cf. Jo 10,10).
Toda a importncia da Igreja deriva de sua estreita relao com Cristo. E
o Conclio Vaticano II, de diversos modos, descreveu a Igreja como povo de
Deus, Corpo de Cristo, Esposa de Cristo, Templo do Esprito Santo, Famlia de
Deus88. Ao enfatizar a Igreja Povo de Deus, o Conclio apresentou uma reflexo
profunda sobre a natureza do povo de Deus, falando do sacerdcio comum dos
fiis e do sacerdcio ministerial, como realidades ordenadas uma a outra (LG
10). O Conclio props uma nova imagem do papa e dos bispos, cujo trao
dominante o de pastor. O prprio magistrio define-se como servidor da
palavra de Deus; no est acima da Palavra, mas a servio da Palavra (DV 10)89
.
Porm, no era suficiente mudar o lugar social. Era necessrio reformular
tambm o lugar eclesial. Se a vocao da Igreja ser sacramento do Reino para
e no mundo, o exemplo deve comear por ela. Ento surge uma das mais belas
intuies do Vaticano II que foi sugerir a imagem da Igreja como Povo de Deus,
com igualdade de direitos e obrigaes, onde o Sacramento do Batismo confere a
86
Cf. BRESSOLETTE, Vaticano II, p. 1820. 87
Cf. LORSCHEIDER, Introduo, p. 6. 88
CERFAUX, As imagens simblicas da Igreja no Novo Testamento, p. 331-345. 89
Cf. LATOURELLE, Vaticano II, in: DTF, Petrpolis-Aparecida, p. 1046.
23
todos a mesma dignidade: um povo de irmos que, na diversidade de dons e
carismas concedidos pelo nico Esprito, responsvel pela misso de construir
o reino de Deus no mundo.
Na Constituio Dogmtica sobre a Igreja, Lumen Gentium, os padres
Conciliares resgataram a imagem bblica de Povo de Deus. Essa conscincia
tem dupla consequncia: uma, a superao de uma eclesiologia jurdica; e a
outra, a conscincia de uma nova relao com o reino de Deus e com o mundo. O
Snodo acena para a Igreja como instrumento de Deus no mundo, cuja misso a
de proclamar a Boa-Nova do reino de Deus. E, para isso, a Igreja precisa estar
inserida no mundo, voltando sua ateno para aquilo que o essencial e o sonho
de Jesus, o reino de Deus.
Com essa viso, est preparado o terreno frtil que tornar fecunda a
Conferncia de Medelln, cujo contexto similar ao do Conclio, porm com
agravantes no que concerne realidade singular da Amrica Latina. Na
Constituio Dogmtica Lumen Gentium lemos:
O mistrio da santa Igreja manifesta-se na sua fundao. O Senhor Jesus deu
incio Sua Igreja pregando a Boa-Nova, isto , o advento do reino de Deus
prometido nas Escrituras havia sculos: Porque se completou o tempo e o reino
de Deus est prximo (Mc 1,15; cf. Mt 4,17). Este Reino manifesta-se na palavra,
nas obras e na presena de Cristo. A palavra do Senhor comparada semente
semeada no campo (Mc 4,14): aqueles que a ouvem com f e entram a fazer parte
do pequeno rebanho de Cristo (Lc 12,32), j receberam o Reino; depois, por fora
prpria, a semente germina e cresce at o tempo da messe (cf. Mc 4, 26-29) (LG 5) .
A Constituio salienta que Jesus iniciou sua Igreja a partir do anncio da
Boa-Nova do reino de Deus, que foi prometido aos antigos e que se torna
realidade na vida e pregao de Jesus. O texto prossegue:
Cristo Jesus que era de condio divina... despojou-se de si mesmo, tomando a
condio de escravo (Fl 2, 6) e por ns, sendo rico, fez-se pobre. (2Cor 8,9): assim
tambm a Igreja, embora necessite dos meios humanos para o prosseguimento da
sua misso, no foi constituda para alcanar a glria terrestre, mas para divulgar
a humildade e abnegao, tambm com o seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai
para evangelizar os pobres, sanar os contritos de corao. (Lc 4,18), procurar e
salvar o que tinha perecido (Lc 19,10). Semelhantemente, a Igreja abraa com
amor todos os afligidos pela fraqueza humana; mais ainda, reconhece nos pobres e
nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor. Faz o possvel para
mitigar-lhes a pobreza, e nele procura servir a Cristo. Mas enquanto Cristo, santo,
inocente, imaculado (Hb 7,26) (LG 8).
