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Ministério da Educação
Universidade Federal de Pelotas
Instituto de Ciências Humanas
Curso de Licenciatura em História
O ocaso do escravismo no Rio Grande do Sul:
processos cíveis de liberdade no município de Canguçu
(1875-1885)
Álisson Barcellos Balhego
Pelotas, março de 2017
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ÁLISSON BARCELLOS BALHEGO
O ocaso do escravismo no Rio Grande do Sul:
processos cíveis de liberdade no município de Canguçu
(1875-1885)
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas como requisito parcial à obtenção do título de Licenciatura em História.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Ricardo Pezat
Coorientadora: Prof. Drª. Rosane Aparecida Rubert
Pelotas, março de 2017
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Data da Defesa:
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Paulo Ricardo Pezat (Orientador) Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Profª. Drª. Rosane Aparecida Rubert (Coorientadora) Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Agradecimentos
A todos os professores do curso de História da Universidade Federal de
Pelotas pela contribuição para ampliar meus conhecimentos.
Aos meus professores e orientadores, Dr. Paulo Ricardo Pezat e Drª.
Rosane Aparecida Rubert, pela compreensão e dedicação, conversas e
sabedoria. Pelo conhecimento que adquiri em relação à pesquisa e pelo auxílio
que tornou possível a realização deste trabalho.
Aos amigos que fiz durante a trajetória universitária, principalmente à
minha namorada, amiga, companheira Greice Adriana Neves Macedo, que se
fez presente e também me presenteou com muitos livros pertinentes a minha
produção, tanto agora, como durante o período de graduação.
Aos amigos que me acompanharam de longe e que sempre torceram
por mim.
À minha mãe Maria e meu pai Valdir, que me deram estrutura e apoio e
se esforçaram em compreender as minhas ausências e sofrimento no decorrer
da graduação.
Obrigado!
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HUMANIDADE
Depôis de conhecer a humanidade
suas perversidades
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguem pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!
Quando eu morrer...
Não quero renascer
é horrivel, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As pesimas qualidades
Notei que o ente humano
É perverso, é tirano
Egoista interesseiros
Mas trata com cortêzia
Mas tudo é ipocresia
São rudes, e trapaçêiros
Carolina Maria de Jesus. Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996 (grafia original)
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Resumo
BALHEGO, Álisson Barcellos. O ocaso do escravismo no Rio Grande do Sul: processos cíveis de liberdade no município de Canguçu (1875-1885). Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de Licenciatura em História. Universidade Federal de Pelotas. 2016.
O presente trabalho tem por intuito analisar ações de liberdade ocorridas
no Brasil, mais especificamente no município de Canguçu (RS), durante o final
do período escravista (1875-1885). A pesquisa toma como fonte primária as
ações de liberdade depositadas no Arquivo Centralizado do Judiciário, em
Porto Alegre. Tais processos giram em torno das leis abolicionistas brasileiras
e uruguaias. O Desfecho desses procedimentos jurídicos evidencia uma ideia
de libertação paulatina das pessoas negras escravizadas. Sendo assim, as leis
abolicionistas complementam etapas de um processo iniciado na metade do
século XIX com o final do tráfico transatlântico de escravos. Além disso, a
pesquisa busca compreender o funcionamento das leis e do aparelho judiciário
através das ações de personagens variados, como coronéis da guarda
nacional, estancieiros, comerciantes e padres, além, é claro, dos próprios
juízes, advogados, escrivãos e testemunhas, sendo que os africanos e
afrodescendentes escravizados são reduzidos a meros objetos de tais ações
judiciais.
PALAVRAS-CHAVE: Leis abolicionistas; Ações de liberdade; Canguçu;
Século XIX.
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Sumário
Introdução .................................................................................................... 08 Capítulo 1 – A economia e o trabalho escravo no Brasil na
perspectiva historiográfica ..................................................
11 1.1 – O arcaísmo como projeto para a construção de uma
nação .........................................................................................
11 1.2 – A cafeicultura e a consolidação do Estado nacional no Brasil ... 13 1.3 – A ordem política imperial e o escravismo ................................... 16 1.4 – A formação da sociedade gaúcha e o escravismo ..................... 21
Capítulo 2 – Um breve histórico das leis abolicionistas e da cidade de Canguçu....................................................................................
27
2.1 – A Lei Feijó e seus antecedentes ................................................ 27 2.2 – O Bill Aberdeen e a Lei Eusébio de Queiroz ............................... 30 2.3 – Lei do Ventre Livre ...................................................................... 31 2.4 – Leis dos Sexagenários ................................................................ 32 2.5 – Lei Áurea ..................................................................................... 32 2.6 – Canguçu ...................................................................................... 34 2.7 – Ações de Liberdade .................................................................... 35
Capítulo 3 – Os processos jurídicos ......................................................... 37
3.1 – Para bem e fielmente, sem dolo, nem malícia ............................ 37 3.2 – Deus guarde a Vossa Senhoria: o caso de ‘Seu Jacinto’ ........... 41 3.3 – Antônio africano ..........................................................................
Considerações Finais ................................................................................. 48 Fontes Primárias ........................................................................................ 51 Referências Bibliográficas ......................................................................... 52
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Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar ações de liberdade do final
do período escravocrata (1875 até 1885) provenientes da vila de Canguçu/RS,
município situado no interior, próximo à cidade de Pelotas, e que no final do
século XIX detinha uma grande extensão territorial. A escolha do tema se deu
em razão do interesse em estudar os mecanismos utilizados pela população
negra escravizada do extremo sul do Brasil para obter a liberdade.
O trabalho é fundamentado em fontes documentais depositadas no
Arquivo Centralizado do Judiciário de Porto Alegre/RS. Os documentos em
questão remontam às duas últimas décadas do período escravista e do Império
no país. Importa registar que a empreitada aqui proposta irá utilizar fontes
primárias e inéditas quando se pensa na história da escravidão no Rio Grande
do Sul meridional.
As fontes são ações de liberdade de negros escravizados. Tais ações
consistem em processos de ordem cível, e não criminal. Ou seja, mesmo que
retratem o ambiente social bárbaro de uma sociedade escravista, essa
jurisdição não se desdobra em uma normativa de punição à classe senhoril,
mas reforça uma estratégia de libertação gradativa da população cativa.
A pesquisa apoiada em documentos antigos traz algumas
peculiaridades, como a necessidade de transcrição por se tratar de outra
ortografia, de outra gramática e até de outra forma de pensar. E nesse caso,
em que o documento está inserido em processos jurídicos, soma-se a
dificuldade em compreender uma linguagem bastante específica e técnica,
tornando o vocabulário e os discursos mais densos.
O município de Canguçu atualmente ainda é um grande facho de terra,
mas no período pré-abolição possuía uma extensão territorial ainda maior, pois
nesse momento certas localidades ainda faziam parte do distrito e vão se
emancipar bem mais tarde. Deste modo, atualmente Cristal e Cerrito são
municípios autônomos, mas constituíam parte significativa do município de
Canguçu no período de análise proposto.
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O presente texto está dividido em três capítulos e alguns subcapítulos a
seguir sintetizados.
O primeiro capítulo, intitulado “A economia e o trabalho escravo no Brasil
na perspectiva historiográfica”, consiste em uma revisão da literatura sobre as
características do escravismo brasileiro, particularmente ao longo do século
XIX. Neste sentido, o capítulo procura sintetizar as análises feitas por João
Fragoso e Manolo Florentino acerca do arcaísmo da economia brasileira no
período imperial, por Rafael Marquese e Dale Tomich sobre a importância da
cafeicultura para a consolidação do Estado nacional no Brasil, de José Murilo
de Carvalho sobre a elite política brasileira e o problema da escravidão e de
Fernando Henrique Cardoso acerca do escravismo no Rio Grande do Sul. Tais
autores, já clássicos nos estudos sobre a escravidão brasileira, servirão de
base para se entender o cenário brasileiro e o caminho que o país percorre até
a libertação dos cativos.
O segundo capítulo apresenta um breve histórico sobre as leis
abolicionistas brasileiras que acabam embasando os processos cíveis
propostos por pessoas em condições de escravidão. Sendo assim, essas
normas são criadas e atendem a estímulos diversos. Portanto, conforme a
conjuntura mundial se desinteressa pelo tráfico de pessoas negras, no Brasil se
estabelece toda uma legislação visando coibir a importação de novas levas de
africanos escravizados e de gradual abolição dos cativos no país. Nesse
sentido, as normas procuram estabelecer uma libertação paulatina dos negros,
atendendo a demandas internas e externas. O capítulo também procura fazer
uma caracterização dos processos jurídicos a serem analisados, visando
entender o funcionamento formal e informal do judiciário brasileiro do século
XIX. Assim, procura esclarecer de qual âmbito judicial se está tratando, os
agentes dos diversos procedimentos e alguns elementos que normalmente não
fariam parte de um processo geral, mas como a relação do escravizado com o
senhor é repleta de nuances, são muitas as forças presentes em um ofício
judicial, tanto em relação ao conteúdo da denúncia, quanto no desenvolvimento
do arbitramento, por exemplo.
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Finalmente, o terceiro e último capítulo consiste na análise e exposição
das fontes primárias, isto é, de casos de processos cíveis de liberdade que
tramitaram na comarca de Canguçu nos quais negros escravizados
reivindicavam a liberdade. Este capítulo procura dialogar com os anteriores,
principalmente ao tentar articular a análise dos processos específicos com a
legislação abolicionista na qual se apoia e com a historiografia mais ampla
sobre o escravismo brasileiro. Cabe notar que muitas vezes as normas legais
são atropeladas pela pressão política e econômica das partes envolvidas nos
processos, especificamente da classe senhoril. Também é importante observar
a participação em tais processos de outros elementos da sociedade e as
estratégias utilizadas pelos autores das ações.
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Capítulo 1 – A economia e o trabalho escravo no Brasil
na perspectiva historiográfica
O presente capítulo tem por intuito discutir sobre a economia e o
trabalho escravo no Brasil. Para tanto, faz-se necessário considerar todo um
contexto desenvolvido em momentos anteriores. Tal esforço levará em conta
os escritos de muitos autores, mas de forma especial as obras de João
Fragoso e Manolo Florentino (2001), de Rafael Marquese e Dale Tomich
(2009), de José Murilo de Carvalho (1981) e de Fernando Henrique Cardoso
(2003 – 1ª edição de 1962).
1.1 – O arcaísmo como projeto para a construção de uma nação
Um texto fundamental para que se compreenda a ideia de Brasil
proposta por sua elite quando de sua constituição em Estado nacional, no início
do século XIX, com a independência política em relação a Portugal, é “O
arcaísmo como projeto - mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil
em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c.1790-c.1840”, de João
Fragoso e Manolo Florentino (2001).
