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8/13/2019 O Homem Barroco - Paolo-Rossi-Cap 1 e 5
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FUND ÇÃO P R O DESENVOLVIMENT O D UNESP
Presidente do Conselho urador
Paulo Milton Barbosa Landim
Presidente e Diretor de Projetos Especiais
milton Ferreira
Diretor de Fomento à PesquisaMario Rubens Guimarães Montenegro
Diretor de Publicações
Carlos Erivany Fantinati
EDITOR UNESP
Diretor
Carlos Erivany Fanlinati
Editor Executi\ o
OSé Castilho Marques Neto
Editor Assistente
OSé luysio Reis de ndrade
•
P OLOROSSI
CIENCI E FILOSOFIDOS MODERNOS
SPECTOSD REVOLUÇÃOCIENTÍFIC
Tradução de
ÁlvaroLorencini
Fundação para oDesenvolvimento
daUNESP
ISTITUTO ITALIANO I CULTURA
INSTITUTO CUL TURAL íTALO SRASILEIRO
8/13/2019 O Homem Barroco - Paolo-Rossi-Cap 1 e 5
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Copyright© 1989 by Bollati Boringhieri editore s.p.a.Titulo originalem Italiano:l scienza e ln filosofia ei modemi
Aspetti della Rivoluzionc scienúficaCopyright© 1992 da Tradução Brasileira:
EditoraUnesp da Fundação para o Desenvolvimentoda Universidade Estadual Paulista(rUNDUNESP)
Av. Rio Branco,121001206 -São Paulo -SP
Fone/Fax: (011) 223-9560
Dados Internacionaisde Catalogação na Publicaç:io (CIP)(Câmara Brasileirado Livro,SP, Brasil)
R741c
92.1976
Rossi, raolo 1923- 1
A ciênciac a filosofia dos modernos: asp( ctos da Re\ oluç:ioCientifica / I aoloRossiõ tradu(::io Alvaro l.orencini. - S:ioPaulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1992. -(Biblioteca básica)
Bibliografia.ISBN 85-7139-028-2
I. Ciênda e dvilizaç:io 2. Ciência - filosofia 3. C iência- Ilistória I. Título_ II. Título: Aspectos da Rc\ olu\:ioCien·
tífica. III. Série
CDD-509.03
Índices para catálogo sistemático:I. Ciência: Ilistóriamoderna 509.032. Revolu(::io Ci(,lllifica: Históriamoderna 509.03
9
13
27
49
59
SUMÁR O
Nota prévia
Introd uç<ioO proccssode Galilcuno século
Primciro capítuloSobrc o dcclínio da astrologia nos inícios da IdadcModerna
A astrologia: umalei universal da nanHeza Astrologiae heliocentrismo O céu vivoUma mistura híbridade ciênciae religi:io Um texto de Shakespeare eoutro de Bacon
Segundo capítulo
Leonardo c a aurorada ciênciaT crcei ro capítuloBacon c a BíbliaA pro/ceia de Daniel Aristóteles como anticristo O retorno aosTextos Sagrados A recusado exelllplarismo A ciêncian;1o é1lIet ,stot(;lica A redcn(::io pelas obras O nltll1do n:l0é a imagelllde Detl> Um processode secularizaç:io
87 Quarto capítulo
Galilcu Galilci e o Livro dos SalmosA límpida raz:l0 e a túrbida magia Inter ,ençàc s da censttra Acanaa Castelli Os filósofos naturais intérpretes das Escrituras O livro
j ,,o
.
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P OLOROSSI
divinoda natureza A diferençaentre opinião e demonstraçãoHermenêutica bíblicana carta aDini A Bíbliacontém a verdadecopernicana Conformar as passagens sagradasàs doutrinasnaturais novas A límpida razão e a túrbída magia: o contextoA carta a CristinaUm terrenominado
Quinto capítuloOs aristotélicos eos modernos: as hipóteses e a naturezaO mito da cOlHinuidade O universo de Zabarella Objeto s naturaise objetos artificiais O mecanicismo e os modelos artificiais\ criseda distribuição das competênciasOrdem natural e ordemartificial A experiência e os experimentos\ invencibilidadedo
método O radicalismo dosmodernos Oportunismo semescrúpulos
Sexto capítuloBacon e Galileu: os ventos, as marés, as hipótesesda Astronomia
O Bacon dos manuais e a revolução copernicanaOs contactosentre Bacon e Galileu As marés e a recusados influxos lunaresOs ventos constaHes e o vôo dos pássarosMundos subjetivose mundo objetivo l-lipoteticismo e realismo Porque Bacon refutaCopérnico? Bacon contra Galileu: entusiasmos e desilusõesA natureza como selva e a natureza como livro Juízos divergentessobreas antecipações Ciências galileanas e ciências baconianas
213 Sétimo capítulo
A pluralidade dosmundos e o fimdo antropocentrismoA astrobiologia e a desordem cósmicaCinco teses cosmológicasrevolucion:irias Ciência e ficção científica: oSonho de KeplerO lugar pior e mais distante dos céus O antropocent rismode KeplerOs astros são terras habitadas Declínio e fimdo antropocentrismoAs conjecturas verossímeis: oosmotheoros de l-luygensConclusões
265 Oitavo capítulolínguas artificiais, classificações, nomenclaturas
Premissas Ta d i ~ õ e s ,
problemas, termos\
língua uníversal: umamultiplicidade de projetos A língua univC rsal: Wílkins e DalgarnoUma imC nsa quantidade de plantas: os lembretes para a lIIelllória
333
365
381
383
CIÊNCI E FILOSOFI DOS MODERNOS
Regras demasiado inflexíveis para a natureza Nomear equivalea conhecer COlHra os sistemas: o convencionalismoNomenclaturas botânicas e simbologia química A lanterna mágicade foucault
Nono capítulo
Os crustáceos e os vulcões:ordem e desordemno mundo
O problemade um geólogo newtoniano Grandes alternativasOs dias da criaç:io eas épocas da natureza AnC gação do Caos
\ ordemdo mundo I\s rC gras da ordC lII: os (;Ilos e as hipótesesOs milagres, a ciência,as catástrofes Um naturalíssimo sistema
Bibliografia
rontes
Índice remissivo
7
:
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NOT PRÉVI
Os ensaios que cOlllpõem os capítulos deste livro procuram
esclarecer, de :1ngulos diferel1les e num período de tempo que vai
da metade do st culo XV à metade do século XVIII, alguns temasque têm uma ill1port<1ncia central na chamada Revolução Científica o declínio do mundo mágico e da tradição hermética; as estreitasconexões entre o nascimento da nova ciência e os problemas dateologia; as discussões de física e de cosmologia que acompanha-
ram e determinaralll o fim da visão aristotélico-ptolomaica do
Universo; a disputa sobre a infinitude e a habitabilidade dos
mundos e sobre a posição do homem no cosmos; o problema dasclassificações naturais e a formação de uma linguagem rigorosa na
bot,lnica, na zoologia, na química; as grandes alternat ivas presentesna discussão sobre a história da Terra e o peso exercido sobre elaspelas perspectivas cartesiana e newtoniana.
A maior parte dos ensaios foi escrita entre 1965 e 1969 erecolhida no volume SpCLLi della Hivoluzionc scicntif ica Morano
Nápoles, 1971. Solicitada uma nova edição, submeti-os a uma
reescritura que compreende além de um rigoroso repolimelllo,numerosas integraçôes c referências a uma st rie de estudos publicados posteri ormente ao aparecilllento daquele livro. Eliminei dois
p t ~ n d i c e se dois ensaios: ll perfil de Galileu Galilei e um
capítulo sobre Thomas Burnet quc, nesse ínterilll, tinha sido
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lO I AOLOROSSI
inserido,com as mudanças oportunas, no volume I segni dei tempostoria della Terra e storia delle Nazioni da Hooke a Vico Feltrinelli,Milão, 1979. Acrescenteiquatro ensaios, escritosao longo dos
últimos dez anos, sobre Leonardo,sobre Galileu e o texto bíblico,sobre o conflito entre os modernos e os aristotélicos,sobre ogeólogonewtoniano Anton LIZZ HO Moro.
Preferi não tocar no texto da Introdução que foi escrita nos
últimos mesesde 1969.Como já advertiem 1971, o título e o textodessa illtroduçãotinham intençõesclaramente polêmicas.Não sedirigiam certamenteii comunidade dos historiadoresda íilosofia,das idéias ou da ciência, masprincipalmente contra aquelesliteratos e jornalistas, filósofos improvisados, epistemólogosde
fim-de-semana, cientistasaposentados que estavam interessadossobretudo em apresentar a um grallde pllblicouma imagemtotalmente negativa da ciência e da sociedade illdustrial, eque
estavam também convencidosde que tal o p e r ; \ ~ ã oofereceriauma
contribui, ão decisivanão apellas Ü 'realizaç-,iol ia práxis' de suasnem sempre illocentes fllltasias, maslambém ao advelltode uma
iminellte e purificadora revoluçãodas massas.
Hoje eu eliminariaou então reformulariade maneira muitodiferellte as referêllcias aKrisis de Edmulld Husserl, sobretudo,
aquelas páginasque contêm juízosnão totalmente aceitáveis (comoobserva com grande cortesia SofiaVanni Rovighi,que escreveuum livro importalltesobre o eminente filósofo).Mas tive presenteduas coisas: o atual e impetuoso renascimento de um clima'idealístico' e a ampla penetraçãona cultura italiana enos meiosde comullicaçãode massada mensagem anticielltífica e alltimoderna, proclamada aos berrosna época, eprincipalmente por causadessa potência vocal, tão forte e tão penetrante.As tradicionaispropensôes itúlicas parauma cultura exclusivamente retórÍCo-literúria contribuíram fortemente para aampla difus,io dessa mensagem,enormemente amplificadapor redatoresde jornais e semanários que tendem a apresentar todo livro recenteCOIIIO o surgimento
de um novo modo de pensar e dificilmellte resistemao prazerillsallode ver a casa cair'.
A CIÊNCI E A I LOSOH DOS MODERNOS
Uma cultura que concebe as mudanças de paradigma como
processosque se efetuamda noite para o dia e naqual o Tempoassiste a partos masculinos' a cada vinte equatro horas, para os
homens da minha geração(pior ainda se foremhistoriadores de
profissão), cria sériosproblemas de a d a p t a , ~ ã o .Jamais pude com
preender como foi possível aceitarcomo excitantesnovidades asapressadas ruminações, efetuadasnos anos sessenta e setenta,dostemas característicosdo anticientificismodo início do século XX.
Mas jáque esses temasencolltram ainda amplo espaço, refon:andoaquelas tendências, preferi rcapresen tar essas púginasna sua formaoriginal.
A e d i < , ~ ã oanterior do livroera dedicadaü memória de AntonioBanfi, um dos poucos mestres autênticos da filosofia italianado
séculoXX com quem tive a sortede trabalhar, muitosanos atrás.
Banfi, aluno de I [usserl e de Simmel, jamaiscompartilhou dastesesdo cientificismo positivistaou neopositivista.Nos anos entre
as duas guerras, jamais acreditouque a 'crise' da culturaeuropéiapudesse ser abafada recorrelldo às fórmulas crocianasou ú místicagentilianado pensamento pensante . Nos anos do após-guerra,não tevequalquer simpatia pelas liquidantes tesesde Luk<\cs sobre
o irracionalismo.Com todas as limitaçõesque lhe eram próprias,com todas as incertezas eos dogmatismos que caracterizavam omarxismo daquelesanos, tomou para si a antiga e infeliz batalhados iluministaslombardos para uma r e n o v ; H . ~ , i odas lillhas de
fundo e das estruturasda cultura italiana. Justamellteem 1930,
num período em que a maioriados filósofos italianos seabando-
nava auma orgia de retórica espiritualista, Banfi pllblicouum livrosobre Galileu que, ao contr,íriode muitos outros publicados em
anos mais recentes,pode ser lidoainda hojecom llotúVc proveito.Nesse livro,no que diz respeito a Galilell e seu significado para amodernidade, Banfi chegava a cOllclusões radicalmente diversasdaquelas aque deveria chegar, cincoanos depois, numa célebreconferência, o seuamado e jamais renegado mestre I-lusserl.
Elltre as muitas herallçasde 1968, uma sem dúvida; aquelacapilar difus;io de fortes dosesde trivialidade lingiiística e de
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agressividade intelecntal.Embora cm zonas marginais da filosofiaitaliana, estas dimensões nem sempre apreci:1veis do espíritovoltaram à tona recentemente(no discurso trôpego de alguns'gloriosos sobreviventes'),com referência específica; t obra deAntonio Banfi. É por isso que, a uma dist<inciade quase vinteanos, renovo com prazerainda maior a dedicatóriadaquela época:com o sentimento de uma dívida profunda que cresce com o
transcorrer dos anos .
Pa ossi
Uni er,;idade de rIorl'l1ça,jUllho de 1988.
INTRODUÇÃO
O processo de Galileuno séculoXX
1. Nasce a ciência, desaparece opensamento . Nesta forma, aexpressão(' de Heidegger, mas as vari;H:ôesem torno deste tema,na culturacontemporânea, são quase infinitas. ;\ ciêncianii.o temnenhuma consci['nciade si', a aspinH:ão;\ verdade não est;l nasciências naturais' ,da ci(;ncianão se pode esperar nenhllm despertar do espírito', o indllstrialislllo reifica as almas',a m;lqllina(' ameio est ranilada' . Poderíamoscontinuar, citando autores diversos,por p;íginas e páginas. Entre filósofos e ensaístas, literatos e cultoresde ciênciashumanas, teóricos da Recusa e partid;írios da Â(:iio,
voltaramà moda hoje todos os ingredientes da revolta lH'o-rom;intica do inicio do sl\:ulo contra a ciência.
; \ recusade todo tipode conhecimento científico e racionaldomlllldo juntou-se aum apaixonado requisitório contra a moderni-dade: dai nasceramIIl11a identificH:;io damodernidade COIII odiaból ico, o vulgar, o a bsolul a lIIenl e negat ivoj ma reivind icaç;ioda subjel ividadecomo luga r de salvaçiioj 11m prof< 1 ismo vago,amea(:ador e moralisl ico, incapaz de previsôes. O IlIgarde umaan;llisedos componentes hislóricos reaisdo 111III1do da ci(;ncia, dakcnica e da indl'lslria, oIU,gar de 11111 discurso sobre asrdaçôesobjel ivas cnlre os homens c suas arl iculaçôes as esl rutII ras da
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sociedade, foramsendo ocupados por um discurso filosófico globalque - segundo a perigosa tradição filosóficado espiritualismo -não opera distinções,não conhece a historicidade,mas fala' emgeral' da ciência, da técnica e da indústria. E, em geral elasconstituem o mundo da alienação edo estranhamento. A racionalidade, enão uma estrutura particularda sociedade, torna-se o lugaroriginário da crise.
Foi-se formando lentamente uma espécie de base teórica ecultural comum sobre a qual se superpõem - de maneira diversae muitas vezes mal-misturados - temas e motivos tratados indiferentemente por Kierkegaard e pelo jovem Marx,por Nietzsche epor Freud,por Heidegger epor Tillich, peloúltimo Husserl e porAdorno. Um heideggerismotardio que veste com freqliência asroupas do marxismo,um obscurantismo anticientífico disfarçadode pensamento revolucionário: esse p:1rece ser o parto,na verdadenão masculino,do nosso tempo.
2. Na conferência de1933sobre aQuestiio da técnicn I Ieideggerchegou a conclusões claríssimas. A ciência 'reifica as coisasem
objetualidade e {,1lsifica o Ser'. An ~ x v lgrega liga-seà 1toí'l(J\( eà E 1 t l a T ~ J . l l ,termos que designam 'o poder encontrar-seem
alguma coisa, e o poder reconhecer-se nela'.Por conseguinte, atécnica, no mundo antigo, não fabrica mas revela dirigindo ascoisas 'para a realizaç;10de sua plenitude'. Mediante a TÉXV'l, saido esquecimento, por obra do homem, a históriado Ser. A técnicado mundo moderno tem características opostas: é violência exercida sobre o Ser pelo existente,uma violênciaque 'provoca paraproduzir', que obscurece omundo em lugarde ' despert,l-lo para aaurora da verdade'.O homem moderno é um ser 'insurreicional':
no assassinatode Deus, a metafísica e a tomacIado poder por parteda técnicaencontram a sua realiz;H.:ão.
Escravidão, opress;lo, explora(;;lo, desumaniz(l(;;lo n;lodepen-
dem da organizaç;lo da sociedade,do uso da c i t ~ n c i ae da kcnica,
da propriedade dos meiosde produ\';lo, da hierarquiados valores
que nasce sobre a base dasr e l a \ ~ ô e sentre os homens, llIas estãoirremediavelmente ligados aoempreendimento, diabólico e prollle-
A CIÊNCI E A FILOSOFIA DOS MODERNOS 5
téico, de uma conquista e uma sujeição do lllundo natural. OEclipse da razão de }-Iorkheimer éde 1947,mas asconclusões n;losão diferentes: No domínio sobre a natureza - escreve o sociólogo de Frankfurt - está incluído o domínio sobre o hOlllem.Poroutro lado, a ciênciamoderna identifica-seCOlll uma formade
imperialismo, nasce e se desenvolvepor um ímpio desejo de
domínio, seus métodos e suas categorias são fruto da pecaminosa
insaciabilidade da espéciehumana, são produtos da lutado homem
contra o homem, da vontade prepotente: A natureza ~ objeto de
uma exploração total ( .. ) a sede depoder do homem l' insaciável.O domínio da ra(:a humana sobre a terra n;loencont ra paralelosnaquelas l'pocas da história naturalem que out ras espi'ciesanimais
representavam as mais altas formas de vida,jú que os apetitesdaquelas r a ( ~ a sanimais cram limitados pela Ilecessidadede suae x i s t { ~ n c i afísica. O desejo insaciúvddo homem de estender o seupoder para dois infinitos, o microcosmo e o Universo, n:io temraízes na sua natureza, masna estruturada sociedade ( .. ) A lutacontínua do homem contra o homem explica a insaciabilidade daespécie, as atitlldes pníticasque S;lO sua conseqüência e t a m b i ~ m
as categorias e osIIH_,todos do saber científico.
