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47 Psicologia & Sociedade; 16 (3): 47-56; set/dez.2004 O ENCONTRO TRANSFORMADOR EM MORADORES DE RUA NA CIDADE DE SÃO PAULO Aparecida Magali de Souza Alvarez Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Augusta Thereza de Alvarenga Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Nelson Fiedler-Ferrara Instituto de Física da Universidade de São Paulo RESUMO: Este trabalho busca a caracterização do encontro transformador entre seis moradores de rua e duas professoras na cidade de São Paulo. Este encontro possibilitaria a transformação psíquica dos envolvidos, no sentido de promover o despertar das potencialidades de self, do sentido de suas vidas, contribuindo para a promoção da resiliência. À resiliência, compreendida como “a capacidade humana de fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecido ou inclusive transformado”, foi associada a noção do ágape, amor ao próximo, articulado com conceitos de self e falso self . Neste estudo longitudinal, o morar na rua surgiu como situação existencial excludente, favorecendo envolvimentos com droga e criminalidade. Revelou-se nova configuração nas psiques dos moradores de rua - em movi- mento transformador - junto às pessoas que foram seus pontos de apoio positivos. No entanto, tiveram dificuldades na permanência nesse processo sem o apoio mais amplo da Sociedade Civil e Estado. PALAVRAS-CHAVE: Encontro Transformador - Resiliência - Moradores de rua - Saúde Pública - Exclusão social. THE TRANSFORMING ENCOUNTER IN HOMELESS PEOPLE IN SÃO PAULO CITY ABSTRACT: This work aims to characterize the transforming encounter between six homeless people and two teachers in the city of São Paulo. This encounter would enable the psychic transformation of the people involved, promoting the awakening of the potentialities of the self, of the meaning of their lives, and contributing to the promotion of resilience. Resilience is understood as “the human capacity to cope with life’s adversities, to overcome them and to become stronger or even be transformed because of them”. This was associated with the notion of agape, love for one’s fellow humans, articulated with the concepts of self and false self. In this longitudinal study, dwelling in the street emerged as an excluding existential situation, favoring involvements with drugs and criminality. A new configuration in the psyches of the homeless was revealed – in a transforming movement –, in contact with people who were their positive supporting points. However, they had difficulties to remain in this process without the broader support of the Civil Society and of the State. KEY- WORDS: Transforming Encounter – Resilience – Homeless People – Public Health – Social exclusion. INTRODUÇÃO Este trabalho é parte de pesquisa cujo pro- blema de investigação se constituiu na busca da caracterização de uma interação psicossocial es- pecífica entre os seres humanos, denominada de encontro transformador, que possibilitaria a trans- formação psíquica dos envolvidos, no sentido de promover o despertar das potencialidades de self, com a retomada do sentido de suas vidas, contri- buindo para a promoção da resiliência. Ao concei- to de resiliência, compreendido como a “capacida- de humana de fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecido ou inclusive trans- formado” (GROTBERG, 1996), e aprofundado por Alvarez (1999, 2003), foi associada a noção de ágape definido como “amor às outras pessoas hu- manas, amor ao próximo” (BOLTANSKI, 1990). Essa noção - articulada com outros conceitos - será me- lhor explicitada em suas características em outras seções deste artigo, sem a pretensão de esgotar- mos sua complexidade. Aos conceitos referidos aci- ma foram articulados os conceitos de self e falso self. A respeito do self e falso self Gilberto Safra explicita que Winnicott traz a idéia de um self cen- tral como potencial herdado pela criança que, já

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Psicologia & Sociedade; 16 (3): 47-56; set/dez.2004

O ENCONTRO TRANSFORMADOREM MORADORES DE RUA

NA CIDADE DE SÃO PAULOAparecida Magali de Souza Alvarez

Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São PauloAugusta Thereza de Alvarenga

Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São PauloNelson Fiedler-Ferrara

Instituto de Física da Universidade de São Paulo

RESUMO: Este trabalho busca a caracterização do encontro transformador entre seis moradores de rua eduas professoras na cidade de São Paulo. Este encontro possibilitaria a transformação psíquica dosenvolvidos, no sentido de promover o despertar das potencialidades de self, do sentido de suas vidas,contribuindo para a promoção da resiliência. À resiliência, compreendida como “a capacidade humanade fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecido ou inclusive transformado”, foiassociada a noção do ágape, amor ao próximo, articulado com conceitos de self e falso self . Neste estudolongitudinal, o morar na rua surgiu como situação existencial excludente, favorecendo envolvimentoscom droga e criminalidade. Revelou-se nova configuração nas psiques dos moradores de rua - em movi-mento transformador - junto às pessoas que foram seus pontos de apoio positivos. No entanto, tiveramdificuldades na permanência nesse processo sem o apoio mais amplo da Sociedade Civil e Estado.PALAVRAS-CHAVE: Encontro Transformador - Resiliência - Moradores de rua - Saúde Pública - Exclusãosocial.