O livro apresenta um modelo interpretativo para o sistema econômico
brasileiro, chamando a atenção para alguns fenômenos econômicos e sociais
não contemplados por autores anteriores, como Caio Prado Junior, Celso
Furtado e Fernando Novais. Fragoso e Florentino apontam para o acúmulo de
riqueza dentro da colônia e para a perpetuação de um sistema. Quer dizer, a
partir da economia de plantation de cana de açúcar e depois de café com base
no trabalho escravo e visando ao atendimento do mercado internacional,
constitui-se um modelo de desenvolvimento arcaico que gera um modelo de
mercado e um status quo que se sustentam ao longo de todo o período colonial
(1500-1808/1822) e que, em linhas gerais, se mantém durante o período
imperial (1808/22-1889).
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Cabe lembrar que o Brasil deixa de ser uma colônia típica em 1808, com
a vida para cá da família real portuguesa, momento em que o império
português passa a ser administrado a partir do Rio de Janeiro. A independência
política formal, em 1822, se dá através de um arranjo político entre a antiga
metrópole e a ex-colônia, visto que esta herda a dívida externa daquela e que a
dinastia reinante em ambos os países é a mesma.
Obtida a independência política, o Brasil manteve a mesma estrutura
econômica vigente durante o período colonial, baseada na produção em larga
escala de produtos tropicais utilizando mão de obra escrava e com vistas ao
atendimento da demanda do mercado internacional.
Não houve nenhum projeto de modernização efetiva da sociedade e da
economia brasileira, o que implicaria na abolição da escravidão e no
desenvolvimento industrial, tal como estava ocorrendo nos Estados Unidos,
principalmente nos estados setentrionais.
Retomando a análise do período colonial, para Fragoso e Florentino a
economia dos séculos XVI-XVIII era estrutura por três pontos. A oferta elástica
de terras, a disponibilidade de mão-de-obra e a grande produção de alimentos.
O primeiro em decorrência da abundância de terras disponíveis para o
desenvolvimento agrícola, o segundo pela possibilidade de importar africanos
escravizados e o terceiro pela diversidade de produções internas. O trabalho
escravo em larga escala impedia uma monetização geral da economia, de
modo que as atividades financeiras e comerciais não chegavam a ameaçar a
hegemonia das atividades rurais ou a estabilidade social dela decorrente.
Deste modo, também a grande oferta dos fatores de produção permitia à
economia colonial sua relativa autonomia em relação às demandas da
metrópole.
Tal hegemonia dos grandes proprietários de terra no Brasil acabou por
sufocar o surgimento de uma burguesia mercantil e financeira que se lhe
opusesse e promovesse a modernização da economia e da sociedade como
um todo. Ao contrário, o comércio e o sistema financeiro começaram a se
desenvolver no Brasil justamente a partir da diversificação dos investimentos
13
desta nobreza rural (poderia-se mesmo dizer “feudal”), mas que mantinha na
exploração da terra com base no trabalho escravo sua principal fonte de renda
e de prestígio social.
1.2 – A cafeicultura e a consolidação do Estado nacional no Brasil
O cenário escravocrata brasileiro está ligado a um potencial econômico,
um círculo que tem por força o trabalho escravo. O projeto de estruturação da
economia no Brasil durante o período imperial (1808/1822-1889) passa a ter
um ponto forte de apoio no momento em que o café se torna o principal produto
da pauta de exportações do Brasil.
Como observam Rafael Marquese e Dale Tomich (2009), o café, uma
planta originária da península arábica, foi introduzido nos hábitos alimentares
ocidentais através dos holandeses, que passaram a cultivar a planta em Java e
depois, no final do século XVII, na região caribenha. A introdução da planta no
Brasil teria ocorrido através do Maranhão, nas primeiras décadas do século
XVIII. Mas até o princípio do século XIX, a planta de café era meramente
ornamental no Brasil. Naquele momento, o mercado internacional do café ainda
se restringia ao consumo por parte da burguesia urbana europeia.
A mudança de cenário está alicerçada, como apontam Marquese e
Tomich, no efeito da revolução do Haiti. Com esse movimento inicia o declínio
da escravaria holandesa, francesa e inglesa no Caribe. A produção de café se
transfere do Haiti para Cuba, mas ambas as ilhas sofriam com a dificuldade de
obter mão de obra, visto que a Inglaterra desde a primeira década do século
XIX estava empenhada em abolir o tráfico transatlântico de escravos no
hemisfério norte.
Desse modo, gradativamente o mercado se abriu espaço para novas
áreas cultivo. O Brasil estava nas condições ideais para se inserir no mercado
de produção de café. Desde meados do século XVIII o ciclo da mineração já
dava mostras de esgotamento, não havendo na virada daquele século para o
século XIX nenhum produto que se destacasse na pauta de exportações do
país.
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O Brasil dispunha de vários aspectos favoráveis ao desenvolvimento da
cafeicultura. O declínio do ciclo da mineração e a possibilidade de continuar
importando africanos escravizados asseguravam abundância de mão de obra.
De outra parte, havia terras disponíveis na serra entre a região mineradora e o
porto de Paraty, situadas ao longo do vale do rio Paraíba do Sul, que nasce em
Minas Gerais, corta o leste de São Paulo e desemboca no mar na província do
Rio de Janeiro.
Finalmente, havia a necessidade por parte do Estado nacional brasileiro
de obter recursos para armar seu exército, para subsidiar o funcionalismo civil
e militar e para desenvolver obras públicas. Assim sendo, desde o princípio do
Império houve um esforço estatal no sentido de viabilizar o desenvolvimento da
cafeicultura.
Como observam Marquese e Tomich, um ramo de café, entrelaçado a
um ramo de tabaco, aparecem na bandeira imperial envolvendo o brasão da
família real. Tal bandeira foi oficializada no dia 18 de setembro de 1822, menos
de duas semanas após a proclamação da independência. Naquele momento, o
café não figurava na pauta de exportações do Brasil.
Ocorre que o pé de café leva sete anos para que dê frutos, o que
evidencia que o desenvolvimento da cafeicultura através do sistema de
plantation com base no trabalho escravo era um projeto de desenvolvimento
para o país. Daí o título da obra de Fragoso e Florentino, “O arcaísmo como
projeto”, pois naquele momento em que o Brasil começa a se estruturar
enquanto país independente houve a aposta em um sistema de organização do
trabalho anacrônico, visto que já era amplamente contestado na Europa. Da
mesma maneira no campo político, visto que o regime implementado foi da
monarquia, então amplamente contestado no velho continente.
Sendo assim, as mudanças na conjuntura econômica internacional
articularam-se com a conjuntura interna do Brasil e permitiram que o café se
tornasse o principal produto da pauta de exportações do país em 1828, sendo
que em 1830 o Brasil se tornou o maior produtor mundial de café.
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O impacto do desenvolvimento da cafeicultura foi ainda maior se
considerarmos que o café deixou de ser um produto consumido apenas pela
burguesia europeia, passando também a ser amplamente consumido pelo
proletariado daquele continente, tendo em vista seu poder estimulante e a
necessidade de que os trabalhadores ficassem acordados durante
intermináveis jornadas de trabalho. O Brasil atendeu a tal demanda imposta
pela Revolução Industrial, aumentando exponencialmente sua produção de
café e assim inundando o mercado internacional e ocasionando a queda nos
preços, assim viabilizando que o café fosse consumido por porções cada vez
mais amplas das sociedades europeias e também da sociedade norte-
americana.
A partir da metade do século XIX, paulatinamente as fazendas situadas
na província do Rio de Janeiro começaram a ter suas terras esgotadas, em
função do sistema de monocultura. Ao mesmo tempo, os cafezais começaram
a se espalhar pela província de São Paulo.
O aumento constante da demanda internacional por café permitiu que a
fronteira aberta e a mobilidade proporcionada pelo trabalho escravos levassem
à ocupação de novos territórios. Para esta mobilidade contribuíram inovações
tecnológicas, como a construção de uma malha ferroviária entre as fazendas
de café e os portos exportadores e a introdução de maquinário avançado para
beneficiamento do café.
Neste processo de deslocamento geográfico, a fronteira aberta e a
mobilidade proporcionada pelo trabalho escravo permitiram a ocupação de
novos territórios, tornando o país ainda mais apto a comandar os impulsos do
mercado mundial.
E esse é o caráter “moderno” da escravização no Vale da Paraíba que
dará ao Brasil uma base para determinar o preço mundial de um artigo
inseparável do cotidiano das sociedades industriais urbanas, em que o ritmo do
trabalho passa a ser marcado pelo tempo mecânico do relógio e pelo consumo
de café. O abastecimento das zonas centrais articulou de forma direta a
degradação do trabalho e da natureza nas zonas periféricas. Os fazendeiros do
Vale do Paraíba promoveram um dos maiores fluxos de africanos escravizados
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para o Novo Mundo. Cabe destacar que tal importação de africanos ser ilegal a
partir da lei de 1831, mas que não saiu do papel. Outro aspecto do
desenvolvimento da cafeicultura no Brasil é que ele arrasou com uma das mais
ricas coberturas florestais do mundo.
1.3 – A ordem política imperial e o escravismo
Para se compreender determinado contexto histórico é preciso
contemplar diversos aspectos da realidade. Portanto, não basta se deter no
componente econômico, sendo necessário articulá-lo com outras dimensões do
processo. Deste modo, também a conjuntura política necessita ser analisada
para se ter uma compreensão mais ampla da sociedade escravocrata do Brasil
no século XIX.
Em “A Construção da Ordem” (1981), José Murilo de Carvalho procura
demonstrar como as “classes conservadoras” eram compostas e como
defendiam seus interesses. Em essência, o poder econômico se concentrava
nas mãos dos grandes proprietários de terras. Mas havia uma hierarquia dentro
deste grupo, pois aqueles que produziam mercadorias demandadas pelo
mercado internacional, como os cafeicultores, desfrutavam de maior poder
pressão junto ao governo imperial relativamente àqueles latifundiários de
províncias periféricas que produziam para atender às demandas do mercado
interno.
Além dos grandes proprietários de terras, também os grandes
exportadores e importadores desfrutavam de poder econômico, poder político e
influência social, entretanto em escala menor relativamente aos possuidores de
terras.
Mas o Estado, através do conjunto dos poderes que o compunham
– Legislativo, Executivo e Judiciário, deixando de fora o Moderador, que era
privativo da figura do Imperador, de acordo com a Constituição do Império de
25 de Março de 1824 – não era composto apenas por latifundiários e grandes
comerciantes. No cotidiano, era conduzido por uma série de funcionários e
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representantes legislativos eleitos. Mas estes eram geralmente oriundos de
famílias de grandes proprietários.
De fato, como as terras não eram divisíveis até o final do século XIX,
geralmente eram herdadas pelo filho mais velho do latifundiário, enquanto que
os demais eram destinados às carreiras política, militar ou clerical.
O diploma de Direito era um passaporte para que estes jovens bem
nascidos ingressassem na vida pública, seja na vida político-partidária, seja no
poder judiciário, seja no âmbito do funcionalismo público mais amplo. Não por
acaso, este período foi caracterizado como sendo de domínio do
“bacharelismo”.
