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O Princípio da Não-Discriminação e a Fiscalidade Directa na União Europeia

Autor(es): Marques, Filipe César Vilarinho

Publicado por: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS

COIMBRA

UNIVERSIDADE DE COIMBRAFACULDADE DE DIREITO

VOLUME XLIX 2 0 0 6

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O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 175

O PRINCÍPIODA NÃO-DISCRIMINAÇÃO

E A FISCALIDADE DIRECTANA UNIÃO EUROPEIA*

1.ª PARTE

A POLÍTICA FISCAL EUROPEIA

NO CAMPO DA FISCALIDADE DIRECTA

I – A FISCALIDADE NO TRATADO CE

A política fiscal é abordada no Tratado de Roma deuma forma eminentemente negativa: a sua preocupação________________________

* O texto que agora se publica corresponde à dissertação de Mes-trado em Ciências Jurídico-Comunitárias apresentada em 31 de Outubrode 2002 e discutida em provas públicas no dia 16 de Junho de 2003, pe-rante um júri constituído pelos Professores Doutores J. L. SaldanhaSanches (arguente), Manuel Lopes Porto e Casalta Nabais.

Opta-se por publicar o texto tal como foi apresentado, apenas comalgumas actualizações que decorreram do Projecto de Constituição Euro-peia, aprovado e apresentado entre a data de entrega da dissertação e asua discussão oral.

No momento em que se publica este trabalho, impõe-se que publi-camente agradeça a algumas das muitas pessoas que das mais variadas for-mas contribuíram para a sua conclusão.

Em primeiro lugar, ao Prof. Doutor Manuel Porto, que me deu ahonra de aceitar a coordenação do trabalho de investigação e de elabo-

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principal é a de proibir que os Estados utilizem os seus orde-namentos tributários para a colocação de entraves às quatroliberdades fundamentais. É uma preocupação essencialmentemicroeconómica a que está presente no Tratado1 – pretende-seantes de mais garantir aos agentes económicos que poderãoactuar em iguais condições em qualquer local dentro doespaço comunitário2. Esta característica prende-se com o

ração da dissertação, e ao Prof. Doutor Casalta Nabais, pelo seu auxílio epelas valiosas observações que fez durante o período de investigação epreparação do texto final. Agradeço ainda ao Prof. Doutor SaldanhaSanches a honra concedida ao aceitar ser arguente na discussão oral dotrabalho e as importantes observações e críticas que nessa ocasião fez.

Um simples agradecimento não bastaria para os meus pais e irmãos,a quem dedico este trabalho, pelo exemplo, convivência e incentivo quesempre me deram e pelo auxílio prestado das mais variadas formas aolongo de todo o Mestrado.

Seria impossível aqui agradecer a todas as outras pessoas que deuma forma ou outra contribuíram para a conclusão deste trabalho. Con-tudo, não posso deixar de agradecer ao Dr. Américo Simões pelo apoioque me deu na altura da preparação da discussão oral da dissertação e aosmeus amigos Eduardo Brito, Juliano Franco, Nuno Brandão e Rui Gon-çalves por toda a disponibilidade e colaboração prestada dos mais diversosmodos ao longo dos três anos do Mestrado. Uma palavra e um agradeci-mento especial também para a Sandra Soares, por todo o apoio e incen-tivo que me deu ao longo de todo esse período.

1 ROCCATAGLIATA, Franco, “Diritto Tributario Comunitario”, inCorso di Diritto Tributario Internazionale, coord. Vitor Uckmar, CEDAM,Padova, 1999, pág. 660.

2 “... a fiscalidade comunitária nasceu como mecanismo comple-mentar da política comercial (união aduaneira) e da política de concor-rência.” Assim, SANTOS, António Carlos dos / PALMA, Clotilde Celorico,A Regulação Internacional da Concorrência Fiscal Prejudicial, Ciência e TécnicaFiscal, n.º 395 (Julho-Setembro de 1999), pág. 11. Veja-se também JOSÉ

XAVIER DE BASTO no Comentário ao artigo de VITO TANZI em A PolíticaEconómica na CE Alargada, Associação para o Estudo da Integração Euro-peia, Lisboa, 1985, pág. 171: “O que se fez foi colocar a harmonizaçãoao serviço do objectivo sobre o qual mais facilmente se poderia obter um

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facto de a política fiscal sempre ter sido encarada de formasecundária e instrumental no âmbito inicial da construçãoeuropeia3, sempre associada à criação, em primeiro lugar, deum mercado único entre os Estados-Membros.

Assim, o capítulo do Tratado intitulado “DisposiçõesFiscais” (arts. 90.º a 94.º) contém normas que dizem respeitotão-somente à fiscalidade indirecta, na medida em que é estaa que mais fortemente afecta o comércio entre Estados: aUnião Europeia nasceu simplesmente como uma zona decomércio livre, o que apontava para uma preocupação ex-clusiva com aquelas disposições que mais directamentepudessem afectar a livre circulação e troca dos factores deprodução entre os diversos Estados-Membros. Só quandoesta liberdade foi alcançada começou a União a encarar asdisposições que, embora não afectando directamente o co-mércio intra-comunitário, distorciam a livre deslocação defactores em todo o espaço da União4.

1. A Não Discriminação no Comércio entre Estados--Membros

Os artigos 90.º e 91.º do Tratado dão corpo ao princí-pio de não discriminação no comércio entre os Estados--Membros.

No tocante às importações, nenhum Estado-Membropode submeter os produtos provenientes de outros Estados-

consenso – o da livre circulação de produtos e serviços, necessária para ocorrecto funcionamento da União Aduaneira.”.

3 CARBAJO VASCO, Domingo, “El proceso de armonización fiscalen la Unión Europea. Las perspectivas actuales”, in Notícias de la UniónEuropea, ano XVIII, n.º 204, 2002, pág. 91.

4 TERRA, Ben / WATTEL, Peter, European Tax Law, 2.ª edição, Klu-wer, 1997, pág. 7.

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-Membros a uma imposição, qualquer que seja a naturezadesta, mais grave do que aquela que incide sobre esse mesmoproduto quando produzido no interior desse Estado. Sãotambém proibidas as imposições que visem proteger “outrasproduções”, ou seja, aquelas que apesar de não terem um“correspondente directo” no interior do Estado importadorpossam ver-se preteridas por outros bens para os quais a pro-cura se dirija em virtude do aumento do preço derivado dasua mais pesada tributação. O TJCE entendeu estar-se pe-rante uma situação de protecção indirecta de outras produções“sempre que os produtos em questão devam considerar-secomo integrantes, consoante os casos, na mesma categoriafiscal, aduaneira ou estatística”5.

Quanto às exportações rege o art.º 91.º, que prevê aproibição de os Estados-Membros concederem aos produtosexportados reembolsos dos impostos pagos no interior dopaís superiores ao montante das imposições que efectiva-mente sobre esses produtos tenham recaído.

Em suma, o Tratado não só proíbe, no art.º 90.º, a dis-criminação dos produtos importados em relação às produ-ções similares ou outras produções nacionais, como também,no art.º 91.º, impede que os Estados distorçam a concorrên-cia entre produtos no espaço da União, desonerando as suasexportações de modo tal que estas cheguem aos mercadosem condições muito mais vantajosas do que as produçõesconcorrentes dos outros Estados6.

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5 Fink-Frucht.6 Este princípio não é exclusivo do ordenamento comunitário, encon-

trando correspondentes no art.º 3.º do GATT e no art.º 6.º, n.º 1, daConvenção de Estocolmo, no âmbito da EFTA. Para uma comparaçãoentre o art.º 3.º do GATT e o art.º 90.º do Tratado v. SLOTBOOM, MarcoM., “Do different treaty purposes matter for treaty interpretation? – Theelimination of discriminatory internal taxes in EC and WTO law”,

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O TJCE veio concretizar o conteúdo deste princípio,esclarecendo, por um lado, que por “imposição interna” sedeve considerar não só o imposto propriamente dito mastambém qualquer outra imposição obrigatória exigida peloEstado ou por qualquer outra entidade pública e, por outro,que os “produtos nacionais” são também aqueles que, aindaque não produzidos no país, aí estejam a circular em livreprática, nos termos do art.º 23.º7.

O art.º 90.º, na medida em que estabelece uma obriga-ção inequívoca de non facere que impende sobre os Estados8,é directamente aplicável podendo ser invocado pelos parti-culares perante as autoridades nacionais9.

Sublinhe-se que a proibição de discriminação resultantedos artigos 90.º e 91.º actua apenas em relação à discrimina-ção de produtos estrangeiros por parte de um determinadoEstado-Membro, não havendo qualquer tipo de censura porparte do Direito Comunitário ao tratamento menos favorá-vel dos produtos nacionais10. A discriminação inversa11 não é

in Journal of International Economic Law, Oxford University Press, 2001,págs. 557 e ss..

7 Feldain; Co-Frutta, Srl.8 Não carecendo a sua execução, portanto, de uma intervenção

legislativa destes – cfr. MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens, Das Comuni-dades à União Europeia – Estudos de Direito Comunitário, 2.ª edição, Coim-bra Editora, 1999, pág. 96.

9 Lütticke.10 FALCÓN Y TELLA, Ramón, Introduccion al Derecho Financiero y

Tributario de las Comunidades Europeas, Servicio de Publicaciones de laFacultad de Derecho – Universidad Complutense, Editorial Civitas,Madrid, 1988, págs. 126 e 127.

11 “O tratamento desfavorável, comparativamente a outras objecti-vamente iguais, imposto a realidades jurídicas (“maxime” pessoas) que,em razão da sua nacionalidade ou do território onde se localizam, têmuma ligação jurídico-política privilegiada à entidade política (Estado-

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proibida por estes artigos, na medida em que apenas im-põem uma obrigação mínima de paridade fiscal entre pro-dutos nacionais e estrangeiros (art.º 90.º) e não proíbem queos Estados concedam reembolsos inferiores aos impostosefectivamente pagos (art.º 91.º)12.

O art.º 92.º prevê uma cláusula de salvaguarda que per-mite aos Estados a adopção de medidas contrárias ao estabe-lecido nos arts. 90.º e 91.º, mediante proposta da Comissãoe aprovação pelo Conselho, por maioria qualificada, cláusulaessa que não teve até ao momento aplicação prática.

Se os arts. 90.º a 92.º encerram estatuições de conteúdonegativo, já o art.º 93.º tem um conteúdo positivo. Na me-dida em que tal se revele necessário para o estabelecimento ebom funcionamento do mercado interno, prevê-se a adopçãopelo Conselho, por unanimidade13, sob proposta da Comis-são e após prévia consulta do Parlamento e do Comité Eco-nómico e Social, de “disposições relativas aos impostos sobreo volume de negócios, aos impostos especiais de consumo ea outros impostos indirectos”. Mais uma vez se constata quea fiscalidade directa está expressamente excluída do âmbitodesta disposição.

Com base no princípio da não discriminação no comér-cio entre Estados-Membros contido nos artigos referidos, aComissão conseguiu a condenação pelo TJCE, a 27 de

-Membro) discriminante.” – assim LAUREANO, Abel, A Discriminação Inversana Comunidade Europeia (O Desfavorecimento dos Próprios Nacionais na Tri-butação Indirecta), Quid Juris, Lisboa, 1997, pág. 63.

12 Cfr. BALLARINO, Tito, Lineamenti di Diritto Comunitario edell’Unione Europea, 5.ª edição, CEDAM, Padova, 1997, págs. 312 e 313.

13 Considerando que a manutenção pelo Acto Único Europeu daregra da unanimidade neste artigo gerou uma “contradição sistemática”com o art.º 95.º v. MORAIS, Luís, O Mercado Comum e os Auxílios Públicos– Novas Perspectivas, Almedina, Coimbra, 1993, págs. 41 e 42.

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Fevereiro de 198014, de um conjunto de Estados que pro-tegiam as suas produções internas tributando mais pesada-mente os produtos originários de outros Estados-Membrossob o pretexto de haver diferenças objectivas entre os pro-dutos que justificavam a diferença de tributação15.

2. Outras Disposições do Tratado Em Matéria Fiscal

Apesar de o capítulo do Tratado especificamente dedi-cado à fiscalidade se reduzir aos quatro artigos analisados,outras disposições do mesmo podem servir, e têm servido,de base à actuação das instituições comunitárias em matériafiscal.

Na medida em que a diversidade das disposições legais,regulamentares e administrativas entre os Estados-Membrospossa constituir um obstáculo ao mercado comum, prevê oart.º 94.º que o Conselho adopte directivas, por unanimi-dade, sob proposta da Comissão e após prévia consulta do

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14 Processos: 168/78, Comissão c. França; 169/78, Comissão c.Itália; 170/78, Comissão c. Reino Unido; 171/78, Comissão c. Dina-marca; 55/79, Comissão c. Irlanda.

15 Para uma análise sumária destes acórdãos v. BALLARINO, Tito,ob.cit., pág. 316. Para uma súmula da jurisprudência no âmbito da nãodiscriminação fiscal plasmada nos arts. 90.º a 93.º v. GONZÁLEZ GON-ZÁLEZ, Ana Isabel, “Prohibición de discriminación fiscal, exacciones deefecto equivalente y tributos internos discriminatorios. Analisis de lareciente jurisprudencia del Tribunal de justicia de las ComunidadesEuropeas en la materia”, in Notícias de la Unión Europea, ano XVI,n.º 191, Dezembro de 2000, págs. 65 e ss.; e DANIELE, Luigi, “Il divietodi discriminazione fiscale nella giurisprudenza comunitaria (1980--1987)”, in Antonio TIZZANO (org.), Problematica del Diritto delle Comu-nità Europee, Il Foro Italiano, Roma, 1992, págs. 921 e ss.

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Parlamento e do Comité Económico e Social, de modo apromover a aproximação de tais disposições divergentes.

Se o artigo 94.º tem, por um lado, um âmbito mais res-trito que o 93.º, na medida em que, ao contrário deste, prevêsimplesmente a adopção de directivas (actos que normal-mente exigem um acto de recepção por parte dos Estados aquem se destinam) e também por ser necessário que a diver-sidade de legislações provoque um real entrave ao mercadocomum de modo a legitimar a intervenção comunitária, poroutro abre as portas às intervenções comunitárias em áreascomo a da fiscalidade directa, expressamente excluída doâmbito do art.º 93.º.

A regra da unanimidade mantém-se nesta disposição, oque coloca sérios entraves à acção comunitária, especialmentenuma área como a da fiscalidade, em que a defesa de interes-ses dos diferentes Estados raramente permite posições comuns.A derrogação a esta regra, prevista no art.º 95.º, exclui expres-samente as disposições fiscais (n.º 2), demonstrando as dificul-dades que se fazem sentir neste domínio, na ponderação deinteresses conflituantes dos Estados-Membros16.

Sempre sujeito à regra da unanimidade, o Conselhopode ainda actuar nos termos do art.º 308.º, de modo a atin-gir os objectivos da Comunidade, sempre que o Tratadonão tenha previsto poderes específicos nas matérias em causa.Esta disposição pode servir de base a actuações de âmbito

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16 A unanimidade requerida para a adopção de actos em matéria fiscalfoi reafirmada pelo Tratado de Amesterdão na alteração que introduziu aoart.º 175.º, n.º 2 (ex art.º 130.º-S), em que, prevendo a regra da maioriaqualificada para as questões relacionadas com a política de ambiente, conti-nuou a exigir a unanimidade quando os actos a adoptar sejam de “naturezafundamentalmente fiscal” – neste sentido, embora vendo nesta alteraçãouma “porta aberta” por via de uma “certa discricionaridade interpreta-tiva”, v. ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., nota 14, pág. 665.

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fiscal, na medida em que sejam instrumentais para a prosse-cução de outras políticas17.

O art.º 96.º, ao prever a possibilidade de adopção dedirectivas por maioria qualificada sempre que as disparidadesentre as disposições dos Estados-Membros possam distorcera livre concorrência no mercado comum, pode vir a tornar--se uma forma de contornar a regra da unanimidade, espe-cialmente em épocas como a actual, caracterizada por umaacentuada tendência para a concorrência fiscal prejudicial18.

Refira-se ainda o art.º 293.º que, embora não prevendopoderes de actuação das instituições comunitárias, incentivaos Estados-Membros a estabelecerem negociações tendentesà eliminação da dupla tributação na Comunidade. Muitoembora esta norma não deva ser vista como delimitadora dacompetência da União em matéria fiscal19, o certo é que asua presença no Tratado introduz uma ideia de “restrição”quanto à utilização do art.º 94.º no âmbito da fiscalidadedirecta20 21.

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17 No sentido de não se justificar o recurso a este artigo no âmbitoda fiscalidade directa v. PINHEIRO, Gabriela, A Fiscalidade Directa na UniãoEuropeia, Universidade Católica Portuguesa, Porto, Junho de 1998,pág. 41.

18 Neste sentido, v. BOLKESTEIN, Frits, Taxation and Competition: therealisation of the Internal Market, discurso proferido pelo Comissário Euro-peu Frits Bolkestein no “Europese Beweging Nederland”, Hoevelaken,17 de Março de 2000. No mesmo sentido, embora considerando ser al-tamente improvável a utilização desta norma, v. MARTIN JIMÉNEZ, AdolfoJ., Towards Corporate Tax Harmonisation in the European Community – AnInstitutional and Procedural Analysis, Series on International Taxation n.º22, Kluwer, 1999, pág. 155.

19 PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 37.20 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 665.21 O actual art.º 293.º parece ter sido eliminado no Projecto de

Constituição Europeia apresentado em Junho de 2003 pela Convençãosobre o Futuro da Europa ao Conselho Europeu (v. docs. CONV 724/

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Uma restrição, esta sim expressa, é a do n.º 1, alíneas a)e b), do art.º 58.º, que estabelece que a proibição de coloca-ção de entraves à liberdade de circulação de capitais e paga-mentos não é incompatível com a aplicação de disposiçõesde direito fiscal dos Estados-Membros “que estabeleçamuma distinção entre contribuintes que não se encontrem emidêntica situação no que se refere ao seu lugar de residênciaou ao lugar em que o seu capital é investido” ou de medidasque visem “impedir infracções às suas leis e regulamentos,nomeadamente em matéria fiscal”. Os Estados podem porisso tratar diferentemente a nível fiscal os cidadãos de dife-rentes Estados-Membros com base na sua residência. Verifica--se, assim, uma aproximação entre o Direito Comunitário eo Direito Fiscal Internacional. Não se deve ver neste artigo,no entanto, uma fonte de discriminação arbitrária em razãoda nacionalidade, quer pela restrição introduzida pelo n.º 3do próprio art.º 58.º, quer pelo respeito que, na sua actua-ção, os Estados devem aos princípios de Direito Comuni-tário e aos objectivos da Comunidade22.

3. Os Princípios do Tratado com Incidência na ÁreaFiscal

Se, como vimos, o Tratado de Roma reservou um lugarmenor à fiscalidade no conjunto das políticas comunitárias(especialmente à fiscalidade directa), coube ao TJCE, atravésda sua acção interpretativa e uniformizadora da aplicação doDireito Comunitário, alargar esse papel.

/03, de 24 de Maio de 2003, e CONV 725/03, de 27 de Maio de2003). Com efeito, no articulado aprovado na Convenção a norma desseartigo não é reproduzida em nenhum dos preceitos.

22 PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 45.

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Por um lado, o TJCE afirmou a aplicabilidade directade muitas das disposições do Tratado que regulam as liber-dades fundamentais, assim forçando os Estados a abster-se deadoptar quaisquer medidas que lhes coloquem entraves, bemcomo a adaptar os seus ordenamentos de modo a cumprir asobrigações que de tais disposições derivam. Foram dessemodo sancionadas as disposições fiscais que introduziamdistorções à livre concorrência no espaço comunitário, bemcomo aquelas que, directa ou indirectamente, visavam esta-belecer barreiras internas à livre circulação de mercadorias,bens ou serviços.

Mas a área onde a acção do TJCE mais contribuiu parao alargamento do papel da política fiscal europeia foi a daaplicação e interpretação ao campo fiscal das normas comu-nitárias que, não tendo incidência directa nessa matéria,põem limites à actuação estadual.

Assim, o princípio da igualdade enquanto proibição geralde não discriminação em razão da nacionalidade, previsto noart.º 12.º como norma geral e concretizado noutros locais doTratado quanto a áreas específicas, tem servido ao TJCE paraafirmar a incompatibilidade com o Direito Comunitário dedeterminadas disposições fiscais nacionais que, estabelecendodiferenças de tratamento entre contribuintes através da utili-zação de determinados elementos de conexão diferentes danacionalidade, têm um efeito prático equivalente.

No tocante à livre circulação de trabalhadores, porexemplo, o TJCE entendeu que a não concessão de determi-nados benefícios fiscais a cidadãos de outros Estados-Mem-bros por parte do Estado onde exercessem a sua actividade,pelo simples facto de nele não terem a sua residência, podeconstituir uma discriminação contrária ao Direito Comu-nitário23. Com esta decisão, pode dizer-se com FRANCO

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23 Schumacker; Wielockx; Asscher.

