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O Dragão Negro - O Chorar dos Anjos, Livro III

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Terceiro livro da saga amadora "O Chorar dos Anjos". Todos os direitos reservados!

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Vinicius Littig

O Dragão NegroO Chorar dos Anjos – Livro III

Editora Bookess2013

Primeira Edição

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Dedico esse livro aos meus leitores, desde os mais fiéis, como a Camila, o Leonardo e a Fabiely, quanto aos que esperam o livro físico para lê-lo, como o Iver. Obrigado por suas críticas, correções e, principalmente,

pelo apoio moral. Se não fosse por vocês, eu já teria desistido.

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Cap. 63 – Um Assunto Inacabado

dia já estava em seu ápice quando, ao horizonte daquela inacabável manta asfáltica cercada por uma vasta planície de árvores bem espa-çadas, Qlon avistou o contorno do que parecia uma alta torre. Jhon

dormia enquanto seu cavalo cavalgava lentamente ao lado do de Qlon.O“O encontro com Caim havia abalado um pouco minha mente. Estava ao envio

de meu pai, não me fez mal algum... Ao contrário de Canine, Caim não parecia ser um demônio convencional. Fora que sua força era muito distinta da do outro demônio que havia enfrentado. Não de forma quantitativa, mas o próprio senti-mento que exalava. Canine tinha uma força completamente agressiva, desen-freada. Mas Caim... Caim parecia um poço sem fundo, onde mesmo a luz do sol se perde. Tudo era incerto e misterioso ao seu respeito. Ao sairmos das ruínas daquela antiga cidade, seguimos o caminho apontando por um letreiro luminoso que, mesmo com minha melhor pronúncia, era impossível de ser lido. Rumamos ao noroeste para a primeira grande parada da minha nova jornada. Eu sentia uma estranha energia emanando daquele lugar, como se minha vida fosse real-mente mudar lá dentro. E iria. Mas antes, algumas pequenas pedras em meu ca-minho iriam gastar um pouco do meu precioso tempo...”

– Jhon! Jhon, acorde! - Gritava o jovem anjo ruivo enquanto Colossus ga-nhava forma à sua frente.

– O que foi, garoto? - Perguntou, reclinando o tronco que encontrava-se deitado sobre o pescoço do animal. - Chegamos?

– Ainda não, mas estamos perto!

Jhon olhou ao redor, dando um longo bocejo e erguendo os braços para espre-guiçar-se.

– Ora essa! Ainda estamos nas planícies! Faltam cerca de sete horas de cavalgada para o lago ainda...

– Sete horas? Colossus é grande assim? - Qlon arqueou as sobrancelhas com o susto.

– O que esperava de uma cidade com esse nome? - Jhon sorriu. - Essa ci-

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dade é gigantesca. E não estamos nem próximos dela.

O estômago de Qlon soltou um ronco. Não comeram nada desde o dia anterior e estava na hora do almoço. Jhon sorriu e, levando a mão às coxas, ponderou:

– Bem, eu estou com a bunda dolorida de ter cavalgado o dia inteiro e mor-to de fome. Que tal uma parada para um lanche?

– Bunda? - Qlon franziu o cenho. - Por favor, Jhon, fale de suas nádegas com um pouco mais de respeito.

Ambos riram e puxaram as rédeas de seus cavalos para uma parada breve em sua jornada. Ao menos era o que acreditavam.

– Qlon, passe as batatas!

Com os cavalos devidamente amarrados em um tronco de árvore das planíci-es, sentaram-se ao redor de uma fogueira improvisada com galhos e folhas se-cas. A panela de água fervente era sustentada a alguns centímetros acima do fogo por troncos mais grossos, e qualquer balanço faria com que caísse e apa-gasse as chamas. No seu interior, legumes cozinhavam em uma sopa mais gros-sa. Era o restante das provisões que levaram ao partir de Nautilus. Qlon entregou as batatas ao companheiro de viagem. Engoliu sua tigela com o caldo escaldante e mencionou:

– Lembra que ficou de me ensinar a combater com adagas?

– Sim, lembro. - Respondeu Jhon, dando uma mordida em seu enorme pe-daço de batata, com o interior ainda cru.

– Pode ensinar um pouco agora?

– Ao menos espere eu acabar meu almoço. - Pediu resmungando. - E para que quer aprender a usar as adagas, falando nisso? Você não luta com essa espada mágica aí?

Qlon havia contado ao velho um pouco sobre ele, e isso incluía sua espada. Claro que nada muito profundo, apenas o superficial para uma história de dois viajantes.

– Conhecimento nunca é demais. - Respondeu rapidamente. - Aliás, é bom saber lutar com mais de uma arma se eu quiser ser um bom soldado.

– Tem razão. Bem, eu só tenho as minhas adagas. - Disse, tocando a bai-nha em que estavam. - Aliás, a primeira lição é: usar apenas uma adaga é idiotice. Se seu oponente esquivar, você vai deixar uma enorme lacuna que não será preenchida com uma arma de capacidade defensiva nula. Ou você usa duas adagas, ou leve ao menos um escudo pequeno de

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madeira para proteção preso ao outro braço.

– Entendi.

Jhon bebericou sua sopa vagarosamente enquanto Qlon esperava ansioso, contando os minutos para sua nova aula. Sentia falta de Lua e de seus ensina-mentos. Não estava a tanto tempo longe quanto esteve na sua ida ao norte de Seal, mas aquela era uma situação diferente. Sua missão em Mind tinha um tem-po determinado para o término. A nova não. Por falar em Mind, lembrou-se de Cloud, seu lobo. Contava com sua mestra para alimentá-lo e tratar devidamente dele. Tinha medo de demorar a regressar. De voltar já crescido, sem que nin-guém o reconhecesse. Queria acabar aquela missão o mais rapidamente possí-vel, como era de se esperar de um soldado eficiente. Mas quando parava para pensar na possível força de Vindictus e do que presenciara nos sete céus, do embate entre os quatro dragões e o vulto, tremia. Não sabia os limites de seu po-der e nem se tais limites derrotariam um dragão como aquele.

– Ande, levante-se! - Bravejou Jhon, acordando Qlon de seu breve deva-neio. - Não vou esperar o dia todo.

Qlon levantou da grama baixa, aprumando-se.

– Pegue as minhas adagas emprestadas. - Jhon sacou-as de suas bainhas de couro e estendeu-as para seu aluno temporário.

Qlon, de imediato, percebeu uma diferença sutil nas armas. Uma possuía uma lâmina mais grossa que a outra, que era mais esguia e pontuda.

– Uma adaga serve para perfurar e outra para cortar, mas na verdade isso é uma tática especial minha. Pode usar duas que cortam, ou duas que perfuram. Adaga e escudo... Enfim, penso que entendeu. - Resumiu a ex-plicação o mestre provisório. - Você é destro ou canhoto?

– Ambidestro. - Respondeu secamente.

– Nossa, isso é raro. Então bem, qual é o seu braço mais forte?

– Creio que, por colocar a mão esquerda à frente na empunhadura da es-pada, ela deve ser mais forte. Afinal, ela que dita a força do golpe.

– Você está sendo muito bem ensinado, parabéns. - Jhon exaltou.

– Li o conceito em um dos livros do meu pai e fiz uma suposição. Nada de grandioso.

– Nossa... Ainda acho estranho essa ideia de anjos terem filhos.

– Longa história.

– Só lembre de não falar nada parecido em uma igreja, senão acusarão um

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anjo de heresia pela primeira vez na história. - E riu sozinho de sua pia-da. - Bom... Continuemos... Tem ideia de qual seja a ordem de ataque?

– Ordem de ataque?

– Sim, mas é claro! Usar a tática das duas adagas diferentes requer uma estratégia especial justamente pela utilidade das duas. Você tem duas opções, pode começar cortando ou perfurando. Qual acha que é a or-dem?

– Primeiro perfuração, depois corte? - Chutou, incerto.

– E por quê?

– Perfurar parece ser mais rápido que cortar, e o uso de adagas implica em ataques mais rápidos.

– Correto. Parece saber muito a teoria.

– Não é como se eu soubesse... Eu apenas imagino a movimentação em minha cabeça, entende? Parece o mais lógico. - Tentou explicar seu mé-todo para dar as respostas que todos diziam ser inteligentes.

– Bem, como você deduziu, a perfuração é mais rápida e mais letal ao mesmo tempo. A primeira opção de ataque é usar esse punhal, nome correto dessa adaga magricela, com estocadas. Se o golpe acertar, bom, se não acertar corte com a adaga.

– E se o oponente contra-atacar?

– Uma coisa que meu pai me disse ao ensinar o uso das adagas foi: “Se você é rápido o suficiente para usar adagas como armas, deve ser rápido o suficiente para esquivar-se de qualquer coisa.”

Jhon parou para pensar alguns segundos, deixando que o leve vento assovias-se pela paisagem bucólica.

– Entendi... E como posso treinar os ataques? - Qlon evitou falar sobre o passado de Jhon com medo de tocar em mais uma de suas perceptíveis feridas emocionais.

– Treine comigo, ora essa!

Jhon pegou um pouco de terra e esfregou nas palmas de suas mãos.

– O que é isso? - Qlon perguntou, franzindo o cenho. - Alguma espécie de ritual antes do combate?

– Não exatamente. Se você é uma pessoa muito nervosa no combate e sua muito pelas mãos, como eu, é preferível passar um pouco de terra

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nas palmas para absorver o suor. Evita que as armas escorreguem.

– Mas você está desarmado.

– Se você não me atacar direito, logo recupero minhas armas. - Respon-deu com um sorriso malicioso no rosto. - Vamos lá, garoto! Mostre o que sabe.

Qlon sabia que não deveria pegar muito pesado com ele, então decidiu ir mais devagar. Devagar o suficiente para uma pessoa comum. Com um salto, usou um golpe lento para tentar perfurar Jhon na altura da barriga, que esquivou-se com dificuldade para o lado direito do atacante.

– Epa! - Gritou surpreso. - Já vi que não posso dar brechas a você, senão pode matar-me! Esse ataque foi muito rápido.

– Na verdade eu posso ser mais rápido. - Completou Qlon. - Só estou com medo de ser rápido demais para você acompanhar-me.

– Bem... Eu até diria que acabou de ser arrogante, mas pelo pouco que vi ontem, acho melhor concordar contigo. Então que tal treinar sozinho? Posso passar uns movimentos e...

– Silêncio.

Jhon chocou-se com o pedido, mas ficou calado. Qlon fechou os olhos. Aos ou-vidos do mero humano, nada além do forte vento podia ser ouvido ao longe. Jhon olhava para Qlon com uma mescla de espanto, pela imprevisibilidade de suas ati -tudes, e raiva, por sua maneira nada sutil de tratar as pessoas.

– Qlon? - Perguntou baixinho. - Algo errado?

O jovem anjo arregalou os olhos.

– Jhon, pegue nossas coisas e suba no seu cavalo.

– Ué, mas, por quê? - Perguntou com incerteza.

– Parece que não teremos tempo para um treino. - Disse, entregando de volta as adagas que pegou emprestadas. - Agora pegue suas coisas e monte no cavalo. Antes de questionar mais alguma coisa, lembre-se que sou um anjo.

– Tudo bem, não vou discutir. Esse argumento é imbatível. - Disse, apres-sando-se para pegar as bolsas espalhadas pelo chão. - Só gostaria de saber o que está acontecendo, se não for pedir demais.

– Claro que pode saber. - Disse Qlon. - Ivan e Khan estão cavalgando a toda velocidade atrás de nós. Imagino que eles estavam esperando o melhor momento para atacarem antes de chegarmos a Colossus.

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Jhon arregalou mais ainda os olhos. Sem mais delongas, apressou-se em montar. Ao longe, ruídos fracos dos cascos dos cavalos chocando-se contra o an-tigo asfalto podiam ser ouvidos. Qlon desamarrou os cavalos o mais rápido que pôde e, com sua única bagagem, sua inseparável bolsa de couro, saltou no lom-bo de seu animal. Jhon e Qlon balançaram violentamente as rédeas, fazendo os cavalos dispararem pelo asfalto morno.

– Nossos cavalos não serão rápidos o suficiente para escapar daqueles dois, garoto! Os cavalos deles são velocistas, os nossos são burros de carga!

– Eu sei! - Gritou Qlon, com o cavalo pouco mais rápido que de seu com-panheiro por estar transportando menos peso. - Mas não precisamos de vencer essa corrida, só precisamos ganhar tempo!

O sol no ponto mais alto do céu os cegava. Apesar do dia não estar tão frio, a manta acinzentada parecia deixar o ar mais quente. Os cavalos de Khan e Ivan aproximavam-se rápido. Não demorou muito até o primeiro disparo ricochetear no asfalto.

– Desgraça! - Esbravejou Jhon. - O que eles tanto querem conosco?

– Estão atrás de mim, principalmente. Que tal separar-nos? - Sugeriu em meio à confusão.

– Péssima ideia, garoto. - Rugiu Jhon enquanto outra bala passava zunin-do ao pé de seu ouvido. - Ao redor só há essa planície. Se eu mudar a rota, bastará a Ivan saltar do cavalo e dar um único tiro que cairei morto.

– Então o que sugere? - Perguntou Qlon ao relinchar de seu cavalo, que disparou ainda mais rápido assim que viu uma bala acertar o solo à sua frente.

Jhon pegou a panela que trazia amarrada às suas costas e atirou-a para trás. Qlon olhou-o com uma grande interrogação no rosto. A panela assustou os cava-los, dando a eles mais alguns segundos de folga e mais um tiro desperdiçado pelo exímio atirador às suas costas.

– Que espécie de plano era esse? - Perguntou aos gritos.

– Plano? Não era plano nenhum. A panela apenas estava quente e pesa-da. - Gritou Jhon em resposta. - Planos eu não tenho, então estou acei-tando sugestões!

Um tiro fez um corte no lado direito do cavalo de Qlon, arrancando dele um grave relinchar.

– Não vejo outra opção então senão ficar e lutar! - Gritou Qlon, colocando a mão no cabo da Sanctus.

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– Ótima ideia! Mas você é um anjo imortal, eu não! - Jhon estava cada vez mais aturdido com aquele ataque surpresa.

– Não sou imortal, desculpe desapontá-lo. Outra longa história.

O som dos cascos dos cavalos inimigos estava próximo demais. Qlon olhou para trás e percebeu que estavam a menos de vinte metros dos seus perseguido-res.

– A essa distância Ivan vai acertar com mais facilidade! - Gritou Qlon ao seu companheiro. - E os cavalos não aguentam mais correr!

– Mas se pararmos Khan esmagará nossas cabeças tão rápido quanto pu-der! Não podemos parar!

– Não, mas podemos pular!

Jhon olhou para Qlon. Atrás dele, Ivan apontava o rifle. Sua mira só era atrapa-lhada pelo balançar da cavalgada, mas com a distância cada vez menor aquilo não mais seria um problema.

– Tem certeza? - Gritou sua pergunta em meio ao barulho de mais uma bala que passou de raspão.

Qlon não respondeu. Apenas olhou para ele e atirou-se para o lado esquerdo, caindo na grama e rolando por alguns metros. Jhon fez o mesmo para o lado di-reito enquanto seus cavalos seguiam pela estrada. Ao cair, deu uma cambalhota e sentiu uma forte cãibra em suas pernas. Ainda assim, sacou suas adagas, es-perando pelo inevitável. Khan e Ivan frearam bruscamente seus cavalos, fazen-do-os relinchar. Ivan saltou do lado de Qlon, já mirando com seu rifle.

– Últimas palavras? - Disse Ivan ao corpo que já encontrava-se de pé, com espada azulada em mãos.

Ivan puxou o gatilho, mas ouviu apenas um clique. Puxou mais duas vezes para ter certeza, mas nenhuma bala saiu pelo longo cano de seu rifle.

– Não é possível... Você... Você contou as balas? - Perguntou, incrédulo.

– Não, mas sabia que sua arma atirava projéteis. Só contei um pouco com a sorte. - Disse Qlon, abrindo um sorriso.

– Mas não será o suficiente! - Ivan jogou o Rifle para o lado, levando a mão direita ao seu coldre pendurado na cintura, onde sua pistola aguardava com o tambor carregado.

Mas Qlon não deixaria. Podia não ser veloz o suficiente para esquivar de uma bala, mas era mais rápido do que a tentativa humana de sacar sua arma. Com um movimento suave, fez um corte diagonal do ombro à coxa direita de Ivan, su-ficiente para rasgar seu caro terno e fazer seu coldre ir ao chão. O corte foi tão

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superficial que a ferida quase não sangrou. Apenas algumas manchas vermelhas formaram-se na camisa de seda branca e cortada do oponente. Em outro movi-mento quase imperceptível, deu um simples passo para a frente e deixou a ponta da Sanctus a centímetros do pomo de Adão do rival, que engoliu em seco.

– A luta acabou. - Disse Qlon em um tom de superioridade.

– Muito bom, garoto demônio... - Ivan dizia com a voz trêmula, tentando manter a calma habitual de um atirador de elite. - E o que será agora? Se me deixar vivo, eu vou voltar a correr atrás de você.

– Não sem suas armas. - Qlon sorriu.

A lâmina deixou um rastro azulado na visão de Ivan, que via suas duas armas irem embora praticamente, com os canos cortados ao meio, ao mesmo tempo. Suou frio. Se Phoebe soubesse disso... Armas de fogo, além de raras, eram ca-ríssimas. Nem que pilhassem três navios mercantes poderiam repor as duas ar-mas. Fora o dinheiro dos projéteis...

– Ora seu...

Um grito. Jhon voava para trás com um dos potentes socos de Khan. Voou por cima do asfalto e foi cair a cerca de dez metros de Qlon, que desviou o olhar para ver seu companheiro. O atirador não ousou mexer-se. Khan logo surgiu para ter-minar o serviço no velho nocauteado.

– Acabe logo com ele, Khan! - Gritou Ivan. - Menos um para atrapalhar!

Qlon rapidamente apareceu ao lado do grandioso lutador e colocou a lâmina de sua espada na garganta do oponente. Khan virou o rosto para encarar o garo-to. A expressão assustadora do brutamontes, ressaltada pela feia cicatriz em sua face, foi o suficiente para arrancar um pouco da confiança de Qlon. Mas este não se deixou abater. Manteve firme sua posição. Era isso ou deixar seu amigo para a morte. Enquanto isso, Jhon estava completamente inconsciente. Ivan, em um ato de covardia, pegou seu cavalo e voltou para onde veio, deixando seu compa-nheiro sozinho contra o suposto demônio.

– Pode desistir agora, se quiser. - Disse Qlon um pouco receoso de qual atitude seu inimigo tomaria.

Surpreendentemente, Khan deu meia volta, montou em seu cavalo e saiu ca-valgando atrás de seu companheiro. Qlon deu um suspiro aliviado e foi tratar de seu amigo, que não fosse pelo movimento torácico ao seu respirar, pareceria um cadáver.

Jhon acordou com uma forte dor de cabeça. Ao seu lado, Qlon descansava, re-clinado em uma árvore. Ainda estavam nas planícies, cercados pela grama. O sol

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já estava em seu poente.

– Quando tempo eu apaguei? - Perguntou com a voz ainda fraca.

– Algumas horas. - Qlon respondeu, percebendo que seu parceiro acorda-ra. - O soco foi tão forte assim?

– Foi. Atingiu-me na boca do estômago, perdi todo o ar. O Khan é um es-pecialista em artes marciais, além de ser um troglodita poderoso.

– Eu o compararia a um golem, então. - Disse Qlon, tentando descontrair o ambiente. - Mas me diga, será que ainda estamos muito longe do lago de Colossus?

– Eu estou é preocupado com aqueles dois... Para onde foram?

– Fugiram. - Respondeu secamente. - Eu quebrei as armas de fogo de Ivan, então considero que eles não virão atrás de nós tão cedo assim. Daqui para frente a viagem será tranquila, mas precisamos revezar a vi-gia noturna no caso de atacarem de surpresa mais uma vez.

Jhon virou-se para o lado, soltando um longo gemido de dor. Talvez uma coste-la estivesse quebrada.

– Não se preocupe, garoto, não é do feitio deles. Eles acreditam que você é um demônio, pelo que pude perceber. Devem estar tremendo de medo. Fora que Ivan sem suas armas é um inútil, serve nem para peso de pa-pel. E Khan é tão lerdo que poderíamos dormir por oito horas antes de um golpe dele atingir-nos.

– Engraçado. Se Khan era tão lento assim, como você ainda assim levou um golpe na barriga? Os usuários de adagas não precisam ser rápidos o suficiente para esquivar de qualquer coisa?

– A culpa é sua! - Reclamou, visivelmente alterado com a provocação. - Se não fosse por sua brilhante ideia de pularmos dos cavalos eu não teria sentido uma forte cãibra nas pernas. Nem tive chance de esquivar. Por falar nisso, onde estão nossas montarias?

– Eles correram por mais alguns quilômetros, mas pararam de cansaço. Trouxe-os de volta enquanto dormia e amarrei-os em uma árvore aqui perto. Estavam arfando tanto que voltei na estrada para pegar nossa pa-nela e encher de água para eles.

– Bem, pelo menos não os perdemos, senão gastaríamos mais alguns dias neste trecho... Creio eu que amanhã estaremos no lago. Agora vamos dormir. Estou morrendo de cansaço.

Jhon rapidamente dormiu enquanto Qlon, ainda preocupado, ficou na vigia.

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Cap. 64 – O Barqueiro

lon avistou, por fim, a cratera do lago. O sol estava quase se pondo quando chegaram ao destino. Após um leve aclive das bordas que deli-mitavam a área onde, durante o apocalipse, caiu um gigante cometa

que devastou boa parte daquela pequena ilha, segundo Jhon, viu um lago de qui-lômetros de extensão de uma borda à outra. Tanto que, do seu ínfimo ponto de vista, não podia ver a margem oposta. Em seu centro, uma ilha enorme que abri-gava a cidade de Colossus. A cidade era ainda maior do que ele imaginava. Pa-recia-se, muito remotamente, com a fortaleza do terceiro andar celestial, mas sua grandeza era incomparável. Suas muralhas gigantescas pareciam alcançar mais de cem metros de altura e circundavam a disforme cidade. Limitada em seu cres-cimento lateral, crescia verticalmente. As paredes tinham uma mistura de tons claros, que iam do branco puro à predominante cor dourada. As casas nem po-diam ser avistadas corretamente daquela distância. A única construção visível era o grandioso castelo de Midgard, que ficava no topo da cidade, o dono da mais alta torre do reino. Neverends, de acordo com seu companheiro caolho de aventura, era uma enorme torre de vigia que dava visão a uma boa parte da cos-ta habitada, encontrando seu topo acima das nuvens. A costa do norte, que com-preendia a região gélida onde o mosteiro estava até o istmo que delimitava a área habitável daquele ínfimo pedaço de terra, era menos vigiada, tendo em vista a impossibilidade de uma invasão ser iniciada por aquele ponto.

Q

– Que visão estonteante... - Disse Qlon, aturdido com a beleza do local.

– Ainda não viu nada, garoto. Espere só para entrar na cidade. Os cami-nhos se cruzam de uma maneira que nenhum arquiteto comum poderia sequer projetar em seus delírios de grandeza. Mas para chegarmos lá, precisamos antes encontrar o barqueiro.

– O barqueiro? Há apenas um? Achei que fosse encontrar aqui uma cidade portuária com muitas embarcações que nos levassem...

– Bem, há algumas nas encostas... Mesmo porque uma cidade não pode sobreviver sem alimentos, que vêm das fazendas nas proximidades. Mas essas rotas só podem ser tomadas por aqueles que já possuem uma ci-dadania em Colossus. Se estamos entrando pela primeira vez na cidade,

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precisamos ser guiados pelo barqueiro.

– Ninguém mais pode levar-nos? - Qlon tentava encontrar um meio mais fácil para essa situação.

– Infelizmente não. A fiscalização quanto aos habitantes é rigorosa, e o barqueiro de Colossus possui um papel muito especial em analisar os candidatos a cidadãos. Acredite ou não, muitos espiões tentam entrar es-condidos nessa cidade.

– E quem inspeciona isso é apenas um homem?

– Só entrei com um velho da minha primeira vez, mas ouvi dizer que ele é um idoso sábio que já está naquele barco a muitas gerações. Ele pode facilmente julgar o caráter de uma pessoa e saber se ela está apta ou não a passar.

– E você foi aceito? Pelo visto, a forma de julgamento daquele velho está muito defasada...

– Pare de brincadeiras, Qlon! - Jhon pediu ao ouvir as leves risadas de seu jovem amigo. - Quando vim aqui da primeira vez eu não era esse velho desafortunado que está vendo hoje! Apesar disso, ainda tenho a minha cidadania.

– E como é essa cidadania? Uma espécie de carteira?

– Não exatamente.

Jhon aproximou-se de Qlon e ergueu sua manga direita até a altura do cotove-lo. Qlon notou então uma marca que não vira antes. Era um brasão tatuado em sua pele com uma tinta negra. Uma ave que erguia o bico para cima, e estendia as asas, dando a parecer, quando visto de longe, que era uma cruz.

– Espere! - Exclamou o jovem anjo ruivo. - Eu vou ser marcado?

– Não faça tanto drama, não é como ser marcado por um ferro quente! Cla-ro que também é bastante doloroso, mas...

– Ao menos a pessoa em questão pode escolher o lugar onde quer ser marcada?

– Sim, obviamente. Eu escolhi o braço pela facilidade em ser verificado. Creio não ser muito prático tatuar em partes mais íntimas.

Se seu pai tinha visitado a cidade, obviamente teria uma marca. Espantava-se por não ter notado nada em seu encontro com ele durante a tentativa de invasão dos demônios nos meses passados.

– Não me parece um meio muito inteligente de dar uma cidadania. - Res-

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mungou Qlon, insatisfeito com tal forma de reconhecimento. - Alguém pode falsificar essa tatuagem.

– Aí que está, não pode. - Respondeu Jhon. - Essa tinta só pode ser obtida no castelo de Midgard, e possui um odor muito característico. Se fosse tão fácil assim essa cidade já teria caído nas tentativas de invasão.

Qlon fechou a cara. Não queria ser marcado por esta tatuagem, mas se não havia outra maneira...

– E como achamos o barqueiro?

– Nós não o achamos. Ele que nos acha. Tudo que temos a fazer é sentar e esperar. - Jhon sentou-se e reclinou na encosta do lago. - E sua cota de perguntas por hoje já estourou.

– Tudo bem.

Qlon tomou um lugar ao lado de seu contratado e, por três longos minutos, fi-cou em silêncio. No horizonte, nada à vista. Nas águas límpidas do lago, com sua superfície sem qualquer ondulação, cardumes de pequenos peixes nadavam tranquilamente de um lado para o outro. Ao seu lado, Jhon tapava o sol com o braço em cima dos olhos. Já estava quase dormindo.

– E nossos cavalos?

– Qlon, eu dormi mal essa noite. Aqueles paspalhos me deram um baita susto. Por sua ansiedade, acabamos acordando mais cedo e cavalgando na velocidade máxima até aqui.- Resmungou. - Deixe-me descansar um pouco, pelo amor de todos os deuses que devem ser seus líderes, ou sei lá o quê.

– O barco tem ou não espaço para eles?

– Não sei... Talvez, com muita sorte. Estou com sono demais para pensar em proporção agora. Você não passou a noite em claro?

– Passei.

– Então descanse também. O barqueiro pode demorar um dia inteiro para chegar aqui. Ou até mais.

– Não dá, estou entusiasmado demais para ficar quieto.

– Então vá dar uma volta pelo lago, olhar a paisagem, e deixe-me em paz. - Foi ríspido. - Eu sou velho, preciso descansar!

Tinha achado uma enorme falta de educação por parte de seu companheiro, mas decidiu não estender o assunto. Levantou-se e foi passar um tempo na com-panhia de sua espada e de seus demais pertences.

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Circundou a área da cratera, margeando o pacato lago. Se aquela era mesmo uma cratera de meteoro, era estranho então ter uma ilha em seu centro. Enquan-to caminhava lentamente, olhava ao seu redor, procurando a barcaça que o leva-ria à “Cidade de Ouro”. Infelizmente não avistava nada ao longe senão seu desti-no principal. Já cansado de andar, olhou para a rota de onde viera. Não mais avistava Jhon. Já estava quase anoitecendo. A luz alaranjada do pôr do sol refle-tia no espelho líquido e dava ao cenário a aparência de uma pintura renascentis-ta. Foi então que ele surgiu. Uma sombra no horizonte. No começo era um pe-queno ponto preto em meio ao infinito, que transformou-se em uma grande balsa, guiada por um homem alto e com um remo longo em sua mão. Pôs-se de pé em um salto, aguardando ansioso sua aproximação. O barqueiro chegou próximo a ele vagarosamente e deixou a proa bater suavemente contra o leito rochoso da margem.

– Ah, um novo visitante para a nossa cidade. - Disse com sua voz rouca. - Como é seu nome, pequenino?