3. A este climade cultura estão relacionados, paraentender oseu sentido, muitosdos discursos contemponlneos sobre as origens da ciência moderna, sobre o significado e ovalor daquela
Revolu\'ão Científicaque permanece, para o bem cpara o mal, nasraízesda civilizaçãomodema. Se a f i ~ t i c h i z a < : ; l oda ciência est;ílig:1daao empreendimento científicocomo tal, se ac Í l ~ n c i aé aqlliloque
aliena e desumaniza ohomem, se a 'teoria' tempor si mesma umaf U I H . ~ ã ocoisificante e reificante, se as raízes deuma sociedadedesumana n;io dependem da slla organiza\';io capitalística, llIas daciência 'cm geral', se o trabalho é uma mald il:ão qlleperpetua aestrutura repressiva da sociedade; então,( claroque aos chamados
hll1dadoresdo pensamento moderno e aos maiores teóricos daRevoluç:l0 Científicapodem ser atribuídas responsabilidades precisas. ~ possível re(;1Zer o processo de (;alilell, ; I Z l ~ n d oa estepersonagemacuS;H.:ões muito mais pesadasque as que lhe fizeram
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16 I AOLOROSSI
os juízes da Santa Inquisição, e podemos renovar, nos confrontos
do Lorde Chanceler, as a C l l s a ( . ~ õ e sque em outros tempos lhe foramfeitas por De Maistrc e por Liebig.
Os textos que contêm os requisitórios mais importantes earticulados, pronunciados durante este processo, vieram ü luz nos
anos do f.lscismo e da guerra: entre1935
e1942.
São a Krisis de
I-Iusserl e a Dialí klik der Aulkliirung de I-lorklwinH'r e Adorno.
Galileu, para I-Iusserl, é o iniciador daquela crise que leva : I
dissollH:;10 da filosofia, ; separa(:;10 da ciência de seus fundamenlos
filosóficos, ;\ recusa de todo problema acerca do senlido daexistência humana. Galileu > o primeiro respons;ível por aquela'ingenuidade' filosófica para a qual a cit'ncia julga que 'o mUfl(loobjelivo' coincide 'com o universo de tudo aquilo que (,'. AlraV( Sda matemat z a ( . ~ ; 1 0e da quant ifica(:ão da nalllreza, a ciência galil eana
substillliu a Ll benswdt cotidiana pelo universo científico, cindiu araz;io da hu T \(/nüas racional, deu luga r a um tipo de sa ber q ue ~
'insciente de sua própria f i l l 1 d a ~ ; l o .O processo de malemat izal, ;iocoincide com um 'esvaziamento de sentido' da realidade, > algoque se sobrepõe ao único mundo real que ( 'o nIlIlHlo-cirClIl1Slallleda-vida'; a 'natureza idealizada' ( desse modo iden t i ficada c o m ' anatureza intuiliva pn'-científica'. O 'verdadeiro ser' ~ substiluído
por um mélodo que permancce 'incompreensível e jamais comprecndido' na sua natureza profunda. Para b n das 'distorcidasinterpretal,'ôes' fornecidas pelos cientislas, o senlido 'origin;írio ea u t t ~ n t i c odas teorias físicas permanece desse m o d o ' ocuho'. Ac i t ~ n c i analural matemúlica lornou-se assim apenas 'uma maravilhosa Il'cnica', a racionalidade de seus ml'Iodos e de suas teorias éapenas relativa, de tal modo que 'a revo tH:;io de Einstein C.) não
reforma o e s p a ~ oe o lempo dentro dos quais se desenvolve a nossavida vivente'. O racionalismo 'descambou para naturalisl\lo eobjcl ivismo', d a ciência moderna nasceu 'um racionalismo cont ra-ditório C.) incapaz a t ( ~de apreender os problemas mais imedialosdo espírito'. Da atitude 'objetivista' nasce, j;í na época antig;\, o
materialismo, ainda que Demócrilo tenha sido recusado 'pelosespí ritos mai ores da filosofia'. A crise da Europa' i nca suas raízes
A CIÊ NCIA E A FILOSOFIA DOS MODERNOS 17
num racionalismo errôneo' e a razão do iluminismo 'era um r r ~,embora compreensível'. A natureza, conclui Husserl, na sua
verdade científico-natural é apenas aparentemente autônoma, eapenas aparentemente pode ser conhecida racionalmente por simesma através das ciências naturais. Já que a verdadeira naturezano sentido das ciências naturais é um produto do espírito que ainterroga e pressupõe assim a ciência do espírit o ( .. ) Éum erro da
parte das ciências do espírito o fato de lutar pelo reconhecimento
de uma paridade de direitos com as ciências da natureza. Como
aquelas reconhecem nestas últimas objetividade e autonomia, caempor sua vez no objetivismo. E, com efeito, da maneira como agorase apresentam C.) são privadas daquela racionalidade última, real,que é própria da intuição espiritual do mundo C.) Somente se oespírito renunciar a uma atitude voltada para o exterior, somente
se retornar a si e permanecer perto de si, ele pode dar razão de si. .propno.
A mate matização galileana da natureza, afirmam por seu ladoI-lorkheimer e Adorno, 'reifica-se num processo automútico'. Aprópria forma dedutiva da ciência 'reflete coação e hierarquia'; 'ao
longo do caminho para a nova ciência, os homens renunciam aosignificado'. A violenta polêmica contra o Iluminismo, 'que proclama impassível o domínio como cisão e a fratura entre sujeito eobjeto', é acompanhada, como ocorria no pensamento reacionüriodo século XIX, pela i magem de um nacon culpado pela degeneração da cultura e da sociedade européia: A estéril felicidade de
conhecer é lasciva tanto para Bacon como para Lutero C.) OIluminismo ignorou a exigência chíssica de pensar o pensamento.
Os autores da Dialética do lluminismo substituíram a imagem do'vulgar utilitarista' d os filósofos da Restauração pela imagem muito
mais refinada, embora p c r f ( ~ i t a m e n t eequivalente, do arauto de uma
época em que 'o qw> importa lião é a verdade mas a o/)('ratioll, oprocedimento eficaz'. O saber proposto por Bacon e retomado
pelos iluministas coincide com a instnllllcntaliza(:;io tOlal, eSlú por
trás dos processos de mercantilizal,';io da cultura, da sociedadeindustrial moderna, reino da 'alicnaç;io da tecnologia'.
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8 P OLOROSSI
Estas a v a l i a \ ~ õ e se estas diagnoses deram frutos abundantes,
que certamente não devem ser procurados nas lamenta\:ões espiritualistas e estetizantes de um I3ernanos na f-rança ou de um Zollana Itália, mas numa série de posições que têm not;ível rdcv;lnciahistórica e teórica. E convém come(:ar por Karl Jj >with, ambíguo
crílico de Heidegger, partidúrio de um naturalismo ' lue se reporta
às antigas cosmologias, a Schopenhauer, a Nietzschc, e autor deuma célebre antologia na lual Kierkegaard é apresentado como oponto de chegada do movimento intelectual e político da l s luerdahegeliana. A ciência 'não poupa nada e é 'uma pott ncia que destróia tradiclo'. Nasce, como lueria Paul V a k ~ t yde um irrcfrdvdi m p u l s ~para a curiosidade puramente objetiva. Produz a'lude'desencanto do mundo' que, infelizmente, 'condena ;\ morte rituaismúgicos, histórias gregas sobre deuses e histórias bíblicas . O verboser 'não diz mais nada e a :mtiga sabedoria da filosofia, de um lado,\; superada
pelaengenhos
idade das ciênciasda
natureza e,de
outro, \ ~ameaçada nos seus hübitos mais antigos e profundos pelaanálise da linguagem . Como esclareceu Weber, não se pode
trabalhar cientificamente sem esperar que out ros nos ultrapassemno futuro. O progredir, o ar rastar-se próprio da ciência 'tende por
princípio ao infinito, ou seja, ao sem fim, ao jamais terminado'.
Por que, pergunta-se Lôwith, devemos inserir-nos' lluma atividadeque não tem qualquer perspectiva de t( nnino? O lema da cit:nciamoderna t. o baconiano 'saber é poder', mas 'a :1(:;10 racionalmelltedirigida significa desencanto do mundo'. E Lówith volta-se, com
nostalgia, para a nat ureza intacta e mis teriosamente vi rgcm dosgregos, ainda não alterada e violentada pela intclven\ ão sem metae sem sentido dos seres humanos. O primitivo não ( o ser'completamente oprimido pelas dificuldades da e x i s t t ~ n c i apelasdificuldades da luta com a natureza (como afirmava um conhecido
adepto de Marx), mas sim um ser ' que conhece os seus inst rUlllentos e o mundo que o circunda de maneira incomparavelmentesuperior nossa .
Essa mesma nostalgia, ainda que não acompanhada do vigorteórico que caracteriza as intervcnçôes de Lowith, est;í presente no
CIÊNCI E FILOSOFI DOS MODERNOS9
ensaio sobre a Vida ativa de Hannah Arendt, que vê na civilizaçãomoderna apenas 'uma progressiva sujeição do homem às condiçõesde animallaborans .
Um elemento de violação e violência está presente em toda6bricaçâo'; o homo faber como criador do mundo artificial huma
no, 'sempre foi um destruidor da natureza ; o trabalho é umaatividade 'na qual o homem não está com o mundo, nem com
outras pessoas, mas sozin ho com o seu próprio corpo . Sobre essasbases, Arendr discute longamente o significado histórico de Descartes e de Galileu, o alcance político e cultural da RevoluçãoCientífica do século XVII. Mas duas coisas interessam sobretudo
a esta discípula de Jaspers. A primeira é a expressão de uma
nostalgia dos critérios sólidos e da verdade dos bons velhos tempos,quando o homem n:io tinha ainda tomado para si a responsabilidade de construir um mundo seu: A atitude do homo faber ( .. )privou o homem artesão e construtor da(}ucles metros e medidasfixas e permanentes (}ue, antes da Idade Moderna, sempre lhe
serviram de guias no seu (;lZer e de critérios no seu julgamento.
A s egunda é rea prese nta r, só para simplificar: 'da direita , teses(;m1iliares aos leitores de Marcuse: os sindicatos, defendendo os
interesses da classe trabalhadora, 'são responsüveis pela sua incorporação na sociedade moderna'; os partidos políticos da classeoperária são 'partidos de interesse, de maneira nada diversa dos
partidos que representam as outras classes sociais .
Na discussão entrou também Arthur Koestlercom um brilhante e bem documentado livro de história da ciência, (}ue na realidadeé uma das muitas expressôes da revolta do humanismo metafísicocontra o trabalho, a técnica e a ciência. Singular interesse apresentam as sua p:íginas sobre Copérnico e o seu retrato de um Galileuson:lmbulo , 'um insolente e arrogante trapaceiro (}lle, servi ndo-se
de expedientes ilusionistas , polemiza cont ra a visão plenamente
aceitúvel da ciência anunciada e defendida pelo cardeal RobertoBellarmino. O magnífico universo de Dante e de Milton, repetemKoestler e Burtl, foi revirado, o e s p a \ ~ oagora se confundia com ageometria e o tempo com a continuidade numérica. Por culpa da
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ciência desapareceu o mundo em que os homens tinham acreditado viver, rico de cores, de sons e de perfumes, pleno de alegria, de
amor e de beleza, onde tudo fitlava dos fins últimos e de harmonia.
Esse mundo a ciência substitui por um mundo duro, frio, incolor,silencioso, um Inundo da quantidade e do movimento matematicamente calculável. O homem universal do Renascimento ficouem pedaços: A arte perdeu a sua i n s p i r a ~ ; 1 0mitológica, a cit>nciaa sua inspira\'ão mística e o homem tornou-se surdo ;\ harmonia
das esferas, A ciência nasce dessa 'progres siva disscca\';io espiritual' progressivesJ>iritu lldessication ; t ~ao 1 I } ~ s m otempo o signo ea causa de um 'reí1uxo espiritual sem precedentes'. Expressõesparalelas e em tudo equivalentes a esta dissccH:ão l rdluxo são paraKoestler (mas precisava dizer?) as 'ideologias científicas' da Alemanha nazista e da Rússia sovidica.
Nas p;lginas de Arendt (que ( t;lIIlLk'm uma jornalista de altonível) e de Koestler (que é tambl'm um not:ívd escritor), a 'críticaà ciência' de I-Iusscrl e de Heidegger, de I Iorkhei mcr e de Adorno,
transforma-se num desfile de lugares comuns, capazes sobretudo
de atingir a imaginação dos numerosos leitores que n:io têm muitafamiliaridade com os textos maiores da filosofia contemporiltH'a.Mas, na história das idéias, a difusão destas ~ um problema de não
pouca relevância e um dado a ser tomado na devida considenH::io.Por essa razão, não serú inoportuno recordar o livro La crisedumonde modente, que R e n t ~GUt>non publicou ell) 1946 e que teve
t t ~hoje umas vinte e d i \ ~ ô e s .Um defensor do ocultismo e de umorientalismo misticizante apresenta aqui, lcvando-as ;, exacerb:H:ão,teses bem-conhecidas e (;ulliliares. Quais s:10 os caracteres maissalientes e visíveis do mUllllo moderno? A 'necessidade de agita,':ioincessante e de mudan(:a contínua'; a 'dispers:io nUIIl:l multiplicidade não mais unificada'; a 'all:ílisl' levada ao ext relllo'; a 'fragllH'nta<::10 illdefinida'; a d e s a g r c g a \ ~ ã ode todas as at ividades h um:lIlas';a 'não aplidão :1 síntese e a impossibilidade de qualquer ('(mcelltra<, ão .
O livro de G U t ~ n o l ltem o nll'rito que têm as caricaturas: o de
[,1zer-nos descobrir de repellte os tnH:OS salielltes ( disformes de
A CIi NCIA E A FILOSOFIA OS MODERNOS21
um rosto que nos é filllliliar. Mas um mérito illdubit:ível deverütambém ser reconhecido Ilas p;íginas que Arelldt e Koestlerdedicaram ao significado da ciência na Idade Moderna: o de haver
repetido, com a clareza C]ue l' própria dos bons jornalistas e aindependência que é característica dos bons romallcistas, algumasteses que, de forma muito mais refinada, embora lilerariamentemenos sedutoras, tinham formulado, allos antes deles, alguns dosmaiores teóricos da 'teoria crítica da sociedade'.
4. Mas não se trata apenas disso. A telwítica heideggerianacondicionou fortemellle o desenvolvimento do chamado 'marxismo ocidental', fundiu-se com algumas teses preselltes em I-lislóriae consciência ele classe,exerceu uma illí1uêllcia decisiva sobre todo
o discurso de Sartre e aflora de malleira variada IlO discurso de
ll1uitos filósofos marxistas contempor:1neos. Karel Kosik, para dar
Ulll exemplo, tem certamente razão ao polemizar cOlltra aC]udasformas de cientificisll10 C]ue são apellas 'produtos complemelltares'das vúrias tendências irracionalistas, e tem aillda raz:io ao sublinhar
que o raciollalismo dos empiristas lógicos eslimula a reael0
irracionalística pelo próprio fi,to de excluir a possibilidade 'de
conhecer racionalmellte vastos campos da realidade , que são
desse modo abandollados ;J metafísica e ; J mitologia; mas temcertamente menores argumelllos para chegar a demonstrar, COIllO
parece pretender, que a 'ollda do irraciollalismo' foi suscitada ou
provocada Ila Europa 'pelo raciollalismo dos s ~ c u l o sXVII e XVIII'.
Fazelldo uso de um método j:í experimelllado na Dialética eloIlumi1lismo,Kosik faz recair \OS retJO/ucio1\fÍrios res/>01lsabilieladel>elare{/çrio.O irracionalismo do s('culo XIX e do s('culo XX Ilão (para Kosik expressão de uma sociedade determinada, mas U l l l
'produto da razão independellle do homem cartesiallo', C]ue teriagerado conjuntamente a racionaliza\'ão e o irracionalismo. As
'forças irracionais' diante das quais se encOlllra o illdivíduo não
são nem express;io da natureza nem produtos de uma organizacãosocial, mas algo que foi 'criado' pela razão raciollalista. A r e d u ~ ã o
da ciência li 'prática reificada', a sua progressiva i l l s t n l m e n t a l i z a ~ ;
e tecnicização, não dependem do modo de prodlH:ão capitalista 'ou
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uma pequena parte daquilo que seus predecessoresprometeram.