24
O texto insiste em afirmar que, se a Igreja inaugurada na pregao de
Jesus quiser permanecer na fidelidade a ele, tem que viver em constante exerccio
de knosis, tem que ser uma Igreja quentica e servidora do Reino.
Quando a Lumen Gentium fala sobre a nova aliana como novo Povo de
Deus, assim se expressa:
Este povo messinico tem por cabea Cristo, o qual foi entregue por causa dos
nossos pecados e ressuscitou para nossa justificao, (Rm 4,25) e, tendo agora
alcanado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos cus. Tem por
condio a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos coraes o Esprito
Santo habita como num templo. A sua lei o mandamento novo de amar como o
prprio Cristo nos amou (cf. Jo 13,34). Por ltimo, tem por fim o reino de Deus,
iniciado pelo prprio Deus na terra, a ser estendido mais e mais at que no fim dos
tempos seja consumado por Ele prprio, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf.
Cl 3,4) e a prpria criao for liberta do domnio da corrupo, para a liberdade
da glria dos filhos de Deus. (Rm 8,21) (LG 9). 34
O novo Povo de Deus, que surge da nova aliana com Cristo, chamado a
viver na liberdade de filhos de Deus, e a nica lei que deve nortear seus coraes
e seu agir a lei do amor. E no basta qualquer tipo de amor, mas tem que ter a
mesma intensidade do amor com que Cristo amou a humanidade (Jo 13,34).
Vivendo a lei do amor em seus coraes, o povo messinico tem a firme
esperana de ser herdeiro do Reino vindouro, que ser consumado no fim dos
sculos. E aqui est uma das grandes intuies do Vaticano II: somos povo
(Igreja) que caminha em direo ao reino de Deus.
A todo o povo de Deus, o Conclio, atravs da Lumen Gentium, lembra
que:
Mesmo quando se ocupam com as tarefas temporais, os leigos podem e devem
exercer preciosa ao para a evangelizao do mundo. Porque se j alguns deles,
na falta de ministros sacros, ou estando os mesmos impedidos no regime de
perseguio, suprem na medida do possvel os ofcios sacros; e se muitos dentre
eles dedicam todas as suas foras no labor apostlico, todos, contudo, devem
cooperar na dilatao e incremento do Reino de Cristo no mundo (LG 35).
O Conclio, fiel s palavras de Cristo, exorta a todos os fiis para que se
empenhem no anncio da Boa-Nova a todas as gentes (cf. Mt 28,19). Recorda
que ningum pode se eximir da obrigao de difundir o reino de Cristo aos
coraes humanos. Diante do Reino que surgir no final dos tempos, na Parusia,
todo o povo de Deus, leigos e pastores, devem somar foras para que o
Evangelho do Reino seja difundido em toda a Terra.
25
A Constituio Pastoral sobre a Igreja no Mundo, Gaudium et Spes,
quando trata da atividade econmica e o reino de Cristo, assim afirma:
Tendo adquirido competncia e experincia, absolutamente indispensveis no meio
das atividades terrestres, observem a hierarquia dos valores, fiis a Cristo e ao
Evangelho, de tal modo que toda a sua vida, individual e social, seja impregnada
do esprito das Bem-aventuranas, destacando-se pobreza. Todo aquele que,
obedecendo a Cristo, procura em primeiro lugar o Reino de Deus, encontrar, em
consequncia, um amor mais forte e mais puro para ajudar todos os seus irmos e
realizar a obra da justia inspirada pela caridade (GS 72).
A Constituio afirma que h uma hierarquia de valores para os cristos,
uns de maior, outros de menor peso, pelo que necessrio um discernimento para
no correr o risco de se apegar ao menos importante e esquecer o essencial, que
o reino de Deus e sua justia. O restante vem por acrscimo (Mt 6,24-34).
Segundo Mateus, devemos viver buscando em primeiro lugar, o reino de Deus e
a sua justia (Mt 6,33). Paulo identifica a justia com o reino de Deus. Pois o
reino de Deus no comida nem bebida, mas justia, paz e alegria no Esprito
Santo (Rm 14,17). 35
1.2.4.2 - De MEDELLN a APARECIDA: Igreja discpula
missionria a servio do Reino
Em 1968, ainda sob o sopro do Esprito Santo presente no Conclio
Vaticano II, realizou-se na cidade de Medelln, Colmbia, a II Assembleia Geral
do Episcopado Latino-Americano, que deu origem ao documento que passou a
ser chamado Documento de Medelln. Em Medelln, explodiu forte o grito
bblico de libertao, de opo pelos pobres, com uma Igreja a servio do Reino.