THE TRANSFORMING ENCOUNTER IN HOMELESS PEOPLE IN SÃO PAULO CITY

ABSTRACT: This work aims to characterize the transforming encounter between six homeless people andtwo teachers in the city of São Paulo. This encounter would enable the psychic transformation of thepeople involved, promoting the awakening of the potentialities of the self, of the meaning of their lives,and contributing to the promotion of resilience. Resilience is understood as “the human capacity to copewith life’s adversities, to overcome them and to become stronger or even be transformed because ofthem”. This was associated with the notion of agape, love for one’s fellow humans, articulated with theconcepts of self and false self. In this longitudinal study, dwelling in the street emerged as an excludingexistential situation, favoring involvements with drugs and criminality. A new configuration in thepsyches of the homeless was revealed – in a transforming movement –, in contact with people who weretheir positive supporting points. However, they had difficulties to remain in this process without thebroader support of the Civil Society and of the State.KEY- WORDS: Transforming Encounter – Resilience – Homeless People – Public Health – Social exclusion.

INTRODUÇÃOEste trabalho é parte de pesquisa cujo pro-

blema de investigação se constituiu na busca dacaracterização de uma interação psicossocial es-pecífica entre os seres humanos, denominada deencontro transformador, que possibilitaria a trans-formação psíquica dos envolvidos, no sentido depromover o despertar das potencialidades de self,com a retomada do sentido de suas vidas, contri-buindo para a promoção da resiliência. Ao concei-to de resiliência, compreendido como a “capacida-de humana de fazer frente às adversidades da vida,superá-las e sair delas fortalecido ou inclusive trans-

formado” (GROTBERG, 1996), e aprofundado porAlvarez (1999, 2003), foi associada a noção deágape definido como “amor às outras pessoas hu-manas, amor ao próximo” (BOLTANSKI, 1990). Essanoção - articulada com outros conceitos - será me-lhor explicitada em suas características em outrasseções deste artigo, sem a pretensão de esgotar-mos sua complexidade. Aos conceitos referidos aci-ma foram articulados os conceitos de self e falsoself.

A respeito do self e falso self Gilberto Safraexplicita que Winnicott traz a idéia de um self cen-tral como potencial herdado pela criança que, já

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desde o início de sua vida, através de sua interaçãocom o ambiente, com o favorecimento deste esta-ria experimentando um senso de continuidade deser e adquirindo gradualmente, à sua maneira eem seu próprio ritmo, uma realidade psíquica eum corpo próprios. Completa o autor que esse perí-odo caracteriza-se pelo estabelecimento do self edo mundo subjetivo (SAFRA, 1999). Safra relataainda que um indivíduo, quando vivenciando si-tuações de adversidade, poderia “desenvolver ummovimento onde reteria alguma coisa de pessoal,mesmo um segredo, nem que seja o respirar”. De-senvolveria um falso self que é um “aspecto do selfque protege e oculta o self verdadeiro como reaçãoàs falhas de adaptação. O falso self organiza-secomo um padrão de conduta que corresponde àfalha ambiental” (SAFRA, 1995:47).

Winnicott (1975) teorizou ainda a respei-to de um conceito que estaremos introduzindo nes-te trabalho, ou seja, a respeito de uma área dedesenvolvimento e experiências do ser humano quedenominou terceira área ou espaço potencial.. Essaterceira parte da vida psíquica do ser humano se-ria uma área intermediária de experimentação paraa qual contribuem tanto a realidade interna doindivíduo quanto a vida externa, ou seja, o ambi-ente, o outro que o constitui. Ao abordar a díademãe-bebê, essa mãe é referida em muitos momen-tos de sua obra como o ambiente. Referindo-se,portanto, inicialmente ao bebê e sua mãe ao falarda terceira área, estendeu-a depois ao ser humanoadulto e à utilização que esse adulto faz desse es-paço potencial, denominando-o também como áreado brincar.. Ao abordar essa área, de importânciacentral em seu pensamento, Winnicott afirma quea psicoterapia se efetua na sobreposição de duasáreas do brincar, ou seja, a do paciente e a doterapeuta, sendo que a psicoterapia trata de duaspessoas que brincam juntas. Conclui que, onde o“brincar não é possível, o trabalho efetuado peloterapeuta é dirigido no sentido de trazer o pacien-te para um estado em que não é capaz de brincarpara um estado em que o é” (WINNICOTT,1975:59). Reafirma, ainda, esse autor, que “o brin-car implica confiança e que este pertence ao espa-ço potencial...” (WINNICOTT, 1975:76).

Objetivava-se, neste trabalho, identificar ascaracterísticas psicossociais constitutivas do pro-cesso de encontro transformador entre moradoresde rua envolvidos (ou não) com a criminalidade esegmentos da sociedade civil considerados comoseus pontos fixos/pontos de apoio, que possibili-tassem melhor compreensão do desenvolvimentoda capacidade de resiliência do ser humano. Oponto-fixo/ponto de apoio, segundo Sueli

Damergian (1988) e aprofundado por Alvarez (1999,2002, 2003), surge como um objeto bom que deveser oferecido ao ser humano pelo meio (no caso dobebê, pela mãe ou substituta). Sem isto, o núcleodo ego não se estrutura, a personalidade não sedesenvolve, a identidade não se constrói. Podemser os ‘portos seguros’ introjetados que auxiliamna nova configuração do rumo, do sentido da vida.

