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O FALSO NO MAIS PRÓXIMO SOBRE A CORRESPONDÊNCIA BENJAMIN/ADORNO* Jürgen Habermas Tradução do alemão: Luciano Gatti RESUMO Ao resenhar a Correspondência Benjamin/Adorno (1928-40), publicada em 1994, Habermas nela encontra elementos para esclarecer o papel desempenhado por Adorno nas pesquisas de Benjamin para o Trabalho das passagens, financiadas pelo Instituto de Pesquisa Social. Ao contrário da opinião corrente, que vê em Adorno apenas um mediador entre Benjamin e o Instituto, ele afirma que nesses anos de intensa discussão epistolar Adorno constrói uma posição filosófica que se origina tanto da apropriação como da crítica de elementos do pensamento benjaminiano. Essa posição, desenvolvida ao longo de toda a sua obra, constitui um modelo de crítica que busca identificar o que há de falso e de arcaico tanto na modernidade quanto na tradição alemãs. Para Habermas, essa crítica do falso confere grande importância ao influxo de Adorno no combate ao conservadorismo na história recente da Alemanha. Palavras-chave: Theodor W. Adorno; Walter Benjamin; filosofia alemã. SUMMARY Reviewing Benjamin/Adorno correspondence (1928-40), published in 1994, Habermas finds elements to explain Adorno's role in Benjamin's researches for the Arcades project, sponsored by the Institute of Social Research. Contrary to current opinion, that sees Adorno as only a mediator between Benjamin and the Institute, he affirms that in those years of intense lettering debate Adorno builds a philosophical position that comes from both the appropriation of and the critique to aspects of Benjamin's thought. Such position, developed throughout his whole oeuvre, constitutes a model of critique that seeks to identify what is false and archaic in both German modernity and tradition. For Habermas, such critique of false confers great importance to Adorno's influx in struggling against conservatism in Germany's recent history. Keywords: Theodor W. Adorno; Waller Benjamin; German philosophy. (*) Resenha da Briefwechsel Benjamin/Adorno — 1928-40 (Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994), publicada originalmente em Die Zeit de 23/09/1994 e coligida em Habermas, Jürgen. Die Nor- malität einer Berliner Republik Frankfurt/M: Suhrkamp, 1995, pp. 123-31. A tradução da Cor- respondência será publicada pela editora Cosac & Naify até o final deste ano. Scholem ficou aliviado quando, em 1980, pôde apresentar sua — reencontrada — correspondência com Benjamin entre 1933 e 1940: com ela, também queria defender-se das "simplificações grosseiras" que circulavam em torno de seus esforços para convencer Benjamin a emigrar para a Palestina. Adorno poderia acompanhar com o mesmo sentimento de alívio o contraponto ora fornecido pela publicação de sua correspondência com Benjamin dos anos 1928-40: ela contém uma convincente reabilitação das suspeitas difundidas por Hannah Arendt mundo afora. Adorno e sua mulher, Gretel, tinham uma preocupação tocante com o amigo cada vez mais isolado e financeiramente oprimido em Paris. As iniciativas enérgicas e nunca negligentes empreendidas pelo casal para JULHO DE 2004 35

O falso no mais próximo - Habermas

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  • O FALSO NO MAIS PRXIMOSOBRE A CORRESPONDNCIA BENJAMIN/ADORNO*

    Jrgen HabermasTraduo do alemo: Luciano Gatti

    RESUMOAo resenhar a Correspondncia Benjamin/Adorno (1928-40), publicada em 1994, Habermasnela encontra elementos para esclarecer o papel desempenhado por Adorno nas pesquisas deBenjamin para o Trabalho das passagens, financiadas pelo Instituto de Pesquisa Social. Aocontrrio da opinio corrente, que v em Adorno apenas um mediador entre Benjamin e oInstituto, ele afirma que nesses anos de intensa discusso epistolar Adorno constri uma posiofilosfica que se origina tanto da apropriao como da crtica de elementos do pensamentobenjaminiano. Essa posio, desenvolvida ao longo de toda a sua obra, constitui um modelo decrtica que busca identificar o que h de falso e de arcaico tanto na modernidade quanto natradio alems. Para Habermas, essa crtica do falso confere grande importncia ao influxo deAdorno no combate ao conservadorismo na histria recente da Alemanha.Palavras-chave: Theodor W. Adorno; Walter Benjamin; filosofia alem.