José Murilo de Carvalho observa que muitas vezes os servidores do
Império priorizavam os interesses do Império em prejuízo de seus interesses
de classe. Sua argumentação consiste em que esse grupo era o motor da
política imperial, pois sua proximidade com o Imperador influenciava as
decisões do Executivo, alcançando questões de grande amplitude econômica e
política.
A maioria dos componentes da elite não detinha a condição de
representante do seu grupo social, posto que só ocupava determinado posto
pela vontade direta do Imperador ou de seus prepostos, de modo que restava
pouca autonomia de decisão.
Isto se percebe quando D. Pedro II decidiu aprovar um conjunto de leis
de caráter abolicionista. Mesmo que tais leis prejudicassem os interesses da
elite, pois a escravidão era o suporte social e econômico daquela sociedade,
configurando o seu poder, o monarca era investido de poder para essa medida
ser efetivada.
Cabe observar que se as leis abolicionistas contrariavam os interesses
da elite cafeicultora e de seus representantes no curto prazo, no longo prazo
garantia os seus interesses. Deste modo, havia um pacto que o governante e a
elite, mesmo que implícito.
18
José Murilo de Carvalho procura ainda construir uma investigação
acerca das origens sociais e das ideologias dos partidos existentes durante o
Império. Neste sentido, analisando a historiografia prévia sobre a temática, ele
destaca três partidos ou posições ideológicas distintas existentes no século
XIX. Dentre tais posições existem aquelas que negam diferença entre os
partidos Conservador e Liberal, as que os diferenciam em termos de classe
social às quais representariam, e aqueles que os distinguem por outras
peculiaridades, tais como a origem regional ou a origem urbana ou rural.
De acordo com Carvalho, os autores que negam diferença entre os dois
partidos imperiais são Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Nestor
Duarte, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Vicente Licínio Cardoso. Caio Prado
Junior destaca um conflito entre o que para ele se entende como uma
burguesia reacionária, que representa os donos de terras e senhores de
escravo, e a burguesia progressista, denotada pelo comércio e pelas finanças.
Nestor Duarte e Maria Isaura entendem os partidos Conservador e Liberal
como simples representantes de interesses agrários que, segundo esses
autores, dominavam a politica imperial.
Ainda de acordo com José Murilo de Carvalho, Raymundo Faoro,
Azevedo Amaral e Afonso Arinos de Melo Franco admitem diferenças na
origem social dos membros dos partidos imperiais. Só que os autores
encontram pontos diferentes em suas análises. Faoro percebe o Partido
Conservador como representante do estamento burocrático, enquanto que os
liberais seriam representantes de setores agrários opostos aos avanços do
poder central, promovido pela burocracia. Azevedo Amaral enxerga nos
conservadores os representantes dos interesses rurais e nos liberais a voz dos
grupos intelectuais e de outros grupos marginais ao processo produtivo, como
os mestiços urbanos. E Afonso Arinos considera os liberais como
representantes da burguesia urbana, dos comerciantes, dos intelectuais e dos
magistrados, enquanto que o partido conservador representaria os interesses
agrários, principalmente os cafeeiros do Rio de Janeiro. Azevedo Amaral tem
pensamento próximo ao de Oliveira Viana, não distinguindo socialmente os
dois partidos monárquicos, destacando apenas algumas sutis diferenças
ideológicas. Fernando de Azevedo e João Camilo de Oliveira Torres percebem
19
uma distinção de tipo rural-urbano nos partidos Liberal e Conservador. O
Partido Liberal seria composto por grupos urbanos e o Partido Conservador por
grupos rurais. Deste modo, indica Carvalho:
Além de variarem radicalmente as afirmações sobre a composição social dos partidos, esta variação tem por base concepções totalmente diversas sobre a estrutura social e o sistema de poder vigente no Império. Estas concepções vão desde o império burguês de Caio Prado, com setores reacionários e progressistas, à sociedade patriarcal de Nestor Duarte; ao domínio do latifúndio de Maria Isaura; à predominância do estamento burocrático de Faoro; à sociedade escravista de Vicente Licínio Cardoso; à sociedade quase feudal de Oliveira Vianna. Os partidos forçados a refletir estas variadas concepções assumindo também as mais diversas fisionomias como acabamos de ver (CARVALHO, 1981, p.157).
Carvalho destaca ao longo do texto a falta de coesão nas posições dos
partidários de tal ou qual partido. E um dos momentos em que é interessante
observar tal ausência de alinhamento é justamente no debate sobre a abolição
da escravatura. Como destaca o autor, os deputados e senadores não votaram
de acordo com a decisão dos partidos aos quais pertenciam, mas em função
do interesse específico das províncias que representavam.
A complexidade da composição dos partidos imperiais pode ser
percebida em relação às posturas que adotaram no âmbito de reformas sociais,
particularmente no que diz respeito às votações das leis abolicionistas.
O Partido Conservador, em cuja composição se destacavam altos
burocratas, magistrados e grandes comerciantes de exportação e importação,
tendia a favorecer tanto à centralização quanto às reformas sociais. Os
magistrados nordestinos presavam por uma combinação de estatismo e de
reformismo, principalmente para os oriundos de províncias em que o problema
da mão de obra escrava não era tão séria, como o Ceará. Ao mesmo tempo,
esses elementos fazem parte da base de apoio de Rio Branco na passagem da
Lei do Ventre Livre, em 1871. Nessa ocasião, muitos funcionários públicos do
nordeste, muito pela má situação econômica de suas províncias, optaram por
votar com o governo, apoiando a aprovação da lei, ainda que a mesma ferisse
aos interesses de sua classe. O maior apoio ao projeto do Ventre Livre veio do
norte, sendo que a maior repulsa veio do sul. Muitos dos profissionais liberais
sulistas tinham ligações com proprietários rurais, se não eram eles mesmos os
20
tais proprietários. Os grandes proprietários do sudeste e do sul do Brasil se
dividiram no tocante à votação do projeto de lei, que só foi aprovado graças ao
comportamento eleitoral de seus colegas do norte e do nordeste. O grande
movimento de Rio Branco, enquanto líder do governo no Congresso Nacional,
foi conseguir uma coalizão de funcionários públicos e proprietários nordestinos
contra os profissionais liberais do sul, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Paulo, as províncias cafeeiras do Império.
A complexidade do Partido Conservador fica evidente na reação violenta
de alguns setores do partido em relação à aprovação da Lei do Ventre Livre.
Rio Branco foi acusado de rachar o partido por deputados fluminenses,
mineiros e paulistas. A “circular do castigo” foi a forma de revidar encontrada
pelo partido para alguns casos. Taxava-se a Lei do Ventre Livre como loucura
dinástica, sacrilégio histórico e suicídio nacional, dada a repulsa ao projeto por
parte dos cafeicultores, independentemente de serem conservadores ou
liberais.
Historicamente, desde suas origens o Partido Liberal indicava apoio às
reformas sociais, principalmente na primeira metade do século XIX, quando
padres, ainda participavam ativamente da política partidária. Mas logo houve o
desaparecimento dos religiosos da política nacional, que deram lugar à
hegemonia de profissionais liberais, como advogados e jornalistas. Depois o
apoio provinha de magistrados que haviam se tornado liberais após uma
filiação inicial ao Partido Conservador.
Além de uma ala reformista, originária em boa parte do nordeste e da
cidade do Rio de Janeiro, o Partido Liberal contava também com a presença de
proprietários, os quais também podiam ser advogados ou médicos, em
especial, os vindos de Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul. Um dos
momentos de divisão do grupo foi quando o ministério liberal de Dantas tentou
passar a Lei do Sexagenário, em 1885. A grande divisão interna do Partido
Liberal o impedia de aprovar reformas incluídas no programa pelo seu setor
reformista. A única contribuição desse partido para a abolição foi a passagem
da lei do sexagenário na Câmara, mas foi necessária uma troca de gabinete
para que passasse no Senado. Deste modo, todas as leis de reforma social,
21
isto é, toda a legislação abolicionista foi aprovada pelo Partido Conservador
graças às articulações do baiano Saraiva, como indica José Murilo de
Carvalho. Acontecia que o Partido Liberal não conseguia passar reformas e o
Partido Conservador as implementava ao custo de sua unidade partidária.
1.4 – A formação da sociedade gaúcha e o escravismo
Em “Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na
sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul” (1962 – 5ª ed. 2003), Fernando
Henrique Cardoso derruba alguns mitos que predominavam na historiografia
gaúcha anterior à publicação da obra, principalmente aquele que relegava a
participação do negro na sociedade sul-rio-grandense a um papel de menor
importância ou que, mesmo admitindo a presença e a importância da
escravidão negra no processo de formação da sociedade gaúcha, percebia o
processo como sendo isento de violência, pois que preponderaria no sul do
Brasil a “democracia galponeira”, na qual o chimarrão passava de mão em
mão, agrupando senhores, peões e escravos.
Antes de tratar da participação do negro na sociedade gaúcha, Cardoso
faz um balanço explicativo das causas pelas quais a região hoje conhecida
como Rio Grande do Sul foi deixada de lado por portugueses e por espanhóis
durante todo o primeiro século da colonização ibérica na América do Sul. De
fato, foi apenas na primeira metade do século XVII que os jesuítas espanhóis
decidiram instalar algumas missões catequizadoras de índios guaranis na
margem esquerda do rio Uruguai, isto é, no atual território sul-rio-grandense.
Na ocasião, houve a introdução do gado na região, que acabou se
multiplicando naqueles campos infinitos e sem cercas.
O ataque dos bandeirantes, na busca de indígenas para escravizar, fez
com que os jesuítas abandonassem a região e o gado ficasse largado nos
campos, se reproduzindo livremente e constituindo verdadeiras manadas
selvagens.
No que tange à formação econômica do Brasil Meridional, Fernando
Henrique Cardoso destaca o padrão dos empreendedores vindos de São
22
Vicente, no sul de São Paulo. O patriarca deslocava-se com a família e
agregados, além de escravizados - que podiam ser negros ou indígenas -, e
ocupava terras no litoral de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, onde
apreava mulas e gados para serem levados vivos por tropeiros para São Paulo
e para Minas Gerais. Deste modo criou-se uma ligação entre a atividade
predatória do sul e a economia do centro da colônia, que então girava em torno
da mineração. A descoberta do caminho para escalar os contrafortes da serra
do Mar por Araranguá, no litoral sul de Santa Catarina, resolveu o problema de
aproveitamento da riqueza do sul. Sem alterações no padrão familiar de
trabalho, o estabelecimento de uma atividade quase próspera no Brasil
Meridional foi possível.
Fernando Henrique Cardoso observa ainda que além desta atividade
predatória, aos poucos se estabeleceu em alguns locais de Santa Catarina e
do Rio Grande do Sul um regime de pequena propriedade Em Santa Catarina
os colonos açorianos, em boa parte agricultores pobres das ilhas, foram
situados em lotes pequenos e mal distribuídos ao longo do litoral. Já no Rio
Grande do Sul ocorreu uma distribuição melhor, e como havia uma tendência à
maior concentração de terra, os colonos puderam aumentar facilmente suas
propriedades. Mesmo sem introduzir um produto colonial de exportação e uma
economia próspera, constituíram-se alguns núcleos dinâmicos de produção
rural.