Foi a que deslanchou a caminhada das CEBs, que procuram vivenciar a prtica
concreta de Jesus e o sonho de realizar o reino de Deus. Termos como justia,
fraternidade, solidariedade, compromisso e caminhada revelam o seguimento a
Jesus e a vontade de implantar concretamente o reino de Deus.
A Igreja de Medelln, amadurecida luz do Conclio, prope e realiza a
abertura de novos caminhos para a Amrica Latina em diversos nveis: na luta
para garantir os direitos humanos dos povos, na substituio do assistencialismo
pela verdadeira promoo humana e social, no empenho consciente para que os
pases em desenvolvimento no deixem na margem os pobres e os operrios, na
articulao de f e vida, na superao do autoritarismo e da centralizao
eclesistica, no valor da vida comunitria e social, na construo de sociedades
solidrias e democrticas que evidenciem os sinais do reino de Deus.
26
Por fim, Medelln prope pistas de ao pastoral, visando a transformar,
no sentido do reino de Deus e da libertao dos pobres, a realidade atravessada
por estruturas de pecado e pelo clamor e esperana dos pequenos. Seu olhar
pastoral parte da periferia do sistema, da sociedade real da Amrica Latina em
processo de transformao.
A III Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em
PUEBLA, no perodo de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. O tema desta
conferncia foi Evangelizao no presente e no futuro da Amrica Latina. Em
Puebla ouviram-se fortes apelos comunho, participao corresponsvel na
Igreja, e defesa da dignidade humana. Puebla representou a busca de uma nova
estratgia pastoral.
Puebla explicitou a opo pelos pobres j presente em Medelln.
importante sublinhar o significado transcendente dessa opo evanglica e, ao
mesmo tempo, estratgica para a vida e a pastoral da Igreja. Iluminada pela
opo de Puebla, o agir da Igreja no mais devia articular-se a partir do poder,
mas a partir do pobre, na tica do pobre. A Igreja devia entrar no tecido social
pela porta da sociedade civil e, nela, pelo caminho dos pobres90
. O agir eclesial
possibilitaria a construo de uma Igreja fundada no binmio comunho e
participao. Comunho, enquanto criaria as condies de unidade do corpo
eclesial em vista da sua misso evangelizadora, participao, enquanto criaria
as condies para um compromisso efetivo na transformao da realidade social.
A IV Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em
SANTO DOMINGO, no perodo de 12 a 28 de outubro de 1992. Foi convocada e
inaugurada pelo Papa Joo Paulo II. Santo Domingo teve um objetivo bastante
especfico: comemorar os 500 anos da evangelizao do Continente e fazer-lhe
um balano. O tema j orienta para isso: Nova Evangelizao, promoo
humana, cultura crist. Ele aponta para a evangelizao inculturada que postula
uma pedagogia pastoral adequada. Santo Domingo, tambm, valorizou o
protagonismo do leigo na Igreja.
Em Santo Domingo aparecem dois grandes temas que servem como fio
condutor de todo o Documento: a promoo humana e a inculturao. Postulam
nova pedagogia pastoral para o projeto da nova evangelizao. A discusso
central deu-se justamente, em torno da nova evangelizao. Como deve ser a
evangelizao para ser nova em relao aos processos tradicionais de
evangelizao? O que ela exige de cada cristo?
90
88 Cf. PALCIO, Uma conscincia histrica irreversvel, p. 59-83; CALIMAN,
Identidade histrica da Igreja no Brasil nos ltimos 20 anos, p. 17-33.
27
Na preparao da Assembleia de Santo Domingo havia duas tendncias na
abordagem da questo da cultura e da inculturao91
. Uma compreendia a cultura
como a conscincia consolidada de um grupo social, ligada a formas culturais j
assentadas historicamente. Essa corrente tendia a compreender a cultura crist
como meta-cultura, reguladora das demais, superior s demais. Preferia falar
de evangelizao da cultura. A expresso cultura crist, nesse contexto,
dificilmente escapa suspeita de fazer parte da proposta de nova cristandade.