    SUMMARYReviewing Benjamin/Adorno correspondence (1928-40), published in 1994, Habermas findselements to explain Adorno's role in Benjamin's researches for the Arcades project, sponsored bythe Institute of Social Research. Contrary to current opinion, that sees Adorno as only a mediatorbetween Benjamin and the Institute, he affirms that in those years of intense lettering debateAdorno builds a philosophical position that comes from both the appropriation of and the critiqueto aspects of Benjamin's thought. Such position, developed throughout his whole oeuvre,constitutes a model of critique that seeks to identify what is false and archaic in both Germanmodernity and tradition. For Habermas, such critique of false confers great importance toAdorno's influx in struggling against conservatism in Germany's recent history.Keywords: Theodor W. Adorno; Waller Benjamin; German philosophy.

    (*) Resenha da BriefwechselBenjamin/Adorno 1928-40(Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994),publicada originalmente em DieZeit de 23/09/1994 e coligidaem Habermas, Jrgen. Die Nor-malitt einer Berliner RepublikFrankfurt/M: Suhrkamp, 1995,pp. 123-31. A traduo da Cor-respondncia ser publicadapela editora Cosac & Naify at ofinal deste ano.

    Scholem ficou aliviado quando, em 1980, pde apresentar sua reencontrada correspondncia com Benjamin entre 1933 e 1940: com ela,tambm queria defender-se das "simplificaes grosseiras" que circulavamem torno de seus esforos para convencer Benjamin a emigrar para aPalestina. Adorno poderia acompanhar com o mesmo sentimento de alvioo contraponto ora fornecido pela publicao de sua correspondncia comBenjamin dos anos 1928-40: ela contm uma convincente reabilitao dassuspeitas difundidas por Hannah Arendt mundo afora.

    Adorno e sua mulher, Gretel, tinham uma preocupao tocante com oamigo cada vez mais isolado e financeiramente oprimido em Paris. Asiniciativas enrgicas e nunca negligentes empreendidas pelo casal para

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    melhorar a situao precria de um Benjamin discretamente queixosomostram at um lado surpreendentemente pragmtico de um Adorno nomais das vezes no muito dotado de senso prtico. Tambm no restadvida da seriedade da inteno de tirar Benjamin a tempo de uma Franaem perigo. Isso confirmado alis por uma entrevista recentemente publica-da no Oxford Art Journal com o historiador da arte Meyer Schapiro, quepouco antes do incio da guerra, a pedido de Adorno e Horkheimer, tentouconvencer Benjamin da necessidade de se mudar para Nova York, j que elenotoriamente hesitava em abandonar o ambiente europeu: "Bem, ele jtinha sido convidado por eles. Ele no achava que poderia estar em casa naAmrica, dada a diferena de sua formao e de seus interesses".

    Condiz com isso, por sua vez, uma carta escrita na mesma poca (15 dejulho de 1939) por Gretel a Benjamin na expectativa ao mesmo tempotrgica e irnica de um reencontro que jamais viria a se realizar: "Estou loucade alegria e no consigo parar de pensar na seqncia em que as atraes deNova York te devem ser mostradas, para que tambm na barbrie possas tecomprazer". Benjamin pde adivinhar nessa expresso levemente foradauma saudade de casa reprimida. Para isso ele s precisou se lembrar dealgumas ambivalentes e romnticas linhas que um ano antes, logo aps suachegada a Nova York, Gretel havia dirigido ao amigo deixado para trs:

    Aqui a gente no precisa procurar coisas surrealistas [...]. No comeoda noite os arranha-cus so imponentes; mais tarde, porm, quandoos escritrios esto fechados, eles lembram as mal-iluminadas edculaseuropias. E ainda h estrelas, uma lua no horizonte e um magnficopr-do-sol de veraneio.

    Naturalmente, pode-se ler essa correspondncia do ponto de vistade um camareiro, buscando nela "entrechos" a fim de deleitar-se com asanimosidades aguadas pelas presses da sobrevivncia e da marginali-zao na poca da emigrao. Trata-se de diferenas que, num plano maisprofundo, passam por "estremecimentos entre correspondentes". Durantetoda a sua vida Adorno reagiu de maneira extremamente sensvel a essasdiferenas, e na correspondncia com Benjamin essa reao aparece porvezes em formulaes cortantes, que ele por certo no gostaria de ver pu-blicadas. doloroso ver, por exemplo, como ele abandona Kracauer, seuantigo amigo e mentor.

