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35 O livro, o e-book e a poesia digital: considerações gerais Amador Ribeiro Neto* RESUMO: A chegada do computador e da era cibernética estão mudando comportamentos e linguagens do homem contempo- râneo. Era da virtualidade, vida digital, hipertexto, poesia digital, e-book, homem semiótico etc., são realidades que mudam a língua, a linguagem, a literatura e o próprio livro. PALAVRAS-CHAVE: ciberliteratura; poesia digital; hipertexto; livro; e-book. ABSTRACT: The arrival of the computer and the cybernetics era are changing contemporary man’s behavior and language. Virtual era, digital life, hypertext, digital poetry, e-book, semiotic man, etc., are realities that cause changes in language, in literature and in the book itself. KEYWORDS: cyber literature; digital poetry; hypertext; book; e-book. Nestes tempos de Internet, a pergunta que mais se ouve é se o livro impresso deixará de existir. Depois da era das imagens, voltamos à era alfabética, nos diz Umberto Eco, em Não contem com o fim do livro. Nunca se leu e escreveu tanto como agora. O livro, ainda segundo Eco, não desaparecerá. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito. * Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.

o Livro o E-book e a Poesia Digital Consideracoes Gerais

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Livro e-book e a poesia digital

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    O livro, o e-book e a poesia digital: consideraes gerais

    Amador Ribeiro Neto*

    Resumo: A chegada do computador e da era ciberntica esto mudando comportamentos e linguagens do homem contempo-rneo. Era da virtualidade, vida digital, hipertexto, poesia digital, e-book, homem semitico etc., so realidades que mudam a lngua, a linguagem, a literatura e o prprio livro.

    PalavRas-Chave: ciberliteratura; poesia digital; hipertexto; livro; e-book.

    abstRaCt: The arrival of the computer and the cybernetics era are changing contemporary mans behavior and language. Virtual era, digital life, hypertext, digital poetry, e-book, semiotic man, etc., are realities that cause changes in language, in literature and in the book itself.

    KeywoRds: cyber literature; digital poetry; hypertext; book; e-book.

    Nestes tempos de Internet, a pergunta que mais se ouve se o livro impresso deixar de existir. Depois da era das imagens, voltamos era alfabtica, nos diz Umberto Eco, em No contem com o fim do livro. Nunca se leu e escreveu tanto como agora. O livro, ainda segundo Eco, no desaparecer.

    O livro como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, no podem ser aprimorados. Voc no pode fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito.

    * Professor do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas e do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal da Paraba.

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    (...). O livro venceu seus desafios e no vemos como, para o mesmo uso, poderamos fazer algo melhor que o prprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as pginas no sejam mais de papel. Mas ele permanecer o que . (Eco; Carrire, 2009, p. 16-17).

    Dentro da mesma linha de reflexo, observa Paulo Franchetti (2010, p. 10): No sentido da portabilidade, perenidade, confiabilidade e acessibilidade, o livro ainda uma tecnologia superior. Mas Umberto Eco pondera:

    bvio que um magistrado levar mais confortavelmente para sua casa as 25 mil pginas de um processo em curso se elas estiverem na memria de um e-book. Em diversos domnios, o livro eletrnico proporcionar um conforto extraordinrio. Continuo simplesmente a me perguntar se, mesmo com a tecnologia mais bem adaptada s exigncias da leitura, ser vivel ler Guerra e paz num e-book. Vere-mos. (ECO; CARRIRE, 2010, p. 17).

    A questo que se coloca, pois, no a do livro impresso convertido em e-book, simplesmente. Mas a do livro liter-rio. Literatura trabalho com a linguagem, , nas palavras de Pound, novidade que PERMANECE novidade (2006, p. 33). Ou seja, a cada (re)leitura, uma nova significao dada ao leitor. Por isto mesmo a dinmica imposta pela ma-nipulao do e-book no se harmoniza com a necessidade de um tempo mais vagaroso que o livro impresso propicia.