A outra tendncia buscava justamente a compreenso mais dinmica e
processual. Apresentava a cultura como processo ligado ao mundo vital dos
sujeitos histricos concretos. Este mundo vital dos sujeitos culturais
diferenciado, plural. Neste sentido, a evangelizao, para ser nova, deve partir do
pressuposto de que toda cultura pode chegar a ser crist, ou seja, a fazer
referncia a Cristo e inspirar-se nele e em sua mensagem92. Essa tendncia
prefere falar de evangelizao inculturada. Visa promoo da pessoa humana
no sentido da libertao integral e inculturao do Evangelho nas culturas.
De 13 a 31 de maio de 2007, realizou-se em APARECIDA, So Paulo, a V
Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, solenemente
inaugurada pelo papa Bento XVI. Os bispos tiveram a oportunidade de refletir
sobre a realidade e os desafios eclesiais latino-americanos. Como concluso, foi
elaborado um documento com o ttulo: Discpulos missionrios de Jesus Cristo
para que nossos povos nele tenham vida. Textos conclusivos da V Conferncia
Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que servir para orientar a
caminhada da Igreja Latino-Americana e Caribenha no trabalho pastoral e
evangelizador dos prximos anos.
Nosso tempo caracteriza-se para alguns, como ps-cristo, ou ps-
cristandade. Nele de fundamental importncia a personalizao da f, ou seja, a
reconstruo do elo perdido entre o indivduo e a f eclesial. Para que o fiel
discpulo de Jesus Cristo chegue a ser missionrio, preciso que a apropriao
subjetiva da f, como experincia pessoal, seja acompanhada por uma adeso
firme aos contedos objetivos da f. S assim o individualismo religioso pode ser
vencido. O cultivo da intimidade com o Deus de Jesus Cristo se torna fonte de
entusiasmo missionrio pelo reino de Deus.
A Conferncia de Aparecida significou para a Amrica Latina uma hora
de graa, um novo Pentecostes, um autntico acontecimento salvfico que ps
a Igreja, peregrina nestas terras, num estado permanente de misso (DAp 547).
91
Cf. TABORDA, Nova Evangelizao, promoo humana, cultura crist, p. 9. 92
JOO PAULO II, Discurso Inaugural, Concluses de Santo Domingo, n. 4.
28
O mtodo VER-JULGAR-AGIR perpassa o documento inteiro, mesmo
que seja de maneira bastante sutil. O julgar marcado por trs eixos que
explicitam a experincia crist: a) o encontro pessoal com Jesus Cristo que nos
torna discpulos missionrios, fonte de grande alegria e paz (cap. III-IV); b) a
vivncia eclesial, onde todos se sintam acolhidos e valorizados como sujeitos
eclesiais (cap. V); c) o processo formativo permanente, capaz de gerar convico
forte e corajosa (cap. VI). O agir que segue misso para valer, fecundo e
permanente. Atinge de cheio a realidade socioeconmica, poltica, cultural,
religiosa (cap. VII-X).
Algumas novidades que aconteceram na V Conferncia Episcopal: 1) A
presena de um nmero significativo de participantes de todos os estados do
Brasil, que fez com que os bispos no se esquecessem da Igreja Povo de Deus,
ainda mais por se realizar no santurio mariano que tem sua histria relacionada
com o povo pobre, os negros e excludos da sociedade. 2) O Frum de
participao fazendo referncia aos mrtires da Amrica Latina e do Caribe,
homens, mulheres e crianas que doaram a vida pelo reino de Deus. 3) A
presena de um grupo de telogos(as), exegetas, pastoralistas e cientistas sociais,
e do grupo Amerndia, que colaboraram com os bispos na linha da reflexo
teolgica, bblica e pastoral. 4) A retomada da colegialidade na Igreja latino-
americana e caribenha.
Chama a ateno a retomada da opo pelos pobres, que a V Conferncia
inseriu na f cristolgica. Pode-se ainda elencar outros aspectos importantes,
como o dilogo ecumnico e interreligioso, base fundamental para se construir
um mundo de justia e de paz.
Outro ponto salientado pelo Documento a realidade de excluso, fome e
violncia, presente na Amrica Latina e no Caribe. O documento d ateno
especial ao cuidado para com os pobres e excludos. A V Conferncia mostrou
o rosto indgena e afro-americano da Igreja latino-americana e caribenha.
