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O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger - Entrevista com Gianni Vattimo “Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive, etc. Também por isso Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas devemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch estavam com Stalin, Giovanni Gentile com Mussolini...”. As afirmações são do filósofo italiano Gianni Vattimo, em entrevista à IHU On-Line, explicando as relações entre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo. Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vattimo concede à IHU On- Line. A primeira foi publicada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003 sob o título O cristianismo é a religião do pós-moderno , a segunda na 128ª edição, de 20 de dezembro de 2004 sob o título “Deus é projeto, e nós o encontramos quando temos a força para projetar...”, e a terceira saiu na edição 161, de 24 de outubro de 2005, quando recebeu pessoalmente a IHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de outubro daquele ano, às vésperas de proferir sua conferência no evento Metamorfoses da cultura contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou sobre “O pós-moderno é uma reivindicação de multiplicidade de visão de mundo”. Dele também publicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1º de novembro de 2004, sob o título Garzantina di filosofia, um artigo na edição 53, de 31 de março de 2003 sob o título A guerra pelos direitos humanos? e outro no número 80, de 20 de outubro de 2003, sob o título Democracia, killer da metafísica. A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º de agosto de 2005, abordou a obra The future of religion, escrita por Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala. Vattimo nasceu em Turim, em cuja universidade se formou em Filosofia e na qual ministra aulas até hoje. Cursou uma especialização na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e teve algumas passagens por universidades americanas como professor visitante. Foi deputado no Parlamento Europeu, integrando várias comissões, como as de cultura, educação e justiça, entre outras. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do "pensamento fraco". De sua produção intelectual, destacamos, Credere di Credere. Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o português), Dopo la cristianità. Per um cristianesimo non religioso. Milano:Garzanti, 2002 (traduzido para o português), O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996; Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. IHU On-Line – Como Heidegger ajuda a entender o enfraquecimento das estruturas do ser na pós-modernidade? Gianni Vattimo – A concepção da diferença ontológica – que Heidegger começa a desenvolver em Ser e Tempo – significa que o ser não deve se confundir com o ente, com alguma “coisa” presente. E, como se sabe, Heidegger pensa que identificar o ser com o ente seja um “esquecimento” do ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O que, porém,

O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger - … · Web viewDavid Tracy - Naquele momento, eu estava trabalhando em teoria hermenêutica, em parte como resultado de conversas

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O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger - Entrevista com Gianni Vattimo

“Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive, etc. Também por isso Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas devemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch estavam com Stalin, Giovanni Gentile com Mussolini...”. As afirmações são do filósofo italiano Gianni Vattimo, em entrevista à IHU On-Line, explicando as relações entre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo.

Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vattimo concede à IHU On-Line. A primeira foi publicada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003 sob o título O cristianismo é a religião do pós-moderno , a segunda na 128ª edição, de 20 de dezembro de 2004 sob o título “Deus é projeto, e nós o encontramos quando temos a força para projetar...”, e a terceira saiu na edição 161, de 24 de outubro de 2005, quando recebeu pessoalmente a IHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de outubro daquele ano, às vésperas de proferir sua conferência no evento Metamorfoses da cultura contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou sobre “O pós-moderno é uma reivindicação de multiplicidade de visão de mundo”. Dele também publicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1º de novembro de 2004, sob o título Garzantina di filosofia, um artigo na edição 53, de 31 de março de 2003 sob o título A guerra pelos direitos humanos?  e outro no número 80, de 20 de outubro de 2003, sob o título Democracia, killer da metafísica. A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º de agosto de 2005, abordou a obra The future of religion, escrita por Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala. Vattimo nasceu em Turim, em cuja universidade se formou em Filosofia e na qual ministra aulas até hoje. Cursou uma especialização na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e teve algumas passagens por universidades americanas como professor visitante. Foi deputado no Parlamento Europeu, integrando várias comissões, como as de cultura, educação e justiça, entre outras. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do "pensamento fraco". De sua produção intelectual, destacamos, Credere di Credere. Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o português), Dopo la cristianità. Per um cristianesimo non religioso. Milano:Garzanti, 2002 (traduzido para o português), O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996; Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.

IHU On-Line – Como Heidegger ajuda a entender o enfraquecimento das estruturas do ser na pós-modernidade?Gianni Vattimo – A concepção da diferença ontológica – que Heidegger começa a desenvolver em Ser e Tempo  – significa que o ser não deve se confundir com o ente, com alguma “coisa” presente. E, como se sabe, Heidegger pensa que identificar o ser com o ente seja um “esquecimento” do ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O que, porém, significaria fazê-lo “presente” diante dos olhos da nossa mente, portanto, reduzi-lo novamente a um “ente”. Além disso: Heidegger, nos seus escritos sobre Nietzsche , escreve que a metafísica é a história do ser. Eu tiro disso tudo a seguinte conclusão, que Heidegger nunca enunciou, mas acredito que ele deveria aceitar: lembrar o ser (para tentar sair da metafísica) significa somente lembrá-lo como já-sempre tendo ido embora; como Deus que se mostra a Moisés somente de costas. Portanto, pensar o ser não é uma experiência de presença cheia, de verdade luminosa; se levarmos em consideração que, para Heidegger a metafísica (esquecimento do ser) é a história do ser, então o ser tem uma história que é sempre de diminuição, de esquecimento, de “fraqueza”...

IHU On-Line – Qual é o lugar da verdade e da unidade do sujeito no pensamento de Heidegger?Gianni Vattimo – Verdade, para Heidegger, é também aquela secundária das proposições “verdadeiras”, que correspondem a critérios dados com a abertura do ser no qual somos sempre arremessados. Mas a verdade “primeira” é esta abertura (algo semelhante aos paradigmas dos quais fala Kuhn ). A relação com esta verdade primária (por exemplo, na experiência da obra de arte, que nos “dribla” porque é o anúncio de um paradigma “outro”, não

é uma experiência de unidade do sujeito, mas, ao contrário, exatamente uma experiência de “desorientação”). 

IHU On-Line – Como explicaria a aproximação de Heidegger ao nazismo? É uma derivação de seu pensamento filosófico?Gianni Vattimo –  De certa forma sim, foi um “erro” filosófico. Heidegger acreditou que fosse possível reconstruir uma situação histórica análoga àquela da Grécia pré-clássica, na qual, errando, porque esquecia a diferença ontológica, pensou que o ser pudesse “dar-se” de modo não-metafísico. Mas era um erro, antes de tudo filosófico. 

IHU On-Line – O próprio nazismo deve ser entendido como uma anormalidade na História ou como uma radicalização da racionalidade moderna?Gianni Vattimo – Heidegger o entendeu como uma radicalização da racionalidade moderna. Visto que ele pensava que esta racionalidade fosse o auge do esquecimento do ser, não a podia aceitar. Mas, de outro modo, o extremo da metafísica devia também ser o seu fim.  “Onde está o perigo, cresce também o que salva” (Hölderlin ). Portanto, posição ambígua; um pouco como o capitalismo para Marx: é o pior do pior, mas é também a condição que prepara a revolução do proletariado... 

IHU On-Line – O paradigma da técnica pode auxiliar a compreender as bases desse e de qualquer outro totalitarismo?Gianni Vattimo – A resposta está implícita na precedente. Certo, como diz em Identität und Differenz, a possibilidade de sair da metafísica em direção a um novo evento do ser está também ligada ao fato de que no Gestell, no mundo técnico-totalitário, homem e mundo não têm mais os caracteres de sujeito e objeto. Mas quais caracteres terão?

IHU On-Line – Se o ente está lançado no mundo, como entender sua responsabilidade individual e política? Gianni Vattimo – Acredito que o Heidegger dos anos 1930, aquele depois da Kehre, se deu conta de que a autenticidade da qual falava Ser e Tempo, não é algo que se possa procurar “sozinho”. Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive, etc. Também, por isso, Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas devemos pensar que naqueles anos Lukacs  e Bloch  estavam com Stalin , Giovanni Gentile , com Mussolini  etc.

IHU On-Line – Por que Heidegger afirmou que era impossível ultrapassar o niilismo? Como entender a esperança num mundo niilista?Gianni Vattimo – Como foi dito acima, o ser nunca pode dar-se como ente. A esperança do niilismo é de que, reduzindo a imponência, a peremptoriedade, o peso do ente, do real (paixões, instinto de sobrevivência, violência recíproca) o ser se dê como das Gering, o mínimo, o pequeno, do qual falava Vorträge und Asufsätze.

IHU On-Line – O ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode) não é um conceito muito pessimista para classificar o ser humano?Gianni Vattimo – De maneira nenhuma. Significa somente aceitar o próprio fim e historicidade, sentindo-se empenhados para responder a uma chamada que vem de outros mortais, e não pensar nunca que atingimos já a verdade “objetiva”, o ponto de vista de Deus. E, portanto, nunca bombardear o Iraque em nome do verdadeiro direito humano. 

IHU On-Line – Se pudéssemos trazê-lo ao presente, como Heidegger dialogaria com o “pensamento fraco” de Gianni Vattimo?Gianni Vattimo – Teria que adotá-lo como seu filho, embora um pouco extravagante. Fora de brincadeira: se Heidegger visse o que acontece hoje por causa do fundamentalismo, da pretensão de ser “correto” (Bush acredita de verdade, como os nazistas, no Gott mit uns, Deus está conosco; e age exatamente como eles), enfraqueceria muito as próprias posições... 

IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas com o pensamento cristão e o heideggeriano? Há aí uma influência mútua? Gianni Vattimo – Certo, se pensarmos em um texto como a Introdução à Fenomenologia da

Religião, de 1920, nos daremos conta de que alguns, ou talvez todos os conceitos fundamentais que Heidegger desenvolveu após, em Ser e Tempo (por exemplo, a autenticidade, a metafísica etc.) estão já todos na sua leitura das cartas de São Paulo. Acredito que Heidegger começou o seu “erro” nazista - que durou somente alguns anos - quando deixou de meditar sobre São Paulo e começou a mitificar  Hölderlin. Mas o seu pensamento permanece profundamente cristão; e também, a propósito de influência “mútua”, os cristãos de hoje deveriam elegê-looa verdadeiro mestre, deixando de lado os tantos resíduos de metafísica escolar que ainda dominam o ensino nos seminários. (Fonte:  http://www.unisinos.br/ihu)

A superação da metafísica e o fim das verdades eternas -Entrevista com Ernildo Stein

Em entrevista exclusiva, o filósofo Ernildo Stein destacou que, já no final dos anos 1930, a filosofia de Heidegger problematizava o que hoje entendemos por globalização. Além disso, continua Stein, esse filósofo “libertou o ser humano como ser no mundo de qualquer amarra metafísica, deixando como tarefa sua, a instauração da verdade.” E completa: “Estamos sós no Planeta e nele somos um acontecimento que se espanta consigo mesmo.”

 

Graduado em Filosofia e bacharel em Direito pela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mesma instituição com a tese Compreensão e finitude - estrutura e movimento da interrogação Heideggeriana. Cursou pós-doutorado nas universidades de Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt, Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atualmente leciona no Departamento de Filosofia da PUCRS.