Estamos dispostos areconhecer esse (;ltO, a aceitú-Iocom resignacão e isso não será suficiente paraeliminar nosso interesse pelo,mundo e pela vida: Cremos que o trabalho cientí{jco podeaprender algo sobre a realidadedo Universo e que, mediallle isso,podemos aumentar nosso poder e organizarnossa vida C A
ciênciatem muitos inimigos declarados eum número muito maiorde inimigos ocultosque niio podem perdoú-Iapor haver en(raquecido a (é religiosa eameaçado abatê-Ia. Reprovam-napor ter-nosensinado pouco e ter deixado naobscuridade um número incomparavelmentemaior de coisas. Mas esquece-se oquanto da éjovem,como (oram (;Itigantes os seus inícios ecomo é in{jnitamcnte pequeno o lapsode tempo transcorrido desde o momento cm
que o intelecto humano tornou-se su{jcientemente (orte paraenfrentar as tarehls aque se propõe ( .. ) Não, a ciência n,iol' uma
ilusão. Ilusão,ao contr:írio, seria acreditarpoder encont rar emoutra parte aquiloque ela não nos pode dar. Quem n;io sofre deneurose - escreveu elenaquelas mesmas p,íginas a propósito da'ilusão' religiosa - 'não tem necessidadede intoxicar-se paraacalmá-la'. Percebendo o car:íter ilusório da religi;io,o homem
certamente se encontrar<Ínuma s i t u a , ~ , i odifícil, dever:íreconhecer
sua (atai e solit:íria impotência, sua insigni{jcilncia: n,io mais ser:ío ponto central da cria(::io,nem o objeto dos cuidados de Ullla
benl'vola providência. Estar:ína mesma situ:H::iode uma crialH:aque deixou a casa paternaonde se encont rava t:io protegido c t:iocon(ort;ível.Mas por acaso n:io éverdade que o est:ígio da in(;lnciadestina-se a ser superado?O homem n:io pode permanecer r i ; I l H ~ a
para sempre, deve finalmente aventurar-sena 'vida hostil'. Estapode chamar-se 'educação para a realidade': ser:íque preciso dizerque a minha intenção aqui l'chamar a a t e I H ~ ; i osobre a necessidadede dar este passo adiante? Se a ilusão religiosa (or desacreditada,então pareceque o Universo desaba com ela e n,io resta outracoisa a não ser desesperarde tudo, da civiliza\'ão edo (uturo dahumanidade, Desta escravid:io, eu estou,nós estamos, livres.J,í
que estamosprontos a renunciar a uma boa partede nossos desejos
A I ÊNCIA E AFI LOSOFIA DOS I ODERNOS 25
infantis,podemos também suportar que algumasde nossas expectativas se revelemCOI1\O sendo ilusões . Podellloscontinuar repetindo que o intelectohumano é sem (o[(;acomparado ú vida dos
instintos epodemos ter razão nisso. Mas existe algode particularnessa (raqueza: a vozdo intelecto l' baixa,mas não cala atéencontrar ouvidos.No fim, após inúmeras e repetidas recusas, elaos encontra. Esse éum dos poucos pontos sobre os quais se podeser otimistaquanto ao (uturo dahumanidade, Illas n:io éU I \ pontode pouca import;lncia .
Não (oi cerlamentepor acaso que sobre ('stasa f i r l l l : H . ~ ô e sde
Freud muitos (ilóso(os e cultoresda psican:'tlise prl'Í('riranlestender
UI1\ véu piedoso.Na atmosfera característica da cultura da primeirametadedo sl'culo, estas p:íginas devialll parecer11111 puro e silllples'resíduo do otimislllo e do racionalislllo setecelltista',S(' n:io aprova absolutade 'uma atitude acríticade Freud',nos confrontos
do intelectoCOI1\ a cil'ncia, Freud, l l l outros terlllOS, teve o gravedefeito de n;io ter sido aquele irracionalista e aquele místicoque
alguns de seus adeptosqueriam e desejariamque (os se. Por isso,Brown, aosublinhar como a psican:ílise pode ser utilizada para'um ataque grande deusa da Ci('ncia', culpa-opor n:io teridentificado história e doen\'a,por n:io ter visto nap s i c a n : í l i s ~'ulllavia de liberação da eterna insatis(;I\':io (;l\lstiana, tlllla viade
liberação da eternaneurose humana e da história'. Freud,cm
outros termos, - istolhe é censurado - n:lo soube projdar a
imagem de um homem que comece a viver ('m vez de criarhistória, a gozar elllvez de saldar velhoslkbitos, a cnt rar naqueleeSI;ígiodo Ser que l' a metado seu devcni r ,
Uma dupla opera,:;io (oi levadat l ~seus pontos extremos: Marx(oi 'libertado'do seu malcrialisl\)o, Freuddo scu racionalislllo.ESlao p e r a , ~ ã o- sobretudo ela talvez - t:lI11b( 1II alilllelllou a revoltacontra a ciência e o inlelecto desta prillleira IllcIadedo sl'nrlo. De
qualquer modo, no decorrer do longo 'processode Galileu',que
caracterizougrande parte da culturado sl\:uloXX, Jakob I)o('hllle,
Roberlo I3ellanllino eParacdso, os lIIagos, osalquimistas e osfeiticeiros (oral\)ocupar o lugarde Bacon,de Galileu,de Diderot.
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6 PAOLOROSSI
Tornaram-se os novos heróis do pensamento e os símbolos da
modernidade. Mas a crítica g loba l da técnica e da indústria
moderna que se dilui numa recusa da ci[ ncia e do intelecto não
tem em si nada de revolucionário. Representa apenas o ressurgimento na cultura européia dos velhos temas do arcaísmo, danostalgia do nada, da t e n t H ; ~ ã odo não,humano. Não a religião
como ilusão, mas a ciênci como ilusão: a revol ta co nt ra a razãotornou-se o triunfo do instinto de morte. Essa recusa é apenas osigno de um desejo de :1utodestrui,:ão, de um impulso cego paraeliminar a própria história, de uma fuga das escolhas e dasresponsabilidades do 1l11IlH-lO real.
Ullit CTsid{l(/e de F/orl Il,;a, 1969· 70.
PRIMEIRO C PÍTULO
SOBRE DECLÍNIO D STROLOGINOS INÍCIOS D ID DE MODERN
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30 P/\OLO ROSSI
seu próprio movimento nem pela sua própria luz; seu movimento e sua luz agem sobre o mundo dos elementos determi
nando os fenômenos meteorológicos, as mart's, as gera\'ôes,etc.
As 'coisas inferiores' s:io governadas pelas ' coisas superiores'.
Para além das causas próximas de origem terrestre, a astrologia
pesquisa a a < ~ : i odos corpos cdestes, que s:io, em todo caso, a
causa remota e primúria de todos os eventos. Deste ponto devista, as 'genituras' s:io apenas um setor particular ou aplicativo
da astrologia: sua validade - como no caso da medicina astro
lógica - estú ligadaao pressuposto de que todo o mundo naturalseja governado e dirigido pelo movimento ((,leste e que ohomem, enquanto ser natural, esteja sujeito ;'IS regras e ;'is leisque governam o mundo superior.
A cont raposi<:;io astrologia-ciênciamodem;l, segundo Thom
dike, n:io nasceportanto ncm no terreno da 'descoberta' de uma
lei universalda natureza (ouda concep{:;ioda natureza como um
' todo' sujeito a leis imutúvcis)nem, muito menos, no tnrenomc\odológico de uma aplica\';ioda matemútica;'is indaga\'óessobrea natureza (aplica\'ãoque, sublinha de, estú (l1ll/)/alllclltc /m'sclltc na
tradi<::io astrológica).O fim da astrologia,que n;io era uma formade supersti<,';io, masuma coerente e org;inica vis;io (lonlllndo, foideterminado pela gradual obliteraç:ioda distiIH:;iocntre l ~ Ue terraque se verificouno curso dos Sl.'culosXVIe XVIIe, enfim, pda
radical destrui<,':io,operada por Newton, de qualquer dill'relH:aentre o mundo superior dos corpos celestes e o II1lllHloillfnior
dos elementos.
Estas tesesde Thomdike (formuladas, em muitos casos, com
dareza muito mellor) s:iocompartilhadas por muitos historiadores
da ciência. A'derrota' da astrologiafoi repetidamellte apres('lltadacomo devida : substitui{;;io (lo sistema aristotélicopelo sistemacopemicano. Esta afirma\';iotornou-se quase um lugar COIIIlIIII;estudiosos distantesno [('mpo ede diferelltes ori('llt;H:(lCs chegaram, sobre esse pOllto, aconclusôes semelhantes."
2. Carriere (1887);SoldaI i t 9(6);Koyn'(1951);Kuhn (1957);Graul>ar-l I 95S).
A C I I ~ N C IE A FI LOSOrlA DOS MODERNOS 3
N;io hú dúvidade que a a c e i t a ç ~ i oda hilx'ltese copemicana e ossucessivos desenvolvimentos da lisica e da astronomiaderam um golpedecisivo na cren,'a astrológica,que estava solidamente ancorada naimagemde uma Terra col<X'adano centro das esferas cdestes e nac o n v i n ~ ; i ode uma diferença qualitativa entre a imutabilidade cdeste eos movimentos presentesno l\Iundo sublunar. Niioé isso, obviamente, que se quer contestar aqui.O que se pretende(' lan\'<lr luzes sobreo carúter excessivamente esquem<Ítico dessa interpret<l\';io.
No âmbito deuma i n t e r p r e t a ~ ; i ocomo essa, a pole'mica al1tiastrológicade Picofoiel1tendidacomo a manifesta\';iode uma lIlclltalidade'incoerente e desonlcnada',ou como um exercíciode clr;íter rdóricoliter;írio, privado dequalquer incide'ncia sobre os dl'sl'nvolvimclltosdo saber científico.3 f: tamlx:'m mui to signiflcativo,destc pOllto de vista,que a maior pal1edos malluais de história da cit'llcia n;ioI:l(:alllqualquerl l H n { ~ ; i o; discuss;io l'{(:tuada Ix)r Pico sobre os IIH'todos, as
caracteristicas e os procedimelltos daastrologi;1.4Cada um d('ssesestudiosos parece cOllcdx'rque o adV\'llto da nova ast ronomia,de
Copt'mico a Galileu, Iê)i o (;ltor lÍllico e( tcnllillflll(l' do 'des;lparecimento' da astrologia, daliqukh;iio de uma vis;io da natureza cdo lugardo homem na natureza,que tinha origens al1tiq(iíssimas. De Úto _para oque nos interessa maisde peno aqui - eles concord;lIl1 sohrea irrdev,lncia das[)i /ntI.lHio/U'sde Pico della Mirandola. Classificadas
, I 'I' . , , - . I Icomo eSIX'CUatJVasou Ileranas, saoCOIISHera( as como penenccn-tesa outras e diversas 'histórias',que n;io t t ~ mou tt'l1lapellas f l ~ í g d s
dos com a história da ciência.
Astrologia e heliocentrismo
Quem tiver \'m mellte a amplitude das discussôes suscitadaspela obra de Pico, sobretudo quem se reportar a llllla conC\' l{:;io
3. Tlwrndike (1923·5(,),\ ' .4, p. 529; noas 1 <)(,2),p. 1ÚS.4. \betti (1949);BIJlI,'ri'i,'I,1(1949); [)atllpier (1953);1.,,11<\1,1,·(1957);S i l l ~ l rI 95
'»;Drcyer(1959);Crnlllhi . (1959);Forks l' Dijhll 'rhll is 1 )). -
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32 I AOLOROSSI
diversa das r d a \ ~ õ e ssupervenientes entre as v:írias histórias especiais', serú levado a sublinhar a existt'ncia de alguns problell\as.Embora seja sabido que cada um deles requereria um tratall\ento
muito lI\ais amplo, tentarei, nesta parte, l'numer:í-los brevemente.
1. Por trús da tese de uma astrologia de finitivamente derrotada
pelo advento do sistema copernicano, que est:í preselllc em talllosmanuais de história da ciência, existe (reqClentemellte, ell\ prill\ei roluga r, um prcssu posto basta nte li scut ívd: o de lllll d('senvolvi II\Cll-to da ciência concebido COII\O um progresso cOlltíllUO e Iillear, que
não conhece dispersões, erros, ten tat ivas hl has e cri ses i te cd ua is.Em segundo lugar, essa interpn ta,:ão (e l o caso do quadro tra(:adopor Thorndike) (llndallH'lIta-se na a rbit r;lria rcdlll:;io da ast rologiaao plano de uma considcr;H:;io lI\eramellte 'cognoscitiva' do 1I\1llHlonal1lral, que elimina ou relega a segundo plallo t rt S aspect os cent raise constitutivos da astrologia: a lI\istura dos Icmas 'rdigioso-cmotivos'
e dos temas 'matem:íticos'; a dimensão operativa ,k uma sl'rie detécnicas utilizadas para persuadir ou para domillar as (ol\as
preselltes numa lIatureza tida COII\O ame:H:adora e hostil; o processode h u m a n i z a , ~ ã odo cosmos e a extensiio a todo o ulliverso dos
comportamentos e das emoçôes Illllll;llIas.
2. Os resultados a que chega a nova astrollomia, enquanto
puras e simples descobertas' astronómicas, lIiio (oram suficielltespara destruir a astrologia. A sua história cOlltinua bell\ all'lI\ de
Copérnico - COII\O documentou o lI\esll\o Thorndikc nUlI\a obra
insigne - e, por mais de um sl.'culo, elltre :H:a-se pro(ulldallH'lItecom as pesquisas de astronomia e de cit'ncia da II;lIUreZa, COII\ areflexiio filosófica e com os 1I\0villICntos da cultura. Basta rel1etirUII\ illstante sobre o riquíssill\o material que est;í presente ell\alguns livros de história das idéias 6, para perceber que a 'an'ita,:;io'do sistema copernicallo l , em seguida, a adesiio :1 ill\agell\ do
Ulliverso como 'llI:íquina' ill\plicaram ulI\a série de discussôes, de
5. BolI·BC'zold (l9. 31); Garin I 937}; Garin I 97ú}.ú. Stilllson (l917); Craig (1952); l.owjo )' (19:>7); Nicolson (1%(1\,).
A CIÊNCIA E A FILOSOFIA DOS MODERNOS 33
refutações, de tomadas de posição que evoluíram em v:írios níveise sobre terrenos muito diferentes. A Mechanization o the World
Picture de que (;Ilou E J Dijksterhuis 7, não (oi apenas o resultado
de pesquisas de física, de ótica ou de astronomia. Mesmo sem nos
determos aqui sobre os temas solares ou hermético-ficillianos da
obra de Copérnico, ou sobre a atitude assumida por Kepler (renteao pitagorismo e a astrologia, convém recordar que na obra dos
dois grandes (undadores da astronomia moderna seria illlltilprocurar um corte nítido ou a consciência de ullla separ:H, <io precisaentre a c i ( ~ n c i ae uma cOllsider:l<;ão 't eológ ica' do nllllldo 1I:lIura .Como observou Pauli, ent re outros, essas cosmologias COllst ituíallluma espécie de etapa intermediúria entre a alltiqliíssillla vis:iom:ígico-simbólica do mundo e uma considerac:io quantitativa emednica das (on:as presentes na n a t u r e z a . ~.
3. O lento processo de substituiç:io do geocellt rislllo peloheliocentrismo, a suostitui(::io da concep,::io tradiciollal do ser
como uma grande cadeia' pela imagem do mlll1l1o como 'm;íquilla'não podelll absolutamente representar uma pura e simples substitui,:iio de ulIIa verdade cielltífica' por outra verdade ci"lItífica'.Essa mudan\ a profunda tampouco parece cOllli llId i r-se COlll ulIIa(orma de progresso semelhante :'Iqucles progressos muitas vezesverificados na história da ciência. Crer que exista ullla única
tradi,:iio científica, isto t\ conceber que a ciêllcia (di(erentellH'lIleda filosofi.a) niio se apresenta como uma s ~ r i e d ~teorias cont rapos
tas c de lSIltOS, mas COlllO um processo no qllal até mesmo asr ~ v i r a v o l t a smais revolucionúrias salvam o núcleo essencial adquindo pelas gerações precedcllles, apresentando-se como teorias maisgerais que incluem as teorias 'velhas' como casos particulares Y: tudo
isso é típico e característico da mentalidade '1I10dcrna'. Mas niios ~a t ~ l ~ t a~ n u i t opara o (;ltO de qlle a própria i d l ~ i ade 1111\ progresso
Clelll.lfico , assim entendido, também tem origens históricas preri-
7 Dijkstcrhuis I 9(1).
8. Garill I 958). p. 190-215;)1I1l1,: C Pallli I 952}.9. GCYlllollal I 960} 1 . 111 55.
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sas e vem à luz na Europa, como o produto mais típico de uma
sit uaçã o n ova da civiliz,H:ão, entre meados do século XVI e meados
do século XVII.I0 A chamada Revolut,'ão Científica - que muitos'medievalistas' procuraram apagar da história do Ocidente - teverealmente o carúter 'revolucion;írio' que foi tanta s vezes sublinha-
do, porque não consistiu na modificação de resultados parciais no
âmbito de um sistema aceito, mas no queslionamento de todo essesistema, na adoç;io de princípios contrúrios à 'razão' e à 'experiência', tal como vinham se configurando dent ro da tradit,'ão, naconstnlt,',io de um novo quadro do mundo no qual se tornam
problemMicas ou privadas de sentido muitas 'verdades' que tinham
sido óbvias por quase dois milênios, enfim, na elaborat,'ão de UI1 l
novo conceito de 'raz;io', de 'experiência', de 'natureza', de 'leinatural', Como escreveu Alexandre Koyré a propósito da moderna
teoria da inércia, "n;io se tratava de combater teorias erróneas einsuficientes, mas de transformar o próprio quadro da inteligência,de inverter uma atitude mental, naturalíssima em seu conjunto,
substituindo-a por outra que absolutamente n;io o era", A passagem de um tipo de nalureza para oUlro, afirma l ~ o b e r tLcnoble,prcssupôe "uma modificat,';io cm profulHJidade da mentalidade
científica c da mentalidade lOlll courl. A renovat:;io científica do
século XVII na realidade c ~apenas um aspecto de uma avel1lura demuito maior amplitude", I
4. Sendo assim, ~ claro que a adot,'ão de um novo quadro do
Universo nasceu com base numa atitude nova, diante da realidade,que a 'transformat,'ão dos quadros da i n t e l i g t ~ n c i ae a 'modificat:ãoprofunda da mentalidade científica' foram possíveis por um modo
novo de entender o homcm e o scu lugar na natureza, por uma
concept,'ão nova da hislória. A mesma p ossibilidade, que se ofereciaagora ao s;íbio, tk cji lwlr 1/1Il( ('scolhaent re dout rinas diversas econtrastantes tinha origem num panicular modo de cOllsiderar opassado e a t radi\'ão. Deste ponto de vista, a polt'mica cont ra a
10, Cf. Rossi (1962), p. ~ " . ; RO si I (77), p. 1 5-7(\11, Koyn:' I (39), v. 1, p. 9; LCIlohle, in O a t l l l l ~(I (57), p. 370.
