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CHRISTIANE CARNEIRO BRITTO
O PARADIGMA REALISTA E A DOUTRINA BUSH: O QUE MUDOU NA POLÍTICA
EXTERNA NORTE-AMERICANA
Monografia apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de bacharelado em Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.
Brasília - DF, 20 de junho de 2003.
ii
CHRISTIANE CARNEIRO BRITTO
O PARADIGMA REALISTA E A DOUTRINA BUSH: O QUE MUDOU NA POLÍTICA
EXTERNA NORTE-AMERICANA
BANCA EXAMINADORA: ______________________ Profa. Raquel Boing Marinucci
(Orientadora) __________________________
Prof. Marco Antônio de Meneses Silva (Membro)
__________________________
Prof. Tarciso Dal Maso Jardim (Membro)
__________________________
Profa. Renata de Melo Rosa (Suplente)
BRASÍLIA DF, 20 DE JUNHO DE 2003.
iii
O lado que souber quando lutar e quando não lutar será vitorioso. Existem estradas que não devem ser usadas, exércitos que não devem
ser atacados e cidades cercadas que não devem ser assaltadas.
Sun-Tzu
iv
Dedico esta monografia aos meus pais, que me incentivaram a finalizar este trabalho e a concluir este curso. Aos professores que por devoção à vida acadêmica nos transmitiram seus conhecimentos, sempre nos incentivando a tomar nossas próprias conclusões e a encontrar nossos próprios caminhos.
v
Agradeço:
Aos meus pais, que viabilizaram minha formação acadêmica, custearam todos os meus livros e incentivaram a conclusão desta monografia. A Professora Raquel Boing, que me orientou, aconselhou e me emprestou livros, sempre me encorajando a concluir esta monografia em dia. Ao Professor Marco Antônio, que mesmo não sendo meu orientador, me auxiliou e me inspirou a desenvolver esta pesquisa neste tema. A todos aqueles que contribuíram para minha formação acadêmica e para a conclusão deste trabalho, indicando livros, artigos e outras fontes de pesquisa.
vi
SUMÁRIO: RESUMO................................................................................................................
viii
ABSTRACT............................................................................................................
ix
INTRODUÇÃO........................................................................................................
1
1. PRINCIPAIS TEMAS DO PARADIGMA REALISTA DA TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS......................................................................
3 1.1 . Do paradigma idealista ao realista..........................................................
3
1.2. A natureza humana...................................................................................
4
1.3 . A luta pelo poder.......................................................................................
8
1.4. Imperialismo...............................................................................................
12
1.5. A anarquia do sistema internacional.......................................................
13
1.6. A balança de poder....................................................................................
15
1.7. O interesse nacional..................................................................................
18
1.8. Moral na política internacional................................................................
19
1.9. A guerra para os realistas clássicos......................................................
22
2. A DOUTRINA BUSH..........................................................................................
26
2.1. A estratégia de segurança nacional dos EUA.......................................
29
2.2. O combate ao terrorismo e a regimes ilegais.........................................
32
2.3. Liberdade e prosperidade ao mundo ......................................................
36
2.4. As conseqüências e os riscos da Doutrina Bush..................................
43
3. DO DISCURSO POLÍTICO À PRÁTICA..........................................................
50
3.1. As três tradições teóricas.........................................................................
51
3.2. O discurso republicano.............................................................................
55
3.3. A Doutrina Bush na prática...................................................................
57
3.4. Semelhanças e diferenças entre a Doutrina Bush e o realismo.............................................................................................................
60
vii
CONCLUSÃO.........................................................................................................
71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................
73
viii
RESUMO
Esta pesquisa visa verificar que aspectos da Doutrina Bush se diferenciam
das principais premissas do realismo na teoria das Relações Internacionais. Esse
estudo tornou-se significativo desde que a nova estratégia norte-americana passou a
ser acusada de imperialista, e culpada por reverter as tendências anteriores de
contenção, desrespeitando a soberania nacional e as normas e instituições
internacionais.
As questões investigadas aqui é são: a nova estratégia de segurança nacional
dos EUA se diferencia da antiga estratégia realista em todos aspectos? E a nova
estratégia norte-americana modificou a estratégia realista em para se adaptar às
novas ameaças do século vinte e um?
Para verificar estas questões, é essencial revisar os principais temas
abordados pelos reconhecidos teóricos realistas - temas como a natureza humana, a
luta pelo poder, imperialismo, anarquia do sistema internacional, a balança de poder,
o dilema de segurança, o interesse nacional e a moral na política internacional. Esta
tarefa será realizada no primeiro capítulo.
O capítulo seguinte está reservado para a análise do documento "A
Estratégia de Segurança Nacional dos EUA", assinado por George W. Bush em
setembro de 2002. Este documento anunciou o que já está sendo chamado de
Doutrina Bush. As conseqüências de suas metas também serão consideradas nesta
parte.
O objetivo do último capítulo é confrontar as metas da nova estratégia norte-
americana com as premissas adotadas pela estratégia baseada no realismo. Para
isto, voltaremos a cada tema analisado no primeiro capítulo. O discurso político
também será analisado, além do contexto histórico envolvendo a primeira guerra do
Golfo, que reforçou a noção de que a política externa dos Estados Unidos
necessitava de uma nova estratégia.
ix
ABSTRACT
This research purports to verify which aspects of the Bush Doctrine differ from
the main assumptions of Realism in the International Relations theory. This
investigation has become meaningful since critics have accused the new North
American strategy of imperialistic, and blamed it for reversing the previous
tendencies of containment, in disregard to national sovereignty, international norms
and institutions.
The questions examined are: Does 'The National Security Strategy of the
United States of America' differ from the previous realistic strategy in all aspects?
And did the new American strategy modify the realistic strategy in order to deal with
the new threats of the twenty first century?
To verify these problems, it's essential to revise the main topics addressed by
distinguished realist theoreticians - topics such as human nature, the struggle for
power, imperialism, international anarchy, balance of power, national interest, and
international morality. This task shall be dealt with in the first chapter.
The following chapter is reserved for the analysis of the document "The National
Security Strategy of the United States of America", endorsed by George W. Bush in
September 2002. This document set forth what's already been called the "Bush
Doctrine". The implications of its goals will also be considered here.
The purpose of the last chapter is to confront the aims of the new American
strategy with the main assumptions adopted by the strategy based on Realism. For
that, we shall come back to each topic analyzed in the first chapter. The political
rhetoric shall also be taken into account, in addition to the historical context
surrounding the first Gulf War, which strengthened the notion that the foreign policy
of the United States needed a new strategy.
INTRODUÇÃO
Inúmeros teóricos identificam o período posterior à Primeira Guerra Mundial
como o período em que se consolidou o estudo das Relações Internacionais. Martin
Hollis e Steve Smith, por exemplo, explicam que após a primeira grande guerra o
idealismo foi a primeira grande tendência da disciplina. Segundo estes autores, o
choque provocado pela enorme quantidade de mortes de pessoas de todos os
países envolvidos fez com que a guerra fosse questionada como um meio racional
de resolver conflitos. E, dentro dessa análise, como a guerra trazia muitos prejuízos
e poucas recompensas para todos os envolvidos, começou-se a contestar tal
mecanismo como uma ferramenta viável da ação política (Hollis, Smith, 1991:17-19).
Anteriormente a este período, predominavam na política internacional as
máximas de Maquiavel, de que "na conduta dos homens, especialmente dos
príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios", e de Clausewitz,
de que "a guerra é a continuação da política por outros meios".
Porém, em 1918, após a primeira guerra, o então presidente dos Estados
Unidos, Woodrow Wilson, manifestou seu desejo de consolidar uma associação de
Estados, a Liga das Nações, onde os governantes deveriam utilizar-se de uma
diplomacia franca e transparente, a fim de garantir a segurança e justiça de todos os
países membros (Grenville, 1974: 55 - 57). A Liga das Nações foi considerada um
fracasso, não somente pelo fato do Senado dos Estados Unidos ter rejeitado seus
Tratados de Paz, e dos Estados Unidos nunca terem se tornado um dos membros,
mas porque foi incapaz de garantir a tal segurança e justiça quando tinha que lidar
com grandes potências como a Alemanha, Itália ou Japão, por exemplo. Apesar do
dito fracasso, este período ficou conhecido como um período em que predominava o
idealismo nas Relações Internacionais.
Já os acontecimentos que envolvem a Segunda Guerra Mundial fomentaram
uma série de análises críticas a respeito da política internacional. Essas análises
adotaram o já existente e antigo realismo político na teoria das Relações
Internacionais, consolidando, assim, um novo paradigma para a disciplina.
Alguns temas são recorrentes na análise de vários destes teóricos em suas
tentativas de explicar o conflito e a guerra no cenário internacional, problema central
do paradigma realista. Temas como a natureza humana, a luta pelo poder,
2
imperialismo, anarquia do sistema internacional, a balança de poder, o dilema de
segurança, o interesse nacional e a moral na política internacional são abordados
por diversos deles. Todos estes temas serão considerados aqui, já que são
fundamentais para a compreensão da teoria realista.
A partir desse contexto, a nova estratégia de segurança nacional dos Estados
Unidos, que consolidou o que se convencionou chamar de Doutrina Bush, vem
sendo considerada imperialista e criticada por modificar a antiga estratégia de
política externa dos EUA, fundada no realismo e no liberalismo. Se, de fato, a nova
estratégia norte-americana diferencia-se da estratégia anterior, podemos confrontar
o seguinte problema de pesquisa: Em que aspectos a estratégia de segurança
nacional dos Estados Unidos diferencia-se da estratégia realista? Pode-se supor que
a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos diferencia-se da
estratégia realista em todos os aspectos? A nova estratégia norte-americana
modificou a estratégia realista para se adaptar às novas realidades século XXI?
Desse modo, o objetivo geral deste trabalho é analisar o que mudou na
política externa norte-americana durante a administração de George W. Bush . Por
isso, na primeira parte serão analisados os principais temas abordados no
paradigma realista das relações internacionais, conforme foram abordados pelos
principais teóricos realistas.
O capítulo seguinte será reservado para a forma como os republicanos
norte-americanos abordam a questão da guerra e segurança nacional, tanto em sua
política anterior ao 11 de Setembro de 2001, como também posterior a esta data,
consolidada no documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados
Unidos", de setembro de 2002. O objetivo da terceira parte será o de refletir como a
prática descrita no segundo capítulo compara-se com a teoria realista trabalhada no
primeiro capítulo.
3
1. PRINCIPAIS TEMAS DO PARADIGMA REALISTA DA TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Neste capítulo analisaremos como o realismo político foi incorporado na teoria
das Relações Internacionais, além de avaliar certos temas, encontrados na teoria de
diversos autores realistas, que visam explicar a origem do conflito e da guerra no
cenário internacional.
Não se pretende afirmar que existe apenas um realismo, uníssono, comum a
todos os pensadores desta vertente teórica. Mas ao contrário, o realismo aqui é tido
como uma tradição teórica que se adapta às condições de sua época.
Mesmo assim, para que, nos capítulos seguintes, possamos analisar como a
prática afasta-se da teoria, será fundamental fazermos um estudo teórico,
comparando a teoria dos principais realistas de nossa história.
1.1. Do paradigma idealista ao realista
Após a Segunda Guerra Mundial, foi feita uma série de análises críticas a
respeito da política internacional. Essas análises adotaram o já existente e antigo
realismo político, aquele de Tucídides, Maquiavel, Thomas Hobbes, Clausewitz e
outros, na teoria das Relações Internacionais, consolidando, assim, um novo
paradigma para a disciplina.
Um desses pensadores foi Edward H. Carr, historiador britânico, que
escreveu Vinte Anos de Crise 1919 - 1939, editado pela primeira vez em 1939, antes
da Segunda Guerra Mundial, com uma segunda edição em 1946. Ao defender uma
posição anti-idealista, Carr passou a ser considerado um dos pais fundadores da
disciplina Relações Internacionais e seu novo paradigma, o realismo. Carr criticou os
idealistas ao acusá-los de querer manter o status quo para proteger suas posições
privilegiadas. Segundo ele, "o interesse comum na paz mascara o fato de que
algumas nações desejam manter o status quo sem terem que lutar por ele, e outras
mudar o status quo sem precisarem lutar para isso” (Carr, 1964: 53). Por isso, para
Carr, falar em paz mundial é um "pressuposto utópico", já que ignora o fato de que
existem divergências fundamentais nos interesses das nações, evidentes quando
algumas pretendem manter o status quo, enquanto outras desejam mudá-lo (Carr,
1964: 53).
4
Segundo o professor Stefano Guzzini, que analisa a teoria Realista nas
Relações Internacionais, esta afirmação de Carr é inconsistente, porque "mesmo se
admitirmos que todas as idéias derivam de interesses particulares, nem todos os
interesses hegemônicos foram automaticamente acompanhados de uma ideologia
internacionalista baseada na harmonia de interesses". Além disso, ainda segundo
Guzzini, "Carr poderia estar certo em criticar a complacência dos governos britânico
e francês em relação à República alemã, mas igualá-los a Hitler parece um absurdo"
(Guzzini, 1998: 21). Assim, devido a sua posição anti-idealista, Carr se enquadra na posição de
outros realistas, apesar de sempre ter negado este estigma. Porém, como sua
posição foi muito ambígua, não foi o suficiente para fundar uma nova escola de
pensamento (Guzzini, 1998: 23). Outros teóricos, como Hollis e Smith, também
concordam que foi Hans Morgenthau quem mais fez para popularizar a nova
abordagem do realismo (Hollis, Smith, 1991: 22).
O livro Política entre as nações, de Morgenthau, foi escrito durante o período
de guerra fria, período em que o sistema bipolar e as políticas de contenção do
comunismo dominavam o cenário internacional. O que, segundo autores como
Stefano Guzzini, justifica o fato de alguns aspectos da obra de Morgenthau, como a
luta pelo poder, terem sido mais ressaltados do que outros (Guzzini, 1998: 24). E,
certamente, Morgenthau é mais conhecido pelos seus famosos seis princípios do
realismo, que foram fundamentais para a consolidação do paradigma realista na
teoria das Relações Internacionais. E como alguns temas são utilizados por diversos
teóricos realistas para explicar os fenômenos do cenário internacional, pode-se
abordar cada um destes temas separadamente. Esta meta será trabalhada a seguir.
1.2. A natureza humana
Conforme mencionado anteriormente, após a Segunda Guerra Mundial, os
pensadores das Relações Internacionais resgataram e adotaram o já existente e
antigo realismo político para contrariar o idealismo, que aparentemente perdeu sua
razão de ser após a segunda grande guerra. Uma das premissas mais adotadas foi
a da natureza maléfica do ser humano, propagada por Maquiavel.
5
E de fato, em seu livro O príncipe de 1513, Maquiavel abordou a questão da
natureza humana de modo diferenciado da maioria dos humanistas que escreveram
antes dele. Para Maquiavel, "os homens são ingratos, volúveis, simuladores,
covardes ante os perigos, ávidos pelo lucro" (Maquiavel, 1513: cap. XVII). Essa
concepção do ser humano como um ser mesquinho deve-se ao fato do homem não
ser racional e de agir por instintos, como os animais. Por este motivo, a história para
Maquiavel é cíclica, ou seja, repete-se indefinidamente já que é impossível negar a
natureza humana.
Na verdade, Maquiavel parece defender um paradoxo. Ele aconselha os
príncipes que, devido à natureza humana, para agir virtuosamente com sucesso,
terão de desistir da pretensão de agir sempre virtuosamente. Ou seja, para ser
bondoso, torna-se necessário ser cruel. Mas praticar o mal não é o fim em si mesmo.
Segundo o professor Quentin Skinner,
o conselho maquiaveliano, tal como o próprio autor indica no capítulo 18, é que o príncipe "não deve desviar-se do que é bom, se for possível, porém deve saber como praticar o mal, se isso se fizer necessário" [...] Vulgariza o pensamento de Maquiavel quem lhe cola a etiqueta de pregador do mal. Ele está longe de querer tomar o mal pelo bem" (Skinner, 1978: 158).
Após a Primeira Guerra Mundial, quando Woodrow Wilson manifestou seu
desejo de consolidar a Liga das Nações a fim de garantir a segurança e justiça de
todos os países, a convicção por trás das propostas era de uma visão mais
generosa da natureza humana. Segundo Smith e Hollis, havia uma visão "liberal da
natureza humana; bons homens e mulheres nunca teriam preferido a guerra, que
deve, portanto, resultar ou de um equívoco mútuo, ou do domínio de mentes mal
educadas ou incivilizadas no processo político" (Hollis, Smith, 1991:19).
Para Edward H. Carr, o ser humano tem uma natureza dupla, egoísta e
colaborador. Nas próprias palavras do autor :
O homem, em sociedade, reage a seus iguais de duas formas opostas. Às vezes demonstra egoísmo, ou o desejo de se satisfazer às expensas dos outros. Em outras ocasiões, demonstra sociabilidade ou o desejo de cooperar com os outros, de manter relações recíprocas de boa vontade e de amizade com eles, ou mesmo de subordinar-se a eles [...] O Estado é construído a partir desses dois aspectos conflitantes da natureza humana. Utopia e realidade, ideal e a instituição, moral e poder, estão, desde o princípio, inextricavelmente combinado nele (Carr, 1964: 96) 1.
1 Tradução minha. Neste trabalho, todas as citações serão feitas em português.
6
Portanto, para Carr, devido a este caráter dualista das pessoas, todas as
sociedades necessitam de algum tipo de sanção, aplicada por um indivíduo, ou
grupo de pessoas, agindo em nome da coletividade, para que a solidariedade vital a
esta comunidade seja exercida.
Já Hans Morgenthau, em seu primeiro princípio do realismo político,
defendeu que as leis da política podem ser abordadas objetivamente devido à
natureza do ser humano. O primeiro princípio diz: "O realismo político sustenta que a
política, tal como a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que lançam
raízes na natureza humana" (Morgenthau, 1993: 4). As "leis objetivas" seriam
inerentes ao ser humano. Guzzini explica que Morgenthau, ao referir-se à elite
política quando falava dos Estados, resolveu o dilema de explicar como a luta pelo
poder, fundamentada na natureza humana, atua no cenário internacional. E explica
ainda que, segundo Morgenthau, o Estado era capaz de controlar a luta pelo poder
no nível nacional, mas não era capaz de eliminá-la por completo. A necessidade
frustrada de poder é então exportada ao nível internacional (Guzzini, 1998:26).
Raymond Aron, em seu livro Paz e guerra entre as nações de 1962, também
especulou a respeito da natureza humana. Em um capítulo intitulado "As raízes da
guerra como instituição", Aron analisa a agressividade no reino animal baseando-se
em experiências que biólogos realizaram com alguns animais em laboratório. Para
ele, a convivência em sociedade, a frustração e as privações podem ser causas,
mas não determinantes, da agressão, já que as pessoas nem sempre expressam
sua agressividade e podem conter a inimizade (Aron, 2002: 439). Segundo Aron, o
homem é sempre tanto vítima quanto carrasco. Por isso, "a agressão física e a
vontade de destruir não constituem a única reação possível à frustração, mas uma
das respostas possíveis - talvez a mais espontânea”. O que faz Aron concluir que
"nesse sentido, os filósofos não se equivocaram quando diziam que o homem é
naturalmente um perigo para outros homens" (Aron, 2002: 441).
Aron conclui ainda que "o animal humano é agressivo, mas não luta por
instinto; a guerra é uma expressão da agressividade humana, mas não é necessária,
embora tenha ocorrido constantemente desde que as sociedades se organizaram e
se armaram".
Mas talvez a conclusão mais surpreendente feita por Aron é a de que,
devido ao fato de "o homem" ser "naturalmente agressivo", é impossível acabar com
7
a violência ou com a guerra. E mais curioso ainda é que, para ele, como a
agressividade faz parte da natureza humana, os conflitos não ocorrem devido à sua
semelhança com os animais, mas ocorrem devido à sua própria natureza:
A natureza do homem não permitirá que o perigo da violência seja afastado definitivamente; em todas as coletividades os desajustados violarão as leis e atacarão as pessoas. O desaparecimento dos conflitos entre indivíduos e entre grupos é contrário à sua natureza [...] A dificuldade em manter a paz está mais relacionada à humanidade do homem do que à sua animalidade [...] O homem é o único ser capaz de preferir a revolta à humilhação e a verdade à vida. (Aron, 2002: 499).
Neste ponto, Kenneth Waltz teve uma visão mais abrangente em relação às
origens da guerra. Em seu livro "O homem, o Estado e a guerra" de 1959, Waltz
apresenta não uma, mas três origens para a guerra: 1) a natureza humana; 2) a
estrutura interna dos Estados; 3) a anarquia internacional. Waltz considera as três
imagens importantes para entender os conflitos. Segundo ele, a primeira e a
segunda imagem explicam somente as forças que determinam as ações políticas; a
terceira imagem, a anarquia do sistema internacional, determina a importância
dessas forças e a previsão dos resultados (Apud. Viotti, Kauppi, 1999: 130 -143).
Segundo o professor Guzzini, Kenneth Waltz classificou Morgenthau junto
com aqueles que explicam o conflito baseado apenas na natureza humana. Mas
apesar de Morgenthau derivar a guerra e o poder da natureza humana, ele também
adota as duas outras imagens. Segundo Guzzini, Morgenthau afirmou que as
guerras do século XX "foram o resultado da democratização, e a nacionalização da
política internacional". Isso é uma forma de explicação através da segunda imagem.