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ROCCATAGLIATA24 que “o Tribunal de Justiça, através das suassentenças, adicionou à natural dicotomia do direito fiscal inter-nacional entre sujeitos residentes e não-residentes, um tertiumgenus, o sujeito não-residente residente comunitário”25. A aplica-ção que o TJCE tem feito deste princípio é o tema central donosso estudo, e será analisado com detalhe na 3.ª Parte.

Devem referir-se ainda dois princípios previstos noTratado e que assumem grande relevância na área fiscal: oprincípio da subsidiariedade e o princípio da proporcionali-dade, previstos no art.º 5.º.

De acordo com o princípio da subsidiariedade, qual-quer acção comunitária no âmbito de uma área em que nãoseja atribuída competência exclusiva às instituições comuni-tárias só deverá ser considerada legítima se, por tal acção terefeitos e dimensão comunitários, a sua prossecução for maiseficaz ao nível comunitário e os Estados, através da sua actua-ção, não conseguirem atingir de forma suficiente os objec-tivos a alcançar.

O princípio da proporcionalidade, por seu turno, esta-belece que qualquer actuação comunitária se deve cingir aonecessário para a prossecução dos objectivos do Tratado.

São fáceis de verificar as consequências destes doisprincípios ao nível da intervenção comunitária na área fis-cal. Qualquer iniciativa comunitária nesse domínio está su-jeita à aferição da sua compatibilidade com eles, criando-seassim dificuldades acrescidas quer por via da maior exi-

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24 Ob.cit., pág. 667.25 CLAUDIO SACCHETTO prefere chamar a este novo tipo de contri-

buinte “não residente mas residente num Estado-Membro”: “La Corte diGiustizia CE e i criteri formali e sostanziali nella imposizione dei soggettinon residenti degli Stati membri: un nuovo teorema di Fermat?”, Rivistadi Diritto Tributario Internazionale, 1/99, Janeiro – Abril, Editoriale Tribu-taria Italiana S.p.A., Roma, 1999, pág. 193.

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gência de fundamentação quanto à necessidade da suaadopção, quer também na escolha do instrumento jurídicomais adequado26.

Abordaremos infra de forma mais desenvolvida as con-sequências para a política fiscal europeia da introdução ex-pressa do princípio da subsidiariedade pelo Tratado deMaastricht, no cap. III.

II – A HARMONIZAÇÃO FISCAL

1. Noção

Os termos harmonização, aproximação e coorde-nação têm sido indistintamente usados pelas instituiçõescomunitárias. O seu significado não é, no entanto, coinci-dente e convém estabelecer o correcto conteúdo de cadauma das noções, bem como a distinção entre elas e a noçãode unificação.

Tratando-se de conceitos com um elevado grau deindefinição, a própria doutrina emprega-os de modo diver-so, sendo também diferentes as tentativas de concretizaçãodo seu conteúdo. Em relação à aproximação, por exemplo,FRANCO ROCCATAGLIATA, distinguindo entre unificação,harmonização e aproximação, vê na aproximação um graumenor de integração. GABRIELA PINHEIRO, por seu turno,distinguindo entre unificação, aproximação, harmonização ecoordenação, vê a aproximação como um grau maior deintegração em relação à harmonização, quase correspon-dendo a sua noção de coordenação à de aproximação de

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26 Cfr. PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 45 a 47.

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ROCCATAGLIATA27. ALI M. EL-AGRAA também coloca a coor-denação no patamar mais baixo de integração, vendo aharmonização como um compromisso entre a coordenaçãoe a estandardização28. SOUSA FRANCO29 distingue entre coor-denação, harmonização e unificação, vendo na coordenaçãoo grau menor de integração. Saliente-se ainda a opinião deGABRIEL CASADO OLLERO30 que defende que harmonização,aproximação e coordenação são termos sinónimos, baseando--se para tal nas diferentes versões linguísticas do Tratado queempregam aqueles termos sem distinção.

Do conjunto de opiniões explanadas, propendemospara uma posição muito próxima da de GABRIELA PINHEIRO,SOUSA FRANCO e EL-AGRAA, vendo na coordenação o está-dio de menor integração, seguido da harmonização e daaproximação, sendo a unificação uma realidade distinta namedida em que se deixa de estar perante ordenamentos jurí-dicos distintos.

Assim, a coordenação é o conceito que menos entraem conflito com a manutenção da soberania nacional. Nele

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27 O próprio ROCCATAGLIATA parece indistintamente empregar“aproximação” (ravvicinamento) e “coordenação” (coordinamento) para sereferir à mesma realidade, quando se refere à “coordenação fiscal” quecaracteriza os últimos anos de evolução da política fiscal europeia, nocampo da fiscalidade directa.

28 The European Union – History, Institutions, Economics and Policies,5ª edição, Prentice Hall Europe, 1998, pág. 298; e tb. The Economics ofthe European Integration, 4.ª edição, Harvester, Wheatsheaf, 1994, pág. 293.

29 Comentário ao artigo de VITO TANZI em A Política Económica naCE Alargada, Associação para o Estudo da Integração Europeia, Lisboa,1985, págs. 143 e 144.

30 “Fundamento juridico e limites de la armonizacion fiscal en elTratado de la C.E.E.”, in Estudios sobre armonizacion fiscal y derechopresupuestario europeo, 2.ª edição, Ediciones TAT, Granada, 1987,págs. 28 e 29.

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está implícita uma ideia de coexistência entre ordenamentosjurídicos independentes, se bem que concertados de modo atorná-los compatíveis, tendo em vista a prossecução de umobjectivo comum. Está subjacente a este conceito uma pers-pectiva de cooperação entre entidades distintas e não de orien-tação superior31. Coordenar não implica tornar idêntico oupróximo, mas apenas “compatibilizar à distância”32. Será ocaso, por exemplo, de estabelecer um objectivo genéricocomum (como a eliminação de distorções à concorrência),sem que para o atingir se estabeleçam métodos ou caminhosa seguir.

A aproximação de legislações pressupõe um grau bas-tante maior de integração entre ordenamentos jurídicos.Aqui já se trata de haver regras comuns aos diferentes orde-namentos, levando a que exista uma certa semelhança ao ní-vel do próprio conteúdo e não apenas dos fins a prosseguir.Estabelece-se o fim a atingir (aqui não apenas um objectivopouco concretizado, mas uma verdadeira meta a alcançar) evinculam-se os Estados aos meios a adoptar para o fazer. Seriao caso, por exemplo, de se fixarem inúmeros aspectos comunsa serem obrigatoriamente iguais em todos os Estados (taxas,matéria colectável). No Direito Comunitário, a aproximaçãotem na directiva o seu instrumento jurídico por excelência33,uma vez que, tratando-se de um meio normativo indirecto34,

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31 Cfr. PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 58.32 Neste sentido v. MATA SIERRA, Maria Teresa, La Armonización

Fiscal en la C.E.E., Lex Nova, Valladolid, 1993, págs. 60 e 61.33 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 680. Apesar de não concor-

darmos com o Autor quanto à definição de aproximação, coincidimosquanto a ser a directiva o instrumento jurídico mais apto para realizaraquilo que entendemos ser a aproximação de legislações.

34 SÁNCHEZ JIMÉNEZ, M. Angeles, La doble imposición internacional enla Unión Europea – especial consideración del impuesto de Sociedades, La Ley,Madrid, 1995, pág. 130.

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concilia a autonomia dos ordenamentos jurídicos estaduaiscom o estabelecimento de fins comuns, cabendo às auto-ridades nacionais escolher os actos de direito interno maisaptos para atingir o fim imperativamente estabelecido nadirectiva (de acordo com o art.º 249.º, 3.º parágrafo)35.Note-se que tal escolha não é inteiramente livre, já que osEstados têm sempre de ter em atenção o grau de concreti-zação da directiva quanto aos fins a atingir, grau de concre-tização esse que é em regra elevado, bem como o respeitopelas obrigações que o Tratado sobre eles faz impender36.

A harmonização é a “via do meio” entre as duasnoções referidas. Vai mais além da simples coordenação namedida em que, ao contrário desta, implica a definição dedeterminadas regras a seguir pelos Estados na construção doseu ordenamento jurídico, mas ao mesmo tempo não seidentifica com a aproximação por não se imporem limitestão estreitos de actuação aos Estados, nem se fixar de modoimutável determinados aspectos do seu regime jurídico. Seráo caso de, perante determinado fim concreto a atingir, sedeterminar, por exemplo, uma taxa máxima ou mínima deimposto que os Estados não possam ultrapassar, sem que, noentanto, se fixem as taxas concretas a adoptar pelo conjuntodos Estados ou por cada um37. A harmonização parece ser o

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35 “A característica de elasticidade própria das directivas comunitá-rias torna-as particularmente idóneas, como já se acenou, a serem empre-gues nos casos em que uma completa uniformidade normativa entre osordenamentos dos Estados-Membros não seja necessária ou não seja facil-mente actuável”, assim POCAR, Fausto, Diritto dell’Unione e delle ComunitàEuropee, 6.ª edição, Giuffrè, Milão, 2000, pág. 287.

36 MENGOZZI, Paolo, Il Diritto Comunitario e Dell’Unione Europea,Vol. XV do Trattato di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico Dell’Econo-mia, coord. Francesco Galgano, CEDAM, Padova, 1997, pág. 152.

37 “Por harmonização pode entender-se um procedimento medianteo qual os vários países efectuam de comum acordo a modificação de uma

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conceito que melhor se enquadra no meio previsto paraatingir os objectivos da Comunidade, estabelecido na alíneah) do art.º 3.º do Tratado: a aproximação38 das legislaçõesdos Estados-Membros na medida do necessário para o fun-cionamento do mercado comum. Com efeito, a harmoni-zação consegue legitimar uma intervenção comunitária do-tada de efeitos práticos, conciliando-a com a manutençãodos poderes dos Estados, precaução (ainda) essencial no ac-tual estado de construção europeia39.

Uma palavra ainda para a unificação. Esta pressupõeuma total identificação dos ordenamentos jurídicos em todosos seus elementos, deixando eles pura e simplesmente deexistir enquanto tal, ou, a subsistirem, sendo distintos apenasa título meramente formal. O instrumento jurídico apto aeste processo é o regulamento40, directamente aplicável emtodo o espaço comunitário e obrigatório em todos os seuselementos41 e que constitui o “acto legislativo comunitário”por excelência42. Refira-se que a unificação das legislações

dada norma ou de um dado tributo ou a adequação da estrutura essencial(taxa, base tributável, etc.) de um imposto, em conformidade com ummodelo único” – ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., nota 50, pág. 680-681.

38 Mais uma vez se verificando o pouco rigor do legislador comu-nitário no uso desta expressão.

39 Com CASALTA NABAIS, podemos ainda classificar a harmonizaçãofiscal, quanto às suas vias ou meios, em harmonização jurídica – a posi-tiva ou legislativa e a negativa ou jurisprudencial – e em harmonizaçãopolítica – levada a cabo através de instrumentos políticos: A soberania fis-cal no actual quadro de internacionalização, integração e globalização económicas,(em curso de publicação – texto gentilmente disponibilizado pelo Au-tor), pág. 9.

40 Quanto aos regulamentos e às suas classificações doutrinais v.MENGOZZI, Paolo, ob.cit., pág. 148 a 151.

41 Art.º 249.º, 1.º parágrafo.42 Alcançando-se com a sua utilização a “homogeneidade legislativa

completa” – SÁNCHEZ JIMÉNEZ, M. Angeles, ob. cit., pág. 132.

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dos Estados-Membros não é um dos objectivos da Comuni-dade, tendo os Estados preferido soluções menos conten-dentes com as suas soberanias nacionais43.

Num resumo um pouco redutor mas que pode servirde referência, poderíamos dizer que enquanto a harmoni-zação e a coordenação fazem apelo a modelos de relacio-namento intergovernamentais e a aproximação a modelossupra-nacionais ou supra-estaduais, a unificação é típica demodelos federais.

2. A Opção pela Harmonização: de Neumark aosanos 90

Desde as primeiras iniciativas da Comunidade tendentesà aproximação dos mercados dos Estados-Membros que amanutenção das políticas fiscais nacionais foi identificadacomo um dos obstáculos a uma completa e harmoniosa uni-ficação dos mercados nacionais.

Vários estudos foram sendo elaborados, tendo a evolu-ção da política fiscal da Comunidade sido sempre encaradanuma perspectiva de harmonização das legislações dos Esta-dos, como noutras áreas vinha sucedendo.

Vamos indicar, de modo não exaustivo, algumas dasprincipais intervenções comunitárias na área fiscal até à dé-cada de 90.

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43 Assim POCAR, Fausto, ob.cit., pág. 287 a 295, com uma análisedesta escolha dos Estados-Membros e das razões reais que a terão ditado.

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2.1. O Relatório Neumark44

A primeira abordagem comunitária do tema da fiscalidadeconcretizou-se no Relatório do Comité Fiscal e Financeiro,conhecido por Relatório Neumark45, apresentado em 1962.

A Comissão nomeou dez peritos para elaborarem umestudo que analisasse se a diferença de regimes fiscais entreos Estados-Membros poderia (e em que medida) limitar aconstituição de um mercado comum e, a verificar-se tal en-trave, que possibilidades haveria de eliminar essas dispari-dades. O objecto de estudo destes peritos era constituídoessencialmente pela fiscalidade indirecta, embora tenhamreconhecido a importância de uma análise mais global.

Apesar de ter versado apenas sobre seis países (os queintegravam na altura a Comunidade), o Relatório detectoudiferenças de monta entre os seus sistemas fiscais, reflectidas“por um lado, na diversidade dos tipos de impostos ou dosobjectos fiscais escolhidos, e, por outro, na diversidade dasreceitas obtidas com cada imposto, quando medidas em cadaEstado as proporções variáveis que representam os diversosimpostos em relação ao produto total”46. As diferenças encon-

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44 COMITÉ FISCAL ET FINANCIER, Rapport du Comité Fiscal etFinancier, Service des Publications des Communautés Européennes,Luxemburgo, 1962.

45 Assim conhecido em virtude de o Comité Fiscal e Financeiro serpresidido pelo professor da Universidade de Frankfurt, Fritz Neumark.

46 COMITÉ FISCAL ET FINANCIER, ob.cit., pág. 27.A título de exemplo, refere-se no Relatório (pág. 26), a diferença

detectada no que diz respeito ao peso dos impostos indirectos no con-junto da tributação, muito mais elevado em França e Itália do que naAlemanha, Holanda e Luxemburgo. Curiosamente, trinta e três anos de-pois ainda se constatava ser esta uma das principais diferenças entre os sis-temas fiscais europeus, v. BRACHET, Bernard, “Regard comparatif sur lesimpôts majeurs de 4 grands États de l’Union Européenne”, Les Enjeux de

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tradas tinham a sua origem em opções económicas distintas,na diferente natureza dos países e dos seus habitantes e nasdiferenças históricas e sociais47.

Considerando que a unificação completa da estruturados sistemas fiscais seria uma tarefa impossível, optou porapresentar um conjunto de propostas tendentes à harmo-nização das legislações nacionais e a uma forte colaboraçãoentre as administrações fiscais dos diversos Estados. Assim sepoderia começar a caminhar em direcção à adopção deregras únicas quanto à definição da matéria colectável e àcobrança dos impostos num único Estado. Propunha tam-bém que, para evitar os efeitos negativos da concorrênciafiscal, se adoptasse um sistema de repartição do imposto seme-lhante ao existente na Alemanha quando estivessem em causarendimentos transfronteiriços48.

Nas suas conclusões estabeleceu-se um plano de actua-ção dividido em três fases, de acordo com a urgência paraque a análise efectuada apontou: num primeiro momento,harmonizar a tributação indirecta, resolver o problema dadupla tributação de dividendos (na fonte e na residência) ecoordenar as Convenções de Dupla tributação assinadas pe-los Estados-Membros; seguidamente, harmonizar a tribu-tação directa e substituir as convenções bilaterais de duplatributação por um tratado multilateral; finalmente, criar-seum serviço comum destinado a assegurar um controle fiscal

l’Europe, co-editado por “La Fédération” e “Enjeux Communication”,Paris, n.º 16 – 1995, pág. 38.

47 “Ils sont en partie le résultat voulu de décisions fondées sur desconsidérations économiques, sociales, etc., et ils résultent en partie defacteurs de structures économiques et (ou) politico-sociologiques; latradition peut également jouer un certain rôle”, pág. 27.

48 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 686-687.TERRA, Ben / WATTEL, Peter, ob.cit., pág. 127.

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eficaz, a par da criação de um Tribunal para resolver os lití-gios de dimensão comunitária49.

2.2. Do Relatório Neumark ao início da décadade 90

2.2.1. O Relatório Segré

Em 1966 foi elaborado um Relatório sobre o Desen-volvimento do Mercado Europeu de Capitais, que no âm-bito da liberalização dos movimentos de capitais introduziua noção de neutralidade fiscal: um sistema pode dizer-seneutro quando não influencia a localização dos investimen-tos e quando os benefícios que condicionam a escolha detipo e métodos de investimento sejam iguais.

Propôs a adopção de medidas tendentes à eliminação dadupla tributação (a celebração de uma convenção multila-teral), dos benefícios fiscais concedidos aos contribuintespara atrair investimentos no seu país de residência e das dife-renças de tratamento baseadas na residência dos sujeitos pas-sivos50.

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49 CAYON GALIARDO, Antonio/FALCON Y TELLA, Ramon/HUCHA

CELADOR, Fernando de La, La armonizacion fiscal en la ComunidadEconomica Europea y el sistema tributario español: incidencia e convergencia,Instituto de Estudios Fiscales, Madrid, 1990, págs. 41 e 42. Para um qua-dro sinóptico completo das propostas do Relatório Neumark v. MATA

SIERRA, Maria Teresa, ob. cit., págs. 46 e 47.50 PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 110.ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 688.

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2.2.2. O Programa de Actuação no Domínio dos Im-postos Directos

Em 26 de Junho de 1967 a Comissão apresentou aqueleque até ao Relatório Ruding foi o documento mais impor-tante na área da fiscalidade directa.

Este apontava que o caminho a seguir deveria passarpela inexistência de diferenças acentuadas entre os regimesfiscais dos diferentes Estados-Membros que pudessem in-fluenciar a localização de capitais, pela remoção de obstá-culos à livre circulação de capitais e pela reestruturação dossistemas fiscais para fazer face ao mercado interno e permitiro desenvolvimento das empresas.

Foi com base neste relatório que a Comissão apresen-tou duas propostas de directiva que só foram aprovadas bas-tantes anos mais tarde, uma respeitante às fusões, cisões e en-tradas de activos e outra estabelecendo o regime fiscal apli-cável às sociedades “mãe” e “filha” 51 52.

2.2.3. O Relatório Werner53

A 31 de Dezembro de 1969 terminou o período transi-tório (previsto no art.º 7.º, antes da revisão do Tratado deAmesterdão) e um novo Relatório voltou a analisar as con-sequências da manutenção das barreiras fiscais. O RelatórioWerner54, de 1970, colocou novamente a tónica na neces-

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51 PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., págs. 110-111.ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., págs. 688-689.52 Respectivamente, as directivas 90/434/CEE e 90/435/CEE.53 Relatório do Conselho e da Comissão sobre a realização por fases suces-

sivas de uma união económica e monetária na Comunidade, suplemento ao Bole-tim CE, 11, 1970. As conclusões deste relatório deram origem à Resolu-ção do Conselho de 22 de Março de 1971.

54 O Comité que o elaborou era presidido por Pierre Werner, pri-meiro-ministro do Luxemburgo.

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sidade de harmonizar o IVA e os impostos especiais de con-sumo e de haver uma actuação comunitária naqueles impos-tos directos que influenciassem directamente a livre circula-ção de capitais e, especialmente, os impostos sobre valoresmobiliários.

2.2.4. A Proposta de Directiva sobre a tributação dosrendimentos das sociedades e sobre os regimes deretenção na fonte sobre os dividendos55

Em 1975, a Comissão decide apresentar uma propostade directiva relativa aos impostos sobre o rendimento das socie-dades. Nesta, avançava as taxas mínima e máxima, respec-tivamente, de 45% e 55% e propunha a generalização dométodo de crédito de imposto na harmonização da retençãona fonte dos dividendos.

A grande lacuna desta proposta residia na omissão dequalquer proposta de harmonização da definição de matériacolectável, o que contribuiu grandemente para que nuncasobre ela tenha havido uma discussão que pudesse conduzirà sua adopção. Acabou por ser retirada em 1990, indiciandoa inflexão da estratégia comunitária relativamente à políticafiscal, que abordaremos no capítulo seguinte.

2.2.5. A Directiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 deDezembro de 1977 – a cooperação entre Admi-nistrações Fiscais56.

Em 1977, o Conselho adoptou aquele que ainda hojeconstitui um dos grandes actos de base em matéria defiscalidade directa na União: a directiva respeitante à assis-tência mútua das autoridades competentes dos Estados-

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55 JOCE n.º C 253, de 5 de Novembro de 1975.56 Modificada pela Directiva 79/1070, de 6 de Dezembro de 1979.