    De resto, encontram-se nessas cartas as constelaes conhecidas. NaEuropa, um Benjamin que procurava separar suas relaes acompanha-das de suspeitas recprocas com Scholem, Brecht e Adorno e mant-lasintactas contra usurpaes numa ou noutra direo. Na Amrica, um Ador-no que respeitava com inusitada timidez a autoridade de um Scholem(caracterizado de maneira impressionante depois do primeiro encontro emNova York), que perseguia de modo um tanto intransigente o materialismo

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    "cho" de Brecht, que no dissimulava sua fraternal inveja de Marcuse eLwenthal e que se distanciava cada vez mais de Bloch, sobretudo depoisdo seu posicionamento ante a farsa dos processos de Stalin (esse padroquase no mudaria nos anos 1950 e 60).

    primeira vista, a correspondncia tambm parece no trazer nada denovo no campo terico: seus fragmentos filosficos mais importantes so hmuito conhecidos. O que agora se apresenta pela primeira vez num todocronologicamente ordenado, inclusive o pouco material que se consideravaperdido, deve se justificar sob outros aspectos. O leitor torna-se testemunhade um processo de aproximao cauteloso e rico em tenses entre duaspessoas que dificilmente se aproximariam no fosse a mediao da viaepistolar. Ambos asseguram reiteradamente o desejo do encontro pessoal eda conversa direta, mas a srie de visitas continuamente adiadas e evitadas(Adorno fez duas viagens curtas a Paris) no apenas espelha a adversidadedas circunstncias: tambm denuncia a preferncia velada pelo desvio daexpresso escrita. A coero formal do meio epistolar a impresso quetemos protege um retrado Benjamin das contingncias e inconvenientesdo contato imediato e ao mesmo tempo concede a um severo Adorno maiorliberdade de expresso crtica.

    Os "estremecimentos entre correspondentes" s so sentidos umanica vez: a propsito da aula inaugural de Adorno como livre-docente naUniversidade de Frankfurt, na qual temas do livro de Benjamin sobre obarroco so retomados e numa polmica precoce e de notvel alcancecom Heidegger produtivamente realados sem que Adorno revele suafonte. De um lado isso gerou irritao e de outro a considerao de repararo descuido por meio de uma epgrafe ou uma dedicatria quando o textofosse publicado e s foi de fato publicado aps a morte de Adorno, semepgrafe ou dedicatria. O intercmbio entre eles, marcado por cautelarecproca e por um certo tom elitista, francamente conduzido pela ami-gvel presso que Adorno exerceu desde o incio para a concluso doplanejado Trabalho das passagens. Uma carta de 5 de abril de 1934 terminacom estas palavras: "Com isso eu chegaria uma vez mais ao ceterum censeo.A saber, s suas 'Passagens', que devem ser escritas, realizadas e concludasa qualquer custo".

    Benjamin fascinava seus amigos com uma singular "engenhosidademetafsica", que Scholem reconheceu como o seu "talento mais destacado".Sem a aura de um gesto intelectual to promissor quanto enigmtico dificil-mente se pode esclarecer o perene fascnio exercido pelo projeto do inaca-bado Trabalho das passagens sobre Adorno e no menos sobre Scholem.A expectativa entusistica depositada por Adorno no projeto tinha traos deprojeo no duplo sentido da palavra. Sem um pingo de retrica, ele esperavade Benjamin "a parte que nos cabe da prima philosophia!' e "a palavra decisivaque deve ser dita hoje em termos filosficos". Benjamin no o contradisse:esse trabalho era o motivo fundamental, se no o nico, "de no terabandonado o nimo na luta pela existncia". Certamente, tambm se ma-nifesta na exigente impacincia de Adorno um momento de apropriao.

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    De incio Benjamin recebeu com hesitao a venerao quase impetu-osa do discpulo, mas ao longo dos anos Adorno tornou-se para ele umaconscincia terica, uma espcie de superego filosfico, medida queaumentava ao menos assim parece a presso por uma definio dorumo em que o Trabalho das passagens deveria ser desenvolvido. Sobreesse pano de fundo a correspondncia volta a ganhar interesse terico, jque as diversas variaes sobre um mesmo tema ficam mais ntidas do queat ento.