 

Stein publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a verdade: lições introdutórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993; A caminho de uma fundamentação pós-metafísica.  Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, Diferença e metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; Compreensão e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001; Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002; Mundo Vivido: Das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004 e Seis estudos sobre Ser e Tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. Confira a seguir, na íntegra, a entrevista com o filósofo.

 

 

IHU On-Line – Quais são os aspectos que julga mais atuais na filosofia heideggeriana? Qual é a importância de Heidegger como um intérprete da pós-modernidade?

Ernildo Stein – O filósofo é, sem dúvida, o pensador de vulto que, na filosofia, problematizou de modo mais profundo a questão da modernidade. Até que ponto suas idéias sempre acertaram é uma outra questão. Não podemos, no entanto, negar a importância de sua teoria de que, com a modernidade, surgiu a questão da subjetividade e com isso a questão do método. O ser humano está livre das amarras da tradição e da história passada, para traçar o seu caminho e os seus projetos. Por isso, passa a considerar a natureza e os recursos do Planeta como transformáveis e manipuláveis sem limite. Heidegger vê nisso o surgimento de uma espécie de compulsão para a transformação. Ele costuma chamar a irresistível tendência de o ser humano transformar tudo de dispositivo (Gestell). Foi assim que ele previu o que chama de europeização do mundo, a lógica e o cálculo se disseminando implacavelmente pelo Planeta, arrasando as culturas locais com o progresso. Com isso, o filósofo levanta, já no fim dos anos 1930, o problema daquilo que hoje denominamos globalização.

A filosofia não deve ser avaliada por sua atualidade, mas pela capacidade de ela, nos diversos filósofos, pensar os fundamentos que podem, de certo modo, reger o comportamento dos seres humanos, fazendo uso de sua liberdade. A filosofia não compete com a ciência na descoberta de novos objetos. Ela pensa a moldura ou o âmbito nos quais as ciências descobrem e situam seus objetos. A filosofia não se volta contra a ciência, mas tem um timing mais longo, justamente porque não está submetida às urgências de transformação da realidade.

Talvez convenha dizer que Heidegger finalmente, sem nenhuma inibição, libertou o ser humano como ser no mundo de qualquer amarra metafísica, deixando como tarefa sua, a instauração da verdade. Heidegger declara que não há verdades absolutas ou literalmente “não há

verdades eternas”. A verdade só existe porque o ser humano opera com ela. É por isso que se inverte a relação medieval entre teologia e antropologia. Não há Deus sem o ser humano, pois somente ele, o ser humano, abre o espaço para o problema de Deus e assim deixa acontecer o que pode ser expresso em enunciados que tratam da possibilidade de Deus. 

IHU On-Line – O que implica o fim da metafísica sugerido por Heidegger? Como entender esse argumento hoje?

Ernildo Stein – Heidegger fala em fim da metafísica como superação dos limites impostos em nome de teorias que se dizem filosóficas, mas não tratam das condições de possibilidade do conhecimento, mas simplesmente falam de coisas e objetos. A superação da metafísica não significa o fim da metafísica. Kant[1] mesmo dizia que sempre respiraremos o “ar impuro” da metafísica e “temos uma mancha podre” que nos faz operar com conceitos independentes da realidade. Heidegger concordaria com Kant, caso a afirmação dele não fosse uma pretensão de salvar o que não pode ser salvo em sua teoria do conhecimento. Para Heidegger o fim da metafísica significa apenas que estamos livres do comando de outros mundos não-humanos. Estamos sós no planeta e nele somos um acontecimento que se espanta consigo mesmo.

IHU On-Line – O que o senhor quer dizer com uma fundamentação pós-metafísica?

Ernildo Stein – Assim como vivemos a chamada pós-modernidade e nela identificamos a fragmentação de toda a unidade entre ciência, arte e religião, assim temos que reconhecer que, se ainda procuramos razões que não sejam as razões da ciência, essas não são mais razões ou fundamentos metafísicos. O pós-metafísico é um mundo sem fundamentos absolutos. Quem dá a moldura na qual se dá o acontecer daquilo que revela os limites da objetivação da ciência é o modo de o homem ser no mundo que a filosofia pode descrever como sentido.

IHU On-Line –  Como o conceito de angústia é tratado por Heidegger em Ser e Tempo?

Ernildo Stein – Heidegger, quando cria conceitos não os apresenta como prontos. É próprio da fenomenologia ir atrás dos indícios formais que podem localizar traços comuns que podem ser convertidos em conceitos e, no caso, em existenciais. A filosofia não carrega consigo só uma cesta de conceitos lógicos prontos. Depende do filósofo a capacidade de descobrir sinais que podem nos levar a novos conceitos, por exemplo, sobre o ser humano. É assim que a angústia é descrita como a súbita percepção do ser humano de que ele é finito, isto é, de que está jogado entre um ainda não, o futuro e o não mais, o passado. A angústia que disso resulta é o que mantém o ser humano, humano. O que ele poderá fazer é tentar fugir dessa angústia, fugindo de si mesmo e divertindo-se numa “brincadeira” com os objetos, no instante presente. De todo o modo, porém,  a angústia aparecerá de repente e, de modo implacável, remeterá o ser humano contra o futuro e contra o passado e sem resultado.

IHU On-Line – De que forma se apresenta a compreensão e a finitude nesse filósofo? O que elas podem ensinar à contemporaneidade?

Ernildo Stein – Heidegger não aceita outra transcendência que a transcendência finita. Compreensão é essa transcendência, por isso ela é finita. No entanto, o filósofo quer, com isso, dizer que com a filosofia não consegue o ser humano puxar-se do banhado pelos cabelos. Isso quer dizer que o ser humano pensa tudo enquanto é e pelo fato de ser nos permite chegar às coisas. Como diz literalmente “tão finito é o ser humano que ele precisa do conceito de ser, Deus não precisa do ser, não faz ontologia, Deus não filosofa.”

IHU On-Line – Quais são suas objeções em relação à leitura que Padre Vaz realiza de

Heidegger?Ernildo Stein – Lima Vaz[2] fez seu tema o diagnóstico sintomático de Heidegger sobre o niilismo em que mergulhamos com a metafísica ontoteológica. Isso porque nela o fundamento é convertido em objeto e Deus é definido, como um único expediente, de causa de si mesmo. O filósofo brasileiro não concorda inteiramente com o diagnóstico do filósofo alemão, mas é com base nesse diagnóstico que ele vê a possibilidade de colocar os problemas verdadeiros nas duas matrizes de inteligibilidade: a natureza e a cultura. São elas que no futuro mudarão totalmente, a não ser que o ser humano seja capaz de manter uma identidade, na transformação que a técnica produz nessas duas matrizes. E essa identidade é a pergunta pela vida boa. Como posso ser feliz, como assumo volume e importância como ser biológico e passageiro, que significa viver sua vida?

Em todo o caso, Lima Vaz encontrou mais razões em Heidegger, no seu questionamento radical, do que em Hegel[3], cuja maquinaria dialética nada mói, nada resolve, porque seu motor, Deus (ou a sociedade sem classes, ou a História) são conceitos vazios. Deus está morto, diz Hegel, e é comovedora a frase no penúltimo capitulo da Fenomenologia do espírito: “E esse é o sentimento doloroso da consciência infeliz de que Deus morreu”. Apesar de Hegel falar do Deus da Sexta-feira Santa, Nietzsche[4] o toma a sério e proclama “Deus está morto”. Isso que se estendeu como um lema na entrada do projeto da modernidade. Lima Vaz procura defender contra as críticas de Heidegger uma ontologia teológica que possa sustentar, como uma espécie de realismo, os enunciados da teologia e da religião. Nisso os dois filósofos se distanciam e está com os estudiosos ver quem tem razão nos seus argumentos que aqui não podem ser apresentados de maneira completa.  

 

IHU On-Line – Qual o significado que pode ter o fato de Heidegger aceitar o cargo de reitor em plena Alemanha nazista?

Ernildo Stein – O filósofo fez um juízo equivocado sobre o regime que estava começando, pensando que aceitando a reitoria, teria condições de criar a nova universidade que substituiria a universidade dos mandarins. Ao ver que caíra na armadilha, se demitiu no décimo mês dos quatro anos que tinha pela frente e, a partir daí, o regime pôs um de seus agentes para supervisionar as suas aulas. O filósofo foi ingênuo porque desconhecia as ciências humanas da sociologia, da política, da economia e pensava, contudo, poder diagnosticar o futuro de um regime. Quem olha com atenção para a capa do meu livro Diferença e Metafísica. Porto Alegre: Edipucrs, 2000 verá que ela é feita com uma carta inédita de Heidegger que está em minhas mãos, em que ele se defende dizendo: “Ide a Munique e perguntai ao Pe. Karl Rahner[5] que assistiu a minhas aulas de 34 a 36, para verem a crítica que se ousava contra o biologismo, o racismo do nacional-socialismo”. É verdade que os filósofos não foram feitos para serem heróis da resistência, Platão[6] que o diga, preso pelo tirano de Siracusa a cujo regime tinha aderido. E mesmo Aristóteles[7] não escapou do problema, indo asilar-se na sua fazenda de Eubéia, para que os gregos não praticassem um segundo crime contra Sócrates[8].

O silêncio do filósofo sobre o gesto de que ele confessou a Jaspers[9] que “se sentia envergonhado do passo dado”, deve-se ao fato à convicção de que uma confissão pública não tinha sentido porque não apagaria nada. Para um filósofo como Heidegger em cujo pensamento Deus depende do homem, não há ninguém para repor algo que possa resultar de qualquer arrependimento.

IHU On-Line – O nazismo é uma anomalia ou uma radicalização da razão moderna?

Ernildo Stein – O nazismo é um totalitarismo nascido das incertezas e dos irracionalismos dos anos 20 de nosso século. Assim como outros totalitarismos. Tão nefasto quanto foi, não deixa de ser uma espécie de banalidade do mal, mas uma obra humana, uma obra com autores determinados que se orientaram nas mais primitivas idéias sobre a relação dos seres humanos em sociedade. O nazismo é, em última análise, um resultado da suspensão da lei, para que o tirano pudesse fazer dela o que bem entendesse, pois era a sua lei. Agamben[10] bem vê nos

campos de detenção que rodeiam a Europa com uma coroa de desesperados, novos campos de concentração, em que a lei está suspensa. Isso produz a “inexistência” de todos os refugiados porque estão juridicamente nus.

IHU On-Line – Como o pensamento heideggeriano explica o paradigma da técnica levado às últimas conseqüências pelos nazistas?

Ernildo Stein – Heidegger certamente não é um intérprete do nazismo. Mesmo que para isso tivesse competência, não tem autoridade como filósofo. São outros campos de conhecimento que devem compreender o nazismo. Entretanto, Heidegger situaria na exacerbação do dispositivo da técnica, a compulsão dos nazistas de produzir a morte industrializada. Por mais distantes que estejamos do nazismo, não é a parafernália da técnica atual que retira de cada ser humano o direito de morrer a sua morte. Morte é hoje, no dispositivo da técnica, apenas uma questão de higiene pública.

