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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ESCOLA DE MÚSICA LICENCIATURA EM MÚSICA MIDIAM DE SOUZA FERNANDES O ENSINO DA MÚSICA CONTEXTUALIZADO COM A CULTURA DO ALUNO: UM RESGATE DO HUMANO NATAL RN 2014

O ENSINO DA MÚSICA CONTEXTUALIZADO COM A … · Projeto Conexão Felipe Camarão são profissionais que tem identificação com a metodologia ... com o nordeste brasileiro sendo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

ESCOLA DE MÚSICA

LICENCIATURA EM MÚSICA

MIDIAM DE SOUZA FERNANDES

O ENSINO DA MÚSICA CONTEXTUALIZADO COM A CULTURA DO

ALUNO: UM RESGATE DO HUMANO

NATAL – RN

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

ESCOLA DE MÚSICA

LICENCIATURA EM MÚSICA

MIDIAM DE SOUZA FERNANDES

O ENSINO DA MÚSICA CONTEXTUALIZADO COM A CULTURA DO

ALUNO: UM RESGATE DO HUMANO

Monografia apresentada ao curso de

Licenciatura Plena em Música da Escola de

Música da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte, na área de educação musical como

requisito parcial para a obtenção do título de

Licenciada.

Orientador:

Prof.ª Dra. Valéria Lázaro de Carvalho

NATAL – RN

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

ESCOLA DE MÚSICA

LICENCIATURA EM MÚSICA

MIDIAM DE SOUZA FERNANDES

O ENSINO DA MÚSICA CONTEXTUALIZADO COM A CULTURA DO

ALUNO: UM RESGATE DO HUMANO

Natal, ____de_______________de_______

Nota: _____________

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof.ª Dra. Valéria Lázaro de Carvalho

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Orientadora

________________________________________________

Prof.ª Ms.ª Heather Dea Jennings

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Avaliador

__________________________________________________

Prof.ª Esp. ANGELA MARIA BEZERRA DO NASCIMENTO

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Avaliador

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Aos que continuam, mesmo quando o mundo diz não...

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AGRADECIMENTOS

À minha família pela paciência para comigo durante a passagem nesta dimensão de nossas

almas, por tudo que à mim foi ensinado, sejam estes ensinamentos os mais recentes, sejam estes

ensinamentos os mais elementares quando ainda em minha infância, como a compreensão de

que tudo na vida tem seu começo e fim.

Ao professor José Estevam de Oliveira pelos importantes e decisivos incentivos ao longo de

meus estudos.

Ao professor Gilberto Cabral por ter sido o primeiro a acreditar em minha música.

À minha Orientadora Prof.ª Dra. Valéria Lázaro de Carvalho, pessoa e profissional exemplar,

pioneira e incentivadora de importância ímpar para o curso de Licenciatura Plena em Música

da UFRN.

Aos colegas da licenciatura.

Aos obstáculos vencidos durante todo o período do meu curso.

Aos colegas do Projeto Conexão Felipe Camarão pela acolhida.

Aos meus queridos alunos, que são a inspiração mais pura da minha vida profissional.

Ao meu Senhor “meu bom Deus” à quem devo todas as alegrias, inspirações, conhecimentos,

talentos e fé que tenho na vida.

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Uma doce família

Que tem a mania

De achar alegria

Motivo e razão

Onde dizem que não

Aí que tá a mágica, meu irmão

O RAPPA

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RESUMO

Esta monografia de carácter qualitativo descritivo relata alguns aspectos do ensino de música

não formal contextualizado com a cultura local do bairro Felipe Camarão na zona oeste da

cidade do Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, através do Projeto Conexão Felipe

Camarão que tem como um dos seus objetivos desenvolver nas crianças e jovens do bairro o

sentimento de pertença e valorização da sua própria cultura. O Projeto Conexão Felipe Camarão

existe há 11 anos, sendo realizado pela Organização não Governamental Associação

Companhia Terramar promovendo o entendimento de que o Homem que conhece a sua origem

e a valoriza tem condições de colocar-se enquanto ser pensante e atuante dentro da sociedade.

O ensino da música dentro deste projeto se dá através da contextualização da música com a

tradição da cultural oral existente no bairro. O Projeto Conexão Felipe Camarão tem como

público alvo crianças e jovens com idades de 04 aos 24 anos. Os seus professores de música do

Projeto Conexão Felipe Camarão são profissionais que tem identificação com a metodologia

humanizada que é desenvolvida pelas ações promovidas pelo projeto. Tradições centenárias

como o Auto do Bois de Reis do Mestre Manoel Marinheiro, bem como a sonoridade da música

do Mestre Cícero da Rabeca vem sendo mantidas e divulgadas pelos e para alunos do projeto

ao longo destes 11 anos de existência. Sendo o ensino da música no Projeto Conexão Felipe

Camarão sinônimo de expansão Humana possível.

Palavras-chave: Música, Cultura, Conexão, Valorização, Ensino.

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ABSTRACT

This monograph is an account of the descriptive and qualitative nature of some aspects of non-

formal music education contextualized within the local culture of the Felipe Camarão

neighborhood in the western part of the city of Natal, capital of Rio Grande do Norte, Brazil.

The Felipe Camarão Connection Project works with children of the neighborhood and has goals

to develop in them a sense of belonging and an appreciation of their own culture. The Felipe

Camarão Connection Project has existed for 11 years. It is supported by the non-governmental

organization Association Terramar Company to promote the understanding that Man knows

and values his origins and can present himself as a thinker and an actor within society. The

teaching of music within this project is through the contextualization of music with the tradition

of the oral culture which exists in the neighborhood. The Felipe Camarão Connection Project’s

target audience is children and young people aged 04 to 24 years. The music teachers in the

Felipe Camarão Connection Project are professionals who have identified with the humanized

methodology that is developed by the actions promoted by the project. Centuries-old traditions

such as the Auto de Bois de Reis (a local dance) by Master Manoel Marinheiro and the sound

of the music of Master Cicero da Rabeca have been maintained and promoted by and of students

of the project over its 11 years of existence. In the Felipe Camarão Connection Project, music

education is synonymous with the possibility of Human expansion.

Keywords: Music, Culture, Connection, Appreciation, Teaching.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

CAPÍTULO I...........................................................................................................................13

1 O BAIRRO FELIPE CAMARÃO E O PROJETO CONEXÃO FELIPE

CAMARÃO..............................................................................................................................13

1.1 EDUCAR DE ACORDO COM O COTIDIANO DO ALUNO: UMA AÇÃO

REVOLUCIONÁRIA NA EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS E JOVENS DO BAIRRO FELIPE

CAMARÃO..............................................................................................................................15

1.2 CONEXÃO BRASIL UMA PONTE PARA A CONEXÃO ENTRE SABERES

BRASILEIROS ........................................................................................................................17

CAPÍTULO II ........................................................................................................................19

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO DA MÚSICA COM O UNIVERSO SÓCIO

CULTURAL DO ALUNO........................................................................................................19

2.1 QUAL É A MÚSICA QUE SE ENSINA E QUE SE APRENDE NO PROJETO

CONEXÃO FELIPE CAMARÃO? .........................................................................................23

2.2 ASPECTOS BÁSICOS DE ALGUNS FAZERES TRADICIONAIS EM MÚSICA DO

PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO.........................................................................25

CAPÍTULO III........................................................................................................................31

3 PARA QUEM E PARA QUE SE ENSINA MÚSICA NO PROJETO CONEXÃO FELIPE

CAMARÃO? ...........................................................................................................................31

3.1 O REPERTÓRIO ...............................................................................................................32

3.2 QUEM ENSINA MÚSICA NO PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO

E COMO ENSINA? .................................................................................................................33

CAPÍTULO IV........................................................................................................................37

4 O QUE É O PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO NAS PALAVRAS DE UM

JOVEM QUE VIVÊNCIA O PROJETO HÁ DEZ ANOS......................................................37

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................40

REFERÊNCIAS......................................................................................................................41

ANEXOS..................................................................................................................................42

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INTRODUÇÃO

Esta monografia nasce da nossa participação na disciplina intitulada “Atividades

Orientadas IV- Metodologia do Ensino da Música em Contextos não Escolares” durante o

semestre 2013.2 no Curso de Licenciatura Plena em Música da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (UFRN).

Toda a turma foi separada em grupos e cada grupo ficou responsável por visitar duas

iniciativas de educação não formal que ofertassem aos seus alunos a educação musical em

qualquer um de seus aspectos estruturais dentro do plano de trabalho destas iniciativas, podendo

então estas iniciativas serem ou não do terceiro setor.

A escolha destas duas iniciativas de educação não formal ficou a critério de cada grupo,

então a partir desta liberdade de escolha, o nosso grupo optou por conhecer duas iniciativas no

distrito Oeste da cidade do Natal/RN, sendo uma destas iniciativas o Núcleo de Amparo ao

Menor (NAM) e a outra o Projeto Conexão Felipe Camarão. O resultado de nossas observações

foi gratificante para todo o grupo, éramos pois, quatro licenciandas nos aventurando pelas ruas

do bairro Felipe Camarão.

Foi um período rico em novos conhecimentos para todas nós, pois as duas iniciativas

nos eram desconhecidas, havendo assim muita expectativa da nossa parte, visto que embora nós

não conhecêssemos pessoalmente nem o NAM nem o Projeto Conexão Felipe Camarão,

sabíamos da importância artística, cultural e educacional de ambas as iniciativas, tanto para o

bairro Felipe Camarão quanto para toda a cidade, por tratar-se de duas iniciativas que ajudam

na formação cidadã de crianças e jovens.

