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[ o grande sonho ] O ônibus o deixou na esquina. Apesar da ansiedade, seguia o conselho do pai: caminhava lentamente, olhando para o curso do rio que cortava a cidade, pensando em cada um dos grandes sonhos de sua vida. Tinha-os na medida dos que se têm aos dez anos e se mora em uma reserva indígena duma cidade do interior: poucos e precisos. Chegou à escolinha bem antes do horário marcado, como sempre fazia. Os companheiros de equipe apareciam aos poucos. O treinador misturava instruções a palavras de motivação enquanto contava e recontava infinitamente seus jogadores. Com todos ali, abraçaram-se, gritaram seu grito de guerra e entraram em campo. Foi um jogo duro. O equilíbrio entre os times só era quebrado por raras falhas individuais e lances extraordinários ou – nisto havia alguma unanimidade – por equívocos da arbitragem. Venceram, apesar de tudo, e sagraram-se campeões regionais de forma invicta. Ele não levou um único gol; era já uma lenda mirim em Xanxerê, uma inegável promessa para o futuro do esporte local. Com o título, veio o prêmio que era o grande sonho de quase todos do grupo: participar das finais estaduais na capital. Em um mês, estavam lá. * Por conta de um grave acidente na estrada, a viagem levou mais que o dobro do tempo. Foi por isso que, dormindo, perderam a bela imagem da ponte iluminada quando chegaram a Florianópolis. No dia seguinte, entraram no ônibus e foram ao local dos jogos. No caminho, pediu ao motorista, em tom de desespero, que parasse. Desceu, atravessou a rua e correu para a praia. Em todo o curto trajeto, esforçou-se para não olhar para frente. Ao perceber que a água estava próxima, parou e fechou os olhos. Respirou o mais fundo que pode e deixou a maresia invadir os pulmões. Aos poucos, foi deixando as pálpebras se separarem, o pescoço se elevar e o coração explodir. O azul infinito, acima e abaixo; a alvura da espuma encharcando os tênis; a sensação de que o chão se movia com a maré. Como uma bolada na cara, vieram- lhe à mente todas as vezes em que pensou em desistir do futebol por ser grande e desengonçado, as piadas sobre a escolha da

O Grande Sonho

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Um conto de Sandro Brincher

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Page 1: O Grande Sonho

[ o grande sonho ]

O ônibus o deixou na esquina. Apesar da ansiedade, seguia o conselho do pai: caminhava lentamente, olhando para o curso do rio que cortava a cidade, pensando em cada um dos grandes sonhos de sua vida. Tinha-os na medida dos que se têm aos dez anos e se mora em uma reserva indígena duma cidade do interior: poucos e precisos.Chegou à escolinha bem antes do horário marcado, como sempre fazia. Os companheiros de equipe apareciam aos poucos. O treinador misturava instruções a palavras de motivação enquanto contava e recontava infinitamente seus jogadores. Com todos ali, abraçaram-se, gritaram seu grito de guerra e entraram em campo.Foi um jogo duro. O equilíbrio entre os times só era quebrado por raras falhas individuais e lances extraordinários ou – nisto havia alguma unanimidade – por equívocos da arbitragem. Venceram, apesar de tudo, e sagraram-se campeões regionais de forma invicta. Ele não levou um único gol; era já uma lenda mirim em Xanxerê, uma inegável promessa para o futuro do esporte local. Com o título, veio o prêmio que era o grande sonho de quase todos do grupo: participar das finais estaduais na capital. Em um mês, estavam lá.

*

Por conta de um grave acidente na estrada, a viagem levou mais que o dobro do tempo. Foi por isso que, dormindo, perderam a bela imagem da ponte iluminada quando chegaram a Florianópolis. No dia seguinte, entraram no ônibus e foram ao local dos jogos. No caminho, pediu ao motorista, em tom de desespero, que parasse. Desceu, atravessou a rua e correu para a praia. Em todo o curto trajeto, esforçou-se para não olhar para frente. Ao perceber que a água estava próxima, parou e fechou os olhos. Respirou o mais fundo que pode e deixou a maresia invadir os pulmões. Aos poucos, foi deixando as pálpebras se separarem, o pescoço se elevar e o coração explodir. O azul infinito, acima e abaixo; a alvura da espuma encharcando os tênis; a sensação de que o chão se movia com a maré. Como uma bolada na cara, vieram-lhe à mente todas as vezes em que pensou em desistir do futebol por ser grande e desengonçado, as piadas sobre a escolha da posição ser motivada pela incompetência com a redonda nos pés, as pedradas que tomou ao tapar o gol em jogos ironicamente chamados de amistosos. Deixou-se cair de joelhos, fez uma concha com as mãos, juntou um pouco de água e levou à boca. Era verdade, o pai não mentira: “salgada que nem charque”. As lágrimas deram lugar a gargalhadas. Rolava na areia, deixava as ondas baterem, afogava-se, engolia a salmoura sagrada e gargalhava. As pessoas passavam e achavam graça também. Os colegas gritavam do ônibus “Tá loco esse piá, hahaha”.... “Vamo, Índio, jogue a lança que aí deve ter peixe, hein?”. A nada fez caso. 

Quando o ônibus partiu, e depois de aguentar o arsenal de gracejos que a maldosa criatividade dos amigos disparou, lembrou-se de um poema que a professora de Literatura leu em sala. Dizia algo sobre a alma não ser pequena e fazia uma pergunta sobre quanto do sal do mar eram lágrimas de Portugal. Abraçou mentalmente a professora e sorriu ao pensar que os portugueses já não podiam mais se gabarem sozinhos dessa façanha.

Page 2: O Grande Sonho

Fernando Pessoa

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.

Quem quer passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele é que espelhou o céu.

PESSOA, Fernando. Mensagem. 10ª ed. Lisboa: Ática, 1972.