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O processo de mitificação de Euclides Miragaia e os reflexos da revolução
constitucionalista de 1932 no município de São José dos Campos (1932-1988)
PEDRO ELIAS FERREIRA MENDONÇA*, LARISSA RAFAELA SOUZA*,
VALÉRIA ZANETTI*
Resumo: Esse trabalho tem por objetivo analisar o processo de mitificação em torno da
construção da figura do joseense Euclides Bueno Miragaia, um dos estudantes mortos durante
a Revolução de 1932, em luta contra a política autoritária de Getúlio Vargas, no município
paulista de São José dos Campos. Utiliza-se, como fonte primária, o documento produzido pela
câmara municipal do município, denominado “A revolução de 32 e seu protomártir Miragaia”,
de autoria do vereador Geraldo Marcondes Cabral, produzido no ano de 1988. Tal documento
demonstra o sentimento nacionalista exacerbado e a construção da identidade paulista em torno
da revolução constitucionalista de 1932. O estudo permitiu compreender como o documento
supracitado contribuiu para um duplo processo de reafirmação da identidade paulista e da
cidade de São José dos Campos, mostrando o poder do discurso pautado nas representações dos
segmentos hegemônicos.
Introdução
O presente trabalho, de caráter exploratório, busca analisar o documento da câmara
municipal de São José dos Campos intitulado “A revolução de 32 e seu protomártir Miragaia”
e sua narrativa com pretensões historiográficas auto afirmadas nas primeiras páginas ao
enfatizar que, por meio dessa obra, o leitor conheceria a “verdadeira história do estado
bandeirante”, no momento em que se decide lutar contra a ditadura varguista (CABRAL, 1988:
1 - 6).
Além de apresentar a narrativa do documento, tem-se por objetivo contra argumentá-la
com respaldo em uma historiografia selecionada que trata sobre o mesmo tema, buscando
entender as raízes da narrativa e as visões apoiadas pelas classes dominantes hegemônicas,
* Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), graduando em História. Núcleo de Pesquisa Pró-memória São José
dos Campos. * Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), graduanda em História. Núcleo de Pesquisa Pró-memória São José
dos Campos. * Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), dra em História Social. Coordenadora e pesquisadora do Núcleo
de Pesquisa Pró-memória São José dos Campos.
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participantes ativas do processo histórico de 1932, reafirmando assim a ideia de paulistanidade.
Entende-se, por esse conceito, a definição dada por Luis Fernando Cerri em “A Ideologia da
Paulistanidade e a Escola”:
A paulistanidade é a ideologia produzida pela oligarquia paulista que consiste na
criação de uma identidade de ordem regional, valorizando a condição de pertencente
ao estado (numa operação de homogeneização, ao nível das ideias, de seus
habitantes, e consequentemente excluindo outras identificações primordiais que não
a regional), ao mesmo tempo em que institui uma série de valores e características
como próprias da condição de paulista e, para sacramentar essa construção, oferece
uma explicação para essa situação através do recurso à história regional, que aponta
o bandeirante como ancestral, civilizador, patriarca do paulista (CERRI, 1996: 29).
Entende-se como ideologia a representação por meio de ideias do caráter contraditório
que a sociedade possui a partir da representação de classe por si mesma sobre o seu modo de
existência. A ideologia está condicionada a uma conjuntura histórica de uma condição
determinada, e vai ao encontro das ideias dessa classe dominante (CHAUÍ, 2008: 84). De forma
sintética, Chauí define: “A ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se
tornam ideias de todas as classes sociais, se tornam ideias dominantes’’ (CHAUÍ, 2008: 85).