Em uma tarde de primavera partimos para a Rua Maristela Alves 579 A, no bairro Felipe

Camarão, já pelo caminho fomos conhecendo e decifrando um pouco do bairro e da gente que

nele habita. Trata-se pois de um bairro residencial de clima aconchegante, aonde ainda nos

nossos atuais dias é comum encontrarmos moradores sentados em suas cadeiras nas calçadas

de suas casas, conversando com os vizinhos. Felipe Camarão é um bairro de contrastes vivos e

atuais no tocante ao social, já o que nós encontramos no Projeto Conexão Felipe Camarão foi

literalmente “uma casa de saberes”, saberes tão ricos quanto múltiplos.

Ao entrarmos no ambiente físico da sede do projeto “A casa de saberes Conexão Felipe

Camarão” nos deparamos com um mundo encantado de cores e sons, uma sede física que

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representa na concretude toda a essência do projeto, pois encontramos logo na entrada da sede

um mural de desenhos que retrata tribos indígenas, ao mesmo tempo que encontramos as cores

e fitas do Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro, bem como alguns adereços

utilizados neste Auto, as portas das salas da sede do Projeto Conexão Felipe Camarão são

cobertas de chita colorida com o nome das oficinas que acontecem em cada espaço da sede

bordados sobre esta chita. É uma sede ampla e colorida, com o nordeste brasileiro sendo

representado de forma bem viva através da decoração do ambiente e sobre tudo da música que

se houve neste ambiente.

Fomos gentilmente convidadas a conhecer cada espaço da Casa de Saberes do Projeto

Conexão Felipe Camarão e quanto mais conhecíamos mais instigadas à conhecer a fundo o

projeto nós ficávamos. Cumprimos então nossa carga horária de observações do projeto

Conexão Felipe Camarão e em seguida apresentamos o resultado das nossas observações em

sala de aula na Escola de Música da UFRN, durante as nossas aulas de Atividades Orientadas

IV, aulas ministradas pela Prof.ª Dra. Valéria Lázaro de Carvalho, que viria um ano após me

orientar nesta prazerosa tarefa de escrever sobre este projeto tão cheio de vida e música.

Eu particularmente já nutria uma antiga vontade de conhecer o Projeto Conexão Felipe

Camarão e encontrei nesta disciplina de Atividades Orientadas IV a oportunidade para poder

conhecer este universo que tanto me encanta.

Esta pesquisa deu-se por acompanhar durante um semestre parte da rotina do Projeto

Conexão Felipe Camarão, esse acompanhamento foi feito principalmente aos sábados pela

manhã observando as oficinas de música que ali acontecem a partir das 08:00h, participei da

formação continuada para professores e também da primeira reunião pedagógica do semestre

com toda a equipe de professores do Projeto, entrevistei a professora Vera Santana a

idealizadora do Projeto Conexão Felipe Camarão assim como conversei e entrevistei alunos,

professores e monitores que atuam no projeto, visitei uma das Escolas Municipais do bairro que

é parceira do projeto, bem como o terreiro de D. Odaíza, griô responsável pela preservação do

Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro.

Todo interesse nesta pesquisa de cunho totalmente qualitativo, gira em torno do fazer

musical que está sendo desenvolvido dentro do Projeto Conexão Felipe Camarão, trata-se de

um estudo apenas descritivo, sendo notável a riqueza de possibilidades de exploração cientifica

dentro do Projeto Conexão Felipe Camarão desde o seu início no ano de 2003, de forma simples

retratamos um pouco da importância desta iniciativa realizada pela Organização não

Governamental Associação Companhia Terramar, no bairro Felipe Camarão.

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O ensino da música contextualizado com a realidade cultural do bairro é um diferencial

que promove o respeito e autoestima nos participantes do projeto.

Estão aqui alguns tópicos básicos que serão provavelmente o apontamento para que

possamos vir em outro momento, voltar nossos olhos investigativos para esta iniciativa

chamada Projeto Conexão Felipe Camarão, podendo assim com nossos estudos de caso

contribuir para os avanços da ciência na área.

Uma nova geração cresce hoje dentro da cidade do Natal/RN, o nome desta geração é

“Geração Conexão Felipe Camarão”. Um mundo de cores, sons e ritmos, lado a lado com a

consciência e auto estima de um povo tão sofrido e injustiçado pelos descasos sociais, mas que

através da cultura e educação vem se apropriando de seu lugar no mundo, promovendo a

possibilidade de reverter um imaginário social que estigmatiza, em uma realidade cultural que

valoriza e enobrece quem por lá habita.

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CAPÍTULO I

1 O BAIRRO FELIPE CAMARÃO E O PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO

O bairro de Felipe Camarão está situado na zona administrativa oeste da cidade do Natal

(RN), encravado entre Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs), entre o Rio Potengi e os bairros

de Cidade Nova, Cidade da Esperança, Bom Pastor e Guarapes e com o município de São

Gonçalo do Amarante (SEMURB, 2009, p.446).

Felipe Camarão poderia ser apenas um bairro periférico situado na zona Oeste de Natal,

capital do estado do Rio Grande do Norte, mas Felipe Camarão é bem mais que um bairro de

periferia, o bairro Felipe Camarão é um berço da cultura norte rio-grandense. Trata-se de um

bairro de grandes contrastes aonde podemos ver condições de miséria socioeconômica e riqueza

cultural morando lado a lado.

O bairro Felipe Camarão nasceu com o nome de comunidade do peixe boi, pois de

acordo com os moradores mais antigos do bairro, apareciam peixes boi no rio Potengi. Com o

crescimento da cidade a comunidade que também cresceu, passou a chamar-se Bairro Felipe

Camarão, mais precisamente em agosto de 1968 (Bezerril,2006, p. 3).

É um bairro de costumes ainda muito interioranos, pois apesar de tão divulgada como

sendo uma comunidade violenta há anos pela imprensa policial, ainda podemos encontrar

pequenas mercearias (as chamadas bodegas), feiras livres, pessoas conversando nas calçadas,

são 75.000 habitantes (CHESF, 2011, p.17).

Felipe Camarão também é um bairro rico em tradições culturais, encontra-se por lá o

Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro, O teatro de bonecos de Chico Daniel, a

capoeira de mestre Marcos a tradição da Rabeca do Mestre Cícero da Rabeca, sendo estas

tradições culturais a inspiração de base para o firmamento das ideologias mantidas pelo Projeto

Conexão Felipe Camarão.

São quatrocentas crianças e jovens com idades entre 04 e 24 anos matriculados nas

oficinas do Projeto Conexão Felipe Camarão, tendo estes participantes apenas dois critérios

básicos para sua entrada e permanência no projeto, estarem matriculados na rede pública de

educação e serem moradores do bairro, basicamente o que estes alunos propagam e conservam

no projeto é a sabedoria popular e o patrimônio imaterial do lugar aonde eles moram. O que o

Projeto Conexão Felipe Camarão faz é aproximar o morador dos costumes e tradições do seu

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próprio bairro, para isto a educação e a cultura são os caminhos trilhados. As primeiras ações

no bairro Felipe Camarão que apontaram para este caminho surgiram durante o ano de 2003

através das rodas de conversas com os mestres da tradições orais do bairro, sendo toda a

comunidade convidada à dialogar junto aos mestres da cultura popular local sobre as

manifestações culturais do bairro, bem como sobre os problemas existentes na comunidade,

sendo também durante este período que foram articuladas as primeiras oficinas de Boi de Reis,

Rabeca, capoeira e Teatro de bonecos. A professora Vera Santana (hoje coordenadora geral do

Projeto Conexão Felipe Camarão) articulou na época a troca de conhecimento entre os mestres

dos saberes populares com a comunidade, através destas rodas de conversas.

Logo então neste mesmo ano de 2003 a Organização não Governamental (ONG)

Associação Companhia Terramar iniciou a articulação do Projeto Conexão Felipe Camarão,

projeto este que vem ao longo dos anos tomando proporções de existência além das fronteiras

do bairro, já tendo viajado por vários estados do nosso pais, representando a cultura Norte rio-

grandense, através também do Orquestrim que é uma pequena orquestra popular formada por

integrantes das oficinas de música do Projeto Conexão Felipe Camarão, levando assim a

sonoridade do Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro aos quatro cantos do Brasil.

Hoje o Projeto Conexão Felipe Camarão vem prestando um serviço pontual dentro do

bairro Felipe Camarão pois tornou-se um Ponto de Cultura cadastrado pelo Governo Federal,

promovendo durante todo o ano uma programação cultural extensa e diversificada sempre

voltada a educação que integra e se integra na cultura e realidade existencial do povo, como

afirma Santana:

Atualmente, o Conexão Felipe Camarão e Ponto de Cultura do Programa

Cultura Viva do Ministério da Cultura e realiza várias ações, como oficinas

de arte e cultura, atividades integradas às cinco escolas parceiras, montagem

e apresentação de espetáculos culturais, discussões sobre temas de interesse

público, além de agregar programas como o Ação Griô Nacional - Programa

Cultura Viva do Ministério da Cultura e o GESAC - Ministério das

Comunicações (2010, p.32).

A existência do Projeto Conexão Felipe Camarão vem contribuindo a cada ano para que

a população de toda a cidade volte os olhos para o bairro Felipe Camarão e não o vejam apenas

com o olhar estigmatizado pela violência, mas sim que o vejam com o olhar de admiração e

respeito por ser hoje um dos bairros mais culturais e artísticos da cidade.