A CliõNCIA E A filOSOfiA DOS MODERNOS 35
mistura de motivos 'religiosos' e de temas 'científicos' presentes na
astrologia, a tentativa de esclarecer os seus métodos e examinar suahistória, a construção de uma imagem nova do homem resultamcomo elementos decisivos no próprio desenvolvimento do saber
científico. Por essa razão, penso que se deva retomar e ulteriormente aprofundar o julgamento de Ernst Cassirer: "Não foram argumentos de ordem empírico-naturalistas, não foram novos métodosde observaç;io e de cílculo que levaram a ultrapassar a concep çãoque a astrologia tinha do 1l11llldo.A batalha decisiva j;í tinha sido
travada, antes mesmo que esles métodos tivessem alingido toda asua perfei\';io. As razõcs últi mas da o p o s i ( ~ ; i ode Kepler à astrologiaparecem a Cassirl'r justamente de car:íter 'moral' 12
o céu vivo
Se reconsiderarmos agora, com base no texto de Thorndike aC]ue nos referimos no início, as Disjnwllio)\cs ele Pico dellaMirandola, percd.lCrcmos que as teses enumeradas pelo estudiosoamericano como típicas e constitutivas da ast rologia est ão lo -
das presenles na obra piquiana. No capítulo quarto do terceirolivro das J)is/) ll(Ltio)\('s,Pico afirma explicitamente: 1. que o céu eos corpos celestes s;io perfeitos, incorruptíveis e inalter:íveis('COe/UIllcor/>us lJalltrnlc C,H, 011l)\iumcor/)()ru11l)\(IwraliuIH/ierfcctissilllU11I( .. ) i11llllarccscibiliquoquc suhslalllia ); 2. que omovimento do Cl'U é eterno c circular ( Nullus mOlus/JCrjúliororhiculari, )\ul/a qlUlliws /icm /nibilis SC)\SU lucr /wrji'clior.Enl1lL igÍlurh{l('cc{lc esliscor/wris/)To/)Tia')j 3. que existe, dislinto dos elemcntoslerreSlres, um 'calor cdeste' que penetra e ordena tudo e que,contendo em si todas as propriedades dos demelltos, c ~causa de
todas as llludalH:as que se verificam no llllllldo pcn'cívd (' I ~ q u i L t t r
II/ce Il , / I / { L ~ i/mi/)Ti('l(LS('ius, c{l/orquida1ll \ 0 \ ig)\('us,)\0)\a e r c u . ~ ,scdWI'lcstis( .. ) calor, i)\I/IWIll, olll)\ia /i(')\('lrmls,OHlIlia IOl 'C lS, oHl1lia
12. Cassirn(l935), 1'.191 ss.: SCZIlcc(I94(1), p. 59; Kocher(I95.3), p. 201-24.
36 ( AOLO ROSSI A A OSOf A OS
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36 ( AOLO ROSSI
moderans ( .. ) I-luius beneficentissimi tlimcaloris in toto corru/)(ibilimundo />crvidemus (. . ) Si cae/esti calare destituantur, nec frigiclitatemagere frigus />oterit nec calor caliditatem ); 4. que a luz e omovimento dos corpos celestes, enfim, agem sobre o mundo' inferior' , colocando-secomo causa universal dos fenômenosmeteorológicos, das marés e das geraçôes( Cae/um qualiter mOlu
agat et lumine, et elemelltorum meteorologicorum, mineralium,vit elltittlll(/ueunit ersalis cattsa sit ).13
Embora n;io f.tltassem estudiososmenos avisadosque censuraram Pico por não ser'copernicano', deveria ficar clarop:1ra todosque, nas Dis/mtmiolles, Pico lião estú polemizando contra umsistema ligadoú tradi\ ão aristotélico-ptolomaica,nem contra umaconsidera\ ;10do cosmosque encontra sua base teórica na distiIH:;ioqualitativa entre o m U I } ~ oceleste e o mundo terrestre. 4 Pelocont r;írio, o objeto das suas críticas e das suas anülises destrut ivass;io aqueles aspectosdo sistema ast rológicosobre os quais muitospreferiram passar rapidamente, masque deveriam estarsemprepresentes.Jú que (como se disse) a astrologia n;io consistiuapenas,nem predominantemcnte, numa vis;io físicado Universo: nasceuno terreno de uma mistura híbrida de rcligi;io ede ciência ,deuma total humaniza\ ãodo cosmos, de uma extens:io a todo ouniverso dos comportamentos e das e m o t ~ õ e sdo homem. Para avis,10que a astrologia temdo mundo, as estrelasnão são apenas, , . J r . 1 . 1 1corpos movlUospor lon:as , mas seres anllllac os eVIVOS, <ota< osde sexo e de caníter, capazes de risos ede l:ígrimas,de ódio e de
O 1 I - - , . , r· ,amor. s nomes ( os p anetasnao sao meros signos; as IIgurasn,10 são símbolosconvencionalmente aceitos: t{ m poder evocativo,seduzem eaprisionam a mente,' representam' o objetono sentidopleno da palavra, isto ~ , tonlam real sua present, a, revelam asqualidades essenciaisdos seres que se identificamcom as estrelase nelas se incorporam:
13. Pico0(52) ,v. I, p. 194, 196-98.14 CC Walker (1958),1 .55.
A cli:NCIA E A FILOSOfIA DOSMODERNOS 37
Sele aSlros errantes giram ao redor dos tronosdo Olimpo; com eles oTempo executa sua perene revolução; aLua que brilhana noite, o lúgubreKronos, o doce Sol, Afroditeque prepara o leito Ilupcial, oimp< l1IOSoÁries,Ilerllles de r;ípidas asas e Zeus, autor primeiro de toda geraç;io da quaderivou a nal1lreza.E ~ t e smesmos astros receberam para si a raca humana eestiio cm nós a Lua, Zeus, Áries, Afrodite, Kronos, o Sol,/-[e... 1es. Este é onosso destino: extrairdo fluido éter lágrimas, riso, cólera, gera\ ;io, palavra,
sono, desejo. Kronos é a l:igrima, Zeus a geraçiio, /-[( rmes a palavra, Árieo ímpeto, aLua o sono, Afrodite o desejo, oSolo riso: e é atravésdde, oju,;ticciro, que riefll o espírito dos flIortais e omundo infinito}5
O astrólogo opera neste terreno de 'poderes', que podemser f:lvor:íveis ou inimigos, diante de um céu, povoado de(ormas, que ~ palco incessante de combates e de amor. Ele semove num plano mais próximo da retórica, da polílica, daestratégiaque da lógica das ciências. O ponto de vista do qual
parte é a necessidade de convencer, de persuadir as (orçasda
naturezaque nos amea<:am, aliando-secom algumas delas paracombater as outras .'6
Estamos habituados a considerar as estrelascomo corpos extremamente distantes da Terra, movidos pelas leisda mecinica,determinúveis, mediante inst rumentos adequados,na sua composiç:10 química; ouvimos f:llar de problemas de engenharia e químicaastron:lutica,de navega<:,ioespacial, de medicina espacial. Masquem
se ocupa de história da ciênciaou de história das idéias{;mí bemem
seguir a advertência deFram Cumont e dever:i tersempre presente
que as palavrasde Kant sobre oCt lI estrelado nascemnum terrenomuito diferente daqueleem que tem origem a emoç:io cósmica ,que
(oi uma das camcterísticas da civilização antiga e medieval. Aastrologia, nascidanos templos da Cald( ia edo Egi- to, jamaisconseguiu libertar-se,na sua longa história,nem de sllas origenssacerdotais nem de suas característicasde crença rei igiosa.17
IS. Slolll o; citadoelll Fcstllgién I (50), v. I, p. 94.16. Garill I (54), l. 183.17. Boll-Bezold I (31), l. 12655.; Fcslllgiérc (1950),p. 94 5$.; C II I I IOIH (960), p. 78
55.; Garill (1954),1 . 181 55.
38 PAOLOROSSI A C I l ~ N C I AE A FIIOSOI IA DOS MODERNOS 39
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ma mistura híbrida e ciência e religião
Se aceitarmos oponto de vista de Lynn Thorndike, suadefinicão ecaracterizado da astrologia,todo o discurso desenvolvido l;or Pico nasDisimwtioncs perde consistência e parece realmente 'apressado, retórico e superficial'.Mas é justamente esse
ponto de vista <llle deve ser refutado.Nas Disl1Utationcs, Picopretende atingir uma misturahíbrida de 'religião' ede c i l ~ n c i a ,
uma contamil\a(;:iode 'cultos' e de 't('cnicas'. \. discussão sobre odeterminismo astral, a redlll,·;iodo plano da necessidade aomundocorpóreo e natural apenas, a afirmaçãoda liberdadeda mente <lueé capazde transceder odestino e a lei: estes temasj;í estão presentesnos escritoshermdicos e n;io deixaramde exercer sua iní1u0nciasobre o pensamento de Ficino.IR
Mais <lue ao tcma, embora tão importante, da centralidade eliberdade do homem (sobre o<lual Cassirer insistiu tanto e < Is vezesunilateralmente), convém (;\zer referência aoutras p;íginasde Pico.Nelassão mostrados os equívocosque estão preselltes na ast rologia: um tipo de saber<lue jamais cOllsegue configurar-secomo um
saber rigoroso, e<lue, entretanto, queria ser considerado como tal.Parasuperar esta dificuldade, os astrólogosmisturam a matem;íticacom as cerimônias e, simultaneamente, apelam parauma temútica, I· · ,re tgtosa .
Examinar a astrologia, para Pico,que dizer diluí-lanos elemen(OS, tão profundamente diferentes ede origem t:io diversa,que aconstituem: de um lado, aastronomia arte segura enobre, plenade dignidade por seus IIH'ritos (. ..) que mcde a grandeza e omovimento das est relas(011 \ um método matell\;ít ico ; amcdicina,liberada da teoria dos dias críticos e da iní1uênciados signoszodiacais, reconduzida ao lIIétodode I lipócratesque procura ' noexame das urinas' e não no dos astros, no 'pulsar das veias' enão
no movilllCnto das esferas os sinaisdo futuro desenvolvilllcntoda
doellca; amcteorologia;a doutrina das maré , que exclui o recurso a
18. Garin (1937),p. 176;Yal('s (1%9),p. 77-79.
A C I l N C I AE A FIIOSOI IA DOS MODERNOS 39
uma força oculta ligadaao movimento e ii luz da lua; de outro lado,toda uma sl'rie de sul)crstições,de cultos e de ccrimônias nascidosjUlltO a povos 'de índole pouco apta ao saber', 'inexperielltesde
raciocíllios físicos' e 'rústicosde engenho' como os caldeus e osegípcios, 'que Ido puderam abster-se de imputar aos astros aspróprias culpas e as próprias penas,derivando deles tanto os males
da almacomo do corpo'.19Pico sabemuito bem que o (;\sCÍnio<lue a astrologia exerceu
por tantos séculossobre o g0ncrohumano nascejustamente desteseu car;ítercompósito, do (;\to de apresentar-secomo uma 'arte'
e um a ' ci0ncia' que,ao contnírio do <lue ocorre com as outras
artes e ci0ncias,pode (;\zer 'grandes promessas' e, portanto,
estimular a 'cu riosidade e a cu pidczhumanas', a nat u ral venera\ ~ i odos homcns por tudo que (' antigo. Daí vem 'o ar de
. · 1 · I ,erosslml \ a n l ~ a(a astro ogla, a sua oucura que tem na
superfície um (;Ilso aspectode sapiência' e <llle das a p i ( ~ n c i a
'ostenta o aspecto e o h;íbito', daí a suaa p a n ~ n c i a'bela evcneranda e plena de s l ~ r i aautoridade'.
Ela Illostra de longe o céu e os plal\('la,;, de modo <lue sc creiaf:lcilml'ntena possibilidadede prcver tudo com absolutaS l g u r a n ~ a11I11ll
espelho tão límpido e e1t'vado.Mas C ) olhando·se nlais de perto, nota-sc<lue sobre o scu manto cst;io bordadas efígies mon,;t rllosasem lugar dasceJe,;tes,que as cstrdas s;io transformadas em animais, que o Cl U t pknode f:íbulas,que nem é o verdadeiroC( U (eito por Deus, Illasum Cl U f:llso,forjado pelos astrólogosC. ) 1 :extraordin;írioaIL' que ponto, iludindo a
vista COIll brtlmas e m'voas, consiga aparecercomo bela e \'eneranda eplena de séria autoridade. Mas assim<lue, ii luz da raz;io c num exame
dilig<'nte, sedissipam essas trevas c essas ilusões, f-se<lue na<lueleslinos
não h;í nada de ponderado, nos autores nenhuma autoridade, nas razõesnada de racional, nosexperinh'ntos nada de congruente, de con,;tante,de
verdadeiro,de verossílllil,de sólido, Illasapenas contradições, tolices,f:1J,;idades,absurdos, sendo difícil admitir que quem eSLre\'ia acreditavanisso.20
19. Pico (I (52),v. 2, p. 41, 323,.359, 361-63, 321,49.3, 501.20. Il>i /., v. 2, p. 43.
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42 PAOLOROSSI A Cli:NCIA E i FILOSOFIA DOS ~ t O E R N O S43
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Os descendentes aumentaram a inven<;'ão dos ancestrais, otempo aumentou a autoridade da astrologia, enquanto a fraudeoriginária, que constitui sua raiz, foi cada vez mais se encobrindo
e se escondendo. A humanização do cosmos e a atribuição de
emoções e sentimentos aos astros baseou-se em conjeturas fragílimas e em tênues analogias com as coisas terrenas'. Os navegantes,
os médicos e os agricultores não se baseiam em Júpiter ou Saturnoou, pior ainda, em imagens f.'lbulosas, mas constroem sua ciênciae suas previsões observando as nuvens e os ventos, a disposi\'ãodo :1f, o comportamento do doente, isto é, o ar pelo ar, o doente
pelo doente, quer dizer, pelos próprios princípios' 25
3. Privada de rigor metódico e de critérios lógicos, a astrologiaconfigura-se portanto como uma pseudo-ciência. Mas proceder àsua liquidação quer dizer também revelar suas origens, compreen-
der as razões da sua fortuna e de seu sucesso equívoco, defini-Ia
dentro de limites precisos de tempo e espa(:o, lig:í-Ia ü situaçãoparticular da civilização antiga na qual ela nasceu e da qual sealimentou. As páginas do décimo segundo livro das Dis/mtationes
dedicadas a traçar um breve perfil da história da astrologia, estão,deste ponto de vista, entre as mais importantes e significativas de
toda a obra. A 'divi na sapi( ncia' dos caldeus e dos egípcios versavaexclusivamente sobre as cerimõnias e o culto dos deuses. Os gregos,persuadidos de que a suma sapiência consistia na religião, dedicaram-se amplamente a esse tipo de saber e receberam de egípcios ecaldeus convic\'ões e crenças astronômicas. Mas, tudo o que osfilósofos grcgos corretamente pensaram em m:M:ria de filosofianatural mediante demonstrações racionais' n;lo deriva de lIlodoalgum dos caldeus e dos cgípcios. Estes povos foram na realidade'rústicos de engenho e de índole pouco apta ao saber', não tiveramhabilidade nenhuma nas coisas de física, exercitaram-se pouco nasdisciplinas filosóficas, foram ignorantes de diaktica e dominados
pela superstição e pela idolatria. Seu engenho voltou-se todo para
25 lbid. v. 2, p. 361.
43
as estrelas e todas as coisas para eles eram estrelas e tudo
relacionavam com as estrelas'. Não tendo considerado suficientemente a realidade física, acreditaram que tudo o que toca aoshomens provinha de causas cdestes e que poderiam ser previstosos eventos futuros. Acabaram por atribuir aos astros as própriasculpas e as próprias penas e, contra toda razão, conceberam que
algumas estrelas eram boas e outras mús. 26
Um texto de Shakespeare e outro de Bacon
Em 1981 (a uma dist:ll1l'ia de quinze anos da composi(::io daspúginas precedelltes), Ul l l estudioso que kciolla no departamento
de I-listória da Universidade de Canberra publicou um livro sobrePico ddla Miralldola, do qual cillqiknta p:íginas s:io dedicadas adiscllt i r a atit ude de Pico em r d a ~ i oú ast rologi a. 7 O livro de
Craven dedica-se prillcipalmente ú destTlli<; ,io de um mito: o de um
Pico como símbolo vivo' do Renascilllento, defensor da dignidade
e da centralidade do homem, advcrs:írio implac:ívd da astrologia/JOrf/llC estre'lIuo d d ~ n s o rda liberdade. At ravés de uma anúliseminuciosa e pontual, Cra\ en pretende mostrar as espantosas
discrep;lncias' que ocorrelllelllre os textos de Pico e as interpretações dos historiadores, pondo cm quest:io a imagelll codificada dos
manuais que foi criada por Burckhardt e sucessivamente partilhadae re{()r<; ada por Ernst Cassirer, Eugenio Garin e Paul Oscar
Kristcller, John Hermann Randall, D. P. Walkcr. Os historiadoresdo Renascimento, segundo Craven, 'assemelham-se a uma comunidade científica que opera;1 sombra de UII\ paradigma'.28 Craven
procurou (;Izer de Pico UIII 'caso' historiogrMico, 11111 exemplo daspersistentes mitologias qlle operam na historiografia e condicionam o trabalho dos historiadores: liA literatllra sobre Pico : um
26. Ihid. v. 3, p. 493-507.
27. Crawll I (84), p. 257-303.28 Ihi./. p. 317.
44 PAOLOROSSI A C I I ~ N C IE A FILOSOFIA DOS MODERNOS 45
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exemplo extremamente perspÍCuodo modo pelo qual se desenvolve uma tradit,';io historiogr;í{ica ede como esta pode cristalizar-senuma ortodoxia."29Como o ponto principal destes'mitos' é o de
um Picodefensor da liberdade e>or isso adversáriodos astrólogos,Craven (que emite juízosde singular aspereza) julgou opresentetexto como expressãode 'uma posit,'ão maisequilibrada'. 30
É sempre um prazernão ser incluído entre os adeptosde umparadigma codificado ou,pior ainda, de uma persistenteortodoxia
volta(b ao culto deuma entidade mitológica.Mas deve serdito não
só que Craven precisa es(or<;'ar-semuito para chegar adeterminar
a e x i s t t ~ n c i ade um paradigma capazde abranger a obra de
historiadorest io diversos ent re si, mas tamb('mque suas conclusões pessoais relativasú polêmica de Pico contra os astrólogosparecem realmente inconsistentes. Asr J i . ~ / > t w L l i o l l c sseriam um
tratado amplamente t6,-,nico,com o qual se quer re(utar as teoriase as prúticas efetivasdos astrólogos,mostrando sua inconsistênciaintrínseca e sua incompatibilidadecom o cosmos aristotélico eesco[;ístico".31Craven est;í i rmcnH'nte convictode que a coisaabsolutamente mais importante ~ ocontexto'. O paradigmadentro
do qual de opera é o da existênciade contextos objet ivos,que oshistoriadores teriam de,por taref<l, reconstruir fielmentemediante
uma acumtda<;';io dedados cadavez mais ampla. Eutambt'm creio(como j;í escrevi muito antesde Craven: veja-seanteriormente) que
o temada 'liberdade'em Pico (oiunilateralmente supelvalorizado.Como procureidemonstrar num ensaio de 1977, a imagemdo
homem que está presenteno Âsde >ius e que ser;í retomadaporricino, Pico e Bovillus, estavaestruturalmente ligadaú imagem (dederivat:ão hefllH'tico-platõnica)de um Universo organizado segundo uma ordem constituída por 'graus'. O temado homem e de
seu lugarno Universo,no pensamento dos expoentes da Revolu,';io Científica, coloca-sede maneira radicalmente diversa. O uso
29. Ihid p 107.
30, Ihii/ p. 12, 2M·\.31 Irid p 301.
do método tende (como escreve Bacon) a igualar as inteligências.Para chegarü verdade,não se requer qualquer processode 'dignific;\(;ão', porque as regras que levam a ela são(como escreveDescartes) 'certas ef<íceis e não requerem' o inútil consumo de
qualquer es(or<; o da mente'. Não se trataabsolutamente de renun
ciar ü condit,'ãode 'homens naturais',tornando-se iguais aos anjos.