E, apesar de afirmar que política se refere à luta pelo poder baseada na natureza
humana, a especificidade do sistema internacional, que Morgenthau chamou de
multiplicidade, explica porque "a luta pelo poder através da guerra, enquanto
controlada no nível doméstico, é endêmica no nível internacional" (Guzzini, 1998:
30). O que demonstra uma explicação de Morgenthau do conflito através da terceira
imagem, ou seja, devido à anarquia do sistema internacional.
O primeiro grande debate da disciplina Relações Internacionais, Idealismo -
realismo, foi seguido de um outro debate a respeito do método adotado pela
disciplina. Segundo diversos teóricos das Relações Internacionais, como Steve
8
Smith, Martin Hollis e Stefano Guzzini, este debate foi conduzido pelos
behavioristas.
Segundo Guzzini, quando realistas explicavam a origem da guerra através
da natureza humana, poucos behavioristas concordavam com isso. Eles preferiam
optar por conceitos mais empíricos como o dilema da segurança (Guzzini, 1998: 35).
E segundo Hollis e Smith, a principal crítica dos behavioristas contra os realistas
referiam-se aos principais conceitos utilizados, como poder, balança de poder e
interesse nacional, que não podiam ser definidos "objetivamente". Além disso,
Morgenthau foi criticado por não especificar se a natureza humana era uma causa
determinante ou apenas uma causa em potencial da ação política. Ademais, a
explicação baseada na natureza humana "não leva em consideração os erros (se a
natureza humana é baseada em leis objetivas, então como pode o indivíduo cometer
erros?)" (Hollis, Smith, 1991: 30). Ou seja, como explicar os erros humanos?
Apesar disso, o behaviorismo não questionava as suposições dos realistas,
apenas o seu método, o que serviu para, pelo menos, demarcar a disciplina
metodologicamente. Algumas das suposições dos realistas continuaram a ser
adotadas, como: o Estado sendo o ator mais importante para a compreensão das
relações internacionais; as políticas domésticas são distintas da política
internacional; e as relações internacionais são caracterizadas pela luta pelo poder
(Hollis, Smith, 1991: 31-32). Por este motivo, o conceito de poder e a luta pelo poder
entre os Estados continuou a ser relevante após as críticas metodológicas. Veremos
agora como alguns teóricos realistas abordaram estas questões.
1.3. A luta pelo poder
Como observou o professor Guzzini, "os realistas definem a esfera política
através de poder e das relações de autoridade. Os indivíduos, grupos e nações
lutam pelo poder, que pode ser entendido como ambos, o controle efetivo dos meios
de coerção, e relações de autoridade baseado na legitimidade" (Guzzini, 1998: 24).
Noberto Bobbio explica que "a palavra poder designa a capacidade ou a
possibilidade de agir, de produzir efeitos". O poder sobre as coisas é diferente do
poder sobre o homem. O primeiro só é relevante para o estudo do poder social
quando se converter num recurso para exercer o poder sobre o homem. Ou seja,
9
não se deve considerar as definições de poder que ignoram seu caráter relacional e
o identificam com a simples posse de instrumentos. Bobbio lembra-nos ainda que
Hobbes, em o Leviatã, já definira poder como "meios de alcançar alguma aparente
vantagem futura". O poder só existe quando há um indivíduo ou grupo induzido a
comportar-se como se deseja (Bobbio, 1983: 934).
Joseph Nye explica, em O paradoxo do poder americano, que a definição de
poder é simplificada ao ser definida simplesmente como a posse de alguns recursos
porque a capacidade de obter os resultados desejados relaciona-se com a posse
destes recursos:
Poder é a habilidade de produzir os resultados desejados e, se necessário, mudar o comportamento dos outros para fazer com que isso ocorra [...] A habilidade de obter os resultados desejados é freqüentemente associada com a posse de alguns recursos e, então, normalmente simplificamos e definimos poder como a posse de relativamente grandes quantidades de elementos como população, território, recursos naturais, força econômica, força militar e estabilidade política (Nye, 2002: 4).
Porém, a posse destes recursos não garante que os resultados desejados
sejam alcançados. Por este motivo, enfatiza-se a noção de relação, e não de posse,
de poder. Segundo, Nye, mesmo demonstrando ter uma grande quantidade de
recursos "você ainda pode perder, ou pelo menos falhar em obter os resultados
desejados. Por exemplo, os Estados Unidos eram a maior potência após a Primeira
Guerra Mundial, mas falharam em prevenir o avanço de Hitler ou Pearl Harbor".
(Nye, 2002: 5).
Ou seja, "tradicionalmente, o teste de uma grande potência era a força para
guerra. Na guerra as estimativas de poder relativo eram comprovadas” (Ibidem:5).
Durante os séculos, conforme a tecnologia evoluiu, as fontes de poder mudaram.
Nye lembra-nos ainda que, nas economias agrárias da Europa do século XVII e
XVIII, a população era um recurso de poder crucial. Mas no século XIX, a
importância crescente da indústria beneficiou primeiramente a Grã-Bretanha, e
posteriormente a Alemanha. Na metade do século XX, com o advento da era
nuclear, os Estados Unidos e a União Soviética possuíam, não somente poder
industrial, mas arsenais nucleares e mísseis intercontinentais. Hoje, a base para o
poder tem se afastado da ênfase na força militar e conquistas (Ibidem: 5).
10
Ou seja, o conceito de poder foi sendo modificado durante os séculos, seja
pelo advento de novos fatores como a industrialização, ou pelo avanço tecnológico e
o início da era nuclear.
Carr escreve sobre a necessidade do poder para a política ao concluir que a
manutenção da democracia necessita de força. E identifica três tipos de poder na
esfera internacional: a) poder militar, b) poder econômico, c) poder sobre a opinião.
Estes três seriam interdependentes, já que, no longo prazo, as pessoas rejeitam a
doutrina de que a força faz o direito 2.
O poder militar, segundo Carr, é importante porque da mesma forma que a
revolução "espreita os bastidores da política interna", "a guerra espreita os
bastidores da política internacional". E, portanto, como a guerra em potencial é "um
fator dominante na política internacional, o poderio militar torna-se um padrão aceito
dos valores políticos" (Carr, 1946: 109).
Em seguida, Carr reflete sobre o aumento no investimento em poderio
militar, o que talvez reflita a atitude do governo dos Estados Unidos nos dias de hoje:
“O poder militar, sendo um elemento essencial na vida do Estado, torna-se não só um instrumento, mas um fim em si mesmo [...] As guerras mais sérias são lutadas para tornar o próprio país militarmente mais forte, de modo que se justifica a epigrama de que ”a principal causa da guerra é a própria guerra". (Carr,1964:146).
Em relação ao poder econômico, Carr afirma que "a força econômica sempre
foi um instrumento do poder político, ainda que se considere apenas a sua
associação com o instrumento militar. Só os mais primitivos tipos de campanha
militar foram totalmente independente do fator econômico" (Carr,1964: 113). Além
disso, Carr reconhece que o poder sobre a opinião "não é menos essencial aos
objetivos políticos do que o poder econômico ou militar, e tem estado sempre
associado a eles" (Carr, 1964: 132).
Morgenthau também escreve sobre a importância do poder no cenário
internacional. E como bem lembrou o professor Guzzini, a política de poder, ou
melhor, a necessidade de tal política é a trama central do livro A política entre as
nações (Guzzini, 1998: 24).
2 Joseph Nye Jr., ao formular seu conceito de Soft Power, parece concordar com Carr nesse aspecto, como será visto mais adiante.
11
E de fato, já no segundo princípio do realismo, em seu primeiro capítulo,
Morgenthau estabelece que "o principal indicador que ajuda o realismo político a
encontrar o seu caminho em meio à paisagem da política internacional é o conceito
de interesse definido em termos de poder" (Morgenthau, 1993: 5). Portanto, o poder
era visto como uma das idéias fundamentais do paradigma realista. Todo e qualquer
interesse dos atores internacionais - político, econômico, cultural, etc. - reflete sua
pretensão de alcançar mais poder para si.
Em seguida, Morgenthau explica que o conceito de poder pode incluir
"qualquer coisa que estabelece e preserva o controle de um homem sobre outro
homem. Portanto, poder abrange todos os relacionamentos sociais que servem para
este fim, da violência física aos laços psicológicos mais sutis em que uma mente
controla outra" (Morgenthau, 1993: 11). E em seu nono capítulo, Morgenthau
apresenta dez elementos de que necessita o poder de uma nação: geografia;
recursos naturais; capacidade industrial; preparação militar; população; caráter
nacional; moral nacional; qualidade da diplomacia; e qualidade do governo
(Morgenthau, 1993: 124 -158).
Raymond Aron também escreve bastante sobre poder. Ele distingue entre
poder e potência. O poder é exercido dentro dos Estados, enquanto a potência seria
um atributo dos Estados. Como na língua portuguesa poder também pode ser
atribuído aos Estados, continuaremos a usar a palavra poder com a mesma idéia de
potência de Aron.
Aron explica que nas relações internacionais, "poder é a capacidade que
tem uma unidade política de impor sua vontade às demais" (Aron, 2002: 99). Aron
distingue ainda poder de força: força refere-se aos meios ou as armas (força militar,
econômica, moral), e poder refere-se à ação humana, ou seja, a "aplicação dessa
força em circunstâncias e com objetivos determinados" (Aron, 2002: 100).
Alem disso, Aron classifica em três categorias os fatores determinantes da
potência: 1) o meio ou o espaço ocupado pelas unidades políticas; 2) a quantidade e
qualidade dos combatentes e dos seus instrumentos; 3) a capacidade de ação
coletiva (na guerra, refere-se à organização do exército, a disciplina dos
combatentes, a qualidade do comando civil e militar, e na paz refere-se à
solidariedade dos cidadãos) (Aron, 2002: 107).
12
1.4. Imperialismo
Analistas contemporâneos, como G. John Ikenberry, têm comparado a nova
estratégia norte americana de uso de força, unilateralmente e de forma preventiva,
como uma estratégia "neo-imperial". Por este motivo, o estudo teórico do
imperialismo torna-se fundamental para que se possa comparar estas afirmações
com as idéias dos principais realistas.
Vários teóricos das relações internacionais refletem sobre o surgimento e as
características de um imperialismo. Para Carr, quando o nacionalismo atinge seu
objetivo, transforma-se automaticamente em imperialismo. Para explicar este ponto,
Carr cita Maquiavel e Hobbes, que escrevem, respectivamente, que "os homens
nunca se sentem seguros possuidores do que têm até que adquiram algo mais de
outros", e que o homem "não pode assegurar o poder e os meios de viver bem
aquilo que possui sem a aquisição de mais". Carr conclui, então, que "as guerras
começadas por motivos de segurança tornaram-se, rapidamente, guerras de
agressão e de interesse próprio [...] As ambições territoriais parecem ser tanto o
produto quanto a causa da guerra" 3 (Carr,1964: 112).
E para Morgenthau, o termo imperialismo tem sido tão usado, que perdeu o
seu real significado. Segundo ele, "todos são imperialistas para alguém que por
acaso se opõe às suas políticas externas". Por isso, antes de conceituar
imperialismo, Morgenthau acha necessário explicar o que o imperialismo não é. Para
ele, "nem toda política externa que visa aumentar o poder de uma nação é
necessariamente uma manifestação de imperialismo”. Além disso, "nem toda política
externa que visa a preservação de um império que já existe é imperialismo”.
(Morgenthau, 1993:57). Ou seja, para Morgenthau, imperialismo seria somente "a
política que visa derrubar o status quo, uma inversão das relações de poder entre
duas ou mais nações". Quando a relação de poder permanece intacta, há somente
uma política de status quo.
Além de definir imperialismo como a política que visa derrubar o status quo,
Morgenthau identifica três motivos para o surgimento do imperialismo: 1) guerra
vitoriosa (a nação que antecipa a vitória pode adotar uma política que vise uma
mudança permanente das relações de poder com a derrota do inimigo; 2) guerra
3 Voltaremos a este ponto mais tarde, ao refletir sobre a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque.
13
perdida (a política de imperialismo exercida pela vitoriosa provavelmente fará surgir
uma política de imperialismo na parte do conquistado); 3) fraqueza (a existência de
Estados fracos e espaços politicamente vazios são atraentes a um Estado forte). Foi
o caso de Napoleão, Hitler, União Soviética (Morgenthau, 1993: 67).
Morgenthau ainda identifica três possíveis objetivos do Imperialismo:
dominação de todo o globo politicamente organizado, ou seja, um império mundial;
um império ou hegemonia de dimensões aproximadamente continentais; e o
predomínio de poder estritamente localizado. E identifica três tipos de imperialismo
em relação ao meio empregado pelas políticas imperialistas: imperialismo militar,
econômico e cultural. (Morgenthau, 1993: 67 - 69).
Raymond Aron conclui seu segundo capítulo, sobre O poder e a força ou os
meios da política externa, afirmando que tanto o poder imperial como a convivência
com outras unidades soberanas traz perigos para a grande potência. Ou seja, "ser
poderoso para poder ter segurança" é uma "estranha ilusão". Nas palavras de Aron:
Ou a grande potência não quer tolerar iguais e precisar ir até o fim do seu poder imperial; ou então consente em viver como a primeira dentre as várias unidades soberanas, e precisa fazer com que essa preeminência seja aceita. Qualquer que seja a escolha feita, viverá perigosamente, sem nunca alcançar todas as vitórias necessárias para um domínio completo; e será sempre suspeita de aspirar ao domínio universal (Aron, 2002: 125).
1.5. A anarquia do sistema internacional
Outro tema muito utilizado na tentativa de explicar os conflitos internacionais
é a característica anárquica do sistema internacional. Viotti e Kauppi explicam que
esta anarquia refere-se à falta de uma autoridade que está acima dos Estados. Ou
seja, devido à soberania dos Estados Nacionais, há somente uma hierarquia de
poder, mas não uma "hierarquia de autoridade". Esta falta de uma autoridade central
diferencia-se do ambiente doméstico.
Helen Milner faz um ensaio bastante abrangente sobre o que exatamente os
teóricos de relações internacionais se referem quando chamam o sistema
internacional de anárquico (Milner, 1991: 143 - 169). Segundo ela, o dicionário
Oxford define anarquia de duas formas: ausência de ordem, ou seja, caos, ou
desordem política; e a falta de um governo. Milner mostra que na verdade não há
desordem no sistema internacional, já que há regimes e balança de poder, que
geram uma certa ordem, como veremos mais adiante.
14
Em relação à segunda definição, a falta de um governo, Milner achou
necessário definir governo, e concluiu que a maioria das definições existentes não
são suficientes para caracterizar o sistema internacional. Por exemplo, a primeira
definição é a clássica weberiana de que o governo tem o monopólio do uso legítimo
da força. Nessa definição, Milner encontra três problemas: 1) nem mesmo dentro de
um Estado há o monopólio do uso legítimo da força, já que existe o direito de defesa
pessoal e o direito ao porte de armas; 2) legitimidade e ilegitimidade no uso da força
também ocorrem no sistema internacional; 3) reduz a política internacional e
doméstica ao uso da força.
A definição mais adequada que Milner encontrou para identificar o que falta
no sistema internacional é uma certa função de governo, como a autoridade central
para obrigar os Estados a cumprir suas promessas e aderir aos tratados
internacionais. Ou seja, a falta de legitimidade no cenário internacional é o que os
acadêmicos de relações internacionais têm em mente quando chamam o sistema
internacional de anárquico.
Porém, Milner conclui afirmando que dar muita ênfase à anarquia
internacional implica em deixar de lado a existência de uma interdependência entre
os Estados4. A interdependência estratégica, por exemplo, sugere que os atores
dependem, além dos recursos, das escolhas e decisões tomadas por outros atores.
Mas Milner chama atenção ainda para o fato de que a interdependência não é o
oposto da anarquia, e não diz nada sobre os atores ou a relação entre eles, ou seja,
se há harmonia ou conflito. A interdependência também não sugere que o poder não
é importante, mas ao contrário, poder é um elemento intrínseco da interdependência.
Tanto que o poder é muito mais evidente nas relações de interdependência, do que
nas situações em que os atores são independentes ou autárquicos (Milner, 1991:
143 - 169).
A interdependência simplesmente fornece meios úteis de se olhar para o
sistema internacional, como até os teóricos da teoria dos jogos já observaram. Por
isso, focalizar apenas a anarquia do sistema internacional pode não ser o meio mais
apropriado de observar o cenário internacional.
4 O que demonstra que Milner aparenta ter maior afinidade pelas idéias liberais do que pelas premissas realistas propriamente ditas. Outras premissas liberais serão analisadas no terceiro capítulo.
15
Hedley Bull também acaba concluindo que o sistema internacional não se
parece com o estado de natureza hobbesiano. Enfatizar a anarquia internacional
teria pelo menos três pontos fracos: 1) a inexistência de um governo mundial não
acaba com a interdependência econômica das nações; 2) um governo mundial não
é a única fonte de ordem para o sistema internacional; 3) os Estados não são tão
vulneráveis quanto o indivíduo, ao contrário, a anarquia entre os Estados é até certo
ponto tolerável (Bull, 1977: 57 - 62). Bull conclui que mesmo na ausência de
governo, os Estados, já que são diferentes dos indivíduos, são capazes de conviver
em uma sociedade anárquica (Bull, 1977: 62).
Uma das conseqüências da anarquia do sistema internacional é o dilema de
segurança, ou seja, a falta de confiança existente entre os países. Um Estado que
visa aumentar sua segurança e investe em sua força militar, faz com que os outros
Estados sintam-se inseguros e também invistam em armamentos para se proteger.
O resultado é que, mesmo se inicialmente ambos visavam apenas sua segurança,
no final, todos acabam mais inseguros ainda. Foi o que gerou a corrida
armamentista entre os Estados Unidos e a União Soviética durante a guerra fria5.
Joseph Nye explica que a falta de comunicação e a falta de confiança é o
que leva os Estados a não cooperar e não concordar em não investir mais em
armamentos (Nye, 2003: 16). Viotti e Kauppi explicam ainda que uma outra
conseqüência é que os Estados que não têm recursos suficientes para "se proteger"
podem unir-se a uma aliança para deter a agressão de algum adversário em
potencial (Kauppi e Viotti, 1998: 69). O que nos leva aos conceitos de balança de
poder.
1.6. A balança de poder
Conforme demonstram Viotti, Kauppi e Guzzini, muitos realistas concordam
em incluir o conceito de balança de poder (às vezes traduzido como equilíbrio de
poder, como veremos adiante) em suas teorias. Só não há muito acordo no que este
termo realmente significa, ou se contribui para a paz ou para a guerra. Viotti e
Kauppi, por exemplo, afirmam que, apesar de o termo balança de poder ter sido um
5 Veremos no terceiro capítulo que, nos dias de hoje, os formuladores de política externa dos Estados Unidos têm ignorado esta característica da anarquia internacional.
16
tema bastante abordado durante os séculos, tem sido muito criticado por gerar muita
confusão devido às suas diversas definições.
E de fato, só Hans Morgenthau, por exemplo, estabelece quatro conceitos 6:
1) uma política que visa uma certa situação das relações internacionais; 2) a
situação efetiva das relações internacionais; 3) uma distribuição de poder
aproximadamente igual; 4) qualquer distribuição de poder. Morgenthau explica ainda
que, quando o termo não for especificado, refere-se à situação efetiva das relações
internacionais em que o poder é distribuído entre as diversas nações de forma
quase igual (Morgenthau, 1993: 183).
Morgenthau explica ainda a formação e os objetivos de uma balança de
poder:
A ambição por poder na parte de diversas nações, cada qual tentando ou manter ou derrubar o status quo, gera a necessidade da configuração chamada de balança de poder, e políticas que visam sua preservação. [...] Será demonstrado [...] que a balança de poder e as políticas que visam sua preservação não são somente inevitáveis, mas também um fator essencial de estabilização numa sociedade de nações soberanas; e que a instabilidade [...] deve-se não à falha do princípio, mas às condições específicas em que o princípio funciona [...] (Morgenthau, 1993: 183).
Segundo Guzzini, para os realistas o termo balança de poder é utilizado
como sinônimo de "equilíbrio". E, certamente, logo após sua introdução dos
conceitos de balança de poder, Morgenthau afirma que o "conceito de 'equilíbrio'
como sinônimo de 'balança' também é utilizado em muitas ciências". E define
'equilíbrio' como "a estabilidade dentro de um sistema composto de um número de
forças autônomas" (Morgenthau, 1993:184).
Contudo, Guzzini explica, que definir balança de poder como sinônimo de
equilíbrio de poder seria incorreto. Ele dá o exemplo da política britânica de balança
de poder do século XIX, que não tinha nada de equilíbrio, e poderia ser chamada de
"balança para o Continente Europeu e poder para a Grã-Bretanha". Ou seja, a
balança de poder para Morgenthau é o mesmo que sua política de poder (Guzzini,
1998: 45).
6 Viotti e Kauppi explicam, ademais, que Ernest B. Haas encontrou até oito significados para o termo balança de poder em "The Balance of Power: Prescription, Concept or Propaganda?" (World Politics 5 n° 2, Julho 1953 : 442-477).
17
Além disso, Guzzini cita ainda a observação de Martin Wight, que conclui
que, de fato, nem sempre há um "equilíbrio" na política de balança de poder:
Já que Morgenthau não consegue provar nenhuma necessidade de um equilíbrio, tudo o que o conceito de balança de poder diz é que os Estados, na sua busca por segurança, acumularão poder, o que, em troca, pode às vezes ser usado para balancear uns aos outros. Se não há necessidade de um equilíbrio, tudo o que sobra é uma descrição quase "sinônima com o próprio sistema de Estados" (Apud. Guzzini, 1998: 46) 7.