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1.1 EDUCAR DE ACORDO COM O COTIDIANO DO ALUNO: UMA AÇÃO

REVOLUCIONÁRIA NA EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS E JOVENS DO BAIRRO

FELIPE CAMARÃO

Ao invés de tirar o jovem e a criança da rua, leva-los à na rua, fazer com que este jovem

seja a rua, trabalhando a consciência de quem ele é e de que rua ele ocupa, fazê-lo reconhecer–

se detentor de ferramentas geradoras de mudanças, mudanças individuais e coletivas que

impulsionam à ele e à sua comunidade para uma vida integral, tornando-o capaz de assumir-se

enquanto pessoa e enquanto ser social, sabendo de onde ele vem e traçando novos caminhos

para o seu viver, favorecendo a qualidade de vida para ele mesmo e para toda a comunidade na

qual ele vive. A base desta revolução é a educação através da cultura, cultura esta que nasce do

próprio bairro e que lá se desenvolve.

Sendo Felipe Camarão um dos bairros mais vulneráveis da capital norte rio-grandense,

o Projeto Conexão Felipe Camarão vem ao longo de 11 anos educando jovens e crianças para

a construção de uma maior percepção humana, Felipe Camarão é um bairro periférico que não

recebe as devidas atenções no que diz respeito às necessidades básicas como, saneamento,

educação, saúde e segurança pública. Então:

Considerar no processo educativo a riqueza cultural que faz parte do cotidiano

das crianças e jovens é um passo fundamental para que eles compreendam a

realidade em que vivem e dialoguem com ela, entendendo-se como sujeitos

sociais ativos na construção coletiva dos espaços e como sujeitos históricos.

Essas são as bases fundamentais dos pressupostos político-filosóficos do

educador Paulo Freire, que, junto com outros brasileiros, como Darcy Ribeiro,

Anísio Teixeira, Milton Santos e Amir Haddad, fundamentam a linha de ação

política do projeto e dão sustentação aos ideais de uma educação

transformadora e libertadora (SANTANA, 2010, p33).

Há 11 anos uma seguidora dos ensinamentos do professor Paulo Freire, plantou uma

semente de Educação sobre o solo cultural do bairro Felipe Camarão, trata-se da historiadora,

professora, produtora cultural, idealizadora e coordenadora geral do Projeto Conexão Felipe

Camarão, professora Vera Santana, uma pessoa sensível que quando criança acompanhava

como plateia as apresentações do Mestre Manoel Marinheiro com seu Auto do Boi de Reis em

diversos eventos e festas pela cidade, sendo então a professora Vera Santana uma admiradora

do Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro desde muito cedo. Seguindo fiel as

referências culturais que aprendeu e desenvolveu desde criança e a crença de que a cultura pode

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interagir com a educação e com isto realizar grandes transformações e mudanças no Homem, a

Prof.ª Vera Santana convidou o Mestre Manoel Marinheiro e aos demais mestres de cultura

popular do bairro Felipe Camarão para desenvolver junto as escolas do bairro um trabalho de

conscientização cultural, pois seria coerente poder levar o conhecimento da cultura popular para

dentro da escola, aos poucos as escolas do bairro foram abrindo espaço para a sabedoria popular

entrar e ainda no ano de 2003 eram promovidas rodas de conversas entre moradores, alunos das

escolas públicas do bairro e os mestres de cultura popular do bairro.

Por ocasiões das rodas de prosa, aconteceram algumas oficinas promovidas por estes

mestres da cultura popular existente no bairro, já utilizando alguns espaços cedidos por algumas

das primeiras escolas públicas parceiras do Projeto Conexão Felipe Camarão.

Entendendo que seria muito relevante para toda a sociedade ter acesso a esta cultura

popular local foi feito ao mestre Manoel Marinheiro o convite para registrar em um CD o seu

Auto do Boi de Reis, tendo o mestre aceito o convite, sendo assim, a gravação deste CD

representa uma forma de conservação e divulgação da cultura oral que passou por cinco

gerações dentro da família do mestre Manoel Marinheiro.

A tradição cultural do bairro de Felipe Camarão foi o chão aonde a semente da Educação

que integra, interage e faz surgir sonhos foi plantada, aqui fala-se de desenvolvimento Humano

através da cultura e educação. Em uma sociedade excludente, vemos através do Projeto

Conexão Felipe Camarão, um processo inverso pois aqui se desenvolve um trabalho de inclusão

dos costumes e hábitos dos do povo do lugar. Sendo assim:

É nesse sentido que o Projeto Conexão alia educação à cultura, sem a

qual não é possível estabelecer o diálogo entre o que se aprende e o que

se vive, entre o conteúdo escolar e o cotidiano. A metodologia

empregada faz uso desses aspectos, através dos círculos de cultura, dos

momentos de debate e uso da palavra, e considera todos os envolvidos

como sujeitos da ação, educadores e mestres, alunos e aprendizes. O

processo de construção coletiva das ações e a reflexão contínua sobre o

que se faz são vivenciados semanalmente, analisando-se avanços e

dificuldades (SANTANA, 2010, p.33).

Os jovens e crianças do bairro Felipe Camarão têm a oportunidade de a partir dos 04

anos de idade fazerem parte da Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão. Não

existindo critério de seleção, mas a criança deve estar frequentando e ser matriculada em uma

das escolas da Rede Pública de Ensino Regular.

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1.2 CONEXÃO BRASIL UMA PONTE PARA A CONEXÃO ENTRE SABERES

BRASILEIROS

Todos os anos a produção desenvolvida dentro das oficinas do projeto Conexão Felipe

Camarão e trazida ao público através de uma programação cultural extremamente rica

denominada “Conexão Brasil” aonde existe uma amostra de cultural local e nacional através de

uma programação que articula uma conexão entre a produção de artistas e grupos locais com a

produção de artistas do cenário nacional.

A cada ano é articulada a participação de grupos e artistas, personalidades da educação

e cultura para que possam fazer parte da troca de saberes entre os diversos conhecimentos e a

comunidade no geral (bairro, cidade, estado, país), através desta ação são promovidas rodas de

prosas, oficinas, aulas espetáculos, tudo isto contextualizado em um tema que é trabalhado

durante “Conexão Brasil” o tema desse ano é: Ancestralidade e contemporaneidade, conexões

para novos e mais humanos tempos.

O projeto Conexão Felipe Camarão vem recebendo o apoio e patrocínio de empresas e

entidades que se interessam e se identificam com o projeto por acreditar principalmente que o

projeto realmente se concretiza dentro da comunidade, são alguns estes apoiadores, parceiros e

patrocinadores:

Petrobrás

Banco do Nordeste

Itaú

Companhia de Energética do Rio Grande do Norte - COSERN

Governo do Estado

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte -

IFRN

Banco Nacional para o Desenvolvimento Social

Fundação José Augusto

Serviço Social do Comércio - SESC

Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte -

FECOMÉRCIO

Ministério da Educação (programa Mais Educação)

Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação Comunitária de São

Paulo - CEMPEC

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Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Norte -

SEBRAE

Instituto Votorantim

Casa de Cultura Mestre Manoel Marinheiro

Escola Estadual Bernardo Nascimento

Escola Municipal Djalma Maranhão

Escola Municipal Veríssimo de Melo

Escola Municipal Maria Cristina

Escola Estadual Maria Luiza

Escola Estadual Maria Queiroz

Escola Estadual Clara Camarão

Escola Estadual União

As parcerias com Projeto Conexão Felipe Camarão também estendem-se para parcerias

físicas individuais ou coletivas, como no caso de dezenas de Mestres (tanto acadêmicos, quanto

populares), artistas plásticos, cantores, músicos, circenses, jornalistas, professores, imprensa,

atletas, estas pessoas dispõem de seu tempo e trabalho para enriquecer cada vez mais de vida

do Projeto Conexão Felipe Camarão. Todos os anos durante o evento “Conexão Brasil” muitos

destes parceiros vêm contribuir com seu apoio para o sucesso da ação. Personalidades como:

Maria Aparecida Perez – Socióloga

Jaqueline Moll – Diretora do Programa Nacional Mais Educação

José Murillo Junior – Coordenador Geral de Cultura Digital do Ministério da

Cultura

Leandro da Costa Fialho – Coordenador Geral de Educação Integral

Grupo de Choro Tuhu – Villa Lobos do RJ

Lia de Itamaracá/PE

César Muñhoz Giménes – Consultor da Infância e Juventude

Amir Haddad – Diretor do Tá na Rua (teatro)

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CAPÍTULO II

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO DA MÚSICA COM O UNIVERSO SÓCIO

CULTURAL DO ALUNO

O objetivo principal da aula de música dentro do projeto conexão Felipe Camarão é a

apropriação da cultura dos alunos e o entendimento desta mesma cultura, aproximar o aluno

cidadão da produção e tradições culturais do seu bairro.

Na atualidade temos pensado a educação musical de forma abrangente,

entendendo que a diversidade de espaços e de situações em que se caracteriza

a música, enquanto fenômeno artístico, social e cultural, constitui universos

múltiplos onde experiências de ensino e aprendizagem acontecem. Cientes

dessa abrangência, temos buscado estratégias para compreender distintas

formas de transmissão dos saberes musicais, com o intuito de consolidar uma

visão ampla da pluralidade de situações, processos e estratégias diversas que

alicerçam o vasto campo da educação musical contemporânea (QUEIROZ,

2008, p.01).