    Mais adiante, o mesmo crtico complementa: Grande literatura simplesmente linguagem carregada de signifi-cado at o mximo grau possvel (p. 40). Agora fica claro que, tambm para Pound, literatura pura e simplesmente linguagem, ou seja, modo de dizer. O mesmo tema pode receber diferentes tratamentos conforme as variadas ci-ncias da linguagem. Todavia, no a linguagem enquanto aparato vazio de jogos de palavras, de retrica balofa ou de construes semntico-sintticas nonsense. Pound deixa

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    claro que a grande literatura (...) linguagem carregada de significado (...) (p. 40).

    Este significado o norte para o leitor. E ele que, depreendemos, perde-se nas pginas do e-book, quando estamos diante de uma obra literria, segundo Eco.

    Se, em literatura, de um modo geral, assim, para Paul Valry, a questo da assimilao e fruio restringe-se, ainda mais, quando se trata da poesia. Ao tratar da relao entre prosa e poesia, nos diz o ensasta e poeta francs:

    Mas do que falamos quando falamos em Poesia? (...) Acho que preciso desaprender a considerar apenas o que o costume e, principalmente, a mais poderosa de todas, a linguagem, oferece-nos para a considerao. preciso ten-tar se deter em outros pontos alm daqueles indicados pelas palavras, ou seja, pelos outros. (VALRY, 1991, p. 178).

    Depois de enfatizar a importncia da linguagem, Valry discorre sobre as duas dificuldades essenciais no trato com a poesia: a divisibilidade e a musicalidade. Caractersticas que escapam ao ritmo natural do e-book:

    O que se faz? Trata-se o poema como se fosse divisvel (e como se devesse s-lo) em um discurso de pros que se bas-ta e consiste-se por si; e por outro lado, em um trecho de uma msica particular, mais ou menos prximo da msica propriamente dita, tal como a voz humana pode produzi-la; mas a nossa no se eleva at o canto que, de resto, pouco conserva as palavras, atendo-se apenas s slabas. (...). E quanto msica de poesia, essa msica particular de que falava, para uns ela imperceptvel; para a maioria, despre-zvel; para alguns, o objeto de pesquisas abstratas, s vezes eruditas, geralmente estreis. (...) Nada mais enganador que os mtodos denominados cientficos (e as medidas ou os registros, em particular) que sempre permitem que se responda um fato a uma questo, mesmo absurda ou mal formulada. O valor desses mtodos (como o da lgica) depende da maneira como so utilizados (VALRY, 1991, p. 180).

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    Mais adiante, ele continua como predizendo o uso imediato do e-book na literatura: O que a obra produz em ns, portanto, incomensurvel com nossas prprias faculdades de produo instantnea (VALRY, 1991. p. 192).

    O livro que um dia Mallarm projetou, depois Borges sonhou e, antes deles, Herdoto quis , este livro virou realidade. Mas realidade virtual. Este livro o ciberespao da infolinguagem.

    Para Lucia Santaella (2004),

    Dos anos 90 para c, estamos assistindo a uma nova revo-luo que (...) provavelmente trar consequncias antropo-lgicas e socioculturais muito mais profundas do que foram as da revoluo industrial e eletrnica, talvez ainda mais profundas do que foram as revolues neolticas. Trata-se da revoluo digital e da exploso das telecomunicaes, trazendo consigo a cibercultura e as comunidades visuais. (...) Na ciberarte (...) as tradicionais divises de papis entre emissor e receptor se ampliam sobremaneira, com a sua condio interativa, a tradio das artes expositivas-con-templativas e mesmo das artes participativas (p. 173-175).

    O texto eletrnico, por no se fixar em suporte mate-rial, como a folha de papel, possibilita o acesso a distncia em tempo real. Ou seja, o texto, sem a materialidade do papel, pode ser lido por mltiplos (ou milhares) de leitores ao mesmo tempo, com tais leitores em espaos geogrficos diversos.

