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O FIO DO MACHADO
Marcos Pasche
Resumo: Machado de Assis foi constantemente tachado de escritor alienado ou de insensível aos problemas sociais mais impactantes de sua época, dentre os quais a escravidão. Isso se explica, de acordo com a melhor crítica que se debruçou sobre o autor de Dom Casmurro, porque ele soube tratar de problemas humanos com grande refinamento artístico, afastando de suas obras o tom panfletário que geralmente se espera de um discurso dotado de consciência crítica. Assim sendo, este trabalho pretende analisar de que forma a opressão aparece na obra de Machado de Assis, fundamentalmente no conto "Pai contra mãe", mostrando de que maneira as relações de poder eram pensadas em sua obra. Para tal, dialogaremos com os textos de Brás Cubas em três versões, de Alfredo Bosi, e Machado de Assis: historiador, de Sidney Chalhoub. Palavras-chave: Machado de Assis; escravidão; poder; História
1
Quem leu alguns trabalhos sobre a obra de Machado de Assis já deve ter se
deparado com algum comentário, seja uma reafirmação ou uma contestação,
fundamentado na idéia de que ele foi um literato alienado, típico intelectual elitista
insensível aos problemas comuns de sua época, em especial ao sistema escravocrata,
vigente durante a maior parte de sua vida.
Tal idéia, naturalmente polêmica, teve grande repercussão ao longo da história
de nossa crítica, bastando, para que isso seja percebido, lembrar que ela foi cunhada por
Sílvio Romero no século XIX, e endossada, ressalvadas as peculiaridades de cada
abordagem, por Mário de Andrade, então na primeira metade do século XX.
Observando todo o prestígio de que goza a obra de Machado, tanto dentro
quanto fora das universidades (e também dentro e fora do Brasil), pode-se supor que a
hipótese de ter sido ele um escritor refratário às dores humanas, em especial as causadas
pelo vírus das finanças, está ultrapassada já há algum tempo e que não se sustentaria
após os famosos estudos do crítico-sociólogo Roberto Schwarz – Um mestre na
periferia do capitalismo -, e do sociólogo-crítico Raymundo Faoro – Machado de Assis.
A pirâmide e o trapézio, para falar de apenas dois entre os que mais se destacam.
Mas tal suposição cai por terra quando vemos (dentre tantas outras
possibilidades, visto que nada parece ser consensual entre os humanos) o artigo “Dom
Casmurro, obra-prima de um gênio? Não e não!”, do escritor paranaense Domingos
Pellegrini.1 O texto, de título revelador, pauta-se na tese de que o romance em questão é
um exemplo de falta de ética, visto ser protagonizado por um personagem sem caráter
que é Bentinho, e escrito por um homem antiético e frustrado que foi o autor de Quincas
Borba.
Professores, pais e cidadãos de bom senso: vossos filhos não perdem nada
se não lerem Dom Casmurro e [Memórias póstumas de] Brás Cubas. Se
ética é o que mais falta em nossa civilização, falta de ética é o que sobra
nesses dois romances. E não venham dizer que Machado pretendeu nos
oferecer um retrato crítico da sociedade de seu tempo através de seus
protagonistas dândis e eticamente monstruosos. Ao contrário, o que parece
oferecer claramente é uma visão do homem que ele mesmo gostaria de ter
sido, se não tivesse nascido mulato e pobre. (Pellegrini, 2005, p. 3)
O fato de uma pessoa produzir literatura e ser formada em Letras, como é o caso
de Pellegrini, não a torna necessariamente especialista (na boa acepção do termo) em
seu ramo de trabalho, e muito menos faz com que obrigatoriamente sua opinião esteja
afinada com alguns pensamentos solidificados em seu meio. Mas é inevitável que dela
esperemos apontamentos mais embasados e livres dos reducionismos geralmente
encontráveis entre o senso comum.