Nas aulas de música o conhecimento é repassado e dividido entre alunos e professores,

sendo este conhecimento vivenciado com alegria, respeitando, preservando e mantendo vivo

todo o patrimônio cultural imaterial ao qual estes alunos começam a conhecer, de forma que

existe a contextualização com a cultura do bairro Felipe Camarão em todas as aulas, a aula de

música não visa desenvolver o técnico, mas sim o homem sensível a sua condição de agente

que realiza e/ou pode realizar e promover mudanças em si mesmo e no seu próximo. A técnica

instrumental certamente não é um objetivo primeiro, a proposta é mesmo a aproximação do

aluno com a sua musicalidade, a musicalidade do lugar aonde ele mora, produzindo e

apresentando esta música tanto na comunidade em que mora, como para o Brasil, como

acontece quando o Projeto Conexão Felipe Camarão é convidado para apresentar-se além das

fronteiras do Rio Grande do Norte.

A atmosfera das aulas de música dentro da Casa de saberes (prédio sede do Projeto

Conexão Felipe Camarão), dentro das escolas parceiras e mesmo no terreiro da Casa de Cultura

do Mestre Manoel Marinheiro, têm a mesma característica de repassar o conhecimento sem

cobranças para com a técnica musical, o que se ver é sim uma dedicação dos professores em

fazer com que os alunos tenham curiosidade e prazer em aprender, conhecendo sua própria

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cultura, questionando e analisando todo o processo educativo desenvolvido pelas oficinas de

música do projeto. Pois:

Para além da qualidade musical – muitos se revelam com habilidades na

música, composição, desenho, interpretação, entre outros aspectos –, algumas

consequências se destacam: ao se apoderarem não só de sua própria cultura,

mas de todas as possibilidades que essa cultura lhes dá, crianças e jovens ficam

mais aptos a dizerem o que pensam, a terem autonomia e personalidade.

Crescimento e desenvolvimento das crianças exigem uma equipe muito

articulada e preparada. Por isso o Conexão Felipe Camarão desenvolve

formação continuada com toda a equipe. Semanalmente, são realizados os

círculos de cultura, momento de planejamento coletivo e avaliação constante

do trabalho, reunindo educadores, mestres de tradição oral, coordenadores e

crianças e jovens integrantes das ações (SANTANA, 2010, p.34).

Os professores em sala de aula estão sempre contando histórias e/ou casos relacionados

à vivência da qual os alunos estão se deparando, como por exemplo, quando o professor traz

uma canção indígena para que os alunos aprendam e durante a aula o professor vai

contextualizando historicamente a vida e costumes da tribo ao qual a música estudada pertence,

assim foi em uma aula que observei, em que o professor de flauta, após ter contextualizado

historicamente a canção indígena da qual ele mesmo fez um arranjo para flautas, colocou os

alunos para formarem uma roda e propôs uma dança circular ao mesmo tempo em que a música

era tocada pelos alunos, criando assim uma atmosfera que evocou a música trabalhada em sua

essência funcional dentro de uma tribo de índios, aonde aquela música é dançada e tocada em

roda, por ocasião de um motivo específico para a tribo.

A ludicidade é um ponto muito importante a ser destacado nestas aulas, o professor de

flauta procura sempre está envolvendo os alunos em atividades lúdicas que referenciam aos

aspectos melódicos e contextualização do repertório trabalhado em aula, vez por outra ele chega

na sala com adereços do Auto do Boi de Reis e brinca um pouco com os alunos quebrando

qualquer clima formal, empregando assim em suas aulas descontração e diversão.

O aluno é estimulado a motivar-se em participar das aulas de música no projeto por todo

o conjunto de conhecimentos agregados, então estudar música neste projeto vai além do tocar

notas musicais, música no Projeto Conexão Felipe Camarão é integração de conhecimentos. O

Projeto Conexão Felipe Camarão tem aceitação e participação popular, a população apoia o

projeto pois encontra no mesmo suas faces.

Incentivar capacidades, incentivar a consciência do quem eu sou, o que eu quero e como

quero, assim o Projeto Conexão Felipe Camarão vem ao longo destes 11 anos de existência

proporcionado para muitos jovens do bairro a possibilidade de expansão de horizontes de vida,

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entre os jovens que passaram e passam pelas oficinas de música do projeto durante estes 11

anos, alguns revolucionaram sua forma de se colocar no mundo e de entender o mundo.

Conversei com alguns destes jovens que estudaram música quando crianças no Projeto Conexão

Felipe Camarão que hoje estão cursando faculdades de pedagogia, direito, ecologia, jornalismo,

publicidade, design, enfermagem e outros já são profissionais respeitados na cidade, fotógrafos

premiados, professores formados pela UFRN, professores de música no próprio Projeto

Conexão Felipe Camarão, alguns estão fazendo o curso técnico de música na Escola de Música

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, todos estes jovens referenciam a passagem

pelo Projeto Conexão Felipe Camarão como um divisor de águas em suas vidas que trouxe auto

estima e incentivo à busca pela realização de sonhos. Estes são apenas alguns dos reflexos dos

resultados de um bom direcionamento nas bases didáticas que são recebidas na vivência do

Projeto Conexão Felipe Camarão o qual trabalha o desenvolvimento Humano como principal

meta dentro dos objetivos das oficinas ofertadas, o Humano se construindo a partir do Humano,

pois entende-se que:

Música e educação são, como sabemos, produto da construção humana, de

cuja conjugação pode resultar uma ferramenta original de formação, capaz de

promover tanto processos de conhecimento quanto de autoconhecimento.

Neste sentido, entre as funções da educação musical teríamos a de promover

modalidades de compreensão e consciência de dimensões superiores de si e

do mundo, de aspectos muitas vezes pouco acessíveis no cotidiano,

estimulando uma visão mais autêntica e criativa da realidade (KATER,2004,

p.44).

A qualidade de vida, é isto que o Projeto Conexão Felipe Camarão quer proporcionar

para cada um dos seus alunos, possibilitando vivências que contribuam para que o aluno esteja

sempre disposto à participar das aulas com alegria e espírito de colaboração.

Nas oficinas de música os alunos conhecem primeiro a história do seu instrumento, bem

como a história do Auto do Boi de Reis, através da audição do repertório. Ensina-se o

significado que a música tem dentro de tradição cultural que será vivenciada pelo aluno no

Projeto Conexão Felipe Camarão. Perguntas do tipo: “Quem era o homem que tocava este

instrumento (rabeca, flauta, tambor) no passado? O que temos de herança deste ser?” São

questionamentos que fazem parte do educar musical do Projeto Conexão Felipe Camarão.

Quando se estuda uma determinada música durante as oficinas de música do Projeto

Conexão Felipe Camarão, antes de tocá-la o aluno aprende sobre a ancestralidade daquela

música na qual ele (o aluno) estará dedicando seus esforços para aprende-la, traz-se conceitos

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básicos sobre a origem da música que será estuda, todos os conhecimentos trabalhados nas aulas

de música ganham significado, na perspectiva do Homem e da história de vida que este Homem

teve e/ou tem, portanto é fundamental que a ancestralidade seja significada dentro das aulas de

música do projeto promovendo uma conscientização crítica entre os envolvidos neste

relacionamento de troca de saberes, assim:

O ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da

conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como

existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica

para a conscientização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser

consciente, a conscientização, como a educação, é um processo especifica e

exclusivamente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens

estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres,

como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de,

simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a

realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. E é enquanto são

capazes de tal operação, que implica em “tomar distância” do mundo,

objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres com o mundo. Sem esta

objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam reduzidos a

um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo

(FREIRE,1981, p.53).

Neste conhecimento está contida a engrenagem que faz fluir os reais anseios e desejos

destes alunos que percebem-se em um ambiente de liberdade para o desenvolvimento do que

realmente são. Por certa ocasião os alunos de flauta, começaram um trabalho de composição a

partir do estudo da tradição indígena, estudo que fez surgir a inspiração e a criatividade destes

alunos, alunos que por vezes são rotulados pelo sistema tradicional de ensino por não saberem

“escrever” não sendo portanto para escola convencional o tipo exemplar de aluno, mas que na

casa de saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão transbordam suas veias poéticas inclusive

compondo, ou seja dando significado para os ensinamentos de vida e musicais que estão sendo

repassados durante as oficinas de música oferecidas pelo Projeto Conexão Felipe Camarão.

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2.1 QUAL É A MÚSICA QUE SE ENSINA E QUE SE APRENDE NO PROJETO

CONEXÃO FELIPE CAMARÃO?

A música está enraizada em toda a base cultural geradora do Projeto Conexão Felipe

Camarão. Seja essa música, a música que guia os passos do Boi de Reis do mestre Manoel

Marinheiro, a música que embala a ginga do capoeirista nas rodas do Mestre Marcos, ou mesmo

a música aprendida nas oficinas específicas do ensino de música ofertadas pelo projeto.