Outro fruto importante foi o tema da vida para todos os homens e
mulheres, vida para todas as criaturas, vida para a natureza. Enfim, para que
todos tenham vida e a tenham em abundncia (cf. Jo 10,10).
Clodovis Boff afirma que, em Aparecida, a opo pelos pobres ganha
nova amplitude:
Foram identificados novos rostos da pobreza: os desempregados, os refugiados e
migrantes, os aidticos e os txico-dependentes, a populao de rua, as mulheres
vtimas da violncia e explorao sexual, os presos e tantos outros rostos mais.
Mas, , sobretudo, a qualidade desta opo que mais sublinhada pelo documento.
29
Trata-se de uma opo verdadeiramente evanglica, no sentido de vir banhada e
mesmo encharcada da f em Cristo. E isso, tanto em sua origem (ela nasce do
encontro com o Filho de Deus, que de rico se fez pobre) quanto em seu exerccio
(ela vibra com os sentimentos do corao do Bom Pastor). Quanto s aplicaes
concretas, alm das indicaes prticas que do, os bispos apelam para a
imaginao da caridade, a que se referiu Joo Paulo II93.
O rosto da Igreja esboada pelo Documento de Aparecida de uma Igreja
profundamente missionria, que anuncia com alegria e entusiasmo a Boa-Nova
do amor de Deus em Cristo e, nesse amor, o ser humano encontra sentido para
sua existncia concreta. Igreja servidora cuja atitude concreta se traduz no
cuidado com os irmos, em especial os mais necessitados. Clodovis Boff diz que
a Igreja da V Conferncia ser uma Igreja agpica, enquanto se faz samaritana
de todos os cados beira das estradas do mundo, cuidando deles e curando-
os.94
Para Joo Batista Libanio,
Uma das grandes luzes de Aparecida decorre da alegria de ter-se encontrado com
o Senhor. De tal experincia, brotam os desejos de segui-lo e anunciar-lhe o
Evangelho do Reino da Vida aos povos latino-americanos. A revitalizao da vida
do discpulo missionrio parte de um fato primeiro que se traduz na alegria de ser
discpulo para anunciar o evangelho do Reino da Vida. H uma boa notcia que
antecede ao cristo, que ele recebe e de que faz porta-voz convencido. Na base de
tal convico est o encontro com Cristo, que chama para segui-lo e o envia para o
anncio na fora do Esprito Santo95
.
O prazo se cumpriu. O reino de Deus est chegando. Convertam-se e
creiam no Evangelho (Mc 1,15).
Na prxima Assembleia Ordinria do CELAM, que se realizar em Cuba
ser trabalhado o projeto da Grande Misso Continental. preciso aguardar para
saber quais sero as iniciativas propostas para marcar essa nova etapa na
caminhada pastoral da Igreja Latino-Americana e Caribenha.
1.2.5 A prtica das nossas comunidades
Para entendermos as prticas de nossas comunidades, faz-se necessria
uma releitura de algumas prticas do passado, a fim de termos uma compreenso
93
Entrevista de Clodovis Boff concedida Revista do Instituto Humanitas Usininos: Os rumos da
Igreja a partir de Aparecida, p. 17. http://www. ihuonline. unisinos.
br/uploads/edicoes/1182195938. 41pdf. pdf acessada em 11/07/2010. 94
BOFF, C. Os rumos da Igreja a partir de Aparecida, p. 15. 95
93Entrevista de Joo Batista Libanio concedida IHU: Aparecida significou quase uma surpresa.
30
mais consistente da realidade atual e encontrarmos luzes que possam nortear o
momento presente.
Para a Reforma e o Renascimento, a f a confiana na graa que salva
e nos liberta da lei, inclusive da Lei de Deus96
. A graa justifica o ser humano e,
recoberto por ela, a justia de Cristo o faz justo, mesmo que permanea no
pecado. A justificao, para a doutrina luterana clssica, a imputao forense da
justia legal: no somos justos, mas apenas considerados justos. Confiando nesta
justia crendo nela possvel estar seguro de ser salvo. Esta segurana-
confiana a essncia da esperana protestante: j estar salvo em Cristo! Pode-se
dizer que esta esperana a presuno da salvao presente e, portanto, no
mais a esperana, pois nada mais se espera, apenas se considera o dom gratuito
como propriedade individual. Os catlicos tambm correm o risco de cair na
presuno de batalhar, apenas, para sua converso e salvao individuais e
esquecer-se de criar meios que auxiliem o evangelho a chegar a todos os
coraes, porque Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento
dEle, que a verdade (cf. 1Tim 2,3-4).