Por toda a extensão de “Dom Casmurro, obra-prima de um gênio? Não e não!”
perpetuam-se as observações que visam demonstrar a relação espelhar entre Bentinho e
Machado de Assis, como se a fraqueza e a personalidade aparentemente rasa do
primeiro fossem a extensão direta da pequenez humana do segundo. O próprio
articulista afirma que “em Dom Casmurro autor e personagem parecem se fundir em
simpatia e empatia perfeitas”.2
1 Publicado no caderno literário curitibano Rascunho, nº 68, de dezembro de 2005. 2 Idem.
Não pretendemos fazer uma defesa irrestrita da obra de Machado de Assis, como
foi prática freqüente em tempos anteriores, justamente porque uma importante lição que
a arte nos dá é conviver com a particularidade alheia, respeitando-lhe dignamente o
direito à diferença.
Só que, impulsionados pela esperança de que nossas reflexões possam
acrescentar algo de positivo para a compreensão da Literatura e, especificamente, da
prosa ficcional de Machado de Assis, cremos haver outra hipótese de interpretação
dessa obra em relação aos aspectos ligados à reflexão de âmbito social, precisamente os
derivados mais diretamente das diferenças de classe.
O que Domingos Pellegrini não considerou é que a fraqueza afigura-se uma das
mais fortes características humanas, sendo assim, Dom Casmurro fica pleno de
humanidade ao trazer em suas páginas um personagem cheio de indefinições, tolices,
medos, ingenuidades e pieguices em geral, e o valor da obra multiplica-se se nos
lembrarmos que ela surgiu quando a literatura romântica ainda vigorava. Acreditar que
o protagonista de romance não pode apresentar características que não se encaixam nos
homens “paradigmáticos” (no artigo o autor se vale do termo “herói” para fazer
referência a Bentinho), é partilhar desses ideais românticos, de acordo com os quais os
que se notabilizam estão sempre distanciados dos problemas que afligem os simples
mortais.
Um outro aspecto em que se percebe alguma confusão é o que manifesta o
pensamento de que grandes obras só podem ser feitas por pessoas de conduta infalível.
Ao nos dar a entender que os dois badalados romances são exemplos de falta de valores
porque estes também faltavam àquele que os escreveu, o autor paranaense não considera
que (e isso sem entrarmos no mérito da biografia de Machado de Assis), caso seja
válida esta sua tese, a grande literatura só seria feita por homens beatificáveis, critério
suscitador de desconfianças e refutações, além de exemplificar grande sintonia com uma
mundividência idealizada, o que se acentua quando não se considera a singularidade da
criação artística, a partir da qual aquilo que é criado tem vida própria, e não funciona
como uma servil marionete da ideologia do criador.
Além, o ensaio de Pellegrini se serve da concepção, muito prezada pelos
intelectuais de esquerda, de que uma obra com consciência crítica é aquela que “toca
diretamente na ferida”, voltando seu enfoque central para as urgências do povo pobre e
desassistido. Não é à toa que para ilustrar a ausência de crítica, de visão humanista e de
reflexão sobre o mundo do trabalho na obra machadiana, ele recorre a uma comparação
com São Bernardo, de Graciliano Ramos, apontando este como um livro exemplar em
detrimento de Dom Casmurro.
A nosso ver, a prosa literária de Machado de Assis em nada comporta tais
aspectos, sobretudo a alienação e ausência de consciência crítica no que tange a todas as
mazelas derivadas das distinções de classe e dos moldes que podem assumir as relações
humanas se estiverem intermediadas pelo dinheiro. E justamente para dar a ver como
isso se perpetua pela sua obra, e não em ditas “fases” (ou mesmo em gêneros) da
mesma, valer-nos-emos de textos supostamente distantes, como Memórias póstumas de
Brás Cubas, como dizem os manuais, inaugurador do Realismo brasileiro; Helena, que
na mesma esteira é um romance romântico; e fundamentalmente “Pai contra mãe”,
conto publicado em 1905, quando o seu autor já estava consagrado.