Em todo homem (üs vezes nas crialH:as enos iletrados maisquenos filóso(os) existetudo o que é necessúrio para chegarü verdade.Não existe nenhuma separat:;io elllre a plebe ignara e os<lbio.3
Bacon contrapunha sua nova nIosofiaao 'saber contencioso' dos
escobsticos, ao'saber supersticioso'dos magos edos alqllimistase ao 'saber delicado'dos I-Iumanistas. Eunão creio na existênciade uma 'continllidade' entre a culturados Hllmanistas do sécllloXV e ados expoentes da Revolut:ão Científica. A polêmica (presente em Bacon,em Descartes ecm mllitos outros autores)contra omodelo de cultura teorizado pelos hUlllanistas, a recusado 'car;íterexelllplar' da civilizat:ão cbssica, a teseda 'igllaldadedas inteligências', o nascimento e o re(on:o deuma visão decididamente nãoantropoc0ntricado mllndo (d. cap. 7), enfim, o car;íter verdadeiramente 'revolucion<irio'e considerado como tal pelos sells protagonistas) dachamada 'Revolll{:;io Científica', parecem-me oscinco principais obst;ículos comque se defrontatodo defensor de
uma 'continuidade (orte'entre a ('pocado Ilulllanismo e a da NovaCiência. Todavia,ainda continuo acreditando (ao contrúrio de
Cravcn) que as p;íginas das Dis m Ulliollcs contêm coisas que
tiveram e conqllistaram signillcados relevantes at(' lIIesmo paraos
homens que operaram (e operam) em contextos diferentesdaquele
qlle (oi próprio do Conde de Mirandola.
A recllsa da astrologiaCOlI lO sll lerstit:;io nasceu,no iníciodo
mllndo moderno, sobre 11m terreno dúplice e convergente. Ode
ullla reivindicaç-;io da liberdadede ;H:;io e o de lima polêlllica cont raas f<t1sas ciências, privadastk (IIndamentos teóricos e incapazesde
32, Rossi(1977), p.71.108,
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fornecer provas empíricas ou critl'rios de f:llsifical;:io. No ReiLearde Shakespeare, Edmundo expressa o primeiro desses dois temas:
Eis aqui a estupenda imbecilidade do I1\UIH- O:(ju:llldo a sorte no,; éadvl'I',;a, 11Iuita,; vezes por causa de no,;sa própria conduta, atribuímo,; aculpa d(' nossa,; desgra,:a,; ao Sol, ;1 Lua c ii,; E,;trdas, como se 16s,;cmo,;
inl:ulles por nl'ce,;,;idade, ilhl'nsato,; por compuls:io celestl', patUe,;, ladrões
e traidores por inl1uxo das c , ; I ~ r : l ; ;hebeITüe,;, lllclllirosos c adúlteros porobt'dit 'ncia I()n:ada ii inlhl, 'ncia dos planetas; C011l0 se toda a nossa maldade
tivesse por cau,a um impul,;o di\'ino. i \ , lmir: íwl e\'a,iva de amante de
PUI: ; dl'ixar ,U:1la,;civia "aprina a cargo dl ' uma l'strela. 33
Para Bacon, :t ast rologia (' cOlldellada porque l' UIIIsaber não
refut:ível qll e despreza as evid['lIcias que lhe siio des/:\von'\vcis. Uma
vez satisfeito por IIl11ateoria - escreve ele - o intelecto a aplica atodos os casos possíveis, procurando levar lodo o resto a slIfrag:í-lae a concordar COIII ela. 34 Ml'sIllO que o lIúlllero de casos cont r:írios
: I teoria sl'ja lIIuito grande, o intekcto lI:io se ocupa deles, rl'lIIove-os: I fon:a de distiIH:ôes. Na astrologia, na illterpretal:ão dos sonhos,
nos progllósticos leva-se e II couta apenas os casos positivos, jamaisos negat ivos:
Por i;,>o jll\l:1I1H'nle aquelt- a qlll'l1\ l1\(hlraval11 q l l a d r o ~pendurados
nlll1\ ';:lnlll:írio, C0l110I 0 111l's,;a dl' pl'ssoas sahoas d,' UI11n:lu(r:ígio, ( juando
lhe pl'r,l(Unla\'al11 COI1\insislência se n:io reconhecia o podl ' r dos deuses,
pergunlou por slIa \'l'Z: 'I: o n , k eSI:í o reI raIo d a q l l l ' l e ~que, el1\boralenh:l11\I ~ i l ( )a prOIlH',;,;a, lalllbt'I1\l'';lão l1\onos: Esla COlhi(lt-ra,:;'lo vall' para Iodas
as Olllras supersli,:tw.;, C0l110a :hlrologia, os sonho.;, as :hlivinhal,'üe,;, as
l11:tldi(:ôes e Olllras que lais. O s hOIlH'n.; que se cOl11prazel1\ COI1\ tai,
vacuidad,'s nOlal11os e\'eIHOS que se v,' ri fica 111, l11as desprl'zal1\ ou n:io
prestal11 alelll::io :'Iquel s k s:io a llIaioria) que n:io 'L' v,'ri (Íl':1IIl. 35
Nem Mercúrio nelll Marte, afirllla Kepler elll IlantloJtices1lI1lw i libri, de lúl9, lIIas Copl'rllico l Tycho BralH' foram aslIIillhas estrelas. Na sua cOllsidl'ra,::io sollfl' a astrologia, ele se
33, W. Shah I'<':lfl I ~ iI.< IIT, I, ~ .
34, r IhcolI, Nonou ( ) r ~ I I I t 1 0 U ,I, 4ú,3'), l\acolI (107')), p. 5ú3.
refere diretamente a Pico. 36 Da mesma manei ra, nas Quaestiolll. sill Gelll.'sim, de 1623, Mersenne, empenhado numa úspera polêmica em torno das ' f:llsas ci0ncias', refere-se ao magllus ille IlcrculesMimJl(lul(lc colHes .37No que concernc a Bacon, não existe nenhu
ma documental::io de um conhecimento direlo dos lextos de Picopor parle do Lorde Chanceler; ent relanto, as p:íginas do DI.
augm1 lIlÍsde 1623, nas quais discorre sobre a astrologia, sobre anecessidade de 'depur:í-Ia' e de reduzir a astrologia 'sadia' a um
sl'l or da física, pare cem revl' I a r, at(' nas incertezas da p o s i \ ~ : i o
baconiana, ullla considl'r:H::io do texto piquiano. 3K
Pico dl'lla Mirandola n:io l: certamente representativo como
um pl'nsador 'I ivre de toda su pnst il::io ast rológica', W c não
convt'm illsistir muito, como faz Yat('s, sobre a distinc:io enlre
a magia 'ast ral' de deriva,::io {jciniana e a ast rologia adivinhaló
ria l dl'lel'lllinista cOllt ra a qual c1l' toma posil:ão. Que selltido
pod(' t('r, IIUIIIdl'f('lIsor da lIIagia ast ral, baseada ('m imagclls elal ism:is, a pass:lgem alltes citada A p o l ~ m i c aallt iast rológicade Pico est:í Iig:lda a uma atitude substallciallllellte negativa
inclusive IIOScOllfrolltos com a IlIagia. Nisto estou de acordo
com Cravl'n. Mas pergullto: sl'r:í que o 't ratado amplamellte
ll 'cnico' de que f:da Cra\'ell bastaria para explicar os juízos deKepler e d" Merselln(' Oll devo conceb, 'r que Merscnlle eKepler t:lIl1bl'lII pensavalll dl'lItro do paradigllla construído porEmst Cassirer?
Alglllllas p:'\ginas das 1 J i . ~ / > l t [ { ( ( i ( ) J t t s ,alglllllas :IIl,ílises (presentes elll Pico) sobre as atitudes, os lIIi,todos e o 'eslilo de
pellsalllellto' da astrologia, a tentativa qlle de elllpreellde para
esclarecer sua g l ~ I H ' S ee sua fortulla (;\zelll selll dúvida pensar
elll outras p:ígillas, escritas lIIuitos anos lIIais tarde e CIIIcontextos históricos lIIuito diversos. Para os quais - C O I 1 V t ~ 1 l
n:io esqllecer elll nOllle da 'diaktica intenla' ou de IIl11alIIito-
3ú, Kl'pil'r (I K5K-(1),\ '.2,1', 'i7K,(,J ; \'. 3,1',20.37. 1\1,'rs<'llll<'(1(,23),1'.%7.
3K. I h o l l (I K57-02), \'. I, 1'. 5) 3-úÇl,30. Yales (ll)(,t)), 1'. 1('17,
8 PAOLOROSSI
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lógica autonomia dos v:írios setoresdo saber - contribuíram
também aqueles textosda l pocahumanista que tendiam a mudara atitudedo súbio diante do mundo, a libertaros homens de
antigos e recorrentes terrores.
SEGUNDO CAPÍTULO
LEON RDO E A UROR D CIÊNCI
-
8 PAOLOROSSI
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servindo-sede citaçõesdos Santos Padres, quanto é grande abusoquerer valer-se das Sagradas Escriturasem questões naturais, equeétimo conselho seria proibir que em tais disputasnão se empenhassem as Escrituras .73
A difícil e ambígua tentativade 'entrar nas Sagradas Escrituras'comentando o textode OSUé e antes o dos Salmos)à procurade
novas' conveniências'entre as 'passagens sagradas' e as'doutrinas
naturais novas'não era maislembrada. Eracomo se jamais tivesseacontecido. Esta lacunaé significativa,mesmo que se trate,como
é muito provável,não de uma rejeição inconsciente,mas do desejoconsciente de,numa situação jáno limiardo drama, não relembraruma tentativa frustrada.
73. Carta de Galileu a Diodati, 15 de janeiro de 1633 (nº 2348).
QUINTO CAPÍTULO
OS ARISTOTÉLICOS E OS MODERNOS:AS HIPÓTESES E A NATUREZA
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o mito d continuid de
Creio que o mito historiogr:ífico da continuidade entre a escola
dos aristott licos de Púdua e a ciência dos modernos n:io tem vidaautónoma. Creio que a sua aceit,H;:io depende da ades:io prelilllinara UIII lIIito ou a U111 grupo de mitos de mais vasto alcance, dentro
do qual a (;íbula particular (COIIIO ocorre elll todos os mitos que serespeitam) se insere muito bem. Este mito filosónco-historiogr:íficomais amplo pode, para ser breve, ser re sumido nas trt s proposit:ôesseguintes:
I. existe uma entidade unit,íria denominada cit ncia modema ;
2. existe um método (forlllulúvd com relativa clareza) que seriao IIIdodo da ciência modema;
.3. este IIIl,todo cient ínco seria o motor ou o (;Itor deterlllinantedo crescilllento da ciência.
Em geral, e este certamente é o caso de Cassirer, a proposit::io~ considerada dependente da verdade da proposit;,io 2. Sobre a
proposi<:,io 2 insistiram todos os ncopositivistas, mas pode-se crerna proposi(::io 3, como ;IZ por excmplo 1\.. C. Crombie, e sercriticado por I\.lexandrc o y r t ~que, cm substiincia, aceita como
v:ílidas a 1 e a 2. I\.s combina(:ôes s:io múltiplas < , muito prov:\\ c1-
122 PAOWROSSI A C1ENCIA E A FIWSOFIA DOS MODERNOS 123
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mente, serão dadas como realizadas combinações que são apenas
potenciais. Parece-me todavia indubitável que, se há algo que fezemergir o trabalho desenvolvido pelos historiadores da ciência no
último quartel do século, este algo consiste em ter demonstrado agrande fragilidade e a inconsistência daquelas três proposições.
Como não creio que seja honesto esconder dos próprios
leitores os pressupostos de caráter geral, dedico três páginas destecapítulo a procurar esclarecer esses três pontos. faço-o de modo
extremamente sumário, embora esteja convenci do de que, hoje, sóé possível tentar uma abordagem não tradicional do tema das
relações entre os aristotélicos e os chamados pais fundadores da
moderna ciência da natureza, quando nlÍose aceitam C l l 1 verdadeiras as três proposições mencionadas.)
Sobre o primeiro ponto. Aquilo a que chamamos ciênciamoderna , embora os historiadores da ciência o tenham percebidocom certo atraso, não se esgota nas chamadas c i { ~ n c i scI.íssicas :matemática, astronomia, física, ótica, harmonia ou teoria matemática da música. Resulta da interação (que só no curso do séculoXIXchegará a efeitos explosivos) entre estas ciências, que têm por
trás uma antiq(iíssima e consoli dada tradição, e as novas ciênciasexperimentais ou baconianas : o magnetismo, a eletrologia, oestudo do calor, a química, o estudo da Terra e dos fósseis. Achamada Revolução Científica não consiste apenas nas transformações radicais que se verificam na matemática, na física e na
cosmologia. Consiste também na gestação e na laboriosa constru
ção de ciências novas particulares; na emergência de novos territórios e âmbitos ou famílias de problemas que se tornam objetosnovos de ciência.
Não só. Alternativas, escolhas entre teorias, entre modos
diferentes de ver o mundo e de entender a ciência estão sempre
1. Para um tratamento mais amplo destes temas e para as correspondentes illdicaçõesbibliográficas, remeto a Rossi 1975), p. 253-80; Rossi 1977), p. 149-R1; Rossi1986), p. 21-58 e 163-210. Em particular, no que concer ne às ciências bacolliallas ,
reporto-me a Kuhn 1 977) e, no que diz respeito às tradições de pesquisa , a Lllldan1977).
em acão em toda a história da ciência. Nela estão presentes cânonese x p l i ~ t i v o svariáveis, métodos diversos, tradições de pesquisadiferentes e contrastantes, imagens diversas e às vezes opostas da
ciência. Baco nismo, galileísmo, cartesianismo, newtonismo, leibnizianismo, como o termo aristotelismo, são certamente etiquetasque recobrem tendência s e problemas diversos: são entidades não
facilmente isoláveis, variáveis no tempo, mas são sem dúvidatambém programas ou tradições filosóficas e científicas em competidio entre si. Em torno desses programas (ou, se preferirmos,d ~ s s smetafísicas), que implicam modos diferentes de conceber aciência e de praticá-la, são construídas e consolidadas, no início da
Idade Moderna, as novas ciências da natureza.
Sobre o segundo ponto. No que concerne à ciência do séculoXVII, durante muito tempo foram esquecidas algumas coisas:1. que a ciência daquele século foi simultaneamente galileana ecartesiana e baconiana; 2. que a distinção entre os chamados doismétodos de pesquisa (matemático-dedutivo e experimental-indutivo)foi considerada naquele tempo e por cerca de cento e cinqiientaanos) como real; 3. que a distinção-oposição entre esses doismétodos estava ligada a duas imagens diferentes da ciência, aprime ira das quais privilegiava a audácia das hipótes es, as antecipações , as construções apriorísticas, e a segunda os experimentosrepetidos, as descrições, as classificações; 4. que essas imagens da
ciência correspondiam a imagens diversas da nall)reza: concebida,de um lado, como ordem geométrica, como obra de um Deus que
compõe o mundo numero l Ondere et mensura como realidadeescrita em linguagem matemática, e, de outro lado, concebida como
selva, como um desconhecid o e infinito oceano, como um labirintono qual, para orientar-se, o método oferece apenas um têllue e frá-gil fio.