A oligarquia paulista, destituída da diligência hegemônica do país em 1930, teve apoio
de frações das oligarquias sulistas e mineiras, até mesmo de uma fração da burguesia paulista,
além de integrantes do movimento denominado “tenentismo”, culminando no movimento
conhecido como Revolução de 1930. Essa aliança se denominou “Aliança Liberal” contra o
governo central, representando um polo minimamente mais progressista que as velhas
oligarquias, através de pautas como o direito ao voto e pequenas mudanças na legislação
trabalhista. Longe do poder, essa burguesia via com preocupação a aproximação cada vez
maior do governo provisório e do presidente com tenentes progressistas e alinhados há um
pensamento mais à esquerda, o auge foi a nomeação como interventor de São Paulo do tenente
progressista João Alberto, desde então, as conciliações se tornaram impossíveis, a burguesia
então deixou suas contradições de lado e se uniu na “frente única”, principal articuladora do
levante armado (BEZERRA, 1988:13-20; SILVA, 1967).
A respeito do simbolismo do bandeirante nesse processo, questão essa citada no
documento utilizado como fonte para esse estudo à exaustão, utilizou-se o clássico estudo de
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Katia Maria Abud (2019), denominado “O Sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a
construção de um símbolo paulista, o bandeirante”.
Utilizou-se, como recursos documentais, o livro produzido pela câmara municipal de
São José dos campos com participação ativa do vereador Geraldo Marcondes Cabral, disponível
no acervo do projeto pró-memória da mesma cidade. O documento se encontra dividido em
quatro partes, contendo ao todo trezentas e nove páginas, se dividindo, em: atas da câmara
municipal que homenageiam os veteranos, transcrições de palestras, imagens de jornais, trechos
que narram as ações do movimento “ Sociedade dos Veteranos de 32” em São José dos Campos
- juntamente com suas demandas, como a de criar uma mausoléu em homenagem a Miragaia
(contendo até projetos desenhados (CABRAL, 1988: 73-86)), pedidos de isenção de impostos
e pensões aos veteranos – e por fim, trechos escritos por Cabral (1988) propriamente dito, tudo
isso recheado de um ufanismo por São Paulo, além de um antigetulismo ferrenho. Além disso,
como fontes secundarias para compreender melhor o período utilizou-se os clássicos: “1932: A
Guerra Paulista” de Hélio Silva (1967), memorialista do período que contribui com uma vasta
documentação, o livro de Holien Gonçalves Bezerra (1988), “O jogo do Poder: Revolução
Paulista de 32” também foi usado trazendo uma compreensão mais crítica sobre o período com
foco na luta de classes presente no processo e da cooptação ideológica que constrói uma
“identidade paulista”, além dos já citados livros de Chauí (2008) e Katia Maria Abud (2019).
O livro de Cabral parte de uma documentação doada por um movimento de base que
reunia veteranos joseenses da guerra civil de 1932 ao lado de São Paulo, denominado
“Sociedade dos veteranos de 1932”, movimento esse que surgiu em 1964 segundo consta o
documento (CABRAL, 1988: 23). A obra de Cabral (1988) parte de uma perspectiva
enaltecedora e dos feitos gloriosos dos agentes, isso é, aqueles que estiveram presentes no
confronto, de maneira genérica, os paulistas, com destaque a elogios aos veteranos de São José
dos Campos e a Euclides Bueno Miragaia (CABRAL, 1988: 6-14).
Esse artigo visa contribuir para a historiografia regional da cidade de São José dos
Campos, explorando e analisando a narrativa presente em um documento com respaldo na
Câmara Municipal com pretensões históricas que trata sobre a participação do município nos
acontecimentos de 1932, além de trazer uma vasta documentação de um movimento da
sociedade civil joseense, já citado anteriormente.
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O estudo está dividido em duas seções. Na primeira, apresentou-se uma investigação
historiográfica pela narrativa do documento, buscando compreender as raízes teóricas que a
embasam, desde sua ideologia a origem dos adjetivos usados para representar determinados
agentes do momento histórico tratado. Na segunda, foi mostrado a exaltação, por meios de
cultos ao “mártir” Miragaia; e como a difusão da ideologia da superioridade paulista, foi aos
poucos sendo trabalhada na mente dos paulistas através da imprensa e almanaques escritos pela
burguesia paulista, promovendo sua arte e cultura.