    Para ambos trata-se de um entrelaamento do arcaico com o moderno,e a reproduo de um no outro deve ser determinada a partir dos (Bataille!)detritos e destroos, do histrico e desbotado "mundo de coisas do sculoXIX". Benjamin pretendia decifrar nos traos arcaicos da modernidade coagulados em "imagens dialticas" tanto a repetio destrutiva daremota desgraa quanto uma fora originria dirigida contra a modernida-de diruptiva, que poderia reverter a desgraa. Esse segundo momento desalvao e preservao de um originrio a ser apenas liberado suspeitopara Adorno. Para ele o arcaico produzido historicamente sem resto o que a histria emudeceu e simplesmente mascarou como "pr-histrico"irradia uma falsa magia.

    Adorno probe a si mesmo o recurso a algo originrio que poderia prsob suspeita toda a modernidade, qual de todo modo pertence. Ele noutiliza conceitos fundamentais como reificao ou valor de uso e valor detroca da mesma maneira que Benjamin. Adorno no nenhum filsofo davida. Resiste ao impulso de querer dissolver inteiramente o reificado noespontneo, o fetiche da mercadoria to-somente na avidez do processo deapropriao. Ele defende o momento de verdade na forma das coisas noapenas em relao s obras de arte, pois somente " vida reificada e invertida prometida uma escapatria do aprisionamento da natureza". Em suma,no h nenhum originrio "por trs" da modernidade nenhum que no sedeva s prprias tendncias regressivas da modernidade.

    Atravessa a correspondncia como teor fundamental a advertncia deAdorno de no confundir as imagens "dialticas" com as imagens "arcaicas"de Carl Jung ou Ludwig Klages, pois caso contrrio "o desencantamento daimagem dialtica" conduziria "diretamente ao inquebrantvel pensamentomtico, e aqui Klages desponta como um perigo tal como Jung acol".Adorno insiste em reiterar a crtica ao "materialismo antropolgico" deBenjamin, sobretudo ao seu registro conceitual neoconservador. Esquadri-nha ainda nos textos do amigo os mais leves vestgios de uma auratizao deelementos como forma originria, postura, gesto, corporeidade e assim pordiante. Mas sua crtica somente se torna veemente contra o distante RogerCaillois, que fundara com Bataille e Leiris um "Colgio de Sociologia Sacra"e a quem reprova por uma "crena na natureza anti-histrica, hostil anlisesocial e de fato criptofascista, que conduz por fim a uma espcie de confrariapopular em torno de biologia e imaginao".

    Benjamin de tal modo se deixa impressionar por essas repreensesque reconhece "um insuficiente domnio do arcaico" e (aparentemente)

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    consente no plano de escrever um ensaio sobre Jung que deveria tornarntida "a fissura liminar entre imagem arcaica e imagem dialtica". Masapesar das numerosas advertncias de Adorno ele acaba aproveitando apreferncia de Horkheimer pelo ensaio sobre Baudelaire para no ter dedesenvolver o prometido acerto de contas com Jung.

    Nesse cabo-de-guerra em torno da concepo do Trabalho das passa-gens delineia-se cada vez mais em Adorno uma motivao filosfica prpria.Ele assume nessa dcada de 1930 um perfil que de forma alguma correspon-de ao clich de uma posio de mediador entre Benjamin e Horkheimer.Notoriamente, Adorno no apenas o escolado em filosofia que, em face deum Benjamin que colecionava e montava citaes, insiste na penetraoterica do material enquanto depura teologicamente o impulso intelectualespeculativo dele recebido a fim de, em Santa Mnica, juntamente comHorkheimer, utiliz-lo numa filosofia da histria negativista, depois que este desesperando da realizao interdisciplinar de uma teoria social materia-lista renuncia ao programa da Revista de Pesquisa Social em favor de umaCrtica da razo instrumental.