IHU On-Line – Quais seriam as influências do cristianismo em Heidegger? E ele influenciou, de alguma forma, o pensamento cristão?

Ernildo Stein – Certamente temos várias correntes teológicas que incorporaram as categorias da analítica existencial de Ser e tempo. Bultmann[11] é um dos grandes exemplos de diálogo com Heidegger, mas há muitos teólogos e correntes teológicas que levam de contrabando elementos do discurso heideggeriano. Apenas não tem coragem de levá-lo às últimas conseqüências. Heidegger teve formação cristã, estudou teologia e filosofia católicas, dialogou muitíssimo com os pensadores evangélicos, para chegar à conclusão de que a filosofia não pode oferecer aval para nenhuma religião. Ao pé da letra diz o filósofo: “Uma filosofia cristã é um ferro de madeira, uma roda quadrada”.

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[1] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. A IHU On-Line número 93, de 22 de março de 2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador. Também sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética. Os Cadernos IHU em formação estão disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. (Nota da IHU On-Line)

 

[2] Pe Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921 – 2002): filósofo e padre jesuíta, autor de importante obra filosófica. A IHU On-Line número 19, de 27 de maio de 2002, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz. A referida edição teve como título Sábio, humanista e cristão. Sobre ele também pode ser consultado na IHU On-Line número 140, de 9 de maio de 2005, um artigo em que comenta a obra de Teilhard de Chardin. A revista Síntese. Revista de Filosofia, n. 102, jan.-abr. 2005, p. 5-24, publica o artigo Um Depoimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor do Departamento de Filosofia da USP, que merece ser lido e consultado com atenção. Celebrando a memória do Padre Vaz, a edição 142, de 23 de maio de 2005, publicou a editoria Memória. Consulte nesta edição um comentário sobre a sua contribuição para a discussão ética no Brasil. (Nota da IHU On-Line)

[3] Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, um dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de concepções quanto os diversos estados da mente, e as encarava como estágios no desenvolvimento do espírito em direção a uma maior maturidade. Sua segunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer uma análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das ciências filosóficas contém todo o seu sistema de uma forma condensada. O último livro de Hegel foi A filosofia do direito. Depois de sua morte, seus alunos publicaram suas conferências sobre filosofia da história, da religião e da arte, e sobre história da filosofia, usando principalmente suas anotações. (Nota da IHU On-Line)

[4] Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do-homem”, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim Falou Zaratustra. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; O Anticristo. Lisboa: Guimarães, 1916; A Genealogia da Moral. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2004. Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13 de dezembro de 2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e Paulo. (Nota da IHU On-Line)

[5] Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do século XX, ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se de mais de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e 1984, Grundkurs des Glaubens (Curso Fundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na Universidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU On-Line n.º 90, de 1º de março de 2004, publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004, publicou uma entrevista de J. Moltmann, analisando o pensamento de Rahner. No dia 28 de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro, Érico Hammes, teólogo e professor da PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma das principais obras de Karl Rahner. A entrevista com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na IHU On-Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda sobre Rahner, publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler no IHU On-Line n.º 97, de 19 de abril de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo do Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102, da IHU On-Line, de 24 de maio de 2004, dedicou a matéria de capa à memória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Os  Cadernos Teologia Pública n. 5 de 2004 publicaram o artigo Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da IHU On-Line)

[6] Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon. (Nota da IHU On-Line)

[7] Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas — por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

[8] Sócrates (470 a. C. – 399 a. C. ): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. (Nota da IHU On-Line)

[9] Karl Theodor Jaspers (1883-1969): filósofo e psiquiatra alemão. Ensinou filosofia em Heidelberg desde 1921 e em Basiléia a partir de 1948. Fez o doutoramento em medicina, tendo inicialmente, dedicado-se à psicologia. É também conhecido como um dos principais representantes do existencialismo. (Nota da IHU On-Line)

[10] Giorgio Agamben (1942): Filósofo italiano. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo norte-americano. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e fundamentalmente, política. Entre suas principais obras estão Il linguaggio e la morte (Einaudi, 1982), La formula della creazione (Quodlibet, 1993), escrito com Giles Deleuze, Homo Sacer (Einaudi, 1993/ Homo sacer - O poder soberano e a vida nua - UFMG), Que le resta di Auschwitz, (Bollati Boringhieri, 1998) e Stato di Eccezione (Bollati Boringhieri, 2003) (Nota da IHU On-Line)

[11] Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs uma interpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professor sobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade tomou contato com Martin Heidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então Alemanha Ocidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926) e e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição 114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na editoria Teologia Pública um debate sobre a obra Teologia do Novo Testamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line)

(Fonte: www.unisinos.br/ihu)

A imaginação analógica da teologia cristã -Entrevista com David Tracy

O professor David Tracy, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, e professor de Teologia Contemporânea e Filosofia da Religião na University of Chicago Divinity School, nos Estados Unidos é autor do livro The Analogical Imagination: Christian Theology and the Context of Pluralism, de 1981. Este livro foi traduzido e publicado com o título A imaginação analógica. A teologia cristã e a cultura do pluralismo, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, na coleção Theologia Publica. E é sobre ele que IHU On-Line propôs uma breve entrevista por e-mail ao autor.

Tracy ministrou uma conferência no Simpósio O Lugar da Teologia na Universidade do Século XXI, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos, em 2004. Entre seus livros publicados, também citamos Blessed Rage for Order: The New Pluralism in Theology (1975); e Plurality and Ambiguity: Hermeneutics, Religion and Hope (com tradução em francês, em alemão, em espanhol e em chinês) (1987).

 IHU On-Line - O senhor pode falar um pouco sobre a sua trajetória teológica?

David Tracy - Eu tenho tido interesse, como teólogo, em afirmar o pluralismo da cristandade, além do interesse em relação a religiões e movimentos seculares em nosso mundo multicultural e globalizado em constante crescimento.

 IHU On-Line - Como o senhor chegou ao tema do livro? Quais eram suas preocupações?

David Tracy - Naquele momento, eu estava trabalhando em teoria hermenêutica, em parte como resultado de conversas com Gadamer e lecionando com Paul Ricoeur na Universidade de Chicago. Eu estava convencido de que a teologia precisava se voltar para a hermenêutica. A minha própria maneira de me voltar a ela eu chamei de “imaginação analógica”, principalmente em homenagem às tradições hermenêutica e analógica na teologia católica através dos séculos.

 IHU On-Line - Pode explicar um pouco os conceitos de apocalíptica e apofatismo?

David Tracy - Hoje em dia, apocalipse se refere largamente a uma leitura da história como não contínua, mas profundamente rompida e, algumas vezes, catastrófica. Daí o ditado: quando a profecia falha, o apocalipse toma conta. Assim como o apocalipse está largamente relacionado à questão histórica, a tradição apofática[1] está largamente relacionada à questão da linguagem, especificamente linguagens místicas para nomear Deus.

IHU On-Line - Em que consiste a Segunda Vinda? Qual é a sua importância para a teologia, hoje?

David Tracy - A Segunda Vinda foi ignorada no último século por teólogos progressivos como Rahner, Bultmann, e meu próprio trabalho anterior. De fato, a Segunda Vinda, que é um símbolo central do Novo Testamento, foi literalizada e tomada/usurpada por formas fundamentalistas do pensamento cristão. Eu concordo com Reinhold Niebuhr quando ele diz que muitos símbolos religiosos devem ser considerados seriamente, mas não literalmente. A Segunda Vinda é como um símbolo – não deve ser literalizada. Ela deve ser levada a sério como um lembrete do fato de que a história (como nossas vidas individuais) pode terminar a qualquer momento e que Deus nos espera.

IHU On-Line - O que significa, no início do século XXI, rezar: "Vem Senhor Jesus, vem!"?

David Tracy - Em primeiro lugar, estas palavras são cruciais para os cristãos como as palavras finais da bíblia. Segundo, elas lembram os cristãos de que ainda há uma característica messiânica para a cristandade: o paradoxo é que Cristo esteve entre nós, mas nós ainda esperamos pela sua volta. Cristãos freqüentemente tornam-se triunfalistas por lembrar somente

da primeira vinda e esquecem da promessa e ameaça da Segunda Vinda de Cristo para os próprios cristãos.

IHU On-Line - Por quais caminhos anda hoje a teologia nos EUA? Quais as grandes correntes teológicas mais aprofundadas?

David Tracy - Hoje, nos Estados Unidos, a teologia possui várias formas. Entre elas se destacam: a feminista, a womanist[2]  (feminismo negro), a mujerista (feminismo latino), teologias afro-americanas, teologias hispânicas e outras formas que são chamadas (por mim e por outros) de teologia pública – é a teologia que leva a sério suas responsabilidades aos públicos livres: uma sociedade ampla e sua luta por justiça, a igreja e a academia. Todos os três públicos necessitam de séria atenção da teologia.

IHU On-Line - Da sua passagem pelo Brasil com seu irmão, o que lhe ficou mais na memória? O que mais lhe impressionou positiva e negativamente?

David Tracy - Eu fui (co)movido profundamente, às vezes até oprimido pela cultura brasileira - sua criatividade multicultural e multiétnica combinadas com os problemas (especialmente econômicos) que ainda afligem grandes segmentos da sociedade brasileira. Eu viajei muito pelo mundo, mas raramente fiquei tão impressionado quanto pela cultura brasileira nas suas várias formas. Eu fiquei especialmente impressionado pelo trabalho da minha amiga e antiga aluna Kathleen Halvey e de seus vários colegas no centro para vítimas de tortura, em Manaus.

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[1] A teologia apofática é uma das duas linhas da teologia mística e é conhecida também como “a via da negação”, uma teologia que fala de Deus de modo negatio, considerando que é mais honesto falar de Deus pelo que ele não é do que pelo que ele é, como, por exemplo, compreendendo que Deus é invisível, que não pode ser compreendido pela lógica humana. (fonte: <www.ecclesia.com.br>) (Nota do tradutor).

[2] Womanist é originado do próprio inglês “mulher”; mujerista vem do espanhol mujer (também “mulher” em português). (Nota do tradutor)

(Fonte: http://www.unisinos.br/ihu)

Freud e a religião - Entrevista com Carlos Domínguez Morano

O jesuíta Carlos Domínguez Morano, que concedeu entrevista à IHU On-Line, é doutor em Teologia, Filosofia e Ciências da Educação. Licenciou-se em Filosofia Pura e Psicologia. Sua formação psicanalítica se desenvolveu no Instituto de Psicoterapia Analítica Peña Retama, de Madri. Atualmente é professor de Psicologia da Religião na Faculdade de Teologia de Granada e psicoterapeuta no Centro Francisco Suárez da mesma cidade, onde realiza também um trabalho formativo com profissionais da saúde mental. Foi presidente da A.I.E.M.P.R. (Asociación Internacional de Estudios Médico-Psicológicos y Religiosos). É professor convidado em diversas universidades espanholas e latino-americanas.