Sobre o terceiro ponto. Uma tradição de pesquisa (como oaristotelismo, o galileísmo ou o datwinismo) consta de uma sériede compromissos e de interdições ontológicas e metodológicas no
sentido de que: 1. fornece uma série de diretrizes para a construção
de teorias específicas; 2. reconduz os problemas empíricos à
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OplllS;l 0[11.1 ~ l I Z,lJI\ll lI I: ;)JlI;)IJ,K ~ l I I UU J\ SSJ,l,HI 1II,)pJO I lllll
I P .I,lSI, \ IS;) SOp llI;)S S o p SOIll I JIX,) ;)I lb seSI1)UO) S;l\Úl UIJO) li Sl N
'WJ'4 J1.f s o p ; ) l H l ~ ) , b pO ~ l lJ l lU 'Jl Jt:A O J \ lVl a s s o u 111,1 \ \ S ~ lO ~ l lJ l lU
o:-ll' ;llll;lS;ud \ \S;) ' s e s o ) s e p S O l ; ) ) U O ~ )SOl' O ~ S U J ; ) . I ( hl SIl)1I0J ~
;lplU '1:J ;HlI H I l l 'smu ' ,P Jllll lI J l l D l l I l S S O l l l P O;) 0 ~ 1 I ,1 ) :Jqll P
P ) ) IJI l l l , l UO Y J1IJ1LtLI S ,ll UIIlI lO O)lI ISlI ~ l p; l J ~ ) ( l s , lUUIIl Y J l lU
' ,0l lllH I Jl d O)S P J l ssud ; )P ; ) p q ) I ' U I ~e , ' O l d U l J X ~ )J o d 'IUJIl)I ll :1' ~ " F I J I ' I ' D l J f110 S I:Jll)I 'D S ~ l p q l l I J l I ; l ) o dO l l ~; P UlJJJO)O I ZJJI\lell
l [l OWPU ; 0 N TZ,Ull l l l I l P Olll ld Oll S ~ ) z I JSI ~ l I I l H I ); lPI P lI P ) lJC
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11I,1Z P o ~ u n Z I ~ ,UIDOJd ;lIIb SI I\II1:-1.1,)d SI :J llPllO,l ' J ' d
Z , , ' O ~ : l l , l j < hl llS I Y 1 \1I0.) ;)llU O S J l d l l , s
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Opl:q l lS , l J o (;)llI,HII,l 11II: II 1II0P,lld 110) SUlI.:ldl ~ l l l1\ WUI (l l lO l 11\ S
-;)(.11:,1 '1:1II:;11 1' . :1I PU0 J I J l l b J I \ pJJ.)1 I:J ) U.:1 S O U 1 : - I 0 I O U l J ) s d ~ l
I ~ S O P ( ) ( ~ H I Iso JI :-I,ll " Jd ?',lJ1L1J s' P .X)F)(l ' \S;) SI .I.:1;lJ 1 1 I ~ 1I PI ;)Sl 'l
ll P,l.l:-lo.ld ;) 0]i01.fJ.l1ll "]i SIl)IJPIJ.LJ 11111 1110.) 1 .I\lIS 11 I IlS I: 1 l 0 p U
1 .I11IIl,l,\. Iod 1 ,H 10 J ;1Il() iO,) ) II1;lP 0POhHII 01' 1 ,l<.lIS 11 e 1 1 I 0 ~ 1
I ,lll'..) ,l I P I P9IS 11 I 1 . ) ) l l l ~ l P;)llU ;)S;ll I I PI :l ) ISll[ ;l)llJUII' JJ r
iSI ;-,\lIO)110 SI o p l w z , u d s ~ l p'SOPOI,;JIII SO ~ 1 1)ll,) 1 : l l l \ l lpIl lJS I U1I1I1 110
,1pl:P lU;lpl I UlIlll ;lSI (l 1I I0J ,lplJplHUlJUOJ ; P J \ I ' ~;llU;HlIJI:;U ; S - ~ l P O d
iOl})IJ: I'pOJ I llS I SI lI;)dl O S n o S I J O ~ ) lS I r IlU.:: I.LO \ 1lI,1ll) )SllO)S O p O I ~ l I l 1SO i S O p O I ~ H I Is o p S ; ) t \ \ ~ A J , ) PO ~ SSI POJI y ' S l n l l l l : J J ~ l d
SI IIIIl:iI ' JI jll lIUO) I ; » ) l I J l l l \ J I S S ~ ) , ) J l II A;ll ' O ) ) l l l J ~ )J. :lqes o u 'O)
- UllO,) III,) S.:lQ.) lH Jl ~ ) p ~ ) P I P \ I J I l l dl 1l1l1 J p 01llJllI X1I l l lOJ;)J o' S U l l l ~ ) I ( l O J dJJAIOSJJ ;)P
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SI JO;)I s Y 'SI JOJl l IU1SlIO) ul l d J sUllI. : l jqOJd SlIll; P ;) l( l0S J U ~ I P U
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I S S O ~ G I O V d tZI
126 PAOLOROSSI A CIÊNCI E A FILOSOFIA S MODERNOS 127
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pertence não ao lógico mas ao filósofo natural, uma vez que oprimeiro lida com os hábitos e o segundo com as f.: 1culdades.3
Se as faculdades coincidissem com os hábitos, se a naturezativesse a mesma extensão que a cultura, não existiriam os lógicose não seria necessário que os lógicos procurassem transmitir os
preceitos de sua arte. 4 A distância entre natureza e cultura cria oespaço para as artes, dá o sentido da não-coincidência entre ordonaturalis e ordo scientiarum, entre lógica e ontologia, traça uma
nítida demarcação entre Zabarella e todos aqueles que {comoPrancesco Piccolomini} teorizam uma relação de imitaçio entre
ordem das ciências, ordem da natureza e ordem divina.A ordem da natureza passa dos princípios e elementos simples
para os mais complexos. A ordem das ciências não pode repisaressa ordem nem identificar-se com ela. Só o método compositivoou sintético ou demonstrativo, que é empregado na matem:ítica,na geometria e na metafísica, pe rmite a demonstratio Jro/'tcr quid,
a passagem da causa ao efeito, o conhecimento segundo a naturezaprópria das coisas'. Na nossa relação com a natllreza somos
obrigados a servir-nos do método resolutivo ou analítico que vaido efeito às causas e que passa daquilo que é mais conhecido paranós àquilo que é mais conhecido pela natureza. 5
O termo natureza não tem significado unívoco, porém éabsolutamente necessürio, para o filósofo natllral, entender o seusignificado preciso. 6 Fala-se de natureza até a propósito de coisassobrenaturais, como, por exemplo, da n a n l f ( ~ z ade Deus . Aqui otermo é sinônimo de essência e não concerne ao filósofo natural.Pala-se ainda de natureza num significado extremamente restrito:referindo-se a uma faculdade que é de certo modo coarclada erestrita a apenas um dos termos de uma oposição: por exemplo, acoarctaç:io a receber só um dos dois movimentos, em direcio ao
3. Zabarella (1607) 1042 C, D, E. Nas referências a Zabardla (1607), os números e asletras remetem respectivamente à coluna e ao parágrafo.
4. lbid., 1041 D.5. Zabarclla (1597), p. 142-44, 299 55.; Poppi (1972), p. 172, 194.6. Zabarella (1607) 231 E.
centro ou do centro. 7 Neste sentido, dado que a alma é capaz de
movimentos opostos, natureza distingue-se de lm e aquilo que énatural daquilo que é animado. Nesta acepção, natural é sinônimo
de inanimado. Existe finalmente um terceiro significado, de certomodo intermediário entre os dois primeiros: nesta acepção, natureza significa todo o gênero das coisas variúveis e mutáveis. Nestecaso, natural significa aquilo que é de certo modo mutúvcl' enatureza está por propensão interna a mudar'.8
A escolha entre o segundo e o terceiro significados é muito
importante. Adotando a segunda definil;;ío (como fez Simplício,por exemplo), exclui-se da natureza a [acuidade de conhecer edefine-se natureza por oposição a tal f<IClddade. As faculdades(como vimos), diferentemente dos h:íbitos, pertencem à filosofianatllral e o conhecer é também natureza. Deve-se adotar então aterceira definição. Aristóteles definiu de hto a natureza comoprincípio interno de movimento e, deste ponto de vista, também
à alma compete a definil;ão de natureza.'>O termo natureza, por outro lado, deve ser cuidadosamente
separado de mundo. Este último não ( uma espécie de corpo
natural, mas a agregaç:io de todos os corpos naturais. Enquanto
mundo, ele não tem uma nalllreza própria nem um movimento
próprio. Usado no sentido de aquilo que o n t { ~ mtodos os corpos',esse termo é ambíguo: a coleção de todas as coisas corpóreas eincorpóreas, mesmo se constituem U1II 1IIu1\(10, n<io o constituem
uno, de modo a poder cair sob o domínio de um ciência. 10 Omundo
é sem dúvidaestruturado
hierarquic amente, e nele existemcorpos mais nobres e corpos menos nobres. Mas mais nobres não
coincide absolutamente com mais nntura/. Deve-se rechaçar aopinião segundo a qual os termos natureza e cor/ o natural competem em primeiro lugar ao Céu, como o 1IIais nobre de todos os
corpos, e só secundariamente aos oul ros corpo s. N<io ; absoluta-
7 lbid., 235 D, 241 A.
8 lbid., 238 A C.
9 lbid., 238 C.
10. lbid., 48 A-D.
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130 PAOLOROSSIA CIÊNCIA E A F1LOSOHA DOS MODERNOS 131
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mento que é chamado natural àquela coisa'.2 1 • Passivum princi/)iumab Aristotelc intelligi rcstrictum ad unum certum motum qui solusdicatttr natttralis cuique rei.'22 Em caso contrário, operatio immanense o/)cratio transicns seriam idênticas e até mesmo o movimento de
uma nave ou os movimentos da madeira trabalhada por um artesãodeveriam ser chamados movimentos naturais. H
Objetos naturais e objetos artificiais
Este exemplo é sigllificativo. A. matéria não é natureza /)er seou 'secundum sc'24, é natureza /)cr formam. A. matéria é naturezaenquanto tem o poder de receber uma (orma que é a própria
natureza da coisa: '/>rout /JOtcsLatcm habct rcci/)icndi formam, quac e.H
i/)sa rei natura . 25 A. />atibilitas é da matéria, mas a dctcrlllinatio
/>atibilicatis ou a coarctaç:io e restrição a esse movimento específicoé da (orma. 26 Uma lIIutatio é naturalis quando uma coisa muda
porque estú apta a ser mudada pela sua natureza, isto é, segundo
sua (orma".27 Quem considera apenas a matéria ou, como Scot eos scotistas, afirma que a matéria sccundlll11 se é natureza, é obrigadoa considerar naturais todos os movimentos. 28
Mas o mUlldo é pleno de objctos artificiais e de (ormasartificiosas. Os scotis as negam que a matéria tellha uma potêncianatural em relação às (ormas artificiais 29 e sustentam que a matéria
natural que existe nas coisas construídas não tem '(l/) itlUlo lei
21. lbicl., 241 A.22. lbicl., 241 C.23. 11M, 240 D.24. lbid., 246 13
25 lbicl., 244 E.
26. lbid., 245 C.27. lbid., 249 [I
28. lbid., 246 B, 249 A.29. lbicl., 247 E.
reci/)icndas formas artificiosas . 30 Mas como pode ela receber essas(onuas se não tem a /)otestas rccipiendi? Como se pode a6nnar que
não é possível aquilo que acontece de (ato? A matéria, respondeZabarella, é voltada principalmente para as (ormas substanciais etem uma propensão maior para essas que para as fonuas acidentais" 31 O escopo universal da natureza ao estabelecer a matéria das
coisas (oi o de dispô-las a receber as fonnas substanciais.32
A tesearistotélica coincide com o que devemos chamar, segundo a verdadeira filosofia, de o/)ificis consilio in rcrum crcatione . A natureza (oicriada principalmente como sujeito receptivo das (ormas substanciais, mas como era necessário que (osse receptiva também às (ormasacidentais introduzidas por causas externas, a matéria devia ter apotência ulliversal de receber todas as (ormas, quer substanciais, quer
acidentais. 33 Destas últimas, algumas são introduzidas por causasnaturais, outras pela vontade humana. São deste tipo todas as formasartificiosas produzidas pelo homem' )cr habitum artis'. 34
Diversamente do que pensam os scotistas, portanto, a matériaé provida da potência natural a receber também as (ormas artificiais.Desse modo, devemos crer que a natureza univers al as tenha levadoem considerado in statucwla materia. 35 Desta aptidão da matériaa receber as formas artificiais, esclarece Zabarella, pode ser dito
aquilo que se disse sobre a natureza da lógica e suas utilidades. A.
lógica é produzida pelos filósofos naturais para fins exclusivamentefilosóficos: em primeiro lugar, para a filosofia contemplativaj em
, f · r ·segundo lugar, para a ativaj mas não para as artcs e )ectnccs .
Ocorre, todavia, que os produtos da lógica são úteis para todas asdisciplillas c para o aprendizado e a transmiss:io de todas as artes.A sua utilidade depende da sua natureza, não das intenções dos
filósofos que a construíram. Do mesmo modo, a matéria tem
30. lbid., 246 D.31. lbid., 247 r 248 A
32. lbid., 248 A
33. lhicl., 248 13 50br<:> o plano do anifice na criaçiio das coisas."
34. lbid., 248 C.35. lbid., 248 D; cf. 246 D.
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134 PAOLOROSSI
corpo) e tem s a ca sa ó i é id G i
A CIÊNCIA E ArtLOSOHA DOS MODERNOS 135
d
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corpo) e tem sua causano próprio corpo que é movido . Generatioe inleritus são (também para Aristóteles) naturaisno primeirosignificado, mais amplo, porém, nãono segundo. Isso vale tambémparaas alterationes: o aquecimento da águaé um movimento violento,é ad contrariam qUillitatem , assim como o motus ascensionisda águaé ad contrariumlocum .44
Na acepção mais restrit;ldo termo natureza, todo processode
alteração ( excetoos que se verificamnos seres animados)45éviolento e não-natural. Em particularos processos de alteraç:1oartificialda natureza, aquelesque s:1o introduzidos nelapor escolhas do homem, produzem (como vimos)formae artificiosae , que
s:1o formas 'secundúrias',não 'primúrias'. A natureza,para além desuas intenções, é certamente capazde acolhê-Ias, mas, nesta perspectiva,um ponto parecebem estabelecido: ndopodemos sen/ir-nosdas formas artificiais como modelos Imra conhecer e interJ)retar anatureza.
Eu queriachamar a atençãosobre este ponto. Que é decisivo.Porque naquilo que chamamos mecanicismo do séculoXVII opera
não só a idéia de C)ue os eventos naturaispodem ser descritosmediante os conceitos e os métodos daC)ueleramo da físicachamado mecânica, mas opera também, ecom força extraordinúia,a idéiade C)ue os engenhos e as máC)uinas construídas pelohomem
podem constituirum modelo I)rivilegiado para a compreensão danatureza. 6
Antes, escreve Kepler, eu pensava que a causa motriz dosplanetas fosseuma alma
CO escopoC)ue me proponho é afirmar
C)ue a máquina do universo n:1o é semelhante a um ser divinoanimado, mas semelhante aum relógio C e nela todos osmovimentos dependem de uma simples força ativa material, assimcomo todos os movimentosdo relógio s,io devidosao simplespêndulo. 47 O C)ue é o coraçãosenão uma mola,os nervos sen,io
44. Zabardla (1607) 249 C,D.45. lbid. 249 F.46. Rossi(I (62),p. 139-47;Rossi (1977),p. 153-57.47. Kepler(I 858-71),v. I, p. 176, 184.
I . d 7 tamuitas cordas, e as articu ações senãomUl.t.:ls ro as ~ e r ~ m
H bbes.4s As múquinasdo nosso corpo, afmna Malplglu, sao aso V I ' .bases da medicina. 9 Descartes escreveu: emos que re OglOS,
fontes artificiais,moinhos e outrasmáquinas deste tipo,embora
construídospor homens, n:1o s:1o desprovidosda forçade o v r ~ s
por si sós de maneiras diversasC.,) E na verdadepodemos mUIto
bem comparar os nervos aos tubos daquelas fontes,os músculose os tendões aosoutros aparelhos e molasque servem paramovê-Ias. so Para Robert Boyle, o Universo é'uma grandemáquinasemovente' e,por isso, todos os fenômenos devemser considerados nostermos' dos dois grandes principios universaisdos corpos:
. . , 51a maténa e o movllnento .A müC)uina, realou apenas pensadacomo possível, funciona
como modelo explicativoda natureza, torna-se a imagemde uma
realidade constituídade dados C)uantitativamente mensuníveis,naqual cadaelemento (como cada peça da m,íC)uina)u m p r ~a suafundo com base numa determinada forma, em determllladosm o ~ i m n t o se velocidadede movimentos.Conhecer a naturezasignifica perceber omodo como funciona a m,íC)uinado mundo,e a máquina pode sempre (pelo menos teoricamente) serdesmon
tada nos seus elementos simples e depois recomposta, peçapor
peça: Sobre as coisas naturais - escreveGassendi - indagamos
do mesmo modo C)ue sobre as coisas das quaisnós própriossomos
os autores ( .. )Nas coisas da natureza em C)ue isso é possível,finemos usoda anatomia, da C)uímica ede auxíliosde todo tipo,
simplificando o mais possível os corpos equase decompondo-os,de modo a compreender de quais elementos esegundo quaiscritérios eles são compostos. S2
O mundo dos fenômenos assim reconstTuíveis mediante ainvestigaç:1o científica e omundo dos produtos artificiais, construí-
48. Ilobb('s (1955),p. 40.49. Malpighi (1944),p. 40.50. Descartes (1897-1913),v. 9, p. 4, 321.
51. Boyle (1772),v. 3, p. 14.52. Gassendi (1658),v. 2, 1 . 122 ss.
36 PAOLOROSSI
íd l l l ã ã
A CIÊNCIA E A FILOSOFIA DOS MODERNOS 137
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dos ou reconstruídos pelo intelecto ou pelas mãos, são as únicasrealidades das quais se pode ter ciência. Podemos conhecer ou asmáquinas ou o mundo real enquanto ele seja reconduzível ao
modelo da máquina. As impostações tradicionais sobre a relaçãoentre Natureza e Arte ficavam conscientemente invertidas: a Arte
não é a 'imitação' da natureza e não estü 'de joelhos' diante da
Natureza. Os produtos da Arte não são nem inferiores nem
diferentes dos da Natureza. Sobre este ponto, Descartes também
insiste energicamente: Não existe qualquer diferem:a entre asmáquinas que os artesãos constroem e os diversos corpos que anatureza compõe. A única diferença é que os ;Jparelhos dasmüquinas são bem visíveis, enquanto os tubos e as molas que
produzem os efeitos naturais são gera lmente pequenos demais paraserem percebidos pelos sentidos 53 Esta 'pequenez', como veremos, serü um tema importante.
