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PAULO AUGUSTO PAZ BARROS O DIREITO CONSTITUCIONAL DA IMPUNIDADE: UMA (RE)ANÁLISE DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL A PARTIR DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO DEVER DE PROTEÇÃO SUFICIENTE FORTALEZA 2016

O DIREITO CONSTITUCIONAL DA IMPUNIDADE: UMA (RE)ANÁLISE … · 1 Samuel 7:12 da Bíblia Sagrada; ... Não passarão sobre os juízes e as ... O trabalho se inicia fazendo uma breve

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PAULO AUGUSTO PAZ BARROS

O DIREITO CONSTITUCIONAL DA IMPUNIDADE: UMA (RE)ANÁLISE

DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL A PARTIR DO PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DO DEVER DE PROTEÇÃO SUFICIENTE

FORTALEZA 2016

PAULO AUGUSTO PAZ BARROS

O DIREITO CONSTITUCIONAL DA IMPUNIDADE: UMA (RE)ANÁLISE

DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL A PARTIR DO PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DO DEVER DE PROTEÇÃO SUFICIENTE

Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade Sete de Setembro, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Professor Orientador: Dr. George Marmelstein Lima

FORTALEZA 2016

PAULO AUGUSTO PAZ BARROS

O DIREITO CONSTITUCIONAL DA IMPUNIDADE: UMA (RE)ANÁLISE

DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL A PARTIR DO PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DO DEVER DE PROTEÇÃO SUFICIENTE

Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade Sete de Setembro, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito. Data da aprovação: Fortaleza, 19 de dezembro de 2016. Banca Examinadora Assinatura: Prof. Dr. George Marmestein Lima Faculdade Sete de Setembro – Orientador Assinatura: Prof. Me. João Alfredo T. Mello Faculdade Sete de Setembro – Membro Assinatura: Profa. Dra. Juliana C. Diniz Campos Universidade Federal do Ceará – Membro

AGRADECIMENTOS

Um dos grandes privilégios que a FA7 me proporcionou foi o de me lembrar

todos os dias que se até aqui cheguei, foi porque tem me ajudado o Senhor1. Hoje

dou mais um passo em minha carreira jurídica, carreira essa que foi sonhada e

prometida pelo meu Deus muito cedo, e foi somente Nele que encontrei as forças

necessárias para prosseguir. Em tuas mãos, Deus da minha esperança, coloco minha

vida.

À minha mãe, Rosana André Paz Barros, que ainda muito cedo teve de

enfrentar dificuldades pelas quais jovem nenhuma deveria passar: a dor de, após uma

tragédia, ver-se órfã, sozinha, com uma filha e uma irmã mais nova para criar, mas

que pôde encontrar um Deus que tudo faz novo e, hoje, pôde construir, com amor e

sabedoria uma família unida que a ama e a admira.

Ao meu pai, Paulo Freire Barros, que devido às dificuldades e as faltas que

a vida o impôs, muito cedo teve de trabalhar duro, e desde então o vem fazendo. Ah,

quantas vezes vi o meu pai saindo às sete da manhã para chegar dez da noite,

trabalhando para que nada faltasse em nossa casa e para que hoje eu pudesse estar

aqui. Aproveito a oportunidade para deixar registrado o que nunca lhe disse

pessoalmente: por mais distante e quieto que pudesse parecer, eu sempre o estive

observando e aprendendo com seu exemplo; todo o aprendizado de trabalho duro,

honestidade e seriedade, que levo para minha vida, aprendi com o senhor.

À minha irmã, Fernanda Rafaela Barros, que mesmo sem ter tido as

oportunidades que eu tive, que para cursar sua faculdade trabalhou como caixa de

supermercado, pegando ônibus quase de madrugada, da Praia do Futuro até o

Antônio Bezerra, teve sucesso em sua carreira profissional, construiu sua família e

presenteou a minha casa com um dos nossos grandes amores, meu sobrinho Paulo

André.

Cada página de livro lida, cada tarde na biblioteca, não é para outra coisa

senão que um dia eu possa orgulhar e honrar cada um de vocês.

Aos meus amigos da faculdade, amigos da sala 20, que fizeram dessa

caminhada um caminho mais leve, desejo a vocês duas coisas: inicialmente, que

1 Samuel 7:12 da Bíblia Sagrada; mensagem posta no pátio do segundo andar da Faculdade 7 de Setembro.

tenham sucesso em suas carreiras e, não o digo tão somente pela boa vontade de um

amigo em querer ver o sucessos de seus colegas, mas também porque confio na

competência e caráter de cada um para trabalhar e lutar por um país e uma realidade

mais justa para o nosso povo; e também que nossas amizades não venham a se

resumir em cinco minutos de conversa numa segunda-feira devido a um encontro

esporádico nos fóruns, mas que continue sendo essa amizade de sábados à noite, do

compartilhamento das alegrias e das dores, como tem sido até aqui.

Tenho orgulho de afirmar que fui privilegiado durante minha experiência

profissional nesses anos de graduação. Ainda no início da faculdade com o Dr. Tibério

Augusto de Mello na Defensoria Pública do Estado do Ceará pude conhecer a

realidade miserável de tantos cearenses e como um servidor público comprometido

com o seu trabalho pode fazer a diferença na vida de pessoas; na Policia Federal com

o Delegado Cid Sabóia vi como a corrupção destrói a sociedade brasileira, como o ser

humano pode ser ruim e egoísta a ponto de tirar recursos essenciais daqueles que

menos têm para simplesmente satisfazer caprichos pessoais; e as Desembargadora

Maria Gladys Lima Vieira e Francisca Adelineide Viana e suas respectivas equipes,

muitos dos quais se tornaram verdadeiros amigos, com elas pude aprender como a

seriedade e qualidade profissional podem fazer a diferença para as vidas que existem

por trás de cada número de processo.

Agradeço ainda ao Procurador Regional da República Douglas Fischer pela

atenção e pela disponibilidade em me ajudar na elaboração deste trabalho.

E, por fim, aos meus professores, na pessoa de meu orientador George

Marmelstein, que souberam cativar em nossas almas admiração e respeito. Certa vez,

ouvi de um professor que ele amava a academia, porque dentro dela o direito sempre

é bom e justo, ao contrário do que, muitas vezes, encontra-se na prática jurídica.

Aprendi na graduação a amar o magistério e saio esperando, como uma das vertentes

de atuação, um dia, voltar para ele.

"O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos

navegantes dessas águas turvas de

corrupção e das iniquidades: criminosos não

passarão a navalha da desfaçatez e da

confusão entre imunidade, impunidade e

corrupção. Não passarão sobre os juízes e as

juízas do Brasil. Não passarão sobre novas

esperanças do povo brasileiro, porque a

decepção não pode estancar a vontade de

acertar no espaço público. Não passarão

sobre a Constituição do Brasil”

(Ministra Carmem Lúcia, no julgamento do ex-senador Delcídio do Amaral)

RESUMO

A partir de uma análise crítica, o presente estudo tenciona trazer à baila uma questão, muitas vezes, negligenciada pela doutrina, academia e jurisprudência, qual seja: o modo de aplicação, por vezes, demasiadamente garantista do direito penal. Destarte, analisando-se, brevemente, o contexto do homem no meio social, os fundamentos da teoria do direito penal e constitucional, pretende-se demonstrar que o garantismo não pode ser confundido com a impunidade, nos termos de que, a conciliação de todas as garantias constitucionais desenvolvidas e conquistadas pela sociedade no decorrer dos anos não devem servir de óbice a efetiva aplicação do direito penal, nos termos dos fundamentos e fins para o qual se objetiva. Nesse sentido, a partir de um aprofundado estudo hermenêutico, evidencia-se a importância do princípio constitucional ao dever de proteção suficiente, oportunidade na qual se fará um contraponto à decisões e posicionamentos doutrinários que não respeitam esse direito fundamental intrínseco a qualquer sociedade democrática de direito.

Palavras-chave: Direito constitucional. Impunidade penal. Proteção suficiente.

Garantismo.

ABSTRACT

From a critical analysis, this study tries to bring out a question to many times neglected by doctrine, academy, and jurisprudence, which is the way of application sometimes overly guaranteeist of penal law. This way, in a briefly analyzing the context of man in a social environment, the fundaments of penal and constitutional law theory, the study seeks to conciliate all constitutional guarantees developed and acquired by society through years with fundaments and goals to which intend the criminal science.

Keywords: Penal law. Constitutional law. Guaranteeist. Impunity. Obligation to protect.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

EVOLUÇÃO HISTÓRICA .......................................................................................... 15

1 O DIREITO PENAL ................................................................................................ 19

1.1 Evolução histórica do direito penal ...................................................................... 19

1.2 A teoria do garantismo penal de luigi ferrajoli ...................................................... 21

1.3 As visões do direito penal .................................................................................... 26

1.4 A teoria moderna do bem jurídico ....................................................................... 28

2 O DIREITO CONSTITUCIONAL ............................................................................ 33

2.1 Evolução histórica do direito constitucional ......................................................... 33

2.2 A teoria geral dos direitos fundamentais ............................................................. 37

2.3 O princípio constitucional do dever de proteção suficiente.................................. 41

2.3.1 Dos princípios ................................................................................................... 41

2.3.2 Do dever de proteção suficiente na doutrina e jurisprudência alemã. .............. 42

2.3.3 Do reconhecimento do princípio do dever de proteção suficiente na

jurisprudência nacional .............................................................................................. 45

2.4 O dever de proteção e os direitos humanos ........................................................ 46

3 O DEVER DE PROTEÇÃO SUFIENCIENTE EM QUESTÕES PRÁTICAS ........... 51

3.1 A seletividade nos julgamentos de crimes de colarinho branco .......................... 51

3.2 A execução provisória da pena ........................................................................... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 75

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 79

INTRODUÇÃO

Em um Estado democrático de direito, o direito penal se estrutura sobre a

égide da proteção aos bens jurídicos tidos como mais importantes para cada

sociedade. De tal modo que, observando-se certas garantias e procedimentos, o

dever de punir estatal deverá incidir sempre que houver afronta a esses valores

sociais.

A partir do desenvolvimento histórico do ideal constitucionalista e, mais

precisamente na realidade brasileira, da atribuição de força normativa à Constituição

Federal de 1988, grande parte dessas garantias encontra amparo na Carta Magna.

No exercício do Direito, por mais árdua que seja a tarefa hermenêutica, o

intérprete penal constitucionalista não pode empreender uma leitura do direito

constitucional que se contraponha a do direito penal. Esses dois institutos devem ser

lidos em consonância, a fim de se resguardar os direitos da sociedade e do indivíduo

considerado em si.

A efetivação desses pressupostos que são, sim, legítimos e urgentes, não

pode se prestar a afastar a aplicação do direito penal, nos estritos termos de sua

teoria.

Não se pode olvidar que o direito constitucional e, consequentemente, o

surgimento de seus pressupostos garantistas são intrínsecos à aplicação do direito

penal em qualquer democracia. Todavia, urge uma necessidade de equilíbrio, que,

muitas vezes, é esquecida. Afinal, não se corrobora com o estado meramente

penalista, tampouco com as teses que se aproximam do abolicionismo.

Assim, qualquer garantismo que constitua óbice à efetivação dos fins ao

qual o direito penal se presta, consubstanciar-se-á exagero.

Todavia, a problemática abordada se consubstancia na atual experiência

jurídica brasileira que tem demonstrado que, nesse exercício, muitas vezes,

encontram-se situações e defesas que atribuem às garantias constitucionais meio de

perpetrar a impunidade penal.

Com efeito, em razão das próprias consequências práticas que essa

discussão tem para a sociedade e devido a negligência que a academia tem dado ao

tema, justifica-se o presente estudo em razão da importância em se conciliar o

garantismo penal e o princípio constitucional do dever de proteção suficiente,

demonstrando-se o liame diferenciador dos argumentos que tendem para a

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impunidade.

Nesse sentido, o presente trabalho tenciona, como objetivo geral,

demonstrar que a tarefa do intérprete penalista se perfaz no fim de aplicar

proporcionalmente as garantias desenvolvidas e conquistadas pela sociedade,

através do tempo sem, contudo, utilizá-las como óbice à efetivação da tutela penal

para os fins aos quais se destina.

Como objetivos específicos, denota-se: a) uma breve pesquisa sobre a

evolução histórica do direito penal e da teoria do garantismo; b) um breve estudo sobre

a evolução histórica do direito constitucional e o surgimento do princípio do dever de

proteção suficiente, a partir da jurisprudência e doutrina alemã; c) a análise do aludido

princípio na jurisprudência pátria; d) a crítica aos casos concretos a partir da ótica do

aludido princípio.

Foi utilizando o método de abordagem dedutivo de pesquisa, por meio de

levantamento bibliográfico e da respectiva seleção; leitura e análise dos textos legais

e da pesquisa e estudo da jurisprudência nacional.

O trabalho se inicia fazendo uma breve análise da natureza social humana

e, consequentemente, do surgimento do Estado, perpassando por suas respectivas

teorias: 1) associação humana em coletividade como desdobramento da própria

essência do indivíduo ou 2) em decorrência de um contrato social, mas buscando

demonstrar que, independente de sua razão primordial, entre elas há um ponto em

comum, qual seja, o indivíduo vive em sociedade buscando proteção.

Destarte, o primeiro capítulo tenciona demonstrar a importância do direito

penal para garantir a segurança do indivíduo dentro dessa sociedade. Dessa forma,

analisa-se o nascimento do direito penal desde os postulados da vingança privada

nas sociedades primitivas, perpassando por suas primeiras codificações e a

consequente transferência do poder de punir para o Estado, chegando aos suplícios

e ao surgimento dos primeiros ideais garantistas, oportunidade na qual se faz uma

breve análise dos ensinamentos de Ferrajoli até finalizar na hodierna visão de bem

jurídico, defendendo-se sua analise à luz da Constituição.

O segundo capítulo se inicia com uma análise da evolução histórica do

direito constitucional, desde a visão da Constituição como mera carta política de

intenções até se atribuir ao seu texto força de norma jurídica.

Nessa perspectiva, aproveita-se para analisar a teoria das gerações dos

direitos fundamentais, fazendo-se um paralelo entre o surgimento dos direitos de

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primeira geração com o momento histórico do desenvolvimento das premissas da

teoria garantista e a sua consequente necessidade de atualização, em razão da

complexidade das relações sociais hodiernas, chegando-se, assim, ao

desenvolvimento do princípio do dever de proteção suficiente.

Ainda no segundo capítulo, analisa-se o nascimento do aludido princípio na

jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão e suas premissas doutrinarias,

evidenciando-se os ensinamentos de Robert Alexy, para então se estudar o seu

ingresso no ordenamento jurídico pátrio a partir da cláusula de abertura prevista no

art. 5º, §2º da Constituição Federal e a respectiva análise das decisões pátrias e de

direitos humanos na jurisprudência internacional que o reconhece de forma explicita

ou implícita.

Por fim, o terceiro capítulo busca aprofundar o estudo de questões práticas

sob a ótica do aludido princípio. Assim, pela própria importância do tema no contexto

social brasileiro2, faz-se uma análise de julgados que envolveram crimes de colarinho

branco, buscando-se demonstrar como a jurisprudência nacional tende a se utilizar de

posicionamentos benéfico aos réus, resguardando-se sob o argumento de um

pretenso garantismo, em crimes tipicamente cometidos pelos setores mais

financeiramente favorecidos da sociedade, tal como os crimes contra a administração

pública, enquanto tende a se utilizar de argumentos opostos quando se trata de um

acusado pobre.

O capítulo é finalizado através da análise da temática da execução

provisória da pena, tecendo-se comentários sobre as decisões do Supremo Tribunal

Federal em sede dos Habeas corpus 84.078-7 MG de 2008 e 12.6292/SP de 2016, a

partir do princípio do dever de proteção suficiente.