    A biblioteca universal chegou. O grande livro, soma de todos os livros e bibliotecas, to almejado, est online. Est no ciberespao. E o ciberespao (espao com inova-es eletrnico-digitais, da ciberntica, da computao, da informao, da comunicao) chegou rpido e rapida-mente est mudando a ordem econmica, a ordem social, a ordem cultural etc. Enfim, est mudando a linguagem. Sociedade da informao, era do virtual, vida digital,

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    homem semitico, hipertexto, infopoesia, e-book so rea-lidades instauradas em nosso tempo.

    As escritas hipertextuais esto gerando uma economia na escrita, mudando a lngua, a linguagem, a literatura. O ciberespao ultrapassa a nossa capacidade de imaginao e, claro, nos d sentimentos de gozo e medo, ao mesmo tempo. Afinal, o novo assusta. mente apavora o que ainda no mesmo velho, canta Caetano (VELOSO, 1978). Oswald disse: A lngua sem arcasmos, sem eru-dio. Natural e neolgica (ANDRADE, 2011, p. 61).

    Por estas e outras, o novo, o velho, o novelo, o novelho est nos envolvendo em cada linha, em cada palavra, em cada msica, em cada pensamento, com esta lngua de literaturas, saberes e sabor.

    Borges um dia declarou: Dediquei grande parte de minha vida s letras, e creio que uma forma de felicidade a leitura (BORGES, 2000, p. 83).

    Literatura: cursor de novos jogos, brincadeiras, ar-maes, engenhos e engenhosidades: a lngua probe e a literatura libera. Apenas proibio ou apenas liberao geral no do em nada ou levam barbrie. O lance continuar deixando literatura e lngua trocarem seus beijos sem ter conta e sem ter fim.

    Literatura: ludismo mancheia. Exuberncia. Pletora sem fim.

    Com a mudana do meio de produo, ou da mdia de produo, se assim preferir-se, altera-se o modo de recepo do objeto literrio. Walter Benjamin (1986) j nos chama a ateno para a nova mudana da postura, tambm fsica do leitor, diante do surgimento do jornal em confronto com o livro.

    Da mesma forma, a tela do computador impe no somente mudana na postura fsica do leitor, como na assimilao das novas mensagens.

    Diante de imagens que se movimentam associadas, ou no, a sons e cores, o repertrio do receptor pede atualiza-o face a esta nova realidade da obra artstica.

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    A ubiquidade e a velocidade so os principais fatores acrescentados ao livro pelo texto eletrnico. Por ubiqui-dade entendemos a possibilidade de o leitor recuperar um texto para alm do lugar em que eles se encontrem: sem materialidade, independente de sua localizao original, o texto eletrnico pode ser lido simultaneamente por diversos leitores que se encontram em qualquer lugar do planeta (Parente, 1999, p. 69).

    Mais que objeto cultural como pontua o semioticista russo Chklvski (1973) , o texto literrio um processo cultural singular, desautomatizador, gerando novas percep-es do objeto artstico e do mundo em si.

    Como que antecipando as discusses que adviriam, o semioticista produziu um dos ensaios seminais sobre a arte e seus procedimentos, do qual nos valemos para aplicao aos conceitos e estudos da cibercultura. A respeito desta ltima, observa-nos Irene Machado (2003):

    (...) nunca se falou tanto em linguagem e em texto como no campo da recm-nascida cibercultura. Exatamente porque a comunicao agenciada por processos ou redes digitais permitiu no apenas a expanso da linguagem para alm do campo lingustico, como tambm a percepo de relaes de linguagem em sistemas nunca antes considerados do biolgico ao digital tornou-se imperativo encarar a semio-ticidade desse novo campo da cultura. Por ora os principais temas desse campo so: o processamento dos cdigos pela digitalizao, a contaminao entre sistemas de diferentes linguagens, os discursos criados pelo dilogo planetrio, a problemtica da modelizao das lnguas que do suporte a este dilogo (p. 64).

    A poesia sempre fez interaes semiticas com a pr-pria linguagem ou com outras linguagens. O mundo das artes est inserido em seu cdigo verbal como mediao da possibilidade de criar transmutaes de sentidos e significaes. A poesia d outro sentido ao j visto, ao j conhecido, como bem observou Chklvski.