Descartes e Gassendi acolhem a tese de Ihcon que nega
qualquer distinção de essência entre objdos Iwturais e objctosartificiais: Durante muito tempo, prev;Jleceu a opinião de que aarte seria diferente da natureza e que as cois;JS artificiais seriamdiferentes das nanlrais (. ..) E um erro mais sutil insinuou-se na
mente dos homens: o de considerar a arte C0ll10 um complemento
da natureza, que tem o poder de completar aquilo que a naturezainiciou, de corrigi.la qlwndo ela comete UII1 erro, de liberü-la de
obstáculos, mas que jamais tem o poder de lI1uchí-la, t ransformá-I;J,abalar seus alicerces ( .. ) I sto deve ria penetrar profundamente na
mente dos homens: as coisas artificiais não diferem das coisasnaturais pela forma ou pela essênci;J, mas apen;JS pela causaeficiente. 5
Se o mundo é uma máquina, ele não é mais construído /Jarao homem ou medida do hOll1em. Dentro deste novo modo de
conceber a relação Natureza-Arte, prevalece a tese de que o conhecimento das causas últimas é impedido ao homem, que não
53. Descanes(l897-1913),v.9,p.21.54. Bacon I 857-92), v. I, p. 496.
interessa à ciência e é reservado a Deus, enquanto artífice, const rutor ou relojoeiro do mundo. O critério do conhecer como fazer e da
identidade entre conhecer e construir (ou reconstruir) não vale só
para o homem, vale também para Deus. O intelecto do homem
pode aceder apenas às tlerdades construídas da matemática e da
geometria. Nos limites em que a Natureza foge. ao modelo da
müquina, ela é uma realidade não cognoscível. E difícil, escreveMersenne, encontrar verdades na física; pertencendo os objetosda física às coisas criadas por Deus, não é de admirar que não
possamos encontrar suas verdadeiras razões (. ..) só conhecemos asverdadeiras razões daquelas coisas que podemos construir com asmãos ou com o intelecto . 55 E Hobbes, cujas posições são certamente muito diversas: A geometria é demonstrüvel porque aslinhas e as figur;JS a partir das quais raciocinamos são trat:adas edescritas por nós mesmos; e a filosofia do direito é demonstrávelporque nós mesmos construímos o Estado. Porém, como não
conhecemos a constnlt:ão dos corpos naturais, mas a procuramospelos seus efeitos, não existe nenhuma demonstração de quais
sejam as causas por nós procuradas, mas apenas de quais possamser. 56
Diante da natureza, a ciência não enuIlcia verdades, não falanem de causas nem de essências, ocupa-se apenas dos fenômenos
e só pode formular hipóteses.
A crise da distribuição das competências
A distüncia que medeia a física dos modernos e a dos aristot<. licos já foi estudada por muitos. Bastará lembrar alguns pontos.
Na física dos aristotélicos a localizal,'ão das coisas n:10 é indiferente,nem para as coisas, nem para o Universo. O movimento configura-se como moto no es/)nço, como a tcraçfio nas qun id(ulcs, como
55. Mcrscnnc I 636), p. 8.56. Hobbes I 839-45b), v. 6, p. 183 ss.
138 PAOLOROSSI
i i L i O i é d d i
A CIÊNCIA E A HLOSOI'IA DOS MODERNOS 139
fi d de i t procuram espontaneamente
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generatio e inLeritus no ser. O moto n:io é um estado mas um devenire um I)rocesso. Através desse processo, as coisas se constituem, seatualizam, se completam. Um corpo em movimento não mudaapenas em relaç:io a outros corpos: ele próprio é sujeito a umamudança. Nessa física, n:io hú necessidade de uma causa queexplique a persistência de um repouso, há necessidade de umacausa que explique a presença e a persistência do movimento.
O espaço vazio da geometria cartesiana e galileana, no qualtodos os lugares são lugares naturais de qualquer tipo de corpo eno qual todas as coisas est:io no mesmo nível de ser, colocar-se-ácomo alternativo ao espaço qualitativamente diferenciado e concreto dos aristotélicos. Na nova física, o movimento aparece como umestado persistente dos corpos, a fon:a l' causa de acderac:io e n:iode movimento; repouso e movimento s:io colocados ~ mesmonível ontológico; a idéia de movimento de um corpo é separada dade processo de mudança do mesmo corpo ; afirma-se a kkia de que
um corpo pode ser isolado do seu contexto físico; o espaço real éidentificado com o espaço geométrico. N:io se trata apenas de umuniverso infinito, feito de cheio e de vazio. Essa ci0ncia, comomostrou Alexandre Koyn" estava solidamente ligada a uma novametafísica, a um mundo sem hierarquia de ser, a um mododiferente, não mais antropomórfico, de considerar e entender aontologia da natureza. 7
Hobbes, que tin ha a i1us:io de ser um grande matemático, masque era certamente um grande filósofo, captou este ponto com
impressionante lucidez: Uma verdade da qual ninguém duvida éque quando um corpo est:í parado, permanecení parado até quealguma coisa o mova. Entretanto, n:io se admite (;\cilmente queum corpo em movimento permanecer:í eternamente em movimento até que alguma coisa o pare C ) Isso depende do (;\to de que oshomens medem n:io apenas o s outros homens, mas todas as outrascoisas, por si mesmos. Já que eles, depois do movimento, ficamnum estado de pena e de cansaço, pensam que todas as coisas
57. Koyré (l9(,úb), p. 157-66, 1kO-82.
ficam cansadas de movimentar-se e procuram espontaneamente oepouso.
Neste terreno, dentro do qual n:io tenho qualquer intenç:io depenetrar é muito (;ícil medir a dist:incia que separa a natureza dosaristotélicos da dos modernos. Desejo porém sublinhar um pontosobre o qual a atenç:io dos estudiosos n:io se deteve suficientemente. Na nova ciência, não desaparecem apenas as naturezas doscorpos simples e n:io mudam apenas as categorias. Entra numacrise irreversível a elistribuiçiio elas C O l l l l ) ( l Ô l c i ( I . ~ ,efetuada com muitocuidado pelos aristotélicos. As quantidades matemáticas, escreveZabarella, "s:io consider adas pelo matem:ítico como separadas, porobra da mente, da matéria natural como se ocupassem o lugar dosujeito proinde ut habentes loculII subil'Cli) e consideradas pelofilósofo natural como atributos dos corpos naturais".58 Aqui nãoexiste apenas a teoriza(::io da inaplicabilidade das idealizaçõesmatem:íticas ; t corporalidade da natureza (que é a tese continua-
mente exposta por Simplício no Diálogo galileano). Nesta, comoem muitas outras passagens ,l' sancionada uma atribuiç:io de tare(;lSespecíficas aos filósofos natu rais, aos matemúticos e aos meta físicos,que perderú, na nova ciência, qualquer fundamento e qualquersentido.
Ordem natural e ordem artificial
A propósito de Zabardla, (;t ou-se muito de instrumentalismo.rreqiientemente, as frases foram isoladas de seu contexto e, decerto modo, celebraram-se as núpcia s ent re uma metodologiaaristotélica e um empirismo aristotdico que teriam gerado umaciência antiaristotélica. Muitas p:íginas de Antonino Poppi, deCesare Vasoli, de Charles Schmitt e de Christopher Lewis contribuíram para devolver-nos o senso das propon,:ôes e recolocar asafirmações nos contextos. Ou seja: dent ro daquelas perspectivas
58. Zabardla (1607) 36 F.
140 PAOLOROSSI
t fí i hi t i d d i d l i d iê i ã d
A CIÊNCIA E A F1l0S0HA DOS MODERNOS 141
h i i d i ã f f ê i à
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metafísicas que os historiadores das i d l ~ i se da ciência não deveriam esquecer em qualquer ocasião.
Artificialidade, na linguagem de Zabarella, não se identificaabsolutamente com cOIlt ençiío. Arbítrio não indica absolutamente
a possibilidade de inventar novas lógicas. Existe uma só lógica,válida para todos os homens, que é capaz, como tal, de fornecermétodos e instrumentos a todas as disciplinas. Estes métodos eestes instrumentos são em certa medida variáveis, ou será que afilosofia natural é apenas uma al)licaçâo da lógica < Is coisas da
natureza? A lógica, uma vez colocada em ação, 'n:io se chama maislógica, mas filosofia nanlral ou matcm:ítica' . Todavia, continua
sendo verdade que ela fornece a todas as disciplinas os instrumentos, ou seja, os métodos, de que nos servimos para conheceras coisas . 59
Zabarella, que considera totalmente irrelevante e não digno de
consideraç:io o acaso ou a ordem acidental das coisas, distinguecom cuidado a ordem que' é arbitr:íria e depcnde da nossa escolha'da ordem' que é natural e necessúria' (.0 Mas qual a rela(:ão entre
as duas ordens? Que método artificial prescreve normas inviohíveis? E se as normas são invioLíveis, em que consiste essa artificialidade? O caminho a seguir ~ na realidade extremamente rígido enão admite, nem sequer internamente, uma pluralidade de direções e de escolhas. Mas não se trata apenas do m t ~ t o d opara chegarà verdade é indispensável a compreensão da estrutura artificiosa daciência. Existe uma 'natureza e condi,'ão' da filosofia natural, uma
divisão dela em partes, existem esc opos específicos de cada umadas partes e é necessário obter esta estmt ura, em todos os seuscomplicados detalhes, para penetrar as causas ocultas das coisas eos arcana da natureza. 61
Não ocorrem outros caminhos que n:io sejam os das ciênciasjú codificadas e provadas: a medicina não t' ciência porque não
59. Zabarella (1597), p. 11, 14, 133.
60. Zabarella (1607) \041 D.6\. Ibid. 1 A B
conhece as causas primeiras das coisas, não faz referência àmatéria-prima e à sua natureza, não conhece a forma verdadeira etoma por forma verdadeira um acidente qualquer. O médico,porém, sobretudo de, tem uma culpa que é gravíssima, ao ver de
Zabardla: não respeita aqueles preceitos que devem ser observados em toda ciência especulativa para a obtenção da verdadeiraciência 62 U ma coisa é conhecer a a pt idão do corpo vivo e o que
são saúde e doença, outra coisa é conhecer as causas particularesdas vúrias doenças e não as coisas que conservam a saúde e arestituem. Com base nisso, a medicina dever:í ser diferent,'ada da
filosofia natural como uma forma diversa de conhecimento. 63 Masessa necessidade é uma subalternat,'ão: quem não ~ filósofo naturaln:io pode ser bom médico, e ser bom IIH\lico significa cOlllcçarondeo filósofo natural termilla.& Mas em que consiste este cOllleçar?Numa aplicaç:io rígida da teoria, na aceit:H::io preliminar de ummdodo j:í teorizado e de uma estrutura dl'lerminada. M { ~ t o d oe
teorias não sc tornam modific;íveis pda sua aplicH,'ão a casosparticulares. Os casos servem para aplicar a teoria e confirmar suavalidade. Como se configura ent:io o conn'ito de experiência?
A experiência e os experimentos
Nas p:íginas que dedicou ao conceito de experiência e de
expcrimento em Zabardla e no jovcm Galileu, Charles Schmitt
chegou a conclusões muito precisas, que subscrevemos intei ramcnte.6 ; Na filosofia de Zabardla, a experiência desempenha um papelimportante. Zabardla fornece ótimos exemplos c ilustra as teoriascom referências ;\ experiência e, cm algulls C1SOS, : Is artes mecilnicas, mas jamais cOllstrói situaçôes experimentais a fim de resolverdificuldades particulares relativas a problemas particulares. Na
62. Zabardla I 597), p. 60 SS.
63. Zahardl a (1607) 101 E.
64. Ibi,l., 101 E, f, 102 A.65. SdulIin I 9(9).
142 PAOlO ROSSI
totalidaded casos ã l b d e periências i
A CIÊNCIA E AfilOSOfiA DOS MODERNOS 143
que a constituem do que dissolvê-Iaem abstrações Os fcnõmenos
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quase totalidadedos casos são lembradas experiênciasanterioresque têm a ver de algummodo com o problema tratado.Às muitaspassagens indicadaspor ScllInitt, eu poderia acrescentaroutrasduas extraídasdo De rebus Tlflturalibus: a primeira t: Z referência'àquilo que a experiêncianos ensina' na navegaçãodo Oceano66 ;
a segunda,sobre a acelcraçãono movimento de queda, filz apdo
'àquilo que é comprovado pdae x p e r i t ~ n c i a
relativamente aomovimento de urna navenuma corrente.67 Estes dois textos, quemereccriam talvez ser analisados,confirmam de qualquer modoaquelas conclusões.
Creio ser conveniente integrar essas obselval,x)es,insistindosobre dois outros aspectosque diferenciamradicalmentc a expenencia dos modernos da dos aristotélicos. O primeiro desscsaspectos refcre-sc úartilicialiaade das experii ncias e das observações; o segundo, ao cstatllto ontológicodos objetos observados.Relativamente ao primciroponto (sobre oqual conviria alongar-sc)creio quc podemos utilizar uma preciosaobservado de ThomasKuhn: quando os adeptosdo método baconiano: como Boyle eI-Iooke, tentam cfcl.uar experimentos, raramente procuram demonstrar aquilo que j:í é conhecido ou determinar um pormenorquc é requerido por uma tcoria. Procuram ver como sc comportaa naturczacm circunst<1nciasnão observadasanteriormente ouantcriormcnl.e incxistcntcs. A naturcza~ interrogadaem condicõesa quc da jamais chcgaria sem a intcrvenl,';iodo homem: os hon;ensquc, por cxemplo, colocavampequenos animais, sementes dc
plantas ou e1cmcntosquímicos no v:ícuo criado por uma bombapncum;ítica, inscriam-seplenamente nesta tradido. s
Relativamenteao segundo ponto (e limita;ldo-sesempre úsciências 'baconianas') convt'm não esqueceruma afirmaçãoquc,para os modcrnos, ~ de import;lncia decisiva:'H elius e.H lWtltrmll
secare quam abstmhere , é melhor seccionar a natureza nas partcs
66. Zabardla (1607) 550D.
67. [hid., 340A.68. Kuhn (1977),p. 43 S5.
que a constituem do que dissolvê-Iaem abstrações.Os fcnõmenoscom os quais a experiêncianos põe em contacto através da visl.anão são 'rcais': são o resultadode atividades ede processosque sedesenvolvem num nível microscópico inacessívelaos sentidosquando cstes não são auxiliadospor instrumcntos. O conceitobaconiano de uma 'singular sutileza da natureza'( exquisita subtili·taS Tlawrae') é solidamente ligado aoda sua dissccação.69 Configurações e mudanças das configural,'õesdos corpos são / TOCeSSOs
l(l(entes que ' cm sua maioria escapam aossentidos' e s:io 'desconhecidos e i ncxplorados pelas ciências atuais'. Oconhecimentodesses processosrequcr uma anatomia dos corpos: atémesmodaquelcs que parccem dc cstrutura uniforme.Tal anatomia édiversa daquela que ( aplicada aoscorpos org;\nicos, porque évoltada para objetosque n:io aparecemü vista enão s:io objctodossentidos.70
Por isso, asformas construídas por aquelesque abstraem e n;ioseccionamn:io passam dcf i < . . \ ~ õ c sdo espíritohuman0 ; por isso, ocaminho dc Demócrito é prefcrível ao de Aristóteles.Mas o pontoa sublinhar é outro: as obselva\'ões e as experii nciasque sãoimportantes e dccisivas para a ciência da natureza e para ocontroleda naturcza desenvolvcm-se c efetuam-senUIll plano que n:io é oda experiênciaquotidiana e das coisas visíwisao olhar.
Paraconcluir sobre este ponto, a experiênciade Zabarella edosaristotdicos (ao contr;írioda dos modernos): I. n;io são construídasa fimde vcrificarou invalidar teorias; 2. sãoext raídasda observacio
da naturezano scu cstado espont;\nco e não da naturezam o l e ~ t a -
da'; rccorrcm a coisasou cntidades visíveis c a observacões atinentCS;l vidaquotidiana. S:ioexem/llose illlstraç()('s de tcori;;s. N;iotêmquase nada a vcr com os experimentos e as e x p e r i i ~ n c i a sda c i ( ~ n c i a
cxperimental.
69. R C5 (1980),p. 566 55.
70. Bacon(1975),p. 645 55.
71. [bid., p. 567.72. [hi< .
44 PAOLOROSSI
A invencibilidade do método
A CIi:NCIA E A FILOSOFIA DOS MODERNOS 145
Quando se compreende realmente o que Aristóteles disse, com
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A invencibilidade do método
frente a esses exemplos e essas ilustraçôes, a pesquisa não secoloca como desafio e interrogação, mas tende a diluir-se no
descobrimento de casos que confirmam a teoria. Quanto maisnumerosos sejam os casos e as pesquisas particulares aos quais ateoria se aplica globalmente, mais a teoria se reforça e se torna
invencível. Mas casos particulares e causas particulares são definíveis e interpret:íveis apenas e sempre : t luz de uma teoria global eabrangente. Quando isso não ocorre, como no caso da medicina,afirma-se que não existe cil ncia, mas apenas uma pr;ítica incerta econfusa operada por pessoas que não conhecem nem os métodos,
nem os fundamentos do saber, nem a estrutura da cil:ncia. Ospreceitos do mdodo e a estrutura do saber tinham sido, desde oinício, teorizados como invencíveis.