 Suas publicações giram em torno da problemática das relações entre a psicanálise e a fé e a análise do mundo afetivo. Entre elas, cabe destacar como mais importantes: El psicoanálisis freudiano de la religión. Madrid: Paulinas, 1991; Creer después de Freud. Madrid: Paulinas, 1992

IHU On-Line - Como se formou a imagem que Freud tinha de Deus?

Carlos Domínguez - A imagem de Deus que podemos nos aventurar a dizer que Freud tinha (difícil seria para ele próprio conhecer essa representação interna em todas as suas dimensões conscientes e inconscientes), guardaria relação, sem dúvida, com o sistema simbólico particular no qual o fundador da psicanálise se educou e se formou. Esse sistema simbólico é o de uma época e cultura determinadas. Uma época particularmente marcada por toda a filosofia das luzes e sua crítica do fato religioso e uma cultura que, para Freud, é a do povo judeu à qual pertence. Não podemos esquecer o contexto de uma sociedade cujo catolicismo se manifestava em um claro processo de involução e numa dinâmica combativa diante do que a modernidade trouxe consigo.

Nesse contexto geral, há que acrescentar a influência (sem dúvida, a mais determinante como observa Ana Maria Rizzuto[1] em sua obra Why Did Freud Reject God?) de uma família e de uma figura parentais pelas quais esse sistema simbólico configura a vida de Freud. Com base em todos esses complexos parâmetros, poderíamos aventurar que a imagem de Deus que Freud tinha era a do Todo-Poderoso, a que todos os seres humanos devem submeter-se e ante o qual é inevitável experimentar uma profunda ambivalência afetiva. Essa representação de Deus teve que ser rechaçada desde muito cedo. Já aos 14 anos, numa carta a seu amigo Silberstein[2], Freud se manifestava como um ateu e materialista convicto...

 IHU On-Line - Como essa realidade influenciou a psicanálise?

Carlos Domínguez - Temos que pensar que existe, efetivamente, uma relação entre essa idéia de Deus e a psicanálise. Outra questão muito diferente seria determinar qual foi de fato essa relação. Numa carta ao pastor O. Pfister[3], Freud se mostra absolutamente convicto de que a psicanálise só pode ser inventada por uma pessoa não-crente. A afirmação pode e deve ser objeto de debate e eu próprio a discuto por escrito com Peter Gay[4], que se mostra de acordo com o fundador da psicanálise, considerando também a relação psicanálise-ateísmo. Hoje, superadas as impregnações ideológicas (próprias do ”século das luzes”) nas quais a psicanálise nasceu, essa relação deixa de ser considerada como necessária. São muitos e importantes os psicanalistas que, de fato, e não meramente na teoria, não experimentam nenhuma incompatibilidade no exercício da psicanálise e sua fé religiosa.

Embora a relação ateísmo-psicanálise não seja obrigatória, não resta dúvida de que a posição de Freud em relação ao paterno (tão diretamente relacionado com a idéia de Deus) influencia de modo decisivo em sua obra. Peter Gay afirma que, às vezes, temos a impressão de que os pacientes de Freud não tinham mãe. Tão ausente está o fator materno em suas análises (não só do fato religioso) e tão onipresente está o conflito paterno-filial. Esse conflito do homem Freud determina toda a sua obra e de modo particularmente, claro, sua análise do fato religioso.

 IHU On-Line - Como as experiências de vida influenciam a formação da imagem de Deus?

Carlos Domínguez - A imagem de Deus não dispõe de outro lugar para nascer em cada sujeito senão no terreno de sua própria história e constituição pessoal. E nessa história jogam sempre um papel determinante as vinculações parentais tanto maternas como paternas. Freud deixou em segundo plano as primeiras, mas a psicanálise posterior se encarregou de nos fazer ver a importância decisiva que têm os primeiros estágios da relação materno-filial para a posterior configuração da imagem de Deus. A mãe é a fonte da confiança básica na vida e a partir daí se cria a infra-estrutura para a confiança na experiência religiosa de Deus. O pai representa as dimensões de lei, modelo e promessa de felicidade que jogarão sempre um papel fundamental na experiência de fé. As figuras parentais internalizadas se convertem em terra sobre a qual cairá a semente da palavra para fazer germinar a fé.

 IHU On-Line - Que interlocutores teológicos existiram na vida de Freud?

Carlos Domínguez - Foram muito escassos os interlocutores de Freud no campo da religião e da teologia. Sua formação religiosa no judaísmo foi muito pequena, como mostrou L Pfrimmer entre outros, e posteriormente sua preocupação pelo fato religioso levou-o somente a uma formação no campo da antropologia ou da história (algo na exegese também na hora de escrever Moisés y la religión monoteísta). Certamente, seu principal interlocutor no terreno teológico foi o pastor protestante O. Pfister, representante da teologia liberal e um dos primeiros psicanalistas. Esse interlocutor ofereceu-lhe, ou, pelo menos, tentou, uma visão da fé cristã em parâmetros muito diferentes daqueles dos preconceitos de que ele poderia estar imerso. Entretanto, esse primeiro diálogo entre a psicanálise e a fé apresentou também limitações importantes como pretendi demonstrar na minha obra Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, que atualmente está sendo traduzida no Brasil. Foi um diálogo exemplar de respeito mútuo e na interpelação valente de um e outro, mas um diálogo também que deixou à margem as questões mais específicamente psicanalíticas que estão implicadas no problema.

 IHU On-Line - Quais seriam essas questões constitutivas do debate entre psicanálise e fé?

Carlos Domínguez - No debate entre a psicanálise e a fé se tem adotado posições muito diversas que vão desde a mera defesa e resistência (no sentido estritamente psicanalítico) até a do estabelecimento de uma mútua e saudável interrogação sobre diversos aspectos da vida psíquica e da fé.  Nem sempre a defesa se expressou de forma explícita, em certas ocasiões, tentou-se, mediante sofisticada e artificiosas distinções, entre a “fé neurótica” ou a “fé saudável”, entre o consciente ou o inconsciente ou entre o “natural” ou “sobrenatural”. Esquecia-se, assim, que o inconsciente está sempre presente e atuante em todo o tipo de discurso, crente ou não, e em todo o tipo de experiência religiosa, tenha ela o caráter que tenha. Outras vezes, adotaram-se posições “concordistas” (o mesmo pastor O. Pfister não escapou delas), que pretendiam eliminar todo questionamento mediante uma “violenta harmonização” dos dois campos para fazê-los compatíveis: um modo de ver as coisas que, no fundo, pretende subtrair as polêmicas mais incisivas que estão em questão.

Meu posicionamento a esse respeito foi apresentado na obra citada, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, que, como o próprio título diz, se trataria de manter sempre aberta a questão, porque, na realidade, a psicanálise não vem nem confirmar nem negar a fé, e sim, somente introduzir uma interrogação do inconsciente que atua em todo o discurso humano e que, portanto, afeta tanto o crente quanto o não-crente. Uma interrogação que não se refere aos conteúdos da fé, mas ao sujeito que afirma ou nega tais conteúdos. Dito de outro modo: à psicanálise não compete se pronunciar sobre temas como os da existência de Deus ou a virginidade de Maria, por exemplo, senão tão só interrogar o sujeito sobre o que está dizendo de si próprio, quando afirma crer ou não crer em ambas as proposições dogmáticas.  E essas interrogações só se podem responder uma a uma. Portanto, enquanto existir o fato religioso no sistema simbólico no qual nos encaixamos, essa questão permanecerá sempre vigente para o que afirme ou negue a fé. Diálogo, pois, por essência e não por acidente, diálogo que deve considerar-se como interminável. 

 IHU On-Line - Quais são as conseqüências teológicas desse diálogo?

Carlos Domínguez - As conseqüências desse diálogo podem ser muito diferentes. Em certas ocasiões, esse diálogo pode dar lugar a uma purificação das próprias crenças e atitudes, no sentido de despojá-la de seus elementos mais problemáticos (embora também teríamos que levar em conta que a idéia de uma fé religiosa livre cem por cento de toda a contaminação infantil ou inconsciente seria uma pura “ilusão”) ou poderia também sugerir uma dissolução da crença, como múltiplos casos o confirmam. Acredito que a idéia de que a psicanálise vem “purificar” a fé expressa uma atitude, de alguma maneira, defensiva, porque a psicanálise não tem por missão – insisto - nem purificar a fé nem combatê-la. Ela somente introduz uma interrogação, cuja resposta pode ter direções muito diferentes.

Em outro nível, se poderia afirmar que, se a teologia faz eco do que essas questões supõem na vida dos que atravessam uma experiência psicanalítica, teria que se sentir obrigada a repensar toda uma série de temas centrais de seu fazer. Em primeiro lugar, teria que revisar as representações de Deus e em que medida muitas dessas representações são devedoras do pai imaginário da infância. Penso particularmente na representação de Deus como o Onipotente ou o Todo-Poderoso (atributo que mais repetimos, por exemplo, nas celebrações litúrgicas), esquecendo, talvez, que o poder do Deus cristão é o que se manifesta na fraqueza do crucificado e que somente desde a potência do amor se pode falar de Deus Onipotente. E em íntima conexão com essa questão, a teologia e a pastoral teriam que se questiona sobre determinados modos de conceber a salvação, como os que no cinema manifestou Mel Gibson em seu filme A Paixão e que tanta repercussão tiveram. Uma leitura exclusivamente expiatória que parece dar razão a muitas das interpretações que Freud deu do cristianismo em obras como Tótem y tabú ou Moisés y la religión monoteísta. E se passamos da ordem dogmática à da moral, não resta dúvida de que as questões concernentes ao exercício da autoridade e da obediência ou as que têm a ver com a sexualidade e a agressividade teriam que ser objeto também de sérias revisões à luz das questões que a psicanálise nos propõe.

 

IHU On-Line – Quais seriam as principais diferenças da crença antes e depois de Freud?

Carlos Domínguez - A fe é a mesma antes e depois de Freud. Quero dizer que a fé não tem por que se sentir obrigada a enfrentar uma espécie de tribunal presidido por Freud para sair com uma declaração de culpabilidade ou inocência. A fé, porém, se vive em cada etapa histórica de certos parâmetros culturais, e, em nossa cultura, a fé, por seu próprio dinamismo e não por pressão externa, tenta responder à questão psicanalítica para ganhar coerência e autenticidade. A fé que atende à questão da psicanálise (mais que às trazidas pelo homem Freud) é a que toma consciência de que pode jogar como fugida da vida, como “ilusão” defensiva, ou bem, como uma fé que dinamiza o encontro com uma realidade que é enfrentada com toda lucidez e valentia. Essa fé fugirá também do perigo de converter-se em uma dinâmica de ambivalência e culpabilidade para viver-se uma aceitação da própria realidade sem mutilações nem bloqueios que impeçam a busca da plenitude e da felicidade, das quais Deus não é, em absoluto, ciumento.