O individualismo pastoral separa da verdadeira vida que existe no
conjunto. S a unidade doutrinal e pastoral capacita a Igreja para mostrar que
merece credibilidade. O testemunho arrasta e molda as conscincias para um
ritmo de permanente converso, ao contrrio de palavras dos mestres
conhecedores de toda a verdade: mais acolhimento e menos condenao, mais
humanismo integral e menos moralismos redutores.
interessante perceber o individualismo na Igreja. Em grupos catlicos
carismticos, por exemplo, mais facilmente se conecta com carismticos
catlicos de outros pases do que com catlicos no carismticos do bairro, onde
se mora, estuda e trabalha. A religio aproxima os iguais e os distancia dos
outros, agrega e imprime identidade, como faz a cultura. Mas, como se trata de
uma escolha e no mais de um atributo herdado, o outro do qual tal pessoa se
afasta pode ser a prpria famlia ou indivduos que, naturalmente, lhe seriam
prximos.
A formao a nica forma de permitir f adulta explicar como agir e
como intervir com corresponsabilidade. Seno, corre-se o perigo de cair numa
espcie de pentecostalismo, que tira proveito da quebra do monoplio catlico,
da fraqueza institucional da Igreja Catlica e da longa tradio mgica da
religiosidade popular latino-americana.
96
Site Monfort
31
Existem talvez trs falhas graves no modo de o cristo viver a f:
a) F individualista: a busca das foras transcendentes e da religio para
atender a interesses individuais, sobretudo de ndole material. Quem assim se
comporta facilmente, procura manipular Deus e todas as foras religiosas.
Analisando a religiosidade dos fiis catlicos, percebe-se que o
devocionismo est carregado de busca pelo milagroso, extraordinrio, esotrico,
de manipulao dos santos em favor do restabelecimento da sade e aquisio de
emprego, dinheiro e sucesso. Em geral, so os fiis que tm defasagem no
conhecimento bblico. No demonstram esforo de converso eclesial, que se
abra aos demais grupos, mas somente uma pseudo-converso, profundamente
intimista e individualista, que os leva a valorizar o imediatismo (curas, riquezas
etc.) e a no assumir responsabilidades e compromissos eclesiais e sociais. A
converso, em seu sentido genuno, torna o ser humano aberto ao outro, o
desaloja do egocentrismo religioso e o lana para o horizonte do Reino,
colocando a soberania de Deus em primeiro lugar. Procurai primeiro o Reino e a
justia de Deus, e tudo isso vos ser dado por acrscimo (Mt 6,33).
H tambm outra faceta do individualismo entre os catlicos: a busca de
Deus para satisfao afetiva e emocional. Evidentemente, esse tipo de f
individualista no conduz melhora nas relaes tanto familiares como na
sociedade.
b) F intimista. A nfase da f intimista est, acima de tudo, em sentir-se
bem, na compreenso de que a religio existe para isso: cura interior,
autossatisfao. Na f intimista, alguns valores evanglicos se ofuscam, como,
por exemplo, a caridade, a solidariedade, o compromisso social, segundo os
valores do Reino.
c) F desencarnada. A f individualista e intimista , obviamente,
desencarnada, com o risco de um cristianismo de gueto, que no estabelece
dilogo com o mundo e carece da dimenso proftica de anunciar os valores do
Reino e denunciar as injustias sociais.
d) F superficial. A f superficial um verniz. necessrio um processo
de aprofundamento e vivncia da f que possibilite a vivncia comunitria,
criando condies para a educao da f das crianas e dos jovens, na famlia, na
escola, nos meios de comunicao e, sobretudo, na comunidade eclesial.
O Papa Bento XVI, na Encclica Spe Salvi, ressalta o perigo da
esperana da salvao individual e egosta, afirmando que a esperana
32
bblica a respeito do reino de Deus foi substituda pela esperana do reino do
homem, pela esperana de um mundo melhor que seria o verdadeiro reino
de Deus (SS 13-15).