Um diferencial entre o jovem que faz parte do Projeto Conexão Felipe Camarão é no

tocante a qualidade da música com a qual este jovem tem contato. Os jovens e crianças que

fazem as aulas nas oficinas de música do projeto tem contato com a música de tradição, estes

alunos estão trabalhando a sua autonomia do ouvir, sem influencias midiáticas, favorecendo

assim a possibilidade de criar e desenvolver uma identidade musical única, que nasce das

tradições do lugar aonde eles habitam. Ou seja, estes jovens que fazem aula de música no

Projeto Conexão Felipe Camarão promovem uma quebra comportamental perante a realidade

musical da cultura de massa em que os jovens de todo o Brasil estão envoltos, valorizando

assim um fazer musical de qualidade e que representa a cultura do bairro, preservado

principalmente pelas oficinas de música oferecidas pelo projeto:

Flauta

Rabeca (aulas de instrumento e/ou Luthieria)

Percussão

Canto (aprendizagem oral através do repertório do Auto do Boi de Reis Mirim)

Metais

Orquestrim (pequeno grupo formado por alunos das oficinas)

A música contextualizada com a cultura do lugar, contextualizada com o processo de

conhecimento e reconhecimento do ser enquanto cidadão. É por este caminho que a educação

musical dentro do Projeto Conexão Felipe Camarão traça o seu cotidiano.

No ano de 2003, o Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro registrou parte

do seu repertório através da gravação de um CD intitulado “Canta meu Boi”, registro que teve

o patrocínio da Petrobrás através do programa Petrobrás Cultural, as músicas do Auto do Boi

de Reis do Mestre Manoel Marinheiro, estão também nesta obra transcritas em partituras

impressas no encarte do CD, transcrição feita pelo músico Carlos Zens, músico este que atua

como professor de flauta já desde seu início do projeto.

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Toda a obra contida no CD “Canta meu Boi” serve de referencial para as oficinas de

música promovidas pelo Projeto Conexão Felipe Camarão.

Basicamente a música ensinada nas oficinas de música do Projeto Conexão Felipe

Camarão é a música de tradição oral, esta que faz parte do cancioneiro do Boi de Reis do Mestre

Manoel Marinheiro, aonde a rabeca é instrumento principal, este fato dar-se através da tradição

da rabeca do Mestre Cícero que acompanhou como músico o Auto do Boi de Reis do Mestre

Manoel Marinheiro por mais de 30 anos. Portanto a tradição da sonoridade da rabeca está

presente de forma muito representativa dentro da cultura musical que é desenvolvida no Projeto

Conexão Felipe Camarão.

O Projeto Conexão Felipe Camarão vem levando crianças e jovens que participam de

suas oficinas de música para a experiência de um fazer musical vivenciado de forma ampla, de

modo a aperfeiçoar sua prática em uma atitude que vai além de desenvolvimento técnico e/ou

estético musical.

Os instrumentos utilizados nas aulas de música do Projeto Conexão Felipe Camarão são

em parte patrocinados e em parte confeccionados na própria luthieria do projeto, este é por

exemplo o caso das rabecas. Os alunos das oficinas de música também têm a liberdade de

utilizar o espaço físico para seus estudos individuais, assim como utilizar os instrumentos do

projeto, podem pegar os instrumentos nos armários, sendo estes instrumentos logo após a

utilização devolvidos para seus respectivos armários.

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2.2 ASPECTOS BÁSICOS DE ALGUNS FAZERES TRADICIONAIS EM MÚSICA DO

PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO

Aspectos básicos observados nas oficinas de Flauta, Rabeca, Luthieria, Boi Mirim e

Orquestrim Conexão Felipe Camarão, tendo as oficinas de Metais e Percussão ficado de fora

de nossa observação, pois os horários destas oficinas coincidiam com as demais oficinas, por

tanto para uma melhor compreensão dos fazeres no tocante ao ensino da música dentro do

Projeto Conexão Felipe Camarão, optamos por observar as oficinas mais tradicionais dentro do

projeto.

Orquestrim Conexão Felipe Camarão

É comum entrarmos em uma manhã de sábado e percebermos a riqueza sonora que sai

dos quatro cantos da sede “Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão”. Sons que se

misturam e se harmonizam no objetivo de cultivar a cultura local, aos sábados pela manhã

acontecem os ensaios do grupo Orquestrim Conexão Felipe Camarão, trata-se de um grupo

musical formado por alguns estudantes das oficinas de música oferecidas pelo projeto. Neste

grupo os participantes podem dar ênfase ao estudo feito em sala de aula, pois este grupo

interpreta todo o repertório do Auto do boi de reis do Mestre Manoel Marinheiro, além de um

vasto repertório que representa a cultura nordestina, o grupo Orquestrim Conexão Felipe

Camarão é uma excelente oportunidade para que este aluno que está aprendendo a fazer música

possa desenvolver suas habilidades musicais, além de conhecer e entrar em contato com um

vasto repertório, o grupo ainda tem a oportunidade de fazer várias apresentações em eventos

locais e nacionais como na semana de ciência, tecnologia e cultura da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte (CIENTEC) e na Teia Nacional da Diversidade.

Boi Mirim

A casa do mestre Manoel Marinheiro todos os sábados é ponto de encontro das novas

gerações que estão neste momento contribuindo para a conservação da cultura do Auto do Boi

de Reis do mestre Manoel Marinheiro, cultura que está bem guardada pela viúva do mestre

Manoel Marinheiro a senhora Odaíza de Pontes Galvão, a qual leva esta cultura tanto para

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dentro das escolas do bairro, através de parcerias bem como para o terreiro de sua casa.

Comprometida com a manutenção do Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro D.

Odaíza (D. Iza) pioneira por ter sido a primeira mulher a desempenhar um papel no Auto do

Boi de Reis de Manoel Marinheiro, pois tradicionalmente mesmo os personagens femininos do

Auto são interpretados por homens “vestidos de mulher”, D. Iza também é uma das professoras

de música do Projeto Conexão Felipe Camarão, o trabalho desenvolvido por esta Griô é ensinar

de forma oral a tradição de família, então hoje D. Iza tanto ensina em sua residência (Casa de

Cultura do Mestre Manoel Marinheiro, na Av. Rainha do Mar, s/n – Felipe Camarão), quanto

nas escolas da rede pública do bairro que são abertas ao diálogo com as tradições populares do

próprio bairro, intensificando assim a cultura do povo daquele bairro, cumprindo com o seu

papel de Griô perante a comunidade.

O papel dos educadores e dos mestres de conduzir os diálogos de saberes se

concretiza na compreensão do processo de aprendizagem da tradição, que

passa dos mais velhos para os mais novos, considerando que os diálogos com

as gerações mais novas trazem desafios aos novos saberes e suas ferramentas.

Esses aspectos são observados no cotidiano do projeto, por envolver

educadores com formação especifica, mestres de tradição oral, que acumulam

seus saberes pela história de vida. O programa Ação Griô Nacional intensifica

a importância desses mestres no contexto educacional e no diálogo com a

escola, e também agrega crianças e jovens, influenciados por todas as formas

de cultura e tecnologias digitais e saberes novos, diferentes da tradição

(SANTANA, 2010, p.35).

Na oficina da D. Iza, os alunos aprendem todo o cancioneiro do Auto do Boi de Reis de

forma tradicional através da cultura Oral, as crianças chegam e aprendem ao mesmo tempo

passos e música, não existe cobrança de caráter técnico, todos os resultados são alcançados de

forma natural, com a vivência da prática do Auto do Boi de Reis,

Com D. Iza as crianças aprendem música, dança e história, mas também a confeccionar

alguns adereços para o Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro.

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Aulas de Flauta

Nas aulas de flauta os alunos aprendem a partir da flauta doce e com o passar do tempo

podem estar ingressando no estudo da flauta transversal, o professor de flauta é um dos mais

experientes tanto no tocante a colaboração dentro do projeto quanto a atuação profissional como

professor e músico no cenário local como no cenário nacional da música instrumental,

instrumentista graduado em Flauta transversal, sendo também compositor.

A partir das aulas observadas, nota-se que o professor não adota um método específico

para desenvolver o seu trabalho, mas que utiliza-se principalmente da sensibilidade atribuída à

sua experiência profissional, o professor de flauta aborda o ensino da música por vários meios,

imitação, leitura, improviso, voltando-se ao interesse na cultura indígena e nordestina.

O aluno é apresentado ao instrumento por uma abordagem de base, uma fundamentação

que ensina ao aluno tanto a forma mais eficiente de segurar o instrumento e de emitir os sons

mais definidos, o que encontramos em basicamente todos os métodos tradicionais de flauta que

são adotados pela academia, o diferencial deste ensino é a contextualização temática das aulas

e a capacidade que o professor tem em mobilizar o aluno para que este entre em contato com

sua própria capacidade de entendimento e aprendizagem, concordando que:

Normalmente o educador musical possibilita ao aluno o contato com suas

próprias potencialidades e limites do ponto de vista musical, dando subsídios

e orientando sua exploração e superação. Isto, que poderia

desapercebidamente passar nomeado como “em primeira instância”, envolve

já um componente de trabalho diretamente ligado ao ser. Porque explorar

potenciais ou habilidades, superar situações ou limites vai em geral muito

além de uma relação técnica com a música, envolvendo matéria e código, por

exemplo. Trata-se de um processo formador onde há incidência de

esclarecimentos sobre algo momentaneamente ainda desconhecido e não

apropriado, do que se ignora sobre si mesmo e que se mescla com o que é

também ignorado sobre os outros e seu funcionamento.

Considerar uma educação musical formadora nos remete a um processo

educativo, não genericamente “dinâmico” mas, essencialmente

desimobilizante. Nele se busca estabelecer os meios para revitalizar o

interesse por isto que atualmente definimos como “música” e também pelas

músicas, pelos sons, fontes sonoras, pessoas e pelo mundo que constroem e

habitam. Redimensionar o interesse, explorando a percepção de cada

indivíduo sobre si e sobre o complexo de relações no qual interage. E é

justamente a intensificação da percepção (no micro ou macro universo), a

atenção ativada, que nomeamos consciência. Neste sentido então é que a

educação musical pode tornar-se um excelente meio de conscientização

pessoal e do mundo (KATER, 2004, p.45).