 

 

 

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[1] Ana Maria Rizzuto: psicanalista norte-americana, autora do livro Por que Freud rejeitou Deus? São Paulo: Loyola, 2001. (Nota da IHU On-Line)

[2] Eduard Silberstein (1871-1881): amigo de Freud na juventude. Conferir o livro Cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Nota da IHU On-Line) 

[3] Oskar Pfister (1873-1956): pastor protestante, doutor em filosofia e doutor honoris causa em teologia. Como educador, Pfister foi pioneiro em interligar a psicanálise à pedagogia. Foi também um dos primeiros a interpelar Freud a respeito de questões como a relação entre psicanálise e ética, entre psicanálise e visão de mundo e a legitimidade do discurso científico. Conferir o livro Cartas entre Freud e Pfister – 1909-1939. Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Organização: Ernst L. Freud e Henrich Meng. Viçosa (MG): Editora Ultimato, 2004. (Nota da IHU On-Line).

[4] Peter Gay: psico-historiador judeu, radicado nos EUA, professor na Universidade Yale, é também um biógrafo conceituado, tendo escritos biografias de Freud e Mozart. (Nota da IHU On-Line)

(Fonte: http://www.unisinos.br/ihu)

"O cristianismo não tem o monopólio da verdade" - Entrevista com Lothar Hoch

O reitor da Escola Superior de Teologia (EST), Lothar Carlos Hoch, concedeu a entrevista que segue para a IHU On-Line na última semana, por telefone, por causa dos 60 anos da EST.

Hoch, que é graduado em Teologia pela EST, especialista em clínica pastoral pela Seelsorge Institut An Der Kirchlichen Hochschule Bethel, Alemanha e doutor em Teologia pela Philipps Universität, Alemanha, abordou na entrevista as diversas correntes teológicas que perpassam a trajetória de seis décadas da EST, discutindo também os caminhos atuais da teologia da libertação. Eis a entrevista:

 IHU On-Line - Quais os principais pontos que marcaram a trajetória histórica da EST durante esses 60 anos?

Lothar Hoch - A Escola de Teologia foi fundada em 1946, no período pós-guerra. Era um período em que, teologicamente, todo mundo estava em um grande conflito, não só bélico. Era um conflito teológico e de valores. Isso porque vínhamos de um tempo em que algumas igrejas alemãs e de outros países do Ocidente cristão apoiavam a guerra, ou de um lado ou de outro, e na medida em que fomos entrando mais a fundo, vimos, por exemplo, quantos horrores estavam sendo cometidos em relação aos judeus na Europa. A palavra símbolo disso é o holocausto. A Escola de Teologia surgiu num tempo em que se perguntava como Deus podia permitir Auschwitz. Esse foi o nosso nascedouro. Nós tínhamos que refundamentar o pensamento teológico, tínhamos que fazê-lo com a experiência dolorosa de que Deus não intervém na história da humanidade da maneira como nós o desejamos e como precisaríamos. Isso foi contundente para nós, da América Latina, porque também tínhamos passado, na nossa história, por um período de massacre dos povos indígenas.Teologicamente, nos perguntamos como Deus permitia aquilo. Com isso, tivemos que nos dar conta de que a teologia precisa enfatizar muito mais a responsabilidade humana para gerir o destino desse nosso mundo. A teologia precisa muito mais da responsabilidade ética de nós, seres criados à imagem de Deus, para sermos co-gestores de Deus nos destinos desse mundo. Isso foi o primeiro desafio, na época do nascimento da EST: um período muito marcado pela teologia do pós-guerra na Alemanha.

A segunda fase da EST

O segundo momento teológico da nossa trajetória foi sobre a maior busca por uma contextualização da teologia no cenário latino-americano e brasileiro. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, como uma igreja de imigração, tinha, evidentemente, laços muito fortes com a cultura e com a língua alemã. Os professores eram todos alemães na primeira fase. Então, o grande desafio dessa época foi contextualizar a teologia na cultura brasileira e latino-americana. Esse processo se deu a partir dos anos 1960 e 1970, com a formação de teólogos e teólogas brasileiras para substituir o quadro docente da primeira fase. Depois, atualizamos a nossa biblioteca para ter um acervo mais brasileiro e com pesquisas de temas do nosso contexto. Optamos pelas perguntas específicas da realidade e problemática brasileiras e latino-americanas.

A terceira fase: abertura ecumênica

O terceiro momento foi de uma crescente abertura ecumênica da nossa teologia. No primeiro momento, éramos a Escola de Teologia. No segundo momento, passamos a ser Faculdade de Teologia, e nesse terceiro momento fomos nomeados como Escola Superior de Teologia, isso nos anos 1980. Era chegada a hora de entrarmos em diálogo com a teologia da libertação. Iniciamos o processo de diálogo ecumênico, em que as relações com a Igreja Católica foram se aprofundando. Foi quando começamos a criar o grupo de diálogo católico e luterano. Foi um momento muito frutífero. Desde então, isso marca a nossa instituição: a abertura ecumênica. Até essa terceira fase, o projeto de formação estava ainda bastante voltado para o público interno da nossa Igreja, com a formação de pastores. Depois, a partir da década de 1970,

começamos com a formação de pastoras, de lideranças nas comunidades, nas bases da igreja, e tudo com quadros docentes próprios, não mais "importados".

Uma diversificação de ofertas

Se antes o trabalho e a formação eram voltados para um público interno, na quarta fase passamos a diversificar a nossa oferta. Conquistamos o nível de pós-graduação, com cursos de mestrado e doutorado, para um projeto de formação ecumênica. Hoje, há mais pessoas não-luteranas fazendo mestrado e doutorado na EST do que luteranos. Nós abrimos a EST para todos aqueles e aquelas que queiram estudar e pesquisar num espírito de liberdade acadêmica, sem tutela ideológica. Passamos a atuar em outras áreas, como a da música, oferecendo o único curso técnico de música do Rio Grande Sul, e o curso de Musicoterapia, também único no Estado. Passamos a atuar mais no campo da educação. Temos uma área de concentração chamada "educação e religião", além de muitas pesquisas na área da educação. Abrimos para a área da saúde, oferecendo o curso de Enfermagem a nível técnico, com especialização na área da gerontologia. E estamos crescentemente atuando na área do serviço social, que nós chamamos de diaconia.

IHU On-Line - Quais as correntes teológicas que a EST segue no decorrer da sua história até hoje?

Lothar Hoch - Temos o fundamento teológico da nossa instituição: o da reforma luterana do século XVI. Esse é o nosso distintivo. E, evidentemente, estamos baseados na sagrada escritura. Temos nos mantido fiéis a esse fundamento bíblico e reformatório. É uma constante da nossa trajetória, da nossa história. Evidentemente, a própria tradição reformatória tem correntes diferentes. Por exemplo, uma corrente de cunho mais pietista, que acentua mais o lado da piedade pessoal. Isso nós consideramos como importante. Esse lado está presente na nossa tradição teológica e na nossa formação.

As correntes profética e carismática

Além disso, há a corrente mais profética, de engajamento e transformação social, que busca a construção de uma sociedade e de um mundo mais justos. Mais recentemente, temos também, no interior da nossa igreja, a corrente carismática. Isso também se reflete para o contexto acadêmico da Escola Superior de Teologia. Consideramos esses diferentes acentos e correntes teológicos como a constituição de fatores de tensão, mas também de enriquecimento. Nós procuramos considerar isso como uma riqueza, porque nenhuma dessas correntes consegue abarcar toda a verdade bíblico-evangélica. Consideramos que tanto o cultivo da espiritualidade pessoal do cristão, do teólogo ou da teóloga são importantes, quanto o engajamento na construção de um mundo novo e que a espiritualidade e a fé precisam dar o fôlego para a atuação profética no mundo.

Um flanco aberto

Também precisamos reconhecer que as teologias das igrejas históricas no Brasil, inclusive a Igreja Católica, negligenciaram, nos últimos tempos, a dimensão do terceiro artigo do credo, que é o artigo que fala do Espírito Santo e que é representado hoje pelo movimento carismático. A força propulsora, o fogo, o dinamismo do Espírito Santo são o fator fundamental da teologia cristã. A minha tese é a de que, pelo fato de as igrejas históricas terem negligenciado, por exemplo, a dimensão da cura, e por termos tido uma interpretação acadêmico-dogmática da verdade, deixamos um flanco aberto, para que as igrejas de cunho pentecostal e carismático tivessem o crescimento que têm hoje. Digo isso no sentido autocrítico. Também sou da opinião de que nós precisamos estar muito atentos ao próprio desenvolvimento do movimento carismático pentecostal, devido aos flagrantes exageros que ele hoje comete, por querer resolver problemas ou atribuir os problemas das pessoas, do mundo e da sociedade, a fatores sobrenaturais e, com isso, impedir que os fiéis, especialmente os mais humildes, enxerguem as reais causas do seu sofrimento, da sua doença e da sua pobreza.

IHU On-Line - Quais os impactos da corrente da teologia da libertação na instituição? Lothar Hoch - Devemos entender os fenômenos sociais, culturais, as questões de gênero, de saúde e trabalho, e as questões ecológicas, que se observam no mundo contemporâneo, inclusive as questões de injustiça, opressão, comércio desigual, como um processo histórico. Esse processo tem estruturas, sujeitos históricos, sejam individuais ou corporativos, interesses e conjunturas internacionais, ou seja, fatores empíricos, que estão atrás das estruturas vigentes. Não são poderes sobrenaturais que regem essas coisas. A dor, o sofrimento, a opressão, a injustiça e a discriminação não têm uma explicação apenas metafísica. Essa é a grande contribuição da teologia da libertação. Uma teologia que partiu de uma análise de conjuntura e que procura ver quem são os sujeitos da história. Ela devolve ao ser humano o papel de sujeito histórico das mudanças e transformações e mostra que Deus é um Deus que fortalece o braço do fraco e o ajuda a mudar a estrutura, sem entender o seu sofrimento como um destino traçado pelos deuses. Somos parceiros de Deus, cooperadores para a construção do seu reino na terra. Por conseguinte, não se pode colocar todas as esperanças para um mundo no além. Isso é uma contribuição inalienável da teologia da libertação. Por isso tudo, ela não pode morrer e não está morrendo, na minha convicção. Pelo contrário. Ela encontra novas formas de articulação, busca novas alianças, inclusive políticas, com ONGs, e consegue aprovar novas leis. No passado, tudo o que a teologia da libertação tinha de excesso de idealismo, hoje ela tem em pragmatismo. Aqui entram as novas leis, alianças e metodologias que acabo de mencionar. Atuamos na EST com uma teologia mais conscientizadora, discutindo, buscando e encontrando parceiros, seja privados, seja públicos, de outras universidades, para o nosso ensino, a nossa pesquisa e a nossa atuação na esfera social.

IHU On-Line - Quais os autores mais aprofundados na EST hoje?