    Se naquele tempo Adorno descobrira com Benjamin "o antigo no novoenquanto aparncia e fantasmagoria", e se por certo j vira o esclarecimentoreverter no mito, permaneceu no entanto muito longe de querer "redimir"algo com tal forma de decifrao do mito: "Entender a mercadoria comoimagem dialtica significa entend-la como motivo de seu declnio e sua'superao' em vez de uma pura regresso no antigo". Uma vez que ele, aocontrrio de Benjamin, entendeu o "em-um" de progresso e decadncia,ficou imune a qualquer crtica unilateral do progresso. Nada deixava Adornomais nervoso do que as "tendncias mticas e arcaizantes" dos anos 1930 e, ah,no apenas dos anos 1930: "Parece-me que a categoria em que emerge oarcaico na modernidade menos a idade de ouro que a catstrofe".

    Mesmo nas cartas livres de censura, os oprimentes acontecimentospolticos da poca no merecem seno uma referncia surpreendentementeescassa. Ademais, de ambos os lados a avaliao da situao polticapermanece por longo tempo um tanto ilusria: j em 1938 se delineia umclima catastrfico, e no entanto os acontecimentos da guerra irrompemsobre Benjamin como uma catstrofe inesperada. Na mesma medida emque os juzos e posicionamentos dos correspondentes parecem despolitiza-dos vista do melhor conhecimento dos que nasceram depois, as camadasmais profundas de suas teorias se comunicam subterraneamente com ainconcebvel calamidade da ruptura da civilizao. Isso vale de maneiraflagrante para as famosas teses "Sobre o conceito de histria" queBenjamin menciona apenas uma vez, numa carta de 7 de maio de 1940 (!), mas igualmente ilimitada a substncia poltica do pensamento explora-trio exercido por Adorno (aqui, portanto, no confronto com Benjamin),com sua infalvel sensibilidade para a proximidade iminente dos perigosmais ameaadores.

    A disposio para essa espcie de crtica do falso no mais prximo esclarecida pela posterior histria do influxo de Adorno na jovem Repblica

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    Federal alem. A toda uma gerao de assistentes, a uma, duas geraes dealunos, a um pblico disposto a aprender com seus ensaios e confernciasradiofnicas Adorno tornou sensveis o emudecimento e o potencial demarginalizao, o que se tornou estranho e encapsulado em sua prpriatradio. Ao identificar em Adorno o caso raro de um filsofo que pertenceuintegralmente e ao mesmo tempo modernidade e tradio alems,Albrecht Wellmer remete a isso o efeito emancipatrio de seu pensamento,que "estava imune tentao do arcaico e contudo conservou em si oimpulso romntico".

    Hoje est novamente em questo na Repblica Federal a sua "ociden-talizao" a cultural mais ainda que a poltica. Adorno pde extrair aherana ocidental-humanista da prpria tradio alem porque ao mesmotempo trouxe luz suas ambigidades. Com Kant e Marx, Heine e Freud,com Karl Kraus, Schnberg e Kafka ele escovou a contrapelo dos inimigosda cultura um humanismo cultural excludente e corrupto assim como umanti-humanismo inveterado ou veladamente exaltado. Os alemes noperdoaram suficientemente um Heinrich Heine que associou "o partido dasflores e dos rouxinis" revoluo; no o perdoaram por ter destitudo da"sua" herana romntica o fatdico populismo e o falso historicizado, asentimentalidade transfigurada, e restitudo suas origens radicais ao Ilumi-nismo. O rancor que Adorno encontrou durante sua vida e encontra aindahoje permite supor uma motivao parecida. Por ocasio do 25 ano de suamorte, por exemplo, o suplemento cultural do Frankfurter AllgemeineZeitung no ofereceu nada melhor do que um pot-pourri de vozes hostisde espritos estreitos e desleais. Eles no podiam lhe perdoar a denncia defalsas continuidades, o descortino etnolgico do mago da barbrie, quehoje, com um distanciamento desconfiado de nossa tradio, nos d pelaprimeira vez a oportunidade de uma identificao com ela.

    Desde que as tentativas de ressuscitar a herana intelectual dosneoconservadores avanaram to vivamente, de Syberberg a Heiner Mllere Botho Strauss, torna-se cada dia mais duvidoso se a tradio de autocerti-ficao crtica adorniana poder ser retomada em meio normalizao pelotoque de recolher que vigora na Repblica Berlinense.

    Recebido para publicao em22 de junho de 2004.Jrgen Habermas professoremrito da Universidade Jo-hann Wolfgang Goethe (Frank-furt). Publicou nesta revista"Uma conversa sobre questesda teoria poltica - entrevista'(n 47).

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    N. 69, julho 2004pp. 35-40

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