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Em aula os aspectos técnicos que alunos trabalham são basicamente emissão, afinação,

projeção sonora e constância rítmica, tudo isto sendo contextualizado no ato de fazer música,

ou seja nem um dos conteúdos estudados é dissociado do fazer musical, os alunos vão se

adaptando aos poucos ao executar de cada um destes itens citados.

Na execução de uma canção denominada “Rap de Felipe Camarão” (canção cuja letra

conta sobre o bairro Felipe Camarão e os costumes dos seus moradores, composta por professor

e alunos), apenas com uma nota os alunos novatos, já tocam o arranjo feito para a música na

primeira aula, pois o arranjo do professor é pensado justamente para conseguir envolver todos

os alunos tanto os novatos como os mais antigos.

Este ensino de flauta segue a princípio a tradição oral, mas com o decorrer das aulas os

alunos já passam a ter contato com as notas escritas em uma partitura de forma natural, pois

existe a complementação do oral com a escrita, sempre a escrita, vindo depois do contato oral

do aluno com o tocar do seu instrumento, portanto o próprio professor vai introduzindo

conceitos de teoria musical, mas sem cobranças que abordem o aluno com a obrigação de ler

música, pelo contrário o aluno é envolvido no prazer de descobrir a música, por tanto ele (o

aluno) mesmo se interessa por descobrir o mundo da leitura musical, pois embora quase todo o

repertório trabalhado nas oficinas de música sejam de tradição oral, os alunos podem contar

com o auxílio das partituras, pois estão quase todas transcritas para a partituras, transcrição

desenvolvida pelo próprio professor.

Luthieria de Rabecas

A invenção da rabeca repousa em relativa obscuridade, pois não há, na

documentação histórica, uma trajetória clara sobre o caminho percorrido por

esse instrumento. O que se tem descrito é que a rabeca chegou ao Brasil com

os colonizadores portugueses e espanhóis, tendo permanecido ligada às

práticas musicais de comunidades afastadas do processo de industrialização e

da educação formal (SANTOS, 2011, p.18).

A existência de uma luthieria de rabecas promovida pelo projeto conexão Felipe

Camarão dentro das dependências da Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão

enriquece ainda mais a presença e valorização da música que se aprende nas oficinas.

O espaço físico da luthieria de rabecas é um espaço amplo uma sala repleta de

ferramentas e material para que além de tocar o aluno possa se quiser, se aperfeiçoar mais,

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podendo aprender a fabricar seu próprio instrumento. As rabecas tocadas nas oficinas de rabeca

são instrumentos produzidos pela própria oficina de luthieria do projeto. Um dos principais

objetivos desta oficina de construção e manutenção de rabecas é estar cada vez mais

disseminando a cultura da tradição da música nordestina de rabeca.

No ano de 2011 esta iniciativa da luthieria de rabecas foi levada para além dos limites

físicos do bairro Felipe Camarão através de uma parceria com o Instituto Federal do Rio Grande

do Norte (IFRN) aonde as aulas práticas e teóricas se dividiam entre os ambientes formais e

não formais de ensino, pois as aulas teóricas eram realizadas nas dependências do IFRN e as

aulas práticas eram realizadas dentro da Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão.

Aulas de Rabeca

A rabeca é um instrumento de cordas tangidas por um arco de crina animal ou

sintética, desprovido de padrões universais de construção, afinação e

execução. Na sistematização Sachs e Hornbostel a rabeca pode ser classificada

como um cordofone composto, por possuir uma caixa de ressonância como

parte integrante do instrumento; ao contrário de um berimbau, que é um

cordofone simples, podendo ser tangido mesmo sem a caixa de ressonância,

embora com alterações no timbre. A rabeca também poderia ser incluída na

família do violino, sendo uma variação popular de instrumento de corda de

arco. Existem duas formas básicas de construção: rabecas esculpidas (ditas

“de cocho”) ou manufaturadas em partes separadas (SANTOS, 2011, P.29).

Na oficina de rabeca percebe-se que o professor está voltado para o ensino oral, apenas

em alguns momentos ensina com o auxílio do quadro branco, que contendo os nomes das notas

das canções trabalhadas, sendo a repetição oral o aspecto metodológico que se fez notar.

O professor é atencioso para a afinação do instrumento, bem como para o bem estar

físico dos alunos, ou seja se este aluno está segurando o instrumento de forma confortável ou

não, se a sonoridade está evoluindo dentro do grupo, as afinações dos instrumentos são checadas

sempre antes de começar uma aula e mesmo durante a aula, este é um aspecto que o professor

não deixa de observar.

Os alunos são incentivados a tocarem música desde o princípio, pois o professor

utilizasse do próprio repertório para contextualizar suas aulas, ou seja as aulas partem da

execução do repertório de trabalho.

A aprendizagem do vai progredindo com o passar das aulas, a evolução da turma dar-se

muito pelos incentivos do professor que sempre passa otimismo para seus alunos, fazendo com

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que a turma esteja cada dia mais confiante e disposta a aprender. Sobre o ensino da rabeca no

Projeto Conexão Felipe Camarão podemos afirmar em concórdia com as palavras de Santos,

que:

Embora o ensino da rabeca seja ministrado sem o uso de notas no pentagrama

e outros elementos da linguagem musical ensinada em conservatórios, alguns

procedimentos conhecidos do ensino formal dos instrumentos de arco foram

incorporados, de alguma maneira, às aulas da rabeca. Os espelhos de algumas

rabecas são marcados com fitas adesivas brancas para orientar os alunos a

encontrar os tons de maneira mais fácil, artifício utilizado no método Suzuki

para cordas [...] Para os iniciantes, o costume é desenhar as cordas do

instrumento na lousa e indicar-lhes o nome por escrito. A prática de escalas

também faz parte do aprendizado para tocar a rabeca. A escala utilizada é a de

Dó maior executada na primeira posição e com uso de apenas três dedos,

contudo não há nenhuma explicação formal do que são escalas, tons e

semitons. Para ajudar a memorização das melodias, é solicitado aos alunos

novatos que cantem a melodia solfejando o nome das notas. Consiste em um

recurso, apenas, para decorar as melodias no instrumento. Não há ênfase na

entonação (SANTOS, 2011, p.59).

As Rabecas são as maiores representantes da musicalidade que transita pelos corredores

da Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão. É emocionante ouvir a sonoridade

deste instrumento na execução do repertório do Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel

Marinheiro pelos alunos do projeto.

A originalidade da essência deste instrumento dentro do contexto do seu ensino pelo

Projeto Conexão Felipe Camarão recebe influência do mestre Cícero da Rabeca que também

foi responsável pela formação inicial de alguns dos alunos do Projeto Conexão Felipe Camarão,

alunos que são e/ou já foram monitores ou professores de rabeca dentro do projeto, o Mestre

Cícero da Rabeca faleceu no dia 03 de fevereiro de 2012 aos 92 anos de idade.

Cultura potiguar de luto, morre Cícero Joaquim de Oliveira, o Mestre Cícero

da Rabeca, aos 92 anos, em plena lucidez, na tarde desta sexta-feira (3), em

sua casa, no distrito de Santo Antônio do Potengi, em São Gonçalo do

Amarante. Foi responsável pela formação musical de jovens do bairro de

Felipe Camarão. Pelo programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, que

incentiva a tradução oral por intermédio da cultura, foi reconhecido Griô

(TRIBUNA, 2012).

Apesar de sua morte física o espírito da música deste mestre continua viva e cada vez

mais se multiplicando e ecoando pelas ruas de Felipe Camarão. O atual professor de rabeca,

começou seus estudos ainda criança na Casa de Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão.

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CAPÍTULO III

3 PARA QUEM E PARA QUE SE ENSINA MÚSICA NO CONEXÃO FELIPE

CAMARÃO?

Música como ferramenta de integração, pois a partir das manifestações de base que

fundaram o projeto e principalmente o Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro, se tem uma

musicalidade e sonoridades próprias que em nenhum momento podem ser deixadas de lado,

pois junto com a prática e o conhecimento desta música pelos jovens da nossa

contemporaneidade, existe a preservação e valorização desta cultura do bairro, na qual está

contida uma importância histórica de preservação cultural, não deixando assim desaparecer esta

herança social dos seus ancestrais, ou seja o ensino da música existe como um facilitador desta

compreensão, assim como afirma Kleber:

A abordagem de cunho socioeducacional, envolvendo as práticas musicais e

o processo pedagógico-musical, pressupõe a interpretação e análises dos

diferentes contextos do mundo social, intrínsecos e idiossincráticos dos atores

sociais. A compreensão das práticas musicais, enquanto articulações

socioculturais permeadas de formas e conteúdos simbólicos, se refletem no

fluxo e refluxo da organização social e no modo de ser dos seus respectivos

grupos. Trata-se portanto, da construção e reconstrução das identidades

sociais e culturais desses grupos (KLEBER, 2014, p.34)

A educação musical dentro do Projeto Conexão Felipe Camarão é uma das pontes que

apresenta os costumes e tradições ancestrais de um povo para este mesmo povo, fazendo assim

com que este cidadão do presente se reconheça como ser histórico, reconhecendo-se como um

povo rico culturalmente, de uma riqueza que ultrapassa gerações, percebendo-se este homem

de hoje através de sua ancestralidade, ancestralidade esta que está nos sons dos tambores,

rabecas, flautas e cantos do passado entoados pelo homem contemporâneo, nas ruas de um

bairro de periferia.