Lothar Hoch - Hoje estudamos pessoas como Paul Tillich, Hans Küng, Dietrich Bonhoeffer. Priorizamos teólogos e teólogas que privilegiam o aspecto do diálogo inter-religioso, das questões de gênero, de etnia, de espiritualidade e de saúde. Estamos redescobrindo filósofos como Kierkegaard e Gadamer, além de psicólogos e educadores, como, por exemplo, Paulo Freire. Hoje não temos mais escolas teológicas. O que temos é uma diversidade de saberes que se complementam. Não temos a convicção de que um ou outro teólogo seja capaz de articular toda a complexidade do pensamento teológico-filosófico.

IHU On-Line - Quais os desafios atuais da formação teológica?

Lothar Hoch - Um dos grandes desafios atuais para a formação teológica é formar profissionais afinados com as questões e angústias que a pessoa moderna está experimentando hoje. Ela se pergunta pelo sentido da vida, pela qualidade de vida, por referenciais éticos que as orientem e sustentem na sua crise pessoal, familiar, profissional e nas crises que são características do próprio ciclo da vida, como o envelhecimento e a morte. O desafio é formar profissionais que saibam se relacionar com todas as vicissitudes e contingências da vida humana. E também profissionais que sejam capazes de atender a um anseio espiritual. Hoje há a sede de um ancoradouro espiritual que não seja superficial, que não dê respostas baratas.

A importância da consciência ecológica

Outro desafio é o de termos profissionais na docência e no exercício do ministério na Igreja, que consigam ter uma consciência ecológica cada vez mais afinada, mais sensível à própria sobrevivência do Planeta e até do nosso cosmos. Outra frente importante seria a necessidade de profissionais pensadores, que não pensem em termos dogmaticamente absolutos, no sentido de achar que uma direção do pensamento, uma filosofia ou uma teologia consigam, sozinhas, articular toda a verdade. Precisamos ser modestos e ter a consciência de que só temos fatias da verdade e nunca a verdade toda. Precisamos, com isso, buscar a verdade em conjunto com outras ciências, praticar a tal interdisciplinaridade. Devemos, como cristãos e cristãs, estar abertos ao diálogo inter-religioso, na consciência de que Deus revelou parcelas da verdade entre outros povos e culturas e outras formas de vivência ou movimentos religiosos. O cristianismo não tem o monopólio da verdade.

IHU On-Line - Qual a importância da cátedra de Teologia Feminista?

Lothar Hoch - A cátedra existe na EST desde o início da década de 1980, sendo uma das primeiras cátedras de teologia feminista da América Latina e do Hemisfério Sul. Ela aguçou a nossa percepção, tanto das igrejas, da sociedade e de nós, homens, com nossa perspectiva que era androcêntrica e, durante muito tempo, patriarcal. Isso nos cegou parcialmente para uma visão mais equilibrada da realidade, e a própria teologia acabou tendo um viés unilateral. A cadeira feminista, com a pesquisa que se fez e está se fazendo nessa área, as publicações, as teses e dissertações defendidas, começaram a sensibilizar pessoas e a aguçar a consciência para esse quadro acima descrito. Isso, num segundo momento, fez com que passássemos a desenvolver uma hermenêutica bíblica, uma forma diferente de interpretar e compreender a bíblia, além de desenvolver uma sensibilidade maior para descobrir, na própria escritura, sinais e evidências de uma participação profética muito maior de mulheres do que antes nós éramos capazes de perceber. Nós, na EST, já formávamos teólogas pastoras antes disso, mas a criação dessa cadeira contribuiu para que hoje o ministério feminino fosse melhor aceito, mais ainda do que era antes, e contribuiu para que tivéssemos um contingente muito maior de mulheres ocupando cátedras docentes no âmbito da EST. (Fonte: http://www.unisinos.br/ihu/)

Exigimos outra democracia” - Entrevista com Dom Pedro Casaldáliga

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Dom Pedro Casaldáliga falou sobre a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho a ser realizada em Aparecida do Norte no ano que vem. De sua residência, em São Félix de Araguaia, o bispo emérito avaliou a Igreja atual e apontou os principais problemas que devem ser atendidos para uma real mudança.

Dom Pedro Casaldáliga é catalão e chegou a São Félix do Araguaia, em julho de 1968, um dos períodos mais duros da história do País. Numa região de constantes conflitos fundiários, o bispo ajudou a fundar a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização que deu uma nova dimensão à questão agrária. Do Brasil, sua atuação estendeu-se para outras regiões da América Latina, sobretudo da América Central, marcada por impasses sociais semelhantes. Pelo seu trabalho, recebeu o título de doutor honoris causa pela Unicamp, em outubro de 2000. Escritor e poeta é autor de dezenas de livros, discos e vídeos sempre com o perfil da teologia de libertação. Ele é autor da Missa dos Quilombos, composta em parceria com Milton Nascimento e Pedro Tierra, cujo disco, com sua gravação na íntegra, foi lançado originalmente em 1982, e da Missa da Terra sem Males, de 1980, com música de Pedro Tierra. Publicamos uma entrevista com Dom Pedro Casaldáliga nas Notícias Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu, em 16 de abril de 2005.

 

 

IHU On-Line – Uma nova Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano o entusiasma?

Pedro Casaldáliga - Quando se pensa em fazer uma Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho ficamos “balançados”. Por um lado, sentimos a saudade apaixonada da conferência de Medellín[1], por tudo o que ela foi e pelo que deveriam ter sido as sucessivas conferências. Puebla[2] já não foi tão interessante, Santo Domingo[3] menos ainda. Houve, inclusive, tentativas de uma conferência pan-americana, que diluiria a característica latino-americana e caribenha da nossa Igreja do sul. O fato de não fazermos em Roma, já seria um passo, pois se conservaria como conferência Latino-Americana e Caribenha do Episcopado. A preocupação que eu tenho é que o texto base do Celam[4] (Conselho do Episcopado Latino-Americano) abrange pontos demais. Há o perigo de que se fale em tudo para satisfazer a todos e podemos acabar falando de nada profundamente. Eu sonhava com uma proposta de quatro ou cinco prioridades. Discutindo-se o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a juventude, as injustiças sociais do continente e o compromisso da fé e da política. As situações maiores, mais graves e mais urgentes do continente, porque, se tentamos falar em muitos assuntos, vamos falar superficialmente e, como tem acontecido em outras conferências, o resultado é um grande documento, que nem todos os bispos lêem integralmente.

 

IHU On-Line – Medellín foi a conferência mais marcante?

Pedro Casaldáliga – Em primeiro lugar, Medellín marcou uma vivência latino-americana do Concílio e explicitou a opção fundamental pelos pobres como aquela tipicamente evangélica e que deveria nortear todas as opções das igrejas no mundo, porque a opção pelos pobres é a própria opção de Jesus de Nazaré. Em segundo lugar, Medellín abriu um espaço numa hora, ao mesmo tempo, compulsiva e entusiasta, da América Latina. Uma hora de revoluções, de guerrilhas e expectativas diante da ditadura militar. Já Puebla foi mais ambígua, porque possui textos em que se percebem muitas mãos, ou seja, não existe uma linha unitária, como em Medellín. E Santo Domingo já foi mais diluído. O melhor de Santo Domingo é que se explicitou como objetivo a inculturação. No mais, houve pouca novidade e pouca caracterização, tipicamente latino-americana.

 

IHU On-Line – Santo Domingo estava programada de antemão, não houve real participação dos bispos na construção do documento?

Pedro Casaldáliga - Nos preparativos desses últimos encontros, a participação da Igreja latino-americana foi muito relativa. Não se mobilizaram bastante as bases. Por parte de alguns setores mais conscientes houve um descrédito, pois se supõe que será mais um encontro com um documento grande. Há um certo desencanto prévio. Sobre a participação houve muito peso da cúria romana em Puebla mas, sobretudo, em Santo Domingo. E não sei o que vai acontecer nesta Assembléia em Aparecida.

 

IHU On-Line – Mas o senhor acredita que a próxima conferência vai seguir a linha de Santo Domingo?

Pedro Casaldáliga - Não vejo um grande entusiasmo, não sinto um sonho, ou alguma novidade. Talvez porque estou aposentado, um pouco quieto...

 

IHU On-Line – O cenário latino-americano mudou muito.  O que o senhor apontaria como os principais desafios do nosso continente?

Pedro Casaldáliga - Na ambigüidade que estamos vivendo e na opressão neo-imperialista do neoliberalismo e dessa mundialização que está se gestando com muitas impurezas, mas também com muitas possibilidades, cada país necessariamente tem que contar com o mundo todo. Nenhum país pode se considerar agora totalmente autônomo. As políticas nacionais estão muito condicionadas pelas políticas internacionais. Além disso, carregamos, durante séculos, uma herança pesada de pobreza, de dependência, de corrupção de conivência com as nossas oligarquias e governos. De um dia para outro, isso não muda, mas devemos reconhecer que há uma espécie de virada para baixo e para esquerda como diriam os Zapatistas. E estou olhando com bastante esperança esse momento da América Latina e o Caribe. Como tem dito diversos analistas, parece que a América Latina está se afastando dos Estados Unidos. Isso já é um passo importante. E também há, cada vez mais, nas pessoas uma consciência mais crítica, autocrítica, e menos imediatista. Saber contar com paciência histórica nos passos que o povo vai dando. Dar abertura também aos diferentes povos, com as diferentes culturas e reivindicações: negro, indígena, mulher, juventude, o ecumenismo, o macroecumenismo o respeito às religiões afro-americanas e indígenas.

 

A decadência de partidos e sindicatos

Temos que relativizar o que talvez foi excessivamente absolutizado. Por exemplo, continuamos achando importante os partidos e os sindicatos necessários, no entanto, sem aquela hegemonia que tiveram em décadas anteriores. Agora existe uma mobilização da cidadania e os vários movimentos populares, inclusive os fóruns sociais mundiais, manifestam essas confluências de ações dos vários movimentos que constituem uma movimentação maior: popular, fundamentalmente de esquerda, numa perspectiva de transformação.

 

IHU On-Line – No meio disso tudo como o senhor vê o papel da igreja? Está desacreditada?

Pedro Casaldáliga - Hoje há mais Igreja do que antes. Quero dizer que está se relativizando o papel do bispo, o papel do clero e há muito mais grupos de leigos e leigas cristãos que protagonizam a vida da Igreja, como inclusive foi pedido em Santo Domingo. Há muita mais consciência do dever de ser adulto da Igreja e muitas pastorais sociais têm uma presença significativa não só no Brasil como em muitos países da América Latina e do Caribe. Há também mais estudos teológicos e bíblicos. Há mais Igreja consciente, autocrítica e dialogante em ecumenismo e macroecumenismo. Há mais presença de cristãos na política, nos movimentos pastorais e sociais. Tudo isso, às vezes, pode aparecer um pouco diluído porque ainda pesa muito a palavra mais oficial do episcopado, mas é uma realidade esse novo tipo de Igreja.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia o que já vimos até o momento do Papa Bento XVI?