O velho tinha um semblante um tanto juvenil, apesar das rugas e pelos grisa-lhos. Trajava apenas a couraça de uma armadura dourada e suas ombreiras, que prendiam sua longa capa branca, que alcançava suas panturrilhas. Seus braços nus eram fortes, veias saltavam de seus músculos ainda em plena forma. Abaixo de sua cintura, uma espada pendia em sua bainha, presa ao cinto de couro que segurava suas calças brancas no lugar. Nos seus pés, botas longas e marrons de couro curtido tocavam seus joelhos. Seus cabelos e barba, apesar de longos, eram bem aparados. Olhos de um azul profundo davam ao seu rosto um toque cordial e ao mesmo tempo gentil. Quando o velho estendeu sua mão, pode notar os calos nas dobras de seus dedos e na sua empunhadura.

– Meu nome é Qlon. - Respondeu o jovem anjo, sentindo uma paz interior.

– Ah, justamente quem eu estava esperando encontrar. - Respondeu docil-mente o barqueiro. - Eu estava esperando para conversar com você, criança. Vamos, suba em meu barco.

“Apesar da frase estranha para a ocasião, sua conotação não tinha más inten-ções. Eu confiava naquele homem. Lembrava muito o ancião do mosteiro do nor-te. Será que todos os velhos humanos – tirando Jhon, talvez – emanavam essa aura elegante? Sem muitas delongas, peguei em sua mão e ele puxou-me para dentro da embarcação sem muito esforço. Com um leve toque de seu remo, o barco rumou para a longínqua cidade.”

Qlon permaneceu em silêncio por muito tempo enquanto navegavam. O barco nem chegava a balançar. A suavidade que o barqueiro remava era tamanha que, se fechasse os olhos, nem iria parecer que estava cortando a água.

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– Eu esperei muito tempo por você, garoto. - Disse o barqueiro, quebrando o silêncio entre eles.

– Como assim...?

– Pode chamar-me de Balthasar. Ah, Qlon... Não acha que o mosteiro do norte é o único lugar com um cristal de teleporte, não é? Fomos avisados de sua importante chegada.

Qlon arregalou os olhos e fixou seu olhar no dócil sorriso de Balthasar, que re-mava sem pressa.

– Não se preocupe, criança. Poucos nessa cidade sabem seu segredo. Só os membros do clero, um seleto grupo de soldados e nosso rei.

– Então, pela armadura e a espada que porta, suponho que faça parte des-sa ordem de soldados, correto?

– Sim, correto. Eu e meu neto, Leon.

– Olá. - Disse uma terceira voz no barco.

Só então Qlon notou a terceira presença, tão vaga e invisível que nem parecia estar ali. Estava sentado próximo ao seu avô, cabisbaixo. Seus cabelos, longos e brancos como os de seu ancestral, tocavam seus ombros, mas não aparentava velhice. Era extremamente pálido, tanto que suas veias podiam ser vistas. Uma faixa branca em sua testa impedia que a franja obstruísse sua visão. Também usava apenas a couraça dourada de uma armadura com as ombreiras, mas sem uma capa. Um grande escudo prateado, quase espelhado, tampava a lateral de seu corpo e dava a ele a impressão que nada existia ali. Talvez por isso tivesse demorado tanto para notar sua presença. Deveria ter um metro e oitenta, calcu-lando rapidamente, e cerca de vinte anos. Em seus olhos azulados o inverno po-dia ser visto.

– Nem tinha notado que ele estava ali. Desculpe, eu sou o Qlon.

– Tanto faz. - Respondeu friamente Leon.

– Desculpe pela falta de bons modos de meu neto. Ele ainda está incomo-dado com alguns assuntos pessoais.

– Claro! - Gritou abruptamente. - Como se alguém fosse gostar de ficar en-furnado na mesma cidade durante anos a fio, ainda mais fazendo algo tão monótono quanto procurar novatos no leito do rio.

– Já conversamos sobre isso antes, Leon. - Disse Balthasar, sem mudar por um sequer segundo o tom de sua voz. - E não quero que discutamos isso na frente de um de nossos convidados. Não seja rude.

Leon deu de ombros e voltou a fitar o infinito horizonte.

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– Qlon, desculpe por... - Dizia Balthasar.

– Tudo bem. - Respondeu rapidamente. - Não quero criar nenhum descon-forto aqui.

Novamente um curto e incômodo silêncio abateu-se sobre eles. Enquanto isso, o sol se punha por detrás das águas.

– Como eu ia dizendo... - Continuou o simpático anfitrião. - Seu segredo estará a salvo conosco. Quando chegarmos na cidade, meu neto irá gui-á-lo até o castelo, mesmo sendo ao seu contragosto. - Olhou torto para Leon por alguns segundos. - Lá terá um jantar com o rei e o cardeal para que discuta alguns pontos importantes de sua visita a nosso mundo. De-pois disso estará livre para visitar a cidade e encontrar uma hospedaria ao seu gosto. Mas suponho que o rei irá oferecer um quarto.

– Só tenho uma dúvida.

– Posso responder o que eu conseguir. - Dignou-se.

– Por que não pude teleportar direto para cá? Digo, se aqui também tem um cristal de teleporte...

– Eu não sei responder, desculpe-me. Mas visite a catedral nos fundos do castelo, talvez eles possam responder algo. Apenas eles podem respon-der já que são os guardiões do cristal...

– Entendido. Obrigado, Balthasar. - Suspirou aliviado. - Achei que fosse fa-zer uma vistoria minuciosa em meu comportamento, mas está tratando-me tão bem que isso nem parece uma avaliação.

Leon soltou uma risada de canto de boca de onde estava.

– Não se deixe enganar, pirralho. - Disse rudemente. - Esse velhote conse-gue analisar uma pessoa até mesmo pelo som da voz. Está bastante en-ganado se acha que não está sendo julgado pelo famoso Barqueiro. Esse velho banguela é um tigre de bengala.

– Olhe os modos, Leon. Se vai ser um barqueiro um dia, precisa lapidar sua simpatia, seu carisma.

Qlon olhou para aquele dócil senhor. Olhou-o profundamente, e não conse-guia, por mais que quisesse, enxergar algo além daquela carapaça de ternura.

– E como Jhon vai encontrar-me? - Mudou bruscamente o assunto, tentan-do mudar o rumo da conversa.

– Fala de Jhon, o Ladino? Aquele que deixou na margem do lago?

– Nossa... Parece estar vigiando-me.

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– E estava. Não me leve a mal, é apenas a minha função. - Concluiu. - Não se preocupe. Aquele velho ainda é um gatuno de dar inveja a jovens mais atléticos e com mais fôlego. Suas peripécias ainda chegam aos ou-vidos de um velho como eu. Ele o encontrará.

– Obrigado por sua bondade, senhor Balthasar.

Balthasar sorriu.

“Não tinha muito mais o que conversar com ele. Eles. Também não queria obri-gá-los a expor seu relacionamento em minha frente. Apenas fiquei calado pelo resto da viagem, enquanto cruzávamos o resto do caminho que parecia nunca chegar ao fim.”

Avistaram a grande e única abertura na grandiosa muralha de Colossus. O rombo dava justamente para o porto, o único meio de entrada para a cidade. Aci-ma do vão, de cada lado da muralha separada, gárgulas gigantes pareciam vigiá-los. As casas e ruas eram amplamente iluminadas, o que deixava a cidade com um aspecto vívido, mesmo que durante a escuridão. Balthasar conduziu a sua embarcação até um píer separado do restante e permitiu que Qlon e Leon saltas-sem. Fez uma estranha reverência e, com seu remo, moveu-se novamente para as profundezas do lago.

– Então garoto... Meu dia foi cansativo hoje. - Disse Leon, coçando a nuca com uma das mãos enquanto bocejava. - Estou querendo acabar com essa tarefa o quanto antes e ir dormir em minha cama. Você não tem no-ção de quanto tempo fiquei em cima daquela coisa de madeira ouvindo meu avô dar sermões. Então façamos do jeito mais fácil: Siga-me, não me desobedeça, e logo tudo estará acabado. Certo?

– Certo. - Respondeu Qlon sem titubear. - Não sei que tipo de criança pen-sa que sou, mas...

– Não adianta gabar-se para mim. - Interrompeu seu discurso o pálido Leon. - Não estou interessado. Vamos logo antes que fique ainda mais tarde.

Com longas passadas, Leon esgueirava-se para o castelo, com Qlon em seu encalço.

– Espero que não esteja perdido, pois com certeza eu não vou voltar a fa-zer essa rota hoje.

Leon abria caminho à sua frente. Usava seu escudo para impor seu status e separar as pessoas nas ruas, senão por certo seria um pesadelo caminhar por

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ali. Já havia passado por tantas ruas e ruelas revestidas por pedras, túneis e es-cadarias espirais, pontes de madeira suspensas por cima de construções, que nem sabia mais para onde era o norte. Esbarrara com elfos, lagartos humanos que deveriam ser os draconianos... Jurava até ter visto um centauro e duas fa-das. Quando olhava para cima, parecia que o castelo ainda estava infinitamente distante, quase que acima das nuvens. A torre de Neverends, que era construída um pouco para fora do castelo, como se saísse de seu terraço e fizesse uma brusca curva para a direita e depois para cima, estava cercada por uma neblina noturna.

– Falta muito para chegarmos? - Perguntou Qlon.

– Você tem bastante fôlego. Na verdade estamos muito longe ainda. Creio que você não chegará para um jantar, e sim para uma ceia.

– Posso fazer uma pergunta enquanto andamos?

– Não.

Leon parou e tomou um pouco de fôlego. Retirou um cantil das dobras de suas vestes e bebeu um longo gole.

– Olhe garoto, não me leve a mal. Sei que gosta de ser uma criança e fi-car... “Criançando” por aí.

– Criançando?

– É... Fazendo coisas de criança, sabe? - Tentou explicar. - Fazendo bi-lhões de perguntas, explorando, tentando arrumar novas amizades... Mas sério, não tente comigo. Não tenho paciência para isso. Menos ain-da quando estou quase desmaiando de cansaço.

Voltou a dar passos bem espaçados, guiando Qlon pelos caminhos sinuosos da grande cidade.

“Enquanto caminhávamos, em um certo momento eu desviei o olhar por al-guns segundos. Vi um homem vestido elegantemente ali, e imediatamente reco-nheci-o. Era Caim. Cessei meus passos por alguns instantes. Ele já havia notado minha presença a mais tempo. Levou seus dedos à cartola e, com um leve ace-no, cumprimentou-me. Logo em seguida, sua silhueta desapareceu em meio ao movimento. Estava em uma praça, perto de uma grande e majestosa fonte. Nes-se ponto, uma suave ladeira levaria até o próximo caminho. Acordei novamente do transe quando senti a mão pesada e gélida de Leon tocar em meu ombro.”

– Nem pensar, ainda não é hora para dormir de pé. Vamos.

– Finalmente, aqui estamos. - Ofegava Leon.

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Os portais do castelo eram gigantescos. E deveriam ser, também haviam gi-gantes naquela cidade. Um dos guardas era um minotauro portando um grande machado de duas lâminas, e o outro era um anão com um enorme martelo. Leon guiou-o até o meio do portão e exclamou:

– Soldado Leon Valar fazendo a checagem de término de sua missão. Apresento-me e aguardo a resposta de superiores sobre minhas novas ordens!

De dentro dos portões surgiu um humano de estatura média, trajando uma ar-madura completa, de elmo a grevas, dourada e reluzente, devidamente polida. Deveria ser o superior encarregado, mesmo sendo menor que seu subordinado. Carregava uma enorme lança nas costas, também dourada. Estava sendo segui-do por outros dois guardas, aparentemente elfos que portavam bestas.

– Soldado Leon, antes de mais nada eu sugiro que pratique alguns exercí-cios para ficar em forma. - Disse com sua voz grave. - Nunca vi um sol-dado ficar tão ofegante após tomar o caminho tático mais essencial para a defesa da cidade. Você é uma vergonha!

Qlon sorriu. Gostou de ver Leon ser colocado em seu lugar.

– Senhor, sim, senhor!

– Eu deveria puni-lo e fazer com que acompanhe nosso visitante durante sua estadia aqui, mas temo não ser apto para esse serviço simples. - Resmungou. - Está dispensado pelo resto da noite, para sua alegria, su-ponho. Mas amanhã quero que esteja cedo aqui, serão dadas novas ta-refas.

– Senhor, sim, senhor! - Respondeu automaticamente.

Leon virou-se e desapareceu tão rápido quanto podia.

– E você, se não estou enganado, é nossa preciosa visita, não é mesmo? - Dirigiu-se para Qlon. - Sinto muito por ter de presenciar essa cena lasti-mável. Leon é um vagabundo de mãos cheias.

– Tudo bem, estou acostumado com essas coisas...

– Enfim, desculpe meus maus modos. - Curvou-se em reverência, seguido de seus soldados. - Sou o chefe da guarda da cidade de Colossus. - Le-vantou-se rapidamente. - Siga-me com urgência, sua majestade, o rei, e o cardeal da cidade estão à sua espera.

“Acompanhado de seus soldados, segui-o pelos enormes portões do castelo da majestosa cidade de Colossus, mesmo que não tão ansioso com aquelas conversas cheias de política. Apenas uma coisa me divertia naquele instante: imaginar a cara de espanto de Jhon ao acordar sozinho na margem do lago.”

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Cap. 65 – Ponto de Partida

ma noite fria. Lá fora o murmurinho ainda tomava conta das ruas, mas já era quase inaudível dentro dos monumentais corredores do castelo. Corredores largos, onde uma tropa com dez homens de largura pode-

ria atravessar tranquilamente, e uma altura de quinze metros, permitindo até que o mais alto dos gigantes adentrasse os recintos reais. Nas paredes, inúmeros ar-chotes acesos iluminavam o caminho sem muitos adornos de mármore, mas mui-to bem cuidado. O chefe da guarda guiava Qlon pelos meandros do palácio, sen-do escoltado pelos seus dois soldados.

U

– Nossa majestade espera-o no salão de jantar. - Explicou novamente.

“O castelo não se assemelhava com nenhum dos que eu tinha visitado até dado instante. Era comum encontrar adornos nas paredes do castelo, como qua-dros, insígnias, e tapetes para cobrir o chão e indicar o caminho. Aquele castelo parecia ter decoração alguma, tirando esparsos jarros de plantas, armaduras va-zias ao longo dos corredores e inúmeras armas, encostadas nas paredes ou se-guras pelas mãos frias dos guerreiros sem corpo. Não havia tapeçaria ou qual-quer outro artigo que ostentasse luxo.”

Adentraram um recinto com um pouco mais de luxo. O salão de jantar consistia em um enorme espaço vazio, com uma gigantesca mesa de cerca de trezentos lugares, que estendia-se de uma ponta à outra do recinto. As cadeiras, ao me-nos, tinham forro, e a mesa de madeira era coberta por um pano branco. No teto, um castiçal rústico dava a iluminação, acompanhado pela luz do luar que aden-trava os vidros transparentes das janelas. Ao fundo, escadas subiam e zigueza-gueavam pelas inúmeras câmaras do castelo. O rei estava sentado na cabeceira da mesa, perto das escadarias. Qlon via-o do outro lado da mesa. O cardeal de pé ao seu lado sussurrava algo, e ambos riam de uma possível piada. O chefe da guarda deixou-o na saída do corredor, ainda acompanhado dos dois elfos, e aproximou-se sozinho do rei. Ajoelhou-se perante ele e disse uma meia dúzia de palavras. Logo após, retirou-se, e fez sinal para que seus arqueiros fossem com ele. Qlon ficou ali, parado, diante da grande mesa que o separava do rei de Co-lossus. Ambos, ele e o cardeal, olhavam fixamente para o jovem anjo, que apre-sentava uma inquietante timidez e desconforto.

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O rei tinha o semblante de um verdadeiro rei. Com uma coroa em sua cabeça que não passava de um aro de ouro, sem joia alguma, prendia seus cabelos cas-tanhos e lisos que chegavam à altura de seu maxilar. Uma barba cheia e bem cuidada tapava seu rosto. Parecia ser um tanto jovem. Apesar de algumas rugas ao redor dos olhos, não deveria passar dos seus trinta anos. Trajava uma longa túnica vermelha de adornos dourados ao redor das mangas e na abotoadura. Seus olhos eram de um verde incomparável. O cardeal, parado de pé ao seu lado, aparentava idade. Seus finos cabelos brancos e ondulados escorriam pelos lados de seu chapéu pontiagudo, parando perto dos ombros. Seus olhos, negros, fitavam o novo visitante. Usava um robe branco com uma cruz vermelha no cen-tro do peito, amarrado na cintura por uma faixa vermelha. Sapatilhas avermelha-das fitavam seus pés, e ele cruzava os braços atrás das costas. Sua face era ru-gosa, e suas bochechas caídas. Com um movimento da mão, balançando a man-ga de sua veste, o rei chamou-o para perto. Com passos curtos, Qlon aproximou-se, analisando a situação. O rei aparentava honestidade e gentileza. O represen-tante da igreja denotava um ar misterioso.

– Pegue uma cadeira ao meu lado e sente-se, jovem. É uma honra tê-lo conosco. - Disse o rei. - Espero que a refeição esteja de seu agrado. A noite será longa, e creio termos muito para conversar.

Qlon puxou uma cadeira do lado direito do rei e sentou-se. Do lado esquerdo, de frente para ele, o cardeal também tomou um lugar, sentando-se vagarosa-mente e apoiando seu peso sobre a mesa.

– Eu estou intrigado. - Disse o soberano. - Um jovem anjo em uma missão tão perigosa. Já recebemos anjos aqui, eu mesmo recebi um bravo sol-dado de cabelos loiros certa vez... Mas nunca um com uma aparência tão jovial. Está em treinamento?

– Sim. - Respondeu vagamente, medindo as palavras. - Na verdade, uma missão de treinamento. - Concluiu. - Eu preciso de um ponto de partida para minha missão, e creio que não há lugar melhor do que a cidade de Colossus para pegar informações necessárias.

– Faz bem, jovem. - Disse o cardeal com a voz rouca. - Nessa grande cida-de, pouco não se sabe. Mas... É intrigante. Veio mesmo tentar matar o grande dragão negro, Vindictus?

– Sim, vim.

– É uma missão arriscada, se me permite mencionar. - Tomou a voz o rei mais uma vez. - A propósito, desculpe nossos maus modos. Sou o rei Victoriano Croma XIII, mas pode chamar-me simplesmente de Victor.

– E eu sou o cardeal Zenon. - Disse o velho.

– Eu sou Qlon Warrior Eros.

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– Sabemos. - Disse o rei. - Seu bispo entrou em contato conosco para que viesse até nós. É uma lástima que teve de fazer escalas em sua jornada, queríamos recebê-lo pessoalmente em nossa catedral.

– Por falar nisso, - Citou Qlon. - gostaria de saber por que não pude vir di-retamente para cá. Passei por poucas e boas para chegar aqui.

– Jovem, é nossa culpa. Perdoe-nos. - Disse o Cardeal. - O cristal de tele-transporte apareceu trincado de um dia para outro.

– E isso atrapalha o teleporte? - Perguntou o jovem anjo curioso.

– Claro. - Respondeu o cardeal. - O cristal, um presente angelical dado após o apocalipse para as cidades mortais conectarem-se com o reino celestial, pode transportar matéria e mensagens através de luz e vibra-ção, respectivamente. Com o cristal trincado, o transporte através da luz é perigoso...

– Mas as mensagens sonoras ainda podem ser transmitidas, creio.

– Exato. - Respondeu o rei. - Com isso soubemos de sua vinda. Esperáva-mos que chegasse a cerca de três dias, mas creio que deve ter enfrenta-do dificuldades na viagem.

– Está tudo bem. Agora estou aqui e estou pronto para pedir mais informa-ções de como prosseguir.

– Calma jovem. - Acalmou-o o rei. - Esta é só uma cerimônia de boas vin-das, creio que não poderemos responder todas as suas perguntas. Por agora, relaxe. Vamos comer alguma coisa.

O rei bateu palmas. Logo, alguns soldados trouxeram comida. Carregavam um leitão assado com uma maçã na boca em uma grande travessa de prata, ornado por uvas verdes e folhas. Trouxeram também duas jarras de vinho e uma jarra de suco de maracujás, acompanhados pelos demais pratos: arroz cozido, uma sala-da de nabos, pepinos e tomates, ervilhas e milho cozido. Outros trouxeram sim-ples talheres de aço envoltos por límpidos guardanapos brancos, ao lado de pra-tos de porcelana. Retiraram-se assim que acabaram de montar a mesa. O rei le-vantou-se, pegou o prato de Qlon e serviu uma gorda costela, uma enorme espi-ga de milho e uma grande porção de arroz e ervilhas.

– Coma. - Disse, depositando o prato pronto em sua frente. - Deve estar fa-minto.

– Estou pasmo. - Disse Qlon, pegando a espiga com as mãos e dando uma boa mordida nos grãos.

– Ora essa, e por quê? - Perguntou Victor.

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– Por ser um príncipe, sempre convivi com a realeza em castelos luxuosos, rodeado por criados e artigos de luxo... Mas tudo por aqui parece tão simples. E agora, acabo de ser servido pelo próprio rei. - Falou de boca cheia.

O rei abriu um sorriso, assim como o cardeal.

– Essa cidade foi feita pelo povo, para o povo. - Disse o rei, fazendo uma reverência enquanto servia-se com uma grossa fatia de porco. - Sou ape-nas seu líder. Também sou um cidadão. Não vou ostentar riquezas das quais não necessito. Nesse castelo só precisam estar os soldados, suas armas e o mínimo de que um líder necessita.

– Entendo. - Disse Qlon. - Parece ser um bom líder, se permite o elogio.

– Vindo de um príncipe celestial, é um grande elogio. Sinto-me honrado, sua alteza.

Todos passaram a desfrutar da refeição, sem ver o tempo lá fora passar.

– Se quer mais informações, os cientistas perto das muralhas poderão aju-dá-lo. Vou pedir ao chefe da guarda que indique um guia para levá-lo de volta à cidade e que leve-o amanhã até eles. Só desculpe não poder ser de mais ajuda.

O rei acompanhou-o até o lado de fora do castelo. O cardeal tomou seu rumo para a catedral passando por atalhos dentro do castelo. A noite esfriava vagaro-samente e nuvens de tempestade chegavam pelo norte. Antes que pudessem perceber, vapor já se formava em suas respirações.

– Está tudo bem, a ajuda do cardeal já foi suficiente. E o jantar estava deli-cioso, obrigado por me acolher.

– Não é nada mais que minha obrigação. - Respondeu com satisfação. - Tem certeza que não quer usar um de nossos quartos?

– Sim, tenho. Eu cheguei aqui acompanhado por um amigo. Se eu ficar no castelo, ele dificilmente me encontrará. Por agora, é melhor que eu fique em uma estalagem, e de preferência com acomodação para cavalos.

– Bem, ao menos darei instruções para que os guardas digam que está ao meu serviço. Não pagará por sua estadia nessa cidade.

– Muito obrigado, sua alteza.

Victor chamou um dos guardas e deu a ele as instruções. Qlon voltou pelo ca-minho que viera acompanhado por um outro guarda com a certeza de que aca-bara de conhecer um grande homem. Talvez o maior deles até agora. Mas agora

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tinha uma missão para cumprir, e antes disso precisava descansar.

– Qualquer coisa que precisar, basta chamar.

O dono da estalagem fechou a porta. O quarto era pequeno. Duas camas eram separadas por um tapete circular que cobria nem metade da área do chão de madeira. As janelas estavam meio empoeiradas, assim como os lençóis brancos em cima da cama. A iluminação vinha de uma simples vela colocada na mesinha abaixo da janela. Lá fora a lua já estava escondida pelas nuvens. Logo a neve começou a cair. Qlon deixou sua bolsa e sua espada em um canto e, cansado de tanto caminhar pela cidade dourada, deixou seu corpo cair sobre a cama, abra-çando o travesseiro e cobrindo-se com um grosso cobertor, antes dobrado sobre ela.

Alguém o acordou dando três murros na porta. Ainda era o meio da noite. Qlon levantou-se exausto. Abriu a porta e não ficou surpreso ao ver Jhon com as ves-tes cobertas por uma fina camada de gelo, respirando pesado.

– Eu fecho os olhos por um segundo e você me deixa sozinho na beira do lago! Isso que é amizade! - Olhos arregalados, visivelmente irritado.

– Ora essa, você queria que eu o deixasse sozinho para descansar, atendi seu pedido. - Disse com uma voz sonolenta. - E pare de fazer tanto baru-lho, aqui é um hotel. Se quiser, entre, tire suas vestes e durma.

Jhon entrou com passos curtos, esfregando os braços e batendo os dentes. Trazia consigo o resto da bagagem.

– E os cavalos? - Perguntou Qlon.

– Deixei-os em uma das cidades à beira do lago. Prometi pagar uma moe-da de ouro a um velho fazendeiro para cuidar deles, então reserve uma moeda para ele. Quando parei para pensar, não fazia sentido trazermos cavalos para uma cidade no meio de uma ilha, senhor gênio de cinco anos!

– Seis. - Corrigiu.

– Que seja. Vamos dormir, não estou aguentando de tanto cansaço e frio. Espero que sirvam um café bem quentinho no café da manhã...

– Leon?

Qlon surpreendeu-se ao ver qual era o guia que a guarda mandou para ele. Já

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haviam tomado o café da manhã e esperavam pelo guia na taberna vazia, perto do balcão da recepção.

– Quem é ele? - Jhon perguntou ao pé do ouvido de Qlon.

– Um guarda preguiçoso. - Respondeu fazendo questão que Leon os ou-visse.

– Sim, e com orgulho. - Não pareceu intimidar-se. - Já tive de acordar cedo nesse frio intenso para vir aqui e servir de guia para vocês, então não tor-nem meu trabalho mais penoso do que já está sendo. Vamos logo? Que-ro almoçar na hora certa hoje.

Andavam a mais de duas horas pelas ruas movimentadas do início da manhã. De acordo com o guia a contragosto, a manhã era a hora de ir à feira comprar os melhores alimentos. As barcas vinham lotadas do continente ainda de madruga-da para abastecer o comércio da cidade. Era algo lucrativo para os fazendeiros da região. Era assim que Jhon havia chegado.

– Falta muito para chegarmos? - Perguntou Jhon, cansado de caminhar em meio à camada de neve que formou-se durante a tempestade notur-na.

– Falta pouco. Ah, e devo avisá-los antes de algo: o cientista com quem vão conversar é meio... Biruta.

– Biruta? - Perguntou Qlon, visivelmente confuso com o vocábulo novo.

– Sim. Louco. Ele parece viver em um outro mundo. Em compensação, é uma mente brilhante. Se não fosse por ele essa cidade ainda estaria em uma segunda idade média.

– O que ele faz? - Perguntou Jhon.

– Ele estuda a tecnologia das ruínas. Por conta dele, temos uma ilumina-ção decente aqui.

– Louis? - Perguntou Jhon. - Conheço a figura.

– Conhece? - Perguntou Qlon.

– Lembra que falei que trabalhei para um homem certa vez que fazia pes-quisa nas ruínas? Pois é. Ele não é louco... Só um tanto excêntrico.

Leon soltou uma gargalhada enquanto dobrava uma esquina e entrava por uma viela estreita o suficiente para só uma pessoa atravessar.

– Excêntrico? Espere até ver a casa dele. Dá para enlouquecer só de olhar para a bagunça. Aliás, estamos bem perto.

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Dobraram mais duas esquinas e saíram em uma larga avenida, de casas muito parecidas umas com as outras. Todas com dois andares, um quintal malcuidado na frente – regalia única em uma cidade apertada como Colossus– e chaminés saindo de seus telhados com telhas avermelhadas.

– Por fora parece normal. - Disse Qlon.

Leon sorriu sem dizer nada. Abriu o portão enferrujado e seguiu por um breve caminho de pedras até uma porta pequena de madeira, com a tranca suja e igualmente destruída pelo tempo. Deu cinco batidas breves e esperou que al-guém lá dentro abrisse uma pequena portinhola para espiar quem estava do lado de fora.

– Eu não acredito... - Disse a voz lá dentro, abrindo as inúmeras trancas. - Não acredito no que meus velhos olhos estão vendo!

Ao abrir a porta, Qlon olhou para um homem de estatura mediana, cabelos ne-gros com fios esbranquiçados, despenteados e olhos negros com enormes olhei-ras, contrastante com sua pele esbranquiçada, encobertos por um grosso óculos. Pálido, mas parecia ter sido, um dia, bronzeado. Trajava uma longa túnica branca que chegava na sua cintura, lotada de bolsos – a maioria cheios de papéis e fer-ramentas, principalmente lápis e canetas. Calças de um material desconhecido e azulado chegavam até seus sapatos de couro negros e nem um pouco lustrosos. Sua principal característica facial era, além do fino e longo nariz, uma grande boca de dentes tortos e amarelados.

– Quem diria, Louis! Como vai! - Bradou Jhon, abraçando seu antigo com-panheiro. - Você envelheceu bastante.

– Idem. - Respondeu Louis, e ambos riram. - Andem, todos vocês, entrem. Como perdeu um olho, Jhon? Enfim, entrem, creio que possuem assun-tos importantes a tratar. E tirem os sapatos, por favor.