Como Ultimate Objectif visava-se a contri-buir para o (re)equacionamento das ações que bus-cam atender às populações de rua e a (re)definiçãode políticas públicas, tendo em vista o amplo sig-nificado social que esta parcela da população as-sume no contexto de metrópoles brasileiras,notadamente a paulistana. Em estudo longitudi-nal, ao longo de cinco anos, de 1998 a 2002, atra-vés de Histórias de Vida, foram realizadas entre-vistas abertas e semi-estruturadas, fotografias, re-gistros em Diário de Campo, coletas de desenhos eartesanatos realizados pelos sujeitos de observa-ção: seis moradores de rua, alguns ligados ao cri-me e consumo de drogas, e duas professoras apo-sentadas – não moradoras de rua – que estabele-ceram relações de ajuda a eles. Na interpretaçãodos dados contemplou-se o emprego de conceitospertinentes a determinadas teorias da Psicologia,Geografia, Antropologia, Sociologia, às abordagensda Complexidade de Edgar Morin e da Sistêmica,na busca do diálogo entre diferentes disciplinas.

SITUAÇÃO EXISTENCIAL EXTREMAConhecemos os moradores de rua, sujei-

tos de observação deste trabalho, em 1998, quan-do estes estavam instalados em pequena praça-maloca localizada no bairro da Bela Vista, no cen-tro da cidade de São Paulo. Essa pequena praçalocalizava-se em região marcada pela presença debares, restaurantes, teatros e poderíamos defini-lacomo uma mancha de lazer, conforme o uso queMagnani faz desse conceito, ao explanar sobre pa-drões de uso e ordenação do espaço urbano. Paraeste autor, as “manchas são áreas contíguas doespaço urbano dotadas de equipamentos que mar-cam seus limites e viabilizam - cada qual com suaespecificidade, competindo ou complementando -uma prática ou atividade predominante.”(MAGNANI, 2002:22)

Identificamos aquele grupo de seres hu-manos adultos vivendo situações existenciais ex-tremas. O nome maloca – atribuído pelos morado-res de rua de São Paulo a um modo específico deviver em grupos na rua, sem proteção aos próprioscorpos, embriaguez, mendicância, exposição a vi-olências – indicava o modo de vida que ali se de-senvolvia, considerado por eles mesmos como pri-

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são difícil de sair. As relações desenvolvidas entreos componentes do grupo, o uso de drogas, o esta-do de abandono, de exclusão, os empurravam parabaixo e cada vez mais para as sarjetas, sendo quepara alguns o trânsito pela droga – notadamente ocrack – e a criminalidade tornou-se quaseinexorável. O sentimento da vergonha foi manifes-tado por eles, face à situação em que viviam.

Ao discorrer a respeito dos sentimentos,Erikson relata que os adultos -inclusive os aparen-temente maduros e não neuróticos - mostram-semuito sensíveis à possibilidade de uma vergonho-so descrédito. Ao abordar a manifestação dessesentimento esse autor coloca que “a vergonha semanifesta logo por um impulso de esconder o ros-to ou de, no mesmo instante e lugar, afundar nochão” (ERIKSON, 1976:232).

Os moradores de rua observados revelaram,inclusive, o sentimento de desconfiança na socie-dade, nos provedores externos e na própria capaci-dade para enfrentar suas necessidades e desejosmais urgentes. Prosseguindo na análise a respeitodos sentimentos manifestados pelos sujeitos deobservação deste trabalho, refletimos sobre a ad-vertência de Erikson sobre a concepção errônea deque o sentimento positivo de confiança seria umaconquista, definitivamente alcançada em determi-nado estado. Tal autor afirma que os sentimentosnegativos (como a desconfiança básica, por exem-plo) são e continuam a ser durante toda a vida aantítese dinâmica dos positivos, apontando que a“personalidade trava combate continuamente comos perigos da existência, mesmo quando o meta-bolismo do corpo luta com a deterioração”(ERIKSON, 1976:251). Ele explicita, ainda, que orestabelecimento de um estado de confiança seriao requisito básico para a terapia.

Entendemos, face à essa colocação, queseria possível ser restabelecido/estabelecido - noser humano adulto com os quais trabalhávamosna pesquisa - um sentimento de confiança de quetenha sido frustrado na sua relação com a mãe/cuidador, ou que tenha sido perdido como, porexemplo, quando na situação de morador de rua.

Assim, alguns dos sujeitos de observação,recordando a própria infância, denunciaram a au-sência de mãe ou pai devotados que pudessemampará-los em sua trajetória infantil. Soviético, umdos moradores da maloca, crescendo sem os pais –pois estes haviam cometido crimes e estavam cum-prindo penas em Penitenciárias – e entregue à pró-pria sorte, iniciou-se cedo na vivência das trans-gressões, em busca da própria sobrevivência. Comvárias passagens pela FEBEM (Fundação Estadualdo Bem Estar do Menor), ao tornar-se adulto foi

para a prisão, cumprindo 20 anos no Carandiru.Ao sair do presídio, analfabeto, começou a morarnas ruas, instalando-se na pequena praça-maloca,onde o conhecemos em 1998. Nessa mesma malocae ano conhecemos Athos que nos revelou detalhesdo ambiente em que vivera na infância, inadequa-do para uma criança. Revelou-nos, ainda, os cri-mes que cometera, quando em brigas matou doismoradores de rua.