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    Mas a poesia, das artes verbais, a que encontrou na infolinguagem seu melhor meio de expresso , segundo, Octavio Paz (1995),

    (...) salvacin, poder, abandono. Operacin capaz de cam-biar al mundo, la actividad potica es revolucionaria por naturaleza; ejercicio espiritual, es um mtodo de liberacin interior. La poesia revela este mundo; crea outro. Pan de los elegidos; alimento maldito. Asla; une. Invitacin al viaje; regreso a la tierra natal. Inspiracin, ejericio muscular. (p. 41).1

    Em tempos de novos suportes e recursos tecnolgicos, a poesia farta-se nas mltiplas possibilidades de criao face s novas mdias. Estudar as representaes da advindas um desafio aos seus estudiosos, bem como aos poetas. Arte-cincia-tecnologia embrincam-se, mais que em outras pocas histricas.

    O computador hoje a grande mquina semitica, afirma Pedro Barbosa (2001), ensasta portugus especia-lizado em ciberliteratura. Na tela do computador, desfilam signos dos mais variados matizes, questionando as formas de absoro das novas linguagens. Para Santaella, qual-quer descrio do computador uma evidncia de seu carter simblico e cognitivo (2004, p. 88). Frente a este universo desafiador e estimulante, a poesia encontra um espao a mais para as suas sempre renovadoras formas de manifestao.

    Para o semioticista portugus Rui Torres (2003), o cibertexto (ou o texto em meio digital) modifica o uso inicial do computador, at ento utilizado como mquina de armazenamento. A partir de agora, o computador pede um uso criativo. E neste momento que surge a poesia digital. E, como consequncia, altera-se nosso modo de percepo do mundo, gerando uma nova epistemologia

    Ainda segundo Rui Torres, o computador modifica e amplia tanto a leitura como a escrita. Assim, o semioticista portugus apresenta trs posturas abarcando a criatividade

    1 (...) salvao, poder, abandono. Operao capaz de mudar o mundo, a atividade potica revolucionria por natureza; exerccio espiritual, um mtodo de libertao interior. A poesia revela este mundo, cria outro. Po dos eleitos; alimento maldito. Isola, une. Convite viagem; regresso terra natal. Inspirao, exerccio muscular.

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    literria e o meio digital. So elas: (1) o hipertexto e a hiperfico; (2) o texto animado, interativo e multimdia; (3) o texto gerado por computador. Tais modalidades pro-blematizam a mentalidade analgica e abrem caminhos para novas formas de expresso da literatura e da poesia, em particular.

    O hipertexto o mais permanente e o mais visvel. Desde a organizao dos arquivos de bibliotecas que as disponibilizam a distncia ( o lado permanente) at a cara e o prefixo da www world wide web , at o http:// - hipertext transfer protocol ( o lado mais visvel). Por isto mesmo o hipertexto a mais conhecida das modalidades do cibertexto. Diz Rui Torres: o hipertexto interessa aos estudos literrios e culturais no sentido em que ele nos leva a identificar, no tipo de escrita no-linear e sequencial que o caracteriza, a prpria noo de literariedade. E conti-nua: Por outro lado, o hipertexto permite-nos rearticular, atravs principalmente da hiperfico, os conceitos de dialogismo e intertextualidade, o primeiro proposto por Bakhtin e o segundo por Julia Kristeva (TORRES, 2003, p. 5).

    A tendncia do hipertexto para a autorreferencialida-de (a tomada de conscincia acerca do prprio meio em que se inscreve) o relaciona com a ps-modernidade. A convergncia entre hipertexto e narrativa metaficcional faz-nos repensar as ligaes (linkadas), a colagem, a mistura e a combinao tendo em vista o movimento do dilogo e a variao. Dentro da perspectiva rizomtica de Deleuze e Guatarri no interessam o centro ou a periferia, mas as conexes e a pluralidade da advindas.

    O rizoma , por definio, anti-hierrquico: todos os pontos que constituem o sistema esto interligados; qual-quer ponto de um sistema rizomtico pode estar ligado a outros sem obedecer a regras hierrquicas.