Louis e Jhon foram na frente, seguidos de perto por Leon e Qlon.

“Ao entrar, deparei-me com, provavelmente, a maior bagunça que vi na vida. Logo na entrada da casa, uma grande antessala, repleta de caixas e mais caixas cheias de papel até a borda. Esquivando-se das caixas e seguindo para o próxi-mo cômodo, chegamos a uma grande copa, com escadarias do lado esquerdo e uma sacada abarrotada de equipamentos aparentemente inúteis. Na parte de baixo, o mobiliário era composto apenas por uma pequena mesa e uma cadeira de madeira. A iluminação vinha de uma tímida vela, largada em cima da mesa em meio aos papéis. O resto era um amontoado de equipamentos. Reconheci apenas uma luneta de imediato, o resto do maquinário não me era familiar. Não chegamos a adentrar a cozinha ou o banheiro. Paramos para conversar ali mes-mo, em meio àquela total desordem.”

– E então, guarda? Qual é o assunto? Sejam rápidos por favor, estou no

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meio de uma importante descoberta.

– Eu sei de nada. - Respondeu Leon. - O assunto a ser tratado é com essa criança ruiva. - Apontou para Qlon.

– Sério?

Qlon meneou a cabeça afirmando.

– Bem, é uma surpresa. Uma pegadinha do Jhon? - O velho cientista louco olhou para o velho ladino, buscando uma resposta em sua face.

– Estou velho demais para esse tipo de brincadeiras. Escute o que o garo-to tem a dizer, garanto que ficará um tanto surpreso.

Com um olhar desconfiado, puxou a cadeira e ofertou a Qlon, que recusou educadamente.

– Até ofereceria um doce, mas nem sei se ainda tem comida por aqui. Bem, e então, o que tem a tratar comigo...? - Perguntou, abaixando-se para ficar mais próximo do visitante.

– Qlon. Qlon Warrior Eros.

– Ah, prazer Qlon. Sou Louis Kroven. E então, qual o assunto que tem a tratar comigo?

– Gostaria de informações sobre o dragão Vindictus. Seria grato por qual-quer pista de seu paradeiro, fraqueza ou qualquer sorte de informação que possa ter.

Louis arregalou os olhos. De imediato olhou para Jhon, que apenas deu de ombros. Leon fez o mesmo.

– Garoto... Está falando sério?

– Sim, estou.

– De verdade? - Insistiu, ainda esperando que fosse algum tipo de brinca-deira.

– Sim, de verdade.

Louis parou para analisar a situação por alguns segundos, buscando uma res-posta lógica para aquilo tudo, como o cientista que era.

– É uma pesquisa para algum tipo de aula? Não que o objetivo seja da mi-nha conta, mas... Nossa, é a primeira vez em uns vinte anos que alguém vem perguntar sobre esse dragão. E os últimos que vieram aqui nunca mais foram vistos. Ao menos eu não os vi.

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– É sim uma pesquisa, mas não para uma aula. É um pouco complicado de explicar em detalhes agora, mas digamos que estou à procura desse dra-gão.

– Para quê? Já olhou para você mesmo em um espelho? - Agitava-se cada vez mais o excêntrico pesquisador. - Você deve ter no máximo uns oito anos e está procurando um dragão milenar com um contador de mortes maior que a quantidade de papéis nessa sala. O que pretende fazer quando encontrá-lo? Pedir um autógrafo?

Jhon deu uma gargalhada frenética.

– O que foi, Jhon? Vamos concordar que não se vê uma coisa assim todo dia. Por que está rindo tanto?

– É que estou imaginando sua cara quando ele acabar contando os moti-vos dele. Vai ser hilário.

Louis sentou-se em sua cadeira e coçou seus cabelos com as duas mãos, ba-gunçando-os ainda mais.

– Agora que você tem minha atenção, comece a contar tudo, do começo por favor. Temos tempo o suficiente.

“Já perdi as contas de quantas vezes dei satisfação de partes do meu passado para pessoas que havia acabado de conhecer. Digamos que expliquei em menos de meia hora quem eu era, meus objetivos e do que precisava. No final disso tudo, Louis estava um tanto incrédulo.”

Louis encarava-o, quase que inexpressivo.

– Você, um anjo? Isso é abusar demais de minha ciência... - Dizia para si mesmo. - Parece miraculoso demais. Você é um anjo e, como parte de seu treinamento, precisa matar a mais temida das criaturas que pisaram sobre a face da terra...

– Exatamente. - Confirmou Qlon, exausto de tanto falar sobre ele e suas origens.

– E o que deixa as coisas ainda piores... O rei e o cardeal sabem disso, e me enviam um de seus soldados para me convencer... A colaborar... Por Darwin...

Louis levantou-se e passou a andar de um lado para o outro, concentrado ape-nas em si mesmo. Olhava profundamente para o além.

– Bem... Sou um cientista. Sou lógico. Não acredito em nada sem provas. Então prove que aquilo que fala é verdade e terá o que veio buscar.

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Cap. 66 – Prelúdio

m um segundo, Qlon ficou receoso. Aquele pedido era um pouco de-mais para ele acatar. Apesar de já ter ido longe demais contando tudo que acontecera, não sabia a reação que asas negras de um anjo cau-

sariam ao restante dos observadores. Deveria dar ainda mais explicações... Do mesmo modo, não via necessidade em usar o encantamento que Lua ensinara para deixá-las brancas com seres que jamais veria novamente.

E

– Ande, garoto! Eu não tenho o dia todo. - Pediu Louis.

– Que seja o que os deuses quiserem.

Abriu suas seis asas. As brancas e as escuras, sem usar o encantamento. Ime-diatamente, Leon, que estava atrás dele, tomou um susto, caindo para trás em cima de alguns papéis ao ser empurrado pelas asas gigantescas, que pareciam crescer cada vez um pouco mais. Jhon permaneceu com a mesma cara, já sa-bendo que isso aconteceria. Mas Louis... Louis encarou-o com olhos arregala-dos, boquiaberto. Percorria, com o olhar, toda a extensão de suas asas.

– P-p-posso... Tocá-las? - Perguntou gaguejante.

– Não vejo problemas nisso. - Respondeu Qlon. - Vá em frente.

Louis levantou-se. Circundou Qlon com passos curtos, analisando-o de cima a baixo. Com a ponta dos dedos, tocou as penas de suas asas, tanto as brancas quanto as negras.

– Sempre achei que anjos tivessem asas apenas da cor branca... - Qlon engoliu em seco. - Ao menos é o que sempre ouvimos falar... Mas... Ain-da assim, são asas majestosas. Jamais achei que uma criança teria asas tão grandes... Posso arrancar uma pena? - Perguntou timidamente.

– Sim, pode. Só vá devagar, isso... - Antes que terminasse a fala, sentiu um puxão firme em sua asa superior esquerda, contorcendo seu rosto em uma leve careta de dor aguda. - Dói. - Em seguida, um outro na su-perior direita.

Com uma pena sendo segurada firmemente em cada mão, Louis voltou a sen-

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tar-se em sua cadeira. Ainda boquiaberto, analisava as duas penas.

– Impressionante... Realmente impressionante. A barbada da pena branca lembra muito a de uma ave da família Columbidae, e a pena negra lem-bra a de uma ave da família Corvidae!

– Em termos para leigos agora. - Pediu Leon.

– As penas brancas parecem de pombos, e as negras parecem de corvos.

– Parabéns, doutor óbvio. - Ironizou o arrogante guerreiro. - Pela cor, tam-bém posso dizer isso.

– É mesmo? E quanto ao tamanho da pena, textura da barbada e grossura da haste? O que pode dizer?

Leon calou-se.

– E o que isso deveria significar a mais? - Perguntou o dono das plumas.

– Deve significar que você possui dois tipos de asas de distinções enor-mes. Você é um híbrido? Uma mutação?

– Híbrido?

– Sim. - Continuou Jhon. - Aqui nesse reino é muito comum ver seres re-sultantes da fusão de duas raças distintas. Por mais distintas que sejam, não pergunte como. Vi uma vez um cruzamento bizarro entre um mino-tauro e um gigante... Grotesco.

– Ou então... - Louis aproximou seu rosto do rosto de Qlon.

O cientista olhava com curiosidade para aquele ser místico parado diante dele por detrás de suas enormes lentes. Queria uma resposta, e imaginava em sua cabeça um milhão de teses para aquela anomalia, menos aquela que ele queria considerar. Da outra ponta, Qlon retribuía o olhar. Seus olhos imploravam miseri-córdia, pediam explicitamente para que não pressionasse mais respostas.

– Pior é tentar imaginar o casal que dá origem a esses seres fazendo sexo. - Leon ria sozinho, mas Jhon acompanhou-o.

– Não acho isso tão engraçado. - Disse Louis, mantendo a expressão sé-ria. - Aliás, é uma boa fonte de estudos do comportamento genético.

– De novo isso, Louis? - Perguntou seu amigo idoso. - Você e essas suas teorias científicas estranhas. Consegue nem rir de uma piada...

– Podem ser estranhas agora, mas aposto que nossos antepassados evo-luídos que deram origem àquelas ruínas ao sudoeste da cidade não pen-savam assim. Mas isso não é o que está em questão agora.

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– Não, sou fruto do amor de dois serafins de asas brancas, posso garantir. - Respondeu o pequeno anjo por fim.

– Interessante... Uma classificação angelical. Sobre isso os clérigos não costumam comentar. Mas tudo bem, não sou uma das pessoas que mais frequentam as igrejas por aqui...

Levantou-se. Subiu as escadarias e adentrou um dos cômodos. Qlon guardou as asas, não sentindo mais necessidade de continuar a exibi-las. Logo o velho pesquisador retornou com um grosso livro em suas mãos. Só a capa deveria pe-sar o dobro do peso das páginas. Feita de couro e madeira, não tinha sequer uma inscrição.

– Alguns anos atrás - Começou o cientista. - pedi para Jhon fazer uma ex-pedição até as ruínas e explorar as construções. Eu estava começando uma das minhas linhas de pesquisa, então precisava de artigos antigos. Qualquer pergaminho, livro, rolo... Em suma, qualquer inscrição que pa-recesse valiosa era para ele resgatar. Pedi que fizesse, aliás, uma série dessas viagens...

– Todas muito bem remuneradas. - Comentou Jhon.

– Sim, algo que tomou muito de minha herança. Mas continuando, em uma dessas viagens ele trouxe um livro que parecia de cunho religioso, tirado de uma catedral muito, muito antiga, nos arredores da cidade destruída, de acordo com os relatos dele. Minha primeira reação foi imaginar em doar para a igreja, mas minha curiosidade falou mais alto e passei a ana-lisar as inscrições. Falavam sobre o tão conhecido Vindictus, o dragão negro que, um dia, iria cobrir a terra com suas chamas.

Louis abriu o livro, virando vagarosamente cada página. Era amplamente ilus-trado e apresentava runas antigas.

– Um livro antigo de profecias? - Disse Qlon.

– Sim, e sem nenhuma ligação com a Bíblia Sagrada, perpetuada pelas antigas gerações. Foi o livro mais vendido do mundo por muitos anos, sabia? Enfim... Isso não é importante. O que importa é que esse livro trouxe muitas profecias que se concretizaram. O ressurgir do Dragão Ne-gro é tão detalhado nesse livro que fica difícil duvidar de sua veracidade quando comparado à história.

– É, mas esse livro está em um idioma muito antigo e estranho. Sei ler apenas Latim, Enoquiano, Inglês e Idioma Celestial.

– Não se incomode com isso, eu já fiz a tradução, ou boa parte dela. Esse lugar, no passado, mudou tanto de idioma oficial que fica difícil traduzir com precisão.

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– Prefiro que conte a história toda.

Leon e Jhon suspiraram. Jhon procurou acomodar-se em algum canto, apoian-do as costas à parede. Leon sentou-se no meio do chão e começou a resmungar:

– Se minhas ordens não fossem de acompanhá-lo, eu sairia agora por aquela porta.

– Ninguém o impede, moleque petulante. - Rebateu Louis. - Pode ficar lá fora no frio se quiser, não dou a mínima.

– Eu falei com o garoto! Mais respeito com um soldado imperial, velhote. - Levantou-se e apontou o indicador para o velho. - E eu prefiro mesmo a companhia do frio à companhia de vocês. Estarei lá fora quando acaba-rem com suas fantasias.

Saiu do recinto, batendo a porta de entrada. Louis sentou-se na cadeira e aprumou-se, tentando encontrar conforto. Qlon sentou-se à sua frente, cruzando as pernas e esperando a história. Jhon apenas olhava de sua posição com um olhar apreensivo.

– Não vou contar a história toda, mesmo por que ela não é apenas sobre o dragão negro. Mas vou contar a parte que mais interessa, tudo bem?

– Certo. - Disse Qlon, insatisfeito por saber apenas parte de um livro.

“Louis tomou um longo fôlego. Abriu o livro e pulou uma dúzia de páginas. Queria ir apenas para a parte que convinha no momento. Com sua voz cansada, contou, por fim, a profecia.”

Capítulo 7

1 Na origem do mundo ele reside. Como que enclausurado em um ovo, o filho-te do mal cresce, sendo alimentado pelas chamas, para que ataque no dia da condenação. Ele não perecerá para um anjo qualquer, dois ou mesmo uma tropa deles. Ele foi criado para destruí-los, para devorá-los e nas sombras seus restos enterrar.

2 O dragão negro que não pode ser detido, Vindictus. Uma arma criada através do sangue de tudo que é maligno. No dia do juízo final, ele será um dos protago-nistas. Espalhará o caos e a destruição pelo mundo, levando o terror a todos aqueles que neste planeta residem. Dono de uma perversidade tão grande que nem mais seu criador poderá pará-lo. Mas o filho do salvador, montando em seu cavalo branco, será o cavaleiro que enviará o monstro para seu covil.

3 O monstro será selado por correntes que o aprisionarão por mais milhares de anos, mas não perecerá. Será enviado ao Seol para que sirva de firmamento para a nova terra que renascerá da guerra entre o bem e o mal.

– O único problema. - Interrompeu a leitura. - É que a antiga humanidade

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contava que a guerra fosse ser vencida pelo reino dos céus e, até onde sabemos, isso não aconteceu.

– Mas o que aconteceu com Vindictus? - Perguntou Qlon, quereno um pa-radeiro para traçar seu rumo.

Louis sorriu ao olhar para ele.

– Muito, muito sagaz. - Mencionou. - Você possui uma mente científica. O que realmente aconteceu, ou que dizem que aconteceu já que não sou velho a esse ponto, foi que o cavaleiro branco nunca apareceu e o dra-gão ficou solto pelo mundo.

– Mas isso não reduz minha área de procura. - Disse Qlon, insatisfeito com a informação. - Só deixa-a no estado em que está. Nesse ritmo eu vou demorar anos, contando que ele fique parado no mesmo ponto.

– Eu sei. E justamente por isso eu pesquisei por registros de aparência desse dragão em todos os continentes através de cartas e documentos oficiais. E admito que fiquei surpreso com os resultados de uma carta que retornou de uma pequena população refugiada em um arquipélago ao sudoeste da Euroásia. Parece que, lá, tornou-se uma lenda que um enorme dragão mora em um dos vulcões de sua ilha, e que cospe lava incandescente a cada cinquenta anos.

– Apenas isso? - Perguntou Jhon.

– Eu sei. - Continuou Louis. - Parece mitologia antiga, pura e simplesmen-te. Mas, ao que tudo indica, essa é uma mitologia recente, já que “o dra-gão voou para o monte na destruição de todo o mundo”, de acordo com o resto do texto enviado.

Qlon olhou para o velho ladino que acompanhava-o em sua jornada, como quem dissesse que acharam a pista que precisavam.

– Uma ótima notícia. Essa é a melhor pista que há? - Perguntou o jovem anjo.

– Bem, até agora sim. - Ponderou o velho cientista. - De todos os levanta-mentos que fiz, dá para traçar uma rota de onde o dragão apareceu até o seu destino final. Só estou tendo problemas para pesquisar o ponto exato de onde o dragão “rompeu a casca”.

– Interessante. Mas só isso já ajudou muito. O que realmente me interessa no momento é a localidade exata do dragão.

– Então, as respostas que veio buscar já foram entregues. - O velho louco fechou o livro em um baque e sorriu para o pequeno anjo. - Há algo mais em que eu possa ajudar?

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– Se não se importa com a intromissão, qual a sua curiosidade a respeito desse dragão?

Louis sorriu com a pergunta. Gostava do jeito curioso do ser mítico à sua fren-te. Pelo menos alguém gostava, até o dado instante.

– Dragões, no geral, e os draconianos, são povos que possuem uma ener-gia quase que ilimitada, além de terem escamas mais rígidas do que qualquer lagarto comum, impenetráveis por armamentos comuns. Como somos uma cidade que é puramente defensiva em meio a esse caos, nada mais justo do que possuirmos o melhor método de defesa. Eu sou o cientista responsável por pesquisar métodos mais avançados não ape-nas para facilitar a vida dentro desses muros, mas também sou o encar-regado das tecnologias de defesa. E também, mitos são interessantes.

– Entendo.

– Estudo os dragões e sua bela pele escamada a anos, apesar de não ter conseguido muito com isso. O máximo que fiz foi aprimorar as cotas de malha usando escamas e melhorar os escudos dos soldados, construin-do-os no formato delas. Agora pesquiso as garras e dentes para aprimo-rar o armamento, mas está complicado.

– Então que tal...

– Acompanhar vocês? - Deduziu o velho. - Não, já estou idoso demais para essas aventuras, fora que eu serviria apenas como um estorvo, para ser sincero. Só me traga uns suvenires de sua caça, caso consiga voltar.

Qlon meneou afirmativamente com a cabeça, mesmo não entendendo o que ele quis dizer com “suvenir”.

– Bem, e qual a distância daqui até esse arquipélago? - Perguntou Jhon, interessado em saber por quanto tempo mais iria acompanhar o garoto.

– Se forem de navio partindo de Nautilus... Creio que uns oito, nove me-ses, dependendo do tempo.

Qlon arregalou os olhos. Jhon esperava uma resposta parecida, nem mesmo mudou sua expressão.

– Mas... Mas e os cristais? - Perguntou Qlon. - Eles não são usados para teletransporte?

– São, mas não por mortais. Aqui servem mais como um adorno do que como um método rápido de transporte.

– E por quê?

– Pense, Qlon. - Dizia Jhon. - Se os povos em guerra pudessem controlar

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a magia do teleporte, seria um caos. Possivelmente não existira mais ci-vilização.

– No começo... - Completou Louis. - Ou melhor, após o apocalipse, alguns seletos humanos sabiam como. Mas com o surgimento das outras raças e da evolução dos conflitos internos, acharam melhor não perpetuar tais conhecimentos por motivos óbvios. Mover tropas inteiras em um piscar de olhos para as cidades alvo...

– Faz sentido. - Pensou Qlon. - Se eu soubesse disso antes, poderia ter pedido para teleportarem para as proximidades...

– Como pretende chegar lá? - Perguntou Louis, olhando para o olhar cen-trado de Qlon. - Não está pretendendo voar, não é?

– Era uma ideia.

– Você não é a única raça com capacidade de voo. Os céus são patrulha-dos pelas bestas aladas e por máquinas voadoras.

– E se eu teleportar? - Qlon perguntou inocentemente. - Deve servir, certo? Teleportaria até bem alto nos céus e de lá eu iria para o lugar designado. Basta eu olhar um mapa. Ou então eu posso teleportar-me cruzando os oceanos.

– E você tem essa habilidade? - Perguntou Jhon perplexo, com uma certa dose de irritação. - Por que não fez isso desde o começo? Eu perdi um olho sem motivos então?

– Consumo de energia mágica. Usar magia não é tão simples como as len-das sugerem, fora que essa em específico é uma habilidade muito des-gastante. - Empregava os ensinamentos ministrados por sua mestra. - O seu olho foi um incidente que eu queria ter chegado a tempo para evitar, não uma consequência de minha falta de estratégia.

Louis ainda olhava para ele, pasmo.

– Você pode teleportar? Digo, de verdade?

Com o cético olhando diretamente para ele, teleportou-se de um canto a outro da sala em seu filete de luz, movimentando as folhas soltas espalhadas pelo cô-modo. Mais ou menos naquele mesmo período do ano anterior, usava a mesma habilidade para caçar Imps. O cientista maravilhou-se com o espetáculo.

– Incrível! Penso que nenhum mortal poderia fazer coisa semelhante. Mas acho que seria difícil fazer isso por um pedaço de terra tão grande quan-to pretende. O dragão está, literalmente do outro lado do mundo. Fora que, pelo que parece, você pode teleportar-se apenas por um espaço li-mitado...

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– O alcance de minha visão.

– Se for por terra, há uma grande chance de cansar na metade do caminho e precisar parar em um lugar que não seria tão hospitaleiro quanto esta pátria, ou de afogar-se no oceano. Se fosse pelo espaço, precisaria dar a volta no globo. Complicado. Eu diria que a melhor solução é navegar, de fato.

Qlon concordou, enquanto Jhon ainda tentava engolir o desuso das habilida-des de seu contratante como uma tática e não como desatenção.

– Você poderia ter voado ou teleportado o tempo todo...

– Ora, vamos Jhon. Supere isso. - Acalmou-o seu velho amigo.

– Difícil superar quando não é um olho seu que está faltando e você preci-sa usar uma droga de curativo no meio do rosto! Desgraça, Qlon!

– Jhon, você não sabe o risco que é usar magia, muito menos do risco que corro ao expor minhas asas. - Disse Qlon, aturdido com a pequena dis-cussão que se iniciava. - Mesmo que eu voasse ou teleportasse para cá sem correr risco algum, o que acha que faria nessa cidade grande sem um disfarce e sem conhecimento sobre a cultura local?

– Estudasse isso! Raios, eu perdi um olho, Qlon!

– Vamos, Jhon, não é o fim do mundo. - Louis tentava, inutilmente, mediar o conflito. - Além do mais, de nada adianta brigar agora. O que foi feito já está feito, não há como voltar atrás. Aliás, como acabou perdendo esse olho?

– Longa história. - Disse Jhon um pouco mais sereno. - Enfim, preciso sair para beber, senão vou descontar minha raiva em uma criança irritante. Estou trocando essas ataduras, minhas e dele, faz tempo. E só agora penso nisso. Nossa, como sou estúpido!

– Jhon...

Qlon tentou chamá-lo em vão. Ele saiu da casa de seu antigo patrão batendo a porta. Leon estava rindo lá fora enquanto via Jhon fazer um gesto obsceno para ele e sumir em meio às ruas da cidade.

– Ele não mudou nada em todos esses anos. Ainda está um pouco nervo-so, e convenhamos, com uma gota de razão. Mas ele irá acalmar-se as-sim que tomar uns tragos na taverna, pode relaxar.

– Não queria que ele ficasse assim... Aliás, sinto-me parcialmente culpado agora por ele ter perdido o olho.

– Você não é. Ou ao menos não parece ser. De qualquer modo, já pegou

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as informações que queria aqui, não é? Se puder, gostaria que partisse. Sou um velho ainda muito ocupado.

– Sim, por certo.

Louis, educadamente, levou-o até a porta, apoiando a mão em seu ombro.

– Desculpe qualquer incômodo que eu possa ter causado. - Pediu Qlon ao abrir da porta pela mão de pele enrugada de seu anfitrião que girou a maçaneta.

– Não se preocupe com isso, foi uma honra conhecê-lo, acredite. E Qlon...

Qlon voltou-se imediatamente para fitar o olhar sério de Louis. Um olhar que não imaginaria sair de seu rosto. Era quase como se aquele olhar estivesse repri -mindo-o. Com a voz grossa, entoou:

– Eu não sou alguém para julgar, mas eu reconheço o que não é dito, aqui-lo que só as entrelinhas de um livro poderiam demonstrar. Todos sabem o que asas negras significam, fiz um favor em disfarçar para você. Todo mundo possui seus segredos sujos, só espero não ter errado ao julgá-lo.

Leon esperava-o já na rua, sentado no meio da neve. Não ouvia nada do que conversavam. A mão de Louis, mesmo fraca, apertou seu ombro. Qlon sentia o clima pesado que fora criado entre os dois. Não estava esperando por aquilo, mas ainda assim não sentia-se intimidado. Fechou os olhos e suspirou com um certo alívio. Abriu seus olhos acinzentados estampando um sorriso em seu sem-blante.

– Volto aqui quando eu acabar com Vindictus para trazer os espólios.

Louis aliviara a pressão no ombro de Qlon, permitindo que ele fosse embora. Acompanhou-o com o olhar enquanto ele juntava-se a Leon e caminhavam até sumirem em meio às sinuosas curvas das ruas da cidade. Fechou a porta e sen-tou-se, reclinando-se nela. Olhou para o teto, soltando um breve suspiro. Tirou os óculos e limpou-os em suas roupas sujas. Olhou para frente.

– E então, Dr. Louis Kroven? Podemos conversar agora?

A voz de Ronan soou em seus ouvidos. Ele estava parado em sua frente, verifi-cando uma de suas invenções. O doutor meneou a cabeça, afirmativamente. O antigo general do reino celestial estendeu a mão educadamente.

– Fiz tudo como pediu. - O senhor apoiou-se nela para levantar-se. E ago-ra? O que devo fazer?

– Agora é a parte mais importante. A coleta de materiais.

Ronan sorriu e olhou por uma janela. O dia lá fora começava a mostrar seus primeiros raios de sol por entre as nuvens acinzentadas. Fechou as cortinas.

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Cap. 67 – Uma Era de Guerras

alvez devesse ter ficado calado naquela situação. Se tivesse partido sem avisar a Jhon não causaria tanta comoção como causou quando falou sobre seus planos de viajem. Leon seguia seus passos de perto

enquanto eles adentravam o centro da agitada cidade.T– Qlon, apenas deixe-o sozinho! Adianta de nada incomodá-lo agora.

– Mas eu sinto que devo desculpas a ele, de alguma forma. - Dizia o jovem anjo, visivelmente entristecido.

– Dá para ver que não entende nada sobre os adultos. Ele quer só... Ficar sozinho com os pensamentos dele, aproveitando cada segundo de sua tristeza. Ele quer se castigar, se torturar, até que a dor vá embora.

– Que maneira estranha de tentar fazer a dor ir embora... E além do mais, o que você sabe sobre isso?

– Mais do que você pensa. - Sussurrou o guerreiro para si mesmo. - De qualquer modo, deixe-o em paz. Posso garantir que a última coisa que ele quer agora é sua companhia.

Qlon parou. Olhou para um lado e para outro, buscando a rota que iria seguir, um pouco confuso. Sentia-se estranho. Parecia que um dos fardos que carregava era tomar para si a dor daqueles próximos a ele. Era algo desgastante. Provavel-mente, descreveriam a ele como alguém emotivo ao extremo, e ele não discorda-va desse modo de pensar. Com os olhos, vagueou os diferentes rostos daquele lugar, de criaturas humanas e não humanas, vislumbrando por um segundo a di-versidade da pacata cidade.

– Acho que entendo o que quer dizer, Leon.

– Mesmo? - Perguntou o jovem humano. - Nossa, bom saber disso. Até que enfim deu ouvidos a alguém mais experiente como eu. E o que pre-tende fazer agora?

– Voltar para a hospedaria. Partirei pela manhã, amanhã. Já resolvi tudo o que precisava resolver aqui. Pode levar meus cumprimentos ao rei?

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– Por certo, claro que posso. Aliás, é minha função. Por enquanto. Vamos, o hotel fica para o outro lado.

Havia anoitecido. Nem sinal de seu companheiro de viagens. Sua bolsa já es-tava pronta. Checou todos os itens duas ou três vezes para matar o tédio. Estava sentado na cama, olhando para o céu relativamente nublado lá fora. Estava tre-mendamente frio. O vidro da janela do quarto acumulava, e de tanto gelo que es-tava aderido o cenário ganhava um tom esbranquiçado e turvo, como que se sua imagem fosse alterada por pequenas ondas na água, geradas por uma pedra jo-gada em um rio pacato. Às suas costas, a espada repousava estendida sobre a colcha impecavelmente arrumada pela gentil camareira, a quem deu uma gene-rosa gorjeta.

Gostava de olhar para as raças que não conhecia. Um casal de alados namo-rava no telhado da casa à frente, olhando para o céu, aquecidos por suas confor-táveis roupas de lã e pelas penas de suas asas. Pela rua, um grupo de pequenos elfos corriam em um jogo de pique, sendo perseguidos por um anão. Dava para saber por que ele estava no pique. Em um beco, draconianos, humanos e um orc apostavam animadamente em um jogo de cartas enquanto bebiam seu álcool, aquecido pela garganta do ser que herdara o poder do fogo de Juggernaut. Aquecida até demais, pois estava em chamas enquanto descia por suas gargan-tas. A barba de um deles logo começou a pegar fogo e o jogo acabou. Parecia uma cidade relativamente pacífica, apesar de tudo. Os soldados ajudavam a manter a ordem, passando pelas ruas a cada vinte minutos. Mas seu maior traba-lho no dado instante era o de separar brigas de bêbados que usavam suas doses para aquecer o corpo e suas cabeças.