Priscila, instalada em uma ‘caverna’ pertoda maloca, buraco cavado próximo à Avenida 23de Maio, denuncia situações de abandono e vio-lência na infância. Identificamos nessa moradorade rua a ausência do ponto de apoio, da devoçãode uma mãe suficientemente boa.. SegundoWinnicott, a mãe suficientemente boa - e neste casonão precisaria ser necessariamente a própria mãedo bebê - é “aquela que efetua uma adaptação ati-va às necessidades de bebê, adaptação que dimi-nuiria gradativamente e cujo êxito desses cuida-dos para com a criança depende da sua devoção enão do jeito ou esclarecimento intelectual”(WINNICOTT, 1975:25). A respeito da devoção,Gilberto Safra afirma que “ao falar-se de mãe devo-tada, está se falando de uma mãe que não perdede vista o ser de seu filho”, contrapondo-se à “mãeaflita que, apesar de possuir uma ligação bastanteintensa com o seu bebê, acaba por coisificá-lo, natentativa de aplacar sua própria ansiedade e afli-ção” (SAFRA, 1999:75). Essa devoção, segundoWinnicott, tem a ver com a maternagem oumaternagem suficientemente boa, que são aquelescuidados iniciais oferecidos pela mãe ou, ainda,pelo pai e demais familiares, essenciais à formaçãodo indivíduo (WINNICOTT, 1988).

A moradora da ‘casa caverna’, maltratadapelo pai bêbado e sem conhecer a mãe, aponta omomento em que inicia sua vida de criança derua: “Aí eu fiz uma mochilinha e saí de casa promundo...” Seu companheiro Paraíba, em liberdadecondicional, desempregado e eventualmente guar-dando carros, e vivendo com ela na casa caverna,desespera-se com a lembrança da mãe morta, odi-ando e acusando o pai de ser o causador das des-ditas da mãe. Em uma briga pelo ponto de guar-dar carro, mata outro morador de rua e volta paraa prisão.

A CIDADE CINDIDA E AS PONTES HUMANAS:PROVIDÊNCIAS DE TRÂNSITO RELACIONAL

A cidade de São Paulo foi considerada emnossa pesquisa como portadora das característicasde cidade de muros citada por Caldeira (2000:320),que denuncia, no concreto, a imensa fraturarelacional que se alarga e se aprofunda entre as

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duas sociedades que vão emergindo no social bra-sileiro: de um lado, o segmento social dos integra-dos, com melhores, mais justas e corretas relaçõessociais (VÉRAS, 2001:38), relações essas cujavivência pode ser nomeada por cidadania, e dooutro o segmento social dos excluídos, com direitoà exclusão integrativa, vil inserção marginal àssobras do banquete dos eleitos da cidade cindida.Soviético revela em sua fala e desenho, denomina-do por ele “Condomínio de luxo”, a cisão entreessas duas sociedades e as conseqüências desseprocesso em pessoas que, como ele, integram o ladodos excluídos:

“Sábado, eu e uns moleques, a gente pas-sava por um condomínio de luxo num bairro deSão Paulo e ficamos parados, olhando e admiran-do, vendo uma coisa que a gente nunca viveu. Fo-mos então abordados pela polícia, mandando agente cair fora. Em vez de oferecerem um prato decomida ou conversar um pouco, mandam cairfora... Não queremos esmola, queremos é um pou-co de compreensão. Apesar de tudo isso que aspessoas tem: apartamento de luxo, piscina, peruapra levar os filhos na escola, a gente sabe que eleslutaram, mas tiveram um apoio melhor que é jus-tamente o que falta para nós. Se o Brasil não tiverconsciência, vai chegar o tempo que aquele quefor honesto e trabalhador não poderá andar na rua.Então esta é a hipocrisia. São pessoas que têm con-dição de ajudar o próximo mas não se interessam.Eu não pintei esse desenho porque é a realidadeda vida. É tudo negro. Na rua, por exemplo, aspessoas andam assustadas. Todos têm medo e atéatravessam a rua de medo de ser assaltadas. Nin-guém confia em ninguém. Se a gente olhar umpouco mais para alguém, a pessoa fica assustada,pensando que vai ser assaltada.” (Soviético, mora-dor de rua)

Muitos dos moradores de rua, os caídos(VIEIRA ET AL., 1994) pertencentes a esse segmen-to social de excluídos, perderam-se de si mesmos.Junto às perdas de endereços, certidões de nasci-mento, carteiras de identidades - símbolos de ci-dadania - entrecruzam-se as perdas de esperança,do sentido da vida, da vontade de viver. Enquantoalguns se afogam na bebida alcoólica ou nas dro-gas, amortecedoras da dolorosa agonia da falên-cia psicossocial, outros, reagindo violentos, lan-çam-se ao crime, inserindo-se através dessa formaescusa nos processos sociais. Só então, ironicamen-te, tornam-se visíveis... e porque incomodam, por-que agridem, porque ousaram sair das cavernas,ou porque ousam abrir os olhos e cobiçar os ‘valio-sos bens de consumo’ que ornamentam a cidadeatrás dos muros. É quando, paradoxalmente, ad-

quirem um status - o de bandido! - aquele quedever ser banido, segregado aos espaços amontoa-dos das prisões. Ironicamente, nessa hora, reco-bram o endereço e a identidade do prontuário po-licial...