2 A título de esclarecimento, cita-se o fato que, já sobre a égide da Constituição de 1988, mais de 500 parlamentares foram investigados pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia somente após vinte e dois anos de estabilidade constitucional, em 2010, o povo brasileiro pôde vislumbrar a primeira condenação de um membro do Congresso Nacional. Desde então, dezesseis parlamentares foram condenados no curso de seus mandatos por diferentes crimes. Desses, cinco foram beneficiados com a declaração da prescrição, três recorrem em liberdade, oito cumpriram ou ainda cumprem suas penas e um está na prisão. Não suficiente, pode-se mencionar que de julho de 2013 até julho de 2015, sessenta e três procedimentos – dentre inquéritos e processos penais – foram arquivados por prescrição, beneficiando, ao menos, trinta e quatro dos cento e treze congressistas da atual legislatura. Dado obtidos a partir da matéria Suprema Impunidade da Revista Congresso em Foco, Brasília, n.18 p. 8-28, ago. 2015.

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Desde a antiguidade, diversos pensadores tentam explicar a natureza

social humana. Aristóteles, em sua visão política, vislumbra um homem que tenciona

seu interesse na projeção social em contraponto aos próprios objetivos individuais,

sendo o homem, assim, um animal eminentemente político que tem sua natureza

intrínseca à vida em sociedade (2000, p. 5).

Já no fim da Idade Média, surge São Tomás de Aquino, que a partir de sua

filosofia cristã, subdivide os preceitos normativos da conduta humana na lei de Deus

e dos homens. Nesse sentido, ele discorre sobre a lei humana como espécie de um

preceito natural, intrínseco a sua própria condição. Outrossim, preleciona que o

indivíduo poderia ir de encontro a essa situação natural de vida em sociedade somente

em hipóteses excepcionais, como nos casos de infortúnios – a exemplo de um

naufrágio –, corrupção mental – na qual a própria deficiência retira do indivíduo sua

capacidade de socialização – ou uma vocação natural – como nos casos de

sacerdotes que buscam a solidão em razão de uma maior espiritualização pessoal

(NARDER, 2014, p. 56).

Em Hobbes, encontra-se o exponencial da defesa do absolutismo, que, ao

contrário do pensamento aristotélico e tomista, refuta a tese de associação natural

dos homens, uma vez que, somente um contrato, portanto, uma forma artificial de

conjectura política, seria capaz de constituir uma sociedade. Para o autor, o homem

em um estado anterior à própria sociedade, que o denomina de natureza, viveria

inclinado à satisfação de suas próprias vontades, busca essa que fatalmente entraria

em conflito com a de seus semelhantes e, destarte, criaria um ambiente de incertezas

e medos, pois, nem sempre seria possível se defender contra todos. Surge então a

célebre frase de Hobbes: “Para falar imparcialmente, ambas as declarações são

verdadeiras: que o Homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do

próprio homem.” (2006, p. 9). Nesse sentido, para sua própria proteção, o indivíduo

transferiria sua liberdade individual para um soberano que, em troca, garantiria seu

bem-estar (HOBBES, 2006, p. 64-65).

O absolutismo encontrou outra defesa na teoria de Maquiavel, que inovou

ao elevar o patamar da existência e manutenção do Estado como o fim maior da busca

do príncipe. Há uma desvinculação da política e moral, uma vez que, o soberano

deverá usar de todos os meios necessários para se manter no poder.

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Pois um homem que, sob todos os aspectos, quiser levar adiante apenas o emprego da bondade, estará propenso a ficar arruinado em meio a tantos que são maus. Assim, um príncipe que queira se manter deve aprender a não ser sempre bom, mas, sê-lo ou não de acordo com a necessidade. (2008, p. 154-155)

Em face do absolutismo e em defesa da burguesia, no contexto da

Revolução Gloriosa de 1688, que pôs fim ao Absolutismo na Inglaterra, urge John

Locke. Este, contratualista, também vislumbra o homem em um estado de natureza

anterior à sociedade; todavia, difere do pensamento hobbesiano, pois, para ele, o

homem teria modos de compreensão de sua lei natural e não viveria em uma

conjectura bélica. Em sua concepção, malgrado a violência fosse uma exceção, que

se apresentasse como uma quebra a lei natural humana, ela seria possível e,

justamente devido à sua probabilidade, o indivíduo escolheria viver em a conjectura

social buscando proteção (2001, p. 83-84).

Ou seja, para ele, há direitos naturais inerentes ao homem e preexistentes

ao próprio Estado que, a seu turno, surge justamente a fim de protegê-los,

evidenciando a defesa da propriedade que, em sua visão, assume abrangência ampla,

tutelando a própria vida, a liberdade e os bens.

Destarte, contratualmente, o indivíduo transferiria sua liberdade para o

Estado, o qual, inclusive para garantir maior proteção à sociedade, deveria ser dividido

entre os poderes legislativo, executivo e federativo, dos quais deveria se sobressair o

legislativo, como representante primordial do povo (2001, p. 170). Vidal explica: “o

pactum societatis deixa de ser atribuído a um único homem (soberano), como na teoria

hobbesiana, e passa para um corpo político (Parlamento), que deverá organizar o

governo de acordo com os interesses sociais.” (2009, p. 34)

Rousseau também confere à propriedade papel primordial no surgimento

do Estado. Todavia, ao contrário do que preleciona Locke, constrói seu discurso

tecendo-lhe críticas, uma vez que, para ele, o homem seria naturalmente bom no

estado de natureza pois não almejaria nada além de suas necessidades; todavia, no

surgimento da propriedade privada, residiria o fundamento da infelicidade humana,

verbis:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,

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assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista [sic], essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos na sua ordem mais natural. (ROUSSEAU, 1989, p. 29-30)

Na verdade, a partir da propriedade, aqueles que deteriam o poder

prometem de forma enganosa aos pobres a garantia da ordem política como

instrumento de proteção a todos, quando na verdade serviria primordialmente para a

manutenção das estruturas de desigualdade. Mascaro explica: “O Estado e o direito

daí então se levantam, como enganação coletiva possibilitada por um contrato social

feito em face da guerra que arruinava os homens.” (2014, p. 192)

Rousseau vislumbra o Estado com temeridade, pois a própria exploração

da qual nasce a sociedade afeta a conjectura política de tal forma que corrompe o

homem de forma quase irreparável (1989, p. 45).

Em resumo, infere-se que tenham se formado as sociedades, por força

inerente ao caráter humano ou em decorrência de fatores externos, certo é que a

existência humana está intrinsecamente vinculada à vida em sociedade.

Em segundo lugar, percebe-se que o Estado surge, primordialmente, para

garantir proteção ao indivíduo. Nesse sentido, Jorge Neto preleciona: “a segurança é

a primeira razão de ser do Estado. Se não tivesse condições de fornecer outros

serviços públicos, o Estado deveria dar ao cidadão pelo menos a segurança.” (2016,

p. 80)

Contudo, justamente dentro desse convívio, há de se mencionar que, por

ser a vivência do indivíduo potencialmente conflituosa, e justamente como forma de

efetivar essa função estatal, faz-se necessário o surgimento do direito penal como

instrumento necessário para apaziguar as relações sociais.

1 O DIREITO PENAL

1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

O direito penal surge de forma naturalmente tirânica, pautando uma

estrutura social que sempre se prestou a defender o domínio dos mais poderosos

sobre os mais fracos. Todavia, com o passar das épocas, nas sociedades, o que se

muda é o conceito de poder. Neste ponto, Foucault defende que, na verdade, esse

ideal se relaciona com os modos de produção da economia, verbis:

Nessa linha, Rusche e Kirchheimer estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão de obra suplementar – e constituir uma escravidão "civil" ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais – sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção – o Hospital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis – o trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim corretivo. (2012, p. 28)

Nas sociedades ditas primitivas, nas quais inexistiam qualquer tutela

estatal, o direito penal perfazia-se na vingança privada. Ou seja, quando do

cometimento de crimes, a resposta dava-se pela própria vítima, por seus familiares,

ou pela comunidade, inexistindo qualquer parâmetro de proporcionalidade ou

retributividade, mas tão somente o senso de justiça pessoal do ofendido e o poder do

mais forte.

Quando da codificação do direito e do estabelecimento de padrões de

respostas punitivas, observa-se uma evolução natural do direito criminal. Esse

fenômeno é comumente celebrado no Código de Hamurabi, há 1800 a.C., na

Mesopotâmia, uma das primeiras formas de se estabelecer procedimentos de punição

do qual se tem notícia (MARMELSTEIN, 2013, p. 27-28).

Na Idade Média e Moderna, sob a égide do Feudalismo e posteriormente

do Absolutismo, evidencia-se a figura dos suplícios:

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[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que ai será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos a tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas. Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meus Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me”. (FOUCAULT, 2012, p. 9)

Na realidade, em um contexto de poder máximo atribuído ao governante,

há uma confusão entre a figura do príncipe e o Estado, de tal modo que, ao cometer

um delito, o criminoso não iria ao encontro, tão somente, da sociedade e do Estado,

mas também da própria pessoa do rei. Nesse sentido, a cerimônia dos suplícios não

deve ser vista meramente como uma reparação do dano, mas principalmente na

demonstração da força do príncipe (FOUCAULT, 2012, p. 48).

Essa ideia pode ser melhor percebida em todo o contexto que cerca a

cerimônia, qual seja o aparato militar, os arqueiros e sentinelas que atuam na

manutenção da ordem, para evitar uma rebelião popular, seja a favor ou contra o

condenado. Uma vez que, um levante desse porte fatalmente seria uma

demonstração de enfraquecimento do poder real (FOUCAULT, 2012, p. 50).

Destarte, a melhor forma desse Estado absoluto, personificado na figura do

Rei, demonstrar sua força seria sobre o próprio corpo do condenado, através das

cicatrizes, que serviriam para marcar a vítima, tornando-a infame, além de

desestimular o desrespeito às leis, trazendo à lembrança da sociedade o sofrimento

pelo qual aquele indivíduo passou (FOUCAULT, 2012, p. 36).

Com o surgimento do iluminismo e o consequente declínio do absolutismo,

que encontra seu apogeu na Revolução Francesa, ao final do século XVIII, urgem

diversos pensadores que se tornaram os precursores dos ideais constitucionais e,

destarte, do garantismo penal.

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Dentre eles se evidencia Beccaria, que ainda no século XVII inovou no

ordenamento jurídico em um contexto social ainda intrínseco àqueles suplícios

estudados por Foucault, trazendo ao direito criminal vários princípios e ditames que

hoje passam a ser fundamento de validade para as vertentes material e processual

dessa ciência.

Beccaria condena veementemente os suplícios, pois em sua visão, o

homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz. Ademais,

quando discorre sobre a tortura, preleciona que devido à sua dor, até o inocente

gritaria que é culpado, contrariando, assim, toda a finalidade do processo penal que

deve ser a busca da verdade (2012, p. 34-35).

No tocante à duração do processo, ele distingue os crimes hediondos, que

englobariam os homicídios, e os não hediondos, nos quais inclui os crimes menos

graves, aduz que para aqueles se deve diminuir o tempo da instrução, prolongando-

se o tempo da prescrição, pois: “por tal modo, que apressa a sentença definitiva, tira-

se dos maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quão maiores são

os crimes.” (2012, p. 41)

Ao discorrer sobre a inevitabilidade das penas, Beccaria assevera que na

prevenção dos crimes, a certeza da punição é mais eficaz do que o rigor da pena

(2012, p. 59), e conclui seu livro com o célebre trecho que hoje é adotado em quase

todos os ordenamentos jurídicos dos estados democráticos de direito:

É que para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionadas ao delito e determinadas pela lei. (2012, p. 99)

1.2 A TEORIA DO GARANTISMO PENAL DE LUIGI FERRAJOLI

Em 1989, Ferrajoli – à época magistrado italiano e professor da faculdade

de Direito da Universidade de Camerino – através da consolidação de suas pesquisas

em direito penal, consagradas em sua obra “Direito e Razão: Teoria do Garantismo

Penal”, firmou uma nova ótica jurídica tida pelos ordenamentos modernos como baliza

para a efetivação daquilo que se entende por garantismo.

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Sua obra pode ser entendida como uma condensação do pensamento de

matriz liberal e iluminista dos séculos XVI, XVII e XVIII que, ao modo de Beccaria,

debruçou-se sobre os pressupostos do direito penal em um estado de direito.

Nos séculos XVI e XVII o direito penal foi o terreno principal sobre o qual vem se delineando o modelo do Estado de direito. É com referência ao despotismo punitivo que o jusnaturalismo iluminista desenvolveu suas batalhas contra a intolerância política e religiosa e contra o arbítrio repressivo do ancién régime. E é sobretudo através da crítica dos sistemas penais e processuais que se vem definindo, como veremos, os valores da civilização jurídica moderna: o respeito da pessoa humana, os valores “fundamentais” da vida e da liberdade pessoal, o nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e moral, a tolerância, a liberdade de consciência e de expressão, os limites da atividade do Estado e a função de tutela dos direitos dos cidadãos como sua fonte primária de legitimação. (2014, p. 17)

Frise-se que, devido à forte influência do pensamento liberal que sofre

Ferrajoli, toda sua concepção de garantismo parte do mesmo pressuposto do qual

partiram os iluministas, qual seja, uma concepção de atuação estatal em sentido

negativo.

Afinal, esses pensadores se levantaram justamente para combater as

arbitrariedades e excessos, vistos principalmente no âmbito do direito penal, razão

pela qual a concepção de liberdade desenvolvida por eles parte do pressuposto de

limitação do poder estatal, através de um comportamento omissivo, diante das

liberdades do indivíduo (STRECK, 2008, p. 21). Desta feita, Norbeto Bobbio, no

prefácio da obra de Ferrajoli, entende que o foco do garantismo atua na “tutela das

liberdades do indivíduo frente as variadas formas de exercício arbitrário do poder,

particularmente odioso no direito penal.” (2014, p. 7)

Quanto à sua concepção de garantismo propriamente dita, Ferrajoli traça

uma tabela na qual elenca dez axiomas, os quais formariam, em sua observância, um

sistema penal perfeito, que deveriam atuar nos dois principais momentos do processo

de criminalização, quais sejam, a prática legislativa (criminalização primária) e a

aplicação da lei ao caso concreto (criminalização secundária).

Os princípios são: 1) Nulla poena sine crimine, 2) Nullum crimen sine lege,

3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate, 4) Nulla necessitas sine injuria, 5) Nulla injuria

sine actione, 6) Nulla actio sine culpa, 7) Nulla culpa sine judicio, 8) Nullum judicium

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sine accusatione, 9) Nulla accusatio sine probatione, 10) Nulla probatio sine

defensione3 (FERRAJOLI, 2014, p. 91).

Faz-se pertinente salientar que o próprio autor reconhece que dentro de

uma sociedade complexa, a observância plena, em um plano abstrato e concreto,

desses princípios se perfaz como uma utopia, afinal: “Trata-se de um modelo-limite,

apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfazível.” (FERRAJOLI, 2014, p.

91)

Ferrajoli explica ainda que esses princípios estão sistematizados e

relacionados entre si (2014, p. 89) e o seu grau de observância em cada sistema penal

pode ser analisado a partir de subtrações sucessivas desses axiomas (2014, p. 95),

resultando, assim, em sistemas penais que podem ser resumidos em nove, quais

sejam: 1) sem prova e defesa, resultado da subtração dos princípios do ônus da prova

e do direito de defesa (2014, p. 95); 2) sem acusação separada, fruto da retirada dos

princípios da imparcialidade do juiz e de sua separação da acusação (2014, p. 96); 3)

sem culpabilidade, resultante da desnecessidade de intencionalidade do delito (2014,

p. 97); 4) sem ação, que carece da garantia da materialidade da ação (2014, p. 97-

98); 5) sem ofensa, privado da lesividade do fato (2014, p. 97-98); 6) sem

necessidade, que não se atém ao princípio da economia do direito penal (2014, p. 99);

7) sem delito, que carece do primeiro axioma (2014, p. 99-100); 8) sem juízo, no qual

se olvida a jurisdicionariedade (2014, p. 99-100) e 9) sem lei, que não observa o

princípio da legalidade (2014, p. 99-100).