1. A narrativa ideológica do documento “A revolução de 32 e seu protomártir Miragaia”
e suas origens
O autor, Cabral (1988), logo nas primeiras páginas do documento “A revolução de 32 e
seu protomártir Miragaia”, define suas pretensões historiográficas: “Tem esta obra, também a
finalidade de desmentir críticos que desconhecem a história do Estado Bandeirante e os atos
discriminatórios do ditador de então que, entre outras coisas, conseguiu jogar uma região contra
a outra (CABRAL, 1988:5)” .
Esse parágrafo representa, de forma suscinta, o linguajar utilizado diante de toda esfera
narrativa do documento, o uso das expressões “ditador”, para se referir a Getúlio Vargas e,
“Bandeirante”, para representar o povo paulista. Junto a essas expressões aparecem, à exaustão
no documento, um ufanismo exacerbado para com São Paulo. Cabral (1988: 2-10) ressalta que
as distorções promovidas pela ditadura varguista e seus instrumentos ocasionaram o
cerceamento do acesso dos brasileiros ao verdadeiro conhecimento a respeito “do grito de um
povo humilhado”, isso é, a revolta paulista de 32. Para mudar essa situação, segundo o autor,
se faz necessário “que uma nova consciência seja formada” a respeito da revolução de 1932.
A narrativa então, se baseia principalmente em dois pontos. O primeiro, no pressuposto
dicotômico que, de um lado havia um ditador – passível de qualquer adjetivo negativo, entre
eles: “desalmado, fascista, incompetente” (CABRAL, 1988: 2-10) e, do outro, São Paulo e os
Paulistas que, cansados de serem humilhados em tentativas de pacificação, partiram para o
confronto armado unidos como o ideário de um só homem.
Além disso, Cabral (1988) enfatiza de forma geral e irrestrita, méritos aos paulistas,
considerados vanguardistas da história do Brasil ao longo do tempo. Esse protagonismo,
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segundo o autor, teria respaldo em sua ancestralidade bandeirante. O trecho a seguir, presente
na apresentação do documento, representa, de forma sintética, esses conceitos supracitados:
O ditador, depois de trair os ideais da revolução de 1930 – que saiu vitoriosa com a
ajuda decisiva de São Paulo e a simpatia dos paulistas – quis brincar com um povo
cuja estirpe vem dos Bandeirantes intrépidos, que possuíam altivez e coragem, e
gostavam de enfrentar adversidades, lutando contra as Injustiças, brigando pela
liberdade, marchando para desmanchar limitações geográficas, domesticando índios
e lançando os alicerces das primeiras e Inúmeras cidades do Brasil-Colônia.
Esquecia-se o ditador de que os paulistas descendiam desses homens determinados,
hercúleos, que dilataram as fronteiras do Brasil, rasgaram as florestas, expulsaram
os conquistadores, vingaram as traições e perversidades dos emboabas, arrancaram
as riquezas escondidas no solo e nos leitos dos rios e fizeram a Independência. do
Brasil, porque sem a proteção dos homens de São Paulo, Dom Pedro teria regressado
para Portugal (vide a história dos Leais Paulistanos), e sem a decisiva ação da
Coligação dos Municípios Paulistas, em 1 . 8 2 1 / 2 2 , não haveria o "Grito do
Ipiranga" (vide "De Dom João VI a Independência", de João Romeiro) (CABRAL,
1988:1).
A respeito do primeiro pressuposto citado acima, percebe-se um processo de
generalização que transmite uma visão ideológica a fim de convencer o leitor de um
determinado ponto de vista frente aos fatos, como bem retrata Gonçalves Bezerra (1988: 53)
depoimentos da época personificam os oponentes: o estado de São Paulo e a
Revolução de 30 são apresentados como se fossem entidades abstratas, com vida
própria. São Paulo (o estado) é descrito como um ente compacto e uno, homogêneo
e quase transcendente. A ditadura e a revolução de 30 aparecem, por vezes,
corporificadas nas pessoas de Getúlio Vargas, dos tenentes revolucionários ou dos
interventores estaduais.