Qlon levantou-se de súbito. Cansado de apenas esperar, abriu a porta e des-ceu as escadas. Foi até o restaurante da estalagem, que funcionava apenas uma das muitas tavernas abertas àquela hora da noite. Perguntou para o atendente se ele não teria visto seu idoso amigo. Já era a terceira vez que perguntava, mas a resposta ainda era negativa. Pelo comportamento esperado por um bebum que roda a cidade fazendo um “tour do torpor”, era certo que, hora ou outra, ele apa-receria também ali. Desapontado, subiu para o quarto. Tinha muito o que pensar sobre os fatos recentes, então continuou sentado, olhando para o mundo lá fora.

Acordou com um baque. Reclinou-se na cama. Havia adormecido sem querer enquanto aguardava pelo retorno de Jhon. Ouvia gritos. Sons de cascos de cava-lo chocando-se com as estradas pavimentadas, o encontro de aço contra aço no distante longínquo. Rapidamente, olhou pela janela para verificar a situação. O sol nascia vagarosamente em raios alaranjados, encobertos por uma densa fu-maça negra que ascendia de algumas casas. O céu parecia ter um contraste mais avermelhado. Nas ruelas, cidadãos corriam amedrontados para suas casas

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e estabelecimentos, buscando um mínimo de segurança. Soldados marchavam em direção às muralhas. Era uma batalha, mas quem era o inimigo? Sem pensar duas vezes, colocou-se de pé e puxou a Sanctus pelo cabo, desembainhando-a. A adrenalina começou a correr em seu sangue, despertando-o do leve torpor.

“Ao descer as escadas, notei o dono da estalagem trancando as portas e jane-las com ripas de madeira. Os clientes eram instruídos a ficar em seus quartos, mas a maioria encolhia-se de medo dentro do restaurante, grande parte constitu-ída por fanfarrões que viraram a noite esvaziando copos. Eu não conseguiria sair por ali. Voltei ao meu quarto e abri a janela, sentindo o ar gélido tocando minha face. Olhei ao redor, certificando-me que ninguém veria a mim. Dei um pulo sua-ve até o solo, e segui o som do barulho ao fundo. 'Mas que espécie de criatura atacaria uma cidade cercada por um lago?', logo pensei. Peguei uma rota alter-nativa, evitando os guardas. Poderia ir voando, mas ficaria muito em evidência. O combate estava tão distante de minha visão que, mesmo correndo, demoraria muitos minutos para chegar.”

– Leon! Seu vagabundo! ACORDE!

Ao abrir os olhos, o insolente aspirante a guarda deparou-se com uma correria desigual no quartel. Os soldados colocavam rapidamente as armaduras. Ao invés de dormir em sua cama, dormira no telhado para escapar da gritaria do capitão.

– Sinceramente, não sei como consegue dormir com toda essa barulheira. Estamos sendo atacados! - Gritava para ele um dos soldados de seu pe-lotão. - Agora coloque sua armadura e vá para a guerra.

– Quem são agora? Os draconianos? Espero que não, aqueles desgraça-dos dão uma trabalheira danada...

– Antes fossem. Preferia eles aos demônios... Enfim, espero você na zona oeste do muro.

– Demônios? Espere, a barreira não está dando conta?! Ei... EI!

Tarde demais. O soldado se fora. Leon desceu do telhado de um pulo e correu para os aposentos dos soldados pegar seus equipamentos. Não gostava de lutar contra demônios – a maioria deles era extremamente difícil de matar. De qual-quer modo, estranhava o nível de urgência do pedido. A barreira, que formava uma cúpula vermelha e mágica sobre a cidade, repelindo os seres do submundo, sempre fora efetiva contra as investidas deles. A maioria dos ataques não era tão grande. Cerca de quinhentas a mil criaturas, e a única grande preocupação era proteger os muros, já que mais da metade deles sequer alcançava metade do lago, sendo mortos pela magia misteriosa que protegia a cidade.

Na verdade, a barreira funcionava como um “amortecedor”. A cúpula vermelha

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permitia a passagem deles, apenas sugava suas forças e danificava seus corpos continuamente. Se um demônio conseguia ultrapassá-la, era extremamente peri-goso que danificassem os muros. Nem tanto por outra invasão de demônios, já que não seria um muro pequeno que os pararia, e sim pelas outras guerras tra-vadas na cidade. Os muros impediam que as tropas inimigas avançassem em terra, restringindo o combate ao meio do lago, por água ou ar. E se os navios eram de madeira, alguns arqueiros eram mais do que suficiente para provocar estragos irreparáveis. Criaturas aladas, como algumas espécies de draconianos, eram muito mais difíceis de ser abatidas, por isso a luta contra elas era preocu-pante. A infantaria antiaérea tinha um poder de fogo limitado.

Mas demônios entrando na cidade? Isso era mais do que preocupante. Apesar disso, algo incomodava Leon enquanto calçava suas grevas. Estava esquecendo de algo importante, como se sua mente estivesse desconsiderando um fator im-portante. O acordar recente do sono ainda tinha seus efeitos. Após forçar sua mente mais do que o habitual, lembrou: Qlon.

“Os becos e ruelas da cidade passaram a dar raiva. Estava completamente perdido e nem na metade do caminho. Eu não podia seguir as tropas ou seria notado. Se eu não visse Leon, correr por mim, provavelmente ficaria perdido por anos naquele labirinto que chamavam de cidade.”

– Leon! LEON!! - Gritou o pequeno anjo.

O soldado freou bruscamente, deslizando o aço de armadura pelas pedras do calçamento úmido pela neve derretendo da noite anterior.

– Ufa! Até que enfim te encontrei. Tentei correr para a hospedaria, mas você não estava mais lá.

– Acordei com o barulho. Vi as tropas marcharem.

– Pelo menos você conseguiu. De qualquer forma, vamos!

Leon agarrou o braço de Qlon com pressa e começou a correr para o lado oposto.

– Ei, Leon! A guerra é para o outro lado! - Dizia Qlon enquanto era puxado e mal conseguia acompanhar os largos passos de seu companheiro.

– Eu sei! Justamente por isso!!

O anjo ruivo usou sua força e desvencilhou o braço da pegada gélida e aperta-da da manopla do soldado.

– Eu mereço uma explicação! Quem é o inimigo?

– Demônios, Qlon! Demônios!

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– Então não é ainda mais óbvio que devemos ir para lá? - Indagou Qlon. - Eles são demônios e eu sou um anjo!

– Justamente! Você é UM anjo! Apenas UM! E convidado da cidade! Você tem ideia do que pode acontecer aqui se você morrer, ou for seriamente ferido? Primeiro eles arrancariam minha cabeça...

– Típico, egoísta... - Murmurou Qlon sem que Leon ouvisse.

– … E esse seria o fim das relações políticas e religiosas entre esse reina-do e o reinado celestial! Você não tem ideia da gravidade que isso é, ain-da mais depois de sabermos de sua casta social?!

– Não me importa, há vidas em perigo aqui.

Leon irritou-se e deu um soco no rosto de Qlon. Foi algo tão inesperado que o jovem anjo sequer pensou em esquivar, ou reagir. Caiu no chão e colocou a mão sobre o nariz, que sangrava. Não doera tanto, mas achou que poderia ter que-brado.

– Essa não é a hora para tentar ser um herói, seu moleque desgraçado! - Rugiu de raiva. - Você não pode salvar a todos que encontrar, aceite isso! Até sua vida está em risco neste momento!

– E desde quando minha vida é mais importante que a de qualquer outro?

– Desde que você é um maldito de um anjo e desde que ela interfere em muitos aspectos políticos e sociais para essa cidade! Você vale mais vivo e covarde, mas em segurança, do que morto e lembrado como um herói! Não adianta usar sua psicologia barata comigo, seu pedacinho de merda!

Qlon engoliu aquele sentimento de raiva que guardava. Agora estava ainda mais cheio de adrenalina que antes. Revidou o soco de antes, atingindo a face direita de Leon, jogando-o ao chão e quase nocauteando-o.

– Como você quer medir o valor da vida de alguém se tudo que ela signifi-ca é baseado em política e em jogos de poder? Uma vida vai muito além da posição de uma pessoa! E eu não me importo com a minha, nem com o que você acha que seria melhor para mim! Minha educação e minha consciência me mandam ajudar, e é isso que vou fazer, com ou sem você.

Leon limpou o canto da boca com a farda que carregava presa ao cinturão. Deu um curto sorriso.

– Boa sorte para chegar lá sem conhecer o caminho. - Levantou-se vaga-rosamente. - Já que você não quer ser salvo, que se dane minha obriga-ção como seu escudeiro e guia. Está por sua conta. Vou ajudar meus ir-mãos-de-farda pois eles são bem mais importantes para mim do que

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uma criança que não consegue entender que toda ação tem uma conse-quência.

E voltou a correr pelas ruelas. Qlon deu a ele dois minutos de vantagem e pas-sou a seguí-lo. Ele podia não chegar sozinho ao combate, mas com certeza con-seguiria se seguisse um soldado que, por pura desatenção, iria mostrar o cami-nho sem querer.

– Então começou. - Caim retirou o relógio de bolso de seu sobretudo e olhou as horas. - Ele está atrasado.

Repousava reclinado do lado de fora da casa do Dr. Kroven enquanto espera-va por Ronan. Os soldados corriam por todos os lados tentando conter a invasão em massa que parecia iniciar-se. Ajeitou sua postura quando ouviu passos do in-terior da construção.

– Tem certeza que vai funcionar? - A voz de Ronan fez-se ouvir.

– É apenas uma hipótese, mas é provável que sim. É bom que funcione. - Concluiu Louis. - Você terá apenas uma chance. E lembre-se de não pe-gar tudo, se for possível.

– Pode deixar. - Concluiu, abrindo a porta. - Obrigado por seus serviços, doutor. E lembre-se, essa conversa nunca existiu.

– Mesmo que tivesse existido, quem acreditaria, afinal? - Deu de ombros enquanto o anjo caído caminhava para fora de sua residência, sendo acompanhado por Caim.

Ronan sorriu e olhou para o rosto de seu companheiro, que visivelmente esta-va preocupado com as horas.

– Tudo bem, eu já sei. - Disse, aliviando a tensão. - Doutor, permaneça dentro de casa, as coisas ficarão feias por aqui.

– Eu sei. Adeus. - Fechou a porta.

– Caim, ela já está aqui?

– Creio que não, apenas seus lacaios. Mas posso sentir sua presença, ela não está muito longe. - Levou seu olhar vago ao horizonte.

– Então vamos com pressa. Assim que a batalha eclodir com força total, seremos os protagonistas.

– TODOS OS COMBATENTES, PROTEJAM A MURALHA CUSTE O QUE CUSTAR! - Dava as ordens o capitão de brigada, enquanto seus homens

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faziam o possível para combater centenas de seres do submundo.

A espessura do muro não era assim tão grande: cerca de trinta metros separa-vam terra e água. Mas era o suficiente para que as tropas lutassem acima dela. O confronto estendia-se até as ruas próximas. As casas situadas perto do con-fronto estavam quase completamente destruídas ou carbonizadas. Quando Leon chegou segurando sua espada mal sabia para onde olhar.

– RÁPIDO, SEU VAGABUNDO DESGRAÇADO! - Ouviu a voz de seu capi-tão. - EU SABIA QUE VOCÊ ERA PREGUIÇOSO, MAS ISSO JÁ É O CÚMULO!! QUERO VOCÊ FORA DE MEU ESQUADRÃO, MAS POR AGORA BATALHE COMO O HOMEM QUE PENSO QUE É!!

Leon engoliu em seco. Correu para o meio da batalha soltando seu grito de guerra. Cravou a lâmina de sua arma na primeira besta que encontrou. Ela ge-meu de dor e esguichou seu sangue escuro. Para ele, o combate apenas come-çava.

Qlon olhava a cena de longe. Seguiu Leon até ali, e agora era sua hora. Sacou sua arma, cujo brilho azulado apenas intensificava. Dentro de suas veias o san-gue fervia. Quando estava pronto para começar o ataque, uma mão pousou em seu ombro.

– Jhon! - Assustou-se. - O que faz aqui?

– Vim... Pedir desculpas. - Soluçava entre as palavras, ainda visivelmente bêbado. - Essa pode ser... A última vez que nos vemos, e... Não quero morrer com mágoas no coração.

– Jhon, volte para a hospedaria. - Pediu com um olhar frio. - Sei que com-bate bem para um idoso, mas... Mantenha-se longe daqui. E espere-me por lá, eu imploro.

Jhon cambaleou e abriu um sorriso. Repousou a mão que fedia a bebida bara-ta nos cabelos de Qlon e disse:

– Você é um bom garoto.

Deu as costas e partiu pelas ruelas.

Ronan corria em alta velocidade. Caim ia logo atrás dele. Assim como Qlon do outro lado da cidade, não podiam levantar suspeitas ao voar, ou seriam notados rapidamente.

– Vamos mais rápido ou não teremos tempo! - Gritava com Ronan.

– Eu sei, não precisa apressar-me ainda mais! Já estamos perto da igreja!

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Ao dobrar mais duas esquinas, avistaram a entrada da catedral. Pararam de imediato em suas portas trancadas com correntes e um grosso cadeado.

– Você vai. - Disse Caim. - Eu montarei guarda.

– Medo do templo dos deuses? - Ronan perguntou com um sorriso debo-chado na face.

– Apenas receio. - Respondeu, mantendo um rosto preocupado. - Agora ande logo. Ela está aproximando-se cada vez mais rápido.

Ronan aproximou-se das portas e rompeu as correntes que selavam a passa-gem com as mãos nuas. Com um estrondo abriu as portas. Os padres, assusta-dos, olharam para ele, que abriu suas enormes asas negras.

– Nada contra vocês, padres. Mas tenho assuntos importantes a tratar com aquilo que guardam no interior da catedral. Que os deuses me perdoem. Ou não.

Os padres tentaram correr, mas Ronan era sobre-humano. Nocauteou-os tão rápido que talvez eles nem lembrassem o que tinham visto. Deixou apenas um sóbrio o suficiente para extrair suas informações. Aterrorizado, o padre caiu ao chão e olhou-o mirando o rosto para a abóbada.

– Padre, não vou contar uma longa história para você explicando tudo que me trouxe aqui, pois não há tempo para essas frescuras. Vou ser direto, e espero que também seja. Não medirei esforços para completar minha missão.

– O-o-o-o que quer saber, filho?

– Ótimo, então podemos cooperar. - Ronan deu um breve sorriso. - Onde está a entrada?

– Q-q-que entrada? - A voz foi tão falsa que Ronan quase gargalhou ao es-cutá-la.

– Vamos, não banque o inocente comigo, padre. Você sabe muito bem do que estou falando.

O padre meneou a cabeça dizendo que não, mas Ronan sabia que sim. Agar-rou-o pelas vestes e carregou-o até o lado de fora nas costas, onde Caim monta-va guarda.

– Está vendo, padre? Isso é uma guerra. Nesse momento, milhares de seus soldados estão morrendo, e outros tantos ficando incapacitados de pegar em um talher pelo resto de suas miseráveis vidas. Mas você pode evitar mais destruição e caos. Apenas diga o que quero saber e garanto que essa batalha terá fim.

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– Você irá recuar suas tropas?

– Sei que minha aparência deixa dúvidas em sua cabeça, mas acredite: eu estou do seu lado. Prova disso é você e seus companheiros ainda não estarem mortos. Só não estou sendo educado como deveria, e já disse por quê. Apenas conte-me: onde está a maldita passagem?

– E-e-e... E se eu não quiser dizer? - Indagou tomando um pouco de cora-gem.

– Não seria problema algum explodir esse lugar em pedaços para achar o que procuro. Você não tem ideia da extensão de meus poderes. Pela fal-ta de tempo, eu espero que a próxima vez que você abrir essa maldita boca seja para dizer o que quero. Caso contrário, vai adorar saber o que demônios fazem com carne humana.

Caim e Ronan olharam friamente para o rosto velho e enrugado do líder religio-so, que suava de preocupação.

Jhon estava a meio caminho da hospedaria quando parou. Fechou os olhos enquanto algumas de suas lembranças afloravam em sua mente. Não, não have-ria pior hora. Olhou pesaroso para suas mãos e desatou em um longo choro.

Correu com sua velocidade máxima. Com a Sanctus em mãos, visou seu pri-meiro demônio. A besta tinha apenas uma enorme boca e caminhava em cima de quatro patas. Parecia dar trabalho aos soldados. Assim que sentiu o cheiro do anjo, voltou-se diretamente para ele. Correu ao seu encontro para atacá-lo e, com um salto no ar, arreganhou seus dentes. Voltou ao solo cortado em pedaços.

– Isso não vingará as vidas que se foram por conta dele, mas com certeza impedirá que outras sejam arrancadas de seus donos.

– Quem... Quem é você? - Perguntou um dos soldados. - Você é só uma criança!

Sem dizer mais uma única palavra, Qlon correu pelas ruas adjacentes. Sentia um prazer tão indescritível ao empunhar aquela arma e retirar do mundo aquela besta sanguinolenta que um sorriso gigantesco abriu-se em sua face. Seu primei-ro demônio em guerra. Então era assim que os herdeiros dos Warrior ficavam du-rante uma batalha. Com o sangue fervendo e sua lâmina sagrada em mãos dei-xando um rastro azulado aos olhos dos espectadores comuns, começou a assu-mir seu posto como o soldado que estava fadado a se tornar um dia. E ali, em meio ao caos de uma batalha, à morte de inimigos e aliados e ao sangue e suor dos combatentes, Qlon nascia pela segunda vez. Renascia para ser o futuro líder de seu povo e o maior soldado que qualquer outro anjo jamais seria.

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Cap. 68 – Lillith

o passo que corria para descer as escadarias espirais de degraus grandes o suficiente para quebrarem o joelho de alguém que viesse na direção contrária, batia a cabeça nas lamparinas presas pelo longo cor-

redor. Estava indo, literalmente, para o fundo da terra. O espaço era muito estrei-to e não poderia voar nem ir mais rápido naquelas condições. Conseguia, entre-tanto, pular doze, treze degraus em cada passada mais longa. Não demorou mui-to para avistar a sala com grandes portais de madeira e ferro com sinais de ferru-gem selada por inúmeras correntes. Com um potente golpe, Ronan abriu-a, esti-lhaçando-a. Dentro dela, sobre um pedestal, viu o que fora procurar e soltou um sorriso de satisfação.

A

Leon não estava tendo muitos problemas para matar aqueles monstros. Sua arma encantada fazia um ótimo estrago, e suas técnicas de combate eram acei-táveis. A “anoitecer no inverno”, sua espada, estava completamente molhada com um sangue escuro e espesso. Uma besta pulou para cima dele e recebeu um golpe na cabeça com o escudo de metal gélido. Em um outro movimento, Leon cravou sua arma nas costas de seu inimigo e esperou que congelasse por dentro. Sua habilidade especial era essa, resfriar sua lâmina rapidamente até que alcançasse uma temperatura próxima ao zero absoluto, congelando instanta-neamente aquilo que tocasse – até o ar. Com a criatura morta, retirou dela sua espada. Estava cansando. Era em momentos assim que sentia-se feliz por ser tão preguiçoso: o acúmulo de energia em seu corpo dava a ele mais tempo de combate. Comparado aos seus companheiros, ainda estava em condições de, sozinho, enfrentar aquela batalha.

Qlon pegou impulso na clava de um gigante, que descia seu equipamento com velocidade contra um dos seres infernais. Com seu salto no ar, o pequeno matou um demônio alado, cortando suas asas e sua cabeça em um movimento repenti-no. Ao cair, ainda cravou a Sanctus em uma espécie de touro negro, que expeliu mais sangue de demônio. Já havia perdido a conta de quantos matara até o mo-mento. Pegando impulso no corpo que estava no chão, correu pelo piso de pedra

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e, balançando de baixo para cima sua espada, em uma vertical perfeita, dividiu ao meio um demônio de forma humanoide, extremamente magro, que expeliu suas pequenas vísceras no chão. Passou pelo meio dele enquanto o mesmo ain-da dividia-se, antes de vir ao chão. Estava mesmo de olho em um dos demônios do outro lado da rua: um ser de forma humanoide, gigantesco, que parecia-se com um dos soldados ogros que vira, só que com uma pele de cor vinho e cheio de espinhos pelo corpo. Mas nada impedia que levasse alguns demônios pelo caminho...

Jhon percebeu do que fizera, Estava comportando-se pior que uma criança mi-mada. Com suas adagas em mãos, em um dos patamares mais altos da cidade, contemplava as ruas distantes sendo invadidas pelos inimigos de seu melhor amigo. Enquanto isso, ele nada fazia. Com vergonha de si mesmo, decidiu que iria lutar. Nem que fosse sua última luta. Sua segurança importava menos que estar ao lado de Qlon naquele momento. Estava gostando do garoto como um fi -lho, afinal.

Caim estava sentado quieto e de olhos fechados na entrada da catedral en-quanto o padre ameaçado por Ronan olhava-o, intrigado, de alguns metros de distância.

– Padre. - Disse ele silenciosamente.

– O que foi, filho? Busca por perdão? - Perguntou o padre, sentindo-se um pouco ameaçado.

– De forma alguma. Já luto por ele a milênios sozinho, mas obrigado. Gos-taria de dá-lo uma sugestão.

– Sugestão ou ordem?

– A menos que queira, por conta própria, ficar exposto ao perigo, sugestão. - Com uma expressão mais do que séria, Caim olhou para ele, franzindo a testa. - Assim que meu mestre sair, esconda-se, e leve o máximo pos-sível de cidadãos com você.

– O que irá acontecer? - Cada vez mais preocupado, o padre sentiu um ar-repio na espinha.

– Ela está vindo.

– Quem?

– O motivo de nós, demônios, nunca termos conseguido completar nossa verdadeira missão. A mente que transformou nossa ordem de revolucio-

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nária em algo completamente caótico. A razão de todo o seu mais íntimo medo, da criação das religiões. Lillith.

Sem dizer mais nada, levantou-se. Sacou seu belo sabre de dentro do cajado e, concentrando sua energia elemental, transformou-o em uma arma que parecia feita de lava.

– A presença dos demônios deixa tudo mais gélido ao seu redor pois rou-bam o calor de seu destino para usar de energia, e por isso a noite ante-rior veio a nevar. Mas a verdadeira nevasca, a tempestade que consumi-rá essa ilha, ainda não chegou. - E apontou para o céu com sua mão es-querda desarmada.

O padre olhou para cima e arregalou os olhos de pavor. Era como se nuvens negras fizessem um vórtice acima de Colossus enquanto raios cruzavam de um lado para o outro nos céus.

– Mas o que, em nome dos deuses...

– Se sua função é mesmo dar alento para essas almas perdidas, reze por essa cidade.

Qlon, Leon, Jhon e Caim presenciaram, então, a mesma cena. Uma parte do muro veio ao chão depois de uma grande explosão, que carregou consigo, além de demônios e soldados, algumas casas próximas. Uma densa nuvem de pó su-biu, alguns guardiões desviaram a atenção de seus combates para tentar enten-der o que acabara de surgir. Uma mulher de seios fartos e pernas bem tornea-das, usando um vestido negro semitransparente de renda, estava sendo carrega-da por um grande demônio de forma humanoide. O demônio tinha a altura de três casas de dois andares, uma em cima da outra, e era tão gordo e grotesco que cem homens de mãos dadas e braços estendidos, formando um círculo, difi-cilmente circundariam a criatura. Tinha a cara de um javali, com duas grandes presas que saíam por seus lábios inferiores e curvavam para baixo, por cima de seu queixo. A jovem tinha sedosos cabelos vermelhos cor-de-sangue, ondulados e longos o suficiente para cobrir as auréolas rosadas de seus seios – mesmo que o grande decote em “V” mostrasse deles mais que o suficiente. Sua pele era páli-da como a neve, fazendo transparecer suas veias ao longo de seus membros.

Ronan colocou a mão sobre o minério sagrado, sentindo seu calor emanando. Era aquilo que viera buscar. Sentiu a terra estremecer e ouviu um alto grunhido. Ela havia chegado.

A jovem parecia acordar de seu sono no colo do gigante suíno. Deu uma longa

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espreguiçada e bocejou, limpando os olhos com as costas das mãos. Ainda no colo dele, virou-se para olhar para baixo.

– As tropas ainda estão lutando? Quanto desperdício de tempo. - Disse a jovem em bom latim.

– O que quer que façamos, mestra? - Perguntou o horrendo ser.

– Deixe que lutem. Destruiremos esse lugar hoje mesmo.

– Mas não é por isso que viemos. - Lembrou-a.

– Sim, eu sei. Mas eles virão até nós por vontade própria, ainda mais se quiserem defender esse espaço inútil de terra.

– O que faremos até então?

– Destrua mais esse lugar até que eles sejam forçados a virem até mim.

– Tudo bem, mestra.

Antes que ele pensasse em cumprir as ordens, já estava sendo alvo de milha-res de flechas e armas arremessadas, tentando conter seu avanço. Os capitães de brigada, por mais experiência em combate que tivessem, jamais haviam pre-senciado algo parecido. Davam ordens para soldados sem muita ocupação ata-carem o macabro porco javali gigantesco como pudessem. E um desses solda-dos que passaram a mirar na criatura foi Leon. Cravou sua espada com toda sua força, introduzindo toda a lâmina contra aquele corpo. O monstro nem parecia sentir, mas logo saberia o sabor de sua arma. Concentrou toda sua energia re-manescente invocando o encantamento mais forte que conhecia:

– Lâmina do Norte!

O porco soltou um forte grunhido enquanto sentia sua perna congelar. Chutou o guerreiro com a outra perna, que mesmo defendendo-se com seu escudo, foi atirado muitos metros para trás. Ao tentar esmagar os soldados próximos a ele com a perna congelada, eles esquivaram-se e ele quebrou-a em milhares de pe-daços congelados, perdendo o apoio e caindo ao chão com um baque. Os solda-dos cantaram vitória antes do tempo e viram sua perna regenerar-se diante de seus olhos, assim como as feridas abertas pelos instrumentos pontiagudos em seu corpo fecharem, devolvendo ao chão as várias armas e flechas cravadas em seu corpo. Qlon observava o desenrolar de tudo isso de longe, enquanto tinha um certo trabalho de passar pela horda de demônios e aproximar-se do lugar. No meio do caminho, Jhon, emparelhou com ele. Ainda bêbado, lutava com os de-mônios como um mestre do combate, usando suas adagas.

– Jhon! Eu falei para ir para a hospedaria!

– Posso estar bêbado, mas vou compensar o que fiz ontem com minha aju-

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da. - Dizia ao cravar seu punhal no abdômen de uma besta com boca e língua grandes o suficiente para engolir um anão inteiro.

– Esqueça isso, você pode morrer aqui! - Tentou persuadi-lo ao cortar em dois um demônio com sua espada.

– Você também! E por isso mesmo voltei!

Aquela frase não fazia sentido algum, mas Qlon relevou. Estava ocupado de-mais arrancando cabeças, cortando membros e dividindo em dois os corpos dos seres malditos. E além do mais, seu amigo estava bêbado.

– Escute, você quer ir direto para aquele porco, não é? - Perguntou Jhon enquanto tomava fôlego em meio aos ataques.

– Sim, os soldados correm perigo. - Respondeu.

– Por que não voa? - Perguntou soluçando.

– Eu seria descoberto, e não quero isso.

– Ah, é mesmo...

Os dois lutavam lado a lado, atacando os demônios ao redor em dupla.

– E se eu te ajudar a abrir caminho? - Perguntou o velho.

– Mas já não está fazendo isso?

– Ah, é mesmo...

– Cuidado, Jhon!

Com um braço, Qlon curvou o corpo de Jhon para baixo enquanto defendia uma machadada de um demônio que segurava várias armas de soldados abati-dos com seus tentáculos. Com um movimento suave, cortou o tentáculo que o atacou e partiu para cima do corpo gelatinoso da criatura, cortando-a em 4 fatias e libertando o suco de cor violeta que deveria ser seu sangue, que espalhou-se para todos os lados.

– Jhon, você é um bom lutador, mas está meio velho para isso. Por favor, volte para a hospedaria. - Disse o jovem anjo com a espada sagrada em mãos. - Eu estou pedindo, mais uma vez. Estou preocupado com sua se-gurança.

Jhon deu um olhar como quem não pedia permissão para ficar. Qlon entendeu o recado – estava velho demais para receber ordens de um garoto, por mais sa-grado que ele fosse. Qlon respirou fundo.

– Você guarda minhas costas, eu guardo as suas? - Perguntou Qlon com um sorriso torto, consentindo contra vontade.

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Leon estava com dificuldades de permanecer de pé. Quando abriu os olhos, viu seus amigos serem pisoteados e jogados para longe por um javali colossal. Seu golpe não havia funcionado. Aos poucos, ajeitou seu corpo e equilibrou-se. Deveria ter quebrado algumas costelas com o impacto, e sua armadura estava amassada em tantos níveis que não poderia continuar com ela. Retirou-a. Nada mais de levar golpes.