Hedley Bull identifica pelo menos quatro formas de balança de poder
1) balança de poder simples (entre duas potências) distinta da balança de poder
complexa (entre três ou mais potências); 2) balança de poder geral (com uma
potência preponderante) distinta da balança de poder local ou particular (em uma
região específica); 3) balança de poder subjetiva (acredita-se no equilíbrio entre os
membros) e balança de poder objetiva (há um verdadeiro equilíbrio entre os
membros); 4) balança de poder fortuita (sem qualquer esforço consciente) e balança
de poder arquitetada (um ou mais integrante não está consciente da balança de
poder)(Bull, 1977: 117).
Viotti e Kauppi nos lembram que a balança de poder tem sido criticada por
conduzir à guerra, e não preveni-la, já que não serve como um bom guia para os
governantes [para prever o comportamento de outros Estados], e funciona como um
instrumento de propaganda para justificar os gastos com defesa e aventuras
externas (Viotti, Kauppi, 1999: 85).
Em relação a esta crítica, Bull afirma que "a principal função da balança de
poder não é preservar a paz, mas sim preservar o próprio sistema de Estados". E
afirma ainda que, "a manutenção da balança de poder exige a guerra, quando ela for
o único meio de deter a expansão de um Estado potencialmente dominante", mas se
a balança de poder for estável, o recurso a uma guerra preventiva torna-se
desnecessário 8 (Bull, 1977: 124).
7 Segundo a análise de que a balança de poder não traz necessariamente um equilíbrio, algumas edições brasileiras de livros muito conhecidos, como a "Sociedade anárquica" de Hedley Bull, podem ter sido traduzidos erroneamente. Seu quinto capítulo, traduzido como "O equilíbrio de poder e a ordem internacional", refere-se à política de balança de poder. 8 Voltaremos a este ponto no terceiro capítulo, quando analisarmos o novo princípio de ataques preventivos dos Estados Unidos contra o Iraque.
18
Já Helen Milner defende que a balança de poder garante a ordem no
sistema internacional de duas formas: 1) se efetivada de forma apropriada, pode até
prevenir a guerra, já que a distribuição de poder gera os meios para a manutenção
da ordem; 2) o próprio balanceamento já sugere uma ordem, já que, mesmo que
inconscientemente, os Estados são levados a alcançar um certo resultado e são
influenciados a produzir uma ordem.
Para Raymond Aron, o estadista estaria cometendo uma falta à moralidade
de sua profissão e comprometendo a segurança das pessoas que representa se não
equilibrar a força dos Estados insatisfeitos ou revolucionários 9:
o estadista não deve esquecer que uma ordem internacional só se mantém se for apoiada por forças capazes de equilibrar as forças dos Estados insatisfeitos ou revolucionários. Se não levar em conta essas forças, cometerá uma falta, falhando com relação a suas obrigações, ou seja, à moralidade de sua profissão e sua vocação. Cometerá uma falta e também um erro, comprometendo a segurança das pessoas e dos valores cujo destino lhe foi confiado (Aron, 2002: 737).
Por isso tudo, apesar das críticas, a balança de poder continua a ser um tema
relevante e recorrente no vocabulário de muitos realistas.
1.7. O Interesse Nacional
Outra conseqüência da anarquia internacional é que os Estados visam
otimizar seu interesse nacional, ou seja, maximizar a probabilidade de que
alcançarão os objetivos estabelecidos, o que às vezes pode exigir o uso da força
(Kauppi e Viotti, 1998: 56). Cada Estado define, então, seus próprios objetivos como
alta-prioridade, ou "high politics", geralmente assuntos de segurança nacional, e
baixa-prioridade, ou "low politics", como comércio, meio ambiente, saúde, finanças,
desvalorização cambial, etc (Ibidem: 56).
Hedley Bull explica de forma semelhante. Somente o termo "interesse
nacional" em si não nos diz nada a respeito dos objetivos, da conduta, ou das
considerações morais e ideológicas, ou não morais e não ideológicas dos Estados.
Mas "a concepção de interesse nacional, ou interesse do Estado, tem um certo
sentido na situação em que os objetivos nacionais ou do Estado são definidos e
9 Este foi um dos argumentos utilizados por Tony Blair para justificar o apoio da Grã-Bretanha aos Estados Unidos na guerra contra o Iraque (bbc.com, 06/02/2003).
19
aceitos, e o problema em discussão é saber com que meios esses objetivos podem
ser promovidos" (Bull, 1977: 80).
Bull explica ainda que o temor da violência irrestrita, da instabilidade dos
acordos ou da segurança da sua independência ou soberania pode levar os Estados
a perceber seus "interesses comuns". Contudo, já que estes interesses comuns
podem ser vagos, surgem as regras que prescrevem a conduta consistente com os
objetivos comuns, e as instituições, que ajudam a tornar estas regras efetivas (Bull,
1977: 65 -79).
Morgenthau, em seu terceiro princípio do realismo, considera que, enquanto
o conceito de poder varia de acordo com lugar e com o tempo, o conceito de
interesse, que é a busca por mais poder, é objetivo, ou seja, é sempre o mesmo :
"O realismo considera que seu conceito-chave de interesse definido como poder é
uma categoria objetiva com validade universal, mas não estabelece que este
conceito tem um significado fixo" (Morgenthau, 1993: 10). Ou seja, a forma e a
natureza do poder não são fixas, mas variam de acordo com o ambiente em que o
poder é exercido. Já o interesse, não é afetado pelo local e pelo tempo.
Como veremos mais adiante, recentemente, Joseph Nye propôs uma
"redefinição do interesse nacional" dos Estados Unidos. Isto seria necessário para
que a definição dos interesses nacionais possa incorporar também os interesses
globais, e os interesses dos cidadãos americanos, através de pesquisas de opinião
e discussões e debates bem informativos, para que todos possam definir seus
interesses. Somente desta forma o "interesse nacional" poderia corresponder, de
fato, aos interesses da nação (Nye, 2002: 137).
1.8. Moral na política internacional
Uma das afirmações que certamente pode ajudar a entender os conflitos
internacionais é a de que não há uma moral no sistema internacional comparável à
moral do ambiente nacional. Por este motivo, a moral na política internacional
também é outro tema muito debatido entre os realistas, principalmente na tentativa
de dissociar a política internacional da política doméstica.
Conforme visto anteriormente, Carr acreditava na natureza dupla do ser
humano, o egoísta e o colaborador. É por este motivo que, em diversas partes de
seu livro, Carr conclui que "na política, ignorar o poder é tão fatal quanto ignorar a
20
moral" e ainda, "toda ação humana sadia, e, portanto, todo pensamento sadio, deve
estabelecer um equilíbrio entre utopia e realidade, entre livre arbítrio e determinismo"
(Carr,1964:11).
Com esta posição, aparentemente contraditória, Carr estava apenas
reforçando sua crença sobre a moral e a ética no cenário internacional. Segundo ele:
O utópico estabelece um padrão ético que proclama ser independente da política, e procura fazer com que a política adapte-se a ele. O realista não pode aceitar logicamente nenhum valor padrão, exceto o dos fatos [...] A moralidade só pode ser relativa, não universal. A ética tem de ser interpretada em termos de política; e a procura de uma norma ética fora da política está fadada à frustração (Carr,1964: 21).
Desta forma, apesar de questionar o idealismo então em voga, chamando-o
de utopia, Carr tentou conciliar as duas posições, realista e idealista, o que fica
evidente quando ele afirma que "o utópico, que sonha ser possível eliminar a auto-
afirmação da política, e basear um sistema político unicamente na moral, está tão
distante dos fatos quanto o realista, que acredita que o altruísmo seja uma ilusão, e
que toda ação política seja baseada no interesse próprio (Carr,1964: 97).
Morgenthau também escreveu sobre a moralidade no cenário internacional.
Segundo ele, o realismo aceita que as ações políticas podem ter significação moral,
mas somente quando corresponder aos interesses dos agentes políticos, ou seja,
tem mais a ver com prudência do que com ética (Hollis, Smith, 1991: 26). Seu
quarto princípio do realismo diz que "o realismo político sustenta que os princípios
morais universais não podem ser aplicados às ações do Estados a partir de sua
formulação universal abstrata, mas devem ser filtrados com observância das
circunstância concretas de tempo e lugar" (Morgenthau, 1993: 12).
Além disso, Morgenthau nega a existência de um só princípio moral que seja
aplicado a todos os Estados, como o idealismo defendia 10 (Hollis, Smith, 1991: 26).
De acordo com seu quinto princípio do realismo, "o realismo político nega-se a
identificar as aspirações morais de uma nação específica com leis morais que
governam o universo. Assim como distingue entre verdade e opinião, também
distingue entre verdade e idolatria" (Morgenthau, 1993: 13).
10 Neste aspecto, as idéias de Morgenthau remontam as idéias já defendidas por Maquiavel.
21
A intenção de Morgenthau em separar a política internacional da política
doméstica fica evidente em seu sexto e último princípio do realismo quando afirma
que "a diferença entre o realismo político e as outras escolas de pensamento é real
e profunda." Por este motivo afirma que "o realista político defende sua autonomia
da esfera política" (Ibidem: 13). Além disso afirma:
"Política doméstica e internacional são duas manifestações diferentes do mesmo fenômeno: a luta pelo poder. Suas manifestações diferem-se porque a moral, política e condições sociais prevalecentes em cada um são diferentes entre si [...] Uniformidade cultural, unificação tecnológica, pressão externa, e principalmente uma organização política hierárquica combinam-se para fazer a sociedade nacional um conjunto integrado separado de outras nações nacionais. Consequentemente, a ordem política doméstica é mais estável e menos sujeita a mudanças violentas do que a ordem internacional (Ibidem: 50).
Raymond Aron também não acredita em uma moral universal porque os
sistema internacional tem uma natureza peculiar, e da mesma forma que acata às
normas, também tolera o recurso a força. Para Aron, "os Estados compõem uma
sociedade de um tipo único, que impõe normas a seus membros e, no entanto,
tolera o recurso à força armada". Por este motivo, afirma que a moral da ação
internacional será também equívoca enquanto "a sociedade internacional conservar
este caráter misto (e, num certo sentido, contraditório)" (Aron, 2002: 736).
Ele acredita que a guerra faz parte da moralidade internacional, já que é o
único meio de sanção para a sociedade internacional. Ou seja, "a moral da luta terá
um significado enquanto a guerra for a sanção última nas relações internacionais -
mas jamais oferecerá qualquer perspectiva de paz durável ou de universalidade".
(Aron, 2002: 736).
Aron defende ainda que a moral da população inimiga deve ser atacada
quando a vontade de resistência for de toda a população, justificando, assim, o
ataque a não combatentes. Mas conclui que, apesar de não ser um meio eficiente de
conduzir uma guerra, não é fácil condenar eticamente esta atitude (Aron, 2002: 740).
Hedley Bull que, ao utilizar o modelo de Martin Wight, dividindo as tradições
doutrinárias do sistema de Estados em três categorias, mostra que há, não duas,
mas três maneiras de lidar com a moral no sistema internacional: 1) a hobbesiana,
ou realista; 2) a kantiana, ou universalista; e 3) a grociana, ou internacionalista.
Para a perspectiva hobbesiana, ou realista, o Estado tem a liberdade para
perseguir suas metas com relação aos outros Estados, sem restrições morais ou
22
legais. As únicas regras que poderiam limitar a conduta dos Estados seriam as
regras de prudência e conveniência.
Para a tradição kantiana ou universalista, ao contrário, os Estados são
limitados por imperativos morais da moralidade internacional, e visam assim, o fim
do sistema de Estados, e a implementação de uma sociedade cosmopolita, onde os
vínculos sociais são transnacionais e abrangem todos os seres humanos.
A terceira tradição defende um meio termo entre as duas posições
anteriores. Conhecida como grociana ou internacionalista, as regras e as instituições
impõem limites na conduta do Estados, que não visam somente a guerra, mas não
defende o fim do sistema de Estados. Os Estados soberanos continuam a ser o
principal ator do sistema internacional, não os indivíduos, mas devem obedecer não
somente às regras da prudência e conveniência, mas também respeitar as leis e a
moralidade (Bull, 1977: 33 - 35).
Bull parece se posicionar, então, a favor da terceira tradição, já que, como já
foi mencionado, defende a existência de "regras" e "instituições" para a manutenção
da ordem internacional.
1.9. A guerra para os realistas clássicos
E, finalmente, o último tema que abordaremos neste capítulo é a guerra em si,
como abordada por alguns dos teóricos já mencionados anteriormente. De Carr a
Hedley Bull, vários pensadores tiveram visões peculiares sobre a guerra como um
instrumento da política internacional. Como veremos, quase todos concordam com a
importância do recurso à guerra em alguns casos, e só abordam de forma
diferenciada a forma e os limites de como esta guerra deve ser conduzida.
Carr costumava defender que a mudança política não deve ser alcançada
nem com a simples ênfase na moral, nem na ênfase exclusiva à força. Deve haver a
combinação de consentimento e coerção. E como uma mudança pode implicar no
prejuízo dos interesses de um ou mais Estados, não se pode efetuar uma mudança
na política internacional sem a ameaça, ou ameaça potencial, do uso da força, ou
seja, de guerra (Carr,1964: 208-218).
Morgenthau, já que defende que o poder legítimo é mais eficiente do que o
poder ilegítimo, também acredita que a moral deve estar presente mesmo em
tempos de guerra. Por isso, o poder exercido em nome da defesa pessoal ou através
23
das Nações Unidas tem mais chance de vitória do que uma nação agressora que
viola o direito internacional 11 (Morgenthau, 1993: 32).
Mas independentemente da legitimidade, Morgenthau acredita que a razão é
capaz de resolver os conflitos internacionais, assim como resolveu muitos problemas
das ciências naturais.
O conflito entre as nações ocorre devido aos desajustes que surgem da falta de entendimento, e à influencia de paixões políticas. Exceto por ignorância ou emoção, a razão resolveria os conflitos internacionais tão facilmente e racionalmente como resolveu tantos problemas nas ciências naturais (Morgenthau, 1993: 42).
E, além disso, defende que o fundamental para acabar com a guerra é
entender suas causas, o que pode ser uma tarefa difícil, já que estas causas são
originadas na própria natureza humana (Ibidem:45).
Raymond Aron também defendia a utilização da guerra como um meio de
solução de conflitos. Mas, ao invés de responsabilizar somente a natureza humana
como o fez Morgenthau, Aron responsabilizava as diferenças entre as culturas que
interagem entre si (Aron, 2002: 452).
Na Segunda seção do já citado capítulo As raízes da guerra como
instituição, de Paz e guerra entre as nações, Aron inicia analisando três tipos de
violência urbana: rixa ou tumulto, crime ou assassínio, e os distúrbios sociais e
políticos. E chega a concluir que a "sociabilidade não atenua a agressividade
individual, mas, ao contrário, tende a incrementá-la”.
Em relação ao conflito entre pessoas de duas nações diferentes Aron conclui
que "a hostilidade de um grupo com relação aos estrangeiros e aos inimigos é
muitas vezes mais forte do que a de um indivíduo com respeito a um outro" (Aron,
2002: 444). Ou seja, em relação aos conflitos entre as nações, Aron os considera até
mais compreensíveis, já que há menos solidariedade e falta de uma autoridade
legítima nestes casos.
Hedley Bull também dedica um capítulo de um de seus livros, A sociedade
anárquica, à guerra. Distingue a guerra material da guerra legal ou normativa, guerra
11 Este tipo de análise realista explica o fato de os Estados Unidos terem, pelo menos, tentado convencer o Conselho de Segurança das Nações Unidas a apoiar seu ataque ao Iraque. Realistas mais conservadores como Donald Runmsfeld e Paul Wolfowitz são contra esta atitude e a consideram uma perda de tempo. Collin Powell foi quem acabou convencendo George Bush a tentar legitimar o ataque, primeiramente ao Afeganistão e só depois ao Iraque, através do Conselho de Segurança.
24
racional da guerra cega ou impulsiva e explica que as funções da guerra podem ser
consideradas a partir de três perspectivas: do Estado, do sistema de Estados e da
sociedade de Estados (Bull, 1977: 211-213).
Mas o fundamental para entender o posicionamento de Bull acerca da
guerra está na seção “A guerra na atualidade", deste mesmo capítulo. Bull
argumenta que apesar do advento da era nuclear, a guerra não deixou de ter sua
utilidade política. Um dos motivos é que nem todos os conflitos internacionais
envolvem as potências nucleares. Além disso, a posse de armas nucleares não
impede que os Estados utilizem a força militar que dispõem. Um outro motivo é que
quando uma potência nuclear entra em conflito com um Estado que não dispõe de
armas nuclear, o custo moral e político do uso de armas nucleares pode não ser
vantajoso. Ou seja, as repercussões negativas na opinião pública farão o uso de
armas nucleares muito menos provável (Bull, 1977: 217).
Portanto, apesar dos impasses advindos da sociedade, Bull defende a
utilidade da guerra como instrumento político. Devido às limitações do atual recurso
à força, Bull ainda encontra duas saídas: o emprego limitado da força, ou seja,
ataques nucleares estratégicos e restritos ao campo de batalha e alvos militares,
além da guerra convencional; uma outra saída seria a simples ameaça de uso das
armas nucleares (Bull, 1977: 220). Bull conclui que, apesar de a guerra ainda ser um
recurso justificável para produzir mudanças no cenário internacional, a limitação na
condução das guerras é um aspecto positivo atribuído à sociedade internacional. E
Bull parece prever ainda que, a guerra praticada por indivíduos que não representam
um Estado, como os terroristas, aumenta a incidência de guerras. Mas defende que
a sociedade internacional não deve permitir que essas novas formas de guerra
permaneçam fora do âmbito das regras dos Estados 12 (Bull, 1977: 227).
Em relação a um impasse gerado quando duas potências nucleares se
enfrentam, como no caso dos Estados Unidos e a União Soviética durante a guerra
fria, Bull afirma que alguns fatores podem tornar este impasse instável. Um deles
seria o desenvolvimento tecnológico de defesa das cidades e da população de uma
12 Como veremos no próximo capítulo, este foi justamente o argumento de George W. Bush para justificar a necessidade de ataques preventivos. Segundo ele, “novas ameaças exigem um novo pensamento. Intimidação não significa nada contra redes terroristas sombrias, sem nação nem cidadãos para defender. " (Bush, Junho de 2002, West Point - Correio Braziliense: Brasília, 30 de março de 2003).
25
das partes envolvidas, ou um ataque preventivo contra o inimigo, que os desarme
(Bull, 1977: 220).
Ou seja, todos os teóricos mencionados acima concordam que a guerra
pode ser um instrumento útil e necessário da política internacional. Só há desacordo
na forma em que as guerras devem ser conduzidas.
Vimos, ao longo deste capítulo, que os realistas da teoria das Relações
Internacionais, apesar de concordarem com as principais premissas e com a
definição dos atores e temas mais importantes para a análise do sistema
internacional, descordam em muitos aspectos importantes, como a metodologia
utilizada, o nível de análise escolhido e a habilidade dos estadistas de influenciarem
o cenário internacional, devido à existência de uma anarquia internacional, por
exemplo (Viotti, Kauppi, 1999: 88).
Portanto, como nos lembra Stefano Guzzini, "há tantas teorias realistas
quanto há teóricos realistas" (Guzzini, 1998: viii). Ao invés de definir o realismo das
Relações Internacionais como uma teoria estática, é mais adequado defini-lo como
uma tradição teórica, um grupo de debates, que evolui e adapta-se às condições
mais atuais.
Passaremos agora à análise de como os republicanos norte-americanos
abordam a questão da guerra e segurança nacional conforme estabelecido no
documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos", de setembro
de 2002. Também serão analisados os discursos de George Bush, e outros
republicanos, aos norte-americanos e à comunidade internacional.
26
2. A DOUTRINA BUSH
Para que possamos verificar o que mudou nos padrões de política externa
dos Estados Unidos em relação à antiga tendência, é essencial analisar a nova
"Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América". Este
documento consolidou o que é conhecido como a Doutrina Bush. Portanto, nesta
parte analisaremos tanto o próprio documento escrito por George W. Bush, como
também as críticas que vem sendo feitas pela mídia internacional e por alguns
especialistas no assunto.
Noberto Bobbio, no seu Dicionário de Política, explicou o sentido peculiar
que o termo Doutrina assume na política, especialmente nos Estados Unidos.
Segundo ele, Doutrina pode ser definida como:
um conjunto de teorias, noções e princípios, coordenados entre eles organicamente, que constituem o fundamento de uma ciência, de uma filosofia, de uma religião, etc., ou então que são relativos a um determinado problema e , portanto, passíveis de ser ensinados. [...] Em política, o termo assume significado particular, especialmente na linguagem diplomática americana, quando designa a enunciação formal da parte do chefe do Estado, ou de um homem político, responsável por uma linha política que seu país terá que seguir numa determinada área das relações internacionais (ex. Doutrina Monroe, de 1823, que se resume na fórmula "A América para os Americanos", e enuncia que a Europa não deve intervir nos assuntos americanos; [...] a Doutrina Truman, de 1947, que trata das relações entre a Europa Ocidental e o bloco soviético) (Bobbio, 1983: 381 - 382).
A Doutrina Bush foi definida pelo correspondente da Folha de S. Paulo,
Márcio Aith, como "o conjunto de princípios e métodos adotados pelo presidente
George W. Bush para proteger os EUA depois dos atentados de 11 de setembro,
consolidar a hegemonia americana no mundo e perpetuá-la indefinidamente" (Aith,
29/10/2002).
Márcio Aith argumenta ainda que a nova estratégia parte do pressuposto de
que os EUA, única superpotência global, têm o papel de defender os "princípios
universais" de liberdade, justiça, dignidade humana, democracia, livre comércio e
deve proteger ainda o "mundo civilizado" de "terroristas" que vivem nas sombras e
planejam ataques "iminentes" com armas de destruição em massa (Ibidem).