Ademais, evidencia a importância em subdividir as garantias em

substanciais e instrumentais, nos termos de que, “ao subordinar a pena aos

pressupostos substanciais do crime – a lesão, a conduta e a culpabilidade –, são tanto

efetivas quanto mais estes forem objetos de um juízo em que sejam assegurados ao

máximo a imparcialidade, a verdade e o controle.” (2014, p. 432)

3 Esses axiomas representariam para Ferrajoli, respectivamente, o princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; princípio da legalidade; princípio da necessidade ou da economia do direito penal; princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; princípio da jurisdicionariedade; princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; princípio do ônus da prova ou da verificação e o princípio do contraditório ou da defesa.

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Por fim, vale mencionar que o garantismo é entendido sob três óticas,

inicialmente, como modelo normativo pertinente ao próprio Estado democrático de

direito que:

Sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. (FERRAJOLI, 2014, p. 786)

Parte então para o analisar como teoria do direito, no qual explica:

Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, põe como questão teórica central a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentementes garantistas) e práticas operacionais (tendentementes antigarantistas). (FERRAJOLI, 2014, p. 786)

E continua:

Uma aproximação tal não é nem puramente “normativa” nem puramente “realista”: a teoria que esta é hábil a fundar, precisamente, é uma teoria da divergência entre normatividade e realidade, entre direito válido e direito efetivo, um e outro vigentes. (FERRAJOLI, 2014, p. 786)

Em arremate, expõe o garantismo como filosofia política que:

[...] requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem finalidade. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. (2014, p. 787)

Mais uma vez, vale ressaltar, como clara demonstração das influências

iluministas, em Ferrajoli a concepção de garantismo que pressupõe o distanciamento

entre direito e moral (2014, p. 788). Na realidade, a concepção de garantismo deve-

se fundar na crítica do direito positivo no que diz respeito aos seus parâmetros de

legitimação, sejam externos ou internos, e das ideologias políticas e jurídicas que o

fundamentam (2014, p. 799).

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O modelo garantista de Ferrajoli deve ser lido como objetivo a ser

alcançado pelos Estados a fim de se atingir uma democracia substancial plena,

embora se deva saber que sua efetivação perfeita se torna impossível em sociedades

complexas, malgrado isso não sirva de óbice para o seu estabelecimento, mormente

no plano legislativo, e na busca cotidiana de sua efetivação. Nesse sentido, afirmou

Noberto Bobbio ao prefaciar a obra “Direito e Razão”: “para constituir uma meta, o

modelo deve ser definido em todos os aspectos. Somente se for bem definido, poderá

servir também de critério de valoração e de correção do direito existente.”

(FERRAJOLI, 2014, p. 9)

As ideias do ilustre autor constituem inegável avanço para a seara penal,

embora em alguns pontos não seja imune a críticas4. Todavia, observando o seu ponto

máximo, qual seja, os axiomas de efetivação de sistemas penais garantistas, observa-

se que por mais dotados de um conteúdo de abstenção estatal que são, nenhum deles

podem ser confundidos com a legitimação para a impunidade.

Um modelo ideal de processo penal deve buscar a tutela desses axiomas

mediante uma leitura proporcional e racional. Desta feita, assevera Douglas Fischer:

Segundo Ferrajoli, a sujeição do juiz à lei já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja seu significado, mas sim sujeição à lei enquanto válida, vale dizer, coerente com a Constituição. Deflui daí ser imperioso ao juízo que faça uma análise crítica das leis, (re)interpretando-as sob o filtro dos conteúdos axiológicos da Constituição. Precisamente por intermédio dessa análise crítico-valorativa é que, de modo eficaz, se estará utilizando de meio adequado para o controle da legitimidade constitucional – ou não - das regras de grau inferior, como corolário de um sistema que ancora seus pilares em um Estado Social e Democrático de Direito. (2006, p. 199)

O direito penal nunca poderá se satisfazer com a apenação de um provável

culpado – nisso as garantias constitucionais têm importância primordial, a fim de

estabelecer padrões mínimos na busca e na consolidação dessas certezas – pois, a

condenação de um provável culpado potencialmente deságua na apenação de um

4 PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do Garantismo - uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas considerações críticas. In: SANTOS, Rogério Dultra dos. Introdução crítica ao estudo do sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 117-127. FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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inocente e na impunidade do criminoso, culminando no descrédito da Justiça e no

próprio enfraquecimento da proteção (DAMASCENO, 2005, p. 75).

Todavia, quando se observando o devido processo legal, chegar-se a

certeza dos fatos e ao, consequente, estabelecimento de pena, deve-se poder efetivá-

la de forma essencial e proporcional ao delito, pois qualquer outra solução constituirá

a impunidade.

1.3 AS VISÕES DO DIREITO PENAL

A partir do que preleciona a hermenêutica existencial, da qual se

sobressaem os alemães Heidegger e Gadamer como seus defensores, não há como

se dissociar qualquer tipo de interpretação, mormente as textuais, da própria forma de

ver o mundo individual do intérprete. Nesse sentido, conforme expõe Magalhães Filho,

a compreensão do texto condiciona-se a preconceitos e prejuízos intrínsecos a

qualquer individualidade humana (2011, p. 11-12).

Destarte, a fim de melhor se entender as discussões que envolvem

diversos temas atinente ao direito penal material e processual, faz-se pertinente

compreender as duas principais formas de visão dessa ciência: as correntes do

abolicionismo penal e do direito criminal máximo.

A primeira vertente, idealizada por Filippo Gramatica, surgiu após a

Segunda Guerra Mundial em Gênova no ano de 1945, a partir da ideia de

deslegitimação do direito penal, nos termos de Greco, em razão do que se expõe:

A crueldade do Direito Penal, a sua natureza seletiva, a incapacidade de cumprir com as funções atribuídas às penas (reprovação e prevenção), a característica extremamente estigmatizante, a cifra negra correspondente às infrações penais que não foram objeto de persecução pelo Estado, a seleção do que deve ou não ser considerado como infração penal, bem como a possibilidade de os cidadãos resolverem, por meio dos outros ramos do ordenamento jurídico (civil, administrativo, etc.), os seus conflitos interindividuais […]. (2010, p. 8)

A crítica dos abolicionistas parte da desconstrução do direito criminal a

partir da própria ideia de crime, conforme asseveram Hulsman e Celis:

Não se costuma perder tempo com manifestações de simpatia pela sorte do homem que vai para a prisão, porque se acredita que ele fez por merecer. "Este homem cometeu um crime'' – pensamos; ou, em

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termos mais jurídicos, "foi julgado culpável por um fato punível com pena de prisão e, portanto, se fez justiça ao encarcerá-lo". Bem, mas o que é um crime? O que é um “fato punível”? Como diferenciar um fato punível de um fato não punível? Por que ser homossexual, se drogar ou ser bígamo são fatos puníveis em alguns países e não em outros? Por que condutas que antigamente eram puníveis, como a blasfêmia, a bruxaria, a tentativa de suicídio, etc., hoje não são mais? As ciências criminais puseram em evidencia a relatividade do conceito de infração, que varia no tempo e no espaço, de tal modo que o que é "delituoso" em um contexto é aceitável em outro. Conforme você tenha nascido num lugar ao invés de outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível – ou não – de ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que é. Não há nada na natureza do fato, na sua natureza intrínseca, que permita reconhecer se se trata ou não de um crime – ou de um delito. (1993, p. 63-64)

Em síntese, pode-se afirmar que a teoria abolicionista eleva a dignidade da

pessoa humana do preso ao ponto de se abolir o próprio direito penal, deixando os

conflitos sociais para serem tutelados pelos demais ramos do ordenamento jurídico.

Contrapondo-se, advém o direito penal máximo conhecido pelo movimento

Lei e Ordem, que advoga caber ao direito penal a resolução de todos os males sociais,

vendo na ciência criminal uma tutela global, independentemente de sua importância.

Nesse sentido: “procura-se educar a sociedade sob a ótica do Direito Penal, fazendo

com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as consequências

graves desse ramo do ordenamento jurídico.” (GRECO, 2010, p. 15)

Seus ideais podem ser vistos claramente nas palavras de Dahrendorf, um

dos defensores dessa visão, in verbis:

Uma teoria penal que abomina a detenção a ponto de substituí-la totalmente por multas e trabalho útil, por ‘restrições ao padrão de vida’, não só contém um erro intelectual, pois confunde lei e economia, como também está socialmente errada. Ela sacrifica a sociedade pelo indivíduo. Isso pode soar a alguns como incapaz de sofrer objeções, até mesmo desejável. Mas também significa que uma tal abordagem sacrifica certas oportunidades de liberdade em nome de ganhos pessoais incertos. Ser gentil com infratores poderá trazer à tona a sociabilidade escondida em alguns deles. Mas será um desestímulo para muitos, que estão longe do palco criminoso, de contribuir para o processo perene de liberdade, que consiste na sustentação e na modelagem das instituições criadas pelos homens. (1997, p. 109)

Ou seja, o direito penal passa a exercer a prima ratio do ordenamento

jurídico, não corroborando com qualquer conduta contrária aos bens sociais

entendidos de maneira ampla, uma vez que, em qualquer afronta deverá incidir o

direito penal, entendido restritamente como o encarceramento.

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Atualmente, uma das críticas que se faz ao uso do direito penal mínimo,

entendido como desdobramento do abolicionismo, é o uso ideológico que se faz dele,

segundo Moraes apud Damasceno:

É uma curiosa coincidência que esse movimento da intervenção mínima tenha ganho incremento exatamente na fase em que o Direito Penal está se democratizando, exatamente na fase em que o Direito Penal está deixando de alcançar tão somente aqueles delinquentes [sic] etiquetados seletivamente, que constituem a clientela tradicional do sistema repressivo. Na hora em que o Direito Penal começa a se voltar contra uma outra clientela, a que pratica crimes contra a ordem econômica e contra a economia popular, fala-se em descriminalização, despenalização, desjudicialização. (2005, p.29)

Na realidade, a leitura que o intérprete fará do direito penal se relaciona

com a ótica de sua construção ideológica, seja ela mais afeta ao direito penal máximo

ou mínimo. Não há qualquer problema nessa divergência, ao contrário, ela é salutar

para a construção e o aprimoramento de um direito penal democrático. Todavia, a

partir do momento que se entende que o direito criminal deve servir a sociedade, é

necessário que se tenha cuidado para não se corroborar com discursos jurídicos que

tendem a tutelar interesses particulares em detrimento do verdadeiro interesse social5.

1.4 A TEORIA MODERNA DO BEM JURÍDICO

Greco entende como bem jurídico, em um estado democrático, a seleção

que o povo – através de seu parlamento – faz dos valores mais importantes para o

convívio social (2012, p. 2). A seu turno, Streck preleciona que: “o conceito de bem

jurídico seria, assim, a categoria jurídica utilizada para explicitar os valores sociais

protegidos pelo Direito Penal.” (2001, p. 56)

Essa concepção deve ser lida em consonância com o fato de a Constituição

garantir proteção aos próprios bens jurídicos sociais, destarte: “o direito penal não

pode mais ser visto tão somente como um conjunto de normas tendentes a limitar o

poder punitivo estatal, mas também como um instrumento dirigido à proteção dos

direitos fundamentais.” (DAMASCENO, 2005, p. 32-33)

5 Por exemplo, data maxima venia, não há como se concordar com o Procurador da República e Ex-Ministro da Justiça Eugênio Aragão quando defende que a Operação Lava Jato poderia constituir um risco à economia do país e que, em muitos casos, a corrupção é boa. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/923/essa-garotada-do-mpf-nao-tem-a-minima-nocao-de-economia> Acesso em: 23 out. 2016.

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É de se frisar que a sociedade, justamente por ser mutável, tende a

transformar suas concepções inclusive sobre aquilo que entende por bens jurídicos.

Nesse sentido, a título exemplificativo, pode-se citar a edição da Lei nº 11.106, de 28

de março de 2005, que revogou os crimes sedução, rapto e adultério, tipos penais

intrínsecos a uma sociedade patriarcal, na qual foi editado o Código Penal na década

de 1940, e em que a mulher assumia um papel social diferente do visto hodiernamente

(GRECO, 2012, p. 2-3).

Todavia, não se pode olvidar que – mormente em um contexto de Estado

norteado por um ordenamento jurídico que finca suas bases no constitucionalismo –

a tarefa de escolha desses bens jurídicos não é dotada de discricionariedade ampla

conferida aos legisladores, uma vez que, deve transpassar duas fronteiras, quais

sejam: o princípio da ultima ratio do direito e penal e as balizas constitucionais

efetuadas pela própria Constituição Federal.

Inicialmente, no que atine ao princípio da ultima ratio (também conhecido

como da intervenção mínima) é de se verificar que sua relevância diz respeito à

própria força da qual é dotada o direito penal.

Afinal, é cediço que de todos os meios coercitivos dos quais o direito é

dotado, o encarceramento – expressão máxima do penalismo – é o mais nefasto para

o indivíduo, por melhores condições que apresente. Justamente, por esse motivo, o

direito penal deve atuar tão somente quando bens jurídicos de relevância sejam

atingidos, devendo-se evitar a criminalização de condutas que possam ser tuteladas

por outros ramos do direito (GRECO, 2012, p. 48).

Damasceno segue o mesmo sentido quando defende que:

Tomando a sanção penal como a mais severa restrição de direitos que pode o Estado submeter o indivíduo, correspondendo em grave limitação ao direito à liberdade, o recurso a ela só se faz legítimo se se der com o escopo de preservar outros bens tão relevantes contra agressões também consideradas graves. (2005, p. 25)

Portanto, o princípio da intervenção mínima deverá atuar em dois

momentos, inicialmente no campo legislativo, quando da escolha dos bens que

realmente necessitam de proteção penal e, consequentemente, da descriminalização

de condutas que não mereçam tal tutela. Em um segundo momento, quando da

própria atividade jurisdicional, oportunidade na qual o intérprete penal deverá analisar

a própria lesividade da conduta, a fim de verificar se a conduta realmente

30

consubstancia aquilo que a doutrina entende como a tipicidade conglobante (GRECO,

2012, p. 159).

Já no que atina as balizas constitucionais, percebe-se que a Constituição

possui a função de direcionar a escolha dos bens jurídicos de relevância,

determinando a proteção de determinados valores enquanto proíbe a criminalização

de outros. A título de exemplo, pode-se citar o art. 5º, caput, verbis:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988)

Ou seja, quando o aludido dispositivo determina a proteção aos bens

jurídicos ali relacionados, surge um dever de atuação positiva do legislador em

protegê-los. Nesse sentido, por exemplo, a tipificação prevista no capítulo um da parte

especial do Código Penal – dos crimes contra a vida – não se torna mera

discricionariedade legislativa, mas verdadeiro dever de proteção, sendo cabível

inclusive a ação de inconstitucionalidade por omissão diante da inércia legislativa

(DAMASCENO, p. 37, 2005).

Veja-se que a partir desse pressuposto, pode-se chegar à conclusão que,

embora diante de um plano meramente legal fosse possível a revogação de crimes

como o homicídio ou de estupro, previstos respectivamente nos artigos 121 e 213 do

Código Penal, a partir dessa leitura, observa-se que devido à inconstitucionalidade

inerente a sua matéria, tal descriminalização se perfaz como impossível (STRECK,

2008, p. 31-32).

Do mesmo modo, quando os incisos VI e VII do artigo 5º da Carta Magna

asseguram a liberdade religiosa e de pensamento, há um óbice constitucional à

criminalização de diversos tipos de condutas inerentes a um estado liberal

democrático, sendo cabível, na afronta, o controle de constitucionalidade, seja pela

vida direta ou incidental.