– Você pegou. - Caim constatou quando viu Ronan sair da igreja com o mi-nério brilhante em mãos.

– E ela já chegou. Está tudo bem óbvio, mas precisamos agir antes que a cidade vire ruína.

– Já pode entrar, padre. - Advertiu o demônio. - E sugiro que tranque bem sua porta.

– Jhon, afaste-se!

Já estavam perto do porco gigante. Ao seu redor, corpos de soldados esmaga-dos e armas caídas. Jhon entendeu o recado – seria inútil naquela situação. Vol-tou de onde viera para combater mais alguns outros antes que o efeito da bebida acabasse e ele voltasse a sentir as dores nos ossos.

Qlon, por sua vez, pegou um forte impulso. Aproveitou que seu oponente esta-va de costas e mirou no pescoço. Queria acabar com aquilo em apenas um gol -pe. Sua adrenalina e concentração estavam tão altas que mal percebeu o brilho de sua arma aumentar exponencialmente. Sanctus agora emitia uma luz tão po-derosa que ofuscava muitos no campo de batalha. Lillith também percebeu, e seu companheiro porco-do-inferno também. O brutamontes virou-se, mas não dava mais tempo de uma esquiva ou defesa, Qlon estava exatamente em cima dele.

“Com o espírito em chamas, meu corpo moveu-se instintivamente. Minha boca abriu-se e deixou sair um urro de guerra – claro que, com minha fina voz de criança, não deve ter sido algo muito... Másculo. De qualquer modo, desci a mi-nha espada para aplicar um poderoso golpe. A Sanctus emitia uma chama azula-da próxima à sua lâmina. Quando dei o corte, que partiu por detrás de meu om-bro em uma diagonal, e atingi em cheio o gigante, o mesmo entrou em combus-tão. Soltou alguns altos grunhidos enquanto debatia-se, e pude perceber Lillith sair de seu colo. Com o gume ainda cravado na criatura, corri por cima de seu corpo. Sequer sentia a chama sagrada abaixo de meus pés. Passeei por sua face, rasgando-a de cima a baixo e dividindo seu crânio em duas peças. E, quan-

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do ele veio a baixo, eu pousei em sua barriga. Lillith estava parada em minha frente, e esboçou reação alguma. Ao fitar-me com seus profundos olhos verme-lhos, pude sentir um pouco de surpresa, como alguém que vê seu oponente no xadrez fazer uma jogada genial. Mas ainda não decisiva.”

– De tudo o que eu esperava encontrar aqui hoje, - Disse em voz alta en-quanto os muitos soldados ao seu redor passavam a combater outros de-mônios, entusiasmados pela vitória. - soldados valorosos, magos sábios... A única que não podia esperar era a visita do novo dono da Sanctus.

Ela lambeu seus lábios de uma cor rosa, viva. Seu rosto de contornos suaves e femininos com sardas no nariz e nas bochechas era provocativo.

– Quer dizer que o filho de Ronan saiu do conforto de seu lar e veio assistir os mortais digladiarem por sua sobrevivência. Que coisa fofa!

O tom de ironia em sua voz era demais para Qlon aguentar, mas sabia que es-tava enfrentando um oponente acima de sua alçada. A energia que emanava dela era tão obscura que sentia-se em um quarto sem qualquer fonte de ilumina-ção. Nem mesmo Canine havia feito sentir algo parecido. Enquanto um era agressivo, outro era completamente misterioso e envolvente, como um predador que atrai sua presa para o abate ao invés de caçá-la. Colocou-se novamente em posição de combate e encarou Lillith, que não tirava o sorriso do rosto.

– Vai mesmo ameaçar-me? Quanto tempo acha que pode durar em mi-nhas mãos?

– Quem é você? - Qlon arriscou-se a perguntar.

Em menos de um segundo sentiu um delicado pé apoiar-se em cima de seu peito, deixando à mostra as partes da bela mulher demônio. Nem o pé inteiro, apenas sua ponta, como quem caminhasse com um salto alto. Ela sequer pare-cia fazer força para prendê-lo ali.

– Meu nome é Lillith. - Retrucou. - E você deve ser Qlon, não é? Filho de Ronan.

– Como... Você sabe? - Qlon perdera o ar de seus pulmões e estava tendo dificuldades para respirar.

Em um reflexo, tentou cortar fora o pé de Lillith, que ela retirou no último se-gundo.

– Você é rápido para uma criança de sua idade, mas não vai durar muito tempo comigo. Antes de morrer, pode dizer-me onde está seu papai?

Qlon levantou-se de um salto e tentou acertá-la com um corte na horizontal, na altura de seu abdômen. Ela jogou o corpo para trás e, no contra-ataque, deu um

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tapa com a mão direita na face esquerda de Qlon, que recuou alguns metros para trás com o impacto. Não foi sequer um golpe cheio de força, como estava acostumado – apenas um tapa de uma mulher normal.

– Não tenho tempo para brincadeiras. Onde está seu pai? Você sabe? Ou não responde porque sequer chegou a vê-lo?

Qlon ajeitou seu corpo, aprumando-se para o embate novamente.

– Saia de perto dele, Lillith. - Ouviu uma voz familiar.

Era Caim parado próximo a ela, elegante como sempre, segurando seu sabre de magma ardente.

– Ora essa. Caim, seu traidor. Está aqui bajulando seu novo salvador nova-mente? Onde ele está?

– Nem que me torturasse eu diria. Mas logo saberá o que ele veio fazer nessa cidade.

O sorriso de Lillith fechou. Com um rosto aparentemente preocupado, passou a fitar Caim, que jogava sua cartola e monóculo para longe.

– Eu não vou permitir que ele faça.

– E eu não vou permitir que ultrapasse os limites delimitados por essa ba-talha.

Caim usou seu sabre para atacar Lillith, que esquivou-se velozmente. Ataque atrás de ataque tentou acertar, mas não conseguia resultados significativos. Sua lâmina de lava aquecia o ar ao redor, mas não queimava-a. Apesar da agilidade de Caim, Liliith parecia estar sempre um passo a frente. Era poderosa demais.

– SE QUISER AJUDAR, - Caim gritou. - ACABE DE MATAR O JAVALI AÍ NO CHÃO!

– MAS ELE ESTÁ MORTO! - Qlon acabou de constatar.

– NÃO, ELE PRECISA SER DESINTEGRADO PARA MORRER!

Foi apenas Caim acabar a frase para Qlon sentir a cabeça do bicho mover-se para encará-lo, em cima de sua barriga. Lillith e caim já estavam combatendo no ar, em meio às flechas dos arqueiros. E o grandalhão parecia nada satisfeito...

Leon, que comemorara a queda do demônio gigantesco com cara de porco ao sentir um forte cheiro de bacon queimado, agora via ele erguer-se enquanto aca-bava de tirar a armadura sucateada. Sabia que Qlon estava envolvido assim que o brilho que emanou do lugar ofuscou sua visão. Mais do que depressa, correu para tentar ajudar, por mais insignificante que fosse sua presença no momento.

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Jhon afastara-se do combate por alguns instantes. Após acabar com mais al-guns demônios, sentiu algumas pontadas de dor em sua bacia, e achou que sua campanha acabara ali. Corria agora pelas ruelas para procurar um abrigo en-quanto vigiava o embate às suas costas. Os soldados tentavam montar barrica-das para impedir o avanço das criaturas do inferno, o que parecia ser em vão. Se os demônios ultrapassassem aquela área, com certeza a cidade seria sitiada. Decidiu então ser “a última resistência”, esperando que seu uso não fosse neces-sário, uma vez que mais tropas dirigiam-se ao local.

Ronan finalmente estava no lugar que queria: a mais alta torre do castelo, Ne-verends. Colocou o minério ao centro de sua pequeníssima sala e começou a en-toar um cântico antigo no idioma celestial. Precisava acabar o encantamento o mais rápido possível, afinal, era a única esperança da cidade contra Lillith.

Qlon chocou-se contra a parede de uma das casas, destruindo-a. Para garantir que o anjo não levantaria, o porco demoníaco ainda golpeou a área, acabando de derrubar a moradia. Por sorte, Qlon havia esquivado a tempo. Estava cheio de escoriações, mas saíra ileso do golpe.

– QLON!! - Ouviu a voz de Leon vindo ao seu encontro.

– Leon, afaste-se daqui! - Gritou de volta com uma voz enfraquecida.

O suíno não se importou muito com a conversa e deferiu outro golpe contra Qlon, que usando sua força segurou a mão do animal. Vindo de um pulo, Leon usou sua espada para aplicar um corte no pulso da fera, que grunhiu e retirou a mão de perto.

– Qlon, vamos lutar juntos contra ele. - Sugeriu.

– Não estou em posição de recusar ajuda.

Mais um golpe, ambos esquivaram atirando-se para lados diferentes.

– Tem algum plano? - Perguntou Qlon, enquanto levantava-se.

– Nenhum!

O monstro parecia reunir alguma espécie de fogo na sua boca. Qlon, sem pen-sar duas vezes, pulou até sua barriga e deu uma cotovelada com toda sua força, fazendo o porco arrotar uma grande labareda de fogo para os céus.

– Se não tem um plano, acho melhor pensar em um agora! Não quero nem pensar no que vai acontecer se uma dessas atingir a já devastada cida-de. - Disse Qlon, achando um pouco de graça do que acabara de fazer.

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Cap. 69 – A Batalha de Colossus

eves como plumas ao vento, Caim e Lillith voavam pelos céus de Co-lossus travando uma intensa batalha. O poder dela era visivelmente maior, mas a habilidade de Caim com seu sabre era algo fora de todos

os padrões. Com movimentos vorazes, deferia golpes mais rápidos que seus pró-prios olhos podiam acompanhar, deixando apenas um rastro vermelho por onde sua lâmina passava. A bela mulher usava apenas as palmas das mãos para de-fender e atacar, e sequer mudava seu semblante durante o entrave.

L

– Caim, não me faça perder tempo. - Reclamou.

– Mas é justamente por isso que estamos aqui.

Estalando a língua nos dentes, Lillith deu-o um soco no peito, fazendo-o planar muitos metros para trás. Com seus poderes, invocou um chicote negro e espi -nhoso, parecendo um ramo de rosa. Enrolado em sua mão, aparentava ter pouco mais que dez metros de extensão da pegada à ponta.

– Sinceramente, estou muito cansada para usar meus poderes com al-guém tão insignificante quanto você. Mas lutar em métodos convencio-nais vai levar tempo demais... Vamos resolver logo nossas pendências.

Leon pulou para o lado, fazendo com que o soco do demônio gigante tocasse o solo, gerando um pequeno tremor nas proximidades.

– Qlon, eu tive uma ideia.

Qlon estava ocupado dando golpes com sua lâmina sagrada nos joelhos do suíno colossal aos pulos. A medida que a espada santa adentrava a carne do de-mônio, ele urrava de dor e um forte cheiro de carne malpassada se espalhava pelo ar. Não demorou muito para até mesmo seus ossos ficarem expostos. Ao término de mais um golpe, Qlon pousou no chão suavemente. Nem precisava usar suas asas até o dado instante.

– Que plano? - Perguntou enquanto esquivava-se de uma tentativa lenta de chute, mas que destruiu paredes por onde passou.

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– Eu posso usar magia elemental brevemente com minha espada mágica. Se eu concentrar-me o suficiente, acho que posso congelá-lo completa-mente por alguns segundos.

– E eu teria tempo para aplicar um golpe derradeiro. Brilhante ideia. - Con-cluiu o jovem anjo. - De quanto tempo precisa para lançar a magia?

– Não é questão apenas de tempo. Preciso que minha espada entre em contato com ele e só então conseguirei proferir o encantamento de forma correta.

Qlon parou de prestar atenção no combate por dois segundos – tempo o sufici-ente para receber um golpe no ar após esquivar-se de uma engraçada rasteira do porco satânico. Voou vários metros para além e bateu em uma parte da gran-de muralha que ainda resistia de pé. Mesmo com sua extraordinária resistência, sentiu alguns de seus ossos quase virarem pó com o impacto. O porco voltou-se para seu outro e insignificante oponente, mas antes que pudesse realizar qual-quer movimento a espada de Qlon atingiu seu tríceps como uma agulha, arran-cando um grunhido. Segurando firmemente o cabo de sua arma enquanto o ini-migo debatia-se, tentando livrar-se da dor de ter um braço queimado por dentro.

– E como pretende... Fazer isso? - Encontrava dificuldades em manter a posição com as fortes balançadas.

– Quero que me atire nas costas dele e mantenha-o ocupado para que não me tire do lugar.

O jovem anjo ruivo usou de sua força e abriu um rasgo do ponto de perfuração ao cotovelo do colossal animal.

– Cheira tão bem quanto bacon frito. - Comentou Leon assim que Qlon pousou ao seu lado.

– Espero que esse plano dê certo na primeira tentativa. Meus golpes só es-tão deixando o demônio ainda mais enfurecido. Ele pode não ser muito ágil, mas é gigantesco e ainda pode destruir a cidade toda.

– Não se preocupe. Se não der certo da primeira vez, muito possivelmente não teremos outra chance.

Caim levou mais uma chicotada, dessa vez no rosto. Abriu um corte profundo no seu supercílio. Apesar de sua agilidade e mestria como combatente, nada adiantava contra Lillith.

– Tem sorte de ser um maldito, sabia? - Ponderou a selvagem mulher se-denta por sangue inimigo. - Um mortal qualquer não aguentaria o veneno de minha arma por tanto tempo, nem em tamanha dosagem. Mas se con-

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tinuar levando golpes sucessivos, logo a parte de veneno em seu sangue será maior do que seu coração poderá suportar.

– Já conheço bem sua arma, vadia.

– Quem diria, Caim! Um lorde como você perdendo a compostura e usan-do palavras de baixo calão! Isso tudo é por lutar com alguém mais forte que você sabendo que vai perder? - Provocou.

– É mais que isso. - Cuspiu o sangue que escorria por seu rosto e mistura-va-se à sua saliva. - É por lutar com a desgraçada que me usou para destruir o inferno! É por mim, um imbecil, ter acreditado em uma vadia inescrupulosa que me jogou contra meus verdadeiros companheiros! Prometo que antes de meu último suspiro eu ainda vou arrancar seu san-gue! Meretriz!

Lillith apenas soltou um sorriso cínico ao ouvir tais palavras. Ela não se impor-tava com a verdade escancarada e, a essa altura, não se importava com mais nada que não fosse pisar nos vermes em seu caminho.

– Pronto? - Leon segurou sua espada com as duas mãos, preparado men-talmente para aquilo que vinha a seguir.

– Pronto! - Confirmou seu jovem colega, meneando com a cabeça.

Ambos correram para cima do furioso javali do submundo em linha, com Leon na liderança. Antes que o inimigo iniciasse um movimento de reação, Leon pulou alguns poucos metros do chão e Qlon, por trás dele, também pulou. O jovem anjo segurou nas mãos de seu parceiro e inverteu seu corpo no ar, ficando de cabeça para baixo. Com sua grande força, atirou Leon para o alto o suficiente para ultra-passar a altura do suíno em uns dez metros. Ao fazer isso, entretanto, ficou com-pletamente vulnerável ao golpe inimigo. Recebeu um soco que, por conta da área de impacto do punho fechado do brutamontes, atingiu todo seu corpo.

Foi arremessado com força no ar enquanto sentia uma ou duas costelas parti-rem-se junto com sua tíbia direita. Sua queda foi amortecida pelas frias pedras das ruas misturadas aos escombros. Mas ao menos tinha completado a tarefa: Leon pousou suavemente nas costas do demônio e cravou sua espada o mais fundo que conseguiu. Atando-se ao cabo enquanto o monstro debatia-se com a dor de ser congelado vivo, era apenas uma questão de tempo.

– Está concluído. - Suspirou Ronan.

Uma forte luz avermelhada brilhava da mais alta torre de Colossus, o suficiente para chamar a atenção dos moradores dos mais distantes vilarejos. A luz irradiou

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por alguns segundos e voltou a concentrar-se apenas no minério à sua frente.

– E agora, o primeiro ingrediente. - Fazendo um pouco de força, o antigo general dos anjos arrancou um pedaço da pedra reluzente.

O pequeno pedaço que ele pegara abriu um enorme sorriso de satisfação em seu rosto. Mas ainda precisava fazer mais uma coisa antes de partir.

Caim apanhava como um condenado nas mãos de Lillith, que não parecia fa-zer grande esforço para livrar-se dele. Os golpes do chicote espalhavam cada vez mais o veneno mortal em seu corpo já fragilizado, mas depois que a luz sur -giu a dor nem mais importava. Assim como seu parceiro, abriu um sorriso. Lillith demorou a perceber e parar os golpes, porém assim que notou sua face deixou escapar um exalar de preocupação.

– Acabou, Lillith. Vencemos a batalha. - Caim disse com um sorriso no ros-to ensanguentado.

No chão, os demais demônios desintegravam-se aos poucos, formando punha-dos de cinzas onde caíam. Queimavam vivos por dentro. Só o rei do chiqueiro e sua mestra ainda restavam de pé.

– A batalha, não a guerra. - Ela respondeu calmamente.

– Lembra-se da minha promessa? - Caim mostrou um sorriso maior ainda, quase sádico.

O clima ficava mais gélido. Não pela habilidade mágica de Leon, que lutava distante dali, mas pela verdadeira força de Caim, que despertava aos poucos.

– Você aguentou apanhar calado apenas para ganhar tempo e evitar que eu usasse mais da minha força a ponto de matá-lo. De uma fraqueza es-tratégica absurda, mas devo dar o braço a torcer: meu egocentrismo e fraqueza psicológica caíram direitinho.

– O que posso dizer, querida? - A voz do caído ganhou um tom de ironia. - Não se esquece mais de um milênio de casamento do dia para a noite.

Qlon esforçava-se para ficar de pé. O golpe final era o seu. Sua perna doía tanto que tinha uma forte dor de cabeça e uma furiosa vertigem. Sangue escorria por feridas abertas. Um de seus olhos estava um pouco inchado, abria só pela metade. Ainda assim, persistia. Usando sua espada de apoio, ficou de pé. Er-gueu a cabeça o suficiente para ver Leon ser jogado para fora do enorme javali aos solavancos, deixando sua espada na espinha do animal. Uma forte luz rubra surgira e iluminara o campo de batalha, deixando seu inimigo pouco mais fraco. Veias saltavam da pele e seus músculos enrijeciam aos reflexos. Mas ainda as-

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sim, vivia. Ao ver o animal demônio ofegar com a respiração enevoada, percebeu que era sua hora.

“Se era suficiente eu não sabia, mas tinha em mente que não podia viver de sorte. Fosse contra Canine ou contra o dragão negro que estava prestes a en-frentar, precisava mais do que nunca de minhas habilidades para sobreviver. Aquele era apenas mais um obstáculo a ser superado. Com a espada em mãos, usei de toda a minha agilidade para esquivar dos golpes que o monstruoso ser ainda conseguia deferir. Com meu impulso, pulei alto o suficiente para encará-lo de frente e decidir meu destino.”

Os soldados olharam para o monte de pó a que seus inimigos foram reduzidos. Exaustos, feridos, alguns caíram ao chão com contentamento. Mais uma vez pro-tegeram seu lar. Muitos haviam morrido, dentre eles familiares e amigos de longa data. Mas não importava enquanto a esplendorosa cidade da liberdade estivesse de pé para ver o alvorecer do dia seguinte. Até voltaram a sentir o frio que os se-res infernais haviam roubado nas últimas horas.

– Ei, o que é aquilo ao longe? - Um dos soldados exclamara apontando seu dedo ao último e grotesco ser que ainda permanecia de pé.

O major abriu caminho entre seus homens e, forçando sua visão élfica, conse-guiu enxergar o soldado mais preguiçoso e irresponsável montado nas costas do colossal... Suíno?

– Quem é o bravo soldado, major Jinx? - O soldado curioso perguntou en-quanto outros reuniam-se ao redor de seu superior para saber o que acontecia.

– É o Leon.

Um burburinho incômodo tomou conta deles. Alguns até soltaram uma sonora risada monossilábica de incredulidade.

– Não me sinto muito impelido a isso, mas devemos ajudá-lo. - Concluiu o jovem elfo.

Lillith também passara a sentir o frio. Caim estava sério, tão concentrado que seus olhos nem pareciam sair de cima do corpo escultural da mulher que um dia ele amou.

– Então é isso? Um último golpe? Assim que vamos acabar?

– Eu não poderia decidir jeito mais honroso para finalmente acabar com isso.

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Caim, um dos inigualáveis treze presidentes do inferno, estendeu seu sabre horizontalmente, apontando para sua adversária. Lillith deu de ombros – não era de participar de tais cerimônias e tampouco estava com vontade de continuar lu-tando, sabia que a batalha já estava perdida por causa de seu ego inflado. O Corvo, então, começou seu sombrio cântico na língua natal dos anjos.

“A neve cai e cobreo corpo que na terra some.O frio carrega para longe

o guerreiro poderoso,o homem honesto,o marido dedicado.

Para a face indiferente do invernorelatos de vida não enfeitam a lápide.

Se o único destino é a mortede que vale a égide?

Por maios belo que seja o terno,o marido amoroso,o homem modesto

e o guerreiro devotadosão enterrados por um monge.

As lágrimas caem e regamo corpo que a terra come.”

Qlon reuniu suas forças. Um último golpe. Magicamente, transformou sua es-pada em uma montante mais uma vez. Antes que a mão pesada de seu oponen-te alcançar seu já fraturado corpo, Sanctus rasgou o ar. Não brilhou intensamen-te, mas aqueceu o ar ao redor. O fogo sagrado e azulado que da lâmina emana-va rodeou o corpo do pequeno anjo em uma espiral. Do chão, soldados que cor-reram para ajudar apenas olhavam enquanto o demônio gigante era consumido em chamas santificadas. Era como se uma rajada de vento emanasse de Qlon e sua arma, transformando ao seu inimigo em uma gigante bola de fogo.

E então a chama apagou. Do corpo do animal demoníaco, nada restara. Nem mesmo cinzas. Qlon despencou. Fatigado ao extremo, mal conseguia manter os olhos abertos. Sentira sua energia mágica ser consumida junto ao golpe. Ao me-

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nos tinha a certeza que o perigo, por ali, acabara. Esperava que Leon estivesse bem.

– Largue-o. - A voz de Ronan fez-se ouvir.

Lillith estava sentada em um dos bancos das incontáveis praças de Colossus. Caim jazia em seu colo. Seus olhos bem fechados, com um sorriso terno em lá-bios cheios de sangue seco. Seu sabre mágico, agora com o magma apagado, estava quebrado no chão, próximo a ele. Seu peito não movia-se mais, não res-pirava. A camisa branca de seu fraque estava completamente tingida de rubro. Debruçada sobre ele, acariciava seu pálido rosto.

– Por quê? Ele já está morto. Tem medo que eu faça mais alguma coisa contra ele?

Ronan permaneceu em silêncio alguns segundos. Olhou para o corpo de um de seus amigos e relembrou Pyros, que em outra ocasião sacrificara-se por ele. Não sentia tristeza, apenas um profundo remorso.

– Pretende continuar com a batalha? - Por fim perguntou.

– Não. - Respondeu Lillith. - Penso que nenhum de nós possui força sufici-ente para isso agora, não é mesmo?

Ronan sacou sua lâmina. Olhou profundamente para o rosto de Lillith. Um san-gue escuro escorria da maçã de seu rosto, fazendo parecer que chorava sangue. Ela voltou seus olhos para fitar o antigo general dos anjos. Sorriu com o canto do rosto enquanto voltava sua atenção para o ex-marido.

– Não vai deixar escapar a oportunidade, não é?

Ronan apertou firmemente o cabo com seu pulso forte. Estava preparado para o ataque.

– Ronan, seu filho é magnífico. Farei dele meu esposo.

Sem uma palavra a mais o bravo guerreiro cortou o pescoço da mulher. Ao in-vés de litros de sangue jorrarem da ferida aberta, o corpo dela desfez-se em uma matéria escura e volátil, como uma névoa.

– Você ganhou hoje, Ronan, mas esse embate ainda está muito longe do fim. - A voz de Lillith ainda foi ouvida da névoa antes que a mesma esva-necesse completamente.

Ronan embainhou a espada. Tomou Caim nos braços e desapareceu entre a fina neve que caía sobre Colossus. Completara sua missão, mas chegara tarde demais para salvar um de seus aliados.

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“Abri os olhos. Acima de mim o rosto de inúmeros soldados que eu desconhe-cia. Apenas um deles, logo ao meu lado direito, era familiar. Leon olhava para mim com um sorriso gigantesco no rosto. Os outros aguardaram com um olhar de expectativa. Ao verem que eu conseguia reclinar na cama, soltaram gritos de comemoração enquanto abraçavam-se.”

– Leon, o que é isso? - Perguntou Qlon ainda meio desnorteado.

– Que susto garoto, achamos que não fosse sobreviver. Você caiu de uma altura enorme depois que matou o porcão. Quebrou sabe-se lá quantos ossos, mas parece estar inteiro agora.

– Quanto tempo...

– Dois dias. - Respondeu um dos soldados, animado.

– Menos que da última vez. - Concluiu, abrindo um sorriso. - E minha espa-da?

– Sua espada ficou na rua, ninguém conseguiu erguê-la. Graças a isso você ganhou o apelido de “jovem Arthur” por aqui. - Leon explicava en-quanto deitava-se em sua maca.

Estavam no hospital militar, com base dentro do castelo. As macas estavam to-das ocupadas e as enfermeiras, cansadas, revezavam seus turnos cuidando dos feridos. Sem muitas janelas para observar como estava o tempo do lado de fora.

– Arthur? Quem é Arthur? - Perguntou Qlon confuso.

– Apenas uma lenda antiga com base em um pequeno arquipélago ao sul. - Os soldados abriram espaço para um elfo de longos e sedosos cabelos negros soltos, com olhos tão esverdeados quanto folhas de uma árvore durante o verão. - A muitos e muitos séculos, uma espada mágica fora cravada nas rochas perenes de uma enorme montanha numa terra de povos bárbaros. Seu nome era Excallibur. - De estalo, lembrou-se do ocorrido em Nautilus. - As lendas rezavam que aquele que fosse nobre o suficiente para retirá-la das rochas unificaria os povos das ilhas e tornar-se-ia o primeiro rei. O homem capaz de fazer isso, de acordo com a his-tória, fora Arthur.

Os outros soldados calaram-se ao olhar para a figura de seu major. Era baixo, cerca de um metro e sessenta. Um tanto quanto esguio para um soldado. Carre-gava em suas costas uma estranha arma negra com um escopo preso a um lon-go cano, possivelmente uma dos muitos modelos de armas de fogo. Em sua cin-tura uma sofisticada cimitarra. Trajava apenas a couraça e o saiote de uma arma-dura com longas calças cobrindo suas pernas e botas de couro para revestir os pés. Por baixo dela, uma longa cota de malha que terminava em suas mãos, co-bertas por luvas de couro.

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– Você deve ser Qlon, não é? - O soldado perguntou ao aproximar-se do leito do pequeno anjo ruivo. - Muito prazer em conhecê-lo. Meu nome é Hector, mas pode chamar-me de Jinx.

– Major! Que surpresa vê-lo por aqui! - Exclamou Leon.

– Surpresa é ver que seus modos não mudaram, Leon. Ficar à beira da morte e precisar de gesso para mais da metade do corpo não foi o sufici-ente para torná-lo um homem grato?

Só então Qlon reparou melhor como Leon estava. Sobre sua maca, mantinha as duas pernas engessadas sobre macios travesseiros.

– Grato pelo quê? Enquanto vocês cuidavam dos peixes pequenos eu es-tava cavalgando em um enorme pedaço de bacon. Vocês só chegaram a tempo de pegar-me dos escombros daquela casa. Quem salvou o dia foi esse garoto do meu lado aqui, não queira receber créditos por ele.

O major Jinx pegou a espada de Leon, presa na parte de trás do escudo, do leito de sua cama e afastou-se enquanto ouvia o dono clamar por sua lâmina:

– Ei! Onde pensa que vai com isso?

– Embora. Esse é meu pagamento por resgatá-lo de um monte de escom-bros ainda com vida e por tê-la tomado de volta antes que fosse saquea-da. Quanto você acha que vale essa arma mágica?

Leon fez força para levantar-se mas mal conseguia mover sua cintura sem dei-xar escapar gemidos de dor.

– Devolva isso!

– Eu não. - Os demais soldados riam, entrando na brincadeira do major.

– Tudo bem, tudo bem! Obrigado pela ajuda! - Admitiu o petulante Leon.

O major, mostrando seus dentes reluzentemente brancos enquanto sorria, de-volveu a espada ao seu dono, que abraçou-a firmemente.

– É um prazer também, Jinx. - Finalmente respondeu Qlon enquanto ria da peça pregada pelo espontâneo soldado. - O que deseja de mim?

Aos poucos o rosto de Hector perdeu o sorriso, mas sem perder o tom alegre. O garoto era realmente esperto como disseram que seria. Sabia que ele estava ali por muito mais do que somente uma visita repentina.