Além disso, Aith lembra-nos ainda que "doutrinas não são ações isoladas,
mas diretrizes feitas para orientar políticas por períodos que, supõe-se, sejam mais
27
longos que dias, semanas e meses. Normalmente, coube a historiadores, e não a
governos, definir quais idéias e ações tiveram consistência ou duração suficientes
para serem chamadas de doutrinas". Foi o caso da Doutrina Roosevelt e da Doutrina
Truman, por exemplo, que foram batizadas como tais "anos depois, pelas mãos de
observadores independentes”. Já a expressão Doutrina Bush, foi mencionada pela
primeira vez pela assessora de segurança nacional da Casa Branca, Condoleezza
Rice, durante conversa com jornalistas, em novembro de 2001(Ibidem).
Ainda segundo Aith, essa distinção, além de demonstrar a rapidez com a
qual, atualmente, as idéias são definidas como doutrinas, indica a intenção de Bush
de projetar suas idéias no futuro, não deixando que morram com o fim de sua
administração. O que não significa que a Doutrina Bush não mereça ser chamada de
doutrina13. "Ao contrário, ela mudou radicalmente o parâmetro da política externa
dos EUA, substituindo os princípios da contenção e da dissuasão, típicos da
Doutrina Truman, pela possibilidade de ataques preventivos" (Ibidem).
Stephen Ambrose aborda as questões de "por que é tão difícil para
presidentes modernos estabelecerem precedentes ou doutrinas que tenham uma
certa permanência? E por que os Estados Unidos não conseguem manter uma linha
de ação em sua política externa?" (Ambrose, 1988: 355 -356).
Em relação à primeira pergunta, Ambrose conclui que um dos motivos é que
Roosevelt e Truman "vieram primeiro", ou seja, suas doutrinas pavimentaram o
caminho e tornaram-se políticas permanentes. Outros presidentes norte-americanos
tentaram estabelecer doutrinas, mas foram em áreas mais específicas. Por exemplo,
a Doutrina Eisenhower referia-se ao Oriente Médio, a Doutrina Nixon, ao sudoeste
da Ásia, a Doutrina Carter referia-se ao Golfo Pérsico, e a Doutrina Reagan, ao
Afeganistão e a Nicarágua (Ibidem: 355).
Já o motivo das dificuldades de mudanças nas linhas de ação deve-se ao
fato do legislativo dos Estados Unidos ter amplos poderes para controlar a política
externa americana. Além disso, a possibilidade de investigações pelo poder
legislativo é resultado do padrão eleitoral que vem ocorrendo desde a Segunda
Guerra Mundial. Ou seja, enquanto nas dez eleições presidenciais de 1948 à 1986
apenas quatro foram ganhas por presidentes democratas (Truman em 1948,
13 Se a Doutrina Bush será de fato projetada no futuro ou descartada pelo próximo presidente norte-americano ainda é um fato incerto.
28
Kennedy em 1961, Johnson em 1964 e Carter em 1976), e seis por republicanos, no
Congresso dos Estados Unidos os democratas são "imbatíveis". Ainda segundo
Ambrose, os republicanos não controlaram o Congresso desde 1954. O resultado foi
quase sempre um presidente republicano e um Congresso democrata, o que explica
a tensão entre o Executivo e o Legislativo nos Estados Unidos (Ambrose, 1988:356).
Mas nas eleições de meio de mandato para o Congresso dos Estados
Unidos de 5 de novembro de 2002, George W. Bush liderou os republicanos na
conquista da maioria no Senado e no aumento de sua bancada na Câmara dos
Deputados. Conforme muito comentada na mídia internacional, a vitória dos
republicanos no Congresso significa que Bush é o terceiro presidente em um século
a conseguir resultados vantajosos nas eleições parlamentares, depois de Franklin
Roosevelt, em 1934, e Bill Clinton, em 1998.
Nesta situação, George Bush assumiu o controle de todos os meios
necessários para levar adiante a sua agenda conservadora. Apesar disto, a nova
Estratégia de Segurança Nacional adotada pelos Estados Unidos em setembro de
2002 tem causado muita polêmica. Por um lado, analistas acusam o governo norte-
americano de serem "arrogantes", "imperialistas", e de querer acabar com a
diplomacia e redefinir o conceito de soberania nacional. Por outro, há a noção de
que a simples contenção e intimidação, estratégias utilizadas contra o comunismo
durante a guerra fria, não significam nada contra as "redes terroristas", muitas vezes
de ímpeto suicida, que "não tem nação nem cidadãos a defender". Por este motivo,
as "novas ameaças" exigiriam uma nova estratégia.
Diante destas duas visões antagônicas, pode-se fazer uma análise crítica
dos principais aspectos da nova estratégia, especular sobre as conseqüências e
sobre os possíveis riscos de uma estratégia como esta. Por isso, neste capítulo
analisaremos as metas da nova "doutrina", as ações previstas para que estas metas
sejam alcançadas, e o que está por trás do discurso político, ou seja, as prováveis
intenções do governo americano, muitas vezes evidenciadas nas contradições
presentes nos argumentos de George W. Bush.
29
2.1. A estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos
George W. Bush anunciou, logo na introdução do documento, escrito em 17
de setembro de 2002 e enviado ao Congresso dos Estados Unidos em 20 de
setembro do mesmo ano, que os Estados Unidos aceitam a responsabilidade de
liderar uma política que leve a "liberdade, a democracia e a livre iniciativa a todos os
países do mundo" (Bush, 2002: vi). A premissa é a de que estes valores são "certos
e verdadeiros para todas as pessoas, em todas as sociedades" e devem ser
protegidos por todos (Ibidem: iv).
Além disso, os Estados Unidos assumem a posição de "incomparável força
militar e grande influência política e econômica" (Ibidem: iv). Segundo Condoleezza
Rice, assessora de Segurança Nacional do presidente Bush, tal franqueza vem
sendo criticada por não ser considerada política. Porém, segundo ela, a clareza da
estratégia é uma virtude, já que "afastar a competição militar pode prevenir
potenciais conflitos e onerosas corridas às armas globais 14" (Rice, 2002: 65).
Mas, apesar da nova doutrina também incluir aspectos econômicos e
sociais, a questão relativa à luta contra o terrorismo parece ter sido muito mais
enfatizada por Bush do que os outros aspectos, e é o que mais tem causado
polêmica. Celso Amorim, por exemplo, observou que a importância das instituições
multilaterais, como a Organização das Nações Unidas, foi mencionada apenas uma
vez no documento inteiro, na sétima página, juntamente com as organizações não-
governamentais, em menção ao trabalho de reconstrução do Afeganistão (Amorin,
2003: 58).
Noam Chomsky, em O que o Tio Sam realmente quer, além de refletir sobre
a questão do discurso político dos Estados Unidos desde a Guerra Fria, também
aborda a questão do papel da ONU na Guerra do Golfo. Segundo ele, para
entendermos porque a ONU agiu tão prontamente quando o Iraque invadiu o Kuwait
é preciso levantar "o véu da propaganda", já que "a aliança entre a mídia e o
governo norte-americano tinha uma resposta padrão" (Chomsky, 1992: 77).
A primeira “resposta padrão" era a de que "a América está onde sempre
esteve - contra a agressão, contra todos aqueles que usam a força para substituir o
14 Veremos mais adiante, que este argumento contraria a teoria do dilema de segurança, e que poderá, ao contrário do que foi afirmado por Rice, provocar justamente um aumento da sensação de insegurança em outros países, levando a um maior investimento em armas de destruição em massa.
30
império da lei". Segundo Chomsky, este foi o argumento do então presidente George
H. Bush, pai de George W. Bush, justamente o mesmo "invasor do Panamá e o
único chefe de Estado condenado pela Corte Internacional pelo uso ilegal da força"
contra a Nicarágua (Ibidem:77).
A segunda resposta foi a de que "finalmente a ONU estava funcionando
como fora planejada", o que era "impossível antes do fim da Guerra Fria, quando a
ONU se tornou ineficiente graças à dissidência da União Soviética e à estridente
retórica antiocidental do Terceiro Mundo" (Ibidem:78). No entanto, Chomsky conclui
que o verdadeiro motivo da resposta da ONU à invasão do Iraque "não foi sua brutal
agressão, mas sim por ele ter pisado em falso". Ou seja, não há dúvida de que
Sadam Hussein agiu como um assassino brutal. Porém, ele já era "agressivo" antes
da Guerra do Golfo, quando foi "amigo" e aliado dos Estados Unidos (Ibidem: 78).
E em relação à antiga ineficácia da ONU, Chomsky lembra-nos que na
verdade, " a ONU tem sido bloqueada pelas grandes potências, primeiramente pelos
Estados Unidos - não pela União Soviética ou pelo Terceiro Mundo" (Ibidem: 79).
Isto é, na verdade, "a ONU só foi capaz de responder à agressão iraquiana porque
os Estados Unidos, pela primeira vez, permitiram isso" (Ibidem: 80).
A luta contra o terrorismo não é novidade do governo Bush. Outros
governos, como o de Ronald Reagan, George H. Bush e Bill Clinton, já se
preocupavam com o terrorismo. A novidade agora está na forma como lidar com
estas ameaças, ou seja, de forma preventiva e antecipada, em qualquer lugar do
mundo. Segundo Bush, "a América agirá contra essas ameaças emergentes antes
mesmo de elas estarem totalmente formadas" (Bush, 2002: v).
Além de causar um grande desconforto em vários países, que temem
repentinamente virar alvo da maior potência militar do planeta, este aspecto da
doutrina vem causando desconforto também em setores influentes da opinião
pública americana. Conforme observou Carlos Eduardo Lins da Silva, isto acontece
porque o princípio de que uma pessoa correta jamais inicia uma briga faz parte do
ideário moral coletivo do país. "Reagir a uma agressão com decisão e força é um
procedimento aceitável; dar o primeiro soco, no entanto, é condenável" (Silva, 2003:
53).
Em defesa ao princípio de ataques preventivos, Condoleezza Rice afirma
que "apropriar-se por antecipação não é um conceito novo". E para demonstrar sua
31
posição ideológica, Rice arrisca afirmar que "nunca houve uma exigência moral ou
legal que um país devesse esperar para ser atacado, antes de poder cuidar de suas
ameaças existenciais". Além disso, Rice cita George Shultz que afirma que: "Se há
uma cascavel no quintal, você não espera que ela te ataque, antes de agir em
defesa própria". (Rice, 2002: 64). Só são explica, porém, como saber ao certo se, de
fato, trata-se de uma "cascavel" ou de algo inofensivo. Ou seja, Rice usou uma
metáfora para representar a ameaça gerada por um "Estado inimigo" que possui
armas de destruição em massa. No entanto, no caso do Iraque, por exemplo, tais
armas não foram encontradas durante as inspeções da ONU, e nem mesmo após o
maciço ataque dos Estados Unidos e aliados a este país em abril de 2003. Apesar
das evidências de que o Iraque teve acesso a agentes químicos e biológicos no
passado, não se provou ainda se o Iraque seria de fato uma ameaça aos Estados
Unidos ou não 15. Ao considerar a gravidade se suas afirmações e as possíveis
conseqüências, caso outros países resolvam fazer o mesmo, Rice adverte que esta
abordagem requer muita cautela. Ou seja, só se deve agir depois de esgotados
todos os outros meios, inclusive a diplomacia (Rice, 2002: 65).
Ainda na introdução do documento, George Bush também tenta amenizar a
referida polêmica ao escrever que os Estados Unidos não usarão de "força para
pressionar em favor de vantagens unilaterais". Seu interesse é na verdade "criar um
equilíbrio de poder que favoreça a liberdade humana" (Bush, 2002: iii). Em seguida,
na primeira página do documento, Bush estabelece as metas dos Estados Unidos,
que incluem: "liberdade política e econômica, relações pacíficas com outros estados
e respeito pela dignidade humana".
Para atingir estas metas, Bush apresenta seu plano de ação, composto de
oito partes: 1. defender as aspirações de dignidade humana; 2. fortalecer alianças
para derrotar "o terrorismo global" e trabalhar para evitar ataques contra os EUA e
"seus amigos"; 3. trabalhar com os demais países para neutralizar conflitos regionais
armados; 4. evitar que inimigos ameacem aos EUA, seus aliados e amigos com
armas de destruição de massa; 5. desencadear uma nova era de "crescimento
econômico global" através de "mercados livres e do livre-comércio"; 6. expandir o
círculo do desenvolvimento através da "abertura das sociedades" e da construção da
15 A aquisição de agentes químicos e biológicos pelo governo iraquiano será tratada no próximo capítulo.
32
infra-estrutura da "democracia"; 7. desenvolver agendas visando a "ação conjunta
com outros grandes centros de poder global"; e 8.transformar as instituições de
segurança nacional americanas para que elas possam fazer frente aos desafios e às
oportunidades do século XXI (Bush, 2002: 1 - 2).
Conforme a análise de Condoleezza Rice, esta estratégia é composta de
três pilares: 1. o combate ao terrorismo e a regimes ilegais; 2. a extensão dos
benefícios da liberdade e da prosperidade ao mundo inteiro; e 3. fomento das boas
relações entre as grandes potências mundiais (Rice, 2002: 63). Em termos de
simplificação, analisaremos a Doutrina Bush a partir de dois pilares. Um que inclui
todas as estratégias voltadas para a segurança e o combate ao terrorismo. Outro,
que visa as ações econômicas e sociais, ou seja, "em benefício da liberdade e
prosperidade em todo o mundo". São quatro estratégias para cada um destes
pilares. Em seguida, veremos as conseqüências destas políticas para o sistema
internacional, e os possíveis riscos que esta nova estratégia norte-americana poderá
acarretar aos Estados Unidos e ao resto do mundo.
2.2. O combate ao terrorismo e a regimes ilegais
Esta meta é certamente a mais enfatizada no documento inteiro. Cerca de
quatro das oito ações previstas referem-se ao combate ao terrorismo, ainda que
indiretamente. Mas as três estratégias que visam diretamente combater o terrorismo
são: "Fortalecer alianças para derrotar o terrorismo global e trabalhar para evitar
ataques contra nós mesmos e contra nossos amigos; evitar que nossos inimigos
ameacem a nós, a nossos aliados e a nossos amigos com armas de destruição de
massa; e transformar as instituições americanas de segurança nacional para que
elas possam fazer frente aos desafios e às oportunidades do século XXI" (Bush,
2002: vii).
Na estratégia que visa fortalecer alianças para derrotar o terrorismo global e
trabalhar para evitar ataques contra os EUA e seus amigos, Bush, define o
terrorismo como "a violência premeditada, com motivos políticos, perpetrada contra
inocentes"(Bush, 2002: 5). Noam Chomsky lembra-nos, em seu livro 11 de
setembro, que utilizar-se da expressão "guerra contra o terrorismo", além de ser
extremamente vago, não passa de simples propaganda. Isso porque, se as
potências ocidentais assumissem suas próprias definições de terrorismo, os Estados
33
Unidos seriam considerados um Estado líder do terrorismo, assim como seus
principais aliados (Chomsky, 2002: 17).
Mesmo assim, Bush enfatiza a necessidade de uma ação contínua, de
alcance global, que deve estar voltada não somente contra as redes terroristas, mas
também contra qualquer Estado que abrigue ou patrocine o terrorismo, ou pretenda
obter acesso ou usar armas de destruição de massa. Para isto, os Estados Unidos
visam desorganizar o financiamento do terrorismo, através do bloqueio de verbas,
congelamento de bens, negando acesso de terroristas ao sistema financeiro
internacional e evitando o movimento de bens de propriedade de terroristas, até
mesmo através de redes financeiras alternativas (Bush, 2002: 6).
É também nesta seção que Bush explica que, se necessário, serão feitos
ataques preventivos. Segundo ele, os Estados Unidos não hesitarão em "agir
sozinhos, se necessário, para exercer nosso direito de autodefesa, agindo de forma
preventiva contra esses terroristas, para evitar que eles causem danos a nosso povo
e a nosso país" (Ibidem: 6). Ou seja, se necessário, a doutrina reserva aos EUA a
prerrogativa de lançar ataques preventivos contra países ou grupos terroristas antes
que eles ameacem interesses americanos.
Bush parece estar reiterando a máxima de Maquiavel de que na política "é
melhor ser temido do que ser amado" 16. Neste sentido, Bush articula que, embora
reconheça que a "melhor defesa seja um bom ataque", os Estados Unidos também
estarão "fortalecendo a segurança da pátria americana para evitar ataques" e
proteger-se contra eles. Para fortalecer a segurança interna dos Estados Unidos,
Bush explica que será feita "a maior reorganização governamental desde o governo
Truman". Por isso houve a criação do Conselho de Segurança Nacional e do
Departamento de Defesa (Ibidem: 6).
Bush dedica ainda duas outras estratégias semelhantes para combater o
terrorismo. Uma delas é evitar que inimigos ameacem aos EUA, seus aliados e
amigos com armas de destruição de massa (Bush, 2002: 13). Nesta seção, Bush
insiste, repetidas vezes, que com o fim da Guerra Fria, a contenção deixou de ser
16 Ao discutirmos as implicações da política de Bush, veremos que, nos dias de hoje, o Soft Power, conforme elaborado por Joseph Nye, pode ser muito mais eficaz do que a força militar, ou Hard Power, ou do que a arrogância, em diversas ocasiões (Nye, 2002: 9).
34
uma estratégia eficiente, porque "Estados militantes 17 e seus clientes terroristas"
estão dispostos a "colocar em jogo a vida de seu povo e a riqueza de suas nações"
(Ibidem: 14). Por isso, os "Estados Unidos não podem se limitar mais a uma postura
meramente reativa", e agirão preventivamente (Ibidem: 15). Já antecipando as
críticas contra este argumento, Bush enfatiza ainda que a força não deve ser usada
em todos os casos, já que não acredita que a prevenção deva ser utilizada como
pretexto para a agressão. E conclui afirmando que as razões para suas ações "serão
claras, a força empregada será comedida, e a causa será justa" (Ibidem: 15).
Há ainda outra estratégia voltada contra o combate ao terrorismo:
"transformar as instituições americanas de segurança nacional para que elas
possam fazer frente aos desafios e às oportunidades do século XXI" (Bush, 2002:
29). Aqui, Bush explica que todas as instituições de segurança nacional dos Estados
Unidos devem ser transformadas para adaptar-se "às mudanças" dos nossos
tempos. Neste sentido, as inovações nas Forças Armadas devem ser estimuladas
para dotar o presidente americano de uma "maior gama de opções militares", e os
serviços de inteligência devem estar mais integrados com os sistemas de defesa e
de aplicação da lei, além de estarem coordenados com os sistemas de inteligência
de outros países, aliados e amigos (Bush, 2002: 30).
E finalmente, a última estratégia que visa lidar com o terrorismo, porém de
forma indireta, é a de "desenvolver agendas visando a ação conjunta com outros
grandes centros de poder global 18" (Bush, 2002: 25). Aqui, Bush diz precisar dos
"grandes centros de poder global" para fortalecer a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), expandir a filiação a esta instituição às nações
democráticas, fazer com que as nações filiadas à OTAN sejam capazes de contribuir
com o combate em uma coalizão de guerra, e fazer com que as contribuições da
OTAN sejam, de fato, contribuições de força de combate multinacional. Além disso,
os Estados Unidos também pretendem aproveitar-se da tecnologia e das economias
de escala com verbas destinadas à defesa, pois têm a intenção de transformar as
forças militares da OTAN, dominar agressores em potencial, e diminuir a
vulnerabilidade dos Estados Unidos e seus amigos (Bush, 2002: 25).
17 O Iraque e a Coréia do Norte são citados no documento como exemplos de países que adquiriram e testaram armas químicas, biológicas e nucleares. 18 Bush cita os "antigos aliados da Europa e da Ásia", e ainda especifica o relacionamento dos Estados Unidos com a Austrália, Japão e Coréia do Sul.
35
Ou seja, apesar de não especificar que com esta estratégia os Estados
Unidos estarão combatendo o terrorismo, e sim afirmando que a meta aqui é "o
desenvolvimento de uma agenda" visando "a ação conjunta com outros países
desenvolvidos", Bush deixa claro que os seus interesses prevalecem ao interesses
alheios. Portanto, as metas dos "grandes centros de poder global" parecem se
restringir aos assuntos de segurança, combate ao terrorismo e a não proliferação de
armas de destruição em massa.
As intenções de Bush ficam ainda mais claras quando ele afirma que, apesar
de as oportunidades de cooperação com a Rússia, Índia e China serem muito
maiores hoje do que nas últimas décadas, pois estes países dotam de interesses
estratégicos comuns aos Estados Unidos, como o combate ao terrorismo e o
incentivo ao aumento no fluxo de comércio internacional, há ainda pontos de
discordância fundamentais. Segundo Bush, estes países ainda precisam se
comprometer com a não-proliferação das armas de destruição em massa, com o
desenvolvimento da democracia, com a transparência de informações e com a
defesa dos direitos humanos (Ibidem: 27-28).
Bush não faz a mínima questão de disfarçar que "essas são as práticas que
irão sustentar a supremacia de nossos princípios comuns e manter aberto o caminho
do progresso" (Ibidem: 28). São afirmações como estas que vêm causando muita
crítica até mesmo na mídia internacional, além de críticas de intelectuais norte-
americanos. Por exemplo, José Meirelles Passos, correspondente de O Globo em
Washington, citou John Ikenberry, professor de geopolítica e justiça global, que
afirmou que a “Doutrina Bush está servindo basicamente para os EUA criarem uma
“visão neoimperial” com o intuito de atribuir a seu governo “um papel global de
criador de padrões, determinando ameaças, usando a força e administrando justiça”
(Passos:19/05/2003). Veremos outras críticas como estas quando analisarmos as
conseqüências e os riscos desta estratégia de Bush para o resto do mundo. Por
enquanto, resta-nos analisar as quatro estratégias restantes da Doutrina Bush.