    Dentro de uma linha no-linear de descentramento, o hipertexto destaca-se por conceder ao leitor o papel de construtor de sentido. Nele, o leitor torna-se autor, ou co-

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    -autor, j que ele quem manipula a informao atravs das escolhas que faz.

    O texto animado, multimdia, interativo dos blogs, twitters, facebooks etc., tm feito emergir uma literatura que, mais que em pocas precedentes, toma o leitor e a linguagem como vetores.

    O princpio norteador de O jogo da amarelinha, os labirintos borgeanos etc., agora so matria concreta de uma nova escrita, dos manuscritos de computador.

    A poesia animada por computador, ao trazer para o universo da criao novos componentes como o efetivo movimento e a interatividade, abre portas e janelas para novos campos da criao. O que altamente estimulante para a nova literatura e em especial, para a nova poesia, a poesia digital (ou ciberpoesia, ou infopoesia j que a terminologia ainda no foi fixada).

    Por fim, o computador passa a gerar textos. A inte-ligncia artificial nunca foi to natural como agora. O computador uma mquina semitica por excelncia, observa Pedro Barbosa (2001). Gera signos e linguagens. Tanto a partir de programas pr-estabelecidos, como atra-vs de programaes aleatrias e, portanto, inesperadas. Sem nos esquecermos que constitutivo da tecnologia ela tornar-se obsoleta a cada nova inveno em seu prprio campo.

    Poesia e computador realizam um ato semitico, em que a primeira a representante de uma tradio da arte da pala-vra e o segundo, um aparelho eletrnico, uma mquina pro-gramvel que estoca e recupera dados e executa operaes lgicas e matemticas numa grande velocidade, mas que tambm oferece possibilidades de mediao e transmutao, produzindo signos, significaes. (ANTONIO, 2010, p. 27).

    Se pensarmos historicamente, veremos que, potencial-mente, os meios eletrnico-digitais j se faziam presentes nas mltiplas variedades da linguagem da poesia barroca. Se tomarmos, a ttulo de exemplo, o caso Gregrio de

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    Matos, temos um poeta que soube manipular os recursos poticos barrocos como verdadeiros links que se abrem a novos links gerando hipertextos dentro de novos textos, como se usasse o editor de texto e imagem do computador. A juno de vrias partes do poema implica a criao de outros poemas, como produzir um interpoema.

    O poema Ao brao do menino Jesus quando apare-cido um caso tpico desta abertura digital, digamos assim. Vejamos o poema na sua ntegra:

    Ao brao do menino Jesus quando aparecido (Gregrio de Matos)

    O todo sem a parte, no todo;A parte sem o todo no parte;Mas se a parte o faz todo, sendo parte,No se diga que parte, sendo o todo.

    Em todo o Sacramento est Deus todo,E todo assiste inteiro em qualquer parte,E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo.

    O brao de Jesus no seja parte,Pois que feito Jesus em partes todo,Assiste cada parte em sua parte.

    No se sabendo parte deste todo,Um brao que lhe acharam, sendo parte,Nos disse as partes todas deste todo.

    (MATOS, 2003, p. 59)

    Constatamos que h uma permuta entre os termos todo e parte, que se abrem para novos significados para o poema. Significados que so regidos por uma linha limtrofe direita, uma vez que no h rimas no poema, a no ser a repetio destas duas palavras, contrariando o esquema tradicional rmico do soneto petrarquiano, que

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    serve de modelo a este soneto (14 versos distribudos em dois quartetos e dois tercetos) e totalidade dos sonetos gregorianos (com rimas interpoladas e emparelhadas nos quartetos, e alternadas nos tercetos).

    As estruturas poticas deste poeta baiano barroco mantm uma dinmica contnua e renovada da construo de significados pelo jogo intersemitico de significantes. Para comeo de conversa, em parte significativa da poesia de Gregrio, no h um centro diretivo. H pistas rizomti-cas para voos e navegaes. Alis, navegar mais Gregrio que voar: pela poca das navegaes e pelo uso metafrico que o termo assimilou hoje.