O retrato de São Paulo como uma unidade única e coesa, onde as contradições não
aparecem, foi o discurso propagado e difundido pela burguesia paulista, na ideia de tornar os
interesses particulares de sua classe, a de todos paulistas para com a revolução.
O “Estado” bandeirante com “E” maiúsculo como é retratado no documento (CABRAL,
1988: 5), não possui distinção de classe ou de ideias. O trecho a seguir explicita essa visão: “Foi
o movimento armado mais espontâneo, mais homogêneo e mais idealista jamais ocorrido no
Brasil e até mesmo no mundo, porque todos pensavam da mesma forma e todos faziam questão
de colaborar” (CABRAL, 1988: 19). Diante desse processo de dominação e cooptação
ideológica, é comum que os interesses particulares das classes dirigentes se apresentem como
os interesses de toda a sociedade, a partir de uma universalidade ilusória como afirma Chauí:
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a universalidade dessas ideias é abstrata, pois no concreto existem ideias particulares
de cada classe. Por ser uma abstração, a ideologia constrói uma rede imaginaria de
ideias e valores que possuem base real (a divisão social) mas de tal modo que essa
base seja reconstruída de modo invertido e imaginário (CHAUÍ, 2008: 93-94).
A narrativa priorizando suas concepções ideológicas exclui de todo processo histórico
da década de 30 a classe operaria, uma das poucas citações diante da questão trabalhista é mais
uma das várias críticas ao “ditador”, como é adjetivado o presidente Getúlio Vargas. Cabral
então coloca que foi atribuída uma “aureola” sobre Getúlio, atribuindo a ele méritos indevidos
frente as vitorias no mundo do trabalho, pois segundo ele, Getúlio apenas executou o que já
estava garantido na constituição de 1891 (CABRAL, 1988: 7), esse trecho remete um
saudosismo e atribui verdadeiros méritos ao período reconhecido como “República Velha” de
1891-1930, onde até então as oligarquias paulistas detinham uma influência no poder público
de forma quase hegemônica.
O conflito de classes entre operários e a burguesia paulista na cidade de São Paulo foram
de larga escala durante os meses que antecedem o conflito armado de 1932. O período de janeiro
a maio desse ano foi carregado de greves, numa dimensão antevista apenas em 1917, atingindo
muitos âmbitos, com protagonismo na indústria têxtil, sapateiros e ferroviários (BUONICORE,
2003). A burguesia então, para promover sua unidade coesa e homogênea, passou a impor a
“ordem”. Com a repressão aos movimentos operários, a partir de junho, os trabalhadores
perdem protagonismo, porém, na “história oficial”, nenhum desses momentos é minimamente
citado; a “violência” vem do governo central para com São Paulo, e nunca dos dominantes com
os dominados, numa inversão do concreto.
Tratando sobre o segundo ponto da narrativa, apesar de nunca citar diretamente o termo
“paulistanidade”, as características atribuídas a esse conceito como citado em Cerri (1996: 29)
se encontram presentes por toda narrativa, tendo respaldo na figura do Bandeirante, como bem
diz o trecho supra citado “...os paulistas descendiam desses homens determinados, hercúleos...”,
resultando nos paulistas de hoje que possuem alto grau cultural, não toleram serem oprimidos,
e partem para guerra quando o direito falha com bravura e fidalguia (CABRAL, 1988: 12b).