36
2.3. Liberdade e prosperidade ao mundo
A primeira estratégia prevista no documento refere-se às aspirações de
dignidade humana (Bush, 2002: 3). Por dignidade humana, Bush tem em mente o
estado de direito, os limites ao poder absoluto do Estado, a liberdade de culto, a
imparcialidade da justiça, o respeito pelas mulheres, a tolerância ética e religiosa e o
respeito pela propriedade privada (Ibidem: 3). Segundo Bush, "os Estados Unidos
devem defender a liberdade e a justiça porque esses princípios são certos e
verdadeiros para todos os povos de todas as partes do mundo". Por este motivo,
Bush deixa claro ainda que as decisões de seu governo quanto à cooperação
internacional, sua ajuda externa e à distribuição de recursos estarão condicionados
ao cumprimento destas metas, já que são "demandas inegociáveis" (Ibidem: 3).
Bush parece não perceber o enorme paradoxo contido em suas afirmações
quando diz coisas do tipo "nenhuma nação é proprietária dessas aspirações e
nenhuma nação está isenta delas" (Ibidem: 3). Certamente, os valores defendidos
por Bush parecem ser de grande importância para todos os seres humanos. Porém,
o que perturba a muitos é a arrogância e a falta de humildade com que Bush
pretende impor estes valores em outras culturas. O editorial do The New York Times,
de 22 de setembro de 2002, por exemplo, traduzido no editorial do Estado de S.
Paulo dois dias depois, chegou a afirmar em relação à Doutrina Bush, que:
Há dois anos, quando era candidato à presidência, George W. Bush propôs que houvesse uma certa humildade no nosso modo de lidar com outras nações. Desde que ele assumiu o poder, tornou-se difícil, muitas vezes, localizar esse sentimento em sua política externa. A exposição mais recente e definitiva de seus pontos de vista, publicada na sexta-feira, reflete uma dose muito maior de modéstia e generosidade do que suas expressões anteriores, mas também contém indisfarçadas afirmações de poderio americano.
Ou seja, em vez de os Estados Unidos tentarem convencer os outros países
através do bom exemplo e causando admiração e inveja, Bush está disposto a
disseminar estes valores à força ou através de uma coerção econômica.
Há uma outra estratégia que, apesar de fazer um apelo para as questões
sociais, lida com o terrorismo de forma indireta (ou seria disfarçada?). É a estratégia
que prevê que os Estados Unidos devem trabalhar conjuntamente com os demais
países para neutralizar conflitos armados regionais (Bush, 2002: 9).
37
Nesta seção, Bush articula que deverá amenizar os conflitos regionais para
"evitar sua escalada explosiva e minimizar o sofrimento humano" (Ibidem: 9).
Defende a criação de um Estado palestino se "os palestinos vierem a abraçar a
democracia e o estado de direito, a enfrentar a corrupção e a rejeitar firmemente o
terror" (Ibidem: 9).
Também pretende agir para enfrentar os conflitos entre Paquistão e Índia, e
os conflitos regionais da América Latina, "resultantes, principalmente, da violência
dos cartéis das drogas e de seus cúmplices" (Ibidem: 10). Bush associa o combate
ao tráfico de drogas com o combate ao terrorismo ao afirmar que "na Colômbia,
reconhecemos a ligação entre grupos terroristas e extremistas, que desafiam a
segurança do Estado, e as atividades de tráfico de drogas, que ajudam a financiar
as operações de tais grupos" (Ibidem: 10). Pelo menos reconhece que é "igualmente
importante" reduzir a demanda por drogas em seu próprio país (Ibidem: 10). Mas
suas intenções em intervir na Colômbia também são óbvias.
Suas intenções estratégicas de combate ao terrorismo também ficam
evidentes quando Bush afirma que a situação da África, "onde promessas e
oportunidades vivem lado a lado com a doença, guerra e pobreza desesperadora",
representa ao mesmo tempo uma ameaça a um dos "valores básicos dos Estados
Unidos - a preservação da dignidade humana - quanto uma ameaça à nossa
prioridade estratégica - combater o terror global" (Ibidem: 10). Ou seja, mais uma
vez, Bush condiciona a ajuda a estes países envolvidos em conflitos regionais ao
combate ao terrorismo, à corrupção, à implementação da democracia, à adoção do
estado de direito e à abertura dos mercados.
As duas próximas estratégias que veremos aqui refletem o interesse de
Bush pelo livre-comércio. A primeira é bem clara: "desencadear uma nova era de
crescimento econômico global através de mercados livres e do livre-comércio"
(Ibidem: 17). Bush diz acreditar que uma economia mundial forte elevará a
prosperidade e a liberdade no mundo, o que pode melhorar sua segurança nacional.
O discurso político de George Bush parece perfeito. Por exemplo, para os
países em desenvolvimento é muito interessante o compromisso assumido por Bush
de ajudar os mercados emergentes a obter acesso a maiores fluxos de capital e a
um menor custo. Além disso, Bush defende reformas que visem à redução da
instabilidade dos mercados financeiros (Ibidem: 18). Sabe-se que a reforma no
38
sistema financeiro internacional é essencial para auxiliar a crise da dívida externa
em muitos países, e que as condicionalidades impostas pelas principais instituições
financeiras internacionais limitam o poder de atuação de muitos governos na
administração de suas políticas internas 19. Para melhorar esta situação, Bush afirma
que continuará "trabalhando juntamente com o FMI no sentido do enxugamento das
condições para a concessão de empréstimos contidas em sua política" (Ibidem: 18).
Já na prática, esta estratégia parece não ser de tão fácil aplicação. Joseph
Stiglitz, economista que já foi chefe do Conselho de Consultores Econômicos do
governo Clinton e economista-chefe e vice-presidente sênior do Banco Mundial, por
exemplo, notou que no cenário internacional, ninguém controla "a elaboração de
políticas, principalmente no Fundo Monetário Internacional". Segundo ele, as
decisões são tomadas com base numa "mistura de ideologia e má economia", onde
os interesses específicos são evidentes. (Stiglitz, 2002: 16).
Uma das causas identificadas por Stiglitz é o problema de "quem fala" em
nome do país no FMI. Ou seja, no FMI, a população é representada pelos ministros
da fazenda e os presidentes dos bancos centrais, que geralmente são "intimamente
ligados à comunidade financeira" e "vêem o mundo através da comunidade
financeira". Portanto, as políticas das instituições financeiras internacionais são
freqüentemente "alinhadas com os interesses comerciais e financeiros dos países
industriais mais avançados" (Stiglitz, 2002:46 - 47).
Stiglitz observou ainda que, nos dias de hoje, "os mercados emergentes não
são forçados a se abrir mediante ameaças militares, mas mediante o poder
econômico, por meio de sanções ou da suspensão da ajuda necessária em tempos
de crise". Ainda segundo Stiglitz, a retórica utilizada pelos Estados Unidos para
impor sua posição é combinada com sua "imagem de superpotência disposta a fazer
valer sua influência para alcançar os próprios interesses especiais" (Stiglitz, 2002: 95
- 96).
19 A bibliografia sobre a reforma do sistema financeiro internacional é ampla. Ver, por exemplo: FIORI, José Luís (1997) "Globalizaçao, hegemonia e império". In.: M.C. Tavares e J.L. Fiori (org.). Poder e dinheiro. Uma economia política da Globalização. Petrópolis: Editora Vozes, pp. 87-147; PLIHON, Dominique (1998) "Desequilíbrios mundiais e a instabilidade financeira: a responsabilidade das políticas liberais". In.: F. Chesnais (coord.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã; GRIFFITH-JONES, Stephany (1998). "A crise financeira do leste asiático". Política Externa, vol.7,n° 3, dezembro; e OCAMPO, José Antônio (1999). La reforma del sistema financiero internacional: un debate en marcha. Santiago, Chile: Fondo de Cultura Económica, caps. 3 e 4.
39
Noam Chomsky, também observou que nos dias de hoje, um controle militar
aberto não seria mais necessário em todos os casos, já que há novas técnicas de
controle disponíveis (Chomsky, 1992: 41). Ou seja, o "Fundo Monetário
Internacional, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro
Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais". Esta
prática faz com que estas instituições exerçam um controle sobre os países que
precisam de seus fundos. É também por este motivo que a retórica da liberalização
dos mercados é tão utilizada. Segundo Chomsky:
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a "liberalização": uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da população, etc. Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das classes dominantes e de investidores estrangeiros ("estabilidade"), além de reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo - a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais bem-sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miseráveis e sofredores (Chomsky, 1992: 41).
Será que desta vez Bush conseguirá sair do simples discurso político?
Igualmente interessante seria a proposta de Bush de "assegurar que as regras de
propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio (OMC) sejam flexíveis
o suficiente para permitir que as nações em desenvolvimento venham a obter o
acesso aos medicamentos de importância mais crítica, (...), como o HIV/AIDS, a
tuberculose e a malária" (Bush, 2002: 19).
Contudo, até pouco tempo atrás a posição dos Estados Unidos em relação à
lei de patentes para os remédios de HIV/AIDS era bem diferente. No Brasil, há muito
se discute que a questão das patentes sobre os medicamentos prejudica pessoas e
países sem condições de arcar com os altos custos dos remédios. A "guerra" pela
flexibilização da lei das patentes foi lançada pelo Brasil, que ameaçou produzir
medicamentos anti-HIV no país, se os laboratórios não baixassem os preços. Outros
países, principalmente os da África e Ásia, passaram a defender a posição brasileira
como uma forma de garantir a saúde dos milhões de contaminados pelo HIV.
Os Estados Unidos, que inicialmente condenaram a postura brasileira, e
entraram com uma queixa contra o artigo 68 da Lei de Patentes Brasileira na OMC,
mudaram de posição, passando a defender uma posição conciliadora na reunião da
OMC no Qatar. O Boletim da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA),
40
escrito por Carlos Passarelli, divulgou uma cronologia sobre o dilema das patentes e
os remédios contra a AIDS:
"em nota conjunta dos governos norte-americano e brasileiro, é declarado o acordo no qual os EUA retiram a queixa contra o Brasil na OMC, sem prejuízo das diferenças de interpretação entre o Brasil e os Estados Unidos sobre a conformidade do artigo 68 da nossa Lei de Patentes com o Acordo TRIPS[...] Isto não significa o fim da luta. Ao contrário, devemos nos manter atentos, pois sabe-se que o governo dos EUA irá tentar fazer valer a sua posição em outras instâncias onde se firmam acordos comerciais.
Stiglitz observa que no caso da AIDS, as empresas farmacêuticas das
nações mais ricas só tiveram que voltar atrás e reduzir seus preços por causa da
grande "indignação internacional". Porém, os problemas em relação ao regime de
propriedade intelectual ainda existem, porque refletem os interesses dos produtores,
não dos usuários, tanto nos países em desenvolvimento, quanto nos países
desenvolvidos (Stiglitz, 2002: 34).
Outro aspecto que causa preocupação e até indignação principalmente nos
países em desenvolvimento é o fato de que, apesar de Bush enfatizar a importância
da abertura de mercados e do livre-comércio, afirma também que irá "ajudar as
indústrias e os trabalhadores dos Estados Unidos a se ajustarem à nova situação"
(Bush, 2002: 19). Ou seja, recorrerá a "salvaguardas de transição" para auxiliar o
setor agrícola e o setor siderúrgico norte-americano (Ibidem: 19).
Ao sugerir que "essas salvaguardas contribuem para assegurar que os
benefícios do livre-comércio não aconteçam em detrimento dos trabalhadores
americanos", Bush parece afirmar que os trabalhadores dos Estados Unidos são
mais importantes e relevantes do que os trabalhadores do resto do mundo que serão
prejudicados com sua "assistência". Ou seja, já que ele passa grande parte do
documento defendendo o livre-comércio e a abertura de mercados, a simples
sugestão de que irá ajudar seus trabalhadores a "se adaptarem às transformações e
ao dinamismo dos mercados abertos" desconsidera os prejuízos que esta medida
pode causar aos trabalhadores destes setores no restante do mundo, inclusive no
Brasil.
Noam Chomsky aborda a questão de como o livre comércio é apenas um
"bom termo para ser utilizado nos departamentos de economia e em editoriais de
jornais, mas ninguém do mundo empresarial, nem do governo, leva a sério essa
doutrina". (Chomsky, 1992: 17).
41
Além disso, Chomsky também advertiu quanto ao fato de que:
"os setores da economia americana que podem competir internacionalmente são, principalmente, aqueles subvencionados pelo governo: a agricultura intensiva, em termos de capital (a agroempresa, como é chamada), a indústria de alta tecnologia, a indústria farmacêutica, a indústria biotecnológica, etc." (Chomsky, 1992: 17).
Joseph Stiglitz também observou a mesma tendência. Segundo ele, "o
Ocidente forçou a liberalização do comércio para os produtos que exportava, mas,
ao mesmo tempo, continuou a proteger aqueles setores nos quais a concorrência
dos países em desenvolvimento poderia representar uma ameaça à sua economia".
Por isso há uma hipocrisia nos argumentos daqueles que defendem tal liberalização
(Stiglitz, 2002: 93).
E a última estratégia pendente de análise é a que visa "expandir o círculo do
desenvolvimento através da abertura das sociedades e da construção da infra-
estrutura da democracia" (Bush, 2002; 21). Aqui, Bush aborda diversas questões,
que vão desde os recursos para a assistência ao desenvolvimento até a melhoria na
saúde pública e na educação nos países mais necessitados.
Seu objetivo aqui é que os recursos fornecidos a estes países sejam
utilizados de forma mais eficiente, e destinados a projetos "cujos governos
administram com justiça, investem em seu povo e incentivam a liberdade
econômica" (Ibidem, 2002: 21 - 22).
Segundo ele, a assistência para o desenvolvimento concedida em décadas
não conseguiu impulsionar o crescimento econômico dos países mais pobres, e
serviram, na verdade, para "sustentar políticas falidas" e "perpetuar a miséria". Por
este motivo, Bush defende também que se deve investir apenas em projetos cujos
resultados são mensuráveis e, por isso, uma parte da contribuição dos Estados
Unidos está destinada a um sistema de monitoramento e avaliação dos resultados
reais de desenvolvimento (Ibidem, 2002: 22).
Bush prevê ainda um aumento de 18% na contribuição dos Estados Unidos
para um fundo do Banco Mundial - a Associação de Desenvolvimento Internacional
(ADI) - revertendo a tendência decrescente das contribuições americanas. Além
disso, defende que o total das verbas de assistência ao desenvolvimento deve ser
em forma de doações, e não de empréstimos, para não sobrecarregar países com
dívidas cada vez maiores (Bush, 2002: 22).
42
Em relação à saúde pública, Bush reconhece que o crescimento e o
desenvolvimento nos países afetados por epidemias, como o HIV/AIDS, a malária e
a tuberculose, estarão comprometidos até que estes problemas sejam amenizados
(Bush, 2002: 22). No entanto, sabe-se também que tais epidemias não são as
únicas causas da falta de desenvolvimento e crescimento desses países. Estes
problemas são muitas vezes agravados devido aos cortes impostos pelo FMI nas
verbas destinadas à saúde, para que estes países possam pagar suas dívidas com
as instituições financeiras internacionais (Stiglitz, 2002: 47).
Chomsky argumenta que o interesse dos Estados Unidos na "estabilidade"
significa um interesse na "segurança para as classes dominantes e liberdade para
as empresas estrangeiras". Se isso for possível com a democracia, tudo bem. "Se
não, a ameaça à "estabilidade causada pelo bom exemplo tem de ser destruída,
antes que o vírus infecte os outros" (Chomsky,1992: 33).
A liberalização do mercado de capitais também foi alvo de análise de Joseph
Stiglitz. Segundo ele, os países da Europa esperaram até a década de 1970 para
acabar com os controles no mercado de capitais. No entanto, os países em
desenvolvimento foram encorajados a realizar essa missão rapidamente (Stiglitz,
2002: 93). Por isso, é preciso prestar muita atenção nos discursos políticos.
Stiglitz comenta também que o argumento dos defensores da liberalização
do mercado de capitais foi que "a liberalização otimizaria a estabilidade,
diversificando as fontes de financiamento". Porém, os economistas do FMI deveriam
ter a "obrigação de saber que os banqueiros preferem emprestar dinheiro àqueles
que não precisam" (Stiglitz, 2002: 101). Ou seja, a qualquer sinal de crise os
mesmos financiadores retiram rapidamente seu dinheiro, piorando a crise econômica
dos países em desenvolvimento. Portanto, Stiglitz conclui que as intervenções
governamentais são de grande importância. Isto é, a liberalização do comércio deve
ser gradual, em sintonia com as necessidades da população, para que garanta a
criação de emprego e não aumente o desemprego. A liberalização do mercado de
capitais também deve ser acompanhada de regulamentação apropriada para que
não gere instabilidade econômica.
Para atenuar estes problemas da Globalização financeira a democracia deve
se referir à uma sociedade em que a maior parte da população possa participar da
direção de seus interesses. E não se referir a um "sistema no qual as decisões são
43
tomadas pelos setores da comunidade empresarial e a elite a ela relacionada"
(Chomsky, 1992: 112).
E o mais importante: liberdade significa que os países devem ser capazes
de fazer suas próprias escolhas, sem coerção ou ameaças de sanção. A
transparência de informações deve ocorrer de todas as partes, e não
unilateralmente, para que todos possam tomar decisões sábias, que beneficie a
todos os seus cidadãos. Stiglitz resume esta idéia ao afirmar que "a essência da
liberdade é o direito de fazer uma escolha - e de aceitar a responsabilidade que a
acompanha" (Ibidem: 123).
2.4. As conseqüências e os riscos da Doutrina Bush
A Doutrina Bush, desde que foi anunciada, tem sido analisada pela mídia
internacional, além de passada pelo exame minucioso de diversos cientistas
políticos, professores e analistas desta área. John Ikenberry, por exemplo, além de
sugerir que a nova macroestratégia de George W. Bush representa um novo
paradigma, como veremos no próximo capítulo, escreveu sobre os "sete elementos"
e os principais riscos de uma estratégia "imperial”. Outros, como Gilberto Dupas e
Boris Fausto, analisam o conceito de hegemonia, conforme descrito por Antonio
Gramsci e Giovanni Arrighi, para tentar concluir se o atual poderio dos Estados
Unidos corresponde, ou não, a um poder hegemônico.
Ikenberry observou que a nova macroestratégia de George Bush apresenta
sete características (Ikenberry, 2002: 27). Primeiro, Bush assume um compromisso
em manter o mundo unipolarizado, onde os Estados Unidos não têm nenhum
concorrente à altura (Ibidem: 27). Segundo Ikenberry, o objetivo, mencionado pela
primeira vez em um memorando de autoria de Paul Wolfowitz, então secretário-
adjunto da defesa, é de que os Estados Unidos sejam "tão mais poderosos do que
os outros países, que as rivalidades estratégicas e a competição entre as grandes
potências em busca de segurança desaparecerão" (Ibidem: 27 - 28).
Um risco desta estratégia seria que, os Estados Unidos, ao defender seu
poderio unipolar, podem estar superestimando seu poder e correndo o risco de ter
que lidar com reações violentas de outros países. Ikenberry lembra-nos que a
história mostrou que outros impérios caíram quando os demais países se recusaram
a ser dominados por um Estado coercitivo e com grande arrogância (Ibidem: 36). A
44
questão da arrogância do governo Bush também foi mencionada no editorial do
jornal The New York Times, já citado anteriormente neste capítulo, que criticou:
quando essas estratégias belicosas se convertem no tema dominante da conduta americana, a nação corre o risco de afastar de si os amigos e solapar justamente os interesses que Bush procura proteger. Líderes fortes e confiantes não precisam ser líderes arrogantes. Na verdade, a arrogância subverte a liderança eficiente [...] Ao garantir a segurança do país, Bush precisa tomar cuidado para não converter os Estados Unidos em uma fortaleza que inspire a inimizade, em vez de inspirar a inveja ao mundo.
A segunda característica da nova estratégia de Bush seria a percepção de
"novas ameaças globais, pequenos grupos terroristas e Estados maléficos", que
devem ser eliminados, e não mais coibidos. A característica correlata seria, então, a
defesa do uso da força preventiva. Como criticou Ikenberry, "este enfoque, porém,
praticamente esvazia de sentido as normas internacionais de legítima defesa,
consagradas pelo artigo 51 dos Estatutos da ONU". Ikenberry observa ainda que
esta política pode transformar as questões de segurança nacional em mero palpite
ou inferência, "deixando o mundo sem normas bem definidas para justificar o uso da
força" (Ikenberry, 2002, 29).
Ikenberry indica que o governo Bush considerou as armas de destruição em
massa uma prioridade absoluta, sem investir no incentivo, monitoramento e no
efetivo cumprimento de compromissos de não-proliferação (Ibidem: 34). Contudo, a
política de ataques preventivos poderá causar não somente uma reação política
interna ao intervencionismo norte-americano, mas também gera a possibilidade de
que outros países façam o mesmo (Ibidem: 34). Conforme abordado no primeiro
capítulo, a teoria das Relações Internacionais antecipa que o dilema de segurança
levaria os Estados mais hostis a pretender investir em armas de destruição em
massa, um paradoxo que seria agravado pela "macroestratégia imperial" dos
Estados Unidos.