2
Comecemos com um famoso capítulo de Memórias póstumas, nomeado “O
vergalho”. Nele, nos é retratado um episódio em que Brás Cubas caminha pelas
proximidades do Valongo, quando se depara com uma cena chamativa: um negro açoita
outro negro com um chicote, e com ofensas gritadas (“Toma, diabo!”; “Cala a boca,
besta!”). Para a surpresa de Cubas, o algoz é um ex-escravo de sua família, o “seu
moleque” Prudêncio.
Ao se aproximar para falar com Prudêncio, Brás Cubas pergunta se o agredido
pertence ao agressor, e o que aquele havia feito para merecer as vergalhadas que lhe
eram dadas. “É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,
enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber”,
explica.3
Ouvindo a explicação, o antigo senhor pediu a sua antiga “propriedade” que
liberasse aquele infeliz da surra aplicada, no que é atendido prontamente: “Nhonhô
3 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. p. 170.
manda, não pede”, afirma Prudêncio.4 Brás Cubas então retoma a caminhada e tenta dar
prosseguimento às reflexões que vinham sendo feitas antes de sua parada, só que a cena
do açoite permanece-lhe na mente, o que lhe ocasiona o seguinte pensar:
Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente.
Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato,
fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das
pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o,
punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e
sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das
pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição,
agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com
alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
(Assis, 2001, p. 170)
A ruminação de Brás Cubas, apesar de seu tom chistoso e aparentemente raso,
toca no cerne da escravidão, que não é o seu aspecto institucional ou o seu
estabelecimento étnico, e sim o seu conteúdo absolutamente humano, a necessidade que
os homens têm de subjugar e explorar a tudo e a todos em busca da satisfação de suas
ganâncias.
O raciocínio, “só exteriormente torvo”, vê a escravidão para além das bases
comuns em que era discutida naquele tempo. Ao contrário do que se poderia atribuir a
um autor despolitizado, este pequeno fragmento mostra que Machado de Assis, mais
que realista, soube cuidar do tema sem reduzi-lo aos esquematismos dicotômicos que
punham de um lado os brancos opressores e de outro os negros oprimidos; em uma
parte os senhores ricos e de boas famílias da casa-grande, e na outra os miseráveis
indigentes das senzalas; em suma, a velha peleja entre os antípodas bem e mal.
Mas Brás Cubas e Brás Cubas vão mais dentro, no “miolo”, ilustrando com a
brilhante cena que a arrogância e a maldade não possuem cor, classe ou distinção
familiar, elas são humanas, demasiadamente humanas, e, repletas da matéria da vida,
são reversíveis e paradoxais, e aí vemos um Prudêncio satisfeito por agora ocupar sua
4 Idem.
posição digna: não a de homem livre, mas a de senhor. A faca do raciocínio vai ao
miolo, que justamente por ser profundo, não é de fácil captação para os olhos...
Em outro romance, Helena, a reflexão sobre a dominação ganha outro matiz: o
seu caráter moral. Numa cena em que Helena e Estácio cavalgam e conversam, este fala
a respeito da riqueza:
— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior
felicidade da terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a
necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns
apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão
moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra até o
tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto
que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais
uma hora ou quase. (Assis, 2004, p. 37)
Neste fragmento de despretensiosa conversa entre os irmãos que então se conheciam, a meditação de Machado de Assis a respeito da subordinação vai para além das senzalas, dos troncos e dos navios negreiros, e aparece em seu âmbito moral, o que faz qualquer pessoa passível de ser escravizada, independente de cor, etnia ou origem geográfica. Não há dúvidas: aqueles que vivem em sociedade, e aceitam sua inserção em seus mecanismos, não raro são submetidos àquilo que negam, justamente pela privação de recursos, ou, quando estes existem, por temer a sua perda.
Adiante, Helena responde ao irmão:
— Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do
que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de
vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o
economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer
muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez,
esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o
cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade (Idem, ibidem).