A sociedade está doente, cindida, e nãohá perspectiva de cura próxima. Os meios de co-municação brasileiros exibem a todo momento -ao vivo e em cores, em tempo real - a dinâmicadoentia desse corpo social esfacelado. Esses retra-tos dinâmicos são oferecidos nos jornais nacionaistelevisivos como parte dos jantares de cidadãos queolham tudo atônitos e respiram aliviados quandoo foco da emissora passa para cenas mais amenas.Teresa Cristina Carreteiro (1999), abordando aquestão das drogas, violência e segmentos sociaisprecários do Rio de Janeiro, aponta para os meca-nismos de defesa psíquicos ativados para fazer faceàs angústias constantes. São mecanismos que, se-gundo ela, permitem a justificação e racionaliza-ção das condutas daqueles que estão sob pressãodessas angústias. Afirma a autora que os mecanis-mos acionados são principalmente os de negação,isto é, “a distorção da realidade quando ela se apre-senta muito violenta com pessoas que não fazemparte do círculo parental ou de amigos; a clivagemdas representações: “A violência acontecerá con-tra os outros, não comigo!”. Como se a força des-ses pensamentos pudesse criar uma camada prote-tora em torno das famílias e dos grupos. Observa-se também a repressão das emoções, a eufemizaçãoda violência (quando nomeiam uma pessoa assas-sinada como presunto, por exemplo, amenizandoe banalizando o ato de sua morte, que assim tantofaz que tenha acontecido pela mão da polícia oudas facções criminosas ligadas ao tráfico de dro-gas). Esses mecanismos de defesa são individuaismas igualmente coletivos, pois permitem às pesso-as na mesma situação ativarem reações semelhan-tes que coloquem à distância as fontes da ansieda-de” (CARRETEIRO, 1999:121-130).

No entanto, se muitos da sociedade intra-muros referida por Caldeira (2000:320) encontram-se adormecidos para os problemas psicossociais quese avolumam ou permanecem paralisados pelomedo, há segmentos da sociedade que conseguemmarcar presença junto aos que perderam o sentidoda vida. Neste trabalho falamos de alguns destesque se erigiram como pontos-fixos/pontos de apoio,pontes humanas que - transpassando abismosrelacionais - levam ao que nomeamos como encon-tro transformador. É quando presenciamos a pro-fessora Sílvia intermediando a correspondênciaentre a moradora da casa caverna, que estava hos-pitalizada pela tuberculose avançada e o seu com-

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panheiro Paraíba, que ficara vivendo na ‘toca’ deambos. É quando, também, acompanhamos o de-poimento de Lucinha que - muito além do simplesofício de professora - devotada e desafiadora, ofe-recia o endereço de sua residência para que o mo-rador de rua - candidato a um trabalho - apresen-tasse à ‘empresa’ como sendo dele.

A TRANSFORMAÇÃO:CONFIGURANDO NOVA FORMA

“Progredir, no caso da constituição davida psíquica mas também em qual-quer outro caso, implica organizar-se,conquistar formas e transformar-se”(LUÍS CLÁUDIO FIGUEIREDO,2001)1 .

Convidados por Sílvia e Lucinha, para com-parecerem à escola onde elas alfabetizavam aspopulações de rua, no centro da cidade de SãoPaulo, alguns dos moradores de rua viveram pro-cessos de encontros transformadores com essas pro-fessoras.

Foi considerada, no início desse processo,a presença de certa unidade psíquica, por exem-plo, em Soviético e Athos, que lhes permitira asobrevivência nas prisões e nas ruas: um falso selfbastante bem sucedido.

No entanto, apesar do sucesso dessa confi-guração psíquica dos moradores de rua - do falsoself - não se extinguira neles a insatisfação e aprocura de si-mesmos. Era necessário orestabelecimento do sentimento positivo de confi-ança para que pudessem olhar-se, permitindo as-sim que o self pudesse retomar seu acontecer den-tro do processo maturacional com a facilitação deum meio ambiente humano (SAFRA, 1999). Suaspotencialidades estavam à espera do outro signifi-cativo ou próximo devotado (WINNICOTT, 1975)que pudesse acompanhá-los no processo de auto-realização.

Aborda ainda Safra a experiência do fenô-meno do poético que seria aquele que articula, emum único fenômeno, a capacidade criativa dos se-res humanos que se encontram, dando origem àcomunicação humana, ao existir (SAFRA, 1999:20).Segundo esse autor, “poderíamos afirmar que sóconhecemos de maneira significativa a porção domundo que conseguimos criar” (SAFRA, 1999:44).

No aprofundamento do conceito winni-cottiano de devoção, trabalhamos com o conceitode ágape (BOLTANSKI, 1990), cujas característi-cas identificamos na professora Sílvia. A acepção

de ágape que concerne mais diretamente à pesqui-sa de Boltanski e que segundo ele interessa à An-tropologia - e que adotamos em nosso constructoteórico - é o “amor às outras pessoas humanas,definido como o amor ao próximo”.(BOLTANSKI,1990:171). Afirma o autor que oágape entre os homens não se limita à comunida-de eclesial, pois “ele tem por vocação manifestar-se em presença de não importa qual pessoa, qual-quer que seja a maneira pela qual ela poderia serqualificada em outras relações. É nesse sentido queessa noção é disponível para a Antropologia”.(BOLTANSKI,, 1990:171). Ressaltamos, portanto,que ao adotarmos tal conceito não estamos fazen-do apologia às religiões. Ao abordarmos o ágapeno Complexus (Morin, 1996)2 de nossa tecedurateórica, alinhamo-nos ao pensamento de Boltanskiao afirmar que “a operação de laicização do ágapeadvém de uma pura decisão de método, não seinscrevendo ela em uma teoria sociológica da reli-gião.” (BOLTANSKI,, 1990:154). Assim, ao associ-armos o amor ágape ao conceito de amor devoçãoda mãe suficientemente boa, visamos a melhor ca-racterizar esse conceito de amor materno queestamos usando em nosso constructo teórico.