Um outro problema enunciado por Ikenberry, seria que uma política de
ataques preventivos exigiria justamente uma formação de coalizões entre Estados e
agências multilaterais, para lidar com os altos custos de reconstrução e com a
manutenção da paz no Estados derrotados. Porém, há o risco de que os Estados
que não concordarem com a estratégia de ataques preventivos passem a restringir
sua cooperação com os Estados Unidos (Ibidem: 34 - 35).
45
Em relação a este risco, a guerra contra o Iraque em 2003 mostrou que os
Estados Unidos estão dispostos a lidar com essa possibilidade sozinhos, e
descartaram a atuação das Nações Unidas na reorganização política do Iraque.
Porém, apenas alguns meses depois da deposição de Saddam Hussein, já podemos
evidenciar diversos protestos de iraquianos contra esta atitude. Por isso, esta
estratégia ainda pode estar ameaçada de fracasso.
Além disso, a cooperação de outros Estados é vital não somente na luta
contra o terrorismo, mas também é essencial em outros aspectos, como para a
liberalização comercial, estabilização financeira, proteção ambiental, coibição do
crime organizado transnacional, etc. Ou seja, cientes da interdependência, outros
Estados poderão utilizar a restrição da cooperação em diversas áreas como
ferramenta política contra os Estados Unidos (Ikenberry, 2002: 35).
Outra característica da nova doutrina de Bush seria o resultado de uma
política de ataques preventivos: a modificação dos termos da soberania. A premissa
é a de que como os terroristas não respeitam as fronteiras, os Estados Unidos
também não devem fazê-lo (Ibidem: 29 - 30).
Conforme o próprio presidente Bush confirmou, ao final da nova Estratégia
de Segurança Nacional dos Estados Unidos, "atualmente, a distinção entre assuntos
internos e externos vem diminuindo. Num mundo globalizado, fatos ocorridos além
das fronteiras americanas têm maior impacto dentro delas" (Bush, 2002: 37).
Alem disso, Ikenberry faz uma citação de Richard Haas, Diretor do
Planejamento de Estado dos Estados Unidos, que afirma que os "limites da
soberania" formam o novo princípio do governo Bush. Segundo Hass, "a soberania
implica obrigações", como a de "não massacrar seu próprio povo e não apoiar o
terrorismo". Logo, os governos que não cumprem estas obrigações renunciam as
vantagens da soberania (Apud. Ikenberry, 2002: 30).
Ikenberry demonstra que esta "remodelagem da soberania é um paradoxo",
porque da mesma forma que um Estado precisa ser capaz de garantir o
cumprimento de "suas obrigações" dentro de seu território, perde sua soberania
caso deixe de agir como os outros "Estados respeitáveis e cumpridores da lei"
esperam que ele aja (Ikenberry, 2002: 30- 31).
A quinta característica da nova estratégia, tal como apresentada por
Ikenberry, refere-se a depreciação geral de normas internacionais, tratados e
46
parceria de segurança, que passaram a ser incômodas aos Estados Unidos. O
repúdio de Bush a tratados como o Protocolo de Kioto e o Tribunal Penal
Internacional são os exemplos lembrados aqui (Ikenberry, 2002: 31).
As intenções de Bush neste respeito estão expressas na última página da
nova estratégia, quando Bush afirma que não permitirá que seus "esforços para
honrar os compromissos de segurança global e para proteger os americanos sejam
prejudicados por possíveis investigações, inquéritos ou processos do Tribunal Penal
Internacional (TPI)". E ainda afirma que trabalhará "conjuntamente com outras
nações" para evitar obstáculos a suas operações militares e à sua "cooperação,
através de mecanismos tais como acordos bilaterais e multilaterais, que irão
proteger o público americano do TPI" (Bush, 2002: 31).
Como bem observou Joseph Nye, Bush parece não perceber que atitudes
como a recusa em negociar o Protocolo de Kioto e o TPI, pode resultar em uma
reação externa de frustração e raiva, que pode prejudicar o "soft power" dos Estados
Unidos. Nye concorda que o TPI tem problemas e não poderá proteger os
americanos de promotores superzelosos encorajados por ONGs hostis. No entanto,
seria uma política muito melhor ajudar a reformulação dos procedimentos do TPI, do
que bruscamente rejeitar sua existência, ou simplesmente apoiar uma jurisdição
universal que esteja fora de controle (Nye, 2002: 160).
Ikenberry também enumera alguns riscos a esta "macroestratégia imperial'
dos Estados Unidos. Segundo ele, um poder que atua sem limites e sem
legitimidade enfrentará uma hostilidade no sistema internacional, dificultando a
realização de seus próprios interesses (Ikenberry, 2002: 33). Ou seja, o poder dos
Estados Unidos seria mais aceitável se o seu papel fosse exercido juntamente com
as estruturas multinacionais e alianças. Mas o que vem acontecendo é exatamente o
contrário - ”um encolhimento dos mecanismos multilaterais" (Ibidem: 34).
Outra característica da estratégia de Bush, segundo Ikenberry, diz respeito
ao papel assumido pelos Estados Unidos como o único Estado possuidor de crédito
e força para reagir contra terroristas e Estados maléficos (Ibidem; 31). Nem mesmo
coalizões com aliados devem impedir os Estados Unidos de fazer exatamente o que
os republicanos americanos planejarem para o mundo. Ao contrário, como observa
Ikenberry, as operações conjuntas e o uso da força por meio de coalizões são vistas
como um empecilho à eficácia das operações (Ibidem; 31).
47
Apesar de George Bush ter explicitado na nova estratégia de segurança que
os Estados Unidos, no exercício de sua "liderança", irão respeitar os valores, os
juízos e os interesses de seus "amigos e parceiros", afirma também que ainda
assim, estarão "preparados para agir sozinhos", sempre que seus interesses e suas
responsabilidades singulares assim o exigirem (Bush, 2002: 31). Devido a
afirmações como estas, os danos para a diplomacia também são lembrados por
diversos analistas. Em um artigo do The Washington Post intitulado "Doutrina Bush
deixa a diplomacia à deriva", Samuel W. Lewis argumenta que "a teoria de ataques
preventivos dá munição a inimigos e põe aliados em situação constrangedora"
(Lewis, 2001). Segundo ele, para enfrentar as novas ameaças, o predomínio da
autoconfiança do governo Bush, munidos de insuperável poder militar, contrasta com
a necessidade de diplomacia reforçada. Por este motivo, o discurso de força e
sabedoria dos Estados Unidos não ajudará o trabalho dos diplomatas, mas ao
contrário:
A diplomacia freqüentemente tem sucesso graças à persuasão silenciosa que se concentra em obter um resultado, e não em tornar públicas as fraquezas ou concessões da outra parte. [...] Que pena se ele prefere descrever sua abordagem ao mundo de maneiras que tornarão mais difícil para esses aliados apoiar as próprias políticas que desejamos que eles endossem (Lewis, 2001).
Bush afirma que, assim como ele confia nas Forças Armadas, confia também
na diplomacia. Por isso prevê um aumento de verbas para o Departamento de
Estado, para garantir o sucesso da diplomacia americana (Bush, 2002: 30). Porém, o
que ocorre é que Condoleezza Rice e Colin Powell, que deveriam ser, em princípio,
os responsáveis pela estratégia internacional de Bush, continuam a defender a
diplomacia e a cautela na ação preventiva. No entanto, conforme observou Carlos
Eduardo Lins da Silva, as divergências entre Colin Powell e os demais integrantes
do governo Bush já ocorriam há dez anos atrás com muita intensidade (Silva, 2002:
51). Outros analistas também observaram que, na condução da política externa, vêm
prevalecendo as vozes daqueles que atropelam a diplomacia e dão prioridade ao
uso da força bruta, mais especificamente "os três velhos falcões": o vice-presidente
Dick Cheney e a dupla que comanda o Pentágono — o secretário de Defesa, Donald
Rumsfeld, e seu vice, Paul Wolfowitz.
48
E o sétimo e último elemento da doutrina Bush especificado por Ikenberry
relaciona-se ao pouco valor conferido à estabilidade internacional, que não é mais
considerada um fim em si mesmo. Ao invés disso, as tradições do passado, vigentes
durante a guerra fria, como a estratégia realista e liberal, devem ser abandonadas 20.
Além dessas características, alguns analistas observaram que a "posição de
liderança" aclamada pelos próprios Estados Unidos, não corresponde, teoricamente,
a uma posição hegemônica. Segundo Boris Fausto, o conceito de "hegemonia" deve
incluir dois aspectos: o consenso, ou seja, "o reconhecimento pelos dominados de
que a classe dominante, ou com aspiração ao domínio, seja um guia legítimo da
sociedade, dada sua capacidade de direção intelectual e moral"; e a coerção,
"imposta pela força, pela superioridade repressiva". Isto é, assim como o consenso
não pode negar que exista uma coerção, um regime político também não pode
basear-se por muito tempo na simples coerção. Deve haver uma harmonia entre
estes dois componentes da hegemonia. No entanto, Fausto considera que na nova
estratégia dos Estados Unidos o elemento de coerção tem um peso maior do que o
consenso. Segundo ele, isto não significa que a política hegemônica seja
completamente substituída por uma política de pura coerção, mas apenas reforça os
aspectos desta última (Fausto, 2002: 45).
Já Gilberto Dupas, que parte do conceito de hegemonia conforme elaborado
por Giovanni Arrighi, além do conceito elaborado por Antônio Gramsci, entende
hegemonia como "a liderança associada à capacidade de um Estado de se
apresentar como portador de um interesse geral e ser assim percebido pelos
outros". Ou seja, "conduz o sistema de nações a uma direção desejada por ela, mas,
ao fazê-lo, consegue ser percebida como buscando o interesse geral". Caso
contrário, a hegemonia representa, na verdade, uma "tirania", que só pode ser
mantida com muita coerção (Dupas, 2002: 17).
Dupas também escreve sobre o recente papel assumido pelos Estados
Unidos como líder mundial. Para isso, faz uma citação de Hobsbawm, que afirmou
que "a doença ocupacional de uma superpotência é a megalomania"; e "os EUA
terão que aprender as limitações do poder, como os ingleses fizeram no século XIX".
(Apud. Dupas, 2002: 19). Dupas conclui, então, que não se pode ignorar as "virtudes
20 O debate a cerca de como a doutrina Bush afasta-se do discurso realista será feito no próximo capítulo.
49
hegemônicas" de sua maior potência, já que, tão cedo, nenhum outro país poderá
tomar o seu lugar. Porém, a responsabilidade de uma potência hegemônica é
favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendo diferenças, e
mediando crises e confrontos. Para Dupas, "haverá um forte retrocesso" caso os
Estados Unidos não assumam "o papel condizente com seu próprio poder, o que
implica em tolerar as diferenças" (Ibidem: 20).
Por este motivo, além de analisarmos, no próximo capítulo, como a Doutrina
Bush se afasta da tendência de política externa vigente até então, veremos também
o contexto político que os republicanos enfrentaram há dez anos atrás, quando as
primeiras idéias da nova estratégia começaram a surgir.
50
3. DO DISCURSO POLÍTICO À PRÁTICA
O propósito deste capítulo é confrontar a Estratégia de Segurança Nacional
dos Estados Unidos com a perspectiva realista descrita no primeiro capítulo.
Segundo Doyle e Inkenberry, os interesses dos atores no cenário internacional
representam as intenções encontradas nas orientações teóricas, apesar de não
serem restritos a uma única doutrina. As três orientações teóricas tradicionais da
política internacional são o realismo, o liberalismo e o marxismo21 (Doyle, Ikenberry,
1997: 10).
Sabe-se que as duas primeiras tradições teóricas, realismo e liberalismo,
são muito mais comuns nos Estados Unidos, enquanto a terceira encontrou mais
adeptos nos países menos desenvolvidos, principalmente na América Latina e na
África. No primeiro capítulo já analisamos o que é o realismo político para a teoria
das relações internacionais. E para que fique claro o que o realismo político não é,
neste capítulo, examinaremos brevemente as características das duas outras
tradições teóricas. Desta forma, será possível analisar as posições dos formuladores
da estratégia norte-americana, identificando semelhanças e diferenças com as
premissas defendidas apenas pela teoria realista.
Alguns rótulos são evitados pelos formuladores das políticas analisados
aqui, enquanto outros são evocados devido a simples intenção de obter legitimação
política. Ou seja, nem sempre os políticos revelam suas verdadeiras intenções.
Especialmente nos dias de hoje, em que a revolução dos meios de comunicação
possibilita a difusão de informações em tempo real, a preços cada vez mais
acessíveis a um maior número de pessoas. Como a democracia é o regime político
prevalecente na grande maioria dos países do Ocidente, os políticos formulam seus
discursos de modo que representem suas aspirações ideológicas, mas não
prejudiquem sua carreira política com a perda de votos. Por este motivo, devemos ir
além do que é admitido por estas pessoas, e contrastar suas palavras com seus
atos.
21 Estas três tradições também são mencionadas como realismo, pluralismo e estruturalismo - ver, por exemplo, Hollis e Smith, 1991- ou também como realismo, pluralismo e globalismo - por Viotti e Kauppi, 1999. Como veremos, estruturalismo, globalismo e dependentismo, apesar de terem alguns precursores e influências em comum, não são a mesma coisa.
51
O jornalista e doutor em ciências sociais Luis Felipe Miguel, também
observou que, em situação eleitoral, o discurso político é dialógico, isto é, refere-se
aos discursos anteriores e também aos posteriores. Ou seja, sua capacidade de
persuadir dependerá das relações que estabelecer com discursos anteriores, mas
também está sempre pronto para responder as perguntas já esperadas. E para isto,
as questões que ele aborda precisam estar de acordo com as visões hegemônicas
ou do senso comum. A estratégia é a de antecipar e neutralizar possíveis objeções
que podem surgir contra ele. Miguel nota também que esta estratégia é diferente em
regimes não democráticos, quando o discurso assume o formato monológico
(Miguel, 2000: 84-85). Por este motivo, após revisarmos as premissas das três
principais tradições teóricas no cenário internacional, examinaremos o discurso
político dos formuladores Doutrina Bush.
Em seguida, investigaremos o contexto histórico durante a primeira Guerra
do Golfo, que serviu de justificativa para a formulação e implementação de uma nova
estratégia. E, finalmente, faremos uma análise crítica para identificar como a prática
da nova estratégia dos Estados Unidos se compara com a teoria realista abordada
no primeiro capítulo.
3.1. As três tradições teóricas
Conforme já examinado no primeiro capítulo, após a Segunda Guerra
Mundial, alguns teóricos incorporaram o antigo realismo político na teoria de
Relações Internacionais. Vimos que, apesar de haver desacordo em relação às
causas dos conflitos internacionais, à metodologia utilizada e ao nível de análise
escolhido para explicar os fenômenos internacionais (nível individual, do Estado ou
do sistema internacional), os realistas concordam que a guerra é o problema central
das relações internacionais e o Estado é o principal ator do cenário internacional.
Além disso, a macroestratégia de orientação realista adotou os conceitos de
contenção, dissuasão e manutenção da balança de poder, principalmente durante a
Guerra Fria, conforme defendido pela Doutrina Truman.
O liberalismo que voltou em cena após a Segunda Guerra Mundial também
tem raízes mais antigas. Uma delas vem da Inglaterra do século XVII, com os
escritos de John Locke, que defendia o liberalismo político, isto é, um governo de
indivíduos livres com direitos e propriedade privada (Doyle, Ikenberry, 1997: 11).
52
Outra vem da Alemanha do século XVIII, com as idéias de Immanuel Kant, que
concebeu o Estado como um instrumento necessário da liberdade de sujeitos
individuais. Outros colaboradores foram o barão de Montesquieu e os filósofos do
século XIX Jeremy Benthan e John Stuart Mill (Nye, 2003: 5).
Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos planejaram a
reconstrução da economia mundial e adotaram uma estratégia de orientação liberal
(Ikenberry, 2002: 24). Foram criadas instituições internacionais, por exemplo, as
instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) e o
GATT22. Estas estruturas formularam regras para abertura comercial, a defesa da
democracia e a liberalização de mercados de capitais. Segundo Ikenberry, os
objetivos eram geopolíticos, e visavam evitar uma crise semelhante à crise da
década de 1930, "época de blocos regionais, conflitos comerciais e rivalidade
estratégica" (Ibidem: 25).
Segundo Nye, na década de 1970, devido à crescente interdependência
econômica e social que mudava a natureza da política internacional, houve um
ressurgimento da defesa dos princípios do liberalismo (Nye, 2003: 7). Na década de
1980, Ronald Reagan e Margaret Thatcher pregavam a ideologia de livre mercado,
utilizando-se do FMI e Banco Mundial como instrumentos políticos, para impor suas
idéias aos países pobres que precisavam de seus empréstimos (Stiglitz, 2002: 39).
Ikenberry lembra-nos que, na década de 1990, tanto o governo Bush (pai),
quanto a administração Clinton adotaram estratégias liberais através de uma visão
de mundo que não se focalizava, exclusivamente, em ameaças externas nem se
restringia à balança de poder. Nos dois casos, a estratégia defendia uma visão
positiva de alianças e parcerias construídas a partir de valores comuns, tradição,
interesses mútuos e preservação da estabilidade (Ikenberry, 2002: 25).
Por sua vez, o marxismo ou socialismo, que influenciou abordagens como o
estruturalismo, globalismo e dependentismo (teoria da dependência), foi inspirado
pelas idéias de Marx e Engels. As noções de revolução e luta de classes, já que o
Estado é utilizado como ferramenta da classe economicamente dominante da
22 Do inglês "General Agreement on Tariffs and Trade". Foi um acordo multilateral de tarifa aduaneira e comércio internacional, assinado em 1947, para regulamentar as relações comerciais, conturbadas após o fim da Segunda Guerra Mundial.
53
sociedade, foram compartilhadas por Lenin, Stalin e Mao. (Ikenberry, 1997: 13) No
entanto, como veremos, não é o que diz a teoria da dependência.
Segundo Hollis e Smith, as premissas do marxismo encontraram solo fértil
nas nações menos desenvolvidas e, portanto, os principais proponentes da
perspectiva estruturalista não são das comunidades anglo-americanas e sim da
América Latina e da África. As classes sociais recebem maior atenção como atores
do sistema internacional, e o local do Estado no globo é crucial, pois a relação entre
o centro e a periferia explica a natureza da política internacional e da economia
política. Para os estruturalistas, o sistema internacional caracteriza-se pela
exploração, imperialismo e subdesenvolvimento. E como há uma exploração
contínua dos pobres pelos países ricos, uma revolução no sistema global seria o
único meio de por fim a esta tendência (Hollis, Smith, 1991: 39).
Nas décadas de 1960 e 1970, a teoria da dependência era muito popular.
José Maria Pereira, doutor em Economia, explica que, ainda que as primeiras teses
remontem do final da década de 40, a partir do trabalho de Raul Prebisch
(economista argentino que foi secretário-executivo da CEPAL), somente na segunda
metade da década de 60 o movimento dependentista ganhou maior força, com o
livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Cardoso e Faletto, 1967),
obra que projetou FHC na academia e tornou-se referência em várias partes do
mundo (Pereira, 01/06/2003).
Até então, o conceito de dependência era utilizado pelos estudiosos latino-
americanos como sinônimo de subordinação: os países subdesenvolvidos estavam
prisioneiros de um círculo vicioso no qual jamais conseguiriam se libertar. Cardoso e
Faletto recusaram essa interpretação e evitaram a visão da "deterioração dos termos
de troca", elaborada por Prebisch. Para eles, o que importa é a "relação interna das
classes sociais", determinante do caráter da dependência. Desta forma, Cardoso e
Faletto defendiam a possibilidade de industrialização das economias
subdesenvolvidas, apesar da relação de dependência com outros países 23 (Ibidem).
23 Após assumir a presidência do Brasil na década de 1990, FHC recebeu duras críticas por não levar adiante as idéias defendidas por ele nas décadas de 1960 e 1970. Joseph Nye, por exemplo, escreveu que, no Brasil, Fernando Henrique Cardoso "foi líder acadêmico da teoria da dependência na década de 1970 e que, no entanto, passou a defender políticas liberais, de dependência dos mercados globais, uma vez que assumiu a presidência do Brasil em 1990" (Nye, 2003: 7).
54
Porém, Pereira lembra-nos também que o próprio Fernando Henrique
Cardoso estimulou a retomada do debate após assumir a presidência do Brasil na
década de 1990. Em um artigo intitulado "Ainda a 'teoria' da dependência” (Folha de
São Paulo, 28/05/95), FHC fez uma revisão do que havia escrito a esse respeito.
FHC alertou que nos dias de hoje, a realidade é completamente distinta da década
de 1970. Ou seja, "a globalização das economias criou um outro tipo de submissão,
não exclusivo das economias subdesenvolvidas, que faz com que os países se
tornem ”dependentes" da nova forma de atuação do capital financeiro
especulativo[...]" (Ibidem).
Diante desta nova realidade, a dependência precisou ser repensada24.
Stiglitz adverte que as crises na Ásia e na América Latina ameaçaram as economias
e a estabilidade de todos os países em desenvolvimento. A globalização não
consegue garantir a estabilidade. Ao contrário, aumenta o medo de contágio
financeiro que pode se espalhar por todo o mundo (Stiglitz, 2002: 32).
Obviamente há outras teorias que visam explicar os fenômenos
internacionais. Teorias como o neorealismo de Kenneth Waltz, o neoliberalismo de
Robert Keohane e o construtivismo (incluindo o construtivismo feminista, ou
simplesmente teoria feminista 25) também pretendem adaptar-se aos tempos atuais,
evitar as críticas feitas às primeiras tradições teóricas e dar suas contribuições na
explicação dos problemas contemporâneos (Nye, 2003: 7).