Despertar a consciência humana, no sentido do fazer com que este aluno questione-se:

que homem sou eu, aonde eu vivo, o que posso fazer? A educação musical dentro do projeto

Conexão Felipe Camarão aproxima o aluno de suas realidades.

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3.1 O REPERTÓRIO

O repertório trabalhado pelas oficinas de música é todo o cancioneiro do Boi de reis do

Mestre Manoel Marinheiro, mas este repertório não fica restrito ao cancioneiro do Boi do

Mestre Manoel Marinheiro, os professores trazem também para seus alunos um variado

repertório que tem como base os costumes do povo brasileiro.

Em suas aulas os professores podem estar trabalhando o repertório de Chico Antônio

(mestre do coco de ganzá norte rio-grandense) e música indígena, só neste exemplo existe uma

riqueza musical imensurável, riqueza esta que é repassada para os alunos dentro da Casa de

Saberes do Projeto Conexão Felipe Camarão.

Um ensino contextualizado, pois a música no Projeto Conexão Felipe Camarão não é

técnica e sim história, quando estes alunos tocam uma música de qualquer cultura antes de

começarem a aprender das notas que compõem a melodia que será estudada, eles começam a

aprender sobre quem fez aquela música, de onde veio aquela música e o quê esta música quer

lhes ensinar.

No ano de 2003 foi lançado o CD Canta Meu Boi, aonde todo o repertório do Auto do

Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro foi registrado, o então professor Carlos Zens foi o

responsável por transformar os registros que até então eram orais em partituras musicais, ou

seja além do registro fonográfico a gravação do CD “Canta meu Boi” nos deixou uma rica

documentação musical escrita em partituras.

Abaixo encontra-se a lista das faixas gravadas no CD Canta Meu Boi gravado no ano

de 2003:

1. Massêra

2. Na chegada desta casa

3. Loas do mestre

4. Menino Jesus da Lapa

5. Mar cessando areia

6. Tanguinho de Guiné

7. Nas horas de Deus amém

8. Bate asa canta o galo

9. O Jaraguá

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10. Trabalha marujo

11. A burrinha

12. Meu navio está no porto

13. O gigante

14. O cão

15. Ó gente que terra é aquela

16. Pastorinha ó mana

17. O boi/despedida do boi

18. Despedida da maruja

No encarte do CD estão todas as letras e as partituras de cada uma das canções contidas

nesta obra, sendo este trabalho por uma ferramenta didática muito útil para o conhecimento do

aluno das oficinas de música do Projeto Conexão Felipe Camarão, além de ser um importante

registro sonoro, pois guarda cantos de tradição dentro da cultura do Auto do Boi do Mestre

Manoel Marinheiro.

3.2 QUEM ENSINA MÚSICA NO PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO E

COMO ENSINA?

Este professor é antes de tudo um desafiador, disposto ensinar nos limites dos riscos de

estar penetrando em uma comunidade tão sofrida, ultrapassando estes limites. Este professor é

um cidadão que vai ao encontro da desigualdade, para dela extrair igualdades e valores

humanos, o professor de música do projeto Conexão Felipe Camarão é antes de tudo um

profissional que se identifica com o trabalho de resgate cultural do projeto. É um professor que

está fora das amarras do conservadorismo do ensino bancário, pelo contrário, este professor

estar disposto a levar o seu aluno à campo, fazer com que o próprio aluno descubra soluções e

busque estar sempre curioso a respeito do instrumento e da música que ele aprende nas oficinas

de música oferecidas pelo projeto Conexão Felipe Camarão, indo de acordo com este

pensamento temos as palavras de Brito, ao afirmar que:

[...] cabe ao educador facilitar situações para uma aprendizagem autodirigida,

com ênfase na criatividade, em lugar da padronização, da planificação e dos

currículos rígidos presentes na educação tradicional. Mais do que programas

que visam a resultados precisos e imediatos, é preciso contar com princípios

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metodológicos que favoreçam o relacionamento entre o conhecimento (em

suas diversas áreas), a sociedade, o indivíduo, estimulando, e não tolhendo, o

ser criativo que habita em cada um de nós (2011, p.33).

Os professores de música do projeto conexão Felipe Camarão ao longo desta década de

existência vem tento perfis pessoais de formação musical bastante diversificados, pois pelo

projeto já passaram professores formados por universidades em diversos níveis (técnicos,

graduados, licenciados), bem como músicos formados pela tradição oral, como no caso do

próprio Mestre Cícero da Rabeca, que foi o primeiro professor de rabeca do projeto Conexão

Felipe Camarão. Hoje alguns dos professores atuantes no projeto, foram em outra ocasião

alunos do mesmo projeto.

O diferencial deste professor é a identificação com o projeto e com a metodologia base

que gera o fazer educação que é trabalhado dentro do projeto, aonde tudo é interligado, cada

ação de cada uma das oficinas perpassa o conhecimento das demais ações e oficinas trabalhadas

dentro do projeto, nenhum conhecimento é isolado todos os conhecimentos aprendidos dentro

das oficinas de música do projeto Conexão Felipe Camarão são integralizados uns com os

outros.

Os conhecimentos se fundem, a criança que está nas aulas do Boi Mirim dialoga sobre

seu conteúdo de estudo com o aluno de rabeca, bem como com todos os demais alunos, pois

todos estão estudando de uma forma ou de outra sobre o mesmo assunto, sobre o mesmo

conhecimento, essa ponte de diálogos sobre os conhecimentos estudados é promovida pelos

professores, que já no planejamento de suas aulas discutem coletivamente sobre os conteúdos

a serem trabalhados durante cada semestre, em reuniões de planejamentos com toda a equipe

gestora do projeto Conexão Felipe Camarão, aonde todos tem voz, todos respeitam as posições

dos colegas, pois o objetivo é o mesmo para toda a equipe, promover cidadania dentro da

comunidade através das ações promovidas pelo projeto.

Nota-se um espírito de colaboração entre todos os professor, monitores e equipe gestora,

aonde inclusive durante as aulas os professores estão dialogando entre si, participando uns das

aulas dos outros, promovendo um bom convívio coletivo, favorecendo ainda mais o

entendimento do aluno para com valores que o Projeto Conexão Felipe Camarão julga serem

construtivos tanto para a convivência dos alunos no projeto quanto para a vida em sociedade,

valores como a coletividade, o respeito e a colaboração. É inexistente qualquer tipo de auto

promoção por parte deste professor de música, pois este professor está fazendo um trabalho de

capacitação cidadã e não de auto promoção artística e/ou profissional este profissional dar lugar

ao sentimento de ajuda, colaboração e facilitação.

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É necessário um envolvimento com o projeto e com os alunos que estenda-se além do

momento da aula. Em alguns momentos da minha observação pude perceber a preocupação do

professor com a volta do aluno para casa, perguntando com quem aquele aluno iria voltar para

casa, se alguém viria busca-lo ou mesmo se o aluno gostaria que o professor o acompanhasse

até em casa, pude presenciar também o professor emprestando livros de seu acervo particular,

para que o aluno pudesse conhecer este ou aquele assunto de seu interesse, também presenciei

o professor emprestando instrumentos próprios para seus alunos, pequenos detalhes que

enriquecem a relação entre professor e aluno e que engrandece a confiança na relação, que

mostra com isso não ser burocrática e/ou bancaria.

Pude presenciar também conselhos e conversa sobre valores humanos, aonde em certo

momento da aula de música um professor aproveita um dado assunto e transpõe este assunto

para o cotidiano, para as ações que são oferecidas pela vida, tanto nos aspectos sociais quanto

em aspectos pessoais.

Ou seja o professor tem de estar disposto a ser um exemplo não só musical para os

alunos mas também um exemplo pessoal. Um caso que me chamou muito atenção durante uma

aula de flauta que observei, foi que em dado momento da aula os alunos começaram a falar que

tinham visto o professor na televisão, comentavam então sobre o fato de terem um professor

famoso e que um dia eles também iriam aparecer na televisão, isto tudo em uma atmosfera de

respeito, descontração e admiração.

Um professor que esteja aberto à reconstruir o seus saberes docente, sempre em busca

de reconsiderações e abertos a uma simplicidade de atos e pensamentos que são raros de serem

encontrados em nossa contemporaneidade, nota-se também a compreensão dos significados

atribuídos ao aprender musical do projeto que visa o desenvolvimento pleno do aluno enquanto

ser pensante, contribuindo assim para o entendimento que o potencial musical destes alunos

não precisa nem deve virar mercado.

Educar musicalmente com sensibilidade humana, esse é seu papel do profissional que

atua como professor de música no projeto Conexão Felipe Camarão, ser sensível as

necessidades do público atendido, ingrediente que não deve faltar na relação com este público

carente de tantas necessidades, são alunos que em algumas vezes tem suas vidas

desestruturadas, no tocante ao social e ao familiar, alunos que chegam na Casa de Saberes do

Projeto Conexão Felipe Camarão por perceber ali um lugar que poderá vir a possibilitar mais

qualidade de vida para ele, então neste caso um professor de música deve ser um ser que

possibilite novas descobertas não só com relação ao conhecimento musical, mas este

conhecimento musical deve proporcionar à este aluno um conhecimento de vida, vida além das

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notas musicais, embora este conhecimento de vida seja de certa forma conduzido através das

notas musicais aprendidas por este tão necessitado aluno, dar significado a música que se ensina

e aprende pois assim como diz Penna (2012, p.33), nada é significativo no vazio, um processo

de musicalização tudo tem que fazer sentido, tudo tem que ser significativo, para assim conduzir

os envolvidos no processo, professor e aluno pelo caminho sensível, aonde tudo é possibilidade.