A professora Sílvia, portanto, foi reconhe-cida como esse próximo devotado, portadora doamor às outras pessoas humanas. Traduzindo esseamor em movimento na busca e adaptação ativaàs necessidades do próximo, Sílvia demonstrou acapacidade de sair do próprio lugar – de sua estru-tura interna de referência, do seu círculo estreitode relacionamentos – para colocar-se em presençados moradores de rua. Essa presença ativa,empática, congruente (ROGERS, 1991) – aceitan-do-os tal qual se apresentavam, abrindo-lhes umlugar em si-mesma, fez com que se sentissem in-condicionalmente aceitos. Livres, sem cobranças,eles confiaram naquela que se doava, abriram-separa o movimento de transformação no espaço daconfiança que se formara entre ambos, na“sobreposição de duas áreas do brincar...”(WINNICOTT, 1975)

No Diagrama 1 está representado o encon-tro - explicitado acima - entre a professora porta-dora das características do ágape, na sua busca eadaptação ativa às necessidades do próximo, comos moradores de rua.

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Sob o influxo dessa aceitação, em presen-ça da professora, beberam a força que necessita-vam para flexibilizar as amarras das psiques ator-mentadas, permitir que o caos organizador(MORIN, 1997:59)3 se instalasse em seus mundosinteriores forjados no crime, no desespero. A for-ma do falso self de cada um dos moradores de rua– organização complexa e ativa mas também dis-positivo de congelamento – iniciou um movimen-to de flexibilização, de desconstrução de suas de-fesas no processo regressivo que se instaurara jun-to à professora.

A respeito desse dispositivo de congelamen-to, Luiz Claudio Figueiredo afirma que o falso self“traz em si as marcas da “frozen situation”, daísua rigidez, apesar de sua evidente operatividade.”Afirma ele que o indivíduo é mantido “ao mesmotempo excessivamente acordado - impossibilita-do, portanto, de dormir, de sonhar e brincarem serviço (no espaço potencial, no espaço dabrincadeira; grifo nosso) - e com partes suas total-mente amortecidas, dormentes, congeladas, emestado de dissociação. Será preciso desconstruiras boas defesas do falso self oferecendo uma con-dição, já não mais sonhada nem desejada, de con-fiança no ambiente, e na possibilidade deretomar a situação de fracasso paradescongelá-la e convertê-la em possibilidadede vida (grifos nossos).”4

As psiques dos moradores de rua permiti-ram o rever-se: seus conteúdos congelados, soltan-do-se, foram reconhecidos por aqueles que – sóentão – puderam olhar-se no berço ágape ofertado

pela professora devotada.Desse caos, lentamente, foi-se anunciando

nova gestalt, nova configuração psíquica, nova or-dem, organização, transformação.

Na dança dos conteúdos esparsos das psi-ques do moradores de rua dançavam, também, osconteúdos do ágape que – a princípio RUÍDOS(FIEDLER-FERRARA, 1994; ATLAN, 1992) – numdado instante começaram a fazer sentido paraaqueles que eram alvo da devoção: em presençada professora, eles criaram o amor em si. Ocorreuuma sobreposição entre o que a professora supria eo que os moradores de rua poderiam conceber. Es-tes perceberam os elementos do ágape apenas namedida em que o ágape poderia ser criado exata-mente ali e naquele então (parafraseandoWINNICOTT, 1975).

Nelson Fiedler-Ferrara explicita, a partir deHenri Atlan (1992), a complexidade a partir doruído, “em que a capacidade de auto-organizaçãode um sistema resulta de desorganizações segui-das de reorganizações em níveis de complexidademais elevados. A criação de complexidade nutre-se da desordem (ruído), onde o aleatório passa aser parte integrante da organização.” (FIEDLER-FERRARA, 1987: 75-79)

Soviético – anteriormente personificado nomundo do abandono, da violência e do crime –assim como Athos , ou Priscila – mergulhados nodesespero e na violência das ruas – abriam-se àpresença da professora-mãe, possibilitando o acon-tecimento de um novo corpo psico-emocional per-sonificado através do processo que denominamosde maternagem tardia. Expressando a comunica-ção ativa com novos conteúdos internos criadosem presença da professora devotada, expressaramem seus discursos o início de novas configuraçõesemergentes em suas psiques, em movimentos quese encaminharam para transformação – nova for-ma, nova organização – resistindo muitas vezes aoconvite do crime.

Não foram, no entanto, somente os mora-dores de rua que se transformaram nos processosde encontros observados. Em cada busca ativa dopróximo que empreendia, Sílvia cruzava o olharconsigo mesma, várias vezes caindo em si, refa-zendo caminhos onde não conseguira vivenciar aplenitude do ágape, as características desse amorem movimento. Deter o fluxo desse amor em simesma, seria deter a própria vida, o acontecer deseu self no mundo. A partir do instante em queela, Sílvia, criava nuanças desse amor em si - co-nhecendo-o de maneira significativa - deixar devivê-lo a cada chamado equivaleria a deixar deser, de existir.