– O rei convocou-o a uma audiência assim que estiver em condições. De acordo com ele é para agradecer pelos seus préstimos a essa cidade e para ajudá-lo em sua jornada. - Concluiu o elfo, fazendo uma curta reve-rência e deixando os aposentos.

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Cap. 70 – Planos de Viagem

stava frio. Os ventos uivavam por dentre as estreitas e altas janelas nas paredes de pedra do gigantesco castelo de Colossus. Qlon dirigia-se à sala do trono para conversar com o rei, que havia solicitado uma

audiência. Ele parecia um pouco abatido quando avistou-o, mas nada que aba-lasse sua imponência.

E

– Qlon, serei breve. - Disse sem muitas delongas. - O estrago que os de-mônios causaram ao entrar nessa cidade foram alarmantes. Temos mui-tas vítimas e muitos reparos a fazer.

Qlon ficou cabisbaixo com a notícia, mas esperava nada de diferente. Como um príncipe, sabia que seu futuro estava relacionado a tais acontecimentos. Por mais poderoso que fosse quanto atingisse a maturidade e assumisse o trono, sa-bia que nem todas as vidas poderiam ser salvas.

– Mas, - Prosseguiu o grande líder. - por ter sido corajoso em ajudar a en-frentar nosso inimigo, mesmo sem um treinamento completo, e por ter derrotado um poderoso demônio, nós da cidade de Colossus somos eter-namente gratos, e estamos em seu débito.

Até mesmo o rei permitiu abrir um sorriso. Apesar do lisonjeio, Qlon ainda não sentia-se feliz por mais que apenas o fato de estar vivo já significasse um grande milagre.

– Fico grato por seus cumprimentos, mas esse não é o motivo de ter cla-mado por minha presença aqui, não é, majestade? - Qlon perguntou um pouco impaciente.

– Não, está certo. Meu motivo é outro. - O sorriso por detrás da espessa barba desapareceu. - Qlon, soube através de informantes que seu desti-no está meses de distância de você em um pequeno arquipélago através dos mares, estou certo?

– Sim, está. - Respondeu secamente.

– Pois bem, creio ter encontrado um método de transporte seguro o sufici-ente para viajar.

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– Sua majestade, creio que não será preciso. Eu posso chegar ao meu destino de muitas formas. Posso voar, teleportar-me...

– Mas creio que ambos gastarão energia em demasia, além de não serem completamente seguros, certo? E precisa de mais do que sua vontade para derrotar um dragão como aquele. Vai precisar de alguns compa-nheiros para uma jornada desse nível. De mantimentos também.

Qlon odiava admitir, mas ele estava certo. Por mais que quisesse deixar tudo de sua maneira e envolver ninguém mais nesta missão suicida, possuía energia e recursos limitados. Já tinha concluído isso em sua conversa com Louis, mas ainda não aceitava o fato de passar meses e mais meses no oceano.

– Onde quer chegar? - Perguntou o jovem anjo, reunindo um pouco de cu-riosidade.

– Qlon, vou fornecer um transporte, uma rota segura e alguns companhei-ros qualificados o suficiente para ajudá-lo em sua missão. É o mínimo que posso fazer para o bravo combatente que acabou com um dos maio-res demônios que já entrou nessa cidade.

– Um dos maiores? Quer dizer que já tiveram monstros maiores por aqui?

– Não em meu governo, mas sim. De qualquer forma, você e Jhon podem ficar tranquilos quanto sua jornada.

É mesmo. Jhon. Onde ele estaria naquele momento?

– Mais uma rodada, Jhon? - Perguntava o taverneiro enquanto o velho Jhon parecia contar os pelos brancos de sua barba um tanto quanto crescida com o passar do tempo.

– Não... Já estou no meu limite.

– Aliás, quando vai pagar sua conta? - Perguntou o dono do lugar, de-monstrando certo tom de preocupação.

– Quando eu pegar o dinheiro do meu contrato, que, aliás, acabou.

O atendente sorriu e colocou mais uma caneca em cima da mesa de um de seus melhores clientes. “Então essa é por conta da casa.”, disse e, então, voltou para detrás do balcão para servir seus ávidos consumidores. Em sua maioria sol-dados, festejando o sucesso da batalha de dias atrás.

Mas Jhon não estava ali para festejar. Na verdade, não conseguia apagar aquelas cenas perturbadoras de sua cabeça, independente da quantidade de go-les que desse em sua forte cerveja maltada, que descia queimando sua garganta dada a quantidade absurda de álcool. Quando correra para voltar e ajudar Qlon,

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ainda em torpor, viu demônios devorarem entranhas de soldados bem diante de seu olho. Não só de soldados. Famílias que não fugiam a tempo eram encurrala-das e estraçalhadas por presas e mandíbulas disformes, independente de suas raças. Era nauseante, nojento, asqueroso. Não conseguia encontrar sinônimos suficientes em seu limitado vocabulário para descrever aquilo que presenciara. Afinal, não é todo dia que se vê alguém sugar o intestino de um gigante como macarrão. Ficou na pequena taverna bebericando enquanto as horas passavam.

– Está mesmo falando sério, Jinx?

– Temo estar, Leon.

Os soldados conversavam afastados em um canto da enfermaria enquanto os seus companheiros ainda sadios retornavam aos seus postos. Leon reclinava-se na parede com seu ombro enquanto escutava com atenção aquilo que era dito por seu superior de postura ereta.

– Foram ordens diretas do rei. - Concluía o major. - Acredito que não pode-rá recusá-las ou transferir essa competência tão facilmente quanto costu-ma fazer para livrar-se do trabalho pesado.

– Bem, eu queria ver o mundo, com certeza, mas não acompanhando o garoto. Tenho família por aqui e coisas mais importantes a fazer.

– Ué, eu também. - Retrucou Hector. - E nem por isso estou triste. Além do mais, acredito que um velho e experiente barqueiro jamais seria um em-pecilho para impedir sua partida, estou certo? É por uma causa maior. Você também viu o garoto lutar, não viu?

– Sim, vi. Apesar de não gostar de admitir, aquilo foi inacreditável. Ele con-quistou meu respeito.

– Ele conquistou o respeito de todos os soldados do exército, Leon.

Leon contorceu o rosto em uma expressão de dúvida, deixando em destaque uma das últimas espinhas que sumiam gradativamente de seu rosto juvenil mar-cado. Ele estava certo, por menos que quisesse admitir.

– Já que não posso fugir disso, creio que o mínimo que devemos fazer é saber ao certo o que faremos, não é? Além de nós, quem mais vai na viagem?

– Não sei ao certo. O rei disse que posso recrutar mais três soldados para ir comigo e, além de você, pretendo levar minha filha.

Leon abriu um largo sorriso, mas Hector percebeu e franziu o cenho, acabando com a felicidade do rapaz.

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– É uma viagem sem fins turísticos. E eu estarei junto. Nem pense, por um segundo que seja, que vou deixar ficar íntimo dela. Ainda mais um solda-do como você.

– Tudo bem, tudo bem. Já entendi. - Resmungou.

– Agora vá descansar. Partiremos amanhã mesmo.

– O quê?! - Esbravejou o jovem soldado de cabelos alvos. - Eu ainda estou gravemente ferido! E com dores pelo corpo todo.

– Nada que uns meses em alto-mar não resolvam. E seremos acompanha-dos por cinco carruagens de mantimentos para Nautilus, você pode ir em uma delas se não aguentar cavalgar como um homem. - Jinx deu as cos-tas e saiu da sala, deixando um preguiçoso soldado bastante incomoda-do mancar sozinho até seu leito.

A lua sumira no céu para dar lugar a grossas e carregadas nuvens. Através da janela do quarto, Qlon observava ao longe a cidade ser erguida novamente, junto com parte de seu muro. A construção não parava, afinal, não havia previsibilida-de de novos ataques e toda cautela nunca é demais. Jhon já estava dormindo de costas quando Qlon entrou no quarto da pousada. Sua pesada respiração fedia cerveja barata. Ainda um pouco dolorido, deitou em sua cama e tentou dormir em meio aos roncos de seu companheiro de quarto.

O ladino estava inquieto. Enquanto tomavam o saudável café da manhã na pousada, servido por frutas frescas, faisão assado, pães quentes, sucos e leite, o velho ladino não encarava seu parceiro de viagem. Fitava o teto, a comida e o chão assim que percebia os olhos platinados de Qlon encarando-o. O silêncio entre eles estava, estranhamente, tenso.

– É sobre o término do acordo? - Questionou Qlon sem muitos rodeios.

– Também. - Respondeu friamente o mercenário.

Qlon deu uma grande mordida em sua pera fazendo o suco da fruta escorrer por seu lábio. Limpou o rosto com as mangas de sua roupa.

– Primeiramente eu gostaria de me desculpar por ontem. - Começou timi-damente Jhon enquanto o anjo ruivo ouvia atentamente. - Eu estava completamente bêbado e ajudei em nada. No final, fui um empecilho. Ali-ás, as desculpas deveriam começar desde meu ataque sentimental um dia antes. Sinto muito.

– Não se importe com isso. No final, deu tudo certo.

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O jovem anjo ruivo deu mais uma mordida na suculenta fruta enquanto espera-va que algo mais saísse da boca de seu colega.

– E o que pretende fazer agora?

– Eu? Era o mesmo que pretendia perguntar a você. - Respondeu Qlon. - Agora que nosso trato acabou e estou pronto para uma nova jornada, quero saber se vai continuar ao meu lado.

– Não sei, garoto. - Jhon deu de ombros e reclinou-se em sua rígida cadei-ra. - Mesmo que queira dobrar ou triplicar sua oferta, é risco demais para um velho como eu.

– Lembro de um velho que dizia não ter medo da morte. - Replicou sorrin-do. - Ainda assim, entendo seu ponto, está certo em pensar dessa forma. É uma viagem provavelmente suicida a quem quer que vá comigo. Mas aquilo que for decidir precisa ser agora. A comitiva para Nautilus parte ao meio-dia.

Jhon estava sem fome. Tomava seu copo de suco com vagarosidade apenas para ver o tempo passar enquanto escolhia o que faria de sua vida.

– Que rota você vai tomar?

– Ainda não fui informado sobre a mesma. O capitão passará os comandos quando todos estivermos a bordo. Ah, é mesmo! - Relembrou de súbito. - Quando te conheci você queria sair da ilha! Qual exatamente era seu rumo?

– Qualquer lugar fora daqui e das lembranças que tenho desse lugar.

– Finalmente vai falar de seu passado? - Pergunto demonstrando entusias-mo a pequena criança ruiva.

– Não, ainda não é a hora para isso. - Jhon abriu um sorriso curto por de-trás de sua barba recém-aparada. - No mais, acho que posso acompa-nhá-lo por mais algumas semanas. E não vou cobrar extras, já que não preciso fingir mais nada.

– Parando para pensar nisso, pouco precisou fingir até agora. E os solda-dos já sabem da minha condição, é uma questão de tempo até todos os cidadãos descobrirem também.

– Por isso a partida em cima da hora?

– Sim, mas principalmente pela proximidade do inverno. Fiquei sabendo que partes do mar do hemisfério norte nessa localização congelam em alguns ciclos do ano. Não será prudente, tampouco seguro, partir em uma viagem dessa magnitude em condições tão adversas.

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– Já entendi. - Cortou o assunto rapidamente. A última coisa que queria du-rante sua ressaca era ouvir explicações complicadas.

– Então conto com você no porto da cidade daqui a umas horas. - Qlon fi-nalizou o assunto, levantando-se.

– Aonde vai?

– Tenho assuntos inacabados nessa cidade. Talvez possa ajudar dando al-gumas informações...

O brilho vinha de lá. Tinha certeza que vira aquela luz surgir da torre mais alta do reino e seu instinto dizia que seu pai estava por trás daquilo. Não tinha muito tempo para investigar, então precisava agir rápido. Após pegar sua espada do meio da rua, sendo aplaudido por alguns soldados que patrulhavam as vias, diri-giu-se ao cume da cidade para sanar sua curiosidade.

“Neverends podia ser acessada apenas pelo castelo. Com o recente ataque dos demônios, os soldados mantinham as armas em riste e o castelo estava tão vigiado que seria impossível entrar por lá. O acesso era restrito e somente o rei poderia dar a permissão, mas também queria evitar perguntas. Então lembrei que a catedral tinha um acesso ao castelo. Se eu conseguisse ser furtivo o sufici-ente, teria uma chance de vasculhar o local.

Para uma cidade crescer verticalmente, precisa de uma boa base. Tal base pode ser construída ou aproveitada do relevo natural. Colossus possuía os dois modelos, mas o sucesso de sua verticalização devia-se à montanha que era o coração da ilha. Como qualquer cidade na encosta de montanha, existem inúme-ras escavações para dar acesso a passagens e novas moradias. Para dar uma visão melhorada do castelo da cidade, ele ficava exatamente no cume da monta-nha. O topo havia sido cortado para prover uma base segura à construção do castelo. Nas encostas da montanha, então, seriam criadas as demais constru-ções. Mas, a encosta leste era demasiada rochosa e com um grande aclive, o que dificultava, e muito, sua utilização. Apesar disso, alguns pontos específicos de tal encosta ainda podiam ser perfurados, e caminhos podiam ser construídos entre as rochas perenes. Isso tornou-se muito proveitoso para deslocar pessoas e ferramentas rapidamente pela enorme cidade. Apesar da pobreza mineral, tais passagens foram chamadas de “Minas de Colossus”, e estenderam-se por toda a montanha, não apenas pela face leste.

Na prática, os túneis pouco eram usados. Tirando movimentações estratégicas de cunho militar, o acesso civil era proibido em condições usuais. Cidadãos po-deriam, entretanto, buscar refúgio em situações de calamidade. Fato é que a igreja precisava de espaço para instalar-se e crescer, e em uma cidade como Colossus, de alavanque populacional rápido, era praticamente impossível um

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prédio expandir-se sem que já tenha sido cercado por outros prédios. Além disso, precisava de proximidade com o castelo para prestar seus principais serviços e, claro, como toda igreja, precisava de espaço extra para esconder artefatos im-portantes. Sendo assim, na face leste, separada por vinte metros de queda livre do castelo, fora construída a Igreja Universal de Colossus, que, apesar de procla-mar-se aberta a qualquer fé de qualquer cidadão, era mais voltada ao catolicis-mo, e que era ligada ao castelo por um túnel grande o suficiente para caber um gigante. Isso foi contado por Jhon antes que eu partisse, e era justamente o co-nhecimento necessário para minha busca.”

Qlon chegou até a catedral por um estreito caminho pavimentado entre quilô-metros de grandes rochedos. Se os fiéis tomavam os mesmos caminhos, com certeza chagavam cansados aos sermões. Avistou a bela entrada, adornada com tapeçarias contando a história da cidade e lamparinas presas às paredes, dando a iluminação necessária durante a noite. Mas algo ali estava errado. A porta prin-cipal estava escancarada, sendo reparada por alguns dos padres. O que quer que tivesse acontecido, seria impossível entrar pela catedral. Precisava encontrar uma outra entrada.

– Consegue ficar de pé, Leon? - Perguntava uma das belas enfermeiras do hospital militar.

– Consigo, mas ainda estou com dores pelo corpo, vai ser difícil andar. Tem algum remédio? Uma erva medicinal? Qualquer coisa anestésica?

– Como pode perceber, estamos com escassez de qualquer medicamento. Desculpe, mas acho que vai precisar suportar a dor sozinho.

– Ele é mestre nisso. - Disse seu avô, Balthasar, entrando no recinto.

– Vou deixar os dois a sós. - Disse a enfermeira, retirando-se.

Balthasar estava com um largo sorriso estampado no rosto. Sentou-se ao lado de seu neto no leito que estava.

– Avô, você não tem mais coisas a fazer como barqueiro?

– Não hoje. A cidade está em reconstrução, então nada de novos passa-geiros nesse período, você sabe. Só quis despedir-me propriamente an-tes que deixe a cidade. Como você não gosta de demonstrar afeto pelo seu velho quando está aprendendo comigo na barca, achei que esse se-ria o momento apropriado. E além do mais, vou ajudá-lo a chegar até o cais, já que estou aqui.

Leon deu um sorriso de lado e abraçou o pai de seu pai.

– Obrigado, vô. E desculpe meu recente comportamento, é só que...

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– Não se preocupe com bobagens, meu neto. - Disse Balthasar, retribuindo o sorriso com lágrimas em seus olhos. - Eu sei que detesta o fato de que, um dia, herdará minha função e ficará preso para sempre nessa cidade. Por isso, aproveite para ver o mundo agora, antes que seja tarde demais para vê-lo novamente.

Leon ficou em silêncio. Seu avô o compreendia melhor do que ele imaginava. Afinal, ele era o Barqueiro, aquele que, em uma amistosa conversa, consegue detectar até mesmo a mínima angústia de um coração. Estavam em paz antes da partida.

– Filha, está pronta? - Perguntava Jinx do andar de baixo de sua humilde casa.

– Só mais um instante, vou pegar minha besta. Quantas flechas acha que devo levar?

– Não se preocupe com munição barata, estamos levando mais do que o suficiente. Só não esqueça seus venenos.

A bela meio-elfa, filha de Hector, desceu então as escadas. Tinha longos cabe-los pretos, amarrados e presos em sua cabeça por dois palitos, deixando apenas uma franja disforme e lisa sobre seus olhos acastanhados. Usava trajes provoca-tivos: um corpete de couro bem apertado, um calção que chegava apenas até metade das coxas, botas de cano longo que chegavam aos joelhos e, nos bra-ços, luvas meio-dedo que chegavam até os cotovelos. Em sua cintura, um grosso cinto de couro estava repleto de adagas embainhadas, cada uma com um forma-to diferente, e pequenos frascos de veneno e antídotos, caso fossem necessá-rios.

– A comitiva já vai partir? - Perguntou a bela esposa de Jinx.

– Ainda não, querida, mas quero que minha filha ajude com algumas no castelo. Ainda tenho que chamar Gerrard para vir conosco.

A esposa de Jinx era uma elfa de linhagem pura, cuja família veio refugiada da Euroásia. A princípio, Colossus seria apenas uma breve parada no caminho do clã Fainar, que dirigia-se à Nova América para ajudar nas batalhas. Delliana, uma jovem elfa de 150 anos com longos cabelos dourados e olhos de um verde cítri -co, apaixonou-se por Hector quando o mesmo ainda era um dos soldados rasos do exército e, consequentemente, abandonou seu clã para casar-se com ele. Desta união surgira Sheena, que puxara o afinado rosto da mãe.

– Vamos logo, pai. Se quer mesmo minha ajuda para algo tão inútil quanto organizar o inventário, devemos ir o quanto antes.

– Tudo bem filha, já vou. - Respondeu dando um beijo curto nos lábios de

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sua esposa. - Não vai despedir-se de sua mãe?

Tarde demais para qualquer resposta. Ela já tinha ido na frente.

– Tudo bem querido, já estou acostumada. - Disse Delliana, conformada com a personalidade de sua filha. - Agora ande. E volte vivo, não quero um futuro filho sem o pai.

Hector ajoelhou-se e beijou a barriga de sua amada, já no sétimo mês de ges-tação. Era doloroso pensar que ele não veria o nascimento de seu novo filho, mas estava certo de que seus amigos do exército não deixariam as necessida-des de sua mulher passarem em vão.

– Agora estou indo. Cuide-se, querida.

– Cuide-se, meu amor. - Acenou e despediu-se enquanto seu marido batia a porta.

O tempo estava acabando e logo a comitiva iria partir. Claro que jamais parti-riam sem o passageiro principal, mas deixá-los esperando apenas traria pergun-tas, e queria evitá-las a todo custo. Já havia verificado boa parte dos paredões da íngreme encosta leste procurando por passagens, mas elas pareciam estar muito bem escondidas. Se quisesse mesmo ver a torre, teria de voar até ela.

“Apenas para ter certeza, olhei nos arredores para ver se estava sendo vigia-do. Com ninguém a vista e com a ajuda da fina neblina para encobrir meus movi-mentos, abri minhas seis grandes asas e voei como uma flecha até o alto da tor-re, usando de toda velocidade que dispunha. Após uma subida que parecia nun-ca ter fim, avistei seu topo. A janela que dava passagem ao seu interior era gran-de o suficiente para que fosse jogado um touro de lá de cima, com um extenso peitoril de madeira que estendia-se para além da torre, dando base suficiente para que um homem ficasse de pé naquilo que mais parecia um trampolim com hastes de aço que o prendiam à construção principal. Seu interior era apenas um pequeno espaço circular, suficiente para três ou quatro pessoas, e uma porta. Abrindo a porta, avistava-se uma longa escadaria em espiral, de degraus muito altos, que estendia-se nas paredes de Neverends com um enorme vão central completamente obscuro ao seu centro e sem qualquer corrimão para a seguran-ça dos bem-aventurados que quisessem apreciar a vista. Ela não tinha janelas que iluminassem seu interior, apenas tímidos archotes que acompanhavam o único acesso ao seu ápice, distribuídos de forma desigual e completamente apa-gados na ocasião. Quando as rajadas de vento sopravam naquela altitude, sentia como se a torre balançasse e estivesse prestes a cair. Se a vista era realmente bela e dava visão a toda encosta da ilha era difícil de saber com todas aquelas nuvens, mas não era isso que eu buscava. Estava ali por pistas do clarão aver-melhado que acontecera dias atrás, e não foi difícil de encontrá-las, afinal, esta-vam por todos os lugares...”

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Cap. 71 – O Coração de Colossus

ua busca fora terrivelmente fácil. Analisando melhor o chão frio de pe-dra daquela imensa torre, conseguiu achar um estranho pó avermelha-do que emanava um brilho incandescente. Sem titubear, colocou um

pouco em sua mão para analisar melhor. Era estranhamente pesado para ser considerado um pó comum.

S“Sem pensar duas vezes, verifiquei minha bolsa procurando algum frasco ou

recipiente que pudesse conter o farelo para uma análise póstuma. Pelo tamanho variável dos grãos, que variavam de grãos de sal refinado a grãos de arroz, era óbvio que eles eram apenas pedaços de algo muito maior. Mas do quê? E de onde tinha vindo? Foi então que lembrei da cúpula avermelhada que parecia ter envolto a cidade durante a invasão muito antes do brilho repentino ter aniquilado os invasores. A cúpula e o brilho teriam a mesma origem? Em minha cabeça co-mecei a fazer as suposições necessárias para continuar a busca: supondo que sim, a cúpula e o brilho tivessem ligação, e considerando que nenhum dos solda-dos sequer disse ter achado estranho o aparecimento de tal cúpula mas com cer-teza notaram a iluminação repentina, então, muito possivelmente, a fonte da es-tranha luz avermelhada sempre esteve na cidade, só que nunca antes tinha emi-tido luz tão forte. Claro que isso apenas em teoria, não havia algo que compro-vasse que essas afirmações fossem verdadeiras.

Mas a teoria estranhamente se encaixava e, eventualmente, explicava por que as portas da catedral estavam escancaradas. Se tal luz protegia a cidade contra a invasão de demônios, provavelmente vinha de um artigo muito importante. E um artigo com tamanha importância jamais seria algo deixado em qualquer lugar da cidade. Tudo apontava a só um destino: querendo ou não gastar mais tempo com minha curiosidade, eu precisaria investigar as Minas de Colossus.”

– Caim está mesmo...?

– Sim, está. - Respondeu Ronan de forma curta e direta.

Os outros três não pareceram surpresos ao receber a notícia. Já tinham ciên-cia do poder de Lillith. Caim fora um pouco impulsivo ao entrar em combate fran-

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co contra ela – ou contra sua mera sombra.

– Os poderes dela estendem-se muito rápido. - Disse aquele que parecia ser o mais novo dos quatro, com cabelos loiros longos e ondulados. - Não há dúvidas de que ela está sugando a força de sustentação. Se ela continuar alimentando-se nesse ritmo, nossa dimensão vai colapsar.

– Nessas horas sinto uma falta tremenda de Lúcifer. - Um ser careca e com um nariz que mais parecia o bico de uma ave pronunciou. - Gabriel, onde está seu irmão e por que ele permite que Lillith esteja fazendo isso tudo?

– Já disse mais de um milhão de vezes que não sei. - Tomou novamente a palavra o ser loiro, bem afeiçoado e de olhos azuis metálicos. - Mas não duvido que ele esteja sendo mantido cativo por aquela meretriz.

– O desaparecimento de Lúcifer e a morte de Caim são os menores de nossos problemas agora. - Intrometeu-se Ronan. - Temo que Lillith esteja ciente do que estamos fazendo. Nosso limitado grupo de setenta e qua-tro membros corre grave perigo.

– Setenta e três, Ronan. - Corrigiu-o Gabriel. - Com a morte de Caim nosso número foi reduzido.

Estavam todos sentados ao redor de uma mesa do que parecia ser a taverna mais erma da mais remota cidade que pudesse existir, em meio a uma densa flo-resta tropical, repleta de insetos e matéria orgânica em decomposição no solo.

– E seu filho, Ronan? Ele ainda está vindo para cá? - O mesmo careca perguntou com sua voz rouca e catarrenta.

– Sim, Baal. É de seu ímpeto. Puxou a mim, afinal. Se coloca algo na ca-beça, dificilmente vai desistir.

– Então vigie-o, Ronan. - Pediu Gabriel. - Ele é a peça fundamental de nos-sos planos. Se uma tragédia vir a acontecer, estará tudo acabado para a resistência.

– E você, Shax? Vai ficar quieto, como sempre? - Indagou Ronan dirigindo-se ao ser de manto sobre o rosto que sequer parecia mover um músculo.

Silêncio.

– Deixe-o, Ronan. Ele vai dizer nada, de qualquer jeito. - Disse Baal.

– Vai precisar dos préstimos de mais algum de nós agora que Caim se foi? - Perguntou Gabriel tomando um gole de uma bebida fermentada de ba-nanas e com um forte cheiro.

– Dessa vez não mande um presidente, Gabriel. - Intrometeu-se o estranho careca de olheiras profundas e olhos negros como a noite. - Não pode-

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mos dar-nos o luxo de perder mais um de cargo tão importante.

– Foi Caim que escolheu vir comigo, ninguém o obrigou. Quando o conse-lho se reuniu ele foi o único corajoso o suficiente para levantar a mão sa-bendo que isso poderia acontecer. - Respondeu Ronan um pouco nervo-so com a situação.

– Acalme-se, Ronan. Ninguém está o acusando de nada aqui. - Gabriel co-locou o ânimo da conversa de volta no lugar antes que chamassem a atenção.

Os três ficaram em silêncio novamente.

– Presidente é o cargo hierárquico mais baixo que existe, Baal.

– Mais Caim era o maior dos presidentes, lembre-se bem. Aliás, muitos ru-mores diziam que Lúcifer dera a ele o título de príncipe antes de desapa-recer. E bem, presidente não é o mais baixo cargo hierárquico. Lembra-se de Furcas?

– Furcas? - Gabriel espantou-se. - O cavaleiro?

– Exatamente. - Respondeu Baal. - Quem mais adequado que ele para essa missão? De um cargo baixo o suficiente para não fazer falta, forte o suficiente para lidar com os problemas e astuto o suficiente para saber quando deve recuar.

Ronan sentiu a crítica ao seu antigo companheiro, mas não iria brigar por sua memória. Não ali, não em meio a eles. Respirou profundamente e manteve a cal-ma. Não deixaria Baal tirar sua clareza de raciocínio.

– Fazer o selo de invocação de Furcas não será fácil. - Constatou o antigo arcanjo.

– Gabriel, sem selos de invocação, eu já pedi isso uma vez. Eu vou atrás dele se necessário.

– Ainda com essa mania de poupar sacrifícios mortais para rituais de invo-cação, Ronan? - Perguntou Baal com um tom sarcástico na voz. - Ora essa, vamos ser práticos.

– Sua praticidade vai acabar exterminando várias vidas inocentes, até mesmo de animais. Já disse que não permitirei que essas atrocidades ocorram. Eu mesmo vou atrás de Furcas. Onde ele está?

– Furcas está em algum lugar da Euroásia. - Finalmente levantou a voz Shax. - Exatamente onde não sei precisar, mas sinto que ele está nas terras baixas. Se vai mesmo buscá-lo, vá rápido para que Lillith não des-cubra e chegue na sua frente.

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– Nem precisa dizer duas vezes. A reunião termina aqui.

Todos desapareceram no ar sem deixar rastros.

Finalmente achara uma passagem em meio aos rochedos. Assim que acabou de coletar o estranho material reluzente de Neverends, saiu voando novamente até as encostas da montanha. Se iria mesmo prosseguir com as investigações sem levantar suspeitas de qualquer cidadão naquela cidade, precisaria ser o mais rápido possível. Após retirar algumas tábuas que bloqueavam o acesso aos túneis escuros e desprovidos de som, sentiu uma presença já familiar próximo a ele.

– Pretende mesmo perder seu tempo investigando mais isso? - Filipos dis-se quebrando o silêncio do lugar enquanto Qlon retirava de sua estimada bolsa sua lamparina.