Pedro Casaldáliga - Tenho a impressão de que busca uma atitude mais simples, menos imponente e menos publicitária que o Papa anterior. Isso já é bom. Têm acontecido alguns atos significativos de diálogo ecumênico, inclusive com o islã, com o judaísmo. Deus Caritas Est  (Deus É Amor), que tem seus prós e contras, apresenta como tema, positivamente, o amor e a caridade. Mas dá impressão em certos momentos, que a Igreja deveria investir na caridade, e a política fica de fora, esquecendo a palavra de Paulo VI[5] que a política é uma das mais altas expressões do amor fraterno da caridade cristã. No pontificado dele aconteceram também cortes, como, por exemplo, o padre Masiá[6] da Espanha, pela bioética, e o sacerdote indígena mexicano Eleazar López Hernández, pela teologia indígena e agora está se desmantelando duramente a igreja indigenista de São Cristoval de Las Casas. 

 

IHU On-Line – Em relação ao Brasil, como o senhor avalia a atual conjuntura brasileira?

Pedro Casaldáliga - Eu confio que há mais movimentos populares, consciência crítica e autocrítica e vontade de participação. O poder está sendo relativizado e contestado. Vivíamos muito dependentes de uma democracia representativa e agora estamos entendendo que nos representam muito mal e que não podemos confiar demais neles. Exigimos outra democracia. A agenda latino-americana de 2007[7] que estamos elaborando tem como tema essa exigência de outra democracia, que não seja apenas formal, mas uma democracia econômica, política, social e étnico-cultural. E que seja uma democracia mundial, não há verdadeira democracia para nenhum país se não há democracia para o mundo.

 

IHU On-Line – O senhor acha que o fato de se realizar a conferência aqui no Brasil, exerça uma influência para a abertura da igreja para certos temas?

Pedro Casaldáliga - Vamos ver quem é eleito para a conferência e que tipo de contribuição prévia vai se dar. Eu estou numa expectativa com interrogações, rezando e confiando que o Espírito possa intervir também, que todos criemos espaços porque ele é muito respeitoso.

 

 

 

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[1] A 2ª. Assembléia Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM – foi realizada em  Medellín (Colômbia) no ano de 1968 e iniciou o período da “opção pelos pobres” da Igreja católica na América Latina. Os documentos desta importante conferência foram publicados pela Editora Vozes. Eles foram fundamentais no crescimento das comunidades eclesiais de base – CEBS – e da teologia da libertação na América Latina.(Nota da IHU On-Line)

[2] A 3a. Conferência Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM – foi realizada em Puebla (México) no ano de 1979. Esta conferência confirmou a “opção preferencial pelos pobres” da Igreja católica na América Latina. Os documentos emanados desta conferência foram publicados pela Editora Vozes. (Nota da IHU On-Line)

[3] A 4a. Conferência Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM – foi realizada em Santo Domingo (República Dominicana) no ano de 1992. O seu impacto, comparado com Medellín e Puebla, foi pífio. (Nota da IHU On-Line)

[4] O texto-base da 5ª. Conferência a ser realizada em Aparecida do Norte, está disponível nas livrarias católicas. (Nota da IHU On-Line)

[5] Papa Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini. Foi Papa da Igreja Católica Romana do dia 21 de junho de 1963 ate a data da sua morte. Chefiou a Igreja Católica durante a maior parte do Concílio Vaticano II e foi decisivo na colocação em prática das suas decisões. (Nota da IHU On-Line)

[6] Juan Masiá Clavel: Teólogo e padre Jesuíta. Foi diretor da Cátedra de Bioética da Universidade Católica de Comillas, na Espanha, até ser destituído em janeiro último. Masiá é autor do livro Tertulias de Bioética. Manejar la vida, cuidar a las personas, que trata de questões éticas sobre a vida e que gerou algumas controvérsias dentro da igreja. Traduzimos e publicamos uma entrevista concedida por Marsiá à revista Religión Digital, que pode ser conferida no sítio www.unisinos.br/ihu, na Notícias Diárias, de 22 de março de 2006.

[7] A Agenda Latinoamericana Mundial que está sendo preparada para 2007, intitula-se “Exigimos e fazemos outra democracia”. “Lá embaixo –com o povo- e à esquerda”, definem os zapatistas na “outra campanha”. (Nota da IHU On-Line)(Fonte: http://www.unisinos.br/ihu/)

Uma declaração de amor à Teologia e à vida - Entrevista com Faustino Teixeira

Faustino Teixeira, o Dudu, é um apaixonado pela Teologia. Nesta entrevista, o doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora adianta o trabalho desenvolvido ao lado da antropóloga Renata Menezes, professora do Departamento de Sociologia e Política da Puc-Rio e pesquisadora do Iser Assessoria, na edição especial de natal da IHU On-Line/Amai-vos. A revista abordará os rumos da religião no Brasil nas últimas décadas. A revista, que estará disponível nesta página, na segunda-feira, dia 19 de dezembro, na sua versão impressa, será distribuída na manhã de terça-feira, dia 20. Será a última edição do ano. Assim, ela terá mais páginas. Ela voltará a circular no dia 6 de março de 2006. Faustino Teixeira, teólogo leigo, parceiro do IHU, é o nosso entrevistado de hoje. Dudu faz uma viagem no tempo e fala sobre as temporadas passadas na Itália, o trabalho relacionado à Teologia da Libertação, a relação com a esposa, a médica Teita, e os quatro filhos. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista:  IHU On-Line/Amai-vos -Como surgiu a idéia deste número especial de final de ano da IHU On-Line e qual o objetivo desta edição da revista? Que enfoque será dado ao tema religiões? Faustino Teixeira - A idéia do número nasceu numa conversa com o amigo Inácio Neutzling durante o ultimo Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Tinha comentado com ele na ocasião sobre um livro que estava organizando junto com a antropóloga Renata Meneses sobre o tema do campo religioso brasileiro, por iniciativa da ONG Iser-Assessoria, do Rio de Janeiro. Inácio ficou muito interessado e lançou para mim a provocação de organizar um caderno especial sobre o tema, nos moldes de um número anterior que tínhamos lançado sobre a mística comparada. A idéia foi tomando corpo e para sua realização contei com a preciosa ajuda de Renata Meneses, que topou me ajudar a organizar o trabalho. A nossa idéia era a de oferecer aos leitores um panorama geral do campo religioso brasileiro, com a colaboração de pesquisadores nacionais. O número especial de natal foi ganhando uma dimensão singular, em razão da grande aceitação dos autores convidados para as entrevistas. Estou muito surpreso com a riqueza das respostas e com o leque diversificado das abordagens. O caderno vai ser um marco referencial.

IHU On-Line/Amai-vos -O senhor poderia explicar os conceitos de trânsito religioso, pluralização religiosa e desinstitucionalização das religiões? As religiões sobreviverão ao século XXI? Faustino Teixeira - Na organização deste caderno especial de Natal, partimos da provocação do ultimo censo demográfico do IBGE, que revelou fissuras na tradicional hegemonia católica, com a constatação do crescimento dos evangélicos e dos "sem religião". Estamos vivendo no Brasil uma situação nova de início de uma pluralização do campo religioso. É revelador deste novo momento de diversificação religiosa o fato de ocorrerem trinta e cinco mil respostas diferentes no ultimo censo para a pergunta: "qual a sua religião?". O Brasil vive hoje uma situação particular de "desinstitucionalização" ou "destradicionalização" dos componentes religiosos. Vivemos um campo religioso marcado pela idéia de desfiliação religiosa e trânsito, onde as pertenças culturais e religiosas tornam-se opcionais e revisáveis. É também revelador o crescimento dos "sem religião", cujo registro no censo de 2000 foi de 7,4%.

Trata-se de uma realidade que toca substancialmente a juventude e traduz não necessariamente a afirmação ou crescimento do ateísmo, mas a irradiação de "formas não institucionais de espiritualidade". Mas não há dúvida alguma sobre a força do fenômeno religioso neste nosso século XXI. Como mostrou muito bem Peter Berger em trabalho recente, "não há razão para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso do que o mundo atual".

IHU On-Line/Amai-vos -Como o senhor selecionou os entrevistados desta edição da revista? Que aspectos lhe chamaram a atenção em relação ao conteúdo das entrevistas? Faustino Teixeira - Eu e Renata temos muitos contatos na área de ciências sociais da religião. Além de experiência docente comum na área de antropologia da religião, organizamos juntos em 2004, pelo Iser-Assessoria, um seminário de quatro dias sobre campo religioso, cujos resultados estão para ser publicados em livro pela editora Vozes, em 2006. Há hoje no Brasil um número muito significativo e expressivo de pesquisadores na área das ciências sociais da religião, atuando em centros de pesquisa e universidades. Para este número especial, nós dividimos os três blocos de reflexão envolvendo o campo religioso, e fomos contatando os nomes para as entrevistas, de acordo com a especialidade de cada pesquisador. Os autores convidados responderam ao convite com extrema generosidade e demonstraram grande interesse em assumir a tarefa, mesmo neste período complicado de fim de ano. O resultado foi muito positivo. As respostas às entrevistas revelam um panorama extremamente interessante para quem quer conhecer o campo das religiões no Brasil.

IHU On-Line/Amai-vos - O senhor poderia falar sobre seu grupo de pesquisa no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora? Faustino Teixeira - Eu trabalho em Juiz de Fora no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, que é o único em universidade pública no Brasil. O Programa conta com três áreas de concentração, entre as quais uma voltada para as ciências sociais da religião e outra para as religiões comparadas e perspectivas de diálogo. O âmbito de minha atuação ocorre nesta última área, mas colaboro também em tarefas de orientação de alunos na área de ciências sociais da religião. Minhas pesquisas mais importantes situam-se na área do diálogo inter-religioso, teologia das religiões e mística comparada. Estou também comprometido no momento com uma pesquisa no CNPQ sobre os buscadores do diálogo, ou seja, alguns místicos cristãos que viveram ou vivem experiências de dialogo com outras tradições religiosas, como Thomas Merton, Henri le Saux, Louis Massignon, Raimon Pannikkar e outros. Minha intenção é publicar proximamente um livro sobre este tema. As pesquisas mais importantes em nosso Programa nasceram na metade dos anos 1980, e a riqueza dos trabalhos está revelada nas inúmeras publicações e nos dissertações e teses que temos orientado nos últimos anos.

IHU On-Line/Amai-vos - Como surgiu seu interesse pela mística? Sendo filho de médico, não houve pressão para seguir a carreira de seu pai? Faustino Teixeira - O meu pai foi um médico muito especial. Ele foi um dos fundadores do Instituto de Ciências Humanas da UFJF e atuou por muitos anos como professor de deontologia médica na mesma Universidade, além de aulas de ética no Seminário Arquidiocesano Santo Antônio. Foi um humanista singular e um médico de família, daqueles que não existem mais. Há uma brincadeira na família que diz que ele

tratava os seus pacientes com fé, esperança e cafuné. Ao longo da vida, conseguiu reunir uma biblioteca excepcional que ocupava dois cômodos de minha casa. Depois de sua morte, a família decidiu doar o acervo para a UFJF e o Seminário Arquidiocesano. O seu grande interesse foi sempre relacionado às humanidades e, em particular, à filosofia e à teologia. Ele sempre respeitou as opções dos filhos e nunca interferiu nas decisões que cada um foi tomando na vida.