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E dizemos que os moradores de rua trans-formaram-se porque novos sentimentos, significa-dos em presença da professora, passaram a fazerparte de seus universos psíquicos: iniciou-se inten-so processo de comunicação interna em cada umcom as novas nuanças de sentimentos que desco-briam em si. O crime – quando ainda realizadonesse processo de transformação em curso – já nãoacontecia livre e solto, sem nenhum outro estadodiferenciado que se lhe antepusesse. É quando re-colhemos expressões de lamento de Soviético pornão ter conseguido manter-se na configuração doamor, é quando observamos movimentosincipientes da vontade de resistir ao crime.Acompanhamo-lo preso em sua batalha interna for-midável, também através dos desenhos que reali-zou nesse período, onde pudemos observar o inter-jogo de forças configurando a transformação, ooscilar entre desilusão e esperança.

“Tem uns parceiro que chamam pra roubare eu não vou roubar... tô sossegado, quero dar umtempo!...” (Soviético)

Nesse sentido, esses novos conteúdos in-ternos de ágape foram por nós considerados comopontos de apoio que os alavancaram na resistên-cia à criminalidade, no processo de estar no mun-do, promovendo-lhes a resiliência.

A religiosidade – compreendida por Jungcomo função natural inerente à psique (JUNG,1991:300) – também foi vivenciada pelos morado-res de rua observados como relevante aspecto noprocesso de constituição do sentido da existência,como ponto fixo - ponto de apoio em suas psiques,alavancando seus projetos de estar no mundo,apontando um novo rumo para suas vidas ator-mentadas, favorecendo-lhes a resiliência.

Soviético, por exemplo, fez alusões à suareligiosidade em diversos momentos (observadosao longo dos cinco anos do processo da pesquisa),como o registrado em um desenho e nos comentá-rios explicativos escritos ao lado do mesmo, pro-duzidos durante uma aula ministrada pela profes-sora Sílvia aos moradores de rua:

“Por que você desenhou a casa e a igre-ja?”, perguntou-lhe Sílvia.

“Porque esta era a vida que eu queria ter.Minha casa onde eu pudesse ser feliz e com todosvivendo em harmonia... A igreja era o lugar ondeia me sentir bem e recebendo uma palavraamiga...”(Soviético, morador de rua)

Não seria a igreja de pedra5 à qual ele sereferia: pelas ruas da grande cidade ondeperambulava, podia encontrá-las muitas, enormesigrejas adornadas, de portas quase sempre abertasonde não entrava, conforme nos relatava em seus

discursos espontâneos. Era outra sua igreja: asso-ciada à palavra amiga, lembrava a harmonia, osentir-se aceito incondicionalmente, perto de Deuscomo estava ali, perto de sua professora.

E ela com devoção, no processo dematernagem (WINNICOTT, 1975), conduzia-o, asi e seus companheiros durante os exercícios derelaxamento ou durante as orações ao final dasaulas, na vivência daquela função natural, ine-rente à psique, self desdobrando sua potencialidadeno mundo. Banhava-os em amor - transfundindo-lhes a própria fé - que era criada e recriada poreles, que imprimiam a este sentimento um rítmo,uma realidade psíquica e um corpo próprios (SA-FRA, 1999). Destacamos ainda, para a análise desseprocesso, as palavras de Gilberto Safra que afirmaque a criatividade jamais é destruída, estando naorigem do self a tendência do indivíduo para “...permanecer vivo e de se relacionar com objetos queaparecem no horizonte quando chega o momentode alcançá-los” (SAFRA, 1999:34).

Marcos, morador de rua observado, mani-festava também em sua fala estreita associaçãoentre sentimento de religiosidade e o acontecer doseu self no mundo, o desabrochar de suaspotencialidades. Referiu-se também à solidarieda-de humana de Sílvia, apontando-a como a forçaque o auxiliou na retomada do sentido de sua vida.Priscila, acometida de tuberculose, a moradora dacasa caverna - revela Deus em sua fala como aúltima instância à qual poderia recorrer, apelandoa ele por providências que não acreditava mais queseriam tomadas pelo sistema político-social maisamplo que a ignorava:

“Porque de vez em quando me dá uma lou-cura na minha cabeça... (chorando) ... Eu não pen-so em fazer nada com ninguém, sabe?... Eu nãotenho olho grande... eu não tenho inveja... eu sóqueria ter o que é MEU, entendeu? É o que eusempre peço a Deus: que antes de eu morrer, queele me desse pelo menos um barraquinho, sabe?Pra mim pôr uma cama, uma mesa, um fogãozinhodentro... aí eu falo: agora eu morro em paz, queDeus me deu tudo que eu queria, um lar...” (Priscila,moradora da casa caverna)

Não bastava o apoio dado pelas professo-ras devotadas - os próximos significativos Sílvia eLucinha - sujeitos de observação do trabalho, oumesmo o ponto de apoio representado pela presen-ça do sentimento de Deus em suas vidas, para quea psique dos moradores de rua assumisse a estabi-lidade na resiliência, processo que se esboçava emcada um. Imersos no sistema social mais amploque os ignorava, faltavam-lhes também os pontosde apoio do trabalho, do reconhecimento de seus

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direitos de cidadão, de poder ter um canto só seu -uma casa, um lar - onde pudessem se manter, sefortalecendo inclusive nos propósitos de não rein-cidência na delinqüência.