No entanto, as três primeiras tradições ainda são as mais influentes nos
locais de formulação de política externa em todo o mundo, sendo que nos Estados
Unidos as duas primeiras são as mais comuns entre os formuladores da política
externa norte-americana. Por este motivo, passaremos agora a identificar estas duas
teorias, realismo e liberalismo, no discurso dos republicanos norte-americanos,
enquanto divulgam a Doutrina Bush pelo mundo.
24 O próprio Nye observou que a teoria da dependência perdeu credibilidade quando não conseguiu explicar por que, nos anos 1980 a 1990, países da periferia no Leste da Ásia, como Coréia do Sul, Cingapura e Malásia, cresceram mais rapidamente do que países centrais, como os Estados Unidos e a Europa (Nye, 2003: 7). No entanto, Nye não mencionou que a crise asiática de 1997 mostrou que o capital responsável por tal crescimento no leste asiático saiu tão, ou até mais, rapidamente do que entrou na região. Logo, a nova realidade exigiria um novo paradigma. Por este motivo, ao menos, as críticas feitas à mudança de posição de FHC parecem ser inoportunas. 25 Em relação à teoria feminista , ver: PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993; PHILLIPS, Anne. Engendering Democracy. Cambridge: Polity Press, 1991; CHARLES, Nickie. "Feminism, the State, and social policy". Nova York: St. Martin's Press, 2000; ELSHTAIN, Jean Bethke. "Real Politics". Londres: Jonh Hopkins University Press, 1997.
55
3.2. O discurso republicano
Condoleezza Rice, conselheira de segurança nacional de George Bush,
ainda na campanha presidencial dos republicanos em 2002, alarmou o mundo ao
afirmar que os Estados Unidos devem "proceder com base no terreno sólido do
interesse nacional e não com base no interesse de uma comunidade internacional
ilusória" (Apud. Nye, 2002: 137). Além de deixar outros países em situação
incômoda, esta atitude foi bastante desprezada por Joseph Nye. Segundo ele, não
prestar o devido respeito à opinião dos outros e não incorporar uma ampla
concepção de justiça nos interesses nacionais pode ser prejudicial aos Estados
Unidos (Ibidem: 137). Já na palestra proferida por Condoleezza Rice em outubro de
2002, seu discurso pareceu mais atenuado. Segundo ela:
Política externa trata-se, essencialmente, de segurança. Trata-se de defender nosso povo, nossa sociedade, nossos valores, tais como liberdade, tolerância, abertura e diversidade. [...] A América é a prova de que o pluralismo e a tolerância são as fundações da verdadeira grandeza nacional (Rice, 2002: 62 - 63).
No entanto, Rice e George W. Bush partem do pressuposto de que, com o fim
da Guerra Fria, as discussões de assuntos importantes não são mais um "confronto
de valores", e sim a exposição de "diferenças nos planos de ação" (Rice, 2002: 66).
Bush argumenta que "os conflitos entre a liberdade e o totalitarismo terminaram com
a vitória decisiva das forças da liberdade" (Bush, 2002: i).
Contudo, estas afirmações certamente não podem ser comprovadas.
Valores distintos dos valores norte-americanos ainda são muito comuns,
principalmente no mundo árabe e muçulmano. Este fato foi confirmado por As'ad
Abukhalil, professor de Política Árabe da Universidade de Georgetown, em
Washington, em um artigo para a Havard International Review de 1992/93. Segundo
ele, apesar de haver evidências da disseminação das idéias de democratização no
mundo árabe, ainda há muitas forças em jogo contra esta tendência. Não só os
governos da região resistem violentamente a renúncia de seu poder, mas também
há opressão de diversos grupos e minorias, como mulheres, homossexuais, os
curdos da Síria, Iraque e Líbano, além dos negros, cristãos judeus e palestinos.
Ainda segundo Abukhalil o mundo árabe somente será livre quando todos os
cidadãos forem iguais perante a lei. E isto somente será possível quando a
56
supremacia jurídica das leis muçulmanas for revogada, e outras leis sejam
finalmente codificadas (Abukhalil, 1992: 245).
Mas as diferenças de valores não estão apenas no mundo muçulmano. Nem
mesmo dentro do Conselho de Segurança das Nações Unidas George W. Bush
conseguiu consenso para atacar o Iraque após o 11 de setembro, por exemplo.
França, Alemanha e Russia, apesar de adotar a democracia como forma de poder,
firmaram, no dia 10 de Fevereiro de 2003, uma declaração conjunta se opondo à
guerra contra o Iraque. Chirac leu aos jornalistas em Paris a declaração conjunta:
"Rússia, Alemanha e França são favoráveis à continuação das inspeções e um
reforço substancial da capacidade humana e técnica por todos os meios possíveis e
em coordenação com os inspetores". Segundo Chirac "Nada justifica atualmente
uma guerra. Tudo permite pensar que o objetivo [do desarmamento iraquiano] pode
ser conseguido mediante o sistema de inspeções previsto pela resolução 1441
aprovada unanimemente" pelo Conselho de Segurança em novembro de 2002
(Folha Online, 10/02/2003).
Segundo Ikenberry, quando Bush candidatou-se à presidência, descreveu
sua abordagem à política externa como um "novo realismo". Ou seja, defendeu que
os esforços dos EUA deveriam voltar-se para o cultivo das relações entre as grandes
potências e a reconstituição do poderio militar do país, e não mais se concentrar
apenas no desenvolvimento da nação, projetos sociais internacionais e "uso de força
de forma inconsistente", preocupações de Clinton (Ikenberry, 2002: 24).
Após 11 de setembro de 2001, porém, Ikenberry acredita que os Estados
Unidos não buscarão mais segurança nem através da estratégia realista nem
através da liberal. Segundo ele:
Os Estados Unidos não buscarão segurança por intermédio da estratégia realista, de cunho mais modesto, e em que atuariam em um sistema global de balança de poder, tampouco objetivarão uma estratégia liberal em que as instituições, a democracia e os mercados integrados acabariam por reduzir a importância da política de poder (Ikenberry, 2002: 27).
De fato, no que se refere à política de contenção e dissuasão adotada durante
a Guerra Fria com a Doutrina Truman, a Doutrina Bush se afastou da estratégia
realista. No dia primeiro de junho de 2002, em West Point, Bush argumentou que "a
contenção e a dissuasão, estratégias utilizadas durante a Guerra Fria, não eram
mais adequadas para os desafios do século XXI, pois perderam o sentido ante as
57
redes terroristas", e diante de "ditadores com acesso a armas de destruição em
massa" (Apud. Silva, 2002: 53). Foram os argumentos para justificar a mudança de
estratégia, que antecipa ataques preventivos, já que os EUA "não podem esperar
até serem atacados".
Contudo, vários outros analistas observaram que a Doutrina Bush não é
novidade deste governo Bush, e que na verdade foi gerada há dez anos, no governo
de seu pai, George H. Bush. Por este motivo, para analisarmos a Doutrina Bush na
prática, e verificar se de fato a nova estratégia norte-americana se afasta da
estratégia realista, examinaremos os acontecimentos durante a primeira Guerra do
Golfo, que serviram de justificativa para a formulação e implementação de uma nova
estratégia.
3.3. A Doutrina Bush na prática
A situação no Golfo Pérsico, por ser uma região rica em petróleo e, portanto,
estratégica, sempre foi conturbada. As tensões são constantes desde a Guerra Fria,
quando Nixon e Kissinger empenharam-se em conter os avanços da então União
Soviética e forneceram armas ao Xá do Irã, aliado dos Estados Unidos na época
(Stork, 1993: 231; Ambrose,1988: 244).
Segundo Stephen Ambrose, Kissinger estava determinado a por fim à
Guerra Fria, e apresentou um plano que relacionava o aumento no número de armas
intercontinentais na Rússia com o aumento do risco em outros países comunistas,
gerando uma perda de posição estratégica 26 (Ambrose, 1988: 240). Os norte-
americanos, então, fizeram uma proposta ao governo russo de um acordo de
controle de armas estratégicas (SALT 27), que somente foi assinado em 1972 (Idem).
No entanto, como o acordo não previa a diminuição de todas as armas
fabricadas na época, acabou ocorrendo um aumento, por ambas as partes, na
construção das outras armas não especificadas no acordo. Além disso, o SALT I
continha uma declaração de que as partes não tentariam obter vantagens
26 Ambrose acrescenta ainda que esta estratégia, que ficou conhecida como "Linkage", não é nova. Ela foi utilizada por Truman, que segurou empréstimos que seriam feitos a Stalin em 1945, na esperança de fazer com que os russos se comportassem conforme era esperado (Ambrose, 1988: 241). 27 Do inglês "Strategic Arms Limitation Talks".
58
unilaterais, mas no mesmo dia em que Nixon e Kissinger assinaram o acordo em
Moscou, partiram para o Irã e ofereceram ao Xá acesso ilimitado de armas norte-
americanas (Ambrose, 1988: 244).
Até que em fevereiro de 1979, durante o governo de Jimmy Carter nos EUA,
o Ayatollah Ruhollah Khomeini depôs o Xá Mohammed Reza Pahlevi, amigo dos
norte-americanos que governou o Irã desde 1941, através de um golpe de Estado, e
assumiu o poder no Irã. Khomeini impôs o fundamentalismo islâmico no Irã e, em
novembro de 1979, militantes islâmicos seqüestraram a embaixada dos Estados
Unidos em Teerã. Somente treze meses depois, já no governo de Ronald Reagan,
52 reféns foram libertados quando os Estados Unidos prometeram liberar fundos
iranianos retidos em bancos dos EUA (Cole, 1997: 86).
Para complicar ainda mais a situação, em setembro de 1980, Saddam
Hussein ocupou uma área do Irã próxima ao Golfo Pérsico. Foi o início de uma
guerra que durou oito anos (Ibidem: 87).
Nesta época, ficou evidente que o governo dos Estados Unidos apoiou o
Iraque para manter sua balança de poder mas que, ao mesmo tempo, forneceu
armas ao Irã secretamente. Leonard Cole observa que somente em 1986 as notícias
destas vendas tornaram-se públicas (Cole, 1997: 87). E Stephan Ambrose explica
que com a venda de armas ao Irã, Reagan esperava melhorar seu relacionamento
com Khomeini, mas, além disso, as vendas fizeram parte do resgate para a
libertação dos reféns na embaixada dos EUA. Em contrapartida, os iranianos
pagaram o dobro e o triplo pelas armas americanas, dinheiro que poderia ser
investido nas forças militares dos Estados Unidos. A ajuda simultânea ao Iraque foi
necessária para que, mesmo com armas norte-americanas, o Irã não fosse capaz de
vencer a guerra (Ambrose, 1988: 340).
E, de fato, após intensos ataques dos iraquianos, que utilizaram armas
químicas (como o bombas de gás mostarda), o Irã concordou com o cessar fogo em
julho de 1988. Leonard Cole escreveu um notável livro sobre a política de guerras
químicas e biológicas. Cole observou que tanto o Irã quanto o Iraque faziam parte do
Protocolo de Genebra de 1925, que proibia o uso de agentes químicos e biológicos
nas guerras. No entanto, de 1982 a 1984 o Iraque intensificou cada vez mais seu
uso de armas químicas contra o Irã, enquanto o mundo assistia pacificamente (Cole,
1997: 87).
59
E o pior é que tudo indica que o Iraque obteve agentes químicos de
empresas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Cole demonstrou que o
interesse iraquiano por armas químicas teve início na década de 1970, quando os
Estados Unidos apoiavam o Xá no Irã. O Iraque conseguiu obter componentes
químicos de empresas da Suíça, Países Baixos, Bélgica, Itália e Alemanha Ocidental
(Cole, 1997: 81). Na década de 1980, empresas da França, Grã-Bretanha, Austrália
e dos EUA também comerciavam com o Iraque. Michio Kaku, professor de teoria
física da Universidade da Cidade de Nova York, em um ensaio sobre armas
nucleares depois da Guerra Fria, também constatou que, antes da Guerra do Golfo,
o Departamento de Comércio dos Estados Unidos autorizou o envio de mais de
US$1,5 bilhão em alta tecnologia para o Iraque, incluindo equipamentos de 200
grandes empresas ocidentais, como a Hewlett-Packard, Honeywell, Unisys,
Rockwell, etc. (Kaku, 1992: 63).
Além disso, um instituto norte-americano de cultura de bactérias (American
Type Culture Collection - ATCC) declarou ao Senado dos Estados Unidos uma lista
de agentes biológicos que havia exportado ao Iraque entre 1985 e 1989. Segundo
Cole, a lista incluía bactérias e toxinas patogênicas, além de outros agentes
(Cole,1997: 85).
Por estes motivos que, quando o Iraque invadiu o Kuwait em 2 de Agosto de
1990, Estados Unidos e Grã-Bretanha tinham tanta certeza de que o Iraque possuía
armas químicas e biológicas. Margaret Thatcher, na época Primeira Ministra da Grã-
Bretanha, dois meses antes da Guerra do Golfo, afirmou que "Saddam Hussein usou
armas químicas tanto em guerra, quanto contra seu próprio povo". Afirmou também
que acreditava que Saddam Hussein tinha armas biológicas a sua disposição (Apud.
Cole, 1997: 79).
Foi neste contexto que a Doutrina Bush começou a surgir. Carlos Eduardo
Lins da Silva, em um ensaio intitulado "Doutrina Bush foi gerada há dez anos",
observou que, em 1992, Dick Cheney, o atual vice-presidente de George Bush, era
secretário da Defesa; Colin Powell, o atual secretário de Estado, era chefe do
Estado-maior das Forças Armadas; Paul Wolfowitz, o atual secretário adjunto da
Defesa, era subsecretário da Defesa e Donald Rumsfeld, o atual secretário da
Defesa, estava fora do governo, mas mantinha relações de amizade com Bush e
Cheney, seu colega durante a administração do presidente Ford (Silva, 2002: 51).
60
Silva constatou também que foi Wolfowitz quem acrescentou a idéia de que
os Estados Unidos deveriam estar preparados para realizar ações militares
antecipatórias, para prevenir ataques nucleares, químicos ou biológicos, no Guia de
Planejamento da Defesa - "Defense Planning Guidance" (DPG) - para os anos de
1994 a 1999. O documento previa também que os Estados Unidos deveriam punir
potenciais agressores com bombardeios aéreos sobre fábrica de armas (Ibidem: 51).
Há outras semelhanças entre o DPG e a Estratégia de Segurança Nacional
de Bush. Silva cita, por exemplo, a afirmação de que os Estados Unidos precisam
manter um grande arsenal nuclear e impedir que outros países façam o mesmo. E
ainda a noção de que os EUA deveriam tentar sempre formar coalizões com outros
países para suas iniciativas militares, mas que, no entanto, é fundamental deixar
claro também que a ordem mundial é defendida em última instância pelos EUA, que
deverão agir independentemente de seus aliados quando as situações exigirem
ação imediata (Ibidem: 52).
Com a mesma equipe, que formulou e defendeu esta estratégia durante a
primeira guerra do golfo, agora assessorando George Bush, não é difícil perceber
como estas idéias ganharam força na Casa Branca. O 11 de setembro foi "o
estopim" para que Cheney, Wolfowitz, e Rumsfeld voltassem a defender a
implementação de uma nova estratégia de política externa para os Estados Unidos.
Diante destes fatos, fica claro que a estratégia realista é muito mais evidente
na política externa dos Estados Unidos do que as demais estratégias. Por este
motivo, passaremos agora a investigar em quais aspectos a Doutrina Bush se iguala
ou diferencia da estratégia realista analisada no primeiro capítulo.
3.4. Semelhanças e diferenças entre a Doutrina Bush e o realismo
Vimos anteriormente nesse capítulo, que Ikenberry defende que para os
"pensadores neo-imperiais" norte-americanos, a segurança dos EUA não estará
mais garantida nem com a estratégia realista, com suas políticas de coibição e com
a preservação de políticas estáveis entre as grandes potências. E nem com as
estratégias liberais de abertura de comércio e de instituições democráticas, que
"podem ter exercido algum impacto de longo prazo sobre o terrorismo, mas não
tratam do caráter imediato das ameaças" (Ikenberry, 2002: 33). Ikenberry explica
que isto ocorre porque "o realismo, com base na balança de poder, e o
61
multilateralismo liberal sugerem um poder mundial maduro, que procura estabilidade
e busca seus interesses por meios que, fundamentalmente, não ameaçam as
posições dos demais Estados" (Ibidem: 37). Ikenberry deduz que esta estratégia
realista não é a atitude defendida por George W. Bush em sua nova estratégia de
segurança nacional.
A estratégia de ataques preventivos realmente se diferencia da estratégia de
contenção e dissuasão nuclear da época da Guerra Fria. Scott Bennett, cientista
político da Universidade da Pensilvânia nos Estados Unidos, realizou um estudo
sobre 85 conflitos internacionais de 1816 aos dias de hoje. Concluiu que apenas três
deles tiveram a prevenção como justificativa: o ataque da Alemanha nazista contra a
Rússia na Primeira Guerra Mundial; a ofensiva israelense contra o Egito em 1956; e
o bombardeio japonês contra a base norte-americana de Pearl Harbor na Segunda
Guerra Mundial (Correio Braziliense: 30/03/2003, p. 10). Por isso, a nova doutrina de
ataques preventivos de George W. Bush, para justificar seu ataque ao Iraque, tem
causado muita polêmica.
Mas o que dizer dos outros aspectos da estratégia realista? Foram
realmente modificados pela Doutrina Bush? Para verificarmos este problema,
analisaremos cada tópico abordado no primeiro capítulo separadamente, para que a
visualização de cada item se torne mais clara:
- Natureza humana:
Para os realistas que analisam o sistema internacional a partir do indivíduo,
mesmo que não se limitem exclusivamente neste nível de análise, a natureza
humana deixou de ser considerada inerentemente boa, como defendia Woodrow
Wilson e os idealistas, e passou a ser considerada mais ambígua. Para Carr a
natureza humana era dupla, ao mesmo tempo egoísta e colaboradora. Para Aron a
agressividade faz parte da natureza humana, mas pode ser expressa ou não.
Em março de 1991, Bush (pai) citou a natureza humana como uma das
causas da guerra do Golfo. No discurso para o Congresso que ficou conhecido com
a declaração para a nova ordem do pós-guerra para o Oriente Médio, Bush afirmou
que sua coalizão "deve agora trabalhar com o objetivo comum de gerar um futuro,
62
que não deverá nunca mais ser feito refém pelo lado mais sombrio da natureza
humana 28".
Com palavras muito semelhantes às de seu pai, George W. Bush, já no dia
11 de setembro de 2001, também evocou a natureza humana como responsável
pelos ataques terroristas. Em suas próprias palavras, divulgadas pela mídia do
mundo todo: "Hoje, nossa nação viu o mal, o pior da natureza humana. E
respondemos com o melhor da América - com a coragem da equipe de resgate, com
a preocupação de estranhos e vizinhos que doaram sangue e ajudaram como
podiam 29". Quando tratarmos da questão da moral na política internacional,
veremos que, a partir daí, os discursos de Bush mencionam quase sempre um "eixo
do mal", retórica para justificar as divergências com o Iraque, Coréia do Norte, Irã e
Síria.
Ou seja, já que a estratégia norte-americana continua a evocar a natureza
humana, e sua inerente agressividade, para explicar e justificar os conflitos
internacionais, a Doutrina Bush parece não se diferenciar muito da estratégia realista
em relação a este aspecto. Mas o que dizer dos demais aspectos?
- Luta pelo poder:
No primeiro capítulo, vimos que a luta pelo poder é o interesse central dos
realistas. Carr distinguiu três tipos de poder utilizados pelos Estados no cenário
internacional, o poder militar, o poder econômico e o poder sobre a opinião. Todos
os três são igualmente importantes para os objetivos políticos (Carr, 1964: 113 -
132). Neste ponto, vimos no segundo capítulo que, além do poder militar, os Estados
Unidos continuam em busca do poder econômico - através da estratégia liberal de
abertura de mercados - e, no início deste capítulo vimos que o poder sobre a opinião
também permanece relevante - através da manipulação do discurso político.
28 "Tonight I come to this House to speak about the world – the world after war. The recent challenge could not have been clearer. Saddam Hussein was the villain, Kuwait the victim. To the aid of this small country came nations from North America and Europe, from Asia and South America, from Africa and the Arab world, all united against aggression. Our uncommon coalition must now work in common purpose to forge a future that should never again be held hostage to the darker side of human nature" (al-bab.com, 01/06/2003). 29 "Today, our nation saw evil, the very worst of human nature. And we responded with the best of America--with the daring of our rescue workers, with the caring for strangers and neighbors who came to give blood and help in any way they could." (angelfire.com, 01/06/2003).
63
Também vimos como outros teóricos realistas qualificaram o poder no
cenário internacional. Morgenthau estabeleceu, em seu segundo princípio do
realismo, que na política internacional o conceito de interesse é definido em termos
de poder (Morgenthau, 1993: 50). E o poder nas relações internacionais para Aron é
a capacidade que tem uma unidade política de impor sua vontade às demais (Aron,
2002: 990).
Segundo Robert Kaplan, em um livro intitulado Política guerreira: por que a
liderança exige uma prática pagã, "enquanto não houver um grande Leviatã para
controlar os países do mundo, a luta pelo poder continuará a definir a política
internacional". Kaplan cita o exemplo da intervenção pela OTAN na ex-Iugoslávia,
no final da década de 1990, que só ocorreu porque esta região é estratégica para a
segurança da Europa. As crueldades contra civis em outras áreas "menos
relevantes", como na Armênia, Indonésia, Índia, Serra Leoa, Congo, etc, foram
ignoradas por muito tempo(Kaplan, 2002: 106).