Chega-se então a uma característica basilar da obra machadiana, a
multiperspectivação, que nos permitirá observar um mesmo fenômeno de diferentes
maneiras. A fala de Helena dá margem à formulação de outros conceitos de escravidão,
e sutilmente nos mostra que o escravizado pode experimentar a liberdade de uma
maneira desconhecida por nós, livres e libertários, que por tantas vezes nos flagramos
sufocados em indestrutíveis grilhões. Sidney Chalhoub, numa notável tese em que
analisa o livro, diz que “Machado de Assis, em vários de seus escritos, testemunhou e
analisou sistematicamente o ponto de vista do dominado – ou do dependente, ou do
subalterno, ou seja lá o que mais – em tais situações, que eram rotineiras e agudamente
perigosas ao mesmo tempo” (Chalhoub, 2003, pp. 64-5. O grifo é do autor).
Alguma leitura de má vontade, do tipo que se edifica com a sede de se dizer
aquilo que ninguém diz, pautada pela contestação febril, pode dá a entender que a fala
de Helena manifesta o pensamento senhorial, daquele que pretende conformar segundo
a idéia de que a “vida é assim” ou que os fatos se dão pela vontade de Deus ou da
natureza, mas ela própria, a natureza, é cheia de coisas que não podem ser vistas a olho
nu e num único relance, e, por outro lado, aparece o Sol, tão hiperbólico em sua
claridade, que os olhos, necessitados de alguma treva, não o podem encarar
confortavelmente, e acusam sua luz de estúpida.
3
E todas as referidas acusações que sofreu Machado de Assis são anuladas diante
do conto “Pai contra mãe”, integrante de Relíquias da casa velha, com o qual Machado
entra de sola no social. Desde os primeiros parágrafos, com forma de documento
histórico, até a observação do sistema de trabalho da época em que se situa
(aproximadamente a metade do século XIX), tudo converge para fazer dele um vigoroso
estudo sobre algumas mazelas gritantes de um país subdesenvolvido, como a escravidão
e o desemprego, mas sem prescindir do teor humano que são o barro destas.
A estória é centrada em Cândido Neves, homem de trinta anos, pobre e sem
qualquer marca de notabilização coletiva, vulnerável em suas ocupações por não
conseguir adaptar-se confortavelmente a elas, até que passa a viver de capturar escravos
fugidos, trabalho esporádico e satisfatório às suas necessidades. O grande drama deste
personagem terá desenlace quando sua esposa, a moça Clara, igualmente pobre e
igualmente biscateira, fica grávida de um menino. Notadamente sem condições
financeiras para sustentar a criança que se anunciava, Cândido é aconselhado pela tia de
Clara, a tia Mônica, “companheira de patuscadas” do casal, para que o filho, tão logo
nasça, seja entregue à Roda dos enjeitados, o que é peremptoriamente negado pelo pai,
ainda que a razão e a extremidade de sua pobreza conduzam-no intimamente a aceitar os
alvitres.
É em meio ao drama que Machado de Assis atestará a sua capacidade
polivalente de analisar a escravidão, vista no conto de maneira destacada pelo viés
institucional e político, e, noutra dimensão, o seu viés existencial, brotado no coração
dos homens.
De início, o narrador descreve alguns aparelhos extinguidos com a escravidão (a
publicação do conto data de 1905), sendo destacada a máscara da folha-de-flandres,
utilizada para impedir que os negros se embebedassem. À descrição, soma-se o
contundente parecer: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem
sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”.5
Se lermos a passagem de acordo com as proposições de Domingos Pellegrini,
anteriormente citadas, concluiremos ser o narrador (e por extensão o próprio autor)
partidário das atrocidades que eram cometidas contra os escravos, aplicadas sob o nome,
e respaldadas pelas leis em vigor, de corretivo.