Segundo o autor, não seria possível essa movimentação de qualquer outro povo que não o
paulista: “[...] E, não fosse esse ânimo que vem embalando as gerações de paulistas, embebido
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nas façanhas e realizações de seus antepassados, não seria possível a realização da Revolução
Constitucionalista de 1932 [...]” (CABRAL, 1988: 12b). Essas atribuições, inerentes ao paulista
apegado a um passado bandeirante, tem raízes históricas profundas, como mostra o já citado
trabalho de Maria Abud (2019). A autora demonstra que historiadores ligados às oligarquias
dominantes cafeicultores paulistas do século XX, entre eles Alfredo Ellis Jr, Alcântara
Machado, Paulo Prado, retomaram a ideia do bandeirante como sujeito possuinte de múltiplas
características inerentes – homem forte, corajoso, com uma superioridade cultural e moral-,
responsável por feitos gloriosos, como conquistar territórios apesar do domínio português,
nesse ponto cabe a guerra dos emboabas1, citado no documento de Cabral (1989:1),
responsáveis também por expandir as fronteiras do país e por consequência, possuidores de um
papel importante na fundação do país, além de ser por si só uma “sub-raça superior” resultando
da mestiçagem e das qualidade do índio com o europeu, retomam esse pontos com base em dois
historiadores do século XVIII: Pedro Taques de Oliveira e Frei Gaspar da Madre de Deus,
entretanto, com a aderência do protagonismo na expansão cafeicultura do século XIX e
conceitos de eugenia principalmente trazidos por Ellis Jr e Paulo Prado. (ABUD, 2019). Diante
da retomada do bandeirante, a busca das classes dominantes por um símbolo que demonstrasse
“unidade” do povo paulista é respaldada:
Conquanto a classe dominante se considerasse quatrocentona e frequentemente se
expressasse de modo a considerar pertencente a uma “raça privilegiada”, naquele
momento estendeu tais qualidades aos negros, índios e imigrantes. O Símbolo mais
forte encontrado foi o bandeirante – ele mesmo um produto da “raça” que surgira
em São Paulo, e que construiria a Nação, conquistando as terras que deram forma
ao Brasil fazendo uso de valentia, altivez e independência (ABUD, 2019: 168).
Apesar de pretensiosamente o autor buscar, por meio do documento, trazer o
protagonismo de São José dos Campos no processo descrito, quem assume esse papel são os
“paulistas”, no entanto, numa concepção homogênea e unitária. São José foi um braço do
“estado Bandeirante”, com a ação de Euclides Bueno Miragaia, representante regional desse
espirito “paulista”. Dessa forma, se compreende um processo de “espelhamento” regional frente
à composição maior do estado de São Paulo.
1 A Guerra dos Emboabas, foi uma disputa armada entre bandeirantes e paulistas com a elite colonial Lusitana,
pelo controle hegemônico da região das minas que passaram a serem descobertas pelos primeiros em fins do século
XVII pelos primeiros (ABUD, 2019: 43-63).
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Já o movimento Sociedade dos veteranos de 1932, recheia o documento com discursos
eloquentes de seus membros ou convidados, com tentativas de criar um “mausoléu” em
homenagem a Miragaia e os heróis de 32, e suas demandas, ora conseguidas com as diversas
homenagens na câmara municipal, ora apenas passando por pedidos de isenção de impostos e
de pensões, que não são atendidas junto ao desejo do mausoléu “por falta de espirito cívico dos
governantes”, segundo Cabral (1988: 8). Importante salientar é que, mesmo se tratando de um
movimento de veteranos buscando seus interesses no município, o discurso é referente ao
supracitado acima, ou seja, perdeu qualquer caráter autêntico de classe, evidenciando o
processo citado por (CHAUÍ, 2008: 85) ou como descreveu (Bezerra, 1988: 22) : “Uma classe
média que participa intensamente da Revolução Paulista de 32, permanecendo com os ânimos
exaltados pela paulistanidade ainda por muito tempo’’ .