Damasceno vai além e traz a questionamento um caso prático pertinente

ao art. 34 da Lei nº 9.246/95, quando o legislador descriminalizou a sonegação fiscal,

ao adotar a reparação civil antes do recebimento da denúncia como causa de extinção

da punibilidade, verbis:

E se se tomar, como exemplo, a descriminalização das grandes

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fraudes fiscais, com a instituição do afastamento da pena pela mera reparação civil antes do processo? A retirada dessa cobertura se mostra de acordo com a Constituição Federal de 1998? Deve-se primeiro verificar se a Constituição instituiu uma “ordem tributária justa” (segundo o princípio da igualdade material) como meio para a consecução dos próprios fins do Estado brasileiro, o que levaria à conclusão de ser, ou não, referido bem digno da proteção penal. Posteriormente, há que se verificar se as grandes fraudes tributárias provocam lesões gravíssimas à ordem tributária e se a ameaça de sanção patrimonial é capaz de inibir a ganância dos grandes sonegadores, convindo perquirir, quanto a isto, se elas não seriam (são) computadas como meros custos do empreendimento ilícito, se o grande sonegador hoje frauda o Fisco como se estivesse agindo na mais perfeita legalidade, considerando o valor sonegado acrescido de multa e juros, como passível perda, fazendo cotejo com o a probabilidade de ser fiscalizado (algo como a opção por fazer ou não um seguro). Concluindo nesse sentido, tem-se claramente a “descriminalização” das grandes fraudes fiscais com inconstitucional. [destacou-se] (DAMASCENO, 2005, p. 38)

Neste ponto, mais uma vez, vê-se claramente a ideia de “missão secreta”

do direito penal defendida por Nilo Batista, que conforme ensina Streck, pode ser

sintetizada na máxima: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos.” (2001,

p. 56). Nesse sentido, Streck ainda defende:

Vê-se, pois, como é (bem) tratado o sonegador e como é (mal) tratado, p. ex., um ladrão de bicicleta ou de galinha, para o qual, se devolvida sponte sua a res, antes do recebimento da denúncia, restará, tão somente, uma diminuição na pena (art. 16 CP). Por que isto? Por que no Brasil tem leis que são feitas para os que aparecem na Revista Caras e leis que são feitas para os que aparecem no Notícias Populares[...]. (2001, p. 59-60)

A partir dos próprios exemplos citados alhures, vê-se que muitas dessas

balizas dizem respeito a própria natureza dos direitos fundamentais, malgrado não se

exauram em seu rol, podendo ser encontradas em todo o corpo constitucional e,

mesmo, implicitamente e decorrentes de princípios adotados pela Carta, nos termos

do que aduz a cláusula de abertura constitucional prevista no parágrafo segundo do

aludido artigo 5º. Nesse sentido, lembra Streck que: “o legislador penal pode vulnerar

os direitos fundamentais quando a severidade de suas previsões não chega a oferecer

uma proteção suficientemente satisfatória e efetiva.” (2008, p. 35)

Por sua vez, Damasceno explica que na atuação legislativa criminal

pautada pela Constituição, o legislador deve observar uma pequena área na qual a

tutela penal é exigida pelo ordenamento jurídico, enquanto há outra área na qual a

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tutela é vedada, situando-se entre esses campos, de forma até imprecisa, a margem

discricionária do legislador (2005, p. 36-37).

Faz-se mister observar mais uma questão, qual seja, a função dirigente e

o caráter social da Constituição Federal de 1988. Tal ponto será melhor analisado

adiante. Todavia, por ora, pode-se mencionar que a partir da noção de normativismo

constitucional em um plano máximo do ordenamento jurídico brasileiro aliado à

valorização de direitos coletivos, ligados aos direitos de terceira geração, ambas as

características inerentes à atual Carta Magna, haverá uma clara influência na escolha

a esses bens jurídicos. Streck preleciona:

A Constituição, ao assumir uma função compromissória e dirigente, preocupada em construir uma sociedade solidária, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais, não pode situar os bens jurídicos eleitos como merecedores de tutela penal em um âmbito individualista, mormente porque isso seria incompatível com os preceitos do texto constitucional. A partir dessa ideia, os bens jurídicos não podem ser vistos apartados do todo constitucional, compreendidos pelos preceitos e princípios formadores do Estado Democrático de Direito. Afinal de contas, já está mais do que na hora de entendermos que é a Constituição a responsável por eleger aqueles bens jurídicos dignos de tutela penal, bem como nortear a dogmática penal para uma compreensão supra-individual do direito. (2008, p. 30-31)

Há, destarte, uma valorização dos bens jurídicos inerentes à coletividade,

razão pela qual tanto o legislador criminal deverá levar em consideração essa escolha

do constituinte, quando da tipificação de condutas e o consequente estabelecimento

das penas, como o intérprete penal deverá considerá-la quando da atribuição da pena,

razão pela qual, nesse contexto, devem ser evidenciados crimes que afetem a

generalidade de grupos, como a discriminação, ou mesmo, aqueles cometidos contra

a administração pública e o erário.

2 O DIREITO CONSTITUCIONAL

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL

Atenas foi o berço do ideal democrático e constitucional, historicamente,

responsável pelo primeiro grande precedente de limitação do poder político, afinal na

polis, havia o “governo de leis, e não de homens”; os então cidadãos, por meio das

Assembleias que se reuniam nas Ágoras e, assim, diretamente comandavam a

administração de sua cidade (BARROSO, 2013, p. 28). Esse fundamento, ainda, foi

compartilhado por Roma, ocasião na qual, com a República, surgiu a Lei das Doze

Tábuas. Barroso, em seu livro, cita um dos fragmentos dessa Lei, qual seja: “salus

populi suprema lex esto,” (2013, p. 29) que pode ser entendido como o bem-estar do

povo é o bem-estar supremo, vislumbrando-se, assim, uma total conformidade com a

garantia de direitos do povo

Entretanto, é a partir do período compreendido entre o fim da Idade Média

e o começo da Idade Moderna que surge o pressuposto para o desenvolvimento do

constitucionalismo, tal como se concebe hoje. Afinal, é no absolutismo que o poder,

até então descentralizado nas mãos dos senhores feudais, passa a concentrar-se nas

mãos do soberano.

Ou seja, é justamente devido a essa força desenfreada atribuída ao

príncipe que se evidencia a necessidade de limitação do poder e garantia de direitos,

através da supremacia da lei que atualmente se consubstancia como pressuposto dos

ideais constitucionais modernos (BARROSO, 2013, p. 27).

Bonavides, discorrendo sobre a necessidade da limitação do poder a partir

da definição de soberania, assevera:

Mas, como o Estado é o monopolizador do poder, o detentor da soberania, o depositário da coação incondicionada, torna-se, em determinados momentos, algo semelhante à criatura que, na imagem bíblica, se volta contra o criador. (2007, p. 41)

Esse fenômeno de limitação do poder e o consequente nascimento do ideal

constitucionalista é comumente celebrado na assinatura da Magna Carta, em 1215,

pelo rei João Sem-Terra, quando vencido na guerra que travava no continente, em

especial na Batalha de Bouvines, contra a França. Esse fato, aliado à crescente força

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política dos barões feudais, obrigou-o a submeter seu poder, até então absoluto, ao

aludido documento jurídico (BARROSO, 2013, p. 32).

Originalmente, esse documento garantia aos barões direitos relativos à

propriedade, à tributação e às liberdades, inclusive religiosa. Entretanto, devido à

amplitude de seus termos, permitiu que assumisse um caráter garantista mais amplo,

fazendo parte, até os dias de hoje, daquilo que se entende por ser a Constituição

Inglesa (BARROSO, 2013, p. 32).

Nasce, assim, a primeira ideia concreta do que se entende como

Constituição por dizer respeito justamente àquilo que se vislumbra como o

fundamento de seu conteúdo material, qual seja, mais uma vez, a limitação do poder

e a garantia de direitos.

Todavia, na Inglaterra, a luta por direitos não findou nessa época. Afinal, a

partir do momento que o povo percebe que o poder estatal existe em razão da

sociedade, e não que a sociedade existe em razão do governo, descobre que não há

força maior do que aquela existente na sua união.

Com efeito, percebe-se que na Inglaterra, essa realidade se mostrou

exemplarmente pois a partir da Magna Carta, diversos outros direitos foram

conquistados em outras cartas jurídico-políticas, tais como: a Petição de Direitos de

1628, o Acordo do Povo de 1647, o Instrumento do Povo de 1653, o Ato de Habeas

Corpus de 1679, a Declaração de Direitos de 1689, o Ato do Parlamento de 1911, o

Estatuto de Westminster de 1931 (BARROSO, 2013, p. 33).

Barroso, ainda, sintetiza:

Fruto de longo amadurecimento histórico, o modelo institucional inglês estabeleceu-se sobre raízes tão profundas que pôde prescindir até mesmo de uma Constituição escrita, sem embargo da existência de documentos relevantes de natureza constitucional. Embora a Revolução Inglesa não tenha tido o tom épico e a ambição e os propósitos da Revolução Francesa, o modelo inglês projetou sua influência sobre diversas partes do mundo, diretamente ou indiretamente (através dos Estados Unidos). (2013, p. 32-34)

Dentro dessa ótica, faz-se imprescindível analisar outro ordenamento

constitucional diretamente influenciado pelo inglês, o dos Estados Unidos da América.

Nesse contexto, evidencia-se o fato de que a independência norte-americana da

colonização inglesa resultou na primeira constituição escrita do mundo, fundamentada

na independência das colônias, na superação do modelo monárquico e na

35

implementação de um governo constitucional, pautado na separação de poderes, na

igualdade e na supremacia da lei (BARROSO, 2013, p. 39).

Nada obstante o seu pioneirismo, o constitucionalismo americano

encontrou seu exponencial ao proclamar a supremacia das normas constitucionais

que serviriam inclusive, conforme ensina Jânio Nunes Vidal, “de parâmetro de aferição

da validade das demais normas produzidas pela legislatura comum.” (2009, p. 81).

Esse papel constitucional foi sedimentado no célebre caso Marbury contra Madison:

In compliance with the Judiciary Act of 1801, President John Adams signed a commission for Willyan Marbury as a justice of the peace for the county of Washington, DC. The seal of the United States was affixed to the commission, but it never reached Marbury. James Madison, the incoming secretary of state under Jefferson (a Democratic Republican rather than a Federalist), refused to deliver the commission. Marbury went directly to the U.S. Supreme Court for a writ of mandamus requiring Secretary of State Madison to deliver to Marbury his commission. The Judiciary Act of 1789 in section 13 had provided the Supreme Court could issue writs of mandamus6. (VILE, 2014, p. 107)

Na apreciação do writ, John Marshal, então relator do caso, no que diz

respeito ao mérito, entendeu que Marbury tinha o direito de ser empossado, uma vez

que a sua nomeação não poderia ser revogada, sendo, portanto, as condutas do

presidente Jefferson e de seu Secretário de Estado James Madson ilegais. Todavia,

denegou a ordem em face de uma questão preliminar, qual seja, a

inconstitucionalidade da seção 13 do Judiciary Act de 1789, que indevidamente

ampliou a competência da suprema corte, o que somente poderia ser feito através de

outra lei de igual hierarquia (VIDAL, 2009, p. 84).

Com louvor, Vidal sintetiza as premissas da aludida decisão:

a) A Constituição escrita é a norma fundamental (lex superior), expressão do poder constituinte originário que institucionaliza o Estado, ao mesmo tempo que delimita seus poderes. Reafirma-se, assim, o princípio da supremacia constitucional, segundo o qual nenhum ato do Poder Público poderá ser considerado válido, se for

6 De acordo com o Judiciary Act of 1801, o Presidente John Adams nomeou Willian Marbury como juiz de paz pelo condado de Washington, DC. O selo dos Estados Unidos foi afixado à nomeação, mas nunca entregue a Marbury. James Madsion, o Secretário de Estado do Governo de Jefferson (um republicano democrata, em vez de federalista), recusou-se a entregar a nomeação. Marbury foi diretamente à Suprema Corte, através de um writ of mandamus requerendo que o Secretário de Estado lhe entregasse sua nomeação. O Judiciary Act de 1789 em sua seção 13 previu que a Suprema Corte poderia apreciar writs of mandamus.

36

contrário à Constituição; b) Confere-se a todo juiz ou tribunal, quando chamado a decidir um caso concreto, o poder de deixar de aplicar uma norma da legislatura comum que não esteja na conformidade da Constituição [destacou-se]. A harmonia do sistema é assegura pela força vinculante dos precedentes (stare decisis), de tal modo que o julgamento de um caso concreto pela Suprema Corte regulará a atuação dos demais órgãos do Poder Judiciário; c) A lei contrária à Constituição não é aplicada ao caso concreto, ou seja, considera-se inválida desde a sua edição, cabendo ao Poder Judiciário, tão somente, declarar a sua não aplicação. Assim, a decisão judicial limita-se a reconhecer uma situação de inconstitucionalidade preexistente, operando efeitos retroativos, ou seja, considerados nulos todos os atos praticados, sob a égide da lei declara incompatível com a Constituição [destacou-se]. (2009, p. 85-86)

Destarte, malgrado se perceba que o aludido modelo americano influenciou

diretamente a jurisdição constitucional brasileira no que diz respeito ao controle de

constitucionalidade difuso incidental, sabe-se que a jurisdição constitucional brasileira

não se exaure nesse ponto, fazendo-se imprescindível a análise das premissas do

modelo constitucional austríaco, fortemente influenciado por Hans Kelsen:

Kelsen conceberia um Tribunal Constitucional com a tarefa de ser o guardião da Constituição, um tribunal com competências para controlar a constitucionalidade dos atos dos demais poderes. Kelsen teve a oportunidade de associar, a um só tempo, uma teoria destinada a dar consistência ao ordenamento jurídico (concebido de forma piramidal e hierárquica), à possibilidade de colocá-la em prática, o que seria feito com a elaboração da Constituição austríaca de 1920. (VIDAL, 2009, p. 86-87)

Nesse sentido, o modelo austríaco fundamenta-se nos seguintes aspectos:

1) a Constituição como norma jurídica suprema; 2) a existência de um tribunal

constitucional que, com exclusividade, exerceria o papel de guardião da Constituição;

3) as decisões desse tribunal teriam efeitos gerais e vinculantes (VIDAL, 2009, p. 88).

O modelo de jurisdição brasileira forma-se a partir da junção desses dois

parâmetros: há um tribunal constitucional responsável pela análise em abstrato das

normas constitucionais, com decisões dotadas de eficácia erga omnes e vinculantes,

ao passo que, também é atribuído a todo juiz e tribunal o poder de declarar a

inconstitucionalidade das leis nos casos concretos.

37

2.2 A TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O ideal constitucional que se consubstancia na limitação do poder e na

garantia de direitos através da supremacia da lei (BARROSO, 2013, p. 27) encontra

sua evidenciação a partir do desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais.

Destarte, fala-se que os direitos fundamentais podem ser entendidos a

partir de duas concepções: a formal e material. A primeira é ligada à ideia de

positivação, ou seja, que são fundamentais aqueles direitos, assim, definidos pela

Constituição, enquanto sob a ótica material, seriam classificados como tais aqueles

que: “por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à

Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal.” (SARLET, 2013,

p. 77)

Sarlet preleciona que a concepção meramente formal dos direitos

fundamentais é insuficiente para o atual estágio constitucional, mormente no caso

brasileiro, em função da existência da cláusula de abertura prevista no art. 5º, §2º da

Constituição de 1988 (2013, p. 75), razão pela qual evidencia a necessidade do

estabelecimento de limites para a conceituação material desses direitos, propondo a

observância dos seguintes requisitos: 1) a relevância e o conteúdo do direito (2013,

p. 92-93); 2) a fundamentação axiológica no princípio da dignidade da pessoa humana

(2013, p. 93-111); 3) a função protetiva desses direitos, na medida em que

necessariamente asseguram a proteção de bens individuais ou coletivos considerados

essenciais (2013, p. 111-115).

Bonavides, conceituando os direitos fundamentais, cita Konrad Hesse, para

quem os direitos fundamentais objetivariam “criar e manter os pressupostos

elementares de uma vida na liberdade e dignidade humana.” (BONAVIDES, 2016, p.

674) O autor continua a explicação ao defender que sob o aspecto formal, “os direitos

fundamentais são aqueles que o direito vigente qualifica como tais” (2016, p. 674) e

parte para a análise dos critérios estabelecidos por Carl Schmitt, para quem os direitos

fundamentais são estabelecidos no instrumento constitucional ou que, ao menos,

tenham recebido da Constituição uma imutabilidade ou uma forma mais gravosa de

alteração (2016, p. 675).