No entanto (é difícil conter a virulência dos adjetivos ao tratar deste escritor), a
genialidade de Machado de Assis se verifica justamente quando é desfeita a arena do
bem e do mal, e a partir daí se enxerga com mais nitidez o quanto a barbárie é
necessária à civilização, quando tantas ações de avanço não prescindem de práticas
absolutamente arcaicas, no pior sentido da palavra. Alfredo Bosi, em Brás Cubas em
três versões: estudos machadianos, observa, sobre a passagem citada, que “a sociedade
mudava de figura, mas sempre enraizada no solo da dominação”, e acrescenta mais à
5 ASSIS, Machado de. “Pai contra mãe”. In: Contos: uma antologia. p. 483.
frente: “a afirmação parte do Brasil, mas não se restringe ao Brasil: trata-se da ‘ordem
social’, conceito aqui construído por um olhar cético transversal”.6
No conto, parágrafos adiante, tudo assumirá uma atmosfera aflitiva por conta da
chegada do rebento, cada vez mais iminente. Seja pelas costuras incessantes que Clara
faz para arcar com as despesas avolumadas, seja na surra que Cândido recebe por haver
abordado um preto livre como fugitivo, a urgência de prover meios para que a criança
não fosse enjeitada traça o panorama preciso da vida de um chefe de família sem
trabalho. E tudo sendo piorado porque o desemprego era crescente, o que aumentou a
concorrência entre os prestadores de serviços aos senhores escravocratas.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já,
como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e
hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e
numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No
próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de
Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou
quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se
fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis. (Assis,
1998, p. 483)
E nasceu o menino, e em pouquíssimo tempo veio também a entrega dos pontos.
A pobreza extrema fez com que o pai, com grande infelicidade, fosse submetido à
vexação e à dor de entregar seu filho a não se sabia quem.
No entanto, quando se dirigia à Roda, Cândido Neves viu Arminda, uma negra
fugida, cujo senhor pagava uma alta recompensa pela captura, o suficiente para que ele
pudesse manter o filho sob sua guarda. É então que, deixando a criança com um
farmacêutico, Cândido vai atrás da escrava e a captura para entregá-la ao proprietário.
A mulher desespera-se por saber que será fortemente castigada. E como estava
grávida, tentou de variadas maneiras convencer aquele que a capturava para desistir de
sua empreitada, suplicando-lhe: “Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa 6 BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. p. 129.
Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava,
vou servi-lo pelo tempo que quiser”. O pedido pode suscitar no leitor uma grande
expectativa, afinal, Arminda parecia saber que tocaria diretamente no ponto mais
delicado da sensibilidade daquele homem, e espera-se, por todos os infortúnios que
suportou para manter ao menos a idéia de poder cuidar de sua cria, que ele de fato se
apiede da fugitiva. Só que a pobreza quase sempre iguala, mas quase nunca irmana, e a
sua fala não poderia ser mais precisa - “Siga!” -, e humana – “Você é que tem culpa.
Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?”.7
Após uma turbulenta ida até à casa do senhor, Arminda, no corredor da mesma,
abortou o filho, enquanto Cândido Neves, ali, ignorando a catástrofe, recebeu sua
recompensa. Depois foi à farmácia para pegar o filho, e de lá partiu para a casa, onde
foram recebidos com alegria ele, o filho e o dinheiro.
O personagem é manifestação direta da herança do capitão-do-mato, o negro que
servia ao senhor para capturar os outros negros que buscavam se libertar. Cândido
Neves foi, num único lance, de dominado a dominador, e não consta que teve qualquer
tipo de dúvida ou remorso pela conseqüência dos seus atos. Cioso de cuidar de seus
interesses, contribuiu para a desgraça de Arminda, que perdeu o filho, foi surrada com
chibata e com palavras, e sua desdita foi a base do reconforto da família do pegador de
escravos, que assim opinou sobre o fato: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o
coração”.8
É este o fio do Machado, mais cortante, justamente por ser mais fino.
7 ASSIS, Machado de. “Pai contra mãe”. In: Contos: uma antologia. p. 493. 8 Idem, p. 494.
Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. Contos: uma antologia. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das letras, 1998. ______. Helena. São Paulo: Companhia editora nacional, 2004. ______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ateliê editorial, 2001. BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das letras, 2006. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das letras, 2003. PELLEGRINI, Domingos. “Dom Casmurro, obra-prima de um gênio? Não e não!”. Rascunho, p. 3, 2005.