    As palavras de Jorge Luiz Antonio parecem apropria-das, guardadas as devidas propores de tempo, espao e linguagem, para descrever o processo potico barroco de Gregrio:

    (...) a palavra que provoca a sensao de visualidade atravs da parataxe, descritividade, referencialidade; a espaciali-zao dessa palavra, indicando movimento ou no, que se torna tambm elemento esttico; essa mesma visualidade transportada, acondicionada a um editor de texto e de imagem, ou seja, a poesia visual no computador; tantas alteraes ocorrem que a palavra deixa de ser legvel e passa a ser imagem; a palavra no contexto digital; a palavra em diagrama, produzindo o hipertexto a partir de relaes maneira de uma nova sintaxe; a juno de vrios tipos de poesias, com o objetivo de produzir uma interpoesia; uma poesia hipermdia; uma poesia eletrnica como forma de releitura da poesia verbal j existente; uma poesia em mo-vimento num site; a poesia-em-construo que estabelece relaes diferentes entre leitor e autor, fazendo com que o primeiro seja o segundo, e vice-versa; ou mesmo releituras digitais de criaes poticas nos meios eletrnico-digitais, numa espcie de intertexto hipertextual. (...) A fuso da palavra e da imagem determina inmeros caminhos, cuja delimitao faz-se extremamente necessria, at pelo uso dos termos palavra e imagem. (...) Parece-nos necessrio delinear uma relao da palavra com a imagem enquanto

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    produto literrio. O que significa que um poeta que vai incluir a imagem na sua obra literria. um artista da pala-vra que, tambm conhecedor dos mecanismos estticos da imagem, vai utilizar outro recurso artstico. (...) O que vai diferenciar a palavra-imagem ou imagem-palavra da poesia, delimitada de outras artes que usam dos mesmos elementos constitutivos, a sua funo potica. o contexto potico que conforma essa mensagem. (ANTONIO, 2010, p. 3-5, CD encartado).

    Vale salientar que a poesia digital, com todo uso que faz da tecnologia de ponta, no puro experimentalismo, no mera aplicao vanguardista, no apenas aplicao vanguardista da high technology. Ela, como bem observou Jorge Luiz Antonio, representa um

    (...) elo cultural entre as poesias oral, verbal e visual, no sentido que os termos tm sido usados nas mais diferentes manifestaes literrias, indicando um certo encadeamento e continuidade histrico-culturais: a poesia digital a mais recente manifestao potica, um produto que concilia a arte da palavra e a tecnologia contempornea. A conformi-dade da palavra imagem digital passa por um processo que pode apresentar resumidamente como a palavra procura da imagem, semelhante ao conceito que Roland Barthes denominou de funo utpica da literatura: a palavra tem a inteno de se tornar o ser ou o objeto que ela represen-ta. A relao entre a palavra e imagem permite inmeros enfoques, dentre os quais faz-se necessrio estabelecer um parmetro de enfrentamento da questo (ANTONIO, 2010, p. 3, CD encartado).

    Nas palavras de Andr Parente (1991),

    O ciberespao o novo espao de comunicao da huma-nidade, aquele que integra algumas das mais importantes inovaes da humanidade, aquele que integra algumas das mais importantes no campo da eletrnica, da ciberntica, da computao, da informao e da comunicao. O ciberespao est transformando profundamente a ordem

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    econmica e social: fala-se em sociedade da informao, era do virtual, vida digital, homem simbitico. (...) as escrituras hipertextuais esto engendrando uma nova economia da escrita. Por outro lado, o hipertexto e a realidade virtual constituem os principais polos de aplicao do ciberespa-o, que nos levam a repensar a dinmica do processo de comunicao. (p. 78-79).

    O livro pode no desaparecer, como afirma Eco, mas seu modo de compor j outro. Sorte da literatura, que se renova, depois de renovar tantas mdias, como o cinema, a TV, o computador, o vdeo.

    Referncias

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