Marmelstein, a seu turno, preleciona:

Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à

38

ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivados no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico. (2013, p. 17)

Outra grande contribuição para a teoria dos direitos fundamentais advém

da Teoria das Gerações propostas por Karel Vasak, que na aula inaugural de 1979

dos Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, dividiu

a evolução histórica dos direitos fundamentais, a partir do lema da Revolução

Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Os direitos de primeira geração relativos às liberdades civis coincidiriam

com a fase inaugural do constitucionalismo, surgindo a partir das revoluções

burguesas dos séculos XVII e XVIII (BONAVIDES, 2016, p. 577). Dessa forma, são

dotados de forte influência do pensamento liberal iluminista. Diversas cartas políticas

nascem a partir desse movimento, em especial: a Declaração Universal dos Direitos

do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776

(MARMELSTEIN, 2013, p. 41).

Obviamente, o conteúdo desses direitos estava intrinsecamente atrelado

aos interesses da própria burguesia. Nesse sentido, evidencia-se a necessidade de

proteção à propriedade; a observância da lei que é aprovada pelos representantes

dessa classe econômica dominante; a liberdade de mercado, fundamentada na

doutrina econômica do laissez-faire, laissez-passer7; além de outras liberdades

individuais, em especial a religiosa, que ganha força a partir da Reforma Protestante

(MARMELSTEIN, 2013, p. 41).

O ideal ligado aos direitos de primeira geração está representado na

célebre citação inglesa: “o vento e a chuva podem entrar na cabana do pobre, o rei

não. Todo cidadão inglês, não importa se funcionário público ou nobre, está

submetido, de igual modo, à lei e aos juízes ordinários.” (HEARN, 1867, p. 89-91)

Ocorre que os direitos de primeira geração urgem a partir de uma

desconfiança da sociedade frente ao Estado, pois se desenvolvem em um contexto

de Estado ilimitado e autoritário, no qual os direitos mais básicos da sociedade eram

frequentemente violados. Dessa forma, esses direitos passam a ter forte caráter de

abstenção estatal. Nestes termos, Bonavides classifica-os como “direitos de

resistência ou de oposição perante o Estado.” (2016, p. 578) E mais à frente continua:

7 Deixai fazer, deixai passar.

39

Entram na categoria de status negativus de Jellinek e faz também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvalor teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico. (2016, p. 578)

Então, com fundamento na Revolução Industrial e nas teorias antiliberais

do século XX, surgem os direitos fundamentais de segunda geração, classificado na

concepção de Vasak como aqueles pertinentes à igualdade, englobando os direitos

sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades

(BONAVIDES, 2016, p. 578). Esses direitos surgem como resultado de uma busca

histórica da sociedade por uma igualdade material, fruto das lutas sociais, em especial

a dos empregados por melhores condições de trabalho. É nesse período que se

desenvolve a teoria do bem-estar social e que se edita a Constituição Mexicana de

1917 e a de Weimar de 1919 (MARMELSTEIN, 2013, p. 45-46).

Todavia, desenvolve-se uma nova concepção da postura estatal. O Estado

que, até então, deveria se limitar a não interferir na vida do indivíduo, passa a ser

exigido que tome posturas concretas a fim de garantir a igualdade material da

sociedade.

Por fim, os direitos de terceira geração, classificados como aqueles

relativos à fraternidade, isto é, o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente,

o patrimônio comum da sociedade e à comunicação (BONAVIDES, 2016, p. 584).

A doutrina mais recente fala em novas dimensões, como a quarta, relativa

ao direito ao desenvolvimento e a quinta, pertinente à paz (BONAVIDES, 2016, p. 585-

586 e 594-609).

Além disso, critica-se o uso da expressão geração, pois esse termo daria

uma ideia de superação dos direitos anteriores pelos posteriores, quando na verdade

ocorre um processo de cumulação, complementariedade, razão pela qual se tem

preferido utilizar a denominação dimensão dos direitos fundamentais (SARLET, 2013,

p. 45).

Neste ponto, faz-se pertinente observar que os direitos tradicionalmente

relacionados à seara penal estão intrinsecamente relacionados aos direitos de

primeira geração. Ou seja, o núcleo duro das garantias penais nasce no contexto do

40

estado autoritário, violador das liberdades individuais. “Nesse contexto, o Estado é

visto com ‘um mal', ou como ilustra Hobbes, como o 'Leviatã'.” (STRECK, 2008, p. 20)

A partir de então, a burguesia começa a lutar por direitos que, naquela

quadra histórica, deveriam representar a abstenção estatal em violar a individualidade

de cada cidadão.

Numa concepção de bem jurídico do modelo liberal, os direitos fundamentais surgem como necessários para limitar o poder do Estado, sendo que nesse momento do constitucionalismo representam um conjunto de restrições do Estado para com o indivíduo. É por isso que as primeiras normas relacionadas aos direitos fundamentais são de natureza negativa, pois impõem uma obrigação de não fazer por parte do Estado, exigindo dele um comportamento omissivo em favor da liberdade individual. (STRECK, 2008, p. 21)

Evidentemente, os maiores expoentes da doutrina penal nascem nesse

contexto e desenvolvem suas ideias a partir dessas premissas liberais. Por todos,

citam-se Beccaria e Ferrajoli.

Nesse sentido, embora transpostos séculos de evolução histórica dessas

garantias, sabe-se que o Estado continua sendo um dos grandes violadores dos

direitos individuais.

Todavia, no atual momento histórico, o desenvolvimento da sociedade

impende pela busca do combate de novas formas de práticas criminosas complexas.

Nesse sentido, surge o combate à corrupção, aos crimes contra o sistema financeiro,

ao terrorismo, ao tráfico de pessoas, aos crimes na internet, dentre outros.

Perfazendo-se, destarte, insuficiente uma visão meramente negativa da atuação

estatal, através do direito penal.

Damasceno defende:

Em se concebendo um Estado em que a Constituição garante a efetiva proteção dos direitos fundamentais ali declarados, o direito penal não pode mais ser visto tão somente como um conjunto de normas tendentes a limitar o poder punitivo estatal, mas também como um instrumento dirigido à proteção dos direitos fundamentais. (2005, p. 32-33)

Nesse sentido, ainda, Douglas Fischer arremata:

41

Firmada uma proposta para o mister hermenêutico, estipulados alguns princípios constitucionais para o Direito Processual Penal e Direito Penal, analisadas as correntes doutrinárias acerca da pena, as conclusões (parciais) a que se chega são no sentido de que, em um Estado Social e Democrático de Direito, o Direito Penal: a) é essencial como (uma das) forma de controle social para que se possibilite o cumprimento das expectativas de conduta, impondo-se limites à liberdade humana na convivência social; b) tem por fim precípuo a proteção dos membros sociais; c) por intermédio da pena, com as características que se vislumbram mais consentâneas com o sistema, deve exercer as funções de prevenção geral limitadora e prevenção especial; d) não precisa utilizar-se de velocidades diversas para sua aplicação, mas tão-somente que seja manejado em respeito a um dúplice e equânime tratamento: do Estado em exercer seu poder-dever de punir; e do cidadão, permitindo-lhe o exercício pleno de todas as garantias constitucionais, notadamente as de defesa, em respeito ao due process of law. (2006, p. 98)

Razão pela qual a atuação do direito penal, inclusive através do seu jus

puniendi, na nova hermenêutica constitucional penalista deve passar pela ótica do

princípio do dever de proteção suficiente.

2.3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO DEVER DE PROTEÇÃO SUFICIENTE

2.3.1 Dos princípios

Citando Luís-Diez Picazo, Bonavides inicia a conceituação de princípio a

partir da ideia de início, ou seja, como as premissas do ordenamento jurídico (2016,

p. 260-261). Na realidade, os princípios são costumeiramente explicados ao lado das

regras, razão pela qual Barroso os diferencia como sendo aqueles responsáveis, em

razão de sua maleabilidade, por fazerem justiça ao caso concreto, enquanto as regras

resguardam a segurança jurídica (2013, p. 343). Vai além, e assevera que as regras

possuem um relato objetivo, através de normas de condutas, a serem seguidas,

através da subsunção; enquanto os princípios expressam valores que são alcançados

por meio da ponderação. (BARROSO, 2013, p. 344)

Na verdade, neste trabalho, importa frisar o atual papel dos princípios em

sede de jurisdição constitucional. O neoconstitucionalismo, que ganha força no mundo

após a Segunda Guerra Mundial e no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, a

partir do pós-positivismo, expandiu a jurisdição constitucional, atribuindo ao texto

constitucional e aos seus princípios força normativa (BARROSO, 2013, p. 267-270).

42

Sob a ótica da velha hermenêutica, os princípios restringiram-se a meras

normas programáticas sem nenhum caráter de normatividade (BONAVIDES, 2016, p.

264). Todavia, hoje, a partir desse reconhecimento, todo o sistema jurídico encontra

seu fundamento axiológico nos princípios constitucionais, que servem inclusive como

parâmetro de constitucionalidade para aferição de validade das leis e atos normativos

infraconstitucionais.

2.3.2 Do dever de proteção suficiente na doutrina e jurisprudência alemã.

Alexy (2015, p. 450) conceitua os direitos de proteção como aqueles que o

titular de direitos fundamentais tem em face do Estado para que este o proteja contra

intervenções de terceiros, desde a proteção contra homicídios até a defesa contra os

perigos do uso da energia nuclear.

Ele vai além e reconhece a subjetividade dos direitos de proteção:

(…) os direitos de proteção são direitos subjetivos constitucionais a ações positivas fáticas ou normativas em face do Estado, que têm como objeto demarcar as esferas dos sujeitos de direito de mesma hierarquia, bem como a exigibilidade e a realização dessa demarcação. (ALEXY, 2015, p. 450-451)

Na verdade, o próprio reconhecimento de direitos subjetivos significa um

maior grau de realização que o simples estabelecimento de um dever objetivo, pois

essa subjetivação dos deveres de proteção pode ser retirada da natureza

principiológica dos direitos fundamentais (ALEXY, 2015, p. 454-455).

A partir dessa premissa, pode-se falar que, malgrado os direitos de

proteção sejam afetos a todas as áreas do direito (direito civil, administrativo,

processual, dentre outros) (ALEXY, 2015, p. 450), no âmbito penal, há um dever de

atuação penal do Estado que transpassa desde a sua atividade legiferante, ao

aparelhamento do setor policial, chegando até a sua atividade jurisdicional. Nesse

sentido:

(…) não é apenas o legislador que incorre em inconstitucionalidade quando protege insuficientemente bens jurídicos (por exemplo, descriminalização de condutas), mas, também o judiciário, ao interpretar equivocadamente a lei e a Constituição, incorrerá em proteção deficiente. (STRECK, 2008, p. 93)

43

Na verdade, o princípio em baila nasce a partir da jurisprudência do

Tribunal Constitucional Alemão (BVerfGE 39,1) em 25 de fevereiro de 1975, ocasião

na qual foi declarada a inconstitucionalidade da Lei de Reforma do Código Penal,

quando, até então, a provocação da morte do nascituro era uma ação tipificada

criminalmente, em termos genéricos. A reforma inovou nos seguintes aspectos: o

sujeito ativo do crime passou a ser somente quem interrompeu a gravidez depois do

13º dia após a concepção. Todavia, o aborto praticado por um médico com a

concordância da grávida não era punível, desde que não tivessem passado doze

semanas desde a concepção. Além disso, o aborto perpetrado por médico com a

anuência da grávida depois de transcorrido o prazo de doze semanas não seria punido

quando ele fosse indicado para evitar problemas de saúde, desde que este não

pudesse de forma exigível outra forma, ou porque houvesse razões para crer que o

filho sofreria de uma deficiência insanável de seu estado de saúde, que fossem tão

graves que não se pudesse mais exigir da mulher o prosseguimento da gravidez,

desde que após a concepção não tivessem passado mais do que 22 semanas.

Aquele que praticava o aborto sem que a grávida tivesse se consultado em

uma repartição pública de aconselhamento era punido com sanção penal. Da mesma

forma que seria sancionada quem, depois de transcorridas 12 semanas desde a

concepção, interrompesse uma gravidez sem que o respectivo órgão competente

tivesse antes confirmado que os pressupostos da indicação médica ou eugênica

estivessem presentes. (MARTINS, 2005, p. 266-267).

Na ocasião, reconhecendo que a Constituição Alemã garantiria a proteção

a vida intrauterina como bem jurídico independente e que a proteção à vida do

nascituro tem prevalência sobre o direito de autodeterminação da gestante, não

podendo ser relativizada por um prazo determinado, encontrando tal premissa da

relativização tão somente quando prosseguimento da gravidez fosse inexigível a fim

evitar um perigo para a vida da gestante ou ao seu estado de saúde, o Tribunal

Constitucional declarou a inconstitucionalidade de parte daquela reforma (MARTINS,

2005, 268-269).

Sobre a decisão, Streck aduz:

A decisão trouxe à lume a estreita relação entre o princípio da proporcionalidade e a obrigatoriedade de proteção dos direitos fundamentais por parte do Estado (neste momento, ainda não se falava em proibição de proteção deficiente). No caso em questão, decidiu o Tribunal acerca da necessidade de se conferir proteção

44

penal à vida intrauterina como bem jurídico independente. Isso porque “o dever de proteção do Estado é abrangente. Ele não só proíbe – evidentemente – intervenções diretas dos do Estado na vida em desenvolvimento, como também ordena ao Estado posicionar-se de maneira protetora e incentivadora diante dessa vida, isto é, antes de tudo, protegê-la de intervenções ilícitas e provenientes de terceiros (particulares) [...]”. (2008, p. 85)

A autora continua ao asseverar que o reconhecimento expresso que a

proibição de proteção deficiente foi consignada pelo Tribunal Constitucional Alemão

em uma segunda decisão (BverfGE 88, 203), sobre a mesma temática da anterior, na

qual: “os juízes do Tribunal de Karlsruhe estabeleceram que o legislador, por força

constitucional, estaria obrigado e vinculado a aplicar a proibição de proteção deficiente

como forma de efetivar e cumprir os deveres de tutela dos direitos fundamentais.”

(STRECK, 2008, p. 87)

Ou seja, a partir dos próprios valores penais resguardados pela ordem

constitucional, há que se verificar diante de um ato de omissão estatal – entendimento

em sentido amplo – há uma violação a direito fundamental, existe uma

inconstitucionalidade que deverá ser reconhecida em razão de um dever de atuação

positiva em prol desses direitos (STRECK, 2008, p. 88).

Grimm apud Streck explica que:

Enquanto os direitos fundamentais como direitos negativos protegem a liberdade individual contra o Estado, o dever de proteção derivado desses direitos destina-se a proteger indivíduos contra ameaças e riscos provenientes não do Estado, mas sim de atores privados, forças sociais ou mesmo desenvolvimentos sociais controláveis pela ação estatal. (2008, p. 89)

Observa-se que a jurisprudência constitucional alemã, a partir dos casos

citados, juntamente ao desenvolvimento da teoria da eficácia horizontal dos direitos

fundamentais no caso Lüth8, pôde perceber o dever de atuação estatal, também na

esfera penal, a fim de garantir suficientemente a proteção mínima aos bens jurídicos

tidos como mais importantes pela sociedade.

Na realidade, o Estado tem a difícil tarefa de encontrar o espaço adequado

para a sua atuação entre o excesso e a sua insuficiência, objetivando aquilo que a

nova doutrina denomina de garantismo penal integral (FISCHER, 2010, p. 32).

8 BverfGE 7, 198.

45

2.3.3 Do reconhecimento do princípio do dever de proteção suficiente na

jurisprudência nacional

Com efeito, não há como se olvidar a existência implícita do princípio do

dever de proteção suficiente arraigado no ordenamento jurídico pátrio, mormente em

razão da cláusula de abertura prevista no art. 5º, §2º da Constituição Federal.

Nesse sentido, a jurisprudência nacional vem expressamente

reconhecendo a existência desse dever em diversos casos, como no julgamento do

habeas corpus 102.087/MG realizado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal

Federal. O caso concreto tratava-se de um mandado de segurança no qual se discutia

a inconstitucionalidade da tipificação do crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14

da Lei 10.826/2003) nos casos do uso de armas desmuniciadas.