2.1 Difusão do nacionalismo paulista através de almanaques no fim do século XIX
De acordo com Le Goff (1990), na realização de um trabalho focado na história da
história, não é de se atentar a uma historiografia habilitada, mas sim, em um conjunto de
episódios que formam a mentalidade histórica cultural de uma época, ou seja, constituição de
poemas, almanaques, romances, narrativas históricas, criações de mundos utópicos, produzidas
a partir de uma imaginação histórica de seu autor (Le Goff, 1990). O que fora demasiadamente
empregado na história europeia no século XIX, não se distanciou do cenário paulista da década
de 1930 no Brasil.
No final do século XIX, mais especificamente em 1876, a figuração da identidade
paulista seria primeiramente formulada quando o português, José Maria Lisboa, publicou o
primeiro número do Almanach Litterario de São Paulo; leitura que se perpetuaria região
paulista até o ano de 1885. Esses almanaques, trariam em seu conteúdo poemas e trovas
populares, assuntos de interesse da província, costumes, lendas, economia, ensinamentos
religiosos, memória do estado de São Paulo, com textos de autoria de diversos escritores
paulistas ou estrangeiros residentes da região, como: Monteiro Lobato, José Bonifácio – o
moço, Luiz Gama, Campos Salles e Prudente de Morais. (FERREIRA, 2002)
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O conteúdo do Almanach estaria dirigido não para pessoas que faziam parte do mundo
elitizado, mas, preferencialmente, para empreendedores que estavam em busca de
enriquecimento nas terras paulistas e queriam uma leitura rápida e agradável para a obtenção
de conhecimento. Com isso em mente, podemos supor que os autores
compreendiam muito bem que a modernização, pela qual passava a província,
poderia repercutir favoravelmente no âmbito das letras e da imprensa, provocando a
dilatação do universo de leitores e do próprio mercado editorial, potencialmente
suscetíveis ao mercado econômico (FERREIRA, 2003: 37).
Acrescentando a citação acima, é imprescindível a participação da imprensa no
desenrolar da modernização e do mercado, visto que, por meio da divulgação de artigos e
propagandas é possível influenciar na modificação dos costumes e hábitos de consumo de seus
leitores (FERREIRA, 2002). A atuação da imprensa na disseminação da importância de
Miragaia está presente nos recortes das publicações paulistas da época. O livro de Cabral
(1988), expõe exatamente isso ao colocar a publicação da poesia lida quando era transferido o
corpo de Euclides Miragaia para o Mausoléu. Segue o trecho da poesia citada:
...Nove de julho! Heroica mocidade
A tombar pelos campos de batalha!
És bandeira de Glória! Liberdade!
Tremulando nos céus entre a metralha!
Sangue de heróis, de inesquecíveis moços,
Limpando a terra de tirana gente!
Visto afinal surgir entre os destroços
Nova Era de um povo independente! ...
Vinte e nove de outubro! Foste a nova
REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA!
És de julho o ideal que se renova,
Contra a feudal e getulista! (CABRAL, 1988: 5,6b)
2.2 O “mártir” Miragaia
A difusão do discurso martirológico fora estopim da epopeia que resultou no movimento
revolucionário, quando no dia 23 de maio de 1932 foram mortos Miragaia, Martins, Dráusio e
Camargo, formando então a famosa sigla MMDC.
Segundo Geraldo Marcondes Cabral, o “herói” Joseense Miragaia contribuiu fortemente
para o movimento constitucionalista ao se sacrificar pela pátria, marcando de vez a participação
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de São José dos Campos neste episódio que distinguiria a história do Brasil e do estado de São
Paulo.
Apenas ao final do conflito que as honrarias do culto cívico aos soldados caídos
aconteceriam, sendo necessário que Miragaia e os outros jovens fossem um dos focos das
homenagens prestadas aos combatentes mortos, estabelecendo de vez uma memória pública, ou
seja, memorias históricas oficiais e memórias populares do ocorrido (CABRAL, 1988:
ABREU, 2011).