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-Membros no domínio dos impostos directos. Nesta, garante--se às Administrações Fiscais a possibilidade de obter infor-mações relativas a contribuintes que exerçam actividadesnoutro Estado-Membro, informações essas muitas vezes essen-ciais para determinar a capacidade contributiva dos sujeitospassivos. O esquema encontrado para conciliar as diferentesnormas de acesso aos dados fiscais existentes nos vários paísescaracteriza-se essencialmente pelo respeito mútuo das práti-cas nacionais instituídas e dos requisitos mínimos que cadaEstado prevê no seu ordenamento interno57, estando previstastrês categorias de troca de informação: a requerimento de umadas autoridades fiscais à de outro Estado; troca automática eregular de informação; e troca espontânea de informação58.

Tem sido com base nesta directiva que o TJCE temrecusado o argumento de alguns Estados segundo o qual adificuldade de acesso a informações junto das outras Admi-nistrações Fiscais justificaria determinados tratamentos discri-minatórios em relação a não-residentes comunitários59.

2.2.6. O Relatório sobre as perspectivas de convergênciados sistemas fiscais na Comunidade60

Este relatório estabelecia dois objectivos fundamentais:quanto aos impostos indirectos, eliminar as fronteiras fiscais,________________________

57 Para um breve resumo das disposições da directiva v. DE LA

VILLA, José Maria, La Armonizacion Comunitaria en el ambito de la imposi-ción directa – su problematica jurídico-contable y su incidencia en España, Insti-tuto de Planificación Contable, 1988, págs. 35 e ss..

58 V. LIER, Peter, “Harmonisation of Direct Taxes”, in LIER, A. P.(ed.)/ /VLIET/HEERING/ZEVENBOOM, Tax and Legal Aspects of EC Harmo-nisation, Kluwer, 1993, págs. 161 e 162.

59 Bachmann, Halliburton, Wielockx, Schumacker, Futura.60 COMMISSION DES COMMUNAUTÉS EUROPÉENNES, “Rapport sur les

perspectives de convergence des systèmes fiscaux dans la Communauté”,in Bulletin des Communautés Européennes, Suplément 1/80, Office des publi-cations officielles des Communautés Européennes, Luxemburgo, 1980.

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para o que sugeria a supressão das imposições sobre impor-tações e a tributação das exportações, de modo a eliminaros controlos nas fronteiras; no que toca aos impostos direc-tos, a aproximação das cargas fiscais sobre as empresas, paraque a concorrência pudesse ocorrer livremente, sem que osmovimentos de capitais fossem influenciados por razões fis-cais61.

Reconhecia que era impossível estabelecer um calendá-rio para a realização da convergência dos sistemas fiscais eque, para que tal acontecesse, seria indispensável haver umavontade política muito forte e uma actuação progressiva, poretapas62.

2.2.7. O Livro Branco sobre a Realização do MercadoInterno

Em 1985, a Comissão elabora o Livro Branco, em queanalisa todos os factores que são passíveis de influenciar nega-tivamente a realização do Mercado Interno. Entre estes, apar das barreiras técnicas e físicas, a Comissão colocou asbarreiras fiscais, que se reconduzem essencialmente às diver-gências entre os ordenamentos jurídico-tributários dos dife-rentes Estados-Membros. Destas, o Livro Branco deu atençãoessencialmente ao IVA, defendendo o princípio da tribu-tação na origem, e à tributação específica, acentuando anecessidade de intervenção ao nível dos impostos sobre asbebidas alcoólicas, o tabaco e os óleos minerais63.

Em relação à tributação directa pouco era adiantadoneste trabalho, quase se limitando a Comissão a sublinhar a

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61 COMMISSION DES COMMUNAUTES EUROPEENNES, ob.cit., pág. 67.62 Ob.cit., pág. 68-69.63 PORTO, Manuel Carlos Lopes, Teoria da Integração e Políticas Comu-

nitárias, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 420 e 421.

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importância de serem adoptadas as directivas por si anterior-mente propostas nessa matéria64.

2.2.8. A proposta de Directiva sobre Retenção na fontede juros

Em 1989, a Comissão apresentou uma proposta deDirectiva em que se estabeleciam as bases para um sistemacomum de retenção na fonte dos rendimentos dos juros,propondo-se uma taxa uniforme europeia de 15%.

A altura de apresentação da proposta não foi a maisfavorável à sua aprovação, uma vez que na Alemanha, emJaneiro desse ano, havia sido introduzida uma lei que tri-butava nesses termos os rendimentos de juros obtidos nesseEstado, levando a uma grande fuga de capitais. Temendouma reacção semelhante, mas a nível europeu, e com a na-tural oposição do Luxemburgo, a proposta acabou por nuncaser adoptada65.

3. Avaliação das tentativas de harmonização

As primeiras décadas de vida da Comunidade foram,assim, dominadas por uma tendência muito forte no sentidoda harmonização das legislações fiscais nacionais, designada-mente no tocante à fiscalidade directa.

Para tal terá contribuído, sem dúvida, o progresso regis-tado no campo da tributação indirecta, em que a necessidadede eliminação dos entraves ao comércio intra-comunitárioe, a partir de 1970, de financiamento da Comunidade, obri-garam a uma muito maior aproximação de legislações e, aísim, a um grau (razoavelmente) avançado de harmonização.

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64 TERRA, Ben / WATTEL, Peter, ob.cit., pág. 79-84 e 130.65 TERRA, Ben / WATTEL, Peter, ob.cit., pág. 130.

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No entanto, se no campo dos impostos sobre as merca-dorias a vontade política dos Estados-Membros permitiuaproximações de legislação, já no campo da fiscalidade di-recta não se verificaram avanços significativos.

A área fiscal, já sensível por natureza, no domínio dosimpostos directos ainda o é mais, uma vez que é sobre elesque os governos podem actuar mais eficazmente para conse-guir determinados objectivos macro-económicos e tambémporque é com eles que podem jogar com o “political busi-ness cycle” que tanta importância tem em termos eleitorais.

Este factor, aliado a outros mais conjunturais, como acrise petrolífera dos anos 70, que veio alertar os Estados parao “perigo” que seria estarem dependentes de uma autori-dade “exterior” na condução da sua política fiscal66 ou a ins-tituição do Sistema Monetário Europeu, em 1979, com aconsequente perda de margem de manobra na política mo-netária, levou a que as iniciativas da Comissão no domínioda tributação directa não tenham tido efeitos práticos rele-vantes.

Com efeito, de todos os estudos realizados e propostasavançadas, muito poucas foram as que chegaram a concreti-zar-se e mesmo aquelas que o foram acabaram por ver ocampo de aplicação inicial restringido pelas imposições dosEstados, receosos de ver a sua soberania fiscal atingida. A pró-pria instituição de sucessivos comités de estudo e a realizaçãode relatórios cujos diagnósticos e conclusões, como tivemosoportunidade de ver, não divergiam em muito dos realiza-dos anteriormente, demonstra a falta de vontade política dosEstados-Membros que viam nesses comités uma forma deconstante adiamento da tomada de decisões.________________________

66 Assim MONTAGNIER, Gabriel, “Politique Fiscale”, in BARAV,Ami / PHILIP, Christian, Dictionnaire Juridique des Communautés Euro-péennes, PUF, Paris, 1993, pág. 803.

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No entanto, todos os estudos realizados apontavam nosentido da absoluta necessidade de uma intervenção correc-tiva no âmbito da fiscalidade directa, pois os entraves colo-cados à plena realização do mercado único não eramnegligenciáveis. A Comissão Europeia, no início da décadade 90, via-se assim a braços com uma situação delicada: porum lado, a evolução comunitária era no sentido da cada vezmaior integração dos mercados nacionais, concretizada no“objectivo 92”, a realização do mercado único europeu; poroutro, na área fiscal, os Estados demonstravam uma relutân-cia cada vez maior em abdicar da sua soberania e entrava-vam qualquer actuação das instituições comunitárias nessamatéria.

Foi face a este dilema que a Comissão Europeia decidiuinflectir a sua orientação, abandonando a ideia de umaharmonização tal como até aí a tinha idealizado, desse modoprocurando alcançar na prática uma maior integração fiscal,embora enquadrada numa mais ampla perspectiva.

III – A COORDENAÇÃO FISCAL

1. O Relatório Ruding

O início da década de 90 marcou o começo de uma vi-ragem na forma como as instituições comunitárias, e nome-adamente a Comissão, encaravam as divergências das legisla-ções fiscais dos Estados-Membros.

Numa Comunicação de 20 de Abril de 199067, a Comis-são, invocando o princípio da subsidiariedade, anunciava

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67 Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobreas Orientações Relativas à Imposição Fiscal das Empresas, documentoSEC(90)601 final, de 20 de Abril de 1990.

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uma nova forma de encarar a harmonização dos impostosdirectos. Já não se reconhecia absoluta necessidade à harmo-nização das legislações fiscais dos Estados, antes se limitandoa intervenção comunitária a corrigir aqueles efeitos que taisdisparidades pudessem ocasionalmente originar.

Neste sentido, a Comissão retirou a impopular propostade Directiva de 1975 (cfr. supra II, 2.2.4.) e indicou comonecessárias três medidas a adoptar: a aprovação das directivaspropostas (fusões e cisões, “mãe-filha” e de arbitragem depreços de transferência), a tomada em consideração dos pre-juízos sofridos no estrangeiro e a abolição das retenções nafonte sobre juros e pagamentos de royalties entre empresasdo mesmo grupo68.

Para dar seguimento a esta nova orientação, a Comissãoanunciou ainda a constituição de um Comité de peritos queiria debruçar-se sobre as eventuais consequências que asdisparidades existentes quanto ao imposto sobre as socieda-des acarretavam para a tomada de decisões de investimento,bem como para, no caso de tais disparidades não poderemser corrigidas pelo simples jogo das forças do mercado,apontar as medidas a adoptar nessa matéria.

Deste Comité resultou o Relatório Ruding69, apresen-tado em Março de 1992. Neste, a ideia de uma intervençãoque contenda o mínimo possível com a soberania fiscal dosEstados-Membros volta a ser acentuada, apesar de ter detec-

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68 TERRA, Ben / WATTEL, Peter, ob.cit., pág. 131-134.PINHEIRO, Gabriela, ob.cit., pág. 113.69 COMMISSION DES COMMUNAUTÉS EUROPÉENNES, Rapport du Comi-

té de Réflexion des Experts Indépendants sur la Fiscalité des Entreprises, Officedes Publications Officielles des Communautés Européennes, Luxem-burgo, 1992.

O Comité era presidido pelo Ministro das Finanças HolandêsOnno Ruding.

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tado diferenças consideráveis entre os sistemas fiscais analisa-dos, diferenças essas que podem levar a distorções nas deci-sões de colocação do investimento. As diferenças principaisdetectadas foram: a diferença do peso da componente fiscalno custo do capital, que varia muito de país para país; a ten-dência para a utilização do sistema fiscal para concorrer comoutros Estados e assim atrair investimento estrangeiro; as dife-renças a nível de estrutura financeira e legal que as disparida-des fiscais acarretam; e, finalmente, as disparidades nos custosadministrativos.

As propostas de actuação dividiam-se essencialmenteem duas áreas: a eliminação da dupla tributação dos fluxosde capital entre Estados-Membros e a harmonização dos im-postos sobre os rendimentos das sociedades (incluindo o esta-belecimento de uma taxa mínima e máxima de imposto)70.As medidas propostas deveriam ser adoptadas segundo umcalendário coincidente com as três fases da União Econó-mica e Monetária71.

O Comité optou por não recomendar nenhum tipo deproposta quanto a um imposto único sobre as sociedades,devido, por um lado, à própria falta de visão única por partedas instituições comunitárias nas diferentes propostas apre-sentadas ao longo do tempo, por outro, pelos custos que talaproximação acarretaria, sem que as vantagens dela resul-

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70 MESSERE, Ken, “A Personal View on Certain Aspects of theRuding Committee Report and the EC Commission’s Reaction to it”,European Taxation, Vol. 33, n.º 1, Janeiro de 1993, pág. 3.

71 Para um resumo das propostas v. LOBO XAVIER, “O Programa daComissão das Comunidades Europeias no domínio da harmonização datributação directa”, in A fiscalidade no espaço comunitário de 1993, Rei dosLivros, Lisboa, 1993, págs. 74 e 75; e EASSON, A. J., Taxation in the Euro-pean Community, The Athlone Press, London, 1993, págs. 242 a 250.

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tantes pudessem ser facilmente analisáveis, e ainda, uma vezmais, por entender que tal actuação contenderia com oprincípio da subsidiariedade72.

Foram ainda formuladas algumas propostas, em anexoao Relatório, quanto aos ajustamentos considerados neces-sários na utilização do Modelo da OCDE de convenção dedupla tributação e na negociação pelos Estados-Membros deConvenções com Estados terceiros73.

O Relatório deu origem a uma Comunicação da Comis-são ao Conselho, de 26 de Junho de 199274. Nesta, emborareconhecendo no Relatório uma base para a actuação futura,a Comissão deixou de lado algumas das propostas, como ado estabelecimento de uma taxa máxima de imposto sobreas sociedades, entendendo que seria a solução mais consen-tânea com o princípio da subsidiariedade e que a harmo-nização pelo mercado se encarregaria de actuar nesse domí-nio75.

Apesar de não ter sido totalmente seguido pela Comis-são, deve vincar-se a importância deste Relatório na evolução

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72 MESSERE, Ken, ob.cit., pág. 11.73 Para um resumo destas propostas v. CARDONA, Maria Celeste,

“O papel dos acordos de dupla tributação na internacionalização da eco-nomia”, in A internacionalização da economia e a fiscalidade – XXX aniversá-rio do Centro de Estudos Fiscais, Ministério das Finanças/Direcção-Geraldas Contribuições e Impostos, Lisboa, 1993, págs. 225 a 227.

74 SEC(92)1118 final, de 26 de Junho de 1992 – Comunicação daComissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu na sequência das con-clusões do Comité de Reflexão presidido por Onno Ruding e relativo àsorientações em matéria de fiscalidade das empresas no âmbito doaprofundamento do mercado interno.

75 E como de modo realista refere DONAL DE BUITLÉIR, a tarefa doComité de peritos era traçar uma visão para o futuro, ao passo que a pre-ocupação da Comissão deve ser a de fazer progressos concretos onde talseja desejável: “The Ruding Report and the EC Commission’sResponse”, European Taxation, Vol. 33, n.º 1, Janeiro de 1993, pág. 15.

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da política fiscal europeia, na medida em que pela primeiravez, e ao contrário dos estudos anteriores, se apontaram solu-ções concretas na área da fiscalidade directa, abordando-se asquestões de modo muito mais prático e numa perspectiva deefectiva intervenção ao nível comunitário. Poder-se-á mesmodizer que foi a partir da elaboração deste estudo que a actua-ção comunitária nesta área passou a ser vista como uma realnecessidade.

2. O Tratado de Maastricht

O Tratado de Maastricht, assinado em 1992, não tendoincidido directamente na área da política fiscal, veio intro-duzir algumas alterações que indirectamente tiveram granderelevância nesse domínio.

Como referido supra (cap. I), uma das inovações doTratado foi a consagração expressa dos princípios da subsi-diariedade e proporcionalidade enquanto princípios geraisde norteamento da actuação comunitária (art.º 5.º).

O princípio da subsidiariedade parte da ideia-chave dediversidade e multiculturalidade presente em todo o pro-cesso de construção europeia. A União Europeia tem as suasraízes num conjunto de povos diferentes que, com basenum ideal comum, se uniram para promover uma série deobjectivos de progresso e promoção da paz no continente.Ora o princípio da subsidiariedade é um reforço da impor-tância da multiculturalidade na construção europeia, na me-dida em que esta não poderá nunca ser posta em causa peloprocesso de integração, sob pena de se pôr em perigo o pró-prio ideal europeu.

Assim, embora não se limitando os poderes da actuaçãocomunitária, vinca-se que ela está sempre sujeita ao respeitopela soberania dos Estados que compõem a União. Com a

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consagração expressa do princípio da subsidiariedade, vin-cou-se o princípio segundo o qual a regra são as competên-cias nacionais e não a competência da Comunidade76.

Ora, no âmbito da fiscalidade directa, está cabalmentedemonstrado que não é vontade dos Estados abdicarem(pelo menos não neste momento) de determinada parcela dasua soberania77. Assim, qualquer iniciativa comunitária teráde se cingir ao necessário para corrigir efeitos negativos quederivem para a União das divergências entre as legislaçõesdos Estados, sempre numa perspectiva de maior eficácia daacção a nível comunitário do que nacional.

O sistema fiscal de um Estado é, sem dúvida, uma carac-terística importante da sua identidade política, na medida emque reflecte as escolhas de um povo ao nível político e eco-nómico e, visto que a receita fiscal constitui a fonte principalde financiamento do Orçamento, reflecte também as suasopções sociais, especialmente visíveis na política de redistri-

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76 MOTA DE CAMPOS, João, Manual de Direito Comunitário, FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, pág. 263. Veja-se, no entanto a opi-nião de RENÉ BARENTS, que encara o princípio apenas como um “sloganpolítico”, chegando mesmo a afirmar que a sua introdução foi uma “po-luição do Direito Comunitário”, uma vez que pode ser utilizado contraou a favor da actuação comunitária, tudo dependendo da atitude de cadaum em relação ao processo de integração europeia – “The Principle ofSubsidiarity and the Court of Justice”, pág. 42, in SMITH, Stephen /BARENTS, René, Neutrality and subsidiarity in Taxation, Kluwer LawInternational, 1996. Já para GIAN PIERO ORSELLO (“Federalismo Fiscale eSussidiarietà”, in Federalismo Fiscale: una nuova sfida per l’Europa, (a curadi) ALBERTO MAJOCCHI e DARIO VELO, CEDAM, Padova, 1999,págs. 211 a 213), a subsidiariedade é o “principal instrumento de demar-cação normativa em relação a uma perspectiva federal”.

77 Preocupação esta que também no seio da OCDE se tem feitosentir, havendo a preocupação por parte desta organização de garantirque a soberania fiscal dos Estados permanecerá intocada – OWENS,Jeffrey, Promoting Fair Tax Competition. Disponível no site www.ocde.org.

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buição prosseguida78. Assim, e como resultado da opção deMaastricht, as acções comunitárias fiscais têm de provar sermais eficazes que a soma das acções individuais dos Estados--Membros, por respeito ao princípio da subsidiariedade.

Note-se, no entanto, que a consagração do princípio dasubsidiariedade pode ter efeitos totalmente contrários aospretendidos. Como muito bem refere ADOLFO J. MARTIN

JIMÉNEZ79, temos vindo a assistir a um “Paradoxo da Soft-Law”,pois sob o manto do respeito pelo princípio da subsidiarie-dade, os instrumentos não vinculativos propostos pela Comis-são e aprovados pelos Estados acabam por se transfigurar emverdadeira Hard-Law através da aplicação que deles é feitapelo TJCE aos casos que é chamado a apreciar, quando osemprega como critério interpretativo das normas comunitá-rias (assim conseguindo a Comissão contornar os obstáculoscolocados pelo procedimento legislativo previsto no Tratado).

Outra alteração que o Tratado de Maastricht introduziue que enquadra a nova perspectiva comunitária da fiscali-dade foi a do art.º 58.º (cfr. supra I, 2.), relativo à livre cir-culação de capitais.

A liberalização total dos movimentos de capitais, acor-dada para 1 de Janeiro de 1994, levantava problemas deconcorrência fiscal prejudicial por não ser acompanhada deuma reforma fiscal generalizada a nível europeu. Nessa me-dida, e dados os interesses conflituantes dos diversos Estados,com o Tratado de Maastricht introduziu-se uma cláusula desalvaguarda que permite aos Estados tomarem medidas desti-nadas a proteger os seus ordenamentos fiscais (desde queproporcionadas) das consequências negativas que derivam dalivre colocação de capitais no espaço europeu. Esta dispo-

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78 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 698.79 Ob. cit., pág. 302 e ss..

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sição, na prática, é uma forma de os Estados poderem man-ter nos seus ordenamentos cláusulas discriminatórias sem quepossam ser consideradas proibidas pelo TJCE80, e vem de-monstrar claramente a pouca vontade de abdicar de sobe-rania fiscal em favor da União Europeia, pois os Estadosreservam para si a competência para actuar nesse domíniosem possibilidade de ingerência por parte das instituiçõescomunitárias.

3. A abordagem global

É neste quadro de preponderância das soberanias nacio-nais em matéria fiscal que a Comissão se vê obrigada a actuar,principalmente para fazer face aos avanços significativosoperados nos anos 90 em matéria de política monetária. AUnião Económica e Monetária avançava, tendo já datas pre-cisas para a sua concretização, mas a política fiscal perma-necia num impasse, em certa medida por forte pressão dosEstados que, tendo já abdicado da sua soberania em matériamonetária, pretendiam manter uma determinada margem demanobra a nível fiscal81.