Entretanto, a pequena propriedade açoriana enfrentou uma dificuldade
decorrente de ser a região sulina militarmente estratégica para o império
português, pois que se situava nas proximidades da desembocadura do rio da
Prata no oceano Atlântico, sendo aquele rio uma via de acesso ao interior do
continente, isto é, a uma ampla porção de terras internas do império lusitano.
Deste modo, mesmo que o consumo fosse maior pela proximidade dessas
tropas concentradas na região, muitas vezes a produção agrícola era
confiscada e o pagamento demorava a ocorrer. Tal irregularidade do
pagamento estimulava os pequenos e médios produtores a procurar outras
formas de atividade. Outro ponto elencado por Cardoso é o fato de que como a
mão de obra nas regiões de colonização açoriana era em boa parte livre, os
23
recrutamentos militares enfraqueciam mais o sistema econômico das regiões
coloniais sulinas.
Apesar da situação econômica precária, houve nas últimas décadas do
século XVIII uma prosperidade relativa, graças ao comércio de gado vivo, de
trigo e de mandioca. Tal desenvolvimento permitiu que houvesse um aumento
na presença de cativos na região sul do Brasil.
Mas mesmo com os efeitos produzidos pelo crescimento da produção do
trigo, da mandioca e da cana para a acumulação de riquezas, a fraca base
técnica e social da produção não fomentou uma economia com vitalidade
suficiente para comportar os desregramentos da administração colonial, assim
como as oscilações do mercado.
Deste modo, a economia sulina encontrou formas para organizar-se de
forma mais efetiva e permanente quando o charque e a exploração do gado
passaram a fazer parte do contexto econômico da região. Fernando Henrique
Cardoso ainda pondera que a prosperidade intermitente, a relativa e precária
organização do setor exportador da economia local e a pobreza constante da
economia de subsistência caracterizaram, durante as primeiras décadas do
século XIX, a atividade econômica do Brasil Meridional.
Cardoso observa ainda que o aumento do poder dos homens locais traz
uma mudança de comportamento tanto no modo de tratamento como nos
negócios. As autoridades metropolitanas passaram a compactuar com essa
classe senhorial militarizada que surgia no sul do Brasil, com o fito de se
servirem dela nos conflitos platinos. Em Santa Catarina a autoridade dos
comandos militares foi substituída antes do que no Rio Grande pela autoridade
civil dos representantes do Rei. E a aliança entre estes e os súditos
enriquecidos concretizou-se de forma mais rápida.
Cardoso observa também que no Brasil Meridional a ordem patrimonial
estatal portuguesa foi substituída por uma forma de dominação próxima do
patriarcalismo, mais próxima de uma situação em que a existência social
depende do fortalecimento do poder das famílias e do crescimento das fortunas
particulares. Essa transformação não obedece a desígnios do Estado
24
Patrimonial, o que obrigou o estado português a tomar medidas para garantir a
conquista e a posse dos domínios territoriais, mas cujos efeitos levaram a uma
mudança profunda no mecanismo de dominação política e nas condições da
economia.
Outro traço da sociedade sulina para o qual Cardoso chama a atenção é
a violência. De fato, até mesmo antes do desenvolvimento das charqueadas o
processo de ocupação das terras e as condições de manutenção da autoridade
nos campos e nas fronteiras tinha por base a força das armas. Quando não
eram tropas portuguesas, eram tropas espanholas ou grupos de guerreiros e
saqueadores de gado que garantiam a posse da terra. Ponto que, como explica
o autor, não é estranho, pois a própria organização dos grupos “guerreiros” era
feita a partir de violência. Era reconhecida a capacidade dos chefes de
disporem de força e exercerem violência. A força era usada sem pudor.
Entretanto, Cardoso pondera que enquanto fosse possível usar a dominação
colonial baseada puramente na legalidade do mando, isso ocorria, o que
impedia o uso da força meramente para fins pessoas.
Cardoso rejeita o mito da democracia e do igualitarismo, então vigentes
na historiografia pampeana. Os lagunistas e os preadores de gado vindos de
São Paulo transferiram para o sul, no início da ocupação de terras, o mesmo
sistema de organização econômico e trabalhista existente no resto da colônia.
Sendo assim, havia a presença da grande propriedade fundiária mantida e
dirigida pela família patriarcal, tendo o trabalho escravo como base, com a
presença de alguns agregados. Só nos setores laterais da sociedade sulina o
padrão geral pode ser substituído por outras formas, e isso em épocas
diferentes.
No início do século XIX, a estrutura administrativa e as condições de
prosperidade do Rio Grande não passam pelo mesmo ritmo de organização
proposto no resto da colônia. A reorganização da administração das capitanias
e da politica do governo central para com os estancieiros e exportadores
sulinos não corria da mesma forma. Junto das camadas dominantes do Império
que se integraram como proprietários, continuaram a existir representantes da
Coroa que se obstinavam em manter a dominação de estilo colonial típico. A
25
mudança da Corte para o Rio de Janeiro agravou o processo e no lugar
acalmar os ânimos, passou a fazer mais pressão política para deter o controle.
Os gaúchos passaram a sentir que a opressão feita pelo Rio de Janeiro era
maior do que aquela exercida por Lisboa. E não estavam enganados, visto que
após 1822, com a independência, o governo imperial tinha maiores despesas,
decorrentes da necessidade de armar um exército que defendesse suas
fronteiras, constituir uma burocracia estatal e realizar obras públicas.
De fato, a economia do Império passou a girar em torno da cafeicultura
desenvolvida inicialmente no vale do rio Paraíba do Sul, na província
fluminense, depois se expandindo para São Paulo e Minas Gerais. Naquela
conjuntura, como visto antes, rapidamente o café se tornou o maior produto da
pauta de exportações do Brasil e este se tornou no maior produtor mundial.
Neste contexto, a política econômica imperial consistia em privilegiar a
exportação de café. Entretanto, o Brasil enfrentava a concorrência de outros
países, de modo que havia a preocupação em que o custo de produção do café
fosse baixo, de modo a aumentar a competitividade do produto brasileiro e
assim alavancar as exportações, assim financiando a constituição do Estado
nacional.
Ocorre que o charque era o principal alimento dos negros escravizados
que trabalhavam nos cafezais do sudeste do país. Para os cafeicultores e para
o governo imperial, o importante é que o charque fosse barato, assim
diminuindo o custo de produção do café e aumentando o lucro nas suas
vendas externas. Assim, pouco importava se o charque era produzido no Rio
Grande do Sul, no Uruguai ou na Argentina. Resultava daí uma política
alfandegária que pouco taxava o charque estrangeiro, assim prejudicando os
charqueadores do Rio Grande do Sul.
De acordo com Fernando Henrique Cardoso, o principal problema do Rio
Grande do Sul era que este tinha uma economia subsidiária da economia
central de exportação, isto é, o charque era um insumo da produção de café.
De outra parte, o café é um produto de sobremesa, sendo que em meados do
século XIX ele respondia pela metade das exportações do Brasil. Portanto, o
26
Brasil estava situado na periferia da economia mundial, sendo que o Rio
Grande do Sul estava na periferia da periferia.
Daí a rejeição de Cardoso em ver na Revolução Farroupilha um
movimento separatista, visto que a independência em relação ao Império
prejudicaria ainda mais as condições de concorrência do charque produzido no
Rio Grande do Sul em relação ao charque platino. Ocorre que o charque era
produzido no sul do Brasil utilizando mão de obra escrava, enquanto que no
Uruguai e na Argentina a mão de obra era assalariada. Enquanto que o
charqueador gaúcho precisava comprar o escravo, tendo um grande prejuízo
se este fugisse, se suicidasse ou simplesmente sucumbisse às péssimas
condições de trabalho, o saladeiro platino podia simplesmente dispensar o
trabalhador no período de entressafra. Daí se conclui que a produção de
charque com base no trabalho escravo era irracional quando comparada à
produção com base no trabalho livre, visto que este se adaptava melhor e mais
rapidamente às oscilações de um mercado capitalista.
Portanto, para Cardoso a Revolução Farroupilha apenas exprimia uma
tentativa extrema para reorientar na politica imperial as relações entre o Poder
Central e a Província.
27
Capítulo 2 - Um breve histórico das leis abolicionistas e
da cidade de Canguçu.
2.1 - A Lei Feijó e seus antecedentes
A Lei Feijó, promulgada em 7 de novembro de 1831, no início do
Período Regencial (1831-1840), declarava livres todos os africanos vindos de
fora do Império que adentrassem no mesmo a partir de sua entrada em vigor,
estabelecendo penas aos importadores destes africanos escravizados. A lei
objetivava reprimir o tráfico transatlântico de escravos, demonstrando à Coroa
britânica que o Brasil estava se empenhando em contribuir para a extinção do
comércio internacional de cativos. A questão é que, na prática, essa lei nunca
foi executada, sendo desrespeitada por todos os responsáveis pelo tráfico.
Apenas em 1850, com a publicação de uma segunda lei (a Eusébio de
Queiroz), o seu objetivo inicial pôde finalmente se realizar.
Mas esta lei teve precedentes na história das relações entre brasileiros,
portugueses, britânicos e, é claro, africanos.
Desde o princípio do século XIX, a Grã-Bretanha iniciara uma campanha
de combate ao tráfico internacional de escravos, se valendo de um discurso
que demonstrava preocupações humanitárias e se apoiava em princípios
naturais de liberdade, a partir da crença de que todos os homens nasciam
livres e iguais.
Inicialmente a Inglaterra se empenhou em abolir o tráfico de escravos ao
norte da linha do Equador, isto é, no Atlântico norte, nas rotas que abasteciam
os Estados Unidos - visto como um competidor – e no Caribe. Com relação à
região ao sul da linha do Equador, os britânicos demonstraram uma tolerância
maior, até para assegurar a área de influência que tinha na região em
decorrência da decadência de Portugal, de quem o Brasil ainda era colônia.
Os abolicionistas britânicos procuravam denunciar as péssimas
condições de transporte, alimentação, saúde e trabalho a que eram submetidos
os africanos, vítimas da exploração desse “infame comércio” (Rodrigues, 2000,
28
p. 111). Ao mesmo tempo, o modelo de trabalho mudava e essa nova ótica não
abrigava mais um padrão de trabalho cativo, ou escravocrata. E com isso,
tornar o tráfico de escravos uma atividade ilegal, tanto nos países europeus
quanto nas colônias americanas, se tornou uma necessidade e a principal
política de Estado para o governo britânico no decorrer da primeira metade do
século XIX.
A Grã Bretanha aproveita as divergências diplomáticas entre a França e
Portugal, que, com medo de uma ofensiva mais forte das tropas napoleônicas,
transfere a administração do Império lusitano para o Rio de Janeiro, capital da
colônia brasileira. E dessa forma a Inglaterra, oferecendo proteção ao reino
português, assina com este, em 1810, um tratado de aliança e amizade que
definia princípios como os de abolição gradual do comércio de escravos.