Uma família de artistas e professores Dentre seus quinze filhos, há uma diversidade grande de escolhas e profissões. Alguns escolheram as artes plásticas, outros, a música. E uma boa parte seguiu a vocação do pai, no magistério. Eu tomei o rumo da teologia e minha decisão teve sempre sua admiração e apoio. O meu interesse pela mística foi sendo gestado no ambiente da própria cidade, rica em experiências contemplativas, como a das carmelitas e beneditinas. Foram também marcantes as influências dos dominicanos e redentoristas, em especial do padre Jaime Snoek, fundador do departamento de ciência da religião em 1969.

IHU On-Line/Amai-vos - Quando e por que o senhor optou por estudar teologia? Qual a importância da teologia em sua vida? Faustino Teixeira - Eu tive a oportunidade de fazer duas graduações simultâneas: filosofia e ciências da religião. No final do curso, em 1977, surgiu uma possibilidade de fazer mestrado em sociologia da religião na USP, mas o possível orientador morreu num acidente e os rumos de minha vida foram modificados. Para o meu encaminhamento na teologia foi de grande importância o apoio e a presença do padre João Batista Libânio, que talvez tenha sido um dos amigos mais decisivos em minha caminhada teológica. Por sua sugestão, acabei fazendo o mestrado em teologia na PUC do Rio, num momento nobre da reflexão teológica brasileira. Ali atuavam como professores, Libânio, Clodovis Boff, Pedro R. de Oliveira, Alfonso Garcia Rúbio, Felix Pastor, Gabriel Selong, Antônio Moser, Carlos Palácio, Ulpiano e tantos outros. Foi na PUC do Rio que nasceu um grupo de teólogos leigos que estão hoje atuando em toda parte, como Maria Clara Bingemer, Ana Maria Tepedino, Tereza Cavalvanti, Paulo Fernando de Andrade etc.

"Não é fácil para o teólogo leigo ter que se submeter à missio canônica e viver sob o peso permanente de uma auto-censura difícil" Apesar da situação peculiar da arquidiocese do Rio de Janeiro, conseguimos encontrar apoios importantes como os de Álvaro Barreiro e Jesus Hortal, que foram diretores do departamento de teologia. Foram pessoas muito importantes enquanto incentivadores na formação teológica, abrindo também caminhos fundamentais para a nossa atuação como professores no departamento de teologia. Foi ali na experiência da PUC que conheci o Inácio Neutzling: fomos companheiros de mestrado e, depois, fomos também juntos para o doutorado em Roma, em 1982. Tenho uma paixão peculiar pela teologia, mas entristece-me o controle que hoje se exerce sobre a produção teológica nas Faculdades e Institutos de Teologia. Não é fácil para o teólogo leigo ter que se submeter à missio canônica e viver sob o peso permanente de uma auto-censura difícil como condição para manter-se no trabalho de ensino. Não vivemos uma conjuntura favorecedora para uma pesquisa teológica livre e criadora. Daí ser um entusiasta das propostas em curso de uma teologia pública, como as que vem sendo aventadas aí na Unisinos. Eu vivo uma situação de exceção ao exercer o meu trabalho teológico numa universidade pública.

Sinto-me extremamente livre para a reflexão e o trabalho de pesquisa. Não é o caso, porém, de muitos de meus colegas.

IHU On-Line/Amai-vos -- O senhor estudou as comunidades eclesiais de base, a teologia da libertação. Que reflexos estes estudos deixaram em seu trabalho atual? Faustino Teixeira - As comunidades eclesiais de base são objeto particular do meu carinho e apreço. Dediquei a elas uma parte significativa dos meus estudos e trabalho. E continuo publicando a respeito e assessorando os encontros intereclesiais de CEBs. Minha dissertação de mestrado e tese de doutorado foram dedicadas a elas. Durante um tempo importante de minha vida atuei com junto Teita, minha mulher, em Volta Redonda, acompanhado a experiência das CEBs. Guardo com grande alegria no coração a presença carinhosa, amiga e incentivadora de Dom Waldir Calheiros, bispo da região, que sempre me estimulou e provocou ao exercício de uma teologia atenta aos sinais dos tempos e movida por compaixão pelos empobrecidos. Minha formação teológica aconteceu num momento auge da teologia da libertação e sua influência é marcante em minha trajetória. São grandes e decisivos os reflexos desta teologia na minha reflexão e produção acadêmica. Recentemente, assessorei um seminário nacional de teologia da libertação em Porto Alegre, organizado pelo CECA e o CEBI. Foi uma experiência muito interessante. Foi uma oportunidade para rever a reflexão sobre o tema e destacar as mudanças ocorridas nos últimos anos, com os novos desafios apresentados. Venho também participando há anos do grupo de Emaús, que reúne teólogos brasileiros, filósofos, cientistas sociais e pastoralistas marcados por grande vínculo com a teologia da libertação. E posso verificar a força de criatividade desta teologia, que ao contrario do que se diz, não morreu Mas está viva e provocada por novos desafios, como por exemplo o pluralismo religioso.

IHU On-Line/Amai-vos -- É muito difícil trabalhar a teologia sendo um teólogo leigo? Faustino Teixeira - Não creio ser difícil, mas bem desafiante. Temos hoje no Brasil um bom grupo de teólogos leigos (mulheres e homens) atuando em universidades particulares católicas ou protestantes. A perspectiva e a visada do leigo é distinta e particular. Há a rica experiência da família, a inserção no mundo profissional, o diálogo efetivo com as outras áreas do saber. Tudo isso faculta um jeito diferente de exercer a teologia. Mas é um campo que ainda suscita desconfiança no meio acadêmico, em razão do controle doutrinal que se exerce sobre o profissional da teologia. A liberdade de pesquisa e expressão é sempre condicionada e limitada, sobretudo no caso dos teólogos leigos que atuam em universidades católicas.

Há dificuldades para teólogos leigos Temos observado casos muito humilhantes de teólogos que são obrigados a se retratar ou que, sob o crivo da auto-censura, não podem exercer livremente a sua vocação de pesquisa e reflexão. Lamento também a situação que se firma em alguns lugares de nosso país de separação da formação teológica dos seminaristas com respeito aos leigos. Os primeiros podem fazer a teologia normal, com horários e professores privilegiados, enquanto os leigos são incentivados a fazer uma espécie de "madureza teológica" no horário noturno. Em alguns casos, até os diplomas são diferenciados. Em certa ocasião, quando ainda lecionava na PUC do Rio, um dos "visitadores" que foram avaliar o nosso curso de teologia observou que, em razão da presença de leigos entre os alunos e professores, vivia-se um ambiente não favorável e propício ao crescimento e formação eclesiástica. Como é que a teologia pode se afirmar academicamente com lideranças

eclesiásticas com visão de mundo tão estreitas e limitadas? É uma questão complexa.

IHU On-Line/Amai-vos -- O senhor é casado desde 1978 com a médica Maria Teresa Bustamante (Teita). Isso significa que sua esposa o acompanha desde o início de sua formação profissional. Como foram aqueles tempos? Qual a importância de Teita como incentivadora de seu trabalho? Faustino Teixeira - Eu vejo como um privilégio único estar casado com Teita há tanto tempo e poder partilhar com ela o meu caminho de vida. É alguém que está sempre ao meu lado, me estimulando e fazendo crescer. Juntos fomos para o Rio em 1978, quando comecei a experiência do mestrado. Juntos formamos uma família muito especial. Quando surgiu a oportunidade de ir fazer o doutorado em Roma, ela foi uma das pessoas que mais me incentivou. Ela largou um emprego público para viver a nova aventura! Ficamos hospedados na Via Cassia com as irmãs dominicanas por quase um mês, de forma um pouco improvisada e com dois filhos bem pequenos. Depois conseguimos um apartamento em Ladispoli (Tirreno) e lá ficamos nos quatro anos do doutorado (de 1982 a 1985). Voltamos novamente a Roma nos anos de 1997 e 1998, para o pós-doutorado, e também foi uma experiência muito enriquecedora. Foi o momento em que pude aprofundar minhas reflexões com Jacques Dupuis, que me orientou na ocasião. Teita aproveitou muito bem sua experiência romana, fazendo contatos e cursos na área da saúde. Sua experiência no exterior possibilitou o acesso a métodos de reflexão que foram essenciais para o seu doutorado na UERJ. Hoje ela atua num dos mais importantes núcleos de pesquisa da UFJF, o NATES, e coordena outros trabalhos fundamentais relacionados à saúde da família, além de coordenar o mestrado em saúde coletiva.

IHU On-Line/Amai-vos - Quando vieram seus filhos? Como eles se chamam e qual a idade deles? Eles já estão encaminhados profissionalmente? Faustino Teixeira - Eu tenho quatro filhos: Pedro (25 anos), João (23 anos), Tiago (17 anos) e Daniel (15 anos). Pedro, o filho mais velho, está fazendo letras na UFJF. É um apaixonado por música, literatura brasileira e italiano. João está fazendo bacharelado em violoncelo na UFRJ, no Rio de Janeiro. É o único filho que saiu de casa. Esta tocando em três orquestras do Rio, entre elas a OSB Jovem. Tiago está cursando a segunda série de segundo grau e ainda tem dúvidas sobre sua profissão. Daniel está na primeira série do segundo grau e também não se decidiu.

IHU On-Line/Amai-vos - Qual a importância de sua família em sua vida? Faustino Teixeira - Eu sempre fui muito família. Venho de um núcleo familiar grande e unido. São laços afetivos fortes, regados a muita musicalidade. Nasci num ambiente cercado de poesia, música e afeição. Tenho a alegria de poder desfrutar a presença de minha mãe tão querida, na flor de seus 88 anos. Ela continua a exercer uma presença única entre os filhos. Com ela montei um grupo de oração, que se reúne quinzenalmente em torno do Ofício Divino das Comunidades. Trata-se de um grupo quase exclusivamente de mulheres, e de "mulheres ensolaradas", para usar uma expressão de Lia Luft. Todas vêm de uma participação viva na Igreja, atuando na Renovação Cristã e na Fraternidade Dominicana. Conseguimos criar um espaço muito importante de oração e recolhimento. Vejo com alegria a continuidade de um clima de muita fraternidade também na relação que busco manter com minha mulher e meus filhos. Um dos elos de ligação continua sendo a música, que também é a paixão de meus filhos. Três deles tocam instrumentos: violoncelo e violão. O espaço geográfico de nossa casa também ajuda, e muito. Moramos numa casa em meio a árvores e muita paisagem verde, o que

serve para criar um clima de aproximação e aconchego. É uma experiência única ter a presença carinhosa da mulher e dos filhos ao meu lado. E a teologia lucra muito com isto.