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80 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 701.81 PITTA E CUNHA, Paulo de, “A Harmonização da Fiscalidade e as

Exigências da União Monetária na Comunidade Europeia”, in IntegraçãoEuropeia – Estudos de Economia, Política e Direito Comunitários, ImprensaNacional Casa da Moeda, Lisboa, pág. 425. Veja-se, no entanto, a previ-são de HUBERT HAMAEKERS, feita em 1993, segundo a qual a cedênciados Estados no campo fiscal não deveria tardar, uma vez que, em suaopinião, ceder na soberania económica e monetária tinha sido muitomais fundamental, pois a política fiscal seria em grande parte apenas uminstrumento da política económica e monetária – “Fiscal Sovereigntyand Tax Harmonization in the EC”, European Taxation, Vol. 33, n.º 1,Janeiro de 1993, pág. 27.

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Em 1996, a Comissão propõe uma nova abordagem dotema da fiscalidade, na comunicação que apresentou aoConselho ECOFIN de 13 de Abril, realizado em Verona82.A fiscalidade passa a ser encarada numa perspectiva mais am-pla de instrumento para o bom funcionamento do mercadointerno, promoção do emprego e do crescimento e de esta-bilização das receitas fiscais dos Estados-Membros.

A completa liberalização dos movimentos de capitais noespaço da União, bem como o nascimento e implementaçãode uma moeda única para todos os Estados-Membros, tra-zem novos problemas que exigem respostas adequadas porparte destes. Assim, ao não ser atingido um enquadramentomínimo ao nível fiscal, os factores mais móveis (essencial-mente o capital) tenderão a deslocar-se para locais de tribu-tação mais leve, assim se gerando uma erosão da base fiscalque acarretará como consequência natural um agravamentoda tributação daqueles elementos menos móveis, como otrabalho, com inevitáveis reflexos no aumento do custo dofactor trabalho e, consequentemente, no desemprego.

Neste sentido, a total ausência de regras comuns ao ní-vel fiscal poderá ser, e certamente será, um entrave à plenarealização do espaço sem fronteiras, falseando a concorrênciano espaço comunitário e trazendo problemas a nível não sóeconómico como também social.

É com base neste leque de problemas que a Comissãoavança a sua nova perspectiva de actuação fiscal, tentandoconciliar os interesses em conflito: por um lado, respeitandoas soberanias nacionais, em nome da subsidiariedade, assimsatisfazendo os governos temerosos de ver a sua política fis-cal perdida do mesmo modo como haviam perdido a mone-tária; por outro, não deixando que as disparidades ponham

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82 SEC(96)487, de 20 de Março de 1996.

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em risco toda a evolução no sentido da unificação dos mer-cados nacionais até então realizada. Tornava-se necessáriodeixar de abordar as questões da fiscalidade de modo parcial,limitado a determinados tributos, o que sempre dava azo areticências por parte de alguns Estados que receavam sairperdedores, para passar a uma abordagem global, em que seconseguisse um melhor equilíbrio entre custos-benefíciospara todos os Estados83.

Aberto o caminho pela mudança de perspectiva, criou-se um grupo de estudo a alto nível, que apresentou as suasconclusões ao Conselho ECOFIN de Novembro de 1996 eque, vendo prolongado por tal Conselho o seu mandato,elaborou um relatório que esteve na base da Comunicaçãoda Comissão apresentada em 5 de Novembro de 199784 eapreciada no Conselho ECOFIN de 1 de Dezembro de1997. Esta comunicação propunha uma série de medidasdestinadas a combater a concorrência fiscal prejudicial entreos Estados-Membros, consistindo basicamente na adopçãode um código de conduta no domínio da fiscalidade das em-presas, na adopção de medidas que evitassem as distorções natributação dos rendimentos de capital e na adopção de medi-das que eliminassem as retenções na fonte sobre os paga-mentos interestaduais de juros e royalties entre empresas85.

O Código de Conduta aplica-se às medidas que possamter influência nas decisões de localização de actividades eco-

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83 GRAND, Bernard, “L’évolution des systèmes de taxation dansl’Union Européenne”, in Revue Française de Finances Publiques, n.º 68,1999, pág. 111.

84 COM(97)564 final.85 O conjunto de medidas propostas é conhecido como o “pacote

fiscal” de 1 de Dezembro de 1997, publicado no J.O.C.E. n.º C 002, de6 de Janeiro de 1998 (Conclusões do Conselho ECOFIN de 1 de Dezem-bro de 1997).

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nómicas na Comunidade, nomeadamente as que incluamníveis de tributação muito inferiores ao normal. Os Estadosassumiram o compromisso de respeitar uma cláusula destandstill, segundo a qual se absterão de introduzir novas medi-das de concorrência fiscal prejudicial, de acatar uma cláusulade rollback, reavaliando as disposições em vigor nos seusordenamentos que sejam susceptíveis de fomentar a concor-rência fiscal prejudicial, de cooperar e informar-se mutua-mente quanto às medidas a introduzir que possam vir a serabrangidas pelo Código e de promover a adopção de umapolítica semelhante por países terceiros. Para facilitar a tarefade identificação de normas potencialmente prejudiciais oCódigo fornece cinco critérios (sendo que não constituemum elenco taxativo): a atribuição das vantagens a não resi-dentes; os efeitos na economia interna do Estado-Membro;a contrapartida da actividade económica real ou da presençaeconómica substancial; o método de determinação dos lu-cros resultantes das actividades internas de um grupo multi-nacional; a transparência86.

O grande obstáculo ao Código de Conduta é o seucarácter não vinculativo, revelador mais uma vez das tensõesexistentes na área fiscal entre os Estados e a União. É de sau-dar, no entanto, no sentido em que constitui uma das pri-meiras medidas concretas no combate à concorrência fiscalprejudicial enquanto sério problema que se coloca às econo-mias em época de acelerada integração.

Quanto às outras medidas do pacote fiscal, a Comissãoapresentou, respectivamente, em Março e Maio de 1998

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86 PALMA, Clotilde Celorico, “Código de Conduta Comunitário dafiscalidade das empresas versus Relatório da OCDE sobre as práticas daconcorrência fiscal prejudicial: a concorrência fiscal sob vigilância”, inFisco, ano X, n.º 86/87, Novembro/Dezembro de 1999, págs. 6 e 7. V.tb. MARTIN JIMÉNEZ, Adolfo J., ob. cit., pág. 319.

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duas propostas de Directiva sobre a tributação dos rendi-mentos da poupança87 e sobre o pagamento de juros e deroyalties88.

A proposta de tributação dos rendimentos da poupançabaseia-se numa retenção na fonte uniforme de 20% e numsistema de troca de informações entre as administrações fis-cais dos Estados, ao passo que a de pagamento de juros eroyalties se limita a aplicar correctamente o princípio denão-discriminação entre Estados, na medida em que umaoperação efectuada entre empresas situadas em dois ou maisEstados-Membros diferentes não pode ser tratada de modofiscalmente diverso de uma mesma operação efectuada entreempresas nacionais.

A proposta relativa aos juros e royalties baseia-se noesquema adoptado na Directiva Mãe-Filha89: os pagamentosde juros e royalties entre duas sociedades comunitárias seriamisentos no Estado da fonte e tributados apenas no Estado daresidência do destinatário do pagamento.

A directiva relativa aos rendimentos de poupança sofreuvárias alterações, tendo a proposta de 1998 sido retirada euma nova proposta apresentada em Julho de 2001, cujaapreciação foi diferida até 31 de Dezembro de 2002, alturaem que a discussão será feita com base nos relatórios sobre o

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87 Proposta de directiva do Conselho destinada a assegurar um nívelmínimo de tributação efectiva dos rendimentos da poupança sob formade juros no interior da Comunidade, COM(1998)295 – J.O. n.º C 212de 8 de Julho de 1998, pág. 13.

88 Proposta de directiva do Conselho relativa a um regime fiscalcomum aplicável aos pagamentos de juros e de royalties entre sociedadesassociadas de Estados-Membros diferentes, COM(1998)67 de 4 de Marçode 1998 – J.O. n.º C 123 de 22 de Abril de 1998, pág. 9.

89 MARCHESE, Stefano e outros, Integrazione economica e convergenzadei sistemi fiscali nei paesi EU, Consiglio Nazionale Ragionieri Commer-cialisti, Giuffrè, Milão, 2000, pág. 173.

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resultado das negociações entre os Estados e a Comissão queaté então se produzam90.

A discussão e constante adiamento da aprovação destaspropostas é mais uma vez reflexo da extrema dificuldade deobtenção de unanimidade entre todos os Estados.

Por último, refira-se que no seguimento das conclusõesdos Conselhos Europeus da Feira (Março de 2000) e de Esto-colmo (Março de 2001) a Comissão apresentou dois impor-tantes documentos: um programa estratégico para a tribu-tação das empresas na Comunidade91 e uma comunicaçãosobre as prioridades da política fiscal92. No primeiro, identi-ficam-se os principais problemas com que se depara a fisca-lidade das empresas no espaço comunitário, entre os quais sedestacam a falta de harmonização ao nível das taxas e da deter-minação da matéria colectável, os custos acrescidos a nívelfiscal das operações transfronteiriças e a ineficácia dos méto-dos de eliminação da dupla tributação contidos nas Conven-ções de Dupla Tributação bilaterais. As soluções que sãoapontadas neste documento passam pela harmonização da

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90 Para uma explicação do conteúdo da nova proposta, v. MALHERBE,Jacques/HERMAND, Olivier, “Fiscalité européenne de l’épargne: unedirective en attente”, in Journal des tribunaux, ano 121.º, n.º 6053, 4 deMaio de 2002, págs. 329 a 337; e tb. MOHAMED, Sideek, “A criticalassessment of the proposed directive on taxation of cross-border savingsincome”, in EC Tax Journal, vol. 6, issue 1, 2002, págs. 45 e ss., queconsidera que a adopção desta Directiva (e o consequente fim do segredobancário) e o sucesso do Euro podem abrir caminho à harmonização fis-cal na Comunidade.

91 Comunicação COM(2001)582 final, de 23/10/2001 – Para ummercado interno sem obstáculos fiscais – Estratégia destinada a proporcionar àsempresas uma matéria colectável consolidada do imposto sobre as sociedades paraas suas actividades a nível da UE.

92 Comunicação COM(2001)260 final, de 23/05/2001 – A políticafiscal da União Europeia – prioridades para os próximos anos.

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determinação da matéria colectável e por acções de coorde-nação e sensibilização dos Estados para a necessidade deadoptarem medidas compatíveis com o desenvolvimento daeconomia comunitária93. No segundo documento referido,reafirma-se a liberdade dos Estados para escolherem os siste-mas fiscais que considerem mais adequados, desde que res-peitem as regras comunitárias. Distingue-se entre impostossobre o rendimento das pessoas singulares e impostos sobre“bases de tributação móveis”, afirmando-se que aqueles apenasnecessitarão de alguma coordenação, enquanto estes últimosterão de ser objecto de “uma abordagem mais ambiciosa numfuturo próximo”. Uma das principais medidas que a Comissãoaponta como indispensáveis neste documento é a passagempara a votação por maioria qualificada, uma vez que, nassuas palavras, “o ritmo de aprovação das propostas de directivas nodomínio fiscal é verdadeiramente decepcionante”. Esta conclusãonão levou, no entanto, a que no projecto de ConstituiçãoEuropeia se consagrasse essa passagem à votação por maioriaqualificada. Aí apenas se prevê a possibilidade de, nas áreasda cooperação administrativa e luta contra a fraude fiscal noque toca ao imposto sobre as sociedades, o Conselho, apósdeliberar por unanimidade nesse sentido, poder adoptar pormaioria qualificada uma lei ou lei-quadro que adopte as me-didas necessárias94. Como facilmente se verifica, mais umavez se revelam as dificuldades em avançar na área da fiscali-dade directa, mesmo reconhecendo-se a importância deuma intervenção comunitária.

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93 SCHWARZ, Jonathan S., “European Commission strategy forcompany taxation in the European Community”, in Bulletin forInternational Fiscal Documentation, Maio de 2002, págs. 215 e ss..

94 Artigo III-60.º.

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IV – CONCLUSÕES

1. A Preferência Inicial pelos Impostos Indirectos

A Comunidade Europeia, na sua génese, assumia-se en-quanto projecto de criação de uma zona em que as trocas demercadorias e serviços e a circulação de pessoas não encon-trassem qualquer obstáculo. Nesse sentido, a nível fiscal, aprioridade eram aqueles tributos que directamente afectavamtais liberdades de circulação: os impostos indirectos, na me-dida em que influenciam de forma directa os preços dosbens e serviços95.

Assim, a preocupação evidente dos redactores do Tra-tado de Roma foi a de regular intensamente a área da tri-butação indirecta, proibindo a concessão de subvenções àexportação dissimuladas sob a forma de reembolsos fiscais etambém o falseamento da concorrência através do agrava-mento das condições de acesso de produtos estrangeiros aosmercados nacionais.

Com base nestas disposições, foi atingido um grau con-siderável de harmonização a nível do imposto de transac-ções, operado em três fases: a introdução do sistema comumde IVA, em 1967; a definição da base comum de determi-nação do IVA, com a sexta directiva, em 1977; e a instituiçãode um sistema transitório com vista à supressão das fronteirasfiscais, em 199696. Ainda assim, o caminho para a perfeitaintegração dos impostos indirectos dos Estados-Membros

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95 CASALTA NABAIS, José, Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2000,pág. 117.

96 PITTA E CUNHA, Paulo de, “Harmonização Fiscal”, in De Maas-tricht a Amesterdão – Problemas da União Monetária Europeia, Almedina,Coimbra, 1999, pág. 124.

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apresenta ainda algumas dificuldades, como o prova a relu-tância dos Estados em aprovar o modelo definitivo do IVA,consagrando o princípio da origem na tributação, “corri-gido” por um sistema de redistribuição das receitas fiscaisentre os Estados.

A orientação principal em matéria fiscal foi, portanto, ada harmonização das legislações nacionais na área da tributa-ção indirecta. Ainda hoje, e em grande parte devido à maiorabertura dos Estados e à facilidade de actuação por parte dasinstituições comunitárias, a União tem tendência a servir-sedos impostos indirectos como instrumento de política macro--económica. Assim, por exemplo, em matéria de promoçãodo emprego, ao propor o desvio de parte da carga fiscal queincide sobre o trabalho dos impostos directos para os indi-rectos97.

2. A Tendência Inicial para a Harmonização na Fis-calidade Directa

À medida que o processo de integração europeia seaprofundava e alargava as suas fronteiras, os responsáveis comu-nitários começaram a despertar para os problemas que adisparidade de legislações entre Estados ao nível da fiscali-dade directa trazia para o objectivo de supressão das barreiras

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97 Criticando esta orientação, no sentido de ser a carga fiscal globale não a carga da tributação directa a geradora do desemprego v. ROBIN-SON, Bill, “Estratégia Fiscal na União Europeia: os Impostos IndirectosSerão Efectivamente Preferíveis?”, Fisco, ano 9, n.º 80/81, Janeiro-Feve-reiro de 1997, pág. 67 a 80. Criticando também esta orientação de maiortributação do consumo v. SALDANHA SANCHES, J. L., “A Evolução FiscalEuropeia: Mitos e Realidades”, Fisco, ano 9, n.º 80/81, Janeiro-Fevereirode 1997, pág. 5.

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internas. Tratava-se agora não só de garantir condições deconcorrência iguais entre produtores na colocação dos seusprodutos, mas também de lhes assegurar a liberdade efectivade estabelecimento e de escolha de local de investimento98.

Desse modo, e inspirados no exemplo da fiscalidadeindirecta, começaram por apontar para uma harmonizaçãodas legislações, nomeadamente no que toca à tributação dassociedades. As iniciativas da Comissão apontavam para oacordo entre Estados no sentido de se chegar a disposiçõessemelhantes em todos eles, de modo a existirem regras que,embora de direito nacional, fossem semelhantes em todo oespaço comunitário.

Os estudos realizados, ao mesmo tempo que alertavampara as distorções provocadas pelos diferentes sistemas nacio-nais, propunham intervenções comunitárias que tivessemincidência nas regras internas de cada Estado, de modo aobter-se, com a intervenção de todos os Estados, uma defi-nição de regras estruturais comuns, a nível, por exemplo, dastaxas ou da definição da matéria colectável.

3. Os obstáculos à harmonização

No entanto, a acção comunitária deparou com todauma série de obstáculos que colocavam entraves sérios à rea-lização da harmonização em matéria de impostos directos.

Destes, os mais importantes e decisivos são os obstá-culos institucionais. A exigência da unanimidade para atomada de decisões em matéria fiscal condena ao fracasso agrande maioria das iniciativas tendentes à harmonização. Em

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98 SALDANHA SANCHES, J. L., Manual de Direito Fiscal, Lex, Lisboa,1998, pág. 73.

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matéria tão delicada e numa fase em que a fiscalidade assumeimportância redobrada para os governos nacionais em virtudeda perda de poder noutras áreas, chegar a uma posição unâ-nime é tarefa muito difícil, senão mesmo impossível. Acres-cente-se que esta regra não tem origem apenas na ideia desoberania nacional, mas resulta também da própria estruturainstitucional da União e do “deficit democrático” que é ine-rente a esta99. A sua alteração implica algo de mais profundo,na medida em que, se não acompanhada de uma reforma aonível institucional e de mecanismos de tomada de decisões,poderia representar uma violação de princípios básicos doDireito Fiscal100.

Os Estados têm na política fiscal um instrumento privi-legiado de actuação e os governos não pretendem abdicar

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99 A teoria da existência de um “deficit democrático” na UniãoEuropeia não é unânime. Defendendo que tal “deficit” existe, uma vezque “qualquer das principais instituições políticas da União Europeia – o Parla-mento Europeu, o Conselho e a Comissão – sofre, no seu actual estádio de evo-lução, de deficiências consideráveis para um exercício da função legislativa concor-dante com o postulado da legitimidade política assumido na ideia de Estado deDireito Democrático (e, em geral, nas comunidades humanas que dessa ideia selouvam)”, v. BARBOSA DE MELO, António M., “Legitimidade democráticae legislação governamental na União Europeia”, in Estudos em Homena-gem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra – Studia Iuridica n.º 61, Coimbra editora,2001, pág. 103 e ss.. Em sentido contrário, entendendo que a União Eu-ropeia representa um grau democrático suplementar, v. MADURO,Miguel Poiares, “O superavit democrático europeu”, in Análise Social,vol. XXXV, 158-159, pág. 119 e ss., apud CASALTA NABAIS, José, A sobe-rania fiscal..., cit., nota 27, pág. 13.

100 “It would be tantamount to ‘taxation without representation’and a serious step back until before the Magna Charta (...) Theinstitutional debate is not a tax debate, but it is essential to progress intax harmonization”. Assim VANISTENDAEL, F., “Quo Vadis EuropeanTaxation?”, EC Tax Review, 1994/4, pág. 144 e 145.

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dele, seja pela sua importância a nível de gestão macro-eco-nómica, seja por razões puramente eleitorais de gestão do“ciclo político”.

Há também que ter em conta os obstáculos estruturais.Os sistemas de tributação variam muito entre os Estados--Membros101 e a própria organização da administração fiscalestá longe de ser uniforme. Mesmo atingindo um determi-nado grau de integração ao nível das regras, a sua aplicaçãoprática estaria dependente de estruturas organizacionais dis-tintas.

4. Concorrência Fiscal: harmonização pelo mercadovs. harmonização pela União

Neste quadro de impasse, um outro problema se colo-cava de forma cada vez mais preocupante: à medida que seintegravam os mercados nacionais crescia o risco de dis-torções provocadas pela concorrência fiscal. Isto é, a falta dedisposições que permitissem lançar as bases para um regimeeuropeu de tributação abriam caminho à deslocação de fac-tores para áreas de tributação privilegiada. A consequênciaimediata disto seria a tributação mais pesada do trabalho102,enquanto factor com menos mobilidade, com directasconsequências nos níveis de desemprego.

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101 LEROY, Marc, “Quelle Convergence pour les Politiques Fiscalesen Europe?”, Revue du Marché Commun et de L’Union Européenne, n.º 393,Dezembro de 1995, Paris, pág. 670 a 673.

102 SALDANHA SANCHES, J. L., “A Evolução Fiscal Europeia:...”, cit.,pág. 6. V. tb. PITTA E CUNHA, Paulo de, “A harmonização fiscal no pro-cesso de integração europeia”, in Estudos em homenagem ao Professor Dou-tor Manuel Gomes da Silva, Boletim da Faculdade de Direito da Universi-dade de Lisboa, Coimbra editora, 2001, pág. 512.

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Uma dupla via se abre perante esta situação: a actuaçãodas instituições ou a perda de soberania para o mercado103.As autoridades comunitárias têm perfeita consciência de queuma perda de soberania para o mercado teria como conse-quência o agravamento da tributação do trabalho104, com osefeitos negativos a nível social que tal acarretaria, pelo queera necessário encontrar um modo de actuar sem ferir ascompetências estaduais. Aliás, a harmonização pelo mercadocontraria a teoria económica das despesas públicas, na medidaem que a lógica dominante seria a de uma escolha individuale não colectiva. O financiamento das despesas públicas deveser feito através de um mecanismo coercivo fundado numaescolha colectiva, representada no contrato social e no votodemocrático, e não através de um simples jogo das forças domercado que leva necessariamente a lógicas individuais debenefício das despesas públicas mas de não contribuição parao seu financiamento105.

