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1 O RATO NO QUINTAL -conto- 2005 CAMILA APPEL * todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*

O rato no quintal

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O RATO NO QUINTAL

-conto-

2005

CAMILA APPEL

* todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de

Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*

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Ainda na diagonal, João se olha no espelho enquanto escova dentes, procurando defeitos no rosto, algo que

queira mudar. Prepara agenda do dia, refresca boca para se

dar conta de que noite acabou. Hum, essa escova de dentes

já era, passo hoje na farmácia para comprar uma nova.

Pronto, mote do dia está dito. Prepara as horas ao redor do

ato de comprar uma nova escova. Que delícia, à noite vou

escovar os dentes com escova nova, vi na TV aquela que faz

assim, gira redondo e limpa tudinho. Anseio pela compra

suprimindo, provisoriamente, pela dor da morte de uma

história de amor. Ao abrir a porta, um berro entra pela

janela: Ahhh, um rato! Chama a atenção já não difícil de

ser atraída. Corre para o quintal comum.

Antonieta acordou passada por sonho ruim, feliz em

estar de volta ao mundo dos mortais. Ainda sente arrepio de

espinha do sonho tão real que a fez questionar se o sonhar

não ocupou lugar do acordar. Este sentimento precisa sumir.

Cozinha é a primeira opção, leite com sucrilhos adormecido

e pão de chocolate guardado para manhã especial. Acabou o

suco, tudo bem, passo no supermercado e se tiver sorte

encontro aquele homem lindo que faz compras lá três vezes

por semana às oito da noite, ainda de terno, camisa

amassada e gravata frouxa, sexy. Antonieta queria mesmo era

mudar-se dali. Vida endemia, rotineira, monótona. De

repente vizinhos mais charmosos, mais solteiros e menos

sozinhos. No meio do devaneio, lembrança do aniversário

daquele tio enganoso, que mora no interior. Programa-se

para ligar só à noite, quando ele estiver bem cansado e não

queira desenvolver assuntos. Se arruma. Antes de abrir a

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porta, um berro no quintal comum: Ahhh, um rato! Olha pela

janela. Claro, um rato. Mas claro. Demorou! Desce correndo.

Maria acorda num pulo só. Feliz, aberta em mente e

coração. Prepara-se para abrir cortina esperando definição

do humor. Se faz sol, é notícia boa, humor positivo. Se faz

chuva, é cara feia, roupa preta e bar a noite cancelado.

Resolve não abrir cortina, liga televisão na previsão do

tempo, para adicionar pimenta à expectativa. Previsão é

boa, mas eu é que não acredito, sempre me enganam. Vai

tomar banho, sem esperanças. No caminho, passa pela cortina

do corredor que esqueceu de fechar. Vejam, SOL! Maravilha,

que amarelo bonito, aura boa. Cai uma lágrima no processo

de cicatrização. O sentimento ruim matinal transformado

pela sensação boa de surpresa. Dia lindo, vou de branco e

nem maquiagem preciso. Pronta e feliz, abre porta do

quarto. Vai descer a escada quando escuta alguém berrar:

Ahhh, um rato! Paralisa.

Vinícius está de ressaca. Despertador vem avisando que

o dia não será fácil. Toca sem restrição. Não se tem mais

respeito hoje em dia! O que é isso? Paranóia total. Aquele

barulhinho entra no ouvido. Amargura os tímpanos, os

neurônios e faz tudo parecer uma continuação da balada da

noite anterior. Balada seca, ponte aguda, metálica e

intransferível. Não, não existe pior sentimento no mundo,

passa logo pelo amor de Deus, preciso me arrumar e sair, é

tarde. Vai vendo o relógio franzir testa, abrir bocão e

dizer horas. Ô ditador, ô ditador. Despertador com

bigodinho preto e cara de Hitler. Manda e desmanda, ameaça

de morte e ordena levantar. Mas eu não quero, não quero.

Batalha com o Hitler despertador, que berra Heish, Heish e

diz: Vinícius, Vinícius, Vinícius, acorda rapaz, sua hora

chegou, abra os olhos, anda até a pia, vai. Pior é saber

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que encontro se repete todos os dias. Mas despertador muda

de rosto, graças a Deus. Ontem mesmo foi Marilyn Monroe,

até dançava com saia levantando, sorriso encantado, feliz

em ver uma ereção matinal. Mas, hoje, justo hoje, veio o

Hitler. Vai até cozinha, olha uma borboleta azul parada na

frente da garrafa de água. Lá se vão uns minutos preciosos.