O comércio de escravos era um dos principais negócios da economia
colonial de Portugal. Os lusos resistiram em implementar o acordo com os
ingleses. Diante disso, em 1815, a Inglaterra impôs um novo tratado com
medidas mais definidas, como a declaração de ilegalidade do tráfico de
escravos ao norte do paralelo do Equador. Apenas com a Convenção Adicional
de 28 de junho de 1817, que acrescentou mais elementos a esse acordo, a
marinha britânica poderia ter mais controle, podendo capturar embarcações
portuguesas ou brasileiras que carregassem africanos escravizados, além de
julgar os seus comandantes e tripulantes nos tribunais de uma comissão mista.
Em 1822, com a independência do Brasil, a Inglaterra tentou mais uma
vez, por meio de sua influência, forçar o término do tráfico transatlântico de
africanos escravizados para essa ex-colônia, ainda mais que o Estado
brasileiro naquele momento era o maior importador mundial de africanos.
Assim, a Inglaterra definiu como condição para o reconhecimento da
independência do Brasil pela comunidade internacional a assinatura de um
tratado nos moldes dos estabelecidos com Portugal. O acordo em questão foi
ratificado em 13 de março de 1827.
Antes de avançar para outras leis abolicionistas, é importante destacar
que a lei de 7 de setembro de 1831 ficou popularmente conhecida como “lei
29
para inglês ver”, visto que foi aprovada apenas para dar uma satisfação ao
governo inglês, jamais sendo aplicada.
A lei Feijó era composta por nove artigos, sendo que o primeiro deles
declarava livres todos os africanos escravizados que entrassem no Brasil a
partir da data de sua promulgação, como dito acima. Mesmo que não fosse
aplicada ao longo de muitas décadas, cabe registrar que no final do período
imperial muitos escravos e advogados abolicionistas conseguiram que ela
saísse do esquecimento e a utilizaram como argumento jurídico para
pleitearem o direito à alforria.
Outros pontos interessantes desse diploma legal são a punição dos
responsáveis pela importação de escravos, tendo como base o Código Penal
brasileiro, e a ampla classificação de quem seria considerado importador. Ou
seja, incluía os comandantes das embarcações, os financiadores das viagens e
os compradores. Aparentemente essa seria uma lei com força para viabilizar o
desmanche do comércio de seres humanos. Acontece que os cafeicultores e
seus representantes no plano político exerceram sua força para impedir que tal
lei fosse implementada, para isso contando com a omissão do Poder Judiciário
e da sociedade como um todo.
Em 12 de abril de 1832, um decreto determinou que a polícia e o juiz de
paz teriam competência para a vistoria das embarcações suspeitas, além de
cobrar dos traficantes um depósito para a reexportação dos escravos. Nesse
mesmo texto, foi também garantido ao cativo o direito de requerer em juízo, a
qualquer tempo, a declaração da ilegalidade de sua condição de escravo.
Mas nem sempre a prática condiz com a teoria, e esse é o caso da lei
Feijó. As funções de juiz de paz e de chefe de polícia eram quase sempre
exercidas pela classe de proprietários, interessada na continuidade do tráfico,
ou por alguém com quem tivesse laços de parentesco, sendo assim, esta elite
exercia grande influência sobre aquelas autoridades, isto quando não usava de
corrupção ou de ameaças para que tais autoridades agissem com indulgência
em relação à entrada ilegal de escravos no país, como indica Leslie Bethell
(1976, p. 85).
30
2.2 – O Bill Aberdeen e a Lei Eusébio de Queiroz
O dia 8 de agosto de 1845 foi a data em que o projeto de Aberdeen
acabou por ser transformado em lei no parlamento britânico, apreciando o
tráfico negreiro como um ato de pirataria e por isso sujeito à repressão por
parte de qualquer nação, não dependendo de acordo entre países. Com isso, a
marinha inglesa estava autorizada a capturar e julgar navios do Brasil sem
nenhuma limitação ou condição que a lei impusesse, ou seja, ignorava a
legislação nacional e a vontade dos governantes.
Acontece que em 1845, ocorreu o rompimento com a Inglaterra na
questão do combate ao tráfico de escravizados, e o Brasil passa a ser alvo das
imposições do Bill Aberdeen, uma norma britânica que visava, de forma
autoritária, enfraquecer o tráfico de escravos africanos em direção ao Brasil. As
medidas presentes nesse princípio se referiam a outros tratados já firmados
entre as duas nações, que não eram de todo cumpridos pelo Brasil (SANTOS,
2013).
Mesmo os brasileiros sendo contrários ao Bill Aberdeen, os efeitos das
ações inglesas impactaram e reviveram a defesa da causa nacional no intuito
de diminuir a força dessa norma, mas, entre outros pontos, os riscos de conflito
com a potência britânica e o desejo de atrair mão-de-obra estrangeira e livre
para o país forçaram a preparação de um instrumento jurídico próprio capaz de
cessar o tráfico de escravos de forma autônoma e eficaz.
A saída veio com o projeto de Eusébio de Queirós, o qual não tinha fim
humanitário, porém visava atender às estratégias de política externa mais
eminentes da época e defender a soberania nacional ao propor um meio
autônomo de dar fim ao tráfico de escravos.
Para tanto, era necessária uma norma nova, na qual as políticas
institucionais fossem alteradas para o cumprimento dos termos da lei Feijó, de
1831, que haviam ficado no papel apenas. A problemática era que aquela lei
estabelecia que os senhores de escravos estavam como irmanados no crime
de tráfico junto aos traficantes marítimos, o que poderia configurar crime tanto
em terra como em mar.
31
A nova Lei resolve esse impasse, pois extingue pontos que
representassem ameaça ao direito de propriedade dos senhores rurais, em
especial elementos que estivessem vinculados à situação irregular dos
milhares de africanos que entraram ilegalmente no país entre 1831 e 1850
(GURGEL, 2004). Outro aspecto importante é a mudança da opinião pública
nacional, principalmente nas áreas açucareiras e algodoeiras do nordeste, as
quais observavam na paralisação do comércio internacional de africanos uma
saída para saldar suas dívidas, através da venda de seus cativos para as áreas
em expansão no sul e o medo em relação ao futuro da nação em termos de
estrutura racial.
2.3 - Lei do Ventre Livre
A Lei nº 2.040, também conhecida como Lei Rio Branco, “Lei do Ventre
Livre” ou simplesmente “Lei de 1871”, foi assinada em 28 de setembro de 1871
pela Princesa Regente Imperial Isabel, filha mais velha do Imperador D. Pedro
II, que à época estava viajando pela Europa.
Tal lei tinha como seu artigo primeiro a determinação de que os filhos de
mulher escrava que nascessem no Império desde a aprovação da mesma
seriam considerados de condição livre. Mesmo com essa norma, os filhos de
mãe escrava não ficaram imediatamente livres, permaneciam sob o poder dos
senhores de suas mães até os oito anos de idade, com a condição de “criá-los
e tratá-los”. Nessa idade, os senhores poderiam optar por receber uma
indenização da Coroa ou continuar a utilizar os serviços dessas pessoas até
que completasse 21 anos de idade (MOREIRA, 2004, p. 91-108).
Ademais, a Lei do Ventre Livre, além de dispositivos limitadores,
ensejava a possibilidade de emancipação de indivíduos nascidos ao longo da
experiência de escravidão de seus progenitores. O mecanismo ainda criava o
Fundo de Emancipação, cuja ideia era prover a alforria gradual dos escravos
existentes no Império. A norma também estabelecia que escravos podiam
utilizar seus pecúlios para a compra da alforria, o que representou uma
mudança na política de alforria.
32
2.4 - Leis dos Sexagenários
A Lei 3.027, de 28 de setembro de 1885, ficou conhecida como Lei do
Sexagenário e também como Lei Saraiva-Cotegipe, por ter sido aprovada com
o esforço dos dois políticos baianos. De acordo com o texto da norma jurídica,
os escravos deveriam ficar restritos a permanecerem em suas províncias,
ficando vetado, aos seus senhores, o translado para outras regiões.
Caso não conseguissem emprego, as pessoas libertas deveriam
recorrer à polícia, que indicaria o local e o trabalho adequado para os antigos
cativos.
De acordo com a tendência conservadora que inspirou a aprovação da
legislação abolicionista no Brasil, houve a manutenção do trabalho dos
escravos com mais de sessenta anos por mais três anos, para indenizar os
seus senhores. O elemento que determina a aprovação da Lei estava
relacionado ao valor pago pela alforria dos escravos através do Fundo de
Emancipação (tal como está posto na publicação original da legislação
Informatizada do Senado):
Escravos menores de 30 annos................................................. 900$000
de 30 a 40 ................................................................................ 800$000
40 a 50 ….................................................................................. 600$000
50 a 55 ................................................................................... 400$000
55 a 60 ................................................................................... 200$000
De acordo com outro artigo da lei, o valor dos indivíduos do sexo
feminino se regulará do mesmo modo, fazendo, todavia, o abatimento de 25%
sobre os preços acima estabelecidos. E com isso estava constituída mais uma
etapa do lento processo de abolição no Brasil.
2.5 - Lei Áurea
A Lei Nº 3.353, de 13 de maio de 1888, também reconhecida como Lei
Áurea, declarou extinta a escravidão no Brasil. Em Assembléia Geral foi feito o
decreto e, logo após, a princesa Isabel sancionou a lei com os seguintes
33
pontos:
Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no
Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Com a promulgação dessa lei, se consolidou legalmente aquilo que já
vinha acontecendo na prática. Concomitantemente, a demora para a abolição
legal do trabalho escravo (pois o Brasil foi o último país do hemisfério ocidental
a abolir a escravidão) também decorre dos debates entre os partidos da elite
no Congresso monárquico para determinar se o Estado nacional deveria ou
não indenizar os proprietários de escravos por sua libertação. Com a libertação
dos trabalhadores escravizados sendo oficializada pela Lei Áurea, em 1888,
mas os mesmos impedidos de se transformarem em camponeses, quase dois
milhões de ex-escravos adultos saem das fazendas, das senzalas, e tomam
outros rumos, como se dirigir para as cidades na busca de alguma alternativa
de sobrevivência, porém agora vendendo "livremente" sua força de trabalho.