5. A Opção pela Coordenação

É neste contexto que surge a mudança de política daComissão em relação aos impostos directos. A Comissãoapercebeu-se que para agir em tempo de prevenir as con-

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103 ROCCATAGLIATA, Franco, ob.cit., pág. 714.A opção reconduz-se à distinção entre harmonização fiscal espontâ-

nea ou pelo mercado e harmonização fiscal centralizada ou pelo Estado:v. CASALTA NABAIS, José, A soberania fiscal..., cit., nota 16, págs. 9-10.

104 Ao passo que o sucesso da luta contra a concorrência fiscal pre-judicial permitiria aos Estados alargar a incidência dos impostos, assimpodendo reduzir as taxas aplicáveis – HAMMER, Richard M. / OWENS,Jeffrey, Promoting Tax Competition, pág. 5. Disponível no site www.ocde.org.

105 A lógica do “passageiro clandestino” – STERDYNIAK, Henri, eoutros, Vers Une Fiscalité Européenne, Economica, Paris, 1991, pág. 90.

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sequências negativas da União Económica e Monetária nocampo fiscal teria de “dar um passo atrás” para poder prosse-guir106.

Nestes termos, surge a nova perspectiva de coorde-nação entre Estados-Membros. O objectivo já não é o esta-belecimento de regras uniformes relativas a determinadoselementos dos impostos mas sim a limitação da intervençãocomunitária àqueles aspectos que possam ter directa incidên-cia na prossecução dos objectivos do mercado interno.

Foi seguindo esta linha que a Comissão avançou com asmedidas do “pacote fiscal” de Dezembro de 1997, queconstituem uma necessária e urgente tomada de posiçãorelativamente aos assuntos fiscais tendo em vista a intro-dução do Euro e a União Económica e Monetária107.

O processo de integração europeia ganhou novos con-tornos com a definição expressa do princípio da subsidiarie-dade e o cada vez mais firme propósito dos Estados-Membrosde, no actual momento, não abdicarem de mais “parcelas”da sua soberania, especialmente no domínio fiscal. Assim,coube às autoridades comunitárias acompanhar esta evolu-ção e, embora com o intuito de conseguir progressos míni-mos que assim permitissem a continuação da consolidação

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106 Paradoxalmente, para combater a concorrência fiscal prejudicialtornou-se necessário “defender” as soberanias nacionais – assim, PITTA E

CUNHA, Paulo de, “Tax Harmonization”, in PITTA E CUNHA, Paulo de /PORTO, Manuel (coords.), O Euro e o Mundo, Almedina, Coimbra, 2002,pág. 50.

107 “The objective of the ‘taxation package’ is most certainly not toharmonise national taxation systems across the board, but simply tocoordinate certain aspects of national taxation systems so as to improvetheir efficiency, notably by limiting only those forms of tax competitionbetween Member States which are harmful and clearly identifiable”,MONTI, Mario, EMU, Taxation and Competitiveness, discurso proferido naKangaroo Group Conference, Londres, 27 de Novembro de 1998, pág. 6.

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do mercado interno, passar a considerar a política fiscal numaperspectiva coordenadora e não harmonizadora108. Trata-seagora de conseguir eliminar os efeitos prejudiciais que resul-tam da coexistência de sistemas diferentes, mas assegurando“uma soberania real dos cidadãos e dos seus representantesatravés de uma acção comum”109.

6. Evolução futura

Reconhecida por todos como a área mais problemáticano caminho da integração europeia, a fiscalidade não podecontinuar a ser eternamente o “problema adiado” da União.

A Comissão encarou de frente o problema da concor-rência fiscal prejudicial e dos seus potenciais efeitos negativosface a uma União Económica e Monetária, e preferiu retro-ceder no caminho da harmonização em matéria de fiscalidadedirecta, assim conseguindo alguns progressos que, emboramodestos, traziam algumas soluções numa perspectiva de curto--médio prazo. Esteve bem ao saber ler e interpretar a vontadedos Estados-Membros de não avançar tão rapidamente numaárea sensível como é a da tributação directa.

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108 Havendo ainda quem distinga, como MICHEL VANDEN ABEELE,entre dois níveis de coordenação na fiscalidade directa: um quaseinexistente (caso do imposto sobre os rendimentos de pessoas singulares)e outro mais aprofundado (no que toca a factores mais móveis como ocapital e os rendimentos das sociedades) – Quelles pourraient Être les Con-séquences possibles d’une harmonisation fiscale au sein de l’UE?, discurso pro-ferido no colóquio organizado pelo IFE sobre o segredo bancário, a 17e 18 de Novembro de 1999, em Lugano. Disponível no site:www.europa.eu.int/comm/taxation_customs.

109 COMISSÃO EUROPEIA, A Política Fiscal na União Europeia, Serviçode Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, Luxemburgo, 2000,pág. 4.

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Contudo, o projecto em constante mutação e reinven-ção que é a União Europeia, resultante da conjugação deforças centrífugas e centrípetas, tem de ser encarado numaperspectiva de evolução para uma cada vez maior integraçãoentre espaços nacionais. Assim, parece que depois de umafase em que foi necessário recuar para poder obter algunspequenos avanços, não podem as autoridades comunitáriasdeixar de pensar na evolução da política fiscal europeia nosentido de ultrapassar a simples coordenação de legislaçõesestaduais110. Precisamente no momento em que a UniãoEconómica e Monetária entrou na sua fase decisiva, a Comu-nidade enfrenta o dilema de necessitar de grande disciplinafinanceira ao mesmo tempo que carece de maiores interven-ções fiscais, sendo estas necessárias para atingir dois objec-tivos – a convergência regional e a estabilização regional111.Os efeitos que se farão sentir nos próximos anos da muitorecente introdução física do Euro alertarão para o cada vezmais visível problema das disparidades fiscais entre os Estadose a crescente mobilidade dos investimentos certamente le-vantará o problema da repartição das receitas fiscais entre osEstados-Membros112.

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110 Nas palavras de MICHEL VANDEN ABEELE: “Many tax hindrancesto cross-border activity and tax distortions remain and are becomingincreasingly visible precisely because of the disappearance of otherrestrictions.” – Taxes without borders, discurso proferido na World TaxConference, realizada em 27 de Fevereiro de 2000 em Tampa, nosEUA. Disponível no site www.europa.eu.int/comm/taxation_customs.

111 HUGHES-HALLET, Andrew/SCOTT, Andrew, “The Fiscal PolicyDilemmas of Monetary Union”, in COFFEY, Peter (ed.), Main EconomicPolicy Areas of the EC – After 1992, 4.ª edição, Kluwer, 1993, págs. 67 e ss..

112 Assim LEITE DE CAMPOS, Diogo, A harmonização fiscal na C.E.E.,separata de Direito Comunitário e a Construção Europeia, Boletim da Facul-dade de Direito – Studia Iuridica 38, Coimbra editora, pág. 141.

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A evolução da política fiscal europeia terá de passar, noentanto, por uma ampla reforma da União no seu todo,nomeadamente a nível institucional, e não deixará de ser umcaminho difícil e sinuoso por entre resistências nacionais aabdicar da soberania fiscal113.

6.1. As reformas institucionais

O futuro da União Europeia passa inevitavelmente poruma profunda reforma institucional. O desenho institucionalidealizado pelos fundadores nos anos 50 vai-se esgotando àmedida que a Comunidade de 6 caminha a passos largospara a União de 28. Os procedimentos decisórios terão deser simplificados e a adopção de medidas terá de ser facili-tada sob pena de a União cair num imobilismo que seria amais que certa condenação ao fracasso. Os consensos serãoimpossíveis de alcançar numa óptica de 28 Estados e, nessesentido, as áreas onde ainda vigora a regra da unanimidadeterão de passar a adoptar a regra da maioria.

Sem dúvida que não será fácil, mas também em matériafiscal terá de se verificar esta mudança. A unanimidade é portodos indicada como a principal responsável pelos sucessivosimpasses a que a discussão fiscal na União tem chegado e aComissão Europeia já começa a actuar no sentido da sua al-teração. Em Março de 2000, foi apresentada em Bruxelasuma Comunicação da Comissão à Conferência Intergover-

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113 Devendo mesmo a discussão começar pelo problema de baseque é qual a metodologia a seguir na actuação comunitária. Assim, AZE-VEDO, Maria Eduarda, “A Fiscalidade e a Competitividade Empresarialno Quadro do Mercado Único Europeu”, Fisco, Ano 8, n.º 74/75,Janeiro-Fevereiro de 1996, pág. 7.

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namental sobre as Reformas Estruturais114 em que era pro-posta precisamente uma alteração do Tratado no sentido deser adoptada a regra da maioria para a adopção de actos emmatéria fiscal. Nesta, embora mantendo-se a regra da unani-midade do art.º 93.º, introduzia-se uma lista de matérias nasquais, em derrogação do disposto naquela norma, o Con-selho poderia deliberar por maioria qualificada, sendo elasessencialmente: a coordenação das normas que constituamentraves às quatro liberdades fundamentais, designadamenteas que conduzam a discriminação ou dupla tributação; a coor-denação de normas (na fiscalidade directa ou indirecta)visando a luta contra a evasão e a fraude fiscais; medidas ten-dentes à uniformização e simplificação de regras do IVA eimpostos especiais de consumo e de capitais; medidas fiscaiscom directa incidência em matéria ambiental.

Em nome da eficácia, mas cautelosamente respeitandoas relutâncias nacionais, a Comissão propunha a adopção daregra da maioria nas áreas em que é necessária uma simplescoordenação ou introdução de prescrições mínimas, deixan-do de fora eventuais aspectos a harmonizar115. A ser aprova-do, este avanço não poderia deixar, no entanto, de ser vistocomo uma “brecha” significativa na “muralha” das sobera-nias nacionais, pois um avanço deste género seria a portaaberta para conquistas muito maiores por parte das autorida-des comunitárias.

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114 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, “Comunicação daComissão de 14 de Março de 2000 – Contribuição complementar daComissão para a Conferência Intergovernamental sobre as reformasinstitucionais – Votação por maioria qualificada para aspectos do mer-cado único nos domínios da fiscalidade e da segurança social –COM(2000)114 final”, Fisco, Ano 9, n.º 90/91, Setembro de 2000, pág.75 a 92.

115 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, ob.cit., pág. 79-80.

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A proposta não deixa de levantar problemas de váriaíndole, nomeadamente as consequências que traria paraEstados como Portugal (com interesses substancialmentedivergentes daqueles dos países da Europa Central), que cor-reria o sério risco de ser afastado da condução das políticasfiscais a nível internacional. A medida proposta traria con-sequências macro e micro-económicas muito distintasde Estado para Estado, em virtude das diferenças históricas,sociais e estruturais que se fazem sentir entre os membros daUnião116. No entanto, o caminho futuro da União terá ne-cessariamente de passar por aí e caberá aos Estados menosinfluentes fazer exigências no sentido de esta reforma serincluída numa mais ampla reestruturação das instituiçõescomunitárias, onde os povos (estes sim, essenciais para aconquista de legitimidade tributária por parte da União)estejam mais directamente representados.

A reforma proposta, por todos os problemas que acar-reta, não será de fácil aprovação e demorará ainda a ser postaem prática. A evolução recente para a União Económica eMonetária não deixará certamente de fornecer mais um forteargumento para a actuação por parte dos Estados-Membros,na medida em que um cenário de bloqueio por parte destesatravés das suas políticas fiscais às políticas do Banco CentralEuropeu não é de todo de afastar117.

Apesar desta realidade, no entanto, a evolução da inte-gração a nível fiscal, numa óptica mais realista e concretizá-

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116 LOBO, Carlos Baptista, “Uma Primeira Reacção à Proposta deAlteração do Artigo 93.º do Tratado CE Relativamente às Matérias Fis-cais”, Fisco, Ano 9, n.º 90/91, Setembro de 2000, pág. 93 a 102.

117 VANISTENDAEL, Frans, “Redistribution of tax law-making powerin EMU?”, in EC Tax Review, 1998-2, pág. 74 e ss., maxime 77 e 78;CASALTA NABAIS, José, A soberania fiscal..., cit., pág. 14.

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vel a curto-médio prazo, passará pela aplicação dos princí-pios gerais de Direito Comunitário pelo TJCE118.

6.2. O princípio da não discriminação: agenteimpulsionador da aproximação

Tal como em todas as outras áreas da integração euro-peia, o TJCE tem alargado o âmbito da intervenção comu-nitária fiscal através da sua acção interpretativa do DireitoComunitário. Este alargamento oferece a vantagem de sergradual mas eficaz, na medida em que as decisões do Tribu-nal, vinculando os Estados-Membros, têm influência directana sua actuação.

Na área fiscal, o princípio de não discriminação assumecontornos importantíssimos, na medida em que através deleo TJCE tem obrigado os Estados a introduzir alterações aonível das suas legislações nacionais.

O princípio da não discriminação, graças a uma determi-nada “elasticidade” na sua formulação, cobre uma série de si-tuações que o legislador comunitário não previu directamente,nomeadamente aquelas ligadas à fiscalidade directa. Nessa me-dida, a sua aplicação pelo TJCE pode desempenhar – e assimtem sucedido – um papel harmonizador importantíssimo.

Um pouco à semelhança da actuação do Supreme Courtdos Estados Unidos da América, na interpretação da com-merce clause119 e posterior coordenação desta e do princípio

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118 O que é confirmado pelo tímido (e quase nulo) avanço feito noProjecto de Constituição Europeia, a que já fizemos referência.

119 “The Congress shall have power to regulate commerce withforeign nations, and among the several States, and with the Indiantribes” – Artigo I, Secção 8, Cláusula 3, da Constituição dos EstadosUnidos da América.

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da não-discriminação, o TJCE pode, através da aplicação doprincípio da não discriminação, moldar o que será o em-brião do modelo fiscal europeu120.

A actuação do TJCE, adiantemo-lo desde já, serásempre casuística e, como tal, dela não será possível extrairnormas gerais que orientem a actividade dos Estados--Membros na condução das suas políticas fiscais. Numaárea como a fiscal, um tal grau de incerteza é incompor-tável, pelo que não se pode pretender ver no Tribunal oarquitecto do sistema fiscal europeu. Além disso, da pró-pria natureza das funções do TJCE decorre que nas suasdecisões não se abarca toda a problemática que está asso-ciada ao que pode vir a ser a fiscalidade directa europeia,havendo sempre questões por responder e problemas que,por não serem colocados perante o Tribunal, não são porele conhecidos nem resolvidos.

Assim, apesar de ter vindo a ser a aplicação do princípiode não-discriminação pelo TJCE o que mais tem contribuídopara fazer avançar a construção do modelo fiscal europeu,cremos que o papel que as decisões deste órgão desem-penharão será essencialmente o de alertar os Estados para anecessidade cada vez mais urgente de tomar a iniciativa121.A integração dos sistemas fiscais europeus terá sempre de

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120 DE WOLF, Michel, “The Power of Taxation in the EU and inthe US”, EC Tax Review, 1995/3, pág. 124 a 135; e do mesmo autor“Principe de non-discrimination et souveraineté fiscale dans l’Unioneuropéenne et dans l’ordre juridique fédéral américain”, in Annales deDroit de Louvain, n.º 3, 1994, Bruxelles, págs. 287 e ss..

121 Não concordamos, assim, com a terceira conclusão de MICHEL

DE WOLF, quando afirma: “... the principle of non-discrimination, combinedwith a judicial authority empowered to implement it, is sufficient to satisfy thetax needs of a single market” – “The power...” cit., pág. 135.

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passar por uma iniciativa positiva, não se podendo esperarque ocorra apenas uma integração pela via negativa122.

Os Estados não poderão, sob pena de verem as basesdos seus sistemas fiscais muito afectadas, esperar muito tempoantes de actuar decididamente nesta área.

Visto deste modo o papel que o princípio tem desem-penhado e continuará certamente a desempenhar no impul-sionar da construção de um futuro sistema fiscal europeu,passaremos a analisá-lo, primeiro no âmbito das convençõespara evitar a dupla tributação e logo de seguida no campodo Direito Comunitário.

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122 Nas palavras de CASALTA NABAIS: “...como é óbvio, não podeerguer-se um sistema fiscal supranacional tendo por base apenas a demolição dossistemas fiscais nacionais.” – A soberania fiscal..., cit., pág. 15.

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2.ª PARTE

A NÃO DISCRIMINAÇÃO NAS CONVENÇÕES

COM VISTA A EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO

V – CONSIDERAÇÕES GERAIS

Vimos no capítulo anterior que a evolução da políticafiscal europeia no campo da fiscalidade directa tende a privi-legiar a coordenação entre sistemas fiscais distintos e não(pelo menos num futuro próximo) a harmonização dos mes-mos com vista ao estabelecimento de um regime fiscal comuma todos os Estados-Membros.

Teremos então de analisar agora as formas de relaciona-mento entre tais sistemas, enquanto autónomos e fruto doexercício de soberanias individuais e distintas.

A forma clássica de relacionamento entre sistemas fiscaisnacionais no plano do Direito Internacional é a celebraçãode Convenções contra a Dupla Tributação (CDT). Sendo adupla tributação um fenómeno tipicamente associado à exis-tência de diferentes regimes tributários – dois (ou mais) sis-temas tributários prevêem a aplicação das suas disposições aomesmo facto123, em virtude de este apresentar conexões rele-

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123 XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional – Tributação dasOperações Internacionais, Almedina, Coimbra, 1993, pág. 31. V. tb.NABAIS, José Casalta, O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributopara a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, Almedina,Coimbra, 1998, pág. 511.

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vantes com diversos ordenamentos – é neste campo que tere-mos de iniciar a análise do relacionamento entre os diferen-tes sistemas tributários dos Estados que compõem a UniãoEuropeia. Num espaço que se pretende cada vez mais inte-grado, ao ponto de ter como meta a instalação de um mer-cado interno, o fenómeno da dupla tributação internacionalassume uma importância enorme no plano comunitário. Assim,não é de estranhar que, como vimos, no Relatório Rudingse proponha a celebração de CDT’s entre os Estados-Mem-bros como forma de minimizar os impactos negativos da faltade iniciativa estadual na área da fiscalidade directa.

1. Evolução Histórica das CDT’s

A inclusão de cláusulas de natureza tributária em trata-dos internacionais de diversa índole sempre foi prática cor-rente dos Estados. No entanto, o aparecimento de Tratadosespecificamente destinados à eliminação de situações dedupla tributação é um fenómeno relativamente recente,com pouco mais de um século124. Com efeito, foi apenas emfinais do séc. XIX que foram celebradas as primeiras CDT’scom uma configuração próxima da actual125, o que se explica

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124 XAVIER, Alberto, ob. cit., pág. 93 e ss.; EASSON, Alex, “Do westill need tax treaties?”, in Bulletin for International Fiscal Documentation,Vol. 54, n.º 12, Dezembro de 2000, pág. 619.

125 LOUIS CARTOU (Droit Fiscal International et Européen, Dalloz, Pa-ris, 1981, pág. 107, nota 4) cita a Convenção Franco-Belga de 1843 so-bre assistência em matéria de direitos de sucessão; ALEX EASSON (ob. e loc.cits.) refere os Tratados entre a Prússia e a Saxónia e entre a Áustria e aHungria de 1869 mas considera que a primeira CDT de tipo contempo-râneo foi a celebrada entre o Império Austro-Húngaro e a Prússia em 22de Junho de 1899.

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pela reduzida relevância das relações económicas interna-cionais e pelas formas de riqueza que predominavam, ba-seando-se em factores de reduzida mobilidade, como bensimobiliários126.

Foi só no início do séc. XX, mais precisamente no finalda 1.ª Guerra Mundial, que a celebração de CDT’s sofreuum forte impulso. As relações económicas entre Estadosintensificavam-se e tornava-se cada vez mais necessário fazerface ao problema do concurso de sistemas fiscais a nívelinternacional. A Sociedade das Nações institui em 1921 umComité de Peritos que, em 1928, elabora o primeiro mo-delo de CDT, modelo este que esteve na base das CDT’scelebradas na primeira metade do séc. XX e que constituiuum forte estímulo à negociação entre Estados. De 1899 a1919 apenas 24 convenções haviam sido celebradas, númeroesse que se elevava já a 256 em 1939127.

O final da 2.ª Guerra Mundial e a crescente integraçãodos mercados nacionais, a par da criação de blocos econó-micos como a Comunidade Económica Europeia e, nomea-damente, o movimento de internacionalização da economiaamericana, constituíram os factores decisivos para um fortemovimento de celebração de CDT’s, acelerado no final doséc. XX pela queda do bloco de Leste, pela independênciade numerosos Estados, pela conversão à economia de mer-cado dos Estados da antiga área de influência da ex-UniãoSoviética e pela globalização dos mercados e internacionali-zação dos sistemas económico-produtivos que vieram alertarpara a necessidade de intervenções supranacionais128. Em

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126 XAVIER, Alberto, ob. e loc. cits..127 CARTOU, Louis, ob. cit., pág. 107.128 UCKMAR, Victor, Corso di Diritto Tributario Internazionale, CEDAM,

Padova, 1999, pág. 9.