Na espécie, o relator do writ, o Excelentíssimo Ministro Celso de Mello

concedeu a ordem, reconhecendo a ausência de potencialidade lesiva na conduta

daquele que porta arma de fogo ausente de munição sem dispor de acesso imediato

a ela. Todavia, o Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes abriu divergência para

denegar a ordem, tendo sido seu voto seguido pelos Ministros Joaquim Barbosa,

Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.

Na espécie, o acórdão do writ consignou que a aludida tipificação estaria

dentro do plano permitido de discricionariedade do legislador, pois a tipificação de

crimes em abstrato não representaria, por si só, comportamento inconstitucional por

parte do legislador penal, uma vez que a tipificação de condutas que geram perigo em

abstrato pode servir, inclusive, como forma preventiva de proteção aos direitos

supraindividuais. O Ministro Gilmar Mendes foi além:

A Constituição de 1988 contém significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas, é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos em proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da

46

proporcionalidade como proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente... O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. (BRASIL, 2012)

Com efeito, o reconhecimento do aludido princípio tem se manifestado na

jurisprudência pátria. Nesse sentido, o próprio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

também já o reconheceu a explicitamente nos autos do habeas corpus nº 0625358-

51.2015.8.06.0000 de lavra da Segunda Câmara Criminal daquela Corte, sob relatoria

da Desembargadora Francisca Adelineide Viana9.

A partir do exposto, pode-se observar que a jurisprudência nacional e local

tem cada vez mais se atentado para o princípio ora tratado. Trata-se de louvável

tendência que deve ser fomentada a fim de que, no atual modelo de hermenêutico,

também o Judiciário possa observar esse dever.

Ademais, frise-se que a na jurisdição constitucional brasileira, a partir do

princípio em baila, o judiciário pode utilizar de diversas técnicas decisivas para aplicá-

lo, desde a decisão de inconstitucionalidade por ação ou omissão de leis ou atos

normativos em abstrato que possam ir ao encontro desse dever, até o uso de

ferramentas como a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto

ou a interpretação conforme a constituição diante do caso concreto.

2.4 O DEVER DE PROTEÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS

9 Ao discorrer sobre a possibilidade da decretação da prisão preventiva frente ao princípio da presunção de inocência, consignou-se que: Nesse sentido, analisando a questão concomitantemente com a tese da impossibilidade da manutenção da prisão do paciente, frente ao princípio constitucional da presunção de inocência – entendemos que o Direito Constitucional e os princípios a ele inerentes não podem servir de óbice a estrita aplicação do direito penal aos fins para os quais se destina. Afinal, a partir de uma interpretação sistemática da Constituição Federal em consonância com o próprio art. 5, §2º da Carta Magna, evidencia-se o direito fundamental à proteção jurídico-penal suficiente, que denota o próprio espírito do ordenamento jurídico constitucional brasileiro em buscar o equilíbrio entre a aplicação do direito penal e as garantias que lhe são afetas.

47

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também já teve a

oportunidade de reconhecer, principalmente no tocante ao Poder Executivo, a

responsabilidade do Estado brasileiro em promover a proteção aos direitos

fundamentais.

No caso Ximenes Lopes contra Brasil10, o Estado brasileiro foi

responsabilizado pela morte de Damião Ximenes Lopes, ocorrida em 4 de outubro de

1999, em uma casa de repouso do Sistema Único de Saúde, em Sobral, no Ceará,

em razão das condições degradantes as quais a vítima foi submetida.

A Corte fixou a responsabilidade brasileira por violação ao direito à vida, à

integridade pessoal, à proteção judicial e às garantias judiciais, por não ter ocorrido o

efetivo acesso à justiça, a determinação na busca da verdade dos fatos, a

investigação, a identificação, ao processo e a punição dos responsáveis,

principalmente em razão da demora do Judiciário no processo criminal (CEIA, 2013,

p. 116).

Na decisão, foi reconhecido o dever do Estado de impedir violações, como

também, de tomar medidas de proteção quando essas ocorram. No caso concreto,

ficou evidenciada a demora no processo – transpostos mais de seis anos, não havia

uma sentença de primeiro grau na ação penal – como uma violação do direito de

acesso à justiça e do direito à duração razoável do processo. Nesse sentido:

Por unanimidade, a Corte decidiu que o Estado deve: (a) garantir a celeridade da justiça para investigar e sancionar os responsáveis pela tortura e morte de Damião; (b) continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para os profissionais vinculados ao atendimento de saúde mental; (c) pagar indenização como medida de reparação à família de Damião e; (d) publicar a sentença no Diário Oficial ou em jornal de circulação nacional. (CEIA, 2013, p. 117)

No caso concreto, em 4 de outubro de 1999, Damião morre na Casa de

Repouso Guararapes; em 27 de março de 2000, inicia-se a ação penal na 3ª Vara de

Sobral; em 1º de outubro de 2004 a CIDH informa ao Brasil que enviará o caso à

Corte; em 4 de julho de 2006 a Corte prolata a sua sentença condenando o Estado

brasileiro; em 29 de junho de 2009, a 3ª Vara de Sobral profere a sentença no

processo criminal condenando o proprietário da Casa de Repouso, Sérgio Antunes

Ferreira Gomes, junto com outros seis profissionais de saúde que ali trabalhavam a

10 Disponível em: <hhttp://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_149_esp.pdf> Acesso em: 06 jun. 2016.

48

uma pena de seis anos de reclusão em regime semiaberto, da qual foram interpostos

recursos (CEIA, 2013, p. 118). Como resultado de busca realizada no sítio eletrônico

do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará pelo nome do proprietário da clínica,

surgem os autos do processo nº 0012736-95.2000.8.06.0167 da 1ª Câmara Criminal

do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que em 27 de novembro de 2012 prolatou

o seguinte acórdão:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DELITO DE MAUS TRATOS QUALIFICADO PELO RESULTADO MORTE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA DOS ACUSADOS E O ÓBITO DA VÍTIMA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE MAUS TRATOS SIMPLES. PRESCRIÇÃO EM ABSTRATO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE [Destacou-se]. 1. Inexistindo provas suficientes, imperiosa se torna a desclassificação do crime de maus-tratos qualificado pelo resultado morte (art. 136, § 2º, do CPB) para sua forma simples (art. 136, caput, do CPB), em virtude da ausência de alicerce probatório capaz de evidenciar o nexo de causalidade entre as condutas dolosas (expor a perigo a vida ou a saúde) e o resultado culposo (óbito). 2. As duas necropsias realizadas no ofendido (uma delas pós-exumática) não foram capazes de atestar a causa mortis, constando das conclusões dos laudos "[...] tratar-se de morte real de causa indeterminada [...]". O auto de exame cadavérico pós-exumático chega mesmo a descrever que "[...] o crânio apresentava integridade de todos os seus ossos. Os demais ossos deste corpo também não apresentam fraturas [...]". 3. Outrossim, tendo em vista o frágil estado de saúde do ofendido, que, antes da entrada na casa de repouso, já não vinha se alimentando direito e nem dormindo ou tomando sua medicação, existe a possibilidade considerável da vítima ter falecido por enfermidade pré-existente ao internamento, o que representaria concausa absoluta ou relativamente independente (art. 13, caput e § 1º, do CPB), excluindo o nexo de causalidade da conduta dos acusados em relação ao óbito. 4. A indeterminação pericial da causa da morte e a possibilidade concreta da existência de concausa independente, envolvendo circunstâncias que não estavam na linha de desdobramento físico das ações e omissões imputadas aos acusados, por força do princípio do "in dubio pro reo", excluem a responsabilidade pelo resultado, restando somente a responsabilização pelos atos praticados. 5. Operada a desclassificação, há que se reconhecer restar configurada, nos termos do art. 109, inciso V, da Lei Penal Codificada, a prescrição em abstrato da pretensão punitiva, uma vez que a pena máxima prevista para o delito do art. 136, caput, do CPB, é de 01 (um) ano de detenção. É que, da data do recebimento da denúncia (07/04/2000) até a data da publicação da sentença (29/06/2009), transcorreram mais de 04 (quatro) anos. 6. Apelo parcialmente provido, todavia, reconhecendo-se de ofício a extinção da punibilidade. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de apelação-crime, acorda a Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do

49

Estado do Ceará, sem divergência de votos, em conhecer do recurso, por ser próprio e tempestivo, para dar-lhe parcial provimento, reconhecendo-se de ofício a extinção da punibilidade, tudo nos termos do voto do relator.

A decisão transitou em julgado em 17 de abril de 2013.

Em outra oportunidade, no caso Garibaldi contra Brasil, a Corte

Interamericana condenou o Estado brasileiro pela não responsabilização dos

envolvidos no assassinato de Sétimo Garibaldi, morto em 1988 durante uma

desocupação de terras invadidas pelo MST na cidade de Querência do Norte no

Paraná.

Na denúncia, a CIDH alegou a responsabilidade do Estado brasileiro

decorrente do descumprimento da obrigação de investigar e punir o homicídio de

Sétimo, em razão da morosidade e a falta de devida diligência no processo de

investigação e coleta de provas do caso, especialmente pelo fato de a vítima pertencer

a um grupo considerado vulnerável. Nesse sentido, a sociedade teria o direito a

conhecer a verdade sobre os fatos, além de destacar que, conforme sua reiterada

jurisprudência, a impunidade propicia a reiteração das violações de direitos humanos

(CEIA, 2013, p. 123).

Pode-se mencionar ainda que o Brasil passou a adotar a Convenção das

Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC) da Assembleia Geral das Nações

Unidas11 de 31 de outubro de 2003, que reconhece o dever que os Estados signatários

têm de proteger a sociedade, através do combate a corrupção.

O Congresso Nacional aprovou seu texto por meio do Decreto Legislativo

nº 348, de 18 de maio de 2005 e, pelo Decreto 5687, de 31 de janeiro de 2006,

passando a vigorar no Brasil, com força de lei.

11 Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/ Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf>. Acesso em: 08 de jun. 2016.

3 O DEVER DE PROTEÇÃO SUFIENCIENTE EM QUESTÕES PRÁTICAS

3.1 A SELETIVIDADE NOS JULGAMENTOS DE CRIMES DE COLARINHO

BRANCO

Diogo Castor de Mattos, Procurador da República, em sua dissertação de

mestrado, intitulada: “A Seletividade Penal da Utilização abusiva do Habeas corpus

nos Crimes de Colarinho Branco” procura demonstrar a forma abusiva do uso desse

remédio constitucional, evidenciando casos emblemáticos de corrupção, nos quais os

tribunais, muitas vezes, de forma excepcional, utilizam-se de interpretações

demasiadamente garantistas, inclusive, contrapondo-se a posições consolidadas que

tendem a adotar em outros tipos de delitos. Casos esses nos quais os tribunais

tendem a tutelar não apenas o direito de ir e vir, mas atêm-se à análise de questões

aprofundadas de mérito, de provas produzidas em ações penais e colhidas durante

inquéritos policiais, além de admitir o aludido writ como substituto dos recursos

ordinários (MATTOS, 2015, p. 9).

Nesse sentido, o autor inicia definindo como crime de colarinho branco

aquele no qual o autor goza de alta posição social, além de haver uma intrínseca

relação entre a prática do delito e a profissão exercida pelo agente (2015, p. 11).

Defende que no direito criminal brasileiro, está arraigada a concepção

daquilo que denomina de “Direito Penal do Amigo”12, verbis:

Na realidade, o “amigo” da sociedade dificilmente corre o risco de ser confundido com o “inimigo” de Jakobs. Frequenta lugares isentos de ação das autoridades policiais, reside e bairros muito distantes dos clientes do sistema carcerário, e, quase sempre está por perto dos administradores públicos e dos próprios julgadores. Trata-se do cidadão abastado financeiramente, o qual tem aparência muito semelhante àquele que controla o sistema, veste-se com as mesmas roupas e matricula os filhos nas mesmas escolas particulares. Em relação a estas pessoas os julgadores, em regra, ainda que inconscientemente, costumam ser benevolentes na aplicação da lei pena. (2015, p. 16)

12 Em contraponto à teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs, segundo a qual, na sociedade, deveria haver os cidadãos e aqueles que deveriam ser considerados como seus inimigos. Para aqueles incidiria todas as garantias processuais constitucionais, enquanto para estes, poderia haver uma mitigação desses direitos.

52

Vai além e assevera que: “para esse réu ‘amigo’ do sistema, é válido todo

o amplo discurso de garantias individuais e, nunca é demais relembrar de forma

românica o longo histórico de lutas dos cidadãos contra o poder opressivo do Estado.”

(MATTOS, 2015, p. 16) Em seguida, arremata:

Acontece que, no Brasil, a defesa de direitos fundamentais no processo penal se desenvolveu de modo monocular e hiperbólico, tendo em conta que o belo discurso de salvaguarda das garantias individuais só se aplica aos réus do colarinho branco, deixando os acusados pela prática de crimes patrimoniais, delitos violentos ou de tráfico de drogas abandonados à própria sorte. Essa aplicação seletiva do garantismo de Ferrajoli não enxerga a defesa dos direitos fundamentais sociais e coletivos promovidas pelo Ministério Público em casos criminais, o que inclui direitos essenciais tutelados pela Constituição e pelo Código Penal: vida, segurança, propriedade, um julgamento justo dentro de um prazo razoável [sic] dentre outras coisas. Nesse contexto, as garantias processuais são tão superestimadas que se esquece que o processo não é um fim em si mesmo, mormente quando milhares de ações criminais são fulminadas à espera do segundo reexame de mérito no Superior Tribunal de Justiça. (2015, p. 18)

Quanto aos crimes de colarinho branco, além da institucionalização da

impunidade, há um fator agravante: a complexidade na investigação desses feitos.

Uma vez que, as novas tecnologias favorecem a prática de crimes e dificultam a

investigação e a sua comprovação, pois há novas e sofisticadas formas de lavagem

de capital, emissão de dinheiro para o exterior, como o dólar-cabo, uso de paraísos

fiscais, dentre outros.

Nesse sentido, a fim de possibilitar técnicas especiais de combate a essas

práticas criminosas, adveio a lei nº 12.850/2013, que trouxe a lume institutos como a

colaboração premiada, ação controlada, infiltração de agentes e captação ambiental

de sinais eletromagnéticos (previstos respectivamente nos artigos. 4º, 8º, 10 e 3º do

aludido diploma normativo) (MATTOS, 2015, p. 19).

Um célebre exemplo de combate ao crime de colarinho branco

consubstancia-se no caso United States vs. Nixon (1974):

Facts – As a result of the breal-in of the Democratic National Committee headquarters at the Watergate complex in Washington, D.C., the investigations and subsequence trial of a number of conversations in the Oval Office of the White House. Special Prosecutor Leon Jaworski had a subpoena duces tecum issued to Presidente Nixon. This ordered the surrender of certain of the tapes and papers to federal district judge John J. Sirica for his judgment as

53

to what portions of the tapes were irrelevant and inadmissible. The president claimed that these materials were immune from subpoena under the theory of executive privilege13. (VILE, 2014, p. 68)

No mérito do caso em questão, a Suprema Corte norte-americana decidiu

que tal privilégio não encontrara guarida na Constituição Federal. Contudo, o

interessante é observar que o caso em si ganhou repercussão graças à renúncia do

presidente Richard Nixon em decorrência das investigações que culminaram na

descoberta de um esquema de espionagem determinado por ele.

Todavia, com a posse do vice-presidente, Geral Ford, houve a anistia de

Nixon, o que fez surgir nos Estados Unidos um clamor por repressão mais forte aos

crimes de autoridades14 (MATTOS, 2015, p. 18).

O aludido caso remete ao julgamento da ação penal 470, que é tido por

muitos como marco do combate à corrupção no Brasil (MATTOS, 2015, p. 31). Na

ocasião da CPI dos Correios, foi denunciado um esquema de compra de votos que

fico conhecido como Mensalão. O Ministério Público ofereceu denúncia em março de

2006, que foi recebida em 2007. O processo envolveu trinta e oito réus, cerca de 50

mil páginas, 600 testemunhas e cinco partidos políticos15. Em dezembro de 2012,

foram condenados 25 réus, dentre eles José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil; João

Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados; José Genuíno, ex-presidente

do Partido dos Trabalhadores e Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT (MATTOS, 2015,

p. 30).