SOCIEDADE CIVIL E ESTADO EA PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIADO MORADOR DE RUA

“Preocupamo-nos com a violência quemata, mutila e rouba. E não com aviolência psíquica, social, afetiva quenos rodeia e anula o presente, rouban-do qualquer esperança de futuro paramilhões de criaturas” (DAMERGIAN,2001:103).

Afirmando ser a cidadania uma lei socialque atinge a todos indistintamente e, ainda, quefaz parte da mesma um conjunto de “princípiosgerais e abstratos que se impõe como um corpo dedireitos concretos individualizados” (SANTOS,1998:7), Milton Santos, em outro momento de seutexto, argumenta que “o simples nascer investe oindivíduo de uma soma inalienável de direitos,apenas pelo fato de ingressar na sociedade huma-na. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir,com os demais, uma herança moral, que faz decada qual um portador de prerrogativas sociais.Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde,à proteção contra o frio, à chuva, às intempéries;direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a umaexistência digna” (SANTOS, 1998:7).

Refletindo a respeito dessas afirmações so-bre cidadania e os sujeitos de observação – mora-dores de rua – focalizados neste trabalho, os iden-tificamos como não pertencentes aos quadros decidadania da sociedade brasileira. Não lhes bas-tou o simples nascer no seio dessa sociedade paraque fossem investidos, de fato, de uma somainalienável de direitos. Morando na rua, sem o su-porte social, falta-lhes o essencial para uma exis-tência digna. Claramente podemos perceber que,se existem cidadãos brasileiros investidos das prer-rogativas sociais apontadas por Milton Santos,outros brasileiros há – e aqui não nos aventura-mos em denominá-los como cidadãos – que estãoà margem dessa herança a que teriam direito. Comexceção de um dos moradores de rua observadosneste trabalho, todos os outros - Soviético, Athos,Marcos, Priscila e seu companheiro Paraíba - esti-veram em algum momento de sua vida nas ruasenvolvidos com a criminalidade. Eles constituema face mais cruel e muitas vezes negada de umasociedade desigual.

No Diagrama 2 representamos os percur-sos entre os processos reconhecidos como coleti-

vos e outros singulares, visando a observar o con-junto da tecedura, o delineamento da organiza-ção complexa que se foi configurando ao longodesse trabalho.

As qualidades emergentes das relações deencontro com segmentos da sociedade que atua-ram no sentido de amparar os moradores de rua,serem seus pontos de apoio positivos, constatadasneste trabalho, traduzem por si mesmas o mérito enecessidade desse tipo de ação. No entanto, obser-vou-se que os moradores de rua que retomaram oacontecer do self, reassumindo o processo criativo,no processo do encontro transformador com as pro-fessoras, tiveram dificuldades em manter a cons-tância das novas formas configuradas, manter atransformação sem o apoio efetivo da SociedadeCivil e do Estado. Faltavam-lhes os pontos de apoiodo trabalho, do reconhecimento dos seus direitosde cidadãos, de poderem ter uma casa, um lar, deviverem com dignidade, a qual implicava, também,que fossem reconhecidos como seres humanos pe-los outros cidadãos brasileiros e pelo Estado, nasua responsabilidade na promoção de PolíticasPúblicas, norteadas por uma visão solidária de pro-moção do homem e justiça social.

NOTAS1 Comunicação proferida por Luiz CláudioFigueiredo no curso de Pós Graduação emPsicologia da Pontifícia Universidade Católica, em2001, São Paulo [mimeo].2 Para Edgar Morin, “Complexus é o que está junto;é o tecido formado por diferentes fios que setransformaram numa só coisa, isto é, tudo isso seentrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidadeda complexidade; porém, a unidade do complexusnão destrói a variedade das complexidades que oteceram.” (Morin, 1996:188).3 O “Caos organizador” é referido por Edgar Morin

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no sentido de um fenômeno de “duas faces”, emque há ao mesmo tempo desintegração eorganização, “criação/transformação”. (Morin,1997:59).4 Comunicação proferida por Luiz CláudioFigueiredo no curso de Pós Graduação emPsicologia da Pontifícia Universidade Católica, em2001, São Paulo [mimeo].5 Pretendemos deixar claro que não estamosfazendo, neste trabalho, a apologia a esta ou àquelareligião e sim registrando e analisando essa funçãonatural inerente à psique (Jung, 1991) que seconfigurou no decurso do processo da pesquisa.

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Aparecida Magali de Souza Alvarez é Pós-Doutoranda da Universidade de São Paulo-

Faculdade de Saúde Pública.O endereço eletrônico da autora é:

[email protected]

Augusta Thereza de Alvarenga é Docente daUniversidade de São Paulo-Faculdade de Saúde

Pública, Departamento deSaúde Materno-Infantil.

O endereço eletrônico da autora é: [email protected]

Nelson Fiedler-Ferrara é Docente do Instituto deFísica da Universidade de São Paulo.

O endereço eletrônico do autor é:[email protected]

Aparecida Magali de Souza, Agusta Therezade Alvarenga e Nelson Fiedler Ferrara.O “encontro transformador”em moradoresde rua na cidade de São PauloRecebido dia 24/09/20041ª revisão: 16/12/2004Aceite final: 21/01/2005