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1966 havia já 922 CDT’s celebradas129 e no final de 1997,esse número era de 1794, abrangendo 178 países130.

Com ALEX EASSON131, podemos identificar durante oséc. XX quatro “vagas” de Estados que aderiram ao movi-mento internacional de celebração de CDT’s:

• num primeiro momento, até aos anos 70, a maioriadas convenções celebradas envolviam Estados desen-volvidos e com economias de mercado;

• na década de 70 os Estados menos desenvolvidos ouem vias de desenvolvimento começaram a celebrarCDT’s tendo em vista a atracção de investimentoestrangeiro;

• nos anos 80, foi a vez dos países socialistas celebraremCDT’s com países do bloco ocidental;

• finalmente, na última década do século, os Estadosem transição para a economia de mercado e aquelesque se tornaram independentes com o final da UniãoSoviética iniciaram a sua própria rede de CDT’s.

2. Os diferentes modelos de CDT

A importância crescente do fenómeno da dupla tributa-ção internacional e a necessidade de reduzir a complexidadeque resultaria da coexistência de inúmeras CDT’s diferenteslevou a que desde cedo houvesse a preocupação por partedos Estados em definir modelos a partir dos quais fossenão só facilitado o trabalho de negociação entre si das con-venções a celebrar como também fossem melhoradas as con-

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129 CARTOU, Louis, ob. e loc. cits..130 UNCTAD, World Investment Report 1998: Trends and Determi-

nants, apud EASSON, Alex, ob. cit., pág. 619, nota 4.131 Ob. cit., págs. 619 e 620.

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dições para os investimentos transfronteiriços, garantindomaior confiança e estabilidade aos investidores.

Como já foi referido, o primeiro trabalho de relevonesta área foi desenvolvido pela Sociedade das Nações, nosanos que se seguiram à 1.ª Guerra Mundial132. O modelo deConvenção Bilateral de 1928 serviu de base para a elabo-ração das primeiras CDT’s, entre as duas Guerras Mundiais.

Foi no seio da Organização para a Cooperação e Desen-volvimento Económico (OCDE), no entanto, que se desen-volveram os modelos de CDT que haveriam de estar na baseda esmagadora maioria das Convenções actualmente em vigor.Partindo de trabalhos realizados entre 1958 e 1961 pelo seuComité Fiscal, esta Organização aprovou, através da Reco-mendação de 10 de Julho de 1963, adoptada em Paris, o Pro-jecto de Convenção em matéria de impostos sobre o rendi-mento e capital e os comentários que o acompanhavam.

Este projecto foi revisto em 1977, com base nos traba-lhos de acompanhamento efectuados pelo agora denomi-nado Comité de Assuntos Fiscais, e posteriormente em1992. As razões que levaram a estas revisões foram a necessi-dade de adaptar o Modelo às novas condições económicas(novas tecnologias e processo acelerado de globalização) e oaperfeiçoamento de estratégias de combate à evasão e fraudefiscais133, sendo que o actual modelo de 1992 está sujeito apermanentes actualizações por parte da OCDE134.________________________

132 Outras tentativas de estabelecer modelos comuns de CDT haviamsido esboçadas no seio de outras organizações, como a International FiscalAssociation ou a Câmara de Comércio Internacional, mas não obtiveram oacolhimento que viria a receber o modelo da Sociedade das Nações. V.SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, La No Discriminación Fiscal, EDERSA,Madrid, 2001, pág. 90 e ss..

133 Idem, pág. 94, nota 14.134 A última edição foi publicada em Abril de 2000 e já sofreu alte-

rações desde então no que toca à definição de estabelecimento per-

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A mesma Organização adoptou em 1976 um Modelode Convenção em matéria de tributação de sucessões e doa-ções, posteriormente revisto em 1982.

Apesar de o Modelo da OCDE ser largamente domi-nante, outros dois modelos de CDT merecem referência. Omodelo da Organização das Nações Unidas (ONU), adopta-do em 1980 e revisto em Abril de 2000, veio atender àsespecificidades dos países subdesenvolvidos e em vias de desen-volvimento, cujos interesses não estavam devidamente pro-tegidos no Modelo da OCDE, desenhado para Estados comeconomias de mercado dinâmicas e em posição de relativaigualdade quanto aos fluxos transfronteiriços de capitais e inves-timentos. Assim, neste modelo prevêem-se algumas regrasque reforçam a posição dos países menos desenvolvidos,nomeadamente através do reforço do princípio da fonte,garantindo maiores receitas a estes Estados que, de outromodo, visto estarem na posição mais débil de receptores deinvestimento estrangeiro, veriam fugir uma parte substancialdas suas receitas fiscais para o Estado da residência dos inves-tidores135. Este modelo de convenção esteve na base da“vaga” de CDT’s celebrada por países subdesenvolvidos ouem vias de desenvolvimento a partir dos anos 80, mas nosúltimos anos a sua influência tem diminuído em parte de-vido ao predomínio do modelo da OCDE136.

Refira-se ainda a título incidental o Modelo de Con-venção adoptado pelos Estados Unidos da América (EUA)

manente no contexto do comércio electrónico: BAKER, Philip, DoubleTaxation Conventions, Sweet & Maxwell, Londres, 2001, par. A.05.Sobre as alterações de 2000, v. VÖGEL, Klaus, “Tax treaty news”, inBulletin for International Fiscal Documentation, vol. 54, n.º 3, Março de2000, págs. 98 e 99.

135 XAVIER, Alberto, ob. cit., pág. 96.136 BAKER, Philip, ob. cit., par. A.10.

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desde 1980, que apresenta como característica específica asalvaguarda da competência tributária dos EUA em relaçãoaos seus nacionais, independentemente de aí serem residen-tes ou não, sendo actualmente um dos poucos Estados aadoptar o critério da nacionalidade como fundamento doseu poder tributário.

Uma vez que a Convenção-Modelo da OCDE emmatéria de impostos sobre o rendimento e o capital é a maisutilizada pelos Estados nas suas negociações, é sobre esta queincidirá a nossa análise.

3. A relação entre o Direito Comunitário e as CDT’scelebradas pelos Estados– Membros

As CDT’s vigoram na ordem interna dos Estados deacordo com as suas disposições constitucionais. Em Portugalconsagrou-se uma cláusula geral de recepção automáticaplena do Direito Internacional Convencional, prevista noart.º 8.º da Constituição, bastando para que uma convençãocelebrada por Portugal vigore no nosso ordenamento quevincule internacionalmente o Estado Português e que tenhasido regularmente aprovada, ratificada e publicada, não sen-do necessária qualquer transposição por meio de lei interna.As convenções em Portugal têm valor supra-legal mas infra-constitucional, pois embora não possam ser revogadas poruma lei ordinária posterior, estão sujeitas a um controlo decompatibilidade com a Constituição, tal como se prevê nosarts. 277.º, n.º 2, 278.º, n.º 1 e 279.º, n.º 4137.

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137 Sobre as relações das CDT’s com a ordem interna portuguesa v.XAVIER, Alberto, ob. cit., págs. 103 e ss.; e LEITE DE CAMPOS, Diogo eMônica Horta Neves, Direito Tributário, 2.ª edição, Almedina, Coimbra,2000, págs. 294 e 295.

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No caso dos Estados-Membros da União Europeiacoloca-se um outro problema, que é o de saber qual a rela-ção entre as CDT’s e o Direito Comunitário.

Estamos perante duas fontes autónomas de DireitoInternacional, ambas resultando de um livre exercício desoberania dos Estados, concretizado na celebração de Tra-tados destinados a vincular internacionalmente as partes con-tratantes. No entanto, a especial natureza do Direito Comu-nitário leva a que a questão da relação entre este e as CDT’sseja objecto de uma mais profunda reflexão.

3.1 O art.º 293.º do Tratado de Roma

Como vimos no capítulo anterior, as referências à tri-butação directa no Tratado que Instituiu a ComunidadeEuropeia são escassas. Uma delas, no entanto, diz respeito àsCDT’s, constando do art.º 293.º. Nele se pode ler:

Os Estados-Membros entabularão entre si, sempre que ne-cessário, negociações destinadas a garantir, em benefício dosseus nacionais:

(...)– a eliminação da dupla tributação na Comunidade;

O significado a atribuir a esta disposição não é claro.Numa primeira leitura somos levados a ver nela o reconhe-cimento de competência exclusiva dos Estados no que tocaà eliminação da dupla tributação. Além de se não estabeleceruma obrigação precisa e incondicional para os Estados, re-serva-se a estes (“Os Estados-Membros (...) entre si”), ou seja,sem que a Comunidade seja chamada a participar nesse pro-cesso negocial, o poder de celebrar convenções cujo objec-tivo seja a eliminação das situações de dupla tributação que

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ocorram dentro do espaço comunitário. Este artigo é dirigidoaos governos dos Estados e confere-lhes a responsabilidadede completar a rede de CDT’s entre si celebradas apenas namedida em que tal se revele necessário para a eliminação dadupla tributação138.

É pacífico que a competência em matéria de fiscalidadedirecta, no actual estado de evolução do Direito Comuni-tário, cabe aos Estados-Membros139. No entanto, ao mesmotempo que reconhecem essa competência exclusiva dos Esta-dos, tanto a Comissão Europeia como o TJCE têm afirmadoque o seu exercício deve respeitar o Direito Comunitário140.

Nessa medida, a celebração de CDT’s, enquanto com-preendida na matéria da fiscalidade directa, é da competên-cia dos Estados-Membros141. Estes, todavia, não podem noexercício dessa competência ultrapassar os limites que lhessão impostos pelo Direito Comunitário, nomeadamente pe-los seus princípios gerais. Assim, um Estado-Membro é livrede proceder à negociação e celebração de CDT’s, desde que

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138 ANSCHÜTZ, Ulrich, “Harmonisation of Direct Taxes in theEuropean Economic Community”, in The Harvard International Law Jour-nal, vol. 13, n.º 1, 1972, pág. 5.

139 Metallgesellschaft, par. 37; Wielockx, par. 16; Asscher, par. 36;Royal Bank of Scotland, par. 19; Baars, par. 17.

140 “A título liminar, deve recordar-se que, segundo jurisprudência assente,embora a fiscalidade directa releve da competência dos Estados-Membros, estes úl-timos devem exercer essa competência no respeito do Direito Comunitário e abs-ter-se de qualquer discriminação em razão da nacionalidade.” (Metallgesellschaft,par. 37). Veja-se também a resposta escrita da Comissão Europeia de 9de Novembro de 1992 à questão parlamentar n.º 647/92, publicada noJ.O.C.E. n.º C 040 de 15/02/1993, pág. 13.

141 No sentido de não se poder afirmar essa atribuição de compe-tência aos Estados com grande certeza, e de a interpretação do art.º 220.º(actual 293.º) do Tratado ir depender do grau de coordenação entre aComissão e os Estados, v. CARDONA, Maria Celeste, ob. cit., pág. 234.

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o conteúdo destas não viole, directa ou indirectamente, asdisposições contidas no Direito Comunitário, seja este origi-nário ou derivado.

No acórdão Gilly, o TJCE interpretou o art.º 293.º demaneira algo diferente, abalando este entendimento.

Nesta decisão o TJCE operou uma interpretação doart.º 293.º que contrasta com as suas decisões anteriores. OTJCE viu neste artigo uma limitação de actuação do âmbitodo Direito Comunitário, ao afirmar que as diferenças de tra-tamento resultantes das disposições contidas em CDT’s,dada a falta de actuação comunitária em matéria de tributa-ção directa, não podem ser consideradas discriminatórias.No seu entender, constituindo a harmonização da fiscalidadedirecta e a eliminação da dupla tributação objectivos mera-mente mediatos da Comunidade, as CDT’s que contem-plem as soluções adoptadas pelos Estados a nível internacio-nal de acordo com os princípios gerais de Direito TributárioInternacional escapam ao controle das normas comunitá-rias142. O Tribunal inverteu assim uma orientação que vinhaseguindo, no sentido de o art.º 293.º não constituir uma res-trição à aplicação do ordenamento comunitário. Para tal terácertamente contribuído o grande número de Estados queintervieram no processo defendendo as CDT’s por si cele-bradas, o que terá levado o TJCE a levar em consideração osprincípios do Direito Tributário Internacional, afirmando-oscomo possíveis limites ao campo de intervenção das liberda-des comunitárias fundamentais143. Na base do raciocínio usado

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142 GARCÍA PRATS, Francisco Alfredo, Imposición directa, no discrimi-nación e Derecho Comunitario, Tecnos, Madrid, 1998, págs. 153 e ss.,maxime 156, e págs. 179 e 187.

143 MARTÍN JIMÉNEZ, Adolfo J., ob. cit., pág. 244 e 294; v. tambémMARTÍN JIMÉNEZ, Adolfo J./ CALDERÓN CARRERO, José Manuel, Impo-sición directa y no discriminación comunitaria, Cuadernos Fiscales n.º 3,EDERSA, Madrid, 2000, pág. 57.

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O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 241

pelo TJCE para a resolução deste caso parece estar a seguintedivisão144: quanto à distribuição do poder tributário entre osEstados nas CDT’s não haverá qualquer limitação ao poderdestes, mesmo que empreguem o critério da nacionali-dade145; só quanto ao exercício em concreto desse poderpor parte do Estado a quem foi atribuído é que as normascomunitárias se poderão pronunciar.

Este raciocínio foi repetido pelo Tribunal na decisão docaso Saint-Gobain. Mais uma vez referindo que a competên-cia para a celebração de CDT’s permanece, por força doart.º 293.º, segundo parágrafo, na esfera dos Estados-Mem-bros, distinguiu novamente entre um primeiro momento, derepartição do poder tributário, que nunca poderá gerar dis-criminações contrárias ao Direito Comunitário na medidaem que cai na esfera livre de actuação dos Estados, e umsegundo momento, o do exercício do poder previamenterepartido, que já estará sujeito ao controle comunitário146.

Resulta desta análise que o art.º 293.º não é suficientepara determinar a relação entre as CDT’s celebradas pelosEstados-Membros e o Direito Comunitário. A inflexão dajurisprudência do TJCE na interpretação daquele artigo veiorelançar a incerteza quanto ao facto de as CDT’s, apesar depermanecerem no âmbito de competência dos Estados,serem limitadas pelo respeito devido aos princípios e normasde Direito Comunitário. Além do problema da (in)aplica-bilidade do Direito Comunitário não ficar resolvido, nãoresulta ainda claro da simples redacção daquele preceito qual

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144 Assim tb. FARMER, Paul, “EC Law and Double Taxation Agree-ments”, in EC Tax Journal, vol. 3, issue 3, 1999, pág. 150.

145 Gilly, par. 30.146 CUNHA, Patrícia Noiret/VASQUES, Sérgio, Jurisprudência Fiscal

Comunitária Anotada, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 142 e 143.

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a posição das normas comunitárias perante as CDT’s, peloque haverá que procurar a resposta noutros campos147.

3.2 Os Princípios da Autonomia e Primado doDireito Comunitário

De acordo com a jurisprudência do TJCE, o DireitoComunitário originário ou derivado constitui um ordena-mento distinto das ordens jurídicas dos Estados-Membros,constituído por fontes, regras e princípios próprios e dotadode autonomia. Apesar da sua aplicação caber em primeiralinha aos Tribunais nacionais, a interpretação das suas nor-mas e o controlo da sua correcta aplicação está confiado aum órgão jurisdicional próprio (o TJCE), que baseia a suacompetência nos Tratados institutivos das Comunidades.

Mas para além de constituir um ordenamento autóno-mo, o Direito Comunitário prevalece sobre as disposiçõesinternas dos Estados. Assim, em caso de conflito entre umanorma comunitária e uma norma estadual, a primeira preva-lecerá sempre, levando à não aplicação da última. Assim jápor várias vezes foi decidido pelo TJCE, que, desse modo,construiu a par do da autonomia, o princípio do primado doDireito Comunitário148. As normas nacionais em conflitocom disposições comunitárias, mantendo embora a sua vali-dade, devem ser desaplicadas149.

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147 Relembre-se ainda que este artigo não consta do Projecto deConstituição Europeia. A ser aprovado o projecto tal como foi apresen-tado pela Convenção, não deixará de poder ser visto como um sinal nosentido do alargamento da intervenção comunitária no âmbito dafiscalidade directa.

148 Costa v. ENEL; Simmenthal.149 VÖGEL, Klaus, On Double Taxation Conventions, 3.ª edição,

Kluwer, 1997, pág. 73.

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O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 243

Se a questão do primado do Direito Comunitário emrelação às normas internas de cada Estado não levanta pro-blemas de maior, uma vez que se trata de normas colocadasem diferentes graus na hierarquia dos ordenamentos nacio-nais, já quanto ao conflito entre normas comunitárias e nor-mas constantes de tratados de dupla tributação a solução nãoparece tão simples. Aqui, como referimos, estamos perantedois tipos de normas da mesma espécie e que, à primeiravista, se colocam em planos semelhantes na hierarquia dasfontes internas de Direito.

3.3 O art.º 307.º do Tratado

No que diz respeito aos Tratados celebrados pelos Esta-dos, rege o art.º 307.º do Tratado, que prevê:

As disposições do presente Tratado não prejudicam os direi-tos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes de 1de Janeiro de 1958 ou, em relação aos Estados aderentes, ante-riormente à data da respectiva adesão, entre um ou mais Esta-dos-Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros,por outro.

Na medida em que tais convenções não sejam compatíveiscom o presente Tratado, o Estado ou os Estados-Membros emcausa recorrerão a todos os meios adequados para eliminar asincompatibilidades verificadas. Caso seja necessário, os Esta-dos-Membros auxiliar-se-ão mutuamente para atingir essafinalidade, adoptando, se for caso disso, uma atitude comum.

Ao aplicar as convenções referidas no primeiro parágrafo, osEstados-Membros terão em conta o facto de que as vantagensconcedidas no presente Tratado por cada um dos Estados--Membros fazem parte integrante do estabelecimento da Comu-nidade, estando, por conseguinte, inseparavelmente ligados à

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criação de instituições comuns, à atribuição de competências emseu favor e à concessão das mesmas vantagens por todos os ou-tros Estados-Membros.

Como decorre da análise do teor literal do artigo, o seuâmbito de aplicação restringe-se aos Tratados celebradosentre Estados-Membros e Estados terceiros antes da entradaem vigor do Tratado institutivo da Comunidade (ou, paraos Estados que aderiram posteriormente, antes da data da suaadesão) deixando de fora quer os Tratados celebrados poste-riormente a essa data, quer aquelas situações em que ambasas partes contratantes são Estados-Membros da Comunidade.

Quanto aos Tratados anteriores ao Tratado de Roma(ou à adesão do Estado em causa), as suas disposições, mesmoque incompatíveis com o Direito Comunitário, permane-cem inteiramente válidas, muito embora se preveja a obriga-ção para os Estados-Membros de empregarem “todos os meiosadequados” à eliminação dessas situações de incompatibili-dade. Por essa expressão deve entender-se que os Estadosdevem tentar renegociar esses acordos150 ou, não sendo issopossível, devem, na medida em que o possam fazer, denun-ciá-los151.

Quanto aos Tratados concluídos após a entrada em vi-gor do tratado de Roma, nada se diz no artigo em análise.KLAUS VÖGEL152 aponta duas soluções distintas consoante aparte sobre quem recaia a obrigação de actuação contrária aoDireito Comunitário: tratando-se do Estado terceiro153, uma

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150 VANISTENDAEL, Frans, “The limits to the new Community taxorder”, in Common Market Law Review, 1994, pág. 303.

151 VÖGEL, Klaus, ob. cit., par. 140, pág. 74.152 Idem, par. 141.153 VÖGEL (ob. cit., par. 141, pág. 74) e MARIA MARGARIDA COR-

DEIRO MESQUITA (As Convenções sobre Dupla Tributação, Cadernos de

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O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 245

vez que não está submetido ao Direito Comunitário, podeaplicar a disposição convencional de acordo com os princí-pios gerais do Direito Internacional, já que é parte numacordo integralmente válido, ficando no entanto o Estado--Membro que aceitou a disposição contrária ao Direito Comu-nitário sujeito a responsabilidade perante o contribuinteafectado, nos termos definidos pelo TJCE no acórdãoFrancovich154; já se é o Estado-Membro que está vinculado auma actuação contrária ao Direito Comunitário por forçadas disposições de uma CDT por si concluída, aquele autorreconhece que a solução de se considerarem inaplicáveis asdisposições que estão na base dessa actuação levanta muitasdúvidas, nomeadamente porque pressupõe o entendimentode que o Direito Comunitário, tal como sucede em relaçãoàs disposições internas nacionais, prevalece sobre os Tratadosinternacionais. Mais adiante, no entanto, considera que emrelação aos Tratados concluídos entre Estados-Membros aprevalência do Direito Comunitário é “inquestionável”155.Não nos parece que seja de concordar com esta distinçãoentre Tratados concluídos entre Estados-Membros e entreestes e Estados terceiros com o fim de estabelecer a relaçãoentre Tratados internacionais e normas de Direito Comuni-tário, nem concordamos com a conclusão a que se chega deser inquestionável no primeiro caso a sujeição das CDT’s ao

Ciência e Técnica Fiscal, n.º 179, Centro de Estudos Fiscais, Direcção-Geral dos Impostos, Lisboa, 1998, pág. 36) dão o exemplo de um Estadoterceiro favorecer empresas controladas por residentes do Estado-Mem-bro da Comunidade, assim as diferenciando das empresas controladas porresidentes de outros Estados-Membros.