Todavia, a doutrina tende a fazer algumas críticas em determinados pontos

do julgamento, tais como a absolvição de alguns dos acusados do crime de formação

de quadrilha após o julgamento, decorrente da utilização de embargos infringentes

previstos no regimento do Supremo e uma nova composição de membros do tribunal

que reformou a decisão de seus antecessores. Nesse ponto, assevera Mattos:

13 Tradução livre: Fatos - Como o resultado do arrombamento da sede do Partido Nacional Democrata no complexo Watergate, em Washington, DC, a investigações e as consequentes gravações de conversas no Salão Oval da Casa Branca, o Procurador Especial Leon Jaworski emitiu um termo de intimação para o Presidente Nixon. Esse ordenou a entrega de algumas das fitas e papéis para juiz distrital federal John J. Sirica para verificar quais partes seriam irrelevantes e inadmissíveis. O presidente afirmou que esses materiais eram imunes à intimação sob a teoria do privilégio do executivo. 14 Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/politics/nixon-resigns/2012/06/ 04/gJQAUbHvIV_story.html> Acesso em: 29 jun. 2016. 15 Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-07-19/em-numeros-processo-do-mensalao-bate-todos-os-recordes-do-stf.html> Acesso em: 01 jul. 2016.

54

A aceitação de embargos infringentes para o mesmo órgão julgador, permitindo a desconsideração do julgamento anterior pelo simples fato de existirem quatro votos pela absolvição, desafia qualquer lógica de razoabilidade do nosso ordenamento jurídico. Torna uma decisão nula, mesmo sem ter nenhuma nulidade. Nesse caso, os votos dos ministros que deixaram de integrar a Corte ficaram sem ter qualquer valor jurídico. Além disso, a decisão vai de encontro ao princípio do juiz natural, pois possibilita que ministros que foram escolhidos posteriormente ao julgamento originário possam atuar e sobrepor a sua vontade à decisão dos colegas que tinham jurisdição para o julgamento no momento da primeira decisão de mérito. Assim, após conduzir uma instrução com 38 réus e 600 testemunhas arroladas em diversos estados e países, o Ministro relator Joaquim Barbosa viu ser descartada a decisão colegiada tomada após meses de um complexo julgamento. (2015, p. 31)

Mattos também, no mérito, critica a decisão pois, malgrado tenha sido

reconhecido que houve a compra de votos dos parlamentares da base aliada com a

participação de várias pessoas durante relevante período de tempo, o STF “decidiu

que não havia provas que tais agentes se organizaram de modo estável em quadrilha.”

(MATTOS, 2015. p. 31)

Atualmente, o enfoque concentra-se na operação Lava Jato, que nas

palavras do Ministro Gilmar Mendes, faria o Mensalão ser julgado em um “juizado de

pequenas causas”16. A operação investiga o esquema de desvio de recursos da

Petrobrás que é tido como o maior caso de corrupção da história brasileira já

investigado.

Os desdobramentos do caso se concentram na Justiça Federal de Curitiba,

no TRF4, STJ e STF, já tendo envolvido as autoridades de todos os poderes da

República. Segundos dados do MPF a Lava Jato já instaurou 1237 procedimentos,

realizou 608 buscas e apreensões e 161 mandados de condução coercitiva,

determinou 73 prisões preventivas e 87 temporárias, firmou 56 acordos de

colaboração premiada, realizou 43 denúncias contra 212 pessoas e já recuperou

cerca de R$ 2,9 bilhões de reais17.

16 Disponível: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/mensalao-deve-ir-para-pequenas-causas-diz-gilmar-mendes/> Acesso em: 01 jul. 2016. 17 Disponível em: <http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/resultados/a-lava-jato-em-numeros-1>. Acesso em: 01 de jul. 2016.

55

Também contra a Lava Jato, tem sido realizadas severas críticas18. Nesse

sentido, é de se mencionar que a aludida operação, até mesmo, por sua

complexidade, não está imune a erros. Contudo, há quem defenda que a forma de

leitura do direito constitucional e penal que é evidenciado atualmente resulta de um

aprendizado de operações de combate à corrupção anteriores. Na realidade,

malgrado o discurso do combate a corrupção esteja presente no discurso político

histórico, tão somente, mais recentemente ganhou importância jurídica com a

regulamentação de alguns institutos, como, a fim de exemplificar, a já citada delação

premiada (Lei nº 12850/13), e com os julgamentos dos processos decorrentes das

primeiras operações de combate a essas práticas que, consequentemente, serviram

de fundamento para a construção da jurisprudência garantista que serve de norte para

a jurisdição atual.

Por exemplo, veja-se trecho da petição de defesa do ex-presidente Luís

Inácio Lula da Silva protocolada perante o Conselho de Direitos Humanos da ONU:

É uma anomalia da lei brasileira o fato do juiz que tem jurisdição sobre uma investigação, e, portanto, é quem aprova as ações, os mandados e o desenvolvimento das investigações do caso por parte da polícia e do Ministério Público, ser também o juiz que determina a culpa ou a inocência, depois que ele decidir que o caso deve proceder a um julgamento. Não há júri (exceto em casos de crimes contra a vida) e o juiz atua sem assessores. Portanto, há um perigo claro de parcialidade, no caso de um juiz que deu início a processos de investigação contra um suspeito/réu e ordenou procedimentos de busca e intercepção na esperança de incriminá-lo, com o pressuposto de que ele é provavelmente culpado. A maioria das jurisdições separa a fase de investigação da fase de julgamento, mas o Brasil não. Todas as outras jurisdições, pelo menos, permitem judicialmente recusar o juiz da instrução que demonstrou hostilidade ao réu: este juiz não pode

ser considerado imparcial.19

Contudo, na esteira do que ensina George Marmesltein20, a Lava Jato na

verdade, em princípio, segue diretrizes que foram formadas a partir da anulação de

18 Por todas: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegal-inconstitucional, http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/01/ advogados-publicam-manifesto-com-criticas-operacao-lava-jato.html>. Acesso em: 06 jul. 2016. 19 Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/leia-integra-peticao-lula-onu.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2016. 20 Nesse sentido, posiciona-se o professor George Marmelstein em seu blog e na palestra “Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais”, realizada na Conferência Internacional “Investimento, Corrupção e o Papel do Estado: um Diálogo Suiço-Brasileiro” em João Pessoa, na Paraíba, no dia 27 de maio de 2016. Disponíveis, respectivamente, em:

56

operações policiais anteriores. Se hoje o juiz assume um protagonismo diante da

investigação, esse fato ocorre em razão da premissa formada a partir dessas primeiras

decisões que resguardaram a reserva de jurisdição necessária para diversos institutos

intrínsecos a essa persecução, tais como a quebra de sigilo de dados e comunicação.

Todavia, quanto a essas primeiras operações, há de se verificar que em

muitos casos, a inexperiência e a falta de parâmetros definidos não foram motivos

suficientes para justificar a anulação de diversos desses procedimentos.

A primeira delas refere-se à operação Satiagraha, deflagrada pela Polícia

Federal em 2008, que objetivava investigar desvio de recursos públicos supostamente

comandados por Daniel Dantas, através de sua empresa, o Grupo Opportunity.

Tendo, inclusive, ficado demonstradas, durante a CPI dos Correios, as relações do

referido grupo com os desvios do Mensalão (MATTOS, 2015, p. 92).

Daniel Dantas chegou a ser condenado pela Justiça Federal de primeiro

grau a dez anos de prisão pelo crime de corrupção ativa. Todavia, o STJ anulou todo

o processo, desde o início da ação penal, em sede de habeas corpus, sob a alegativa

de que a operação conduzida pela Polícia Federal foi realizada em conjunto com a

Agência Brasileira de Informação - ABIN, consubstanciando-se abuso de poder em

razão da inexistência de autorização legal para esse trabalho em conjunto.

O relator do feito, o Desembargador convocado Adilson Macabu votou pela

anulação do feito em razão da participação no feito dos agentes da ABIN, tendo sido

seguido pelos Ministros Napoleão Nunes Maia e Jorge Mussi. Em contrapartida, a

Ministra Laurita Vaz e o Ministro Gilson Dipp votaram pelo indeferimento da ordem

sob a argumentação de que: 1) a via do habeas corpus não é legítima para apreciar

matéria complexa, mormente quando o pedido da defesa sequer se manifesta nesse

sentido; 2) a ABIN não teria exercido função de polícia judiciária; 3) segundo

jurisprudência pacífica das Cortes Superiores, vencida a fase investigatória, vícios que

possam ser apurados de forma separada, não contaminam a ação penal (MATTOS,

2015, p. 97-99). Nada obstante, a decisão do habeas corpus 149250 SP

2009/0192565-8 restou assim ementada:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO SATIAGRAHA. PARTICIPAÇÃO IRREGULAR, INDUVIDOSAMENTE

<https://direitosfundamentais.net/2016/03/22/lava-jato-e-o-efeito-bumerangue-do-garantismo/> e <https://direitosfundamentais.net/2016/05/30/palestra-combate-a-corrupcao-e-garantias-constitucionais/> Acesso em: 01 jul. 2016.

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COMPROVADA, DE DEZENAS DE FUNCIONÁRIOS DA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO (ABIN) E DE EX-SERVIDOR DO SNI, EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELA POLÍCIA FEDERAL. MANIFESTO ABUSO DE PODER. IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR-SE A ATUAÇÃO EFETIVADA COMO HIPÓTESE EXCEPCIONALÍSSIMA, CAPAZ DE PERMITIR COMPARTILHAMENTO DE DADOS ENTRE ÓRGÃOS INTEGRANTES DO SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE PRECEITO LEGAL AUTORIZANDO-A. PATENTE A OCORRÊNCIA DE INTROMISSÃO ESTATAL, ABUSIVA E ILEGAL NA ESFERA DA VIDA PRIVADA, NO CASO CONCRETO. VIOLAÇÕES DA HONRA, DA IMAGEM E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INDEVIDA OBTENÇÃO DE PROVA ILÍCITA, PORQUANTO COLHIDA EM DESCONFORMIDADE COM PRECEITO LEGAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. AS NULIDADES VERIFICADAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL, E DEMONSTRADAS À EXAUSTÃO, CONTAMINAM FUTURA AÇÃO PENAL. INFRINGÊNCIA A DIVERSOS DISPOSITIVOS DE LEI. CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA IMPARCIALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INQUESTIONAVELMENTE CARACTERIZADA. A AUTORIDADE DO JUIZ ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA À SUA INDEPENDÊNCIA AO JULGAR E À IMPARCIALIDADE UMA DECISÃO JUDICIAL NÃO PODE SER DITADA POR CRITÉRIOS SUBJETIVOS, NORTEADA PELO ABUSO DE PODER OU DISTANCIADA DOS PARÂMETROS LEGAIS. ESSAS EXIGÊNCIAS DECORREM DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS E DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS INSCRITOS NA CONSTITUIÇÃO. NULIDADE DOS PROCEDIMENTOS QUE SE IMPÕE, ANULANDO-SE, DESDE O INÍCIO DA AÇÃO PENAL. (apud MATTOS, 2015, p. 99)

Nesse sentido, Mattos tenta demonstrar como a mesma tese pode, ou não,

ser aplicada conforme o caso, citando o julgamento do HC 233.118, de relatoria do

Ministro Jorge Mussi:

HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO. NULIDADE. CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL SUPOSTAMENTE OBTIDA SOB TORTURA. VÍCIOS NA FASE INVESTIGATÓRIA. NÃO CONTAMINAÇÃO DA AÇÃO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Com o recebimento da denúncia em desfavor do paciente, restou prejudicado o exame da alegação da nulidade que estaria a contaminar o inquérito policial, porque eventuais irregularidades ocorridas na fase investigatória, dada a sua natureza inquisitiva, não contaminam, necessariamente, o processo criminal, consoante a iterativa jurisprudência deste Sodalício [destacou-se]. […] (HC 233.118/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 05/09/2012). (apud MATTOS, 2015, p. 101)

No julgamento do habeas corpus 185.758, a quinta turma se posicionou de

forma divergente àquela adotada na operação Satiagraha, senão vejamos:

58

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DECRETO CONDENATÓRIO TRANSITADO EM JULGADO. IMPETRAÇÃO QUE DEVE SER COMPREENDIDA DENTRO DOS LIMITES RECURSAIS. INVESTIGAÇÕES LEVADAS A EFEITO PELA POLÍCIA MILITAR. EVENTUAIS VÍCIOS NA FASE POLICIAL QUE NÃO CONTAMINAM O PROCESSO-CRIME [...] VI. A remansosa jurisprudência desta Corte reconhece que eventuais nulidades ocorridas na fase policial não têm o condão de tornar nula a ação penal, pois aquele procedimento resulta em peça informativa e não probatória, podendo ser até mesmo ser dispensado, caso o Parquet, titular da ação penal, entenda já dispor de indícios de materialidade e autoria do delito bastante para o oferecimento da denúncia. (…) (Grifou-se) (HC 185.758/SC, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 27/03/2012, DJe 09/04/2012). (apud MATTOS, 2015, p. 102)

Com efeito, frise-se que diante de um mesmo assunto o Ministros Jorge

Mussi manifestou-se de forma diversa, no primeiro caso, quando se trata de um réu

rico - no caso de desvio de dinheiro público que supostamente serviria para abastecer

agentes políticos, os Ministros fizeram uso de um garantismo desarrazoável,

privilegiando a impunidade em face da instrumentalidade processual, enquanto nos

habeas corpus 233.118/SP e 185.758/SC, utilizaram-se da jurisprudência pacífica do

STJ, mesmo diante da excepcionalidade de uma suposta tortura (MATTOS, 2015, p.

112).

No mérito, Mattos também critica a decisão, inicialmente porque não

haveria nenhum óbice para ABIN realizar investigações, que não é exclusividade da

Polícia Judiciária, uma vez que instituições como o próprio Ministério Público, a

Receita Federal e COAF o fazem, ademais a Lei nº 9883/99, em seu artigo 4º, § único,

autorizaria a troca de informações entre a ABIN e outros órgão integrantes do Sistema

Brasileiro de Inteligência (MATTOS, 2015, p. 103-105).

Em março de 2012, da decisão do STJ, a Procuradoria Geral da República

interpôs recurso extraordinário para o STF que aguarda julgamento.