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CAPÍTULO IV

4 O QUE É O PROJETO CONEXÃO FELIPE CAMARÃO NAS PALAVRAS DE UM

JOVEM QUE VIVÊNCIA O PROJETO HÁ DEZ ANOS.

Este jovem hoje com 22 anos de idade, acompanha o projeto Conexão Felipe Camarão

está desde os 10 anos de idade, vem com seu depoimento inteirar o que foi dito até agora sobre

a influência que o trabalho desenvolvido pela ONG Terramar através do projeto Conexão Felipe

Camarão tem sobre os seus alunos. Hoje ele atua como monitor nas aulas de rabeca e articulador

comunitário, ou seja ajuda a orientar as ações do campo e facilitar as relações entre escolas,

comunidade e instituições.

“Aos 10 anos de idade fui com um amigo visitar o projeto, ele estava indo matricular –

se na oficina de rabeca e quando chegamos eu lá vi a oficina me apaixonei pelo som da

rabeca.”

4.1 O que mudou em sua vida naquela época (pessoal, familiar)?

Eu não conhecia a história do bairro em que moro e só tinha como referência de lazer e

tradição as brincadeiras de rua com amigos nas construções do saneamento, eram crateras

enormes onde todos brincavam de pular. O que lembro é que a violência que existia no bairro

fazia a minha família não querer que eu saísse de casa com medo e a gente sofria muita

discriminação por parte das pessoas de outras partes da cidade. Com o projeto, além de conhecer

um mundo de histórias sobre o bairro e suas tradições, pude ter acesso a educação musical,

política, e com isto melhorar meu relacionamento em casa no ponto de vista de maturidade e

objetivos de vida. Hoje vejo que meus pais se orgulham em poder falar para as pessoas que eu

toco rabeca, sou articulador comunitário e faço faculdade e nunca esqueci dos valores que

aprendi no conexão pois ele foi um ponto forte na minha formação.

4.2 O que muda na sua vida hoje?

Minha vida hoje é dedicada a querer contribuir cada vez mais para mudar a realidade do

bairro a partir da arte que aprendi e que tanto faz bem e humaniza as gerações que vão crescendo

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junto ao projeto. Sou muito feliz por ter passado por este resgate de valores que me mostraram

a que povo pertenço, e de ter orgulho em defender que tenho um sangue de guerreiros, reis e

rainhas e querer sempre lutar contra a discriminação que ainda existe seja racial, sexual ou

política.

4.3 O que é música na conexão (no projeto Conexão Felipe Camarão), para que serve o

ensino (aprendizagem)de música para você?

Música na conexão é ferramenta de cidadania, aos moldes de Paulo Freire, Darcy

Ribeiro entre outros grandes mestres da educação. Resgatamos a tradição musical dos mestres

populares locais e nacionais, e fortalecemos a identidade da comunidade como rica e possível.

Valorizamos a interdisciplinaridade que a música carrega e contribuímos para a educação

escolar das pessoas que frequentam as oficinas no projeto. A história do Brasil, a linguagem do

nosso povo, a sociedade em que vivemos o nosso corpo, o valor da aprendizagem, todos são

parte do que é possível se aprender a partir da música e da tradição oral. Formamos para a vida

e incentivamos a procura pelo bem coletivo. Isso se reflete na vida profissional formando seres

humanos mais fraternos e comprometidos com o mundo em que vivem.

4.4 Como foi sua relação com seus primeiros professores de música, eles te ensinaram

além da música?

Meus professores foram o Mestre Cícero da rabeca e o músico Josenilson da rabeca os

dois, o mestre com poucas palavras ensinava muito, seu jeito de tocar, sua forma de ensinar, de

afinar o instrumento sem precisar de diapasão, conhecimentos sobre o instrumento e a tradição

que ele levou uma vida para aprender e do Josenilson, a sensibilidade, a linguagem musical, a

técnica, o correr atrás, são valores que aprendi e que passo para os alunos que hoje recebem de

mim conhecimentos que vieram dessa experiência brilhante. Ensinaram também os costumes

antigos e nos fizeram pensar muito no futuro e no presente, o mestre com seu gosto pela tapioca

com café, o professor que adorava fazer pizza, falavam sobre profissões e sobre a realidade do

povo antigo e do atual sempre nos dando orientações que nos serviam para correr atrás dos

nossos sonhos sem esquecer quem somos e de onde viemos.

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4.5 Para você o que é o conexão Felipe Camarão?

Conexão para mim é uma universidade do saber popular. Pois nele está o tripé das

matrizes de todas as tradições brasileiras e é um espaço vivo de criação, pesquisa e mesmo a

inovação que precisamos garantir para melhor nos contextualizar no mundo em que vivemos.

Um ponto de cultura que precisa ter espaço próprio para se fortalecer, uma família e uma casa

para todos os valores humanos.

4.6 E para você enquanto morador do bairro, se não houvesse o projeto, como você acha

que seu bairro poderia ser nos dias de hoje?

Um bairro com mais de 70 mil pessoas que não se reconhecem historicamente, não se

reúnem para lutar juntos, festejar juntos, onde crianças não podem brincar por medo da

violência e os pais que temem as drogas, onde o lixo do povo destrói a natureza, não seria o

mesmo se não tivesse uma força como essa sendo valorizada. A cultura faz do nosso bairro um

lugar mágico, rico, feliz, digno. Tenho orgulho de ser da periferia por pertencer a essa rede de

pessoas que fazem tudo isso acontecer e entender a importância que existe em cada lugar desse

nosso Brasil e em especial em Felipe Camarão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Projeto Conexão Felipe Camarão nos mostra que o ensino da música contextualizado

com a herança cultural e ancestralidade de um povo, é sem dúvidas um grande desafio. E que

os professores que já tiveram a oportunidade de vivenciar este desafio com certeza são

profissionais atentos às necessidades humanas.

O projeto Conexão Felipe Camarão vem se mostrando ao longo dos seus onze anos de

existência, uma das mais importantes iniciativas sociais da cidade do Natal, pois este projeto é

além de tudo uma nova projeção do bairro Felipe Camarão para o mundo, os jovens que vivem

no bairro podem vivenciar um bairro mais humano, mais colorido e cheio de vida, graças a

crença de uma educadora no ser humano, quando no ano de 2003 a professora Vera Santana

articulava as rodas de conversas com os mestres de cultura locais do bairro, ela o fazia por ter

a consciência de que só o Homem é capaz de mostrar ao Homem as diversas e ímpares

possibilidades de ser, estar e continuar.

A educação musical dentro de um projeto como o Conexão Felipe Camarão tem uma

função muito especial, é uma musicalização única no mundo, pois só lá no bairro temos a

cultura do Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro, para servir de inspiração.

Assim preservando a cultura do povo daquele lugar, a Casa de Saberes do Projeto

Conexão Felipe Camarão, vai formando um novo Homem, um Homem que olha para trás para

poder se reconhecer no que ele é hoje. Contribuindo assim para que esta referência do humano

não se perca.

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REFERÊNCIAS

BEZERRIL, Sandra Maria de Lima. Caracterização sócio-ambiental do bairro de Felipe

Camarão- Natal/RN/ Sandra Maria de Lima Bezerril. –Natal, RN, 2006.

BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter Educador: o humano como objetivo da educação

musical/ Teca Alencar de Brito – 2ª ed. – São Paulo: Peirópolis, 2011.

CHESF, Eletrobrás. Revista Chesf. Ministério das Minas e Energia. Ano 2, n.4, 2011.

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade/ Paulo Freire – 5ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1981.

KATER, Carlos. O que podemos esperar da educação musical em projetos de ação social.

Revista da ABEM, março 2004. n.10.

KLEBER, Magali Oliveira. A prática da educação musical em ONGs: dois estudos de caso no

contexto urbano brasileiro/ Magali Oliveira Kleber – 1 ed. – Curitiba. Appris, 2014.

LIMA, Eliane. Morre o Mestre Cícero da Rebeca. Natal, 3 de fevereiro de 2012. Disponível

em:blog.tribunadonorte.com.br/abelhinha/80184. Acesso em: 14 de Out. 2014

PENNA, Maura. Música (s) e seu ensino/Maura Penna. 2. Ed. Ver. e ampl. – Porto Alegre:

Sulina, 2012.

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. A dinâmica de transmissão dos saberes musicais em culturas

de tradição oral: reflexões para o campo da educação musical. XVII Encontro Nacional da

ABEM, 2008.23p.: il.

SANTANA, Vera. A escola na comunidade, a comunidade na escola. Cadernos Cenpec, 2010

n. 7

SANTOS, Roderick. Isso não é um violino?: usos e sentidos contemporâneos da rabeca no

Nordeste / Roderick Santos. – Natal: IFRN, 2011.

SEMURB. Natal: meu bairro, minha cidade. Departamento de informação, pesquisa e

estatística. Natal/RN 2009.

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ANEXOS

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CARTAZ DO EVENTO CONEXÃO BRASIL, PROMOVIDO PELO PROJETO

CONEXÃO FELIPE CAMARÃO.