– Por que isso importa? Por acaso é mais uma daquelas coisas que ainda não estou preparado para saber? - Perguntou em tom irônico o jovem anjo.

– No geral, sim, mas jamais conseguirá coletar todas as informações que quer encontrar acerca dos últimos eventos. Está perdendo seu tempo.

– Nenhuma investigação é perda de tempo. Mesmo que eu só possa vis-lumbrar uma pequena parte do total no final das contas, já terá valido a pena.

– Bem, se você quer mesmo ir em frente, boa sorte. Mas faltam apenas vinte minutos para a partida do seu barco. Se for necessário, chame que o mínimo que poderei fazer é tirá-lo daqui.

E Filipos desaparecera novamente. Fazia um tempo considerável que não se falavam, até sentiu certa falta daquele espectro misterioso. Com a lamparina à sua frente, passou a explorar os corredores.

“De certa forma, aqueles túneis estavam lembrando-me do calabouço nas raí-zes de Yggdrasil em que fui aprisionado na minha viagem aos sete céus. Estrei-tos, esguios, um tanto quanto abafados e labirínticos. Seus corredores tortuosos bifurcavam-se e trifurcavam-se ao longo do caminho. Era como jogar com a sorte tentando adivinhar o caminho. O solo era completamente disforme e acompanha-va o formato das rochas que não podiam ser escavadas. Aclives e declives eram repetitivos e somente vez ou outra escadas podiam ser encontradas ao longo do caminho. Para ser sincero, eu tinha a menor ideia de para onde estava indo.”

– Jhon, você por aqui? - Perguntava Louis que acompanhara uma das car-

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roças de mantimentos até o porto.

– Ora essa, seu lobo velho! - Sorriu o ladino ao observar seu velho chefe e amigo. - Que boa surpresa ver que sobreviveu àquilo. Vai participar des-sa caravana também?

– Só em partes, meu caro. Vou apenas para Nautilus. O rei perguntou se eu tinha algum invento que poderia auxiliar na viagem e, bem, estou acompanhando para ter certeza que ele chegará bem e que será bem utilizado pela tripulação.

– Maravilhoso. E você pode contar o que é o invento e o que ele faz?

– Até contaria agora, mas quero evitar explicações repetidas. Assim que estiver preparado e com toda a tripulação ouvindo, vou explicar do que se trata. - Disse o velho inventor sem tirar os olhos da carruagem coberta e lacrada que o trouxera. - E por falar nisso, onde está Qlon? Ele está atrasado ou algo do tipo?

– Ele disse que iria resolver alguma coisa na cidade, mas até agora não te-nho ideia de onde ele possa estar. Quase todo mundo já está aqui, até mesmo aquele soldadinho insolente e preguiçoso. - Resmungou, apon-tando para Leon.

– Bem, acredito que essa caravana não vá partir sem ele de qualquer for-ma. Tudo o que pode ser feito é esperar.

– É mesmo tão importante assim achar qualquer coisa aqui? - Dizia a voz de Filipos em meio a escuridão.

Qlon estava exausto após caminhar por mais de dez minutos naquele labirinto. Para onde quer que ele estivesse indo, nunca chegava a lugar nenhum.

– Você poderia ajudar já que não vou ter todas as pistas de qualquer jeito.

– Poderia, mas não vou. Se você encontrar só vai ter mais perguntas, cu-jas respostas eu com certeza não vou poder dar. O primeiro passo para aceitar sua existência é entender que nem tudo pode ser controlado, e isso inclui as vontades e ações alheias.

Aquele era o último momento que queria ouvir um sermão. Não bastasse os constantes escorregões e tropeços que dava ao longo do caminho, ainda tinha de aturar lições de moral de um espírito de milênios de existência. Não que isso desconcentrasse, mas por certo era irritante.

– Eu já disse que não vou desistir. - Resmungou o jovem anjo.

– Persistência pura sem sabedoria jamais o levará a algum lugar que não

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seja a ruína em si.

– Shh. Silêncio. Consegue ouvir?

A voz de Filipos cessou. Qlon parou por alguns segundos. Conseguia ouvir passos ao longe e alguns sussurros. Por certo as experiências que tivera nos Sete Céus foram o suficiente para aprimorar seus sentidos. Sem titubear, seguiu os sons quase inaudíveis que as vozes faziam.

“Tentando fazer o mínimo de ruído possível ao subir escadarias mal construí-das e escalar rochas frias como gelo, aos poucos me aproximava da origem das vozes. A dois corredores de distância, apaguei a lamparina e retornei-a à bolsa. Pisando na ponta dos pés, aproximei-me vagarosamente do final do último túnel que parecia terminar em uma antiga porta de madeira corroída pelo tempo. Con-trolei minha respiração ao máximo somente para ouvir o que discursavam.”

– Ele devolveu mesmo. Estranho, não?

– Sim, mas está faltando um grande pedaço. - A segunda voz denotava certa preocupação. - E o pedaço que ele pegou tem energia suficiente para... Céus, nem quero pensar nisso.

– Mas se ele devolveu significa que ele não era tão mau caráter assim. Ele poderia ter levado tudo consigo.

– Feche essa boca, padre. Pelos céus, você, eu e todos viram as asas ne-gras dele e daquele amigo morto dele.

As vozes distanciavam cada vez mais. Pareciam estar subindo os degraus. Por uma fresta Qlon observava a movimentação. Tomou um susto quando viu dois vultos passarem por ele.

– E agora, o que será da cidade em caso de mais uma invasão dos demô-nios? Será que a barreira foi enfraquecida?

– Apenas o tempo dirá isso. Por agora vamos concentrar nossos poderes de cura sobre os bravos soldados enfermos e reconfortar os familiares daqueles que se foram. Essa é nossa função primordial.

O jovem anjo ruivo esperou até que as vozes desaparecessem por completo. Aos poucos abriu a porta. Com um rangido estridente, a mesma quase desman-chou-se sobre a escadaria que estendia-se muitos e muitos metros para dentro do solo, escavado em meio a rochas.

– É, Filipos, está certo. Persistência por si só leva a lugar nenhum, mas com certeza absoluta uma pitada de sorte e experiências traumáticas substituem a sabedoria necessária.

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– Onde está aquele garoto? - Leon resmungava entre dentes com seu su-perior. - Já está quase na hora.

– Jhon disse que ele estaria aqui no horário. - Hector respondeu. - De acor-do com ele, o garoto tinha assuntos inacabados na cidade. E não vou se-quer questionar o que é sabendo do que aquele garoto é capaz.

Balthasar não saía do lado de seu neto. A filha de Jinx, Sheena, já esperava dentro da embarcação que os levaria a cidade de Ares, principal comerciante de Colossus. Jhon também desistira de esperar de pé e já tinha ido, também, para a barca de passageiros.

– E Gerrard? Onde ele está? - Perguntou Leon já nas últimas de sua paci-ência.

– Ele está ajudando a carregar os suprimentos. A força descomunal dele será mais do que necessária, e não somente nos embates.

Leon batia o pé no chão. De braços cruzados, reclinado em uma dos prédios administrativos do porto, olhava para o castelo e para a cidade. Finalmente esta-ria livre de suas obrigações para com aquela cidade. Ao menos por um curto tempo.

– Avô, pode ajudar-me a entrar na barca? Já desisti de continuar esperan-do aqui fora. Jinx, é por sua conta.

Fez um cumprimento ao seu superior e entrou na barca sendo auxiliado pelos fortes e idosos ombros de Balthasar.

Desceu as escadas correndo. Estava quase atrasado. Sua bolsa atrapalhava um pouco na corrida, mas nada que comece ainda mais o seu tempo. Por fim chegou a enormes portas destruídas. Seu pai tinha, com certeza, perdido a paci-ência com portais comuns.

“Não tive problemas em avistar aquilo que estava lá dentro. Era um minério avermelhado que reluzia fortemente. Parecia, de uma forma abstrata, com um coração pulsante. Senti a lâmina de minha arma vibrar dentro de sua bainha. Logo Filipos veio falar comigo.”

– Não se aproxime mais. Só vai tornar as coisas piores. - Sua voz assumiu uma tonalidade de preocupação eminente. - Para nós dois.

– A Sanctus está vibrando. Eu estou sentindo sua vibração dentro da bai-nha. Aquilo ali... É minério de Mythril? Mas não pode ser, Mythril é azul...

– Não vou responder suas perguntas sobre isso agora. Só não chegue mais perto. Se preza sua vida, faça o que ordeno.

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Filipos ainda não parecia merecer os votos de confiança de Qlon, mas o anjo ruivo seguiria suas instruções.

– Tudo bem. Pode responder nem mesmo uma pergunta?

– Tentando negociar comigo? - Até mesmo o frio espectro permitiu-se um sorriso. - Pois bem, faça a pergunta certa.

– Como assim a pergunta certa?

– Você quer que eu responda apenas a uma pergunta que tenha relaciona-da aos eventos recentes, e eu posso consentir com isso, mesmo que a contragosto. Ao mesmo tempo, só vou responder uma pergunta específi-ca que faça, a qual não vou revelar para que possa refletir em tal questio-namento especial.

– Uma pergunta específica que eu nem sei qual é ou como é? Quanta complicação... Ao menos pode dar-me alguma pista sobre tal pergunta premiada?

– É uma pergunta da qual você já suspeita a resposta, mas não possui ple-na certeza. Também é a pergunta cuja resposta vai abrir o menor leque possível de dúvidas.

– Vamos, Filipos. Não tenho tempo para charadas. - Qlon estava ficando impaciente com os joguetes de seu guia espiritual.

– Não precisa perguntar exatamente agora. Possui todo o tempo que dis-por para isso. Agora, que tal sairmos daqui antes que fique mais atrasado do que já aparenta estar?

Por um segundo Qlon até esqueceu que tinha uma missão a cumprir. Filipos flutuou pela escadaria e chamou seu pupilo. Iria guiá-lo até a saída mais próxima.

Hector olhou para o céu. Não tinha nenhuma noção de horário com aquelas nuvens negras que não paravam de expelir sua fina nevasca. Mas, ao menos, estava feliz. As nuvens que pareciam formar um vórtice em cima de sua amada cidade e mostrar a imensidão do universo como se o céu não fosse mais azul ha-viam desaparecido ao final do embate. Estava tudo em paz naquele instante. Apesar das perdas, os cidadãos voltavam a circular pela cidade, retornando às atividades comuns e reconstruindo suas vidas aos poucos. Colossus sobrevive-ria. Só esperava não encontrá-la em ruínas quando voltasse. Se voltasse. Ao re-tornar seus olhos para o chão, deparou-se com Qlon em sua frente, olhando-o com um enorme sorriso.

– Desculpe o atraso, senhor Hector. - Pediu educadamente. - Tive alguns contratempos em achar o caminho do porto na volta.

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Hector conhecia bem aquele olhar. O olhar de uma criança que aprontou e, com toda sua manha e fofura, pedia desculpas. O que quer que aquele pequeno anjo tivesse feito, jamais iria indagar. Sorriu de volta e disse:

– Não, tudo bem. Não estou com uma boa noção de tempo, mas creio que não deva estar atrasado mais do que dez minutos. A carga mal acabou de ser posta no porão de um dos navios, afinal. E, mais do que ninguém, entendo o que é ser uma criança perdida por aqui. Vamos, entre.

Dessa vez não viajariam na barca de Balthasar. Era um pequeno navio comer-cial usado para a troca de mercadorias e com duas velas – mais eficiente para a navegação do que remos, apesar de que o vento não estava tão forte. Subiu a pequena rampa de madeira que dava acesso ao convés principal, onde um pu-nhado de mercadores tirava a neve acumulada. Entrou no pequeno casario atra-vessando a portinhola com Hector em seu encalço e viu o resto de seu grupo. Jhon estava sentado ao redor de uma mesa com Louis conversando de forma animada e relembrando o passado. Mal notaram quando ele entrou de tão bêba-dos que estavam. Leon, do outro lado da sala, e sentado no chão, encarava-o com uma cara de poucos amigos. Balthasar estava ao seu lado e deu um breve aceno. Sheena, filha de Hector que ainda não conhecia, estava sentada em um dos banquetes próximos ao balcão analisando seus fracos. Voltou os olhos para fitar o famoso garoto que havia salvado a cidade mas sequer fez um aceno ou al-gum cumprimento. Apenas encarou-o nos olhos por alguns segundos e voltou a fitar seus armamentos e seus itens. Gerrard, que era um enorme minotauro de quase três metros com uma pelagem de um preto fosco e chifres enormes, mal conseguia achar um espaço ali dentro. Aliás, era um mistério como teria entrado em um casario tão pequeno. De olhos fechados e com um enorme martelo ao lado, parecia dormir enquanto sua pesada e enfumaçada respiração acumulava vapor em sua argola de metal presa nas narinas. Hector colocou a mão sobre o ombro de Qlon e disse:

– Venha, garoto. Vou apresentá-lo aos que ainda não conhece.

“Enquanto o navio partia do porto de Colossus, eu era apresentado a uma ga-rota élfica fria como o gelo que caía e um minotauro que era totalmente o oposto. Passamos horas conversando sobre como seria a viagem e para onde estáva-mos indo. E, principalmente, ficaram curiosos quando perguntaram o que iriam enfrentar. Ao contrário do que imaginei, ninguém ali ficou com medo. Pelo contrá-rio. Sheena abriu seu primeiro sorriso desde o início da nova jornada. Leon inqui-etou-se, mas parecia seguro de si. Gerrard deu uma sonora gargalhada. Apenas Jhon e Hector mantinham certo recato, mas mantinham sorrisos em seus rostos. Acho que não poderia ter pedido por companheiros melhores. Os adultos bebe-ram suas bebidas alcoólicas para espantar o frio e levantavam brindes para a longa estrada que estendia-se à sua frente enquanto eu pensava em uma per-gunta específica...”

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Cap. 72 – Odessa, Iduna e o Invento

ranquilamente seguiam viagem pelas planícies que os carregaria até Nautilus mais uma vez. Ainda nevava, e a grama de um verde amarela-do ia, aos poucos, sendo substituída por uma fina camada branca de

gelo. Balthasar já havia ficado pelo caminho e Leon seguia viagem em uma car-roça. Sentia grandes dificuldades em ficar de pé ou mesmo cavalgar dada a gra-vidade de seus ferimentos. Jhon e Qlon conseguiram recuperar os cavalos adqui-ridos em Bistol do velho fazendeiro que cuidou deles pelo custo de uma moeda de ouro e neles seguiam rumo. Jinx ia na frente da comitiva ao lado de sua filha. Jhon e Qlon iam ao meio seguidos de perto por Louis enquanto as grandes pas-sadas de Gerrard o deixavam no fim da linha de carruagens que seguia pela es-trada. Ele era o único a caminhar.

T

– E então Louis, você ainda não disse por que está vindo conosco. - Gritou Qlon para ser ouvido em meio ao barulho de rodas de madeira chocan-do-se contra pedregulhos ao longo do caminho.

– É só temporário, garoto. - Respondeu. - Não pretendo enfrentar um dra-gão negro junto de vocês. Sou nem louco.

– Então por quê?

– Dentro de uma dessas carroças está algo que vai mantê-los a salvo du-rante sua jornada desbravando os mares. Uma máquina que passei parte da minha vida desenvolvendo e que comprova uma de minhas teorias.

– E o que ela faz?

Louis deu um enorme sorriso meio amarelado. Adorava ver a curiosidade alheia acerca de seu trabalho. Mas, ao contrário de dar suas respostas diretas desta vez, iria esperar o momento certo para que todos vissem a magnificência de sua obra. Mas mal sabia do inferno que seria o restante daquele pequeno ca-minho entre as duas maiores cidades da ilha agora que tinha deixado a criança mais impaciente em todo o reino mortal curiosa.

– A noite está caindo. De acordo com o mapa, estamos na metade do ca-

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minho. Amanhã continuamos. - Gritou Jinx à frente da caravana, parando o grupo. - Vamos montar acampamento por aqui mesmo. Armem as ten-das e montem uma fogueira!

“A fogueira crepitava timidamente, mas era mais do que o suficiente para der-reter a fina camada de gelo acumulada em nossas vestes e em nossos equipa-mentos e dar um certo conforto em meio ao frio. Eu sentava sozinho enquanto analisava meus companheiros. Poucos soldados que acompanhavam a carava-na, ajudando a guiar as carroças, bebiam felizes seu vinho até adormecer. Louis e Jhon conversavam enquanto eu tinha parado minha frenética insistência em saber do que se tratava a invenção. Leon fora o primeiro a dormir dentro de sua carruagem, em meio ao feno e aos mantimentos. Hector e sua filha conversavam algo em um idioma que era desconhecido de meus ouvidos. Gerrard dormia pro-fundamente após ter passado o dia com uma grande caminhada. Tudo parecia correr bem até ali.

Em dado momento foi quando comecei a ter a noção de responsabilidade de ter mais vidas ao meu cuidado. Não vidas de cidadãos comuns, mas vidas de guerreiros aliados. Todos estavam ali por minha causa e estavam contando com minha vitória. Arriscavam-se por mim, mesmo que contra sua vontade. Dava um certo conforto, mas também uma enorme angústia. Será que era assim que um general como meu pai sentia-se ao ir para a guerra ao carregar o peso das vidas de cidadãos e aliados às suas costas? Não me sentia pronto para aquela carga emocional extra.”

– Então esse é o navio que nos levará para... Louis, qual é mesmo o nome da ilha? - Perguntava Qlon ao observar um enorme galeão de madeira escura ancorado no maior dos berços do porto de Nautilus.

– Ilha de Parouipa. E grave esse nome de uma vez. - Respondeu o inven-tor. - Sei que é complicado por se tratar de um nome tribal nativo, mas não é nada impossível de falar.

– Com três vogais em seguida na mesma palavra? Sim, é complicado pro-nunciar.

– Parem de discutir vocês dois e subam de uma vez a bordo. - Pediu Hec-tor. - Quero que conheçam a capitã.

Era quase noite quando finalmente chegaram a Nautilus. Depois de passar mais de doze horas montado no lombo de um cavalo, Qlon sentia-se feliz de esti-car as penas, assim como toda a comitiva. Enquanto entravam no navio direto para o convés por uma escada de cordas com degraus de madeira, podiam ob-servar os soldados e Gerrard carregarem os mantimentos e caixas com munição

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no porão através de uma larga rampa de madeira que ligava o cais de madeira ao interior do navio. O grande galeão estava ancorado no braço que mais aden-trava a baía, talvez por causa de seu imenso calado – parte submersa do navio. Mesmo com a pesada âncora de aço afundada no oceano, ainda eram necessá-rias mais três cordas presas a postes de madeira em terra firme para que o navio não se movesse carregado pelas pequenas ondas que balançavam a embarca-ção. Tinha cerca de duzentos metros de popa à proa, e de um bordo a outro pou-co mais de trinta. Um navio certamente grandioso para uma viagem tripulada, so-mente. Por seus parâmetros parecia-se mais com um navio de guerra.

O convés era amplo. Tomado por barris e caixotes, contava com quatro mas-tros e doze velas, algumas triangulares amarradas aos mastros e ao gurupés – uma longa estaca de madeira que estendia-se da proa ao mar quase horizontal-mente ao plano da embarcação, e outras quadradas amarradas diretamente aos mastros. Esses tinham pequenos cestos em seu topo chamados de cestos da gá-vea, onde alguns subordinados mantinham guarda durante as navegações para avistar, através de lunetas, navios inimigos ou terra. O casario ficava à popa, logo abaixo do leme do capitão: uma roda de madeira parecida com um relógio, com exatos dez raios que terminavam em pequenos cabos de pegada usados para comandar a direção do navio com base na angulação gerada. Os tripulantes tra-balhavam arduamente ajudando a carregar as provisões e limpar o chão de ma-deira. Abaixo do convés, mais quatro andares. O primeiro andar pertencia às acomodações: dormitórios, cozinha, banheiros... O segundo era dos canhões. Quarenta a cada bordo colocados em dois andares menores de forma intercala-da. Dividiam espaço com a pólvora e as balas. Abaixo da sala de armas ficava o porão e, por fim, no último andar restavam as engrenagens que moviam o leme.

– Sejam bem-vindos ao meu navio, Iduna, bravos soldados. - Uma doce voz feminina saudou-os assim que alcançaram o convés. - Minha função aqui é guiá-los a salvo até Parouipa. Espero estar à altura de tal função.

– E está, Lady Odessa. - Elogiou-a Jinx. - Gostaria de apresentá-la ao prin-cipal motivo dessa viagem. Este é Qlon Warrior Eros, a criança especial que deve ter ouvido falar.

– Ah, sim! - Os olhos da capitã chegaram a brilhar quando ela olhou para a jovem e angelical criança de cabelos cor-de-fogo. Curvou-se e estendeu a mão para cumprimentá-lo. - É uma grande honra conhecer uma dádiva dos deuses como você.

Lady Odessa era uma bela capitã, profissão um tanto incomum para uma mu-lher humana. Seus cabelos ondulados eram de um incomum tom azul cristalino, quase brancos, e penteados estranhamente em tranças dispostas aleatoriamen-te. Seus olhos eram de um tom acastanhado quase rubro, que pareciam combi-nar com sua pele levemente bronzeada pelo sol. Usava um grande casaco de tons de cinza escuro e azul-marinho por cima de uma camisa branca de algodão

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com um generoso decote mostrando o lado de seus seios medianos, que davam espaço a um belo colar de prata com uma cruz de pingente. Uma calça preta e apertada de linho estava presa à sua cintura por um cinto marrom de couro curti-do com fivela e detalhes dourados, de onde também pendiam duas cimitarras, uma de cada lado de seus quadris, e um revóver de cano longo em um coldre. Botas de couro fitavam seus pés e um chapéu negro com uma pena de pavão presa a ele por uma tira de seda azulada completavam sua vestimenta.

– A honra é minha, Lady Odessa.

– Agora, se me dão licença, preciso instalar o equipamento que vim insta-lar. - Disse Louis. - Desculpe-me pela pressa, Lady Odessa, mas não quero atrapalhar a partida do navio e pretendo que esteja tudo pronto até amanhã pela manhã, no mais tardar.

– Tudo bem, faça o que tiver de fazer, cientista. Quando acabar, procure-me na cabine de comando, logo abaixo do leme.

Louis meneou a cabeça afirmativamente e, do alto do convés, apoiado na gra-de de segurança, gritou algumas ordens aos subordinados. Em seguida, desceu pelas escadarias próximas ao armazém da proa.

– E então, jovem senhor? - A capitã voltou-se ao seu convidado de honra. - Pronto para conhecer suas acomodações? Siga-me.

Odessa conduziu-os pela mesma escada que descera Louis até um estreitíssi-mo corredor que dava acesso a diversos cômodos dentro da embarcação. A es-cada seguia ziguezagueando para os andares inferiores, mas aquele era o corre-dor que almejavam, iluminado por pequenas janelas arredondadas e archotes presos às paredes. Com sua suave voz, a capitã explicou como as salas estavam dispostas:

– Os seus quartos estão no final do corredor, à direita. Não temos divisó-rias para homens e mulheres aqui, então sinto que sua filha tenha de dormir com os outros marujos, major Jinx.

O major deu de ombros. Ninguém seria louco o suficiente para aquilo de qual-quer jeito.

– Logo em frente aos quartos estão os banheiros. A cozinha fica na primei-ra porta à esquerda, e o salão de jantar é logo em frente a ela. Não se preocupem com os talheres sujos ou com o preparo das refeições, meus subordinados cuidarão disso. Para qualquer outra dúvida estarei em mi-nha cabine de comando no convés, sintam-se livres para procurar-me a qualquer hora. Agora darei espaço para que se acomodem, dormirão essa noite aqui para que acostumem-se com o balançar da Iduna.

– Obrigado, Lady Odessa. - Agradeceu Hector. - Somos gratos por sua ge-

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nerosidade.

A capitã cumprimentou-os e voltou para seu posto. Ambos dirigiram-se ao dor-mitório. Ao abrir a porta, Qlon deparou-se com diversos beliches de três andares presos ao chão e ao teto do compartimento. As escadas para as camas eram fei-tas com rede de pesca cortadas. Jhon e Leon já estavam lá. O guerreiro insolen-te vomitava em um balde amassado de latão ao seu lado e Jhon amolava suas adagas.

– Leon? O que tem com você? Achei que estivesse acostumado a andar em um barco. - Surpreendeu-se o major.

– Ficar em cima de um lago é bem diferente de ir para o mar. Não me sen-tia assim desde vi sua cara pela primeira vez. - Brincou.

Jinx abriu um sorriso e pegou a cama logo acima da dele. Assim evitaria possí-veis surpresas durante a noite. Enquanto isso, Qlon pegava a beliche mais alta, um andar acima da cama do ladino, que permanecia em silêncio enquanto apri-morava suas armas. Qlon sabia o porquê. Não duvidava que Phoebe iria fazer uma visita em algum momento dessa viagem. Precisavam estar preparados para uma batalha.

“A luz matinal finalmente aparecera após dias de neve contínua. As nuvens dispersaram-se no céu e deram lugar ao sol, que raiava timidamente no horizon-te e derretia a fina camada branca de gelo depositada sobre as superfícies diver-sas. Fomos chamados na cabine por um dos marujos que dizia que a invenção do 'velho maluco' estava pronta. Dirigimo-nos imediatamente até o convés, onde a capitã Odessa, devidamente arrumada, aguardava nossa chegada. Louis dis-cutia algo com os soldados mostrando os papéis de seu projeto. Olhei com curio-sidade para todo o piso principal, mas nada aparentava estar ali, apenas um pu-nhado de fios que se enterravam no mastro mais próximo do leme. Isso só me deixava ainda mais ansioso.”

– Eles chegaram, cientista. - Avisou-os Lady Odessa.

Louis olhou de relance para os “convidados” de sua grande – e primeira – amostra científica. Com um movimento de suas mãos, dispensou os homens que o auxiliaram. Esperou todos estarem acomodados para começar.

– Pois bem, senhores. Prometi que minha invenção os deixaria mais segu-ros durante sua viagem, e não menti quanto a isso. Aliás, é muita sorte ver que o sol resolveu aparecer, assim poderei mesmo fazer uma de-monstração. Ela reúne duas utilidades. Proponho que todos venham ao meu bordo para que possam presenciar a primeira delas.

Todos, inclusive Leon – que andava apoiado nos ombros de Sheena – dirigi-

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ram-se a bombordo. Debruçaram-se sobre a grade de segurança e contempla-ram o mar e parte da baía. Ao olharem para o casco do navio, enxergaram cerca de cem pequenos quadrados pretos emparelhados na horizontal.

– Então essa é sua invenção, velho? - Perguntou Leon com sua voz sar-cástica. - Percorreu todo esse caminho e teve todo esse trabalho só para montar azulejos?

– Acalme-se garoto, nem sequer dei minhas explicações ainda. Esses não são simples azulejos: são painéis solares. Eles convertem a luz do sol em energia elétrica.

“Até eu olhei espantado para Louis. Que espécie de engenhoca maluca era aquela? Claro que, logo em seguida, ele fez uma explicação de como a mesma funcionava.”

– Durante anos eu traduzi escritos antigos dos nossos antepassados que viviam nesta ilha, e cheguei a interessantes conclusões acerca deles. Os antigos homens eram terrivelmente inteligentes. Descobriram que as energias da natureza estão interligadas e que podem transformar-se en-tre si através de interessantes inventos. Neste caso, meu invento conver-te as energias luminosa e térmica em energia elétrica, que será utilizada de outras formas pelo navio.

– E como esses painéis fazem isso? - Perguntou o jovem anjo impaciente.

– Que bom que perguntou, menino curioso. - O velho cientista sorriu para ele. - Cada um desses “azulejos” possui várias partes menores chama-das células fotovoltaicas. Essas células são feitas, por sua vez, por um material específico que, ao ser exposto a luz, induz corrente elétrica. Essa corrente elétrica – que já está sendo gerada – terá dois principais usos para auxiliar sua jornada. Um dos usos que irei explicar agora é me-ramente militar.

O pesquisador dirigiu-se a duas pequenas roldanas próximas ao mastro e co-meçou a girá-las enquanto explicava o que iria fazer.

– O material em questão possui dois lados. Por um lado ele absorve ener-gia luminosa e a transforma em elétrica em seu interior, enviando a mes-ma para uma enorme bateria no porão, que armazena-a. O outro faz jus-tamente o inverso. Alguns pulsos pequenos de energia elétrica produzem um raio luminoso tão intenso quanto fogo. Continuem olhando para o casco do navio, por favor.

Louis girou a primeira manivela. O outro lado do material parecia ser de um límpido metal, quase espelhado. Não era aço comum ou prata, aparentemente. Parecia alguma outra coisa. Ao girar da segunda manivela as células fotovoltai-cas das quais ele falou pareciam formar escamas. Um pequeno ângulo foi forma-

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do entre elas.

– Agora eu abaixo essa manivela...

As escamas pareciam ter soltado um raio na água, que aos poucos ebuliu onde foi aquecida. O cientista, então, subiu novamente a manivela.