Assim como explica Emília Viotti da Costa:
A abolição no Brasil não foi resultado de uma revolução como ocorrera no Haiti, nem de uma guerra civil como nos Estados Unidos. Os proprietários de escravos não tiveram de enfrentar um governo imperial metropolitano como as colônias do Caribe, Jamaica ou Cuba, por exemplo. No Brasil, os fazendeiros puderam controlar a transição, sobretudo depois que a Monarquia foi substituída pela República federativa de 1889 e os estados ganharam maior autonomia. Apesar da reivindicação de indenização que prosseguiu ainda por algum tempo até que ficou claro que o governo não atenderia a esse pedido, os proprietários de escravos não foram ameaçados por importante conflito intra ou interclasses. (COSTA, 2008, p. 137-138)
Como ex-escravos, pobres e despossuídos de qualquer bem, a
alternativa para estes negros era buscar sua sobrevivência nas cidades, onde
havia trabalho que exigia apenas força física. Também é importante dissertar
que havia impedimentos legislativos quanto à posse de terra, ou seja, essas
pessoas não poderiam se apossar de terrenos e assim construírem suas
moradias. Os melhores terrenos nas cidades já eram propriedade privada dos
capitalistas e dos comerciantes, entre outros personagens urbanos. Esses
trabalhadores negros foram obrigados então a buscar o resto, os piores
34
terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, dependendo
da localidade ou região, por esses espaços não interessarem aos capitalistas.
2.6 - Canguçu
O município de Canguçu está situado na Serra dos Tapes, a qual forma,
junto com a Serra do Herval, a região gaúcha das Serras do Sudeste, serras
estas divididas pelo rio Camaquã, que limita ao norte o município.
As terras de Canguçu, como as de outros municípios situados nas
serras do Tapes e do Herval, são as mais antigas do Rio Grande do Sul, visto
que se constituem dos solos mais antigos do estado, como parte do Escudo
Rio-Grandense, de formação no Período Arqueano.
Os primeiros habitantes foram os índios Tapes, que emprestaram o
nome para a serra em que se assenta o município. Entre 1747-1750, iniciam as
primeiras incursões de numerosos casais açorianos que adentram suas terras
para se estabelecerem.
A nomenclatura da cidade é um ponto ainda sem nitidez. Claudio
Moreira Bento (2007) aponta três teorias sobre o nome. A primeira em que o
título teria sido dado originalmente pelos Tapes que habitavam a região ao
cerro Canguçu, que significaria cabeça grande. A segunda viria dos guaranis,
“Caaguassu”, com o sentido de mato grande, numa alusão dos Tapes a uma
mata densa que cobria a vertente da Lagoa dos Patos. E a terceira seria de
uma onça chamada Canguçu, que provinha da palavra Cang-Suu, cabeça
grande.
Canguçu faz parte de uma rota de trabalho cativo. No século XIX não
era estranho um escravizado sair de Pelotas para lá trabalhar, em um
empréstimo feito por senhores. Assim como não seriam fora do comum as
fugas dessas pessoas para essa localidade que tem como peculiaridade a
presença de rios. Movimento que deu o nome “Quilombo” a um dos vários rios
que cortam o município de Canguçu.
35
2.7 Ações de Liberdade
As ações de liberdade que serão analisadas no próximo capítulo são
provenientes do município de Canguçu e dão conta de uma série de situações
nas quais escravizados buscavam por seu direito à liberdade perante a lei. De
qualquer modo, para iniciar o assunto, é importante entender o que são esses
processos jurídicos e em qual contexto eles se inserem.
Uma ação de liberdade é caracterizada como um processo judicial cível,
sendo assim, não criminal, porém de ordem civil. Esse tipo de processo já
acontecia no contexto dos finais do século XIX, e buscava dentro dos princípios
jurídicos, das relações de poder, entre o costume, que se pode entender como
opinião pública, consenso, tradição e a lei, questionar uma situação de
escravidão em busca da conquista da liberdade, criando ao mesmo tempo uma
jurisprudência, ou melhor, uma interpretação das leis tomadas em julgamentos
anteriores, possibilitando que as mesmas sirvam de fundamento para causas
parecidas e assim constituir um arcabouço jurídico social (CARVALHO, 2011).
Essas ações eram a alternativa jurídica que as pessoas em situação de
escravidão encontravam para reaver perante a lei ou o Estado nacional a sua
condição de liberdade. O procedimento é empreendido, em muitos casos, após
a tentativa de os escravizados ou seus familiares conquistarem a liberdade
pelas vias corriqueiras e cotidianas, mediante um acordo com seus senhores
ou seus herdeiros. Ou até mesmo após uma insegurança jurídica quanto a seu
destino devido ao falecimento de um antigo senhor ou por um confronto direto
com o mesmo.
Essas pessoas escravizadas, imbuídas de recursos sociais, de relações
de proteção e de certa autonomia no mundo das pessoas livres, definem e
concretizam sua vontade de se libertar, como também assumem os riscos e
consequências que podiam resultar de tais tentativas. As ações poderiam
terminar com vitória ou com derrota, mas de uma forma ou de outra é
importante perceber a tentativa de protagonismo destas pessoas em busca de
suas liberdades, explorando os limites do possível em uma sociedade
escravocrata.
36
Contudo, o processo de uma ação de liberdade tem início com um
requerimento, o qual prosseguirá assinado por qualquer pessoa livre, na maior
parte das situações a pedido do escravo. Na sequência, o juiz nomeia um
curador para o escravizado e outros elementos judiciais são propostos. O
procedimento é burocrático, por vezes extenso e poucas vezes tem um trajeto
em que as forças externas não procurem interferir.
37
Capítulo 3 – Os processos de liberdade no município de Canguçu
3.1- Para bem e fielmente, sem dolo, nem malícia.
As leis abolicionistas da segunda metade do século XIX abriram um
amplo espectro para que negros escravizados buscassem suas liberdades por
meios judiciais no Brasil.
São as ações civeis de liberdade em relação a escravizados que
exercem esse papel. Só que mesmo assim, observando por um lado,
atualmente macabro, as ações iam de encontro à preservação do direito de
propriedade dos senhores, um direito inviolável de acordo com os princípios da
Constituição Imperial de 25 de Março de 1824. Estava então deflagrado o
embate entre o aparelho jurídico e o direito senhoril à propriedade. Elemento
curioso ao se pensar que tal prática estava sendo rechaçada pela lei de 1831.
Neste sentido, de acordo com Meyer (2009):
Espaço de confronto jurídico, as ações de liberdade oferecem uma rica visão do embate entre o inviolável direito de propriedade e a causa sagrada da liberdade. Mesmo não se constituindo em instrumento garantidor da liberdade, ao iniciar a demanda promovia-se, senão uma mudança definitiva, uma alteração significativa no status quo do escravo e das relações estabelecidas com seu senhor.
O indivíduo escravizado está dentro de um cenário em que a instituição
da escravidão tem um apreço significativo por parte da população, a partir da
noção de direito à propriedade. Aliás, esta é uma das peculiaridades do
escravismo no Brasil imperial, visto que a Constituição de 1824 não é alheia à
influência do liberalismo, principalmente no campo econômico. Entretanto, o
direito à propriedade se impõe sobre o direito à liberdade, como bem
demonstra a manutenção do escravismo na sociedade brasileira.
Sendo assim, o escravo é entendido como coisa. Mas através da ação
de liberdade ele passa a utilizar elementos formais da sociedade na qual
estava posto à margem. A ação de liberdade busca um direito defendido e
entendido como sagrado no ambiente social branco e então essas pessoas
passam de um estado de coisa para outro status que é latente. Assim como
38
apontam Marquese e Tomich (2009): “As leis em vigor durante praticamente
todo o século XIX, embora escritas, aludiam ao costume”.
O aparelho jurídico brasileiro não estava preparado para lidar com
essas demandas de escravos pela liberdade. Mesmo que a garantia da
liberdade fosse latente, deixando os juristas confortáveis, ficou para esse
mecanismo o confronto com o poder senhoril, característica esta presente em
todas as ações que aqui serão analisadas. Além do que, em duas delas, o
atropelamento do decreto de 1831 é nítido.
A análise começa pelo arbitramento de Rosa, passando pela ação de
Jacinto e por fim chegando ao caso de Antônio.
O processo de “Dona Rosa” que aqui será referido tem como proponente
uma moça descrita como de cor preta, solteira, 32 anos de idade. De acordo
com o documento, sua profissão era de cozinheira e sua matrícula era de
número 270. O processo se dá na Vila de Canguçu e a moça é classificada
para ser liberta pelo fundo de emancipação pela quantia de 294 mil réis.
No dia 4 de dezembro de 1875, na vila de Canguçu, em audiência
pública na Câmara Municipal em frente ao Juiz Doutor Alípio Zacharias de
Carvalho, o coletor Vicente Ferre d’Almeida acusava a Albino Pereira Machado
de manter Rosa indevidamente como sua escrava. Para fins de libertação, são
apontados avaliadores. Mas na audiência que então ocorre, Albino não
demonstra satisfação com o preço de indenização atribuído a moça. Idalino
Campos da Luz foi o primeiro avaliador proposto. Logo após, o senhor da
escrava apontou o Capitão Casemiro Antonio da Silva para exercer a função,
por confiar em seu julgo. E o juiz indicou a louvação de um terceiro avaliador
para servir de mediado, no caso de haver discordância entre os dois primeiros,
sendo este o Reverendo Padre José Joaquim Rodrigues Fontes. Com isso um
consenso é estabelecido e é dado prosseguimento à causa.
No dia 7 de dezembro daquele ano, tanto o Capitão Casemiro como
Idalino Luz prestam juramento e são encarregados pelo juiz “para bem e
fielmente, sem dolo, nem malícia” avaliarem Rosa, que estava como
39
propriedade de Albino Machado. No mesmo dia, os mesmos a avaliam pelo
montante de 700 mil réis.
No dia 9 do mesmo mês os autos são entregues no cartório ao escrivão,
que lavra o aviso ao Juiz. Já no dia 10, depois de concluída a organização, os
autos são entregues ao Juiz de Direito da Comarca, o Doutor Abílio Álvaro
Martins e Castro. O caso tem prosseguimento quando, no dia 23 de Janeiro de
1876, os autos e o despacho do processo chegam ao Juiz mencionado.
Nesses documentos é certificado que no dia 8 de dezembro de 1875, Rosa, foi
declarada liberta.
Porém, em 2 de março de 1876 é juntado ao processo uma petição de
Albino Pereira Machado requerendo que como Rosa havia sido liberta, poderia
ser depositado o pecúlio de duzentos e noventa e quatro mil réis em mãos de
José Manoel da Silveira, oferecido para ajudar a mesma libertação, para o
completo pagamento. No mesmo dia, Albino comparece ao cartório para expor
que havia recebido do depositário acima sugerido e, portanto, dava como plena
e geral a quitação da mencionada quantia.
A ação de “Dona Rosa” é um processo civil enquadrado dentro dos
argumentos da lei do Ventre Livre, a qual estipula o pecúlio, o procedimento em
si da ação e um “reembolso” via fundo de emancipação para o senhor, o qual é
citado durante o ofício jurídico exposto acima. O procedimento jurídico tem
início em 4 de dezembro de 1876 e vai até 2 de março do ano seguinte.
O ventre livre é a norma jurídica que foi mais utilizada para a libertação
de mulheres escravizadas, principalmente se tinham filhos nascidos após a
aprovação da lei de 1871, graças ao fundo de emancipação que privilegiava
escravas nesta situação, pois a lei Rio Branco fazia esse recorte, priorizando
mulheres com filhos. E com o avanço do abolicionismo, os fundos criados,
tanto privados como públicos, passam a dar foco a mulheres com filhos e
mulheres jovens.