Borboleta é parte do sonho? Psiu, psiu, psiu. Tem alguém

ai? Borboleta encara mesmo. Para ver até onde esse homem

vai. Me pega, pega, me come. Não, hoje não é dia da

borboleta azul. Lança metálica enfia no cérebro e atenção

vai direto para o jarro de água. Banho, sabão, gravata, no

coração. Abre porta de casa, quando escuta uma voz lançar

pinos de aço de uma só vez: Ahhhh, um

rrraaaaattttooooooooooooooooo!

Credo.

Margarida, Margarida. Levanta-se empolgada. Dança,

canta, enlouquece com o pijama novo. Que delícia. Foi ELE

quem deu. Hum. Lindo demais. Ainda posso sentir aquele

gosto, aquela mão. Pele gostosa. Carinha única de clímax e

satisfação. Cantarola um orgasmo. O que eu tenho que fazer

mesmo? Ah, escovar os dentes, o cabelo, escolher a roupa.

Ah, está bom, Está ótimo! Qual vem primeiro? Banheiro.

Clarooo. Estou inddduuu. Já vouu. Banheirooo. Lindo

banheiro. Me aguarde, que eu vou ficar linda! Margarida

pega o celular, que nunca mais dormiu desligado depois que

ELE apareceu. Prepara uma mensagem de texto: acordei

pensando em você, toda molhada. Monólogo na pia: Ah, ele

vai enlooouuuquecer com isso. Não, melhor esperar, mandar

daqui a pouco. Vai que ele já está em reunião. Haha.

Imagina a cara de envergonhado. Que lindo. E se não

responder imediatamente? Será que vai achar que estou sendo

muito agressiva? Intrometida? Não. Deixo para a hora do

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almoço, que ele tem tempo para pensar e vai ser em mim o

almoço inteiro. Sim. E se não tiver tempo, pedir delivery,

e comer na própria mesa? Vai ficar zangado. Despejar mau

humor em mim. Não. Melhor mandar mais a noite, um pouco

antes de sair do trabalho. Já sai e vem me buscar, sem

tempo de dizer oi, me joga na cama e me toma por inteiro.

Ah, eu dou, dou tudo. Mas, a noite não vai ter mais sentido

escrever ‘acordei toda molhada’, vai? Decide por não mandar

mensagem e se arruma com uma espécie de sentimento

desconfortável, de futuro previamente frustrado. Sai de

casa rápido para não cair na tentação do celular. Aí meu

Deus, porque fui me apaixonar? Não quero trabalhar hoje.

Chega o berro: Ai, um rataaoooo! Rato? Ratão, ratão, vou

já!

Patrick não acordou. Porque não dormiu. Assistindo

jornalismo 24 horas e reclamando do mundo cão. Tem que ter

bomba mesmo. Muita bomba. Para todos os lados. Bomba tudo

gente, não deixa restar nada. Esse pessoal é muito mole. O

que é isso? Acompanha notícias de acordo com fuso horário,

Japão, China, Nova Iorque, Londres. Vê que já é dia e

largatixa até cozinha. Uma voz ao longe da TV: ameaça

terrorista! Desvia do caminho traçado, volta para poltrona.

Eba, eba, ameaça das grandes. É agora. Vou ser o primeiro a

saber! Entra na Internet. Quem sabe tem um texto pronto.

Copy and paste para todo mundo. Disseminando a ameaça.

Disseminar. Disseminar. Nada mais natural para um homem

macho. Risadinha marota. Voz anuncia novas informações,

retirando teor emergencial da notícia e desculpando-se do

alarme, falso. Que bom, irônico. Até hoje se martiriza por

não estar ligado na TV na hora do atentado do onze de

setembro. Ah, se ele tivesse acompanhado desde o começo,

avião por avião. Que emoção seria. Tudo bem, vou ao jogo de

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futebol daqui a três dias. Será emocionante. Há semanas

fala do tal jogo. Como comprou ingressos com super

antecedência, como pretende chegar super cedo para parar o

carro naquele super lugar que só ele sabe. Sair do estádio

na hora exata para fazer um ziguezague e fugir da multidão

como só ele sabe fazer, ainda com tempo de parar na

barraquinha que faz um super X-tudo como nenhuma outra.

Come o X-tudo no trânsito, já esperado, mas minimizado. É

um estrategista. Está feliz de novo, tem um plano em mente.

Três dias, só três dias para o jogo. Abre porta de casa,

alegria engraçada. Quando: Ai, socorro, socorro, meu Deus,

um ratttoooo, pelo amor de Deus. AHHHHH! Não sai correndo.

Entra dentro de casa para pegar o anti-rato mega ultra

spray, cheiro uva. Pensa antes se leva o celular. Sim,

celular é bom, nunca se sabe, tem amigo jornalista que

adora história de bairro. Armado sim, sai correndo.