– É uma arma poderosa, Louis. - Disse Jhon surpreso com a utilidade da invenção. - As relíquias que resgatei da cidade ajudaram na criação des-sa monstruosidade?

– E como. Sem os livros que você garimpava de bibliotecas e inventos anti-gos que encontrava no percurso, isso não seria possível. Então, muito obrigado pelos seus préstimos, velho amigo.

Todos aplaudiram Louis, que visivelmente ficou encabulado com todo aquele reconhecimento. Tentou parar os aplausos para prosseguir:

– Nem preciso dizer que é uma arma extremamente perigosa, mas se usa-da corretamente pode deixar navios inimigos em chamas. E consome muita energia. Descarregue essa arma por vinte segundos e a bateria es-vazia. E ainda tem mais uma aplicação. Sigam-me até a sala de engre-nagens, por favor.

Sheena precisou carregar Leon no colo. As dores que ele possuía apenas pio-ravam com a náusea que ele ainda sentia. Perceptivelmente controlava o vômito e estava com o rosto esverdeado. Mas não tirava o sorriso do rosto. A jovem quase-elfa fora gentil ao carregá-lo para cima e para baixo, o que deixava seu pai visivelmente desconfortável. Apesar disso, Hector não reprovava a atitude altruís-ta de sua filha. Era raro vê-la fazendo algo pelo próximo sem reclamar e ele que-ria incentivar esse tipo de comportamento. Mas tinha de ser justo com... Ele?

“A sala de engrenagens, que fedia à madeira molhada, nada mais era do que uma enorme sala por onde engrenagens e tubos de aço ligavam o leme de co-mando da capitã no convés aos lemes que moviam-se submersos. Todo o apara-to tecnológico estendia-se acima de nossas cabeças e, em seguida, submergia em um pequeno buraco no fundo do navio que dava acesso a uma estreita câ-mara. Daquela câmara que se situava na parte inferior da popa os comandos eram, por fim, enviados aos lemes submersos.”

– A próxima surpresa está aqui. Lembram-se de bateria? - Perguntou apontando para uma imensa caixa de metal de onde chegavam diversos fios, que encaixavam-se em dois grandes pinos de metal na face superior do cubo. - É isto que armazena a energia elétrica. Não irei explicar sua tecnologia pois envolve conceitos avançados de química e...

– Princípio da troca de elétrons entre agentes oxidante e redutor imersos

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em soluções repletas de íons? Bem, nesse caso você parece ter constru-ído algo que não somente converte energia química em elétrica, mas também faz o oposto. Incrível! Deve ter dado trabalho juntar os materiais necessários e criar as soluções já que muitos dos elementos que podem criar algo do gênero não possuem muita aplicabilidade comercial. Tiran-do, claro, os metais. - Constatou Qlon.

Todos olharam para ele, embasbacados, e olharam de volta ao cientista, que mantinha a mesma reação que os outros.

– Está... Está correto. - Gaguejou Louis. - Impressionante. É mesmo um garoto prodígio. Infelizmente ninguém mais deve ter entendido... Enfim, continuando a explicação aos demais, a energia armazenada aqui possui dois usos. Um deles vocês acabaram de presenciar lá fora, o outro está aqui atrás e não poderei demonstrar, infelizmente. Basicamente, a pro-pulsão de um navio como esse é criada pela força que o vento faz ao ba-ter nas velas. Mas, através de duas hélices que coloquei próximas ao leme – e que foram muito trabalhosas de instalar – essa energia elétrica também poderá gerar, por um curto tempo, propulsão extra, aumentando a velocidade em cerca de quinze nós. Não que seja muita coisa, mas pode ajudar em uma fuga. Dura cerca de uma hora.

Novamente, aplausos. Louis nunca tinha recebido tanto reconhecimento em vida. Sentia que todo seu trabalhado tinha valido de algo. Estava realizado: dei-xara sua marca.

– Zarparemos em breve! - Gritava a capitã do convés de seu navio. - Quem ainda tiver algo a fazer, faça agora!

Já era por volta do meio-dia. O sol brilhava intensamente no alto do céu e uma brisa fresca soprava. Os soldados que acompanharam a comitiva e ajudaram a carregar o navio e instalar os estranhos inventos de Louis retiravam-se do cais. Os marujos desamarravam as cordas que prendiam o navio e preparavam-se para puxar a âncora e armar as velas. Jhon, do lado de fora do navio, despedia-se de Louis enquanto Qlon acompanhava os dois.

– Obrigado pelo presente, seu velho pirado. - Jhon bateu no ombro de seu amigo. - Espero que possamos nos ver ainda mais uma vez antes de... Você sabe.

– Boa viagem, seu larápio. - Louis cumprimentou-o do mesmo jeito. - Espe-ro o mesmo. E você, Qlon... - Voltou seus olhos ao pequeno garoto. - An-tes de hoje eu não imaginaria que você era tão esperto. Os anjos são mesmo um povo muito mais avançado que o nosso.

– Para nós aquilo era conhecimento básico. A diferença é que vemos ape-

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nas a teoria, e poucos se interessam em seguir nos ramos científicos. Ci-ência não mata demônios.

– Hahaha, imagino. - Gargalhou o velho cientista enquanto bagunçava os cabelos de Qlon em uma mescla de carinho e brincadeira. - Se puder, es-tude-a ainda assim. Pode não ser útil contra demônios, mas pode tornar nossa vida muito mais confortável.

– Pode? - Perguntou o ingênuo anjo.

– Claro. Depois de ler uma dúzia de artigos do passado, pude notar como que a praticidade deles nas mais rotineiras tarefas economizava seu tem-po. A ciência não é uma arte meramente bélica. Aliás, seu principal uso sempre deve ser auxiliar a vida.

Qlon abriu um sorriso de satisfação. Aprendeu bastante com aquele velho “criador de bugigangas”, um dos “afetuosos” títulos dado a ele por Jhon.

– Tenha uma volta segura para Colossus. - Desejou Qlon.

– E para você, boa sorte. Cuide desse velho aí, ele dá trabalho.

– Ele ainda precisa ensinar-me umas técnicas de luta, então não vou dei-xar que morra tão cedo.

Apesar de estranho ouvir aquilo vindo de uma criança para um senhor de ru-gas na face, Jhon sorriu para ele. Mesmo que seu antigo chefe fosse petulante, mandão e extremamente irritante, era uma boa criança. Louis virou as costas e caminhou para longe enquanto os dois subiam para o convés.

– Içar velas! Levantar âncora! - Gritava a capitã. - Vamos lá homens, não me façam esperar!

Enquanto Odessa dava as ordens, os seus marinheiros corriam de um lado para o outro. Apenas Qlon estava, ainda, no convés. Os outros estavam dentro do navio cuidando de quaisquer que fossem seus afazeres.

“Com a brisa gelada do vento em meu rosto, eu despedia-me da ilha e da cida-de de Nautilus. Deixava para trás excelentes aprendizados, grandes conquistas e ótimas memórias. Queria em breve retornar ao meu lar com a cabeça de Vindic-tus e seu coração. Agora um novo caminho estendia-se à minha frente. De acor-do com Odessa, viajaríamos circundando a Euroásia pelo perigoso, quase con-gelado, mar do norte. O mar entre os dois continentes vizinhos era movimentado demais, poderiam ser confundidos com inimigos dos dois lados e atacados a qualquer momento. Após passar pelo mar do norte para leste, seguiríamos para o sul. Mas, antes de tudo isso acontecer, ainda tínhamos um grande desafio pela frente. O Cabo da Honra seria nosso primeiro teste...”

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Cap. 73 – Charybdis

esplandecia o céu. A enorme bola de fogo diurna encolhia-se cada vez mais no horizonte enquanto mergulhava no distante oceano. Uma cal-maria sem tamanho espalhava-se pelo cenário. O vento gelado sopra-

va forte, levando Iduna para o Cabo da Honra a toda velocidade. Qlon, do con-vés, observava a enorme baía de Nautilus cercada por escarpas e vegetação na-tiva. Acompanhava atentamente a paisagem mudar enquanto vislumbrava cida-des menores e pequenos vilarejos ao redor da costa.

R

– Logo chegaremos ao Cabo da Honra, Qlon. - Surpreendeu-o Jhon che-gando ao seu lado e reclinando-se na grade de estibordo a meia-nau jun-to ao jovem anjo. - Lembra-se dele?

– Não foi a tanto tempo assim. Na verdade, é estranho voltar para lá nova-mente após poucos dias.

– Entendo.

– O quê existe no Cabo da Honra, afinal, para que haja um redemoinho ali o tempo todo?

– Não sei, como iria saber dessas coisas? - Jhon riu sozinho. - Não é você o grande gênio cheio de teorias?

– Jhon, eu sei como redemoinhos são formados. Existe um buraco e existe sucção de água através dele. Só que redemoinhos no oceano são, hipo-teticamente, raros. Apenas uma falha tectônica explicaria esse fenôme-no, e o relevo irregular da ilha confirma essa teoria.

– Não entendi metade do que disse... Mas isso já não explicaria tudo?

– Se o fenômeno não fosse tão isolado, explicaria. Então continua sendo um mistério. - Qlon olhava fixamente para o estreito cabo ao norte en-quanto tentava decifrar o enigma.

– Qlon... Você tem mesmo seis anos? Quero dizer, como que sabe de tan-tas coisas? - Jhon ficava cada vez mais pasmo com o conhecimento ci-entífico de alguém tão jovem. - Isso é tão bizarro...

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– Já disse isso uma vez. É cultural. Antes de irmos para o centro de treina-mento militar chamado de Base, nossos pais passam-nos um compilado de conhecimentos do mundo mortal. Tudo que podem, e não é tanto as-sim. Pecam um pouco nas aulas de história... Eu gostaria de saber mais sobre o passado do mundo. - Parou para refletir por alguns segundos mas logo recobrou o foco. - De qualquer modo, fazem isso para que ab-sorvamos o máximo possível de conhecimento antes de nossos corpos estarem aptos para o treinamento de combate. Aprender a lutar demanda muito mais esforço do que gravar essas coisas simples.

– Coisas simples? - Jhon franziu o cenho. - Louis passou o resto da vida dele estudando algo que você conseguiu deduzir em pouco tempo. Aliás, agora faz sentido o fato de você saber tanto sobre piratas quando nos conhecemos.

Qlon abriu um sorriso. Sentir-se mais inteligente que aqueles ao seu redor dava um certo prazer. Entre os seus poderia ser apenas uma criança, mas para eles, mortais, guardava em sua mente mais conhecimento que diversos anciões, juntos, conseguiriam.

– Sim, ciências naturais são algo simples. Entender como funciona este planeta e os elementos que ele provê é algo comum. Mais difícil que isso é entender como trabalha a consciência dos outros.

– Como assim? - Jhon perguntou enquanto tentava decifrar o complexo vo-cabulário de seu amigo.

– Só é estranho tentar entender a lógica por trás dos pensamentos alheios. De vez em quando pergunto-me como eu seria com a consciência alheia.

– Ah... Entendo. Então aos anjos sobra conhecimento... Mas falta empatia. Interessante saber disso.

Jhon deu um tapinha no ombro de Qlon que ali ficou, refletindo nas palavras do ladino. Quando Jhon já estava quase voltando ao dormitório, lembrou-se do que fora conversar em primeiro lugar:

– Ah sim! Qlon! - Gritou para o anjo ruivo que virou-se para fitá-lo. - Já ia esquecendo! Quando quiser, posso acabar com as aulas de combate que fiquei de lecionar.

E sem dizer mais uma palavra, entrou para o compartimento que dava acesso às escadarias.

– Então aí está você! - Exclamou Ronan ao avistá-lo. - Tinha medo que chegasse tarde demais.

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– Não se preocupe comigo. - Respondeu a grossa e rouca voz de um ve-lho. - Eu sei cuidar de mim mesmo. Por que veio, afinal?

O corpo dele estava coberto de sangue escuro e espesso como graxa. Trajava uma robusta armadura do mais bruto aço, completa, do escarpe ao elmo. Apenas seus olhos amarelos como raios e seu longo cabelo branco faziam-se visíveis por detrás da viseira. Sentava em uma pilha de corpos de demônios enquanto manti-nha sua gigantesca lança – que mais parecia um enorme espeto cônico termi-nando em uma afiada ponta – em riste. Sua capa esvoaçava enquanto o vento vindo sul chegava. Era tenebroso. Não, mais do que isso. A aura cruel e sombria que emanava dava mais arrepios do que encarar Lillith nos olhos. Furcas, o ca-valeiro, era o mais horripilante ser de todos os sete infernos, por certo.

A pilha de mortos estendia-se por centenas de metros ao seu redor. Pelo visto, Lillith não pouparia esforços para impedir a vitória de Ronan e seus companhei-ros. Se Furcas já estava em combate, não demoraria muito até que o resto dos rebeldes fosse descoberto e atacado. Precisariam permanecer juntos para resis-tir a onda de ataques.

– Furcas, preciso de seus serviços para proteger os interesses da ordem. - Disse o bravo general Ronan engolindo sua saliva para não parecer ner-voso. - Pode ajudar-me?

– Fiz meus votos, não fiz? - Furcas colocou-se de pé e afundou o corpo do ser disforme aos seus pés com suas pesadas pegadas. - Então sim, pos-so. Principalmente se envolver matar mais escravos de Lillith.

Apesar da força de Furcas não ser a maior no inferno, seu conhecimento era. Talvez fosse isso, afinal, que o fazia alguém extremamente sombrio. Poucos além de Lúcifer, o criador do submundo, sabiam tanto sobre aquele lugar e sobre aquilo que beirava seus recantos mais abissais.

– Ótimo. Preciso que acompanhe meu filho e garanta a segurança do mes-mo. Como sabe, ele é a peça fundamental e tenho fortes motivos para acreditar que logo Lillith entrará em contato com ele.

Furcas retirou seu elmo. Seus longos cabelos esvoaçaram por cima de sua capa e chegaram à metade de suas costas. Seu rosto afinado de orelhas leve-mente pontiagudas e sem bochechas contorceu-se em uma expressão psicopata de satisfação.

– Então está dando permissão para que eu enfrente Lillith, se necessário?

– Sim, mas esse não é o objetivo principal, gostaria de lembrá-lo. - Ronan deu um suspiro e tentou argumentar para conter o instinto de Furcas. Sa-bendo como o mesmo gostava de agir, precisava deixar a situação mais do que esclarecida para que o mesmo não se envolvesse em nada além do necessário.

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– Ainda assim... São ótimas notícias.

Por detrás de sua capa surgiram duas enormes asas que lembravam asas de morcegos. Peludas, membranosas e com espinhos ósseos saindo de suas articu-lações. Virou-se e agachou para tomar impulso quando ouviu a voz de Ronan às suas costas.

– Não precisa que eu diga onde ele está? - Perguntou Ronan.

– Não. Posso sentir o cheiro dele.

E voou, desaparecendo no pôr do sol.

– Chegou a hora, homens! - Gritava Odessa de seu posto.

O redemoinho do Cabo da Honra estava à vista. Já era noite quando puderam ouvir o som das ondulações formadas pelo contínuo movimento oceânico daque-le lugar. Nenhuma nuvem no céu, um vento forte soprando. Algo estava estranho demais. Qlon tinha uma sensação bizarra. Da ponta da proa, olhava para o gi-gante redemoinho à sua frente. Não, não era a mesma coisa da noite que Jhon se afogara. Havia algo ali, alguém ali.

– O que foi, Qlon? - Perguntou Jinx ao seu lado.

– Tenho uma estranha sensação... Hector, há alguma fera capaz de criar redemoinhos? Alguma besta mitológica ou algo do tipo?

– Não sou um cão dos mares, então não conheço muito dessas histórias sobre o oceano... Por quê?

Qlon meneou a cabeça negativamente. Provavelmente era só uma estranha sensação, nada mais. Mas seu sexto sentido jamais falhara anteriormente...

– Esse redemoinho sempre esteve nesse cabo?

– Desde um grande tremor, cerca de dois milênios atrás. Na época Colos-sus sofria ataques diários do exército da Euroásia e Nautilus estava sob controle inimigo. Os cidadãos dizem que foi um presente dos deuses. Pena que ainda existem invasões aéreas...

Qlon refletiu sobre aquela palavra específica. Tremor. Ficara um pouco mais calmo, mas ainda apreensivo. Redemoinhos podem sim ser formados pela natu-reza... Mas não são perenes. Podem repetir-se diversas vezes no mesmo dia, entretanto. Ainda assim, tinha um estranho sentimento sobre aquele lugar.

– Baixar velas! Vamos pegar carona na correnteza! Ao meu comando, ar-mem-nas novamente! Vamos homens, não podemos errar!

O navio ficou pouco mais vagaroso. A força do redemoinho puxava-os para sua

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borda. À medida que entravam na corrente, sua velocidade aumentava. Então o navio inclinou-se cerca de cinco graus. Entraram no turbilhão.

– O que fará, mãe?

Um ser falava das sombras de um penhasco acompanhado de sua senhora. Ao longe, observavam uma embarcação entrar em um gigantesco redemoinho. A belíssima mulher de corpo escultural abriu um sorriso e mostrou seus dentes es-branquiçados que nem de longe chamavam tanta atenção quanto seu decote.

– Estou excitada. Vou finalmente provar minha teoria. - Sua mão deslizou suavemente para o meio de suas pernas pela quinta vez na mesma noi-te, levantando a saia de seu vestido. - Se eu estiver certa, vou encontrar um novo pai para meus filhos...

– Mas mãe... - O ser falou com um tom pesaroso em sua voz. - Nós não somos o suficiente?

– Você e seus outros irmãos são meus queridinhos, você sabe disso. - Ba-julou-o enquanto seu corpo tremia ao apertar seus grandes seios com a mão livre em busca de prazer. - Mas eu preciso concretizar meu objetivo, e nem que somem seus poderes conseguirão ajudar-me com isso...

– Mas e Filipos?

– Não fale sobre ele agora... Não em um momento tão prazeroso... - Seu corpo contorcia-se em busca do orgasmo. - Seu irmão foi uma decepção. Além do mais, ele era somente um...

Gemeu freneticamente. Suas pernas ficaram bambas e ela veio ao solo. Seu fi-lho tentou acudi-la antes que caísse e segurou-a por suas axilas enquanto suas pernas encharcadas com seu licor feminino dobravam-se.

– Apenas um peão. - Completou, por fim, a frase. - O verdadeiro rei entrou no tabuleiro. - Apontou com seus dedos melados para Iduna. - E eu serei sua rainha em breve...

Inclinaram mais vinte graus. Já estavam quase na metade do caminho para o olho do tornado aquático. Mal podiam mais permanecer de pé. Alguns agarra-vam-se às grades de segurança da embarcação. Qlon, por sua vez, permanecia atento à água. Tinha certeza que algo surgiria dali, as coisas não costumavam ser fáceis para ele. Tudo envolvia algum desafio, alguma charada.

– Agora! - Gritou a capitã percebendo que o momento havia chegado.

“As velas baixaram e o vento soprou com força total. Sairíamos pela tangente

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do movimento circular. Tudo corria como o planejado, até sentirmos um impacto mínimo na lateral do navio. A embarcação estremeceu. Voltei a olhar para água. Várias rochas pontiagudas haviam aparecido. Forçando um pouco mais a visão, notei que não eram simples pedras.”

– O que foi isso? - Berrou Odessa. - Vamos perder velocidade!

– São dentes, capitã! - O pequeno anjo berrou em meio ao caos que o con-vés havia tornado. - Dentes de uma criatura gigantesca! Vamos ter que manobrar para sair daqui.

– Liguem as hélices! - Ordenou a capitã aos seus subordinados. - Qlon, fi-que na proa e guie-me! O que sabe de angulação?

– O suficiente! - Berrou o anjo em meio ao tumulto.

Qlon subiu no gurupés e agarrou-se a uma corda para não ser derrubado com o balançar do navio. De lá, gritava uma angulação para a capitã sempre que via um dos grandes caninos da misteriosa criatura. De repente, um solavanco. As hélices presenteadas por Louis foram acionadas e Iduna adquiriu velocidade ex-tra para fugir da correnteza.

“Com isso ficou mais fácil e rápido deixar o lugar. As manobras ficaram, entre-tanto, mais arriscadas. O casco do navio já havia recebido um golpe e não sabía-mos a situação. A cada curva o navio passava a apenas alguns centímetros dos grossos rochedos pontiagudos. Mas o maior perigo não seria sair do vórtice. Se-ria o que estava por vir.”

O navio parecia ascender aos céus já na reta final do redemoinho. A inclinação era tamanha que os marujos precisavam ater-se a cordas e grade para ficarem na embarcação. As hélices nem mais tocavam a água: apenas o vento forte do outono continuava a soprar a embarcação. Mas quando a parte de baixo tocou na proa e, no horizonte, céu e água fundiram-se novamente, todos passaram a respirar aliviados.

– Argh! Quase fomos pegos. A capitã soltou o leme e caiu sentada no chão, suspirando enquanto a adrenalina corria pelo seu sangue.

Qlon correu imediatamente para a popa. Um sonoro rosnado fora ouvido en-quanto o redemoinho diminuía lentamente. Após passarem por maus bocados nos dormitórios, Jhon chegou seguido por Jinx e Sheena. Leon ainda vomitava. Ofegantes e desarrumados, claramente a viagem não fora tranquila para eles.

– Mas o que está acontecendo aqui? - Perguntou Jinx. - Da inclinação eu já sabia, mas o tremor...

– Preparem suas armas! - Gritou Qlon enquanto avistava algo emergir do antigo local do redemoinho. - O perigo ainda não passou!

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O mar parecia tremer. O que quer que estivesse saindo da água, não tinha ca-beça. Apenas um gigantesco corpo de minhoca, de pele cheia de algas e encrus-tada de rochas calcárias, ergueu-se da água apontando para o céu. De peque-nos poros ao longo de sua extensão, cuspia a água que era engolida, lavando a sujeira marinha de seu corpo. Sua ponta curvou-se mirando o navio. Parecia algo enrugado, mas, quando abriu-se, revelou ser uma enorme boca com dentes em espiral descendo sua garganta.

– É um vorme! - Gritou Odessa. - Continuem com as hélices acionadas! Vamos fugir da besta.

Qlon sabia que não seria assim tão fácil. Vários navios deveriam passar ali por mês – quem sabe por dia. Embarcações que naufragavam com seus homens ali-mentavam a gigantesca fera, então não era fome seu combustível. Não, não era preciso que mostrasse seus dentes. A incompetência alheia era o suficiente para manter seu estômago cheio. E nunca antes havia revelado-se antes, caso contrá-rio existiriam registros. Alguém teria notado. Parecia ser demais para uma sim-ples coincidência do destino. Com certeza mãos invisíveis manipulavam aquele fatídico encontro entre homens e besta. Claro, era apenas uma suposição, mas uma suposição que fazia sentido em sua cabeça.

– Não é só um monstro. - Uma voz misteriosa surpreendeu-os, surgindo das sombras. - O nome dele é Charybdis, uma besta mitológica usada antes para parar alguns heróis gregos no mar no estreito de Messina. É um monstro que esconde-se em fossas abissais e alimenta-se vorazmen-te de navegantes inexperientes.

A figura era imponente. Um alto homem de cabelos brancos e longos, com olhos amarelos como trovões que cortam as nuvens, apareceu. Qlon sentiu terror ao vê-lo. Era um demônio, por certo. Os outros sacaram suas armas, mas não ousaram atacar. Até mesmo Odessa apontou seu revólver para ele.

– Quem é você? - A capitã perguntou com a voz desafiadora. - E o que está fazendo em meu navio, Iduna?

– Mantenha sua arma no coldre, meretriz. - Sua grossa voz intimidou-a. - Se devo respostas a alguém, o único que precisa saber é esse garoto. - Com suas manoplas de aço de dedos articulados pontiagudos, apontou para Qlon.

Caminhou até ele vagarosamente e ajoelhou-se perante o mesmo, olhando-o nos olhos. Deveria ter dois metros e meio de altura de tão grande que era. Sua armadura, toda arranhada, ainda estava manchada de sangue e coberta com ins-crições rúnicas de um idioma que desconhecia. Seu hálito era fresco como neve e fedia a carne crua.

– Seu pai mandou-me aqui para protegê-lo de Lillith, e cuidar dele será mi-

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nha primeira tarefa. Mas deve-me um favor. - Começou a dizer em latim, de forma que ninguém mais entendesse do que falavam. Ergueu o rosto de Qlon com seu dedo indicador da mão esquerda e olhou-o ainda mais profundamente.

– Não preciso de proteção nenhuma. - Respondeu de forma provocativa colocando a mão no cabo de sua espada enquanto lágrimas ameaçavam escorrer de seu rosto sem saber o porquê.

– Mesmo? - Perguntou Furcas com uma voz irônica. - Nem conseguiu per-ceber minha presença agora a pouco, não é? Cheguei aqui enquanto ainda estavam no meio do Cabo da Honra. Se fosse Lillith, já poderia es-tar morto ou pior, ter sido capturado por ela. Sua sorte é que ela ainda quer testá-lo.

– Testar-me? - Perguntou com uma voz incrédula.

– Sejamos coerentes, Qlon. Por que acha que ainda está vivo mesmo após Lillith colocar os olhos sobre você? Ela quer alguma coisa contigo, e jul-gando pelo que conheço dela, nada de bom pode sair daí.

Qlon engoliu em seco. Seu guardião colocou-se de pé e retirou um crânio das dobras de sua armadura. Um crânio que parecia pertencer a um humanoide, com um chifre longo em seu topo. Arrancou sua mandíbula e segurou-a. Um grande escudo formou-se ao redor de sua mão, cobrindo seu flanco esquerdo. Do topo do osso, o chifre cresceu para os dois lados. Na parte de dentro formou um curto cabo e para fora formou uma lança cônica de ponta afiadíssima, com vários sul-cos em sua extensão. O crânio em si funcionou como uma guarda para aquela exótica arma. Retirou também seu elmo e vestiu-o. Caminhou a passos lentos até a popa e passou ao lado de Odessa. Olhou para ela com o canto dos olhos e foi o suficiente para que ela abaixasse a arma que mantinha apontada para ele. Subiu em cima da grade de segurança do convés e apontou a lança para o monstro, que soltava seus grunhidos enquanto via sua refeição desaparecer no vasto oceano.

– Fujam daqui enquanto ainda é tempo. As coisas tendem a ficar sangren-tas. - Soltou um sorriso por debaixo da proteção de seu elmo.

Qlon sacou sua espada. Não iria apenas olhar enquanto um enorme vorme ameaçava seus companheiros e, consequentemente, o decorrer de sua missão.

– Pretende vir comigo, garoto? - Perguntou Furcas ao ouvir a lâmina da Sanctus deixar sua bainha.

– Não tentará impedir-me?

– Eu? Sou um guardião, não uma babá. E se quer mesmo lutar, exponha logo suas asas. Não vai conseguir escondê-las por muito mais tempo de

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qualquer modo, e não pretende lutar nadando, não é mesmo?

– Furcas chegou, mãe. - O vulto avisou-a.

De longe, Charybdis era visto contorcendo seu corpo e armando o bote em cima do navio.

– Eu sei. - Respondeu secamente Lillith já sem o prazer em sua voz.

– Devo livrar-me dele?

– É ótimo ver essa atitude vinda de você, filho, mas... Você não daria con-ta, nem que quisesse.

– Mas, mãe... - Novamente pranteou o vulto.

– Sabe os quatro cavaleiros do apocalipse que foram mortos durante a guerra? - Perguntou Lillith passando a mão no rosto de seu filho.

– Sim, mãe. Lembro-me deles.

– Quem treinou-os foi Furcas.

– Vou deixar que voe na frente se quiser. - Disse Furcas enquanto Qlon su-bia na grade ao seu lado.

– Mesmo? - Qlon perguntou abrindo suas asas e espantando aqueles ao seu redor que ainda desconheciam seu segredo.

– Não sou um demônio que costuma mentir.

Qlon olhou para ele com o canto dos olhos. Já não via mais nada de seu rosto senão os olhos dourados e radiantes com a pupila extremamente dilatada. Sua mão apertava com força a lança. O jovem anjo pegou impulso e voou até o monstro, que parecia querer engoli-lo vivo. Quando estava a menos de cem me-tros dele, ouviu o vento assoviar ao seu lado. Uma enorme rajada desviou-o de sua rota jogando-o para o lado direito enquanto um brilho esbranquiçado atingiu o monstro, espalhando sangue esverdeado por cerca de um quilômetro ao redor da ferida. O golpe aplicado por Furcas, que mantinha-se imóvel em Iduna, varou o corpo da fera que soltou um urro de dor audível a léguas de distância. Fora tão forte que o navio pegou impulsão extra com a onda de vento gerada. Qlon ape-nas pôde olhar enquanto a criatura marinha recebia dezenas de golpes similares em diferentes partes do corpo enquanto manchava suas vestes com o espesso sangue jorrado. Charybdis simplesmente desabou com o seu próprio peso sobre o oceano, criando uma grande onda. Furcas nem saíra do lugar. Enquanto isso, gargalhava parado da ingenuidade de seu protegido...

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