O fundo de emancipação foi uma das ferramentas criadas para auxiliar
nas libertações via meio jurídico, pois pelo menos com esse ressarcimento
havia um interesse do senhorio em efetivar essas “transações”. O Caso de
40
Rosa aponta para isso também, pois no desenrolar do arbitramento há uma
tentativa de aumento da quantia para que a negociação fosse selada (XAVIER,
2012, p. 215).
Os agentes que aparecem no processo elucidam o quão voraz era o
ambiente. O escravizado é entendido como alienado no âmbito das leis e
também não dispõe de requisitos para estar só perante a justiça, sem ser
representado por homens livres.
Este é outro elemento de contradição, pois os níveis de analfabetismo
entre os escravos eram avassaladores à época. Com isso, existe a
necessidade de um curador, como quem propõem o processo, pois o cativo
não é entendido juridicamente como constituinte civil, por isso, o intermédio é
necessário. O representante jurídico então ficava como um tipo de mediador,
pois precisava negociar um processo de “soltura” que levasse em consideração
elementos os quais extrapolavam a forma da lei, como é o caso das relações
clientelistas e paternalistas que às quais o escravizado estava exposto. Por
vezes, apenas essas forças é que decidiam, à revelia do texto da lei.
O pecúlio que o texto apresenta também mostra algumas relações, as
quais podem ser entendidas como de poder. O juiz, observando o não
contentamento do senhor sobre o quanto seria pago por Rosa, aponta alguns
avaliadores e o mesmo senhor reitera que um padre poderia ajudar nessa
ação.
A presença do elemento religioso em meio às relações escravistas e aos
processos judiciais também é interessante. Esse envolvimento indica a força
das relações senhoriais, pois a presença de um reverendo se percebe em pelo
menos em duas situações. Uma figura que se associa à salvação para o
escravo que busca a liberdade, mas que também é um servidor do elemento
senhoril. Entretanto os agentes que compõem o processo são representantes
do estado e da sociedade, sendo pouco isentos para o julgamento de alguém
que era originário deste mesmo meio social. Sendo assim, não é estranho um
juiz agradar ao senhor, nesse caso específico, solicitando que fosse feita uma
nova avaliação de Rosa, para então determinar o montante a ser pago.
41
3.2 - Deus guarde a Vossa Senhoria: o caso de “Seu Jacinto”
A Ação de Liberdade que aqui será exposta tem como autor o senhor
Jacinto, através de seu curador. Jacinto é descrito como de cor preta, de
setenta anos mais ou menos, solteiro, africano e lavrador. O processo acontece
na Vila de Canguçu, e remete ao desejo do mesmo em ser liberto, por ter
cumprido com as exigências necessárias para tal.
Em 4 de outubro de 1873, o escrivão Júlio Cezar da Luz autua os
documentos do processo de Jacinto. Nesses arquivos está indicado que no dia
25 de setembro daquele ano Jacinto fez à Subdelegacia de Polícia do 1º
Distrito do Cerrito uma declaração a qual o subdelegado de Polícia José
Gomes de Araujo julga ser verídica, mas que não havia lavrado mandado para
citar o suposto senhor, por ser seu desafeiçoado; por consequência ficaria para
o juiz João Baptista Pereira Galvão tomar as medidas convenientes relativas ao
caso.
No dia em questão, o subdelegado faz algumas perguntas e Jacinto as
respondeu. E quando questionado sobre o que pretendia requerer naquela
delegacia, responde que estava ali para declarar que estava sendo escravo de
Duviniozo Pereira Terra, estancieiro da Banda Oriental, e que pela lei do
mesmo país foi considerado livre. Além disso, o próprio senhor havia declarado
que mediante o decreto do governo uruguaio, Jacinto podia ir tratar de sua
vida, pois estava livre. E como não pode vir para este país por motivo da guerra
civil, foi constrangido a prestar serviço como soldado pelo tempo de dois anos.
Podendo evadir-se, veio para esta Província acompanhando o senhor capitão
Aparício José Barboza, concunhado de seu senhor, o qual o mantém como
escravo.
Jacinto ainda conta que havia encontrado com Manoel de Ávila, que foi
seu senhor, e conhecendo o decreto do governo uruguaio, indagou se ele
ainda estava cativo, e depois afirmou que deveria estar livre de acordo com o
decreto que abolia a escravidão naquele país. Ao fim, Jacinto declara sofrer
ameaças de castigo e que por isso procurou a autoridade policial e que poderia
comprovar tudo o que explanou não apenas com D’Ávila, mas com outras
pessoas.
42
Ainda em 4 de Outubro de 1873, foi nomeado curador o advogado Pedro
Baptista Corrêa da Camara. Logo após o Juiz deferiu o “juramento dos Santos
Evangelhos em um livro deles” e o encarregou para servir de curador ao preto
Jacintho, requerendo o que fosse necessário para a defesa dos direitos do
mesmo.
No dia 6 de Outubro do mesmo ano, na residência do “Meritíssimo Juiz
Municipal em exercício o Doutor João Martins França”, presentes Apparício
José Barboza e o escrivão, o juiz fez algumas perguntas a Barboza, como sua
identificação, estado civil e etc. Mais a frente, o Juiz indaga sobre a condição
de Jacinto e o réu confirma estar mantendo-o como cativo desde 1846 ou 48.
Depois o juiz indaga sobre o direito de fazer tal ação. E Apparício exclama que
matinha Jacinto como cativo por tê-lo recebido de seu cunhado por volta de
1846 ou 48, por não poder possuir escravos no estado oriental, para onde se
retirava. Adiante o meritíssimo pergunta se o cunhado estava procurando os
serviços de Jacinto e recebe uma negativa como resposta, e como adendo o
réu indica que o mesmo serve a ele.
Mais a frente Barboza é questionado sobre Jacinto já ter residido no
exterior quando pertencia ao cunhado e em qual momento veio para o Brasil. E
Apparicio comenta que Jacinto lá residia desde 1839, mais ou menos, até o
mês de junho ou julho de 1842, quando veio para o Brasil. Em seguida os
questionamentos foram sobre a matrícula na categoria do município, sobre a
legalidade de manter na condição de cativo um escravizado “importado”. Logo
Apapricio responde que havia entregue a matrícula, mas que ela pertencia à
Dona Maria Jozé Barboza e Terra, viúva de Duviniozo Terra. E na sequencia,
comentou não ter conhecimento das leis uruguaias, e que tinha visto muitas
escrituras de venda de escravos nas condições na qual possuía a Jacinto,
passadas por pessoas a quem era confiada a guarda e execução das leis.
Ao fim foram indagadas as informações sobre vendas de escrituras
citadas pelo réu e também se pretendia manter Jacinto cativo, por conta própria
e por vontade da irmã. Responde que apenas lembrava de uma venda feita
pelo cunhado Duviniozo em Jaguarão, não recordava a quem, mas lembrava
que a escrava se chamava Maria. E referente à última pergunta, respondeu
43
que não tinha a ideia de mantê-lo cativo, pois em agosto daquele ano recebera
ordens de sua irmã e herdeiros para liberta-lo. Entretanto, tal não teria ocorrido,
por andar ausente de casa, e quando chegou, não encontrou Jacinto em sua
casa. E ainda replicou que desejava o quanto antes que sua liberdade fosse
decretada por sentença judicial.
Deste modo, no dia 18 de novembro de 1873 Jacinto é declarado livre
por ter residido e permanecido na Banda Oriental durante certo período de
tempo, além de que o réu Apparício José Barboza confirma todas as
informações e o teve na sua guarda desde o ano de 1846 ou 1848. Ou seja,
Jacinto foi mantido como escravo por cerca de vinte e cinco anos, sendo que
seus ilegítimos senhores não sofreram qualquer punição.
Essa ação de “Seu Jacinto” é um processo enquadrado em elementos
distintos. Apresenta alguns pontos que chamam atenção, como a
reescravização de uma pessoa em solo brasileiro que havia sido libertada no
Uruguai. Um caso que a priori atropelaria a lei Eusébio Queiroz, a Lei para
inglês ver e as jurisdições uruguaias. O procedimento tem inicio em 4 de
outubro de 1873 e tem seu fim em 18 de novembro do mesmo ano.
A lei Feijó tenta extinguir o tráfico de africanos escravizados no Brasil,
mas na prática os pormenores influem e a norma afunda. Já a lei Eusébio de
Queiroz estabelece a punição para o tráfico e elimina os pontos polêmicos que
atribuíam relação de culpa ao senhoril, do mesmo modo respondendo ao
desejo britânico de reprimir tal prática.
No Uruguai, a partir de 1843, devido à Guerra Grande, a República
Oriental estava dividida entre o governo colorado de Montevidéu e o governo
blanco do Cerrito, comandado por Oribe. Tais governos decretaram a abolição
da escravidão em 1842 e 1846, respectivamente.
Acontece que Jacinto foi trabalhador cativo do estancieiro Manoel de
Ávila, que residia na Banda Oriental durante o período da guerra e também
após a abolição no país vizinho. Na ação Jacinto explica que pode vir para o
Brasil em decorrência da guerra, e depois fica como cativo de Apparício
Barboza. Ou seja, mediante as leis uruguaias de 1842 e de 1846, Jacinto era
44
considerado livre. Ávila o entrega para Barboza, que vai retornar ao Brasil e
mante-lo na condição de escravizado por longos anos, à revelia tanto da
legislação uruguaia como da legislação brasileira, especificamente a lei Feijó
(1831) e a lei Eusébio de Queiroz (1850). A ação desses senhores configurava
tráfico internacional, o qual já estava sendo coibido havia várias décadas.
Além disso, a ação de “Seu Jacinto”, por expor um caso de
reescravização ou até de tráfico internacional ilegal, indica perspicácia e
sofrimento de sua parte. É difícil entender todos os motivos que desembocam
na alegação feita por esse escravo.
Porém, por se tratar de um atropelamento de normas legais e de
imposição de situação mediante força bruta, a procura por parte de Jacinto de
um membro do Estado que tinha problemas pessoais com aquele que o
mantinha como cativo é deveras deslumbrante e estratégico. Outro ponto a
salientar é seu conhecimento dos decretos abolicionistas que já existiam, como
o de 1831. O texto do ofício conjugado com tais normas já seria mais que
suficiente para considerar o ato de Barboza criminoso, por manter Jacinto em
situação de escravizado após o fim do tráfico e sua entrada no país como
sendo ilegal.
Essa ação de liberdade que tramitou na vara de Canguçu demonstra a
dificuldade e a necessidade de alicerçar a solicitação em bases fortes para a
obtenção do objetivo, mesmo estando totalmente dentro da lei, ainda por cima
uma lei estrangeira, como era o caso em questão. Essa é a visão de alguém à
margem da sociedade.