Para Zabarella e para os aristotl licos, esta invencibilidade n.io
é uma esperança, não é algo que pertclH:a ao futuro da ciência. Elaj;\ est:í presente, ou melhor: est;í presentc porque á e . ~ t ( 1 ( ~presente.Trata-se de esclarecê-la, explic;í-la, dcfendl -la dos ataques dos
adversúrios, proteg{:-la das interprctal:ôes injustificadas, impedir
desvios perigosos. O horizonte do saber coincide realmente (como
foi dito) com os textos de Aristóteles e de Averróis. Dentro dessehorizonte, l ~ possível certamente acrescentar dados. Aristótelesjamais escreveUUl11 tratado De hominis risinilitm(- ou De hinnibi/iw[(aequi mas dos fundamentos que lançou 'pode derivar o conheci
mento até das coisas das quais jamais se ocupou .73 Imperfeita doponto de vista da matéria das coisas consideradas, a ciênciaaristotélica ~ considerada perfeita quanto ;\ f orma, ii fábrica ao
artifício.7 4 Pode-se dizer de Aristóteles o que se diz dos livros de
Euclides: existem teoremas que Euclides nunc\ demonst rou, masa sua demonst ral:ão podení ser ext raída des ses mesmos livros. 7
73. Zaoarclla (1607) 131 F, 132 i\
74. lbid. 131C.75. lbid. 132 A.
preende-se realmente o próprio mundo. 76 O método e a lógica sãoprodutos artificiais, a filosofia natural tem uma estrutura artificiosa.Mas do ponto de vista do artifício, da {;íbrica e da forma, a IJerfeiçãoá foi atingida. O saber científico não é semelhante a uma explora
ção de novos continentes, não tem necessidade de novas regras.Consiste na aplicação de regras codificadas.
o radicalismo dos modernos
Só a seriedade, a força e, ao mesmo tempo, a extraordinúriasutileza com que estas id(;ias foram defendidas por Zabarella e pelosexpoentes do aristotelismo, só a irritante mas f:\scinante densidade
da sua vis;io do mundo, podem explicar o radicalismo, que pareceàs vezes desconcertante, das tomadas de posi,::io antiaristotdica
presentes nos modernos.Referindo-se ao Evangel ho de S ão Jo;io 5,43, Bacon aproxima,
num texto publicado em 1608, a figura de Aristóteles à do
Anticristo. Serú seguido aquele que usurpa para si próprio aautoridade e vem em seu próprio nome: Se h:í alguém que em
filosofia veio em seu próprio nome, este alglll;m l: Aristóteles C.
que desprezou de tal modo a AntigCtidade que só se dignou anomear alguém dentre os antigos apenas para rcfutú-lo e insultálo. Como o seu discípulo Alexandre que subjugou todas asnações, Ari.stótcles destruiu a variedade grega das opiniões e dasfilosofias. E igual a um príncipe da estirpe dos otomanos, que
pensavam não poder reinar sem antes assassinar todos os seusirmãos. 77
Não pretendo deter-me sobre este tema, que ( obsoleto, que
foi, de certo modo, esgotado por ta lItos positivistas que ident ifi-
caram Revoluç:io Científica com alltiaristotdismo. N:io se trata
76. Sclllnitt (1969), l. 126.
77. I3acon (1975) , l. 415, 226, 233.
146 PAOLOROSSI
disso. Essa recusa é uma defesa da variedade e do aspecto não
A CIÊNCIA E A HLOSOFlADOS },IODERNOS 147
Nessas instituições, " i,:ões e exercícios süo ministrados de tal
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pdefinitivo das filosofias, indica uma imagem diversa do saber e da
ciência. Aquilo que a muitos parecia um 1w : rito parece agora uma
culpa: Aristóteles pronuncia-se sobre qualquer coisa e resolve asquestões 'de modo a que tudo pareça claro e definitivo'. Estejustamente é o aspecto mais negativo da sua filosofia e ~ muito
grave que, por obra de seus discípulos e sucessores, esse modo'esteja ai nda em uso'. 8
A ordelll interessa apena s ü clareza da exposilJio, mas nüo atingea substilncia da ciência; o $ilogi$lIlo foi tüo vigorosalllcntc estudado
porque o homem deseja pontos dc apoio e ,k repouso est:ívcis paraa alma e leme qualquer oscila(:üo da lIH'nte; a opiniüo de uma
uniformidade de método na multiplicidade das disciplinas nüo só éfrágil, mas reduziu o saber a vazias g l H'rali,lades e most rou só oinvólucro da ciência, j:í que o núcleo foi eliminado por causa da
pressão e da violência exercida pelo ml'todo ; qucm ama a ci0ncia
já codificada tende mais : \ satis(;\,'üO do espírito que ; \ busca donovo e tem mais medo da dúvida que do erro: entüo, a vaidadeimpede quem fala de revelar a própria f r : \ ( l U ~ Z ae a pregui,'a impede
quem ouve de revelar a própria fon:a". As ci0ncias 'ostentam aforma e a p r t ~ n c ida plenitude', e s:\o translllitidas com talmétodo e tais divisões que bzem pensar que tudo o que pode ser
dilO sobre aquele assunto pode estar contido e esgotado naquele
tratamento . O erro dos aristotdicos t o de fixar e tornar eternos
os problemas que Aristóteles suscitou. Por isso, eles transmitem a
ciência 'ministralldo simultaneamente os problemas e as suassoluções'. Esta é a tarefa dos professores, não dos inventores de
coisas novas. Aqllele saber 'completo', que torna fixos os problemas e que ministra simultancamentc os pr oblemas e sllas s o l l l l . ~ õ e s ,
encarnou-se nas institui,'ôes e é típico das universidades. Nas
academias e nos cokgios, 'entllsiasmo e não-conformismo constituem obstüculos n;io peqllenos a lima boa carreira'; qllem levantaproblemas 'será acusado de turbul0ncia e de avidez por novidades'.
78 Ibid., p. 579.
modo que dificilmente passaria pela cal)(\-a de alguém pensar algode insólito". Mas a 'triste autoridade' dos mestres nüo conseguiráimpedir 'as alegres tentativas de novas descobertas'. 79
O 1l11.. todo que Bacon defende, as suas ' fórmulas de pesquisa'não têm a pretensão a um valor necessúrio: os elaboradores de
métodos têm a função de guias não de juízes. A tentativa do Not1um
organum de estabelecer fundamentos mais sólidos para o conhecimento e para o poder não t a proposta de 'uma teoria universal ecompleta': 'nüo atribuamos a esta arte ncm uma necessidadeabsoluta, nem a perfeiç;io'. A arte da inWll(:üo só pode realmente
r l -apenelt:oar-se com o progresso ( as propnas InVe11l:oes e a arteda descoberta desenvolvc-se com o aumcnto das próprias descobertas". Não é por acaso que, dest,' ponto Je vista, os médicostrabalharam melhor que os filósofos. Ao invl's de aderir ü opinião
'de que existem na natureza formas prilll:írias que a própria
natureza esforça-se para realizar', dedicaram-se com mais proveitoà observal::\o das qualidades seculld.írias das coisas e ;\s suasoperações, estudando 'a atral::\O, a repuls:\o, a condellsaç:'io, adilataçüo, a desagregat:üo e a matural::\0'.80
O que espallta em Bacon é a fon:a polt'llIica contra um saber
entendido como construç;io de teorias invioLíveis e globais, incapazes de confrontar-se com a experiência, que resolvem todos os
problemas c conseguem eliminar todas as dúvidas. A imagem da
filosofia como fonte de certezas illabal:íwis, como meio de resistência üs mudant:as, nas p:ígillas dos moJernos, nüo é apcnas
atacada e recusada, mas analisada nas suas raízes, nas suas motivaçôes psicológicas, nos seus reflexos sobre a cllltura e sobre asociedade.
Uma vez estabelecida a ciência" - lemos ainda num texto de
1608, sobre o qual voltaremos no capítulo 6 - se surgia algumac o n t r o v ( ~ r s i aem torno de algum exemplo que estava em contradi-
79. Ibi, ., p, 231, 236, 276 sS., 274, 368,372.80. Ihid., p. 421,621,627, 400, 637,577.
48 PAOLOROSSl
ção com a sua teoria,não corrigiam a teoria,mas a mantinham
A CIENC A E A FILOSOFIA DOS MO ERNOS 49
cm fixar de imediato princípios gClleralíssimos: para sublraí-losài à íli à di ã í i
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firme e, servindo-sede alguma sutil e sapiente disti1H;ão,acolhiam
no sistema aqueles ex cmplosque convinham ao seu escopo,ou
então (já quc, afinalde contas,não eram filósofos assimtão maus)deixavam-nosabertamente de lado como exceções. Estemodo de
proceder é um mal 'que se insinua sutilmente na filosofia enas
ciências'.À força de distinções, recusa-setudo aquilo que está em
desacordo com uma determinada concept,'ão.Por isso, justamentc,
aquele aquem mostravamquadros pendurados num templo,como
promessas de pessoas salvasde um naufrúgio, perguntavaondeestavamos retratos daquelesque, mesmo tendo feito apromessa,
também estavam mortos.SI
Nas p;iginas de muitosmodernos, a cif'nciados aristotdieos
tornou-se osímbolo e a enGlrnat, ;io históricade UIII saber que não
tem c o n d i ~ õ e sde interrogar a natureza, lIIasque interroga só a sipróprio e,;is suas perguntas, fornece Sl'lIIpn' respostas satis(;ltórias.Nesse palco, sóh;í cspat,'o para dois perSOI\;\gens: o professor e odiscípulo,não hú e s p a < ~ opara o personagellldo inventor. Estasolidcz c esta densidade, para muitos,~ apenas aparente.Por trásdessa segurança escondia-se o telllordo novo: Tudo o que a elespróprios e as seus mestres parecedesconhecido e inexplorado, elescolocam forados limites do possível e dl'claralll illlpossíveldeconhecer-se ede realizar-se. 82
Paraos pais fundadores da nova ciência, esta n;io seapresenta
como uma aprazívelmorada intelectualque dê a garantiade regrasnão modificíveis. Por causa da imensa variedadedos temasdentro
dos quais ela se move , a ciência( l'lIItudo sl'melhante;'t Esfinge,que é um monstro multiforme eque 1:lz pergulltas inquietantes. AEsfinge é fonte de perturbat, ôes, lIIas os hOlllells,como no lIIitode Atlasque carr<'ga oCeú nas costas, queriaII ter pertode si um
Adas das medita<;'ôcsguiando as t1utual:ôcsdo seu intelecto, a fimde que o CÓI n;lo desabesobre eles . Por isso, eles apressam-se
81. lhid., ( . 434,632,5(, 3.82 lbid p. 3(,8, 522, 586sS., 431.
pesquisa,à crílica,à discussão.Queriam que a crítica se exercesseapenas sobre as proposições illtermediárias, sem jamais colocarem
discussão a estrutura inteirado edifíciodo saber.83
Se é verdadeque a ciência éum monstro multiforme e que aarteda descoberta só progridecom o aumellto das descobertas; seé verdadeque a Natureza éuma selva eumlabirinlo e que o método
só oferece para elaum tênue fio; se é verdadeque o conhecimentobaseado na natureza' tem nascelltes e fontes perenclIH'nte novas
• . • J Jcomo as aguas vivas eque nas artes e naseH nCtaS tuoo neveressoarem novasobras e em novos progressoscomo nas minas
de metal ,84então é precisocorrer o riscode viver sem oconforto
de Atlas e enfrentar o sempre possíveldesabamento do céu dasmeditaçôes precisoabandollar a imagemde um {Iber hi/)cr-inclllSit'ono qual não se dão hipóteses, mas só eertezas.8
Essa imagemdo saber ( sólida e muito antiga, estú ligadaà
própria naturczado homem e nasce da 'lIatureza peculiardo seuintelccto'. Est:í ligada a convin/K's, telllores, elllot,'õesque seinsinuaram na lIl<'nte de maneira lliio cont rolúvd .Por isso, afilosofia novapode realmente parecer a seusfundadores semc-
lhante a um abril ou uma primaveraqUl pode dissolver o gelo eabrir a estreiteza dasmentes . Por isso, o ingressono reino danatureza éapresentado como semelhante ao ingressono Reinodos
Céus, ao qualnão se pode aceder sem voltar a ser criaIH:a.86
Oportunismo sem escrúpulos
No que diz respeito a Galileu, creioque Charles Schmitt temrazão quando afirma que niio tem muito selltido perguntar seGalileu erafundamelltalmente platónico,um adepto do mdodo
83. lbid., p. 503; Bacon (1857-92),v. 3, p. 392 SS.
84. Bacon (1975),p. 430, 373.85. Rossi M011li(1984).86. Bacon (1975),p. 432, 397.
150 PAOLOROS:-I
aristotélico,um discípulode Arquimedes, ou um engenheiro que
PA CIÊNCIA E A rILOSOFIA DOS MODERNOS 151
de alguma novidade(. .. ) Se acaso lhes parece frieza censunivelnumestudioso das causas naturais estar vezes d id d e lhes
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conseguia generalizar experiências específicas e concretas.8 Paracada uma dessas tradições, Galileu teveuma dívida profunda: suavisão do Universo como uma entidade matematicamente estruturada estü certamente ligada ao platonismo; a distinçilo entre111(,todocompositivo e resolutivo tem aver Cerl'lll1entecom o aristotelismo;a aplicaçãoda análise matem:ítica aosproblemas da física derivacertamente do 'divino' Arquimedes; sua constrtlt:ão e ouso da
luneta, sua valorizaçãodos instnlll\l'ntos e das artes mec:1nicasestão certamente ligados ú tradi(:.lo e aotrabalho dos 'artesãos
su periores' do Renasci ment o.Como procurei dcmon st r:l r no
capítulo anterior, de não hesitou elll reft'rir-se ú metafísica da luzdo PseudoDionísio e ú tr:ldit:ão I l l n l l ~ ~ t i c o - f i c i n i a n aquando, por
um breveperíodo de sua vida,adent I"OU no terreno escorregadio edifícil da exegese bíblica,tentando (;Izer-se COIIH'ntaristaou inkr-pretedas Escrituras, paramostrar que nelas est.locontidas algumas
das verdadesdo sistemacopcmicano.Ao lado das certczas metafísicassobre acstrutura harmoniosa
e matemúticado Universo, ao lado daobstinada cOllvin:ãode que
a ciência pode dizer algo 'sobre a constituit:.lo das partesdo
Universo in rerul l llfltura , est.i prescnte elllCalileu a polêmicacontra a vã presunç.lode entender o todo', que ' n.lo pode haverprincípio a n.io ser ode jalllais terentendido nada', e a firmeconvi«;ão deque não existe efeito algum na natureza,por mínillloque seja, a cuja cognição totalpossam chegar os mais especulativosengenhos . Galileu n.ioeSl<i apenas cOllvencidode que l, temeridade querer tornar o nosso debilíssimo discurso juiz dasobras de
Deus ; d e contrapõe as dúvidas e as incertezas da1I0va ci(;nciaús
pretensas completitudes e-IS anligas 'firmezas': "Pan'ce-lIIeC )sertal a condit:iiohumana acerca das coisas intelectuais,que quanto
menos alguémentende c sabe, lIIais \'solutaIlH'nte queira discorrersobre elas; eque, ao contf<Írio, a lIIultiplicidadedas coisas conhecidas eentendidas torne lIIais lento e irresoluto selltenciar acerca
87. ScllIllill(1969),p. 128 ss.
estudioso das causas naturais estar< Is vezes duvidando, e lhesagradasse maisuma ousada reso tlt:iiopda qual jamais se duvidassede nada, podem muito bem acusar disso osenhor Galileu, que
lhes confessaráabertamente estar por meses eanos indecisosobre
um problema natural e totalmentesem esperança de chegar àciênciade infinitos outroS."88
A Revolução Científica niio consistiucertamente na substituicãodo aristotelismo pelo platonislllo. Galilcuutilizou, sem dúvida,~ l m n t o simportanles da metodologia dosa r i s t o t ~ , l i c o s ,mas uma
coisa (ao contrúr iodos a r i s l O t ~ , l i c o s )cito j:\lllais aceitou: a existênciade uma metodologia capazde ditar de ullla vez parasempre asnormas que devem scr seguidas e as regrasque não devem servioladas.Cada uma das tradi,:ôes elllque se inspirou ditavanormas
e impunha proibi\'ôesque tinham um alcance - simultancamcnte
_ ontológico e metodológico: diziamCOlHO se deveestudar o IIlllndoe, ao mesmo tempo, () que é o nllllHlo. Mas (;Izercmergir o novo
significasubstituirwlhos mapas geogrMicospor mapas gcogrMicosnovos. Estes últimos (;llam, obviamellle,do Il\l'smo 1Il1mdo, mas,do mundo, dizem coisas diversas.Os velhos mapas est.lo sempre,por assim dizer, absorvidosdl..'nl ro dos novos, llIas as rda,'ôesentreos elementos configuram-sede modo irrelllediavelmente diverso.
Mapas novos sãoconstruídos muito rar:\lllenle.Mas quem os
constróiem geralniio teme utilizar fonl(';; diversas e mover-secom
desenvoltura entre regras e proibi(:ôes codificadas h.itempos.
freqiientemente, essa desenvoltura pareceaos contcmporflncoscoisa pouco sériaou inadmissível ou silllplcsll\('nte proterva. Est:íligada ao falO de que seu defensor eSI;1 cOIbIruindo regras novas,estú dando vida a algoquc {lillil{l wio (\ mas virá l ser uma novatradi(;ão científica.No processo laborioso da consl nl,'iio,os inovadores manifestam,em geral, pouco n'speito pelotrabalho dos
construtores de epistemologias. N.lo estiio dispostos,COIllO escreveu neste sl,ctIlo Albert Einstein,'a aceitar condit:ôesdemasiado
88. Galilei (1890.1 (09),v. 7, p. 127,195,279 S'.; \ ' .4,1' .5(,4 S5.
52 PAOLOROSSl
restritivas', baseadasna autoridade dc um sistema epistemológicoe aos olhos dos filósofos acabam inevitavelmcnteparecendo
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e, aos olhos dos filósofos, acabam inevitavelmcnteparecendo
oportunistas sem escrúpulos 89 Galileu também o sabia muito
bem: Parece-meque a lógicaensina a conhecer se os discursos eas demonstrações já [citas e descobcrtas avan\',Ul1concludcntcmen-
te; mas que ela ensine a descobrir os discursos e asdemonstrações
concludentes, isso realmenteeu não crcio, 90
89. Einstein (1979),p. 228.
90. Galilci (1890-1909),v. 8, >. 175.
SEXTO CAPíTULO
BACON E GALILEU:OS VENTOS, AS MARÉS,
AS I-IlPÓTESESDA ASTRONOMIA