154 HINNEKENS, Luc, “Compatibility of Bilateral Tax Treaties withEuropean Community Law. The Rules”, in EC Tax Review, 1994/4,pág. 162.

155 Ob. cit., par. 143, págs. 74 e 75.

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Direito Comunitário enquanto no último permanece a dú-vida. Senão vejamos.

O ponto sobre o qual deve incidir a análise nesta maté-ria é o relacionamento entre dois tipos de normas cuja fontereside igualmente em Tratados internacionais e não a com-patibilidade ou incompatibilidade de determinadas dispo-sições com a ordem jurídica comunitária. Este último é oproblema que pede uma solução, solução essa que deve serencontrada precisamente na questão, resolvida a priori, dequal das normas (se alguma) prevalece no conflito em causa.Assim, não cremos que se deva distinguir entre CDT’s cele-bradas entre Estados-Membros e entre Estados-Membros epaíses terceiros para decidir se o Direito Comunitário deveprevalecer sobre aquelas, pois essa matéria deve estar resol-vida antes do problema da compatibilidade com o DireitoComunitário de determinadas disposições convencionais sercolocado. Devem distinguir-se estes dois momentos: de umlado a definição da relação entre os dois tipos de normas,problema prévio e que deve ser resolvido em abstracto; deoutro, a incompatibilidade de algumas disposições específicasde Tratados internacionais com o Direito Comunitário, pro-blema a ser resolvido com base na resposta encontrada para aprimeira questão.

3.4 Conclusão

As normas contidas no Tratado de Roma, nomeada-mente os arts. 293.º e 307.º, não se pronunciam sobre aquestão da relação entre as normas comunitárias e as normascontidas em CDT’s nas quais sejam parte os Estados-Mem-bros entre si ou com outros Estados. Nelas se estabelecemapenas metas a atingir pelos Estados (art.º 293.º) ou se prevêa validade dos tratados celebrados entre Estados-Membros e

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países terceiros antes da entrada em vigor do Tratado deRoma (307.º).

A interpretação do art.º 293.º feita pelo TJCE nosacórdãos Gilly e Saint-Gobain não nos parece ser a mais cor-recta. Distinguir entre repartição e exercício do poder tri-butário para determinar os campos em que as normas comu-nitárias podem intervir abre uma porta muito larga para odesrespeito do Direito Comunitário por parte dos Estados.Aliás, a dever fazer-se tal distinção, o que não nos pareceque se deva aceitar, a aplicabilidade do Direito Comunitáriodeveria ser afirmada quanto à repartição do poder tributário,uma vez que esta é a operação em que mais podem os Esta-dos violar as disposições do Tratado.

O conteúdo do princípio do primado do Direito Comu-nitário, tal como definido pelo TJCE, também não chegapor si só para resolver o problema da subordinação ou nãodas CDT’s ao Direito Comunitário. O que nele se estabele-ce é que as normas comunitárias prevalecem sobre as nacio-nais, mas nada se diz quanto à relação daquelas com os trata-dos internacionais celebrados pelos Estados-Membros. Noentanto, a conjugação daquele princípio com o da autono-mia realça a especial natureza do ordenamento comunitário,que sendo o resultado da livre vinculação dos Estados, vaimais além das relações multilaterais entre eles, não sendo porisso Direito Internacional ordinário.

A prevalência do Direito Comunitário advém do seuconteúdo específico e não da sua forma156. Tratados Comu-nitários e CDT’s resultam ambos do livre exercício da sobe-rania estadual, é certo, mas as razões que estão na base e osobjectivos que se propõem atingir divergem grandementenum e noutro caso. Nas CDT’s trata-se de operar a repartição

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156 HINNEKENS, Luc, ob. cit., pág. 160.

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do poder de tributar entre Estados que, na ausência de talrepartição, veriam as suas normas concorrer quanto aoenquadramento dos mesmos factos, e de estabelecer os mé-todos através dos quais se há de realizar a atenuação da duplatributação157. Os motivos que levam os Estados a celebrartais convenções prendem-se essencialmente com razões depolítica económica e financeira, seja para evitar distorçõesnos fluxos de capital e investimento, seja para criar condi-ções mais vantajosas para os investimentos transfronteiriçosde modo a alargar mercados para os seus operadores econó-micos, passando ainda pelo combate à fraude e evasão fiscaisinternacionais.

Na instituição e constante evolução das ComunidadesEuropeias, os Estados-Membros assumiram um compromissogeral e específico que abarca inúmeras áreas (económicas,políticas, sociais, de defesa e justiça) e criaram algo de novono plano do Direito Internacional. Criaram instituições autó-nomas dotadas de competências próprias e que actuam a ní-vel supranacional, e assim actuaram aceitando implicitamentea supremacia das normas de Direito Comunitário158. Ao con-trário do que sucede nas numerosas CDT’s celebradas porcada Estado-Membro, ao instituírem a Comunidade Euro-peia os Estados criaram um ordenamento jurídico autónomoque, nessa medida, se coloca acima dos direitos nacionais decada um ou mesmo das relações bilaterais ou multilateraisque entre si estabeleçam.

Sob esta perspectiva, então também em relação às CDT’so Direito Comunitário prevalecerá, não devido à sua origemmas à especificidade do seu conteúdo. Assim, consideramosque da análise conjugada do princípio da autonomia e do

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157 PINHEIRO, Gabriela, ob. cit., págs. 155 a 157.158 HINNEKENS, Luc, ob. cit., pág. 160.

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primado do Direito Comunitário resulta que, estando em-bora a celebração e conclusão de CDT’s entre os Estados--Membros ou entre estes e Estados terceiros no âmbito dacompetência daqueles, tal como resulta do art.º 293.º, talcompetência deve ser exercida no mais estrito respeito pelasnormas e princípios do Direito Comunitário originário ouderivado, e que em caso de conflito entre as normas comu-nitárias e as constantes de CDT’s assinadas pelos Estados--Membros, as normas comunitárias prevalecem.

Em conclusão, somos de opinião que a tomada emconsideração das especificidades da área da fiscalidade directadeve deslocar-se do relacionamento em abstracto dos doistipos de normas para o momento da análise da incompatibi-lidade entre duas normas em concreto. Não é no plano dorelacionamento entre as normas em abstracto que se deve terem conta o estado actual de desenvolvimento da política fis-cal comunitária no campo da tributação directa ou, porexemplo, a influência do princípio da subsidiariedade, sendoantes face a uma específica disposição convencional, no mo-mento em que se questiona a sua compatibilidade com oordenamento comunitário, que tais elementos devem con-fluir para determinar essa (in)compatibilidade. Ou seja, assu-mindo à partida, como nós o fazemos, que o Direito Comu-nitário prevalece sobre as disposições de uma CDT, podechegar-se à conclusão, no momento da análise da compati-bilidade ou incompatibilidade com o Direito Comunitáriode uma norma nela contida, que essa norma não é incompa-tível porque, por exemplo, no estado actual de evolução dapolítica fiscal comunitária no campo da fiscalidade directa oDireito Comunitário não se pode opor à solução adoptadapelos Estados parte nessa convenção. Assim, não se questionaa prevalência do Direito Comunitário sobre a CDT, antes seafirma que naquela específica questão o ordenamento comu-nitário, que não abarca exaustivamente todas as áreas, nada

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disse ou tem a dizer, pelo que não se verifica, no caso con-creto, nenhum conflito entre normas.

Em caso de conflito entre os dois tipos de normas, comu-nitária e constante de uma CDT celebrada entre Estados--Membros ou entre um Estado-Membro e um Estado ter-ceiro mas após a entrada em vigor do Tratado de Roma (ou,se posterior, após a adesão daquele à Comunidade), partindoda posição por nós adoptada, a sanção será diferente apenasquanto aos sujeitos sobre quem recaia a obrigação de actuarque contraria o Direito Comunitário. Tratando-se de umEstado terceiro, poderá actuar livremente com base na con-venção por si celebrada, uma vez que no seu caso não háqualquer conflito entre normas159: a si o Direito Comunitárionão se aplica, pelo que a única norma que deve orientar oseu comportamento deve ser a convencional. O Estado--Membro que foi parte nessa convenção sujeitar-se-á à res-ponsabilidade por incumprimento do direito Comunitário,tal como estabelecido na jurisprudência do TJCE.

No caso de se tratar de um Estado-Membro, indepen-dentemente de ser parte numa CDT com outro Estado-Mem-bro ou com um Estado terceiro, a sua actuação deverá semprecumprir os requisitos que lhe são postos pelo ordenamentocomunitário. Isto, bem entendido, independentemente daresponsabilidade em que incorra perante o terceiro Estadopor incumprimento da CDT, no caso de convenções cele-bradas com Estados não membros da Comunidade. A normaincompatível com as exigências comunitárias, apesar de válida,deverá ser desaplicada, tal como ocorre quando se trata deum conflito entre normas nacionais e comunitárias160.

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159 No mesmo sentido v. MESQUITA, Maria Margarida Cordeiro, ob.cit., pág. 37.

160 No mesmo sentido parece pronunciar-se JEAN-MICHEL COMMU-NIER em Droit Fiscal Communautaire, Bruylant, Bruxelas, 2001, págs. 183a 185.

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De qualquer modo, a influência do Direito Comuni-tário nas CDT’s celebradas pelos Estados-Membros começaa fazer-se sentir, especialmente devido às decisões do Tribu-nal de Justiça das Comunidades que serão analisadas na 3.ªParte161.

VI – A NÃO DISCRIMINAÇÃO NA CONVENÇÃO MODELO

DA OCDE

O princípio de não discriminação em função da nacio-nalidade está previsto no art.º 24.º da Convenção Modeloda OCDE e é uma das normas fundamentais do Direito Fis-cal Internacional. Apesar de não poder ser considerado umprincípio geral de Direito Internacional, invocável indepen-dentemente da sua expressa consagração nas CDT’s concluí-das entre Estados162, é sem dúvida uma importante regra norelacionamento entre sistemas fiscais e no enquadramentodas relações económicas transfronteiriças.

As normas de não discriminação fiscal entre Estados sãomais antigas do que as convenções de dupla tributação emque agora estão normalmente incluídas. As primeiras cláu-sulas com este conteúdo surgiram em acordos comerciais e

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161 Veja-se especificamente o caso da Convenção Luso-Neerlandesaassinada em 20 de Setembro de 1999: ENDE, Raymon J. S. van den/SMIT, Pim M., “Netherlands/Portugal – European Tax Law influencesnew tax treaty”, in European Taxation, vol. 41, n.º 3, Março de 2001,págs. 98 e ss..

162 AMATUCCI, Fabrizio, Il Principio di Non Discriminazione Fiscale,CEDAM, Padova, 1998, pág. 65; e do mesmo autor “La Discrimina-zione di Trattamento nel Modello OCSE (Art. 24)”, in Corso di DirittoTributario Internazionale (coord. Victor Uckmar), págs. 404 e 405. SANTA--BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., pág. 83. MARTÍN JIMÉNEZ, Adolfo J./CALDERÓN CARRERO, José Manuel, ob.cit., pág. 15.

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sobre amizade, comércio e navegação celebrados entre osEstados163. No entanto, só com a crescente interdependênciados mercados verificada a partir do séc. XIX é que se come-çou a atribuir à não discriminação fiscal a nível internacionaluma certa relevância164.

Dispõe o citado artigo 24.º (na redacção original inglesa):

1. Nationals of a Contracting State shall not be subjected inthe other Contracting State to any taxation or anyrequirement connected therewith, which is other or moreburdensome than the taxation and connected requirementsto which nationals of that other State in the same cir-cumstances, in particular with respect to residence, are ormay be subjected. This provision shall, notwithstanding theprovisions of Article 1, also apply to persons who are resi-dents of one or both of the Contracting States.

2. Stateless persons who are residents of a Contracting Stateshall not be subjected in either Contracting State to anytaxation or any requirement connected therewith, which isother or more burdensome than the taxation and connectedrequirements to which nationals of the State concerned inthe same circumstances, in particular with respect to resi-dence, are or may be subjected.

3. The taxation of a permanent establishment which anenterprise of a Contracting State has in the other Contrac-ting State shall not be less favourably levied in that otherContracting State than the taxation levied on enterprises ofthat other State carrying on the same activities. Thisprovision shall not be construed as obliging a Contracting

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163 VÖGEL, ob.cit., par. 3, pág. 1280. AMATUCCI, Fabrizio, “La dis-criminazione...”, cit., pág. 403.

164 Para a relação entre a evolução do comércio internacional e anão discriminação fiscal entre Estados v. SANTA-BÁRBARA RUPEREZ,Jesús, ob.cit., págs. 51 a 54.

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O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 253

State to grant to residents of the other Contracting Stateany personal allowances, reliefs and reductions for taxationpurposes on account of civil status or family responsibilitieswhich it grants to its own residents.

4. Except where the provisions of paragraph 1 of Article 9,paragraph 6 of Article 11, or paragraph 4 of Article 12,apply, interest, royalties and other disbursements paid byan enterprise of a Contracting State to a resident of a Con-tracting State to a resident of the other Contracting Stateshall, for the purpose of determining the taxable profits ofsuch enterprise, be deductible under the same conditions asif they had been paid to a resident of the first-mentionedState. Similarly, any debts of an enterprise of a Con-tracting State to a resident of the other Contracting Stateshall, for the purpose of determining the taxable capital ofsuch enterprise, be deductible under the same conditions asif they had been contracted to a resident of the first-men-tioned State.

5. Enterprises of a Contracting State, the capital of which iswholly or partly owned or controlled, directly or indirectly,by one or more residents of the other Contracting State,shall not be subjected in the first-mentioned State to anytaxation or any requirement connected therewith which isother or more burdensome than the taxation and connectedrequirements to which other similar enterprises of the first-mentioned State are or may be subjected.

6. The provisions of this Article shall, notwithstanding theprovisions of Article 2, apply to taxes of every kind anddescription.

Os números 1, 2 e 5 proíbem a discriminação fiscal depessoas singulares e de empresas, o número 3 prevê os casosdos estabelecimentos estáveis de uma empresa de um Estadocontratante no território do outro e o número 4 impõe

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regras quanto à determinação da matéria colectável, impe-dindo a discriminação das empresas quanto à tributação dejuros e royalties.

Como facilmente se verifica, o âmbito de aplicaçãodesta norma abrange não só as pessoas singulares que sejamnacionais de um dos Estados contratantes, mas também aspessoas colectivas, abarcando não só as sociedades estrangei-ras, constituídas de acordo com as normas de outro Estado,mas também as sucursais e filiais de sociedades domiciliadasnoutros Estados165.

A norma de não discriminação do art.º 24.º é acordadaem termos de reciprocidade166, ou seja, os Estados que cele-bram a CDT só estão obrigados a conceder aos nacionais dooutro Estado tratamento idêntico aos seus que se encontremem idênticas circunstâncias se este proceder do mesmomodo. Apesar de não estar expressamente prevista no artigomas apenas no Comentário é uma solução que decorre dosprincípios gerais de Direito Internacional167, podendo umdos Estados, caso o outro não cumpra, desrespeitar a suaobrigação de não discriminação168. Não se pode ver nestaregra, no entanto, a consagração de uma obrigação que

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165 XAVIER, Alberto, ob. cit., pág. 233.166 Comentário, par. 1.167 MESQUITA, Maria Margarida Cordeiro, ob.cit., pág. 304.168 AMATUCCI, Fabrizio, “La Discriminazione...”, cit., pág. 410. Do

mesmo modo, considerando que a condição de reciprocidade pode afec-tar seriamente a aplicação deste preceito dada a “ausência de uma interpre-tação convencional uniforme” v. MARTÍN JIMÉNEZ, Adolfo J./ CALDERÓN

CARRERO, José Manuel, ob.cit., págs. 17-18. Contra, considerando quenão há justificação para a regra da reciprocidade neste artigo e que a refe-rência do Comentário à reciprocidade será provavelmente um erro v.AVERY JONES, John F. e outros, “The Non-Discrimination Article in TaxTreaties”, in Diritto e Pratica Tributaria, vol. LXIII, n.º 2, Março-Abril de1992, CEDAM, Padova, págs. 575-576.

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impenda sobre ambos os Estados de assegurar um idênticonível de carga fiscal169.

Refira-se ainda que dentro do objectivo de evitar adupla-tributação internacional o art.º 24.º exerce uma fun-ção subsidiária, na medida em que só intervirá quando todasas outras cláusulas previstas pelos Estados nas CDT’s se nãoapliquem170. Funciona, assim, como uma válvula de escapeincluída pelos Estados nas CDT’s para colmatar determina-das situações que eventualmente se revelem não cobertaspelas demais disposições.

1. O art.º 24.º, n.os 1, 2 e 5

O n.o 1 do artigo 24.º da Convenção Modelo daOCDE, prevendo unicamente a proibição de discriminaçãocom base na nacionalidade dos contribuintes, sustenta umadas normas fundamentais do Direito Tributário Internacio-nal: o da tributação diferenciada de residentes e não residentes.

Na expressão “que se encontrem na mesma situação” resideo ponto fulcral na análise de uma situação potencialmentediscriminatória à luz desta norma. A proibição de tratamentodiferenciado por parte de um dos Estados contratantes entreos seus nacionais e os do outro Estado parte na CDT não éabsoluta: se ambos os contribuintes não se encontrarem emposições substancialmente idênticas, o tratamento diferenteestará justificado. Importa então saber quando se deveráconsiderar que dois contribuintes se encontram nas mesmascircunstâncias.

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169 Assim VÖGEL, Klaus, ob. cit., par. 39, pág. 1297.170 ADONNINO, Pietro, “Il principio di divieto di discriminazione

nella fiscalità internazionale”, in Diritto e Pratica Tributaria, n.º 4, 1999,parte III, pág. 183.

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Com a revisão de 1992, a OCDE deu um importantecontributo para a interpretação daquela expressão, ao acres-centar ao art.º 24.º, n.º 1 “em particular no que diz respeito àresidência”. Apesar de ter sido desde sempre uma interpreta-ção consensual desta norma, com a alteração operada ficouexpressamente consagrado que, para efeitos de aferição deexistência de discriminação fiscal, residentes e não residentesnão estão nas mesmas circunstâncias para efeitos de tributa-ção e que o que se proíbe aos Estados é que, dentro dessesgrupos de contribuintes, estabeleçam qualquer distinção uni-camente com base na nacionalidade171.

Ao passo que os residentes são tributados com base noseu rendimento mundial, os não residentes são tributadosapenas com base no rendimento gerado no território doEstado que exerce o seu poder tributário. Esta distinçãobaseia-se no entendimento de que o Estado que está emmelhores condições para tomar em consideração a situaçãoglobal do contribuinte e, nessa medida, para lhe conceder asdeduções fiscais de carácter pessoal é aquele onde o contri-buinte reside, onde está o centro dos seus interesses pessoais________________________

171 ELENA GONZÁLEZ SÁNCHES considera que o Modelo da OCDEdeveria conter uma lista exaustiva de condições que automaticamente le-vassem à não aplicação do art.º 24.º por não se poderem considerar ossujeitos nas mesmas circunstâncias, o que, no seu entender, permitiria aaplicação desta norma pelo TJCE em lugar da aplicação das disposiçõesdo Tratado. Acrescenta que tal seria inteiramente válido uma vez que oDireito Comunitário prevalece sobre o Direito Fiscal Internacional – v.“Residencia fiscal y libre establecimiento de las empresas en la UniónEuropea”, in Revista Vasca de Administración Pública, n.º 61, Setembro-Dezembro de 2001, págs. 57 e 58. Não vemos como tal aplicação sejapossível, uma vez que o art.º 24.º, como referimos, tem aplicação so-mente no âmbito de cada CDT em que esteja inserida e, além disso, nãodescortinamos a utilidade do afastamento das disposições comunitáriasque, aliás, têm um âmbito mais vasto que a da norma do Modelo daOCDE, como teremos ocasião de ver infra na 3.ª Parte.

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e patrimoniais172. Desse modo, a obrigação que recai sobre ocontribuinte residente é uma obrigação pessoal, ao contrárioda que recai sobre o não residente, meramente real, uma vezque um e outro estão em condições distintas face ao Estadoque exerce a sua soberania tributária.

As razões que levam os Estados a tributar o rendimentomundial dos seus residentes são essencialmente de naturezaeconómica e jurídica: por um lado, para os países expor-tadores de capital a tributação do rendimento gerado noestrangeiro reveste grande importância a nível da receita (talcomo reveste, para os Estados importadores de capital, a tri-butação do rendimento dos não residentes gerado no seuterritório); por outro, a tributação dos rendimentos obtidosno estrangeiro pelos seus residentes faz apelo a uma ideia deprotecção por parte do Estado aos investimentos e interessesque os seus cidadãos tenham além-fronteiras173.