3.3 - Antônio africano
Esta ação de liberdade tem como autor Antônio, africano de 60 anos de
idade, residente no 1º distrito da Freguesia do Cerrito, o qual declara, em 1885,
estar vivendo ilegalmente em cativeiro desde 1844.
Em 2 de agosto de1885, Antônio explica que Joaquim Nunes da Rosa,
residente no mesmo distrito, o mantém injustamente no cativeiro desde o ano
45
de 1844, data em que foi transportado para o Brasil, por causa da guerra civil
nesta província. E, exercendo função de suplicante, tem ciência do direito que
o assiste a lei lavrada de 1831. Sendo assim, requere que o juiz nomeie um
curador que pugne por seus direitos, visto o suplicante ser pessoa miserável e
incapaz de estar em juízo; e protestando desde o início, pelos salários a que
tem direito, e mais alguns pontos.
Já no dia 15 de agosto de 1885, a mando do doutor Manoel André da
Rocha, Juiz Municipal do Termo de Canguçu, Joaquim Nunes da Roza foi
intimado para que houvesse o prosseguimento do processo de Antônio.
E no dia 20 de agosto de 1885 é apresentada a primeira datação para
que Antônio aproveite a vida em liberdade, sem condição alguma, pois o
senhor manifesta interesse em atribuir uma ponderação. Ao fim, é determinada
pelo Juiz a liberdade e que por saber que o autor não era letrado, pede ao Sr.
Manoel de Paula Silveira que o fizesse e assinasse.
A ação de “Seu Antônio” é proposição jurídica arquitetada e enquadrada
com base na lei do sexagenário. O processo tem inicio em 2 de agosto de 1885
e acaba no dia 20 do mesmo mês e ano, com solicitação de pagamentos
atrasados por parte do Autor e estipulação de condições para conceder a
liberdade pela figura do réu.
Outro ponto interessante do texto jurídico é o proponente citar um
decreto do ano de 1831, para assim justificar e legitimar sua solicitação. A
norma em questão estabeleceria o tráfico de escravos como um crime de
pirataria e também criminalizava o senhoril. Mesmo a lei não tendo sido
revogada, a inserção ilegal de escravos africanos no Brasil seguiu de maneira
crescente até o ano de 1850, o que levava insegurança aos negros e pardos
livres nascidos no Brasil.
No texto dessa lei estavam sendo declarados livres os escravos vindos
de fora do império, sendo que a punição seria dada aos responsáveis pela
importação de escravos tendo como base o Código Penal brasileiro. Em outro
decreto estava imposta a ampla classificação de quem seria considerado
importador, incluindo os comandantes das embarcações, os financiadores das
46
viagens e os compradores. Haveria a multa de duzentos mil réis por cabeça de
cada um dos escravos importados, além de pagarem as despesas da
reexportação para qualquer parte da África, reexportação que o Governo faria
com a maior brevidade, contatando com o apoio das autoridades africanas para
lhes darem um asilo. Além de que os infratores responderiam cada um por si e
por todos.
Outro elemento importante a destacar é a ideia de Robert Slenes sobre
a queima de uma parte da documentação da escravidão arquitetada por Rui
Barbosa em 14 de dezembro de 1890, quando exerce a função de Ministro da
Fazenda. Conforme Slenes (1983):
De 1872 em diante, as matrículas e o registro de mudanças na população constituíam a única base legal para a propriedade em escravos. Foi provavelmente por causa disso que Rui Barbosa mandou destruir as cópias desses documentos guardadas nas coletorias; com esta medida teria dificultado a prova de posse anterior de escravos, e assim sustado qualquer movimento que reivindicasse, perante o governo, a indenização da propriedade perdida com a abolição Entretanto, a própria lei que provocou a ação de Rui também garantiu a sobrevivência, nos cartórios, de outras cópias dos mesmos manuscritos.
Sendo assim, a prática mostra que não houve efetividade. E mesmo com
o descarte de uma parte da documentação relativa ao escravismo brasileiro,
ainda sobraram muitos documentos que tratam do tema e talvez com a mesma
pertinência, se possível fosse comparar, com aqueles que foram incendiados.
Ao mesmo tempo, o procedimento proposto cabe na lei Saraiva-
Cotegipe, que liberta o escravo com 60 anos, realidade compartilhada por
poucos negros escravizados, visto que atingir essa idade era raro em um
sistema de extrema exploração. E também estipulava uma tabela de preços
tanto para homens como para mulheres. Esse é o seguimento de um processo
de libertação paulatino do povo preto. No mais, a entrada de seu Antônio no
Brasil, no ano de 1844, aponta para uma continuidade no processo de tráfico
de pessoas pelo Atlântico após a aprovação da lei Feijó, em 1831, indicando a
contradição de um processo que se manteve para o gozo de uma aristocracia,
ou melhor, de uma elite branca. E por isso, mesmo que na escrita os vetos ao
tráfico de escravos soem fortes, na prática destoam totalmente.
47
A lei do sexagenário contribuiu para manter acesa a discussão sobre o
fim da escravidão e para conceder tempo para que ocorresse uma solução
negociada para o fim do sistema escravista no país.
No seio da ação, tanto o autor como o réu indagam, dialogam e
estipulam parâmetros. Joaquim Nunes da Rosa aponta uma condição de
servidão por mais sete anos para conceder a liberdade, enquanto Antônio
reclama salários não pagos. Observando a datação, a ponderação do senhor é
esdrúxula, porém, como o costume social estava baseado em um regime de
trabalho forçado e de direito à propriedade, tal afirmativa faz sentido, pois o
imaginário de libertação ainda estava em construção. Portanto, entender o
cativo como pessoa e não como coisa é um processo extremamente lento. E a
falta de ação do judiciário em relação aos absurdos perpetuados apenas
corrobora para o limite de ação dessa instância de procedimento, pois a ação
de liberdade não tem cunho punitivo, como também torna nítida a falta de
preocupação sobre o cumprimento ou não das leis abolicionistas.
48
Considerações Finais
O presente trabalho teve o intuito de analisar ações de liberdade
provenientes do município de Canguçu e decorrentes das duas ultimas
décadas do período escravista no Brasil. Para isso foi necessário a construção
de uma base teórica calcada na historiografia sobre a temática, abrangendo
pontos como a economia e a política, tanto do país em geral como da região
sul em particular, além de observar o embate causado pela temática do tráfico
de africanos. Também foi relevante fazer um balanço das leis abolicionistas, as
quais respondem a uma pressão da Inglaterra e também da plutocracia
aristocrática brasileira para que. mesmo atendendo às forças externas, o
processo fosse gradual.
As normas estabelecidas nesse processo de abolição, por mais rígidas e
fechadas que fossem em seu texto, eram ignoradas ou atropeladas pelos
senhores, ou melhor, pelo sistema que sobrevivia graças à utilização da mão
de obra cativa. Esse processo paulatino de extinção primeiro do tráfico, e
depois da utilização do trabalho forçado, é nítido nas leis criadas ao longo do
século XIX. Inicialmente a Lei Feijó, de 1831, que deveria coibir o tráfico pelo
Atlântico e punir os agentes desse meio. Mais tarde, a lei Eusébio de Queiroz,
de 1850, e é bom frisar, mediante força inglesa, dá seguimento ao intuito da
Feijó, mas desta vez com maior efetividade. Mais tarde, a lei do Ventre Livre, a
lei do Sexagenário e, por fim, a lei, são formas lentas e dialogadas de extinguir
o uso do trabalho cativo no Brasil, desde que não ameaçasse o lucro.
Importante destacar que junto a um sistema não pensado para coibir e
buscar punição aos infratores, estão as ações cíveis de liberdade. Esses
procedimentos jurídicos evidenciam as nuances de um período que é
fortemente blindado. Agraciado por um sistema jurídico em que as leis tem um
alcance relativo, junto do esforço do Estado para atenuar problemas decorridos
nesse período.
A tentativa de Rui Barbosa de eliminar os documentos referentes ao
período escravocrata é o esforço de diminuir o alcance dos agentes desse
49
processo. Sem tais documentos, qualquer solicitação perante a lei seria
facilmente contestada.
Felizmente as ações de liberdade aqui analisadas são documentos que
não sofreram com tal ação. São importantes para apontar a contradição de
muitos elementos, tanto do sistema escravista, como do aparelho jurídico da
época. Uma ação de liberdade não estipula punição ao senhor infrator, é
apenas uma ação jurídica civil. Sendo assim, mesmo que durante o
procedimento apareçam nítidos crimes, como a reescravização, ou o total
descaso com normas jurídicas estrangeiras e desleixo com as leis brasileiras,
tais procedimentos não eram punidos. Tais pontos não são levados adiante.
Além do mais, ficou para o Poder Judiciário o trato com os senhores sem o
apoio de uma legislação conveniente. Deste modo, os juízes conviviam com a
pressão exercida pelos senhores e pelo conjunto de uma sociedade
escravocrata. Sendo assim, o direito à propriedade é nesse contexto mais
importante do que o direito à liberdade.
Nessa conjuntura, observar os argumentos utilizados pelos autores das
ações demonstra, além de estratégia, a necessidade de afirmação de sujeitos
que estão à margem da sociedade, que não tem uma jurisdição para entende-
los como agentes e que em boa parte dos casos são representados
juridicamente por pessoas que lhes são hostis, o que dificulta obter um ganho
de causa, por mais legítima que fosse a argumentação jurídica.
Observar o lado do autor das ações é olhar para um sistema social
desigual. Imersos nos textos das ações, os agentes que atuam nos
procedimentos fazem parte do Estado, da igreja, da sociedade, enquanto o
negro escravizado é um elemento estranho a esse mundo. Sendo assim, é
difícil mensurar o quão complexo eram as relações por trás de uma ação de
liberdade. Quando as ações se tornam vulgares, a relação com o capital é mais
forte. Nesse sentido, para iniciar qualquer solicitação o acúmulo de capital é
essencial.
O que inicia sendo entendido como um direito, passa a se constituir
como um mercado, pois as relações que inicialmente podem ser pensadas
como de confiança, passam a girar em torno da expectativa de lucro. Com isso
50
,o escravizado apenas acumula obstáculos para a obtenção de seus objetivos.
E o que está em questão não é a luta pela liberdade, mas sim mais um
mercado circunstancial estabelecido por brechas de um sistema que não é
pensado para o cativo.
51
Fontes Primárias
Arquivo Centralizado do Judiciário / Porto Alegre/RS. Arbitramento da escrava
Rosa, de propriedade de Albino Pereira Machado. Juízo Municipal Termo de
Canguçu. 1875.
Arquivo Centralizado do Judiciário / Porto Alegre/RS. Ação de liberdade.
Antonio, africano, de 60 anos (Autor); Joaquim Nunes da Roza (Réu). Juízo
Municipal Termo de Canguçu. 1885.
Arquivo Centralizado do Judiciário / Porto Alegre/RS. Ação de liberdade. O
preto Jacinto, por seu curador (Autor); Aparício José Barboza (Réu). Juízo
Municipal Termo de Canguçu. 1873.
52
Referências bibliográficas
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