Kaplan lembra-nos também que o governo Clinton nunca se manifestou a
respeito das atrocidades das tropas russas contra os civis da Chechênia. Isto porque
a Rússia, diferentemente da Sérvia que poderia ser bombardeada impunemente, é
uma potência com um arsenal nuclear. Por isso, Kaplan conclui que apesar de os
argumentos para a intervenção ocidental na Bósnia e em Kôsovo terem invocado a
moral, na verdade, o que favoreceu tais argumentos foi a questão do poder (Ibidem:
107-108).
Neste sentido, a Doutrina Bush, que optou por atacar o Iraque, uma região
rica e petróleo e, portanto altamente estratégica, mas não se manifestou contra
outros Estados ditatoriais que possuem armas de destruição em massa, como o
Paquistão e a Coréia do Norte, não se diferencia muito tradição realista de luta de
poder, adotada pelos estrategistas norte-americanos até então.
- Imperialismo:
Vimos no primeiro capítulo que, para Carr, quando o nacionalismo atinge
seu objetivo transforma-se automaticamente em imperialismo. Por isso, Carr afirma
que as guerras começadas por motivos de segurança rapidamente tornaram-se
guerras de agressão e de interesse próprio. O que leva Carr a concluir que as
ambições territoriais não são somente o produto das guerras, mas também a causa
64
das guerras (Carr, 1964: 112). Seria a ambição territorial o motivo da guerra
preventiva contra o Iraque?
Desde que anunciou a Doutrina Bush o presidente dos Estados Unidos vem
rebatendo acusações de imperialismo. Por isso, em West Point chegou a anunciar
que ‘‘A América não tem um império para estender nem uma utopia para criar.
Desejamos aos outros apenas o que desejamos para nós: segurança contra a
violência, as recompensas da liberdade e a esperança de uma vida melhor’’ (Garcia,
01/06/2003).
Conforme vimos no primeiro capítulo, Morgenthau entendeu que uma
política que visa apenas manter o status quo não deve ser considerada imperialismo,
e sim um política de status quo (Morgenthau, 1993: 57). Imperialismo seria apenas a
política que visa "derrubar o status quo", e como os Estados Unidos sempre foram a
potência econômica e militar até mesmo na região do Oriente Médio, de acordo com
a avaliação de Morgenthau a estratégia de George W. Bush não se caracteriza como
um "imperialismo".
- Anarquia internacional:
Como vimos no primeiro capítulo, a grande maioria dos analistas do cenário
internacional concorda que há uma anarquia no sistema internacional, pois não há
uma autoridade central legítima que possa obrigar os Estados a cumprir suas
obrigações. No entanto, segundo Hedley Bull, apesar da anarquia, o sistema
internacional não se parece com o estado de natureza hobbesiano, já que mesmo
na ausência de governo, os Estados são capazes de conviver em uma sociedade
anárquica (Bull, 1977: 62).
Já a estratégia de George W. Bush continua a se aproveitar da anarquia
internacional, mas não tem respeitado as instituições que visam manter a ordem
internacional, como o Tribunal Penal Internacional e até mesmo o Conselho de
Segurança da ONU, já que Bush defende que a ordem internacional deverá ser
mantida, em última instância, pelos Estados Unidos. Além disso, Bush tem ignorado
a interdependência entre as nações e corre o risco que outros Estados passem
reduzir sua cooperação em diversas áreas como ferramenta política contra os
Estados Unidos.
65
Logo, a estratégia de Bush se diferencia da estratégia realista em relação à
anarquia internacional. Outra evidência disso é que os republicanos tem ignorado
uma das conseqüências da anarquia internacional: o dilema de segurança.
- Balança de poder:
Outro aspecto da estratégia realista refere-se à retórica da balança de poder.
Este aspecto é freqüentemente enfatizado por George W. Bush, não só em seus
discursos, mas também na própria Estratégia de Segurança Nacional dos Estados
Unidos. Conforme Bush afirma no prefácio deste documento:
Coerentes com nossas tradições e nossos princípios, não usamos de força para pressionar em favor de vantagens unilaterais. Procuramos, ao contrário, criar uma balança de poder que favoreça a liberdade humana: condições na quais todas as nações e todas as sociedades possam escolher por si mesmas as recompensas e desafios da liberdade política e econômica (Bush, 2002: iv).
Em seguida, na primeira página da nova estratégia, Bush reforça que "a
grande força desta nação deve ser usada para promover uma balança de poder que
favoreça a liberdade" (Bush, 2002: 1). Como vimos, Hedley Bull já explicara que a
função da balança de poder não é preservar a paz, mas, ao contrário, exige a guerra
quando este for o único meio de deter a expansão de um "Estado potencialmente
dominante" (Bull, 1977: 124).
Portanto, em relação à balança de poder, Bush parece manter a estratégia
realista. Ou seja, enquanto os Estado Unidos forem a potência hegemônica, está
tudo certo. Porém, quando seu poderio for ameaçado, como no dia 11 de setembro,
serão necessárias políticas de "balança de poder" para recuperar a posição
hegemônica anterior, e manter o status quo. Por isso, sustentam-se os argumentos
de que a política de balança de poder é apenas uma retórica e não se refere, na
prática, a um verdadeiro "equilíbrio" entre os países envolvidos na balança,
conforme alguns realistas, como Morgenthau, por exemplo, tentaram defender.
- Interesse Nacional:
Após o 11 de setembro de 2001, George W. Bush, passou a utilizar os
ataques terroristas em Nova York e Washington como um exemplo de uma ameaça
aos interesses nacionais dos Estados Unidos. Em suas palavras: "Os
66
acontecimentos de 11 de setembro de 2001 nos ensinaram que Estados fracos,
como o Afeganistão, podem, tanto quanto os mais fortes, representar um grande
perigo para nossos interesses nacionais" (Bush, 2002: v).
Desde então, conforme observou Joseph Nye, "o Congresso dos EUA está
disposto a gastar 16% do orçamento nacional com defesa, enquanto a porcentagem
dedicada às relações internacionais encolheu, de 4% na década de 1960, para
apenas 1% nos dias de hoje". Nye conclui que "apesar de a força militar dos Estados
Unidos ser importante, não é dezesseis vezes mais importante do que a diplomacia"
(Nye, 2002: 143). É por este motivo que, conforme vimos no primeiro capítulo,
Joseph Nye, apesar de ser considerado um realista, defende a "redefinição do
interesse nacional" dos Estados Unidos, para que este passe a incorporar, também,
os interesses globais, e passe a representar, de fato, os interesses dos cidadãos
norte-americanos (Ibidem: 137).
Contudo, conforme foi visto no primeiro capítulo, Morgenthau, em seu
terceiro princípio do realismo, considera que, enquanto o conceito de poder varia de
acordo com lugar e com o tempo, o conceito de interesse, definido como a busca por
poder, é objetivo, ou seja, é sempre o mesmo (Morgenthau, 1993: 10). A definição
do interesse nacional de George W. Bush e sua equipe continua relacionada ao
poder, e, portanto, neste aspecto, não se diferencia da estratégia realista.
- Moral na política Internacional:
Quanto à questão da moralidade no sistema internacional, em 1° de junho
de 2002, em West Point, Bush comentou ainda sobre a dicotomia entre o bem e o
mal, mencionada por ele logo após os atentados de 11 de setembro. Em suas
palavras: "Alguns temem que falar a linguagem do certo e do errado é, de certa
forma, pouco diplomático ou indelicado. Eu não concordo. Circunstâncias diferentes
pedem métodos diferentes, mas não moralidades diferentes" (Bush, 2002: 3).
Bush se referia ás suas alusões a um "eixo do mal", para classificar o Iraque,
Coréia do Norte, Irã e Síria 30. Além disso, ele parece acreditar em uma moralidade
30 Gilberto Dupas observou que os países do "eixo do mal" de Bush são os mesmos "Estados bandidos" (rogue States) de Bill Clinton, o que demonstra que o maniqueísmo do bem e do mal sempre foi útil aos norte-americanos (Dupas, 2002: 9).
67
universal, porém esta moralidade é composta apenas dos valores defendidos pelos
norte-americanos.
Como vimos no primeiro capítulo, Carr defendia que "a moralidade só pode
ser relativa, não universal" (Carr, 1946: 21). E Morgenthau estabeleceu em seu
quinto princípio do realismo que “o realismo nega-se a identificar as aspirações
morais de uma nação específica com leis morais que governam o universo. Assim
como distingue entre verdade e opinião, também distingue entre verdade e idolatria"
(Morgenthau, 1948: 13).
A posição de Condoleezza Rice, na ocasião da palestra proferida por ela em
outubro de 2002, era a de que é possível conciliar o poder com valores, adotando ao
mesmo tempo os princípios da escola "realista" e da escola "idealista". Segundo ela,
estas duas "categorias obscurecem a realidade". Rice afirmou ainda que "nos dias
de hoje, o poder e os valores estão totalmente entrelaçados" (Rice, 2002: 65). Este
argumento, sem dúvida, faz parte da estratégia realista. Quase ninguém argumenta
em favor de um idealismo absoluto, seguindo exclusivamente a moralidade e
excluindo outros aspectos do interesse nacional, ou argumentam em favor de um
realismo absoluto, desconsiderando completamente a moralidade (Rourke, 1994:
302). Hans Morgenthau, por exemplo, chegou a afirmar que:
Uma política externa que não permite a exterminação em massa como um meio para alcançar um fim não o faz devido à inconveniência política. [...] A limitação neste caso deve-se a um princípio moral absoluto [...]. Portanto, uma política externa desse tipo na verdade sacrifica o interesse nacional [...] (Morgenthau, 1993: 228).
Além disso, vimos que Hedley Bull explicou que, não há duas, mas três
maneiras de abordar a moral no sistema internacional: 1) a hobbesiana, ou realista;
2) a kantiana, ou universalista; e 3) a grociana, ou internacionalista (Bull, 1977: 33 -
35). E segundo esta análise, a estratégia de George W. Bush se assemelha mais
com a estratégia realistas ou hobbesiana, já que Bush afirma não acreditar em
moralidades diferentes, mas defende apenas a moralidade composta dos valores
considerados certos nos Estados Unidos, e apenas quando convém, ou seja, com
prudência. Alem disso, Bush não defende a moral universalista ou a
internacionalista, pois não defende o fim do sistema de Estados e ignorou as regras
de instituições multilaterais, como o Conselho de Segurança da ONU, passando a
defender a premissa de ataques preventivos.
68
Os realistas argumentam que, da mesma forma que uma política externa não
pode ignorar a importância da ideologia ou da moralidade, também não deve ser
baseada exclusivamente na moral incondicional sem considerar a realidade política
(Shultz, 1985: 315). George Shultz, ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos,
por exemplo, argumentou, em um artigo sobre a moralidade e o realismo na política
externa norte-americana, que: Morgenthau estava certo quando advertiu contra os perigos das cruzadas morais [...] Nós sabemos que a expansão do comunismo é prejudicial aos nossos interesses, mas também sabemos que não somos onipotentes e que devemos estabelecer prioridades. Não podemos enviar tropas americanas para todas as regiões do mundo ameaçadas pelos rebeldes comunistas apoiados pelos soviéticos [...] (Shultz, 1985: 315).
Porém, o dia 11 de setembro de 2001, motivou Bush a dar início a sua
"cruzada". George W. Bush sempre abre suas reuniões ministeriais com uma oração
e credita a Deus o fato de ter vencido o alcoolismo. Ele causou polêmica ao usar a
palavra ‘‘cruzada’’ para definir a ofensiva contra o terrorismo e disse que ”Deus não
é neutro nesse conflito entre a liberdade e o medo" (Garcia, 01/06/2003).
Já esta atitude de Bush, no entanto, não se assemelha à estratégia realista.
Robert Kaplan observou que "a separação entre política e religião, atitude iniciada
por Maquiavel e complementada por Thomas Hobbes, fundamentou uma diplomacia
livre do absolutismo sobrenatural da igreja medieval" (Kaplan, 2002: 115). Por isso
Kaplan não aconselha uma volta a tal "absolutismo" porque "se há algum progresso
na política, este foi "a evolução de virtudes religiosas para interesses próprios
seculares" (Ibidem: 85). Por tanto, esta é uma das estratégia de Bush que se
diferencia da estratégia realista.
- Guerra para os realistas :
Os ataques terroristas em setembro de 2001 nos Estados Unidos geraram
uma sensação de vulnerabilidade nos norte-americanos, e Bush decidiu combater
esta situação com discursos mais agressivos.
A partir de então, além de Bush passar a encarar os ataques terroristas
como a luta entre o “bem e o mal", conforme seu pronunciamento de 14 de setembro
de 2001 revelou, considerou os ataques terroristas como uma declaração de guerra.
Segundo ele:
69
Apenas três dias se passaram desde esses acontecimentos, e os americanos ainda não têm perspectiva histórica. Mas nossa responsabilidade para com a história já é clara: responder a estes ataques e livrar o mundo do mal. A Guerra foi declarada contra nós usando de meios furtivos, traiçoeiros e assassinos. Esta nação é pacífica, porém feroz quando sua ira é provocada. O conflito começou no tempo e nos termos determinados por outros. E irá terminar do modo e na hora de nossa escolha (Bush, 2002: 5).
Esta tática não é novidade na política norte-americana. Gilberto Dupas
observou, por exemplo, que "a manipulação da questão do inimigo, do poder imoral
e quase satânico que ameaçaria os valores de segurança da América vem sendo
uma prática tradicional, como se viu na Guerra Fria" (Dupas, 2002: 9).
Além disso, conforme vimos no primeiro capítulo, a maioria dos realistas
concorda que a guerra pode ser um instrumento útil e necessário de política
internacional. Aron, por exemplo, observou que a hostilidade de um grupo em
relação aos estrangeiros é até mais forte do que as hostilidades que já ocorrem no
ambiente nacional. Isto deve-se ao fato de que, entre culturas diferentes, há menos
solidariedade, fato incontrolável devido à anarquia internacional - ou falta de
autoridade legítima (Aron, 2002: 444 - 452).
E vimos também que Hedley Bull defendeu que, apesar do advento da era
nuclear, a guerra não deixou de ter sua utilidade como instrumento político, já que
há meios de contornar esta situação, como ataques nucleares estratégicos - restritos
a campo de batalha (Bull, 1977: 213 - 217).
Logo, a estratégia dos norte-americanos não é muito diferente ao concordar
com a utilidade da guerra. Eles tentaram tornar a guerra contra o Iraque em Março
de 2003 legítima, através da aprovação do Conselho de Segurança da ONU, sendo
que alguns integrantes mais radicais do governo Bush como Donald Runmsfeld, Dick
Cheney e Paul Wolfowitz, consideram esta atitude uma perca de tempo.
Portanto, pode-se concluir com esta análise, que a estratégia de ataques
preventivos é um aspecto da Doutrina Bush que se diferencia da estratégia realista,
e um dos motivos que levou muitos analistas, como Ikenberry, a classificar a
estratégia norte-americana como imperial. Houve uma mudança porque a nova
estratégia contraria as regras já estabelecidas nas instituições multilaterais, como a
estratégia de contenção, além de não respeitar a soberania nacional. Vimos que os
70
realistas defendiam a distinção entre a política internacional da política nacional, mas
a estratégia norte-americana de ataques preventivos e redefinição da soberania
nacional contraria esta tendência.
Além disso, os realistas advertiram contra as cruzadas morais, mantendo a
tendência, iniciada por Maquiavel, de considerar a política separada de religião. Já
George Bush, passou a usar a palavra ‘‘cruzada’’ para definir a ofensiva contra o
terrorismo e disse que ”Deus não é neutro nesse conflito entre a liberdade e o
medo". Por este motivo a estratégia de George W. Bush diferencia-se da estratégia
defendida por realistas, e vem sendo chamada de imperialista.
Alem disso, a anarquia internacional para os realistas não é igual ao estado de
natureza de Thomas Hobbes porque há uma interdependência econômica entre os
Estados, um governo mundial não é a única fonte de ordem do sistema
internacional, e os Estados são capazes de conviver apesar da anarquia
internacional já que não são tão vulneráveis quanto os indivíduos (Bull, 1977: 62).
Já George W. Bush não tem respeitado as instituições que visam manter a ordem
internacional, como o Tribunal Penal Internacional e até mesmo o Conselho de
Segurança da ONU, já que Bush defende que a ordem internacional deverá ser
mantida, em última instância, pelos Estados Unidos. Além disso, Bush tem ignorado
a interdependência entre as nações e corre o risco que outros Estados passem
reduzir sua cooperação em diversas áreas como ferramenta política contra os
Estados Unidos e tem ignorado o dilema de segurança. Logo, a estratégia de Bush
se diferencia da estratégia realista em relação à anarquia internacional.
Os demais aspectos da Doutrina Bush, ou seja, os discursos sobre a
natureza humana, a luta pelo poder, balança de poder, interesse nacional, e a
guerra, permanecem muito semelhantes à estratégia realista. A estratégia liberal,
conforme vimos no segundo capítulo, também foi adotada por Bush. E o poder sobre
a opinião continua evidente nos esforços gastos com o discurso político.
Portanto a política externa norte-americana permanece predominantemente
realista e liberal, apesar de ter reformulado dois aspectos da doutrina realista - a
política de contenção e a separação da política internacional de religião. O que fica
evidente quando Bush afirma que, nos dias de hoje, existem "novas ameaças" - o
"terrorismo" auxiliado por "Estados maléficos" (do "eixo do mal") - , e estas ameaças
devem ser combatidas como verdadeiras "cruzadas".
71
CONCLUSÃO Neste trabalho, confrontamos o problema de descobrir em que aspectos a
nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos modifica a estratégia
realista, até então, a mais influente na Casa Branca.
Para isso, no primeiro capítulo analisamos as principais premissas do
paradigma realista da teoria das relações internacionais. Observamos que, para esta
tradição teórica, o Estado é o principal ator do cenário internacional e a guerra entre
os Estados é o problema central enfrentado pelos formuladores de política externa.
Constatamos que alguns temas são recorrentes na análise de vários destes teóricos,
temas como a natureza humana, a luta pelo poder, imperialismo, anarquia do
sistema internacional, a balança de poder, o dilema de segurança, o interesse
nacional e a moral na política internacional são abordados por diversos deles.
Após relacionar a maneira como os principais teóricos do paradigma realista
abordaram os referidos temas, foi possível constatar que os realistas discordam em
alguns aspectos importantes, como a metodologia utilizada, o nível de análise
escolhido para explicar os fenômenos do sistema internacional e a capacidade dos
estadistas de influenciarem e gerarem ordem no cenário internacional, devido a
existência da anarquia internacional. Estes fatos nos levaram a concluir que não há
apenas um realismo político no cenário internacional, mas, ao contrário, cada teórico
realista aborda os principais temas tratados de uma forma bem específica. O que
confirma a noção de que o realismo não é uma teoria estática, mas uma tradição
teórica que se adapta às condições contemporâneas.
Nosso objetivo foi investigar as seguintes questões: a nova estratégia de
segurança nacional dos Estados Unidos diferencia-se da estratégia realista em todos
os aspectos? e a nova estratégia norte-americana modificou a estratégia realista
para se adaptar às novas realidades do cenário internacional? Para isso, também foi
preciso analisar o documento A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados
Unidos da América, enviada por George W. Bush ao Congresso norte-americano em
setembro de 2002. Além disso, examinamos as críticas que foram feitas à nova
estratégia desde que foi anunciada.
Com isso, pôde-se constatar que a Doutrina Bush implica algumas
mudanças no cenário internacional, como o encolhimento dos organismos
multilaterais; a adoção da ação preventiva - que contraria as normas internacionais
72
de legítima defesa e arrisca a incidência de novos ataques reativos; a redefinição da
soberania; a depreciação de normas, tratados e instituições internacionais; o risco de
diminuição da cooperação internacional como ferramenta política contra os Estados
Unidos, etc.
Contudo, para verificar em que aspectos a Doutrina Bush modifica a
estratégia realista foi necessário dispor as duas variáveis lado a lado em um mesmo
capítulo. Este foi o objetivo do terceiro capítulo, onde além de revisarmos as
principais tradições teóricas do cenário internacional e analisarmos o discurso dos
republicanos que defendem as premissas da nova estratégia, investigamos o
contexto histórico que fomentou o desenvolvimento de uma nova estratégia nos
Estados Unidos. Além disso, para a comparação da Doutrina Bush com a estratégia
realista, retornamos aos principais temas abordados pelos realistas, conforme
relacionado no primeiro capítulo.
Esta abordagem nos permitiu verificar que a nova estratégia de segurança
nacional dos Estados Unidos diferencia-se da estratégia realista em alguns
aspectos, mas mantém a semelhança em outros aspectos. Um dos pontos de
mudança é em relação a estratégia de ataques preventivos, que contraria a
estratégia de contenção. Outro aspecto diferente refere-se a adoção por parte de
George W. Bush de argumentos religiosos, como o uso da palavra ‘‘cruzada’’ para
definir a ofensiva contra o terrorismo, que contraria a separação entre Estado e
Igreja, já defendida por Maquiavel. O modo de lidar com a anarquia internacional
também tem sido diferente da maneira como os realistas, como Hedley Bull,
tratavam esta questão.
Os outros aspectos da Doutrina Bush permanecem muito semelhantes à
estratégia realista. O que nos permite concluir que nova estratégia de segurança
nacional dos Estados Unidos diferencia-se da estratégia realista em alguns
aspectos, mas não em todos.
A justificativa para a mudança de estratégia foi a nova ameaça global,
gerada por redes terroristas e Estados "maléficos". No entanto, o terrorismo não é
uma nova realidade e a classificação de Estados como maléficos não passa de mero
palpite ou inferência. Portanto, esta questão não pôde ser confirmada.
73
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