O que se proíbe no art.º 24.º, n.º 1, é, como referimos,que dentro dos grupos de residentes e não residentes sejaoperada qualquer diferença de tratamento tendo unicamentepor base a diferente nacionalidade dos contribuintes. Assim,seria incompatível com esta disposição uma norma atravésda qual, por exemplo, um Estado aplicasse aos seus nacionaisuma taxa mais reduzida do que a aplicável aos demais con-tribuintes, ainda que nesse Estado residentes. Aqui o únicocritério diferenciador seria a nacionalidade e nada mais, oque é expressamente proibido pela norma em análise.

Note-se, no entanto, que já não será incompatível comeste artigo uma norma que conceda um tratamento maisfavorável baseando-se num critério ou combinação de crité-rios distintos da nacionalidade, ainda que, na prática, passíveis

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172 SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., pág. 106.173 AMATUCCI, Fabrizio, Il principio..., cit., nota 72, pág. 43-44.

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de serem preenchidos quase exclusivamente por nacionaisdo Estado que concede tal tratamento favorável. Noutraspalavras, no Direito Tributário Internacional a discriminaçãoindirecta não é proibida, ao contrário do sucede, como vere-mos, no Direito Comunitário174.

Uma vez que na grande maioria dos Estados a distinçãopara efeitos tributários se baseia na residência e não na nacio-nalidade dos contribuintes, o âmbito de aplicação da normado art.º 24.º, n.º 1, é mais limitado do que à primeira vistapoderia parecer175. Actualmente, muito poucos Estados – deque são exemplo os Estados Unidos da América, as Filipinase a Libéria176 – empregam o critério da nacionalidade paraexercer o seu poder tributário177. Os EUA, na sua Conven-ção Modelo, excluíram do âmbito de aplicação do princípiode não discriminação os seus nacionais não residentes, afir-mando expressamente que estes não se encontram nas mesmascondições que os nacionais não residentes do outro Estadocontratante para efeitos de tributação178. Ou seja, dentro dogrupo dos não residentes os EUA reservam-se o direito detratar diferentemente aqueles que sejam seus nacionais, oque, na redacção do art.º 24.º, n.º 1, da Convenção Modeloda OCDE seria considerado um tratamento discriminatórioe, nessa medida, proibido.

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174 VÖGEL, Klaus, ob. cit., par. 29, pág. 1290.175 Idem, par. 28, pág. 1289. BAKER, Philip, Double Taxation

Conventions and International Tax Law, 2.ª edição, Sweet & Maxwell,Londres, 1994, par. 24-04, pág. 385.

176 SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., nota 64, pág. 114.177 XAVIER, Alberto, ob. cit., pág. 22.178 Dispõe o último parágrafo do art.º 24.º, n.º 1, da Convenção

Modelo dos EUA: “(...) However, for the purposes of United States tax, aUnited States national who is not a resident of the United States and a ...national who is not a resident of the United States are not in the same circums-tances.”.

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O n.º 2 do artigo é necessariamente diferente, uma vezque se refere a indivíduos apátridas e, nessa medida, que nãotêm nacionalidade. Esta norma encontra a sua origem noart.º 29.º da Convenção relativa ao estatuto dos apátridascelebrada em Nova Iorque em 28 de Setembro de 1954,que estabelece que os apátridas têm direito ao tratamentonacional nos países onde sejam residentes. Desse modo, osapátridas que sejam residentes num país que celebre umaCDT que contenha uma norma semelhante à do art.º 24.ºda Convenção Modelo da OCDE têm direito a receber umtratamento semelhante aos nacionais desses Estados que seencontrem nas mesmas circunstâncias.

O teor literal da norma contida nos n.os 1, 2 e 5 doart.º 24.º parece proibir qualquer diferença de tributação,seja mais ou menos favorável, que seja operada com base ex-clusivamente na nacionalidade dos contribuintes. A expres-são “nenhuma tributação ou obrigação com ela conexa diferente oumais gravosa” sugere que abrangido pelo âmbito da proibi-ção estaria não só o tratamento desfavorável do contribuintenão nacional do Estado que exerce o seu poder tributáriomas também qualquer tratamento diverso, ainda que em seubenefício. O Comentário179, no entanto, esclarece que o quese visa com a proibição de discriminação é apenas impedir otratamento desfavorável dos nacionais do outro Estado, ex-cluindo-se assim aquelas situações em que o Estado favoreceos não nacionais em relação ao tratamento que reserva aosseus cidadãos. Clarificando o significado da expressão, noComentário refere-se que quando um imposto é aplicado anacionais e não nacionais que se encontrem nas mesmas cir-cunstâncias, a base e métodos de tributação devem ser osmesmos, a taxa deve ser a mesma e as formalidades ligadas à

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179 Pars. 9 e 10.

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tributação não devem ser mais onerosas para os estrangeirosdo que para os nacionais.

Os benefícios concedidos a entidades e serviços públi-cos e aqueles concedidos a instituições privadas de fins nãolucrativos não estão abrangidos pela proibição. A não exten-são destes benefícios justifica-se, segundo o Comentário, porno primeiro caso se tratar de instituições que são parte inte-grante do próprio Estado e, nessa medida, nunca poderemestar em circunstâncias semelhantes a entidades do outroEstado e, no caso das instituições privadas não lucrativas,pela natureza específica das suas actividades e pelos benefíciosque delas derivam para o Estado e para os seus nacionais180.

2.2. O art.º 24.º, n.º 3

O n.º 3 do art.º 24.º estabelece a proibição de discrimi-nação de estabelecimentos estáveis de não-residentes. Nelese prevê que um estabelecimento que uma empresa do outroEstado contratante possui no Estado que exerce o seu podertributário não pode ser submetida a uma tributação menosfavorável do que a que é reservada por este às suas própriasempresas que exerçam a mesma actividade.

Ao contrário da regra contida no n.º 1, aqui não háuma distinção entre residentes e não residentes para efeitosde tributação. Um estabelecimento estável, enquanto parteintegrante de uma empresa e enquanto desprovido de perso-nalidade jurídica distinta dessa mesma empresa estrangeira naqual se integra, é obviamente considerado não residente noEstado em que se situa181. Nesta particularidade reside a dife-

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180 Pars. 5 a 8.181 AMATUCCI, Fabrizio, “La Discriminazione...”, cit., pág. 414.

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rença essencial entre esta norma e a da proibição de dis-criminação em função da nacionalidade: aqui prevê-se aproibição de discriminação entre residentes (empresas e esta-belecimentos de empresas nacionais) e não residentes (esta-belecimentos de empresas estrangeiras).

Uma vez que uma empresa residente e um estabeleci-mento estável dificilmente se encontrarão “na mesma situa-ção”, o que tornaria inútil uma análise da comparabilidadedessa mesma situação182, o critério utilizado nesta norma é odo exercício das mesmas actividades. O objecto da compa-ração é uma empresa situada no mesmo Estado em que sesitua o estabelecimento estável e que opera no mesmo ramocomercial ou industrial, ainda que levando a cabo uma acti-vidade não totalmente idêntica à deste183. As diferenças ob-jectivas não podem servir de justificação para o tratamentodiferenciado, o que revela o âmbito mais alargado do n.º 3do art.º 24.º184.

Das disposições contidas nos n.os 3 e 5 resulta, portanto,uma dupla equiparação: equiparam-se os estabelecimentosestáveis a empresas independentes e equiparam-se as socie-dades estrangeiras e os estabelecimentos detidos por socieda-des estrangeiras às sociedades e estabelecimentos nacionais185.

A comparação não pode deixar de ter em conta a formalegal das empresas envolvidas, uma vez que em muitos casosa tributação da empresa ou estabelecimento dependerá tam-bém desse critério186. Se o ordenamento tributário de um

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182 AVERY JONES, John F. e outros, “The Non-Discrimination...”,cit., pág. 627.

183 SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., pág. 129.184 BAKER, Philip, ob.cit., par. 24-12, pág. 393.185 XAVIER, Alberto, ob. cit., pág. 235.186 SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., pág. 129. VÖGEL, Klaus,

ob. cit., par. 125, pág. 1315.

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Estado diferencia as empresas consoante sejam unipessoaisou detidas por sociedades, então a comparação para efeitosde determinar o tratamento a conferir a um estabelecimentoestável de uma empresa de outro país terá também de enca-rar essa diferença.

Uma outra diferença reside nos termos em que estáprevista a obrigação que impende sobre o Estado que tributao estabelecimento estável de uma sociedade estrangeira.Já não se fala em “tributação diferente ou mais gravosa”, proi-bindo-se apenas o tratamento “menos favorável”. Ou seja,desde que a tributação a que os estabelecimentos estáveisestejam sujeitos, no seu conjunto, não seja menos favoráveldo que a das empresas nacionais, o tratamento diferenteentre uns e outros não é em si proibido187.

A segunda frase deste n.º 3, que obviamente se aplicaapenas às pessoas singulares que possuam estabelecimentosestáveis noutros Estados, baseia-se no entendimento quereferimos supra segundo o qual o Estado que se encontra emmelhores condições de conhecer e avaliar a situação pessoale familiar do contribuinte é aquele onde este reside e tem ocentro dos seus interesses pessoais. Ao excluir do âmbito danorma as deduções de carácter pessoal, quis-se evitar umaduplicação de benefícios de que os não residentes usufruiri-am se pudessem obter deduções tanto no Estado onde resi-dem como naquele onde possuem um estabelecimento está-vel188. Em última análise, pretende-se evitar a possível discri-minação entre os não residentes e os residentes no Estadoonde se situa o estabelecimento estável ou entre residentes

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187 “(...) é apenas o resultado que conta”, escreve-se no par. 21 doComentário. Veja-se, no entanto, a opinião contrária de SANTA-BÁRBARA

RUPEREZ, (ob.cit., pág. 131 e ss.).188 Comentário, par. 22.

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de um mesmo Estado pelo facto de possuírem ou não esta-belecimentos estáveis no outro Estado contratante.

Os problemas principais que esta norma levanta, namedida em que exige apenas um tratamento “não menosfavorável”, prendem-se com a extensão ou não aos estabele-cimentos estáveis de determinados benefícios concedidos anível fiscal às empresas residentes.

O Comentário189 esclarece que no que diz respeito à deter-minação da matéria colectável, os estabelecimentos devemestar submetidos às mesmas regras que as empresas nacionais,nomeadamente no que toca à dedução de despesas e à con-tabilização das reservas e ao reporte de perdas e lucros. Osincentivos fiscais que visem desenvolver determinados secto-res específicos da economia ou regiões menos desenvolvidasdevem, em princípio, ser estendidos aos estabelecimentos, amenos que estes não preencham os requisitos necessáriospara concessão de tais incentivos. Os incentivos relacionadoscom actividades que, por motivos de ordem pública, estejamreservadas a empresas nacionais, como é óbvio, não serãoabrangidos pela obrigação de extensão aos estabelecimentosestáveis de sociedades ou indivíduos do outro Estado contra-tante.

Outro ponto que levanta divergências interpretativas éo da aplicação ou não aos estabelecimentos estáveis das nor-mas nacionais de eliminação da dupla tributação económicaquanto aos lucros distribuídos.

2.3. O art.º 24.º, n.º 4

O n.º 4 do art.º 24.º diz somente respeito às empresas enão a pessoas singulares. Visa-se nesta norma evitar a discri-

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189 Par. 24 a 28.

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minação indirecta que resultaria para as empresas do facto denão poderem deduzir os juros, royalties e outras importânciaspor si pagas a residentes do outro Estado quando tal sejapossível se essas somas forem pagas a residentes do Estadoque exerce o seu poder tributário.

Ao contrário dos números anteriormente analisados,neste n.º 4 proíbe-se a discriminação de uma empresa levadaa cabo por parte do Estado em que a mesma é residente190 –o objectivo é impedir que negociar com residentes no outroEstado contratante leve a desvantagens na determinação damatéria colectável, assim se promovendo um livre desenvol-vimento dos fluxos económicos transfronteiriços. Note-se,no entanto, que não se proíbe o pior tratamento fiscal dequem efectua pagamentos a não residentes, mas apenas seestabelece uma obrigação de equiparação no tratamento queé reservado a tais pagamentos na determinação da matériacolectável. Por este motivo, há quem veja nesta norma don.º 4 um mero complemento do n.º 5191, uma concretizaçãodo conteúdo desta última disposição.

A exigência que se faz é a de tratamento exactamenteigual, ou seja, não há lugar a comparação de circunstânciasentre pagamentos feitos a residentes e não residentes192. O tra-tamento do pagamento efectuado a um não residente deveráser em tudo igual àquele reservado aos pagamentos que têmcomo destinatários cidadãos residentes.

VII – CONCLUSÕES

Face à tendência no seio da União Europeia para amanutenção das soberanias estaduais no campo da fiscalidade________________________

190 VÖGEL, Klaus, ob. cit., par. 149, pág. 1326.191 SANTA-BÁRBARA RUPEREZ, Jesús, ob.cit., pág. 140.192 VÖGEL, Klaus, ob. cit., par. 152, pág. 1327.

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directa, procedemos neste capítulo à análise do modo típicoe tradicional de relacionamento entre sistemas tributários nacio-nais: as convenções com vista a evitar a dupla tributação.

Com a internacionalização das economias nacionaisverificada na sequência das duas guerras mundiais, a celebra-ção de convenções entre Estados para evitar a dupla tribu-tação veio regulamentar o exercício do poder tributárionaquelas situações em que determinados factos estão emconexão com diferentes ordenamentos tributários, levando aque vários Estados tenham sobre tais factos pretensões tri-butárias. Inicialmente celebradas entre Estados desenvolvidose com economias de mercado, a rede de convenções abrangeagora países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimen-to, bem como os Estados que se tornaram independentescom o fim da União Soviética.

Dada a enorme importância da celebração destes acor-dos e o crescente interesse dos Estados em celebrá-los, cedocomeçaram a ser desenvolvidos esforços no sentido de ela-borar modelos que servissem de referência nas negociações eao mesmo tempo contribuíssem para o estabelecimento deregras uniformes na tributação internacional. Depois dos tra-balhos desenvolvidos entre as duas guerras pela Sociedadedas Nações, a Organização para a Cooperação e o Desen-volvimento Económico (OCDE) elaborou dois Modelos deConvenção que estão na base da grande maioria das conven-ções hoje em vigor entre os Estados: o modelo de conven-ção em matéria de impostos sobre o rendimento e o capital(aprovado em 1963 e revisto em 1977, 1992 e periodica-mente após esta data) e o modelo de convenção em matériade impostos sobre sucessões e doações (aprovado em 1976e revisto em 1982). Alguns Estados e organizações adopta-ram outros modelos de convenção, como a Organizaçãodas Nações Unidas (ONU) – direccionado para os Estadossubdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento – ou osEstados Unidos da América (EUA), por exemplo.

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No caso dos Estados-Membros da União Europeia, umproblema específico surge no que diz respeito ao relaciona-mento entre o Direito Comunitário e as convenções por sicelebradas.

Sendo ambas fontes de Direito Internacional, resultan-tes da livre vinculação de Estados soberanos, numa primeiraanálise dever-se-ia aplicar a regra “lex posterior derrogat priori”,o que levaria a que cada vez que um Estado celebrasse umaconvenção que contradissesse normas comunitárias, seriamestas a ceder. O problema, contudo, exige uma análise maiscuidada.

Nenhuma das disposições do Tratado de Roma se refereao problema do relacionamento entre as convenções cele-bradas pelos Estados-Membros e as normas comunitárias. Oartigo 293.º prevê que sejam os Estados a entabular nego-ciações entre si, sem a intervenção dos órgãos comunitários,de modo a eliminar a dupla tributação no espaço comuni-tário. Apesar de tanto a Comissão como o TJCE terem sem-pre frisado que esta competência deve ser exercida no res-peito pelos princípios e normas do Direito Comunitário,não podemos deixar de ver nesta norma uma atribuição aosEstados da competência para negociar e concluir conven-ções com vista a evitar a dupla tributação.

No que diz respeito aos tratados internacionais concluí-dos pelos Estados-Membros, a norma que a eles se refere – oart.º 307.º – diz respeito unicamente aos tratados concluídosantes da entrada em vigor do Tratado de Roma, ou, para ospaíses que aderiram posteriormente, a partir da data de ade-são, e abrange apenas os tratados concluídos entre Estados--Membros e países terceiros.

Não havendo disposições expressas relativamente a estamatéria, torna-se necessário recorrer aos princípios gerais doDireito Comunitário. O TJCE afirmou através das suas deci-sões os princípios do primado e da autonomia do Direito

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Comunitário: este constitui um ordenamento autónomo,com regras e princípios próprios e distintos dos ordenamen-tos nacionais e as suas disposições prevalecem sobre as nor-mas nacionais dos Estados-Membros, devendo as normasque lhe sejam contrárias ser desaplicadas.

Se o princípio do primado do Direito Comunitário porsi só não responde à questão do relacionamento entre asconvenções e o ordenamento comunitário, uma vez que serefere somente às normas nacionais dos Estados, já a análiseconjunta deste com o da autonomia permite, em nosso enten-der, solucionar o problema. Os Estados-Membros fizeramalgo de novo no plano jurídico internacional quando acor-daram criar a Comunidade Europeia. Criaram uma organi-zação com instituições próprias e competências alargadas,cujo âmbito de actuação cobre diversas áreas que ultrapas-sam em muito o campo das relações bilaterais ou multila-terais que entre os Estados se possam estabelecer. Assim, aregra da prevalência do ordenamento comunitário baseia-senão na sua forma mas sim no seu conteúdo específico: tantoas normas convencionais como as de Direito Comunitáriotêm origem em actos voluntários de vinculação por partedos Estados, mas as normas comunitárias são de naturezamuito distinta das normas contidas em convenções de duplatributação. Deste modo, afirmando em abstracto a superiori-dade das normas comunitárias, deslocamos para o momentoda análise da compatibilidade das específicas normas conven-cionais com as comunitárias a tomada em consideração daspossíveis justificações, tais como o estado embrionário dapolítica fiscal comunitária no campo da tributação directa,por exemplo. Com este entendimento, chegamos à seguinteconclusão: fora dos casos previstos no art.º 307.º, sempreque um Estado conclua uma convenção que o obrigue aactuar de modo contrário ao Direito Comunitário, seja essaconvenção concluída com outro Estado-Membro, seja com

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BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 175-269

268 FILIPE CÉSAR VILARINHO MARQUES

um Estado terceiro, deverá desrespeitar tal obrigação assumi-da e cumprir a norma comunitária, independentemente daresponsabilidade em que incorra perante o Estado terceiropelo não cumprimento da convenção; se for o Estado ter-ceiro aquele que fica vinculado a um comportamento que,no território do Estado-Membro, viola disposições comu-nitárias, pode adoptar tal comportamento uma vez que oDireito Comunitário não lhe é aplicável, ficando o Estado--Membro que celebrou tal convenção sujeito a responsabili-dade por violação do Direito Comunitário, nos termos defi-nidos pelo TJCE em Francovich.

Vistos estes pontos, abordamos aquela dentre as dispo-sições das CDT’s que mais interessa para o objecto do pre-sente estudo: a regra de não discriminação prevista noart.º 24.º da Convenção Modelo da OCDE.

Este artigo contém basicamente três proibições de dis-criminação: em relação aos nacionais do outro Estado con-tratante (pessoas singulares ou colectivas) e aos apátridas(art.º 24.º, n.os 1, 2 e 5); em relação aos estabelecimentos está-veis pertencentes a empresas ou pessoas singulares do outroEstado; e em relação ao método de determinação da matériacolectável, na contabilização de pagamentos de juros, royal-ties ou outras quantias pagas.

A regra do n.º 1 exige o mesmo tratamento para todos,nacionais e não nacionais, que se encontrem nas mesmas cir-cunstâncias. Na análise da comparabilidade das circunstân-cias, no entanto, uma há que dita a possibilidade de trata-mento diferenciado: a residência. A maior parte dos Estadostributa os seus residentes pelo rendimento mundial e os nãoresidentes apenas pelo rendimento obtido no seu território eesta norma do art.º 24.º, n.º 1, vem confirmar essa prática.Entende-se que residentes e não residentes não estão emsituações comparáveis e que, portanto, podem ser diferen-temente tributados sem que tal constitua uma discriminação:

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BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 175-269

O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO E A FISCALIDADE DIRECTA NA UE 269

o Estado da residência é aquele que está em melhores con-dições para avaliar a situação global do contribuinte e, nessamedida, conceder-lhe as deduções ligadas à sua situação pes-soal e familiar. O que se proíbe, então, é que dentro dos gru-pos de contribuintes residentes e não residentes seja feita algu-ma distinção com base exclusivamente na sua nacionalidade.

Vimos ainda que a chamada discriminação encobertanão é proibida, ou seja, ainda que o critério escolhido paradiferenciar a tributação possa abranger quase exclusivamentenacionais do Estado que vai exercer o poder tributário, seesse critério não for a nacionalidade não será proibido.

(continua no próximo número)

Filipe César Vilarinho MarquesMagistrado