Com a mistura de referências do exterior, aspectos religiosos e cívicos brasileiros, o
culto cívico aos mortos foi situado tanto na capital, como no interior paulista. Os ritos fúnebres
confirmariam o marco definitivo na história nacional, pois, era a forma própria do movimento
de identidade paulista e simbolismos aos que a sociedade da região considerava “indivíduos
modelares”, já que estes demonstraram suas qualidades morais e intelectuais mais altas. O
sentimento de luto aos combatentes mortos levou a uma construção da martirológia, que
ganhava ainda mais forma no decorrer do tempo. O simbolismo envolto no processo de
mitificação de Miragaia, assim como o paulista em geral, formaria sua trajetória se baseando
em uma leitura excessivamente romântica e com pouco respaldo cientifico historiográfico
(FERREIRA, 2002; ABREU, 2011).
Conclusão
O documento “ A revolução de 32 e seu protomártir Miragaia”, tratado nesse trabalho, possui
um viés narrativo com raízes propagadas pela oligarquia paulista durante e depois do processo
histórico da revolta paulista de 1932, que nasce na tentativa de cooptar a classe média para
adentrar no confronto, por meio da criação de uma identidade regional. Esse discurso utiliza-se
do enfoque de uma São Paulo que sofre as agruras do poder centralizador de Vargas e que,
depois de aguentar calada, se revolta, além de criar uma unidade coesa e homogênea do ser
“Paulista”, que se uniu na luta contra o “ditador” Getúlio Vargas. Nesta unidade, os conflitos e
contradições de classe somem, mesmo que São Paulo, aquela época, fosse um epicentro de
grandes greves dos trabalhadores. Para a construção textual da identidade paulista foram criadas
narrativas por meio do Almanach Litterario de São Paulo, que com seus escritores pertencentes
a alta elite, criariam sob o seu ponto de vista uma visão utópica e mitológica da região, trazendo
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em sua ideologia discursos românticos, que transformariam a mentalidade e costumes paulistas,
como a realização de cultos cívicos em memória dos jovens “heróis” que deram suas vidas em
prol da pátria, e, acima de tudo, São Paulo. A retomada da ideia da herança bandeirante, os
reforça como protagonistas em todos eventos importantes que perpassam pela história do Brasil.
1932 significou, na perspectiva dos paulistas, a hora de retomar esse vanguardismo, nutrido por
valores herdados dos bandeirantes, como coragem, superioridade moral e cultural, carregado
de espirito desbravador. Por meio do documento de Cabral (1988), tenta-se convencer o leitor
joseense de que sua narrativa é a verdadeira história dos ocorridos em 1932, conduzindo a
identidade paulista; o que pode se considerar como as características atribuídas da
“paulistanidade”, embora não a cite diretamente.
Referências
ABREU, M. S. Luto e culto cívico dos mortos: as tensões da memória pública da Revolução
Constitucionalista de 1932 (São Paulo, 1932-1937). Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 31, nº 61, p. 105-123 – 2011.
ABUD, Katia Maria. O Sangue Intimorato e es nobilíssimas tradições: A Construção De Um
Símbolo Paulista. Cuiabá: Editora Edufmt, 2019.
BEZERRA, Holien Gonçalves. O Jogo do Poder: Revolução Paulista de 32. 2ºed. São Paulo:
Moderna, 1988.
BUONICORE, Augusto C. 1932. A revanche Oligárquica. 2003. Disponível em:
http://www.grabois.org.br/cdm/artigos/148157/2010-03-11/1932-a-revanche-oligarquica
Acessado em: 05 de Jun. de 2020.
CABRAL, G. M. A revolução de 32 e seu protomártir Miragaia. Câmara Municipal de São
José dos Campos, 1988.
CERRI, Luis Fernando. A ideologia da paulistanidade. São Paulo: Cone Sul, 1997.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.
12
FERREIRA, Antonio Celso. A Epopeia Bandeirante: Letrados, Instituições, Invenções
Históricas (1870-1940). São Paulo: Editora Unesp, 2002.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora Unicamp, 1990.
SILVA, Hélio. 1932: A Guerra Paulista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.