Acreditamos que necessrio, para superar a tendncia constante de se
voltar para uma f e uma converso individualistas, uma maior ateno
catequese, para que esta assuma realmente o seu papel de formar cristos adultos
na f, capazes de dialogar com as diferenas e entender-se como ser em constante
necessidade de converso, a fim de vencer o individualismo que impede a
verdadeira comunho que conduz ao reino de Deus. A formao teolgico-
pastoral dos agentes de pastoral e movimentos atravs das escolas de formao
(Teologia para Leigos) deve possibilitar cristianizar os valores que o adulto
possui, favorecendo a experincia pessoal com Jesus Cristo; retirar a pessoa da f
intimista, individualista e desencarnada, que a fecha em si a desvincula do
compromisso tico no seu agir; e apontar a converso como caminho de encontro
pessoal com o Deus do Reino e com a comunidade fiel que aguarda a chegada do
Reino definitivo.
1.3 - Conceitualizao bblico-teolgica
Depois de constatarmos essa tomada de conscincia, podemos tentar uma
conceitualizao provisria do nosso tema, segundo as grandes linhas da teologia
bblica.
1.3.1 A converso
Iniciamos a abordagem bblica pelo tema da converso, que est presente
nos textos bblicos desde os primrdios, especialmente nos textos profticos, e
permeia o conjunto das Escrituras. Deus convida o ser humano a entrar em
comunho com Ele. Ora, trata-se de homens pecadores. Pecadores de nascena
(Sl 51,7): por culpa do primeiro pai, o pecado entrou no mundo (Rm 5,12) e,
desde ento, habita no mais ntimo do seu eu (7,20). Mas Deus no deixa de
chamar os pecadores. A resposta a esse chamado de Deus exigir deles, no ponto
de partida, uma converso, e depois, durante toda a vida, uma atitude penitente.
Por isso, a converso e a penitncia ocupam um lugar considervel na revelao
bblica. Contudo, o vocabulrio que as exprime s aos poucos foi assumindo seu
pleno sentido, medida que se aprofundava a noo do pecado. Certas frmulas
evocam a atitude do homem que deliberadamente se orienta para Deus: buscar a
YHWH (Am 5,4; Os 10,12), buscar a face (Os 5,15; Sl 24,6; 27,8),
humilhar-se diante dele (1Rs 21,29; 2Rs 22,19), firmar nele o corao (1Sm
33
7,3). Mas o termo mais empregado o verbo shb97, traduz a ideia de volta,
voltar, de tornar atrs, arrepender98. Teologicamente, shb a palavra mais
importante, porque usada com mais frequncia no sentido tcnico do
arrependimento ou afastamento humano do pecado99
. Em contexto religioso,
significa afastar-se do que mau e voltar-se para Deus.
Como converso um chamado para mudar ou retornar, o Antigo
Testamento enfatiza que Deus quem faz a proposta inicial: Voltai, filhos
apstatas! Curarei completamente vossa apostasia (Jr 3,22). Na histria de
Israel, surgem mediadores, como Moiss e os profetas, que se tornam porta-
vozes para a palavra de Deus, porm, sempre Deus quem faz o chamado100
.
A converso veterotestamentria descrita no como acontecimento
nico, mas como processo constante de realinhamento com Deus101
. Por meio da
converso, o ser humano vai, aos poucos, mudando suas disposies interiores
para reatar de novo o seu relacionamento com Deus.
Quando a Escritura afirma que os prprios israelitas so chamados
converso, a voltar para o pleno relacionamento com Deus, isso significa que a
converso no voltar-se para algo totalmente novo, mas, sim, retornar ao que
antes era conhecido102
.
Nisto se define o essencial da converso, que implica a mudana de
conduta, uma nova orientao de todo o comportamento. Em poca tardia, fez-se
maior distino entre o aspecto interior da penitncia e os atos exteriores que ela
provoca. Por isso, a Bblia grega usa, conjuntamente, o verbo epistrefein, com a
conotao de retorno a Deus, do qual resulta a mudana da conduta prtica, e o
verbo metanoein, que visa virada interior (a metanoia o arrependimento, a
penitncia). Analisando os textos bblicos, preciso considerar esses dois
aspectos distintos, mas estreitamente complementares.
No Novo Testamento, a forma verbal metanoeo significa mudar de ideia,
arrepender-se, converter-se e pouco usada com o significado de converso.
Marcos faz uso apenas uma vez do substantivo metanoia e, duas vezes, do
verbo103. O substantivo aparece no ministrio de Joo Batista que prega: um
batismo de converso (metanoia) para o perdo dos pecados (Mc 1,14). Mateus
97
Cf. WITHERUP, A converso no Novo Testamento, p. 19. 98
Cf. WITHERUP, A converso no Novo Testame