Reunião no quintal, todos focados.

Cadê, Cadê o ratão? Deixa comigo!

Dona Luz está aterrorizada. Saiu para deixar o lixo na

esquina, quando se deparou com o rato no caminho, conforme

conta a todos, entusiasmada e pasmada: O rato é gigante,

com dois dentes na frente, grandes e separados, que é para

mastigar bem. Ele vem do esgoto do bairro vizinho, que

serve de aterro da cidade grande. É rato do lixo, daqueles

que transmitem doença. Mata na hora. Ainda não descobriram

a cura, não se sabe o que pode acontecer, quais são os

efeitos. E eles não andam sozinhos. Andam assim, como é

mesmo o nome? Em BANDO! Aos montes. Onde tem um, têm

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vários. Espalhando doença contaminosa, matando tudo e

todos.

Nossa - exclama a platéia.

Margarida manda uma mensagem de texto ao namorado contando

do perigo que enfrenta. Patrick já começa jogando spray

cheiro uva em tudo. Vinícius esquece da dor por motivo

maior. Maria pensa que um dia bonito assim não vem de graça

e suspira aliviada. Alguma coisa ruim tinha que acontecer.

João alegra-se por ter uma desculpa para chegar atrasado no

trabalho e resolve que dali só sai quando o rato estiver

morto e enterrado. Antonieta já nem mais quer saber onde

está o tal do rato. A desculpa procurada foi encontrada.

Agora que ela muda de casa. A mãe vai entender que com rato

não dá para morar. O perigo mora ao lado. Patrick faz

contagem dos mortos, passados e futuros. Imaginando o

animal selvagem dominando a cidade.

Guerra declarada, cada um com um papel, uma função. Quem

achar o rato primeiro leva o benefício do heroísmo. Quanta

adrenalina. Aos poucos, os vizinhos ficam sabendo e correm

para o quintal na procura de alguma coisa que nem fazem

questão de saber. Trazem novas armas. Discutindo qual tem a

melhor eficácia. Pá contra pá.

Dona Luz manda todo mundo fazer silêncio para escutar o

runido. Ele não pode ter ido longe. Margarida avista o rabo

e: Achei! EU achei! Vinícius corre para seu lado procurando

o tal. Não enxerga nada. Não tem rabo! Tem sim, tem um

grandão, que balança o chão, esse rabo é de cortar a pele.

Todos se movem em direção ao canto direito-sul onde

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Margarida se encontra. Mas nada do rato. João: De repente

ele correu no meio e se escondeu do outro lado, perto do

lixo! Movem-se para o outro lado. Agachados, armados, na

procura. Em busca. Atenção total. O sol já está forte.

Esquenta o chão, que arde. Difícil procurar rato com essa

luz na cara. Maria até reclama: Para que esse sol todo? Só

atrapalha! Todos concordam.

Um menino surge de dentro do quarto escuro. Olha todos

correndo e se diverte. Controle remoto na mão. Carrinho de

corrida com cauda. Eles é que sabem se divertir, olha só

como brincam! Patrick olha o menino no canto. Pára para

pensar e não entender. Chega de ameaças frustradas. Pega um

saco, agarra alguma coisa esquisita no chão e berra: Achei!

Achei O rato. Cadê? Cadê? Tá aqui morto dentro do saco! Vou

jogar fora. Rápido, Dona Luz, traz o lixo. Todos seguem com

raiva. Xingando e provocando o conteúdo. Maria: Credo, que

nojo. Morre retardado. Finalmente se entreolham. Bons dia´s

no ar, coisa que nunca acontece.

O que eu tinha que fazer mesmo? Ah, mensagem de texto,

escova nova, menino no supermercado, ressaca braba, sol não

vá embora, filha volta logo, promoção, tô atrasado. Lavagem

de alma. Gostoso. Sentimento bom.

Margarida manda mensagem de texto angustiada ao namorado

que, preocupado, promete um jantar romântico para esquecer

o ocorrido. Antonieta vai arrumar onde morar amanhã e ter

um algo a mais para falar com o tio, deixando o feliz

aniversário mais saboroso. Assunto prometido. Vinícius vai

trabalhar só à tarde. Se o chefe acreditar, vai entender.

João tem vontade de compartilhar com a ex, ainda bem que

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você mudou daqui. Riem juntos. Patrick nem resmunga muito.

Ele é O herói. Sabia que tinha vocação. Ressuscita o sonho

de detetive. Dessa vez compra uma arma. E assim seguem seus

rumos. Na saída, saúdam o menino sentado no banquinho. Que

observa e compreende. Que quem sabe fantasiar mesmo são os

adultos, quero crescer logo!