Outro caso emblemático diz respeito à operação Castelo de Areia,

deflagrada pela Polícia Federal em 2009, que resultou no oferecimento de duas

denúncias, conforme assevera Mattos:

Segundo a primeira acusação do Ministério Público Federal, o grupo criminoso subornava agentes públicos para fraudar licitações, construindo obras públicas superfaturadas, seguidas da remessa de recursos para o exterior. A acusação envolvia os crimes de corrupção, crimes financeiros, formação de quadrilha, fraude à licitação e lavagem de dinheiro. Já a outra peça acusatória imputava os crimes

59

de formação de cartel, fraude à licitação e quadrilha, especificamente, no caso do Metrô de Salvador, obra iniciada em 1999 e jamais concluída… No relatório final da Polícia Federal constatou que [sic]: “diretores da Camargo Corrêa responsáveis por obras e/ou diretores da Holding negociam propinas com agentes públicos visando algum favorecimento em obras específicas, ou oferecem recursos a agentes políticos visando o favorecimento em obras atuais ou futuras.” Durante a operação foi apreendida uma planilha com mais de dezesseis obras públicas suspeitas de corrupção, como as Refinarias da Petrobras em Pernambuco e no Paraná, o Aeroporto de Vitória e o Metrô de Salvador. A partir dos documentos apreendidos na investigação, verificou-se a existência de diversos políticos como destinatários de doações do “Caixa 2” da Camargo Correa. Entre eles, estavam: Michel Temer, citado 21 vezes, José Roberto Arruda que teria recebido 673,6 mil dólares ilegalmente para sua campanha em 1998, o então então secretário de Habitação de Gilberto Kassab, Elton Zacarias também teria recebido um milhão de reais para facilitar a liberação de terreno na capital paulista que interessava a construtora; Ademar Palocci, irmão de Antônio Palocci e diretor de planejamento da Eletronorte, teria recebido propina devido a um aditivo obtido na construção de eclusas de Tucuruí. Uma outra ex-autoridade identificada foi Marcio Thomaz Bastos, que foi Ministro da Justiça e era advogado da própria Camargo Correa. Ele foi mencionado pelo então colaborador Marco Antonio Cursini, como tendo efetudado, por intermédio de dólar cabo, diversas remessas clandestinas de dólares ao exterior, no período dos fatos. (2015, p. 106-107)

Assim, nada obstante a complexidade e a importância da investigação, a

6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no caso relatado pela Ministra Maria

Thereza de Assim Moura e acompanhado pelos Desembargadores convocados Celso

Limongi e Haroldo Rodrigues, tendo sido vencido o Ministro Og Fernandes, anulou

provas da ação penal sob o fundamento de que a investigação fora iniciada por

denúncia anônima, conforme a ementa a seguir:

HABEAS CORPUS. "OPERAÇÃO CASTELO DE AREIA". DENÚNCIA ANÔNIMA NÃO SUBMETIDA À INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR. DESCONEXÃO DOS MOTIVOS DETERMINANTES DA MEDIDA CAUTELAR. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO FORMAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE MOTIVOS IDÔNEOS. BUSCA GENÉRICA DE DADOS. As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade, mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal. A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática

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delituosa. A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social. Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual. Ordem concedida em parte, para anular o recebimento da denúncia da Ação Penal nº 2009.61.81.006881-7. (HC 137.349/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 05/04/2011, DJe 30/05/2011). (apud MATTOS, 2015, p. 115)

Todavia, faz-se necessário destacar, conforme preleciona Mattos, o STJ e

a própria 6ª Turma, que em outros casos21 decidiram pela possibilidade da

deflagração de investigações criminais a partir de denúncias anônimas, nesse sentido:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 33, CAPUT, DA LEI Nº 11.343/06. ALEGADA CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL. INOCORRÊNCIA. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS IDÔNEAS A EMBASAR A CONDENAÇÃO. EXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO INCABÍVEL NA VIA ELEITA. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL A PARTIR DE DENÚNCIA ANÔNIMA. ADMISSIBILIDADE. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. PERDA DO OBJETO. I - Conforme já asseverou a c. Suprema Corte: "Ofende a garantia constitucional do contraditório fundar-se a condenação exclusivamente em elementos informativos do inquérito policial não ratificados em juízo" (Informativo-STF nº 366). Na espécie, entretanto, o édito condenatório encontra-se devidamente lastreado em arcabouço probatório devidamente submetidos ao crivo do contraditório judicial (art. 5º, LV, CF). II - No caso em tela, infirmar a condenação do ora paciente ao argumento de que o conjunto probatório seria precário, demandaria, necessariamente, o amplo revolvimento da matéria fático-probatória, o que é vedado em sede de habeas corpus (precedentes). III - Não há, na linha da jurisprudência do c. Supremo Tribunal Federal, (v.g. HC 95.244/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE 30/04/2010) qualquer ilegalidade na determinação de realização de diligência para apurar a veracidade de denúncia anônima formulada dando conta da prática de crime de tráfico de entorpecentes, da qual advém a prisão em flagrante do paciente. IV - A superveniência do trânsito em julgado da condenação evidencia a perda de parte do objeto do presente mandamus, em que se buscava a suspensão da execução provisória da pena. Habeas

21 Além do citado, veja-se: o habeas corpus 116.375/PB da Sexta Turma, tendo como relatora a Desembargadora convocada Jane Silva, DJe de 16.12.08 e o habeas corpus 119702, da sexta turma, tendo como relatora a Desembargadora convocada JANE SILVA, DJe de 02/03/2009.

61

corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado. (HC 137.256/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 13/09/2010). (apud MATTOS, 2015, p. 120-122)

Em sua dissertação, Mattos faz comentários sobre outras operações como

o caso Sundown/Banestado (2015, p. 123-130), Operação Boi Barrica/Faktor (2015,

p. 130-135), dentre outras, nas quais faz diversas críticas a decisões judiciais que

anularam complexas operações de combate a desvios de recursos públicos,

evidenciando casos nos quais, a anulação se deu sob a razão da inexistência de

fundamentação suficiente para embasar medidas constritivas (2015, p. 135).

O posicionamento de Mattos resta acertado. Ora, na decisão judicial, em

razão da própria jurisdição que é atribuída ao juiz, mormente em casos de latente

interesse social, há uma presunção de legitimidade das decisões judiciais. Por óbvio,

que essa presunção é juris tantum, cabendo anulação e reforma que, todavia,

prescindem de uma maior argumentação técnica para se legitimar. Não é cabível que

instâncias superiores anulem decisões de relevo sob a ótica de cláusulas abertas e

conceitos fluídos, tal como a falta de fundamentação, sem que se diga ao menos em

quais pontos a decisão judicial foi omissa.

3.2 A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

No atual modelo de jurisdição constitucional brasileiro, os recursos

extraordinário e especial, previstos respectivamente nos artigos 102, III e 105, III da

Constituição Federal, mostram-se como uma das principais ferramentas para o

controle de constitucionalidade na modalidade difuso incidental.

A teoria do processo brasileiro divide a jurisdição em fase ordinária e

extraordinária, aquela exercida, via de regra, pelos juízos de primeiro grau e Tribunais

Estaduais e Federais, a quem cabe a apreciação de questões de fato e de direito,

enquanto esta é realizada pelos tribunais superiores e pelo próprio Supremo Tribunal

Federal, a quem compete, via de regra, tão somente a apreciação das questões de

direito por meio de uma objetivação da demanda.

Nesse sentido, quanto ao recurso extraordinário, a Constituição elenca as

quatro hipóteses de cabimento, a saber: 1) decisão que contrarie dispositivo

constitucional; 2) que declare a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; 3) que

julgue válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição; 4) que

62

julgar válida lei local contestada em face de lei federal. No âmbito do processo penal,

via de regra, pela própria competência privativa da União para legislar sobre matéria

penal e processual penal, as hipóteses de cabimento acabam se restringindo às

decisões que contrariem dispositivo constitucional.

Dessa matéria especificamente, um ponto tem gerado acirrados debates,

qual seja, a atribuição de efeito suspensivo a esses recursos.

Consoante dispõe a legislação ordinária, a atribuição do efeito suspensivo

aos recursos extraordinário e especial deve dar-se excepcionalmente. Nesse sentido

preleciona o artigo 637 do Código de Processo Penal: “O recurso extraordinário não

tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os

originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença” (BRASIL, 1941)

e, até a vigência do Novo Código de Processo Civil, afirmava o agora revogado artigo

27, § 2º da Lei 8038/90: “Os recursos extraordinário e especial serão recebidos no

efeito devolutivo.” (BRASIL, 1941)

Há de se registrar que, sob a ótica da atual legislação, não houve diferenças

significativas neste ponto, uma vez que, o artigo 1029, §5º dispõe que: “O pedido de

concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário ou a recurso especial poderá

ser formulado por requerimento dirigido...”, ou seja, a atribuição desse efeito não

ocorre de forma automática.

Dessa forma, ainda que a análise do tema fosse feita exclusivamente com

base na legislação infraconstitucional, não haveria que se falar em óbice a execução

provisória da pena com fulcro no art. 283 do CPP, que aduz: “ninguém poderá ser

preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade

judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em

julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária

ou prisão preventiva”, uma vez que, conforme visto há legislação específica que

permite a execução provisória da pena.

Nada obstante a clareza da legislação no âmbito do processo penal, em

2009, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas corpus 84.078-7 MG,

por sete votos a quatro, através de mutação constitucional que alterou consolidada

jurisprudência da Suprema Corte, em razão do princípio da presunção de inocência

previsto no artigo 5º, LVII da Constituição Federal, entendeu por proibir a execução

provisória da pena atribuindo a esses recursos constitucionais efeito suspensivo.

63

O julgamento do aludido writ, com repercussão geral, referia-se à

possibilidade de expedição de mandado de prisão contra pessoa que teve sua

condenação mantida pelo segundo grau de jurisdição, in casu, um indivíduo

condenado com incurso nas tenazes dos tipos previstos no artigo 121, § 2º, incisos I

e IV C/C o artigo 14, II ambos do Código Penal.

O Excelentíssimo Senhor Ministro Eros Grau, relator do habeas corpus em

comento, concedeu a ordem a fim de determinar que o paciente aguardasse em

liberdade o trânsito em julgado da ação penal. Na fundamentação de seu voto,

considerou, com base no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, a vedação a

execução provisória da pena, verbis:

Aliás a nada se prestaria a Constituição se esta Corte admitisse que alguém viesse a ser considerado culpado – e ser culpado equivale a suportar execução provisória de pena – anteriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial imponham ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. (voto do Excelentíssimo Ministro Eros Grau no Habeas corpus 84.088-7, p. 1057)

E mais à frente, continua:

A execução da sentença antes de transitada em julgado é incompatível com o texto do art. 5º, inciso LVII da Constituição do Brasil. Colho, em voto de S. Exa. no julgamento do HC 69.964, a seguinte assertiva do Ministro Sepúlveda Pertence: “… quando se trata de prisão que tenha por título sentença condenatória recorrível, de suma, uma: ou se trata de prisão cautelar, ou de antecipação do cumprimento da pena. (…) E antecipação de execução de pena, de um lado, com a regra constitucional de que ninguém será considerado culpado antes que transite em julgado a condenação, são coisa, data venia, que se ‘hurlent de se trouver ensemble’. (voto do Excelentíssimo Ministro Eros Grau no Habeas corpus 84.088-7, p. 1061).

Data venia, não se pode concordar com aquele entendimento do STF,

pelos motivos que se passa a expor.

Os ministros que votaram a favor da concessão da ordem o fizeram com

base no citado dispositivo constitucional que preleciona: “ninguém será considerado

culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Realmente, a partir de uma leitura superficial e meramente literal do referido

inciso, poder-se-ia chegar à conclusão da impossibilidade da prisão antes do trânsito

64

em julgado da sentença. Todavia, a ciência constitucional impõe uma leitura mais

aprofundada, que transcende meras interpretações literais do texto legal. Nesse

sentido, faz-se imprescindível utilizar de uma interpretação sistemática e teleológica

da própria Constituição Federal que, a seu turno, também, eleva ao status de direito

fundamental o princípio da proteção penal suficiente.

O próprio STF de forma acertada, inclusive, já teve a oportunidade de

utilizar-se da aludida técnica interpretativa no julgamento da ADPF 132, quando a

despeito do texto expresso do artigo constitucional, reconheceu o casamento

homoafetivo à luz da sistematização do ordenamento jurídico constitucional.

Não há como negar que a complexidade das relações sociais motivou a

evolução do constitucionalismo, até se chegar, no atual momento histórico, no

neoconstitucionalismo que, em muitos momentos, prescinde de meras interpretações

literais do texto legal, pois necessita de técnicas mais sofisticadas para a solução

daquilo que a doutrina denomina hard cases.

Felizmente, em fevereiro do corrente ano, o STF acertou em resgatar o seu

antigo posicionamento nos autos do HC 126292/SP; por sete votos a quatro, votaram

para permitir a prisão, após a segunda instância, os ministros Teori Zavascki, Edson

Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.

De forma contrária, votaram Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e

Ricardo Lewandowski.

Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso, no fundamento de seu voto22,

demonstrou de forma primorosa por que a permissão da execução provisória da pena

após o julgamento de segundo grau se mostra acertada.

Inicialmente, ao discorrer sobre mutação constitucional, o Ministro

consignou que: “O direito não existe abstratamente. As teorias concretistas da

interpretação constitucional enfrentaram e equacionaram este condicionamento

recíproco entre norma e realidade.” (BRASIL, 2016, p. 31)

Com isso, o autor quer afirmar que o direito não pode se dissociar da

realidade, como se fosse um fim em si mesmo. Justamente por isso, quando as

normas constitucionais são dotadas de elasticidade, elas estarão suscetíveis a uma

22 Doravante, as citações de Luís Roberto Barroso se referem ao seu voto nos autos do Habeas corpus nº 126.292/SP julgado em 17 de maio 2016. Disponível em: <http://migre.me/vvKWL>. Acesso em: 03 jun. 2016.

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nova percepção. Sobre esse tema, vale lembrar o valoroso ensinamento presente no

voto da Excelentíssima Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

Maria Gladys Lima Vieira quando assentou:

De todos os cantos que cotidianamente tentam iludir o aplicador do direito, há um que o judiciário não pode se deixar levar: acreditar que o direito é um fim em si mesmo, não o é, o direito deve objetivar a sociedade em seu sentido lato e o indivíduo em si. O processo é instrumento que deve ser utilizado em prol do direito material que, a seu turno, deve buscar a justiça social. (Embargos de Declaração: 0122021-21.2009.8.06.0001/5000, 7ª Câmara Cível, Desembargadora Relatora: Maria Gladys Lima Vieira, 17 mar. 2015)

Nesse sentido, são incontáveis os danos sociais que a anterior

jurisprudência do Supremo causou à sociedade brasileira, perpassando desde o

incentivo à interposição de recursos protelatórios que movimentam o judiciário com

gastos de recursos (BRASIL, 2016, p. 32), até o aumento do descrédito da sociedade

para com o sistema de justiça penal, que favorece a sensação de impunidade e

compromete a finalidade do direito penal, tanto na prevenção geral e especial dos

crimes (BRASIL, 2016, p. 34).

Contudo, os argumentos que defendem a posição adotada não se

restringem meramente ao campo sociológico, mas encontram forte amparo na teoria

do direito constitucional.

Barroso inicialmente defende que a partir de uma leitura sistêmica da

Constituição se infere que o pressuposto para a decretação da prisão no direito

brasileiro não é o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas a ordem judicial

escrita e fundamentada. Assim, assenta:

Veja-se que, enquanto o inciso LVII define que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo, o inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Como se sabe, a Constituição é um conjunto orgânico e integrado de normas, que devem ser interpretadas sistematicamente na sua conexão com todas as demais, e não de forma isolada. Assim, considerando-se ambos os incisos, é evidente que a Constituição diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão [destacou-se]. Tanto isso é verdade que a própria Constituição, em seu art. 5º, LXVI, ao assentar que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, admite a prisão antes do trânsito em julgado, a ser excepcionada pela concessão de um benefício processual (a liberdade provisória). (MATOS, 2016, p. 36)

66

O Ministro continua e cita a existência das prisões: cautelares, para fins de

extradição, para expulsão e para deportação, nas quais, em todos os casos, o

princípio da presunção de inocência não obsta a prisão (MATOS, 2016, p. 37).

Poder-se-ia até se conjecturar que não haveria de se fazer tal comparação,

porque, alguns desses institutos, tal como as prisões preventivas, são decretadas a

partir de um juízo de periculosidade e não culpabilidade. Todavia, com essa premissa

não se pode concordar, uma vez que, malgrado seja verdade que nas prisões

cautelares haja uma maior preponderância do juízo de periculosidade, o juízo de

culpabilidade não é levado a zero, mormente quando um dos seus requisitos é o fumus

commissi delicti. Na realidade, em toda decretação de prisão, em maior ou menor

grau, há sim um juízo de culpabilidade.

Ademais, malgrado seja a prisão o maior e mais nefasto efeito da

culpabilidade, não é o único, pois existem diversos outros fatores que só podem ser

produzidos com o trânsito em julgado, como os efeitos extrapenais (indenização do

dano causado pelo crime, perda de cargo, função pública ou mandato eletivo) e os

efeitos penais secundários (reincidência, aumento do prazo da prescrição na hipótese

de prática de novo crime), entre outros (BRASIL, 2016, p. 37).

Em segundo lugar, Barroso apresenta seu argumento mais forte, a

presunção de inocência é um princípio, não uma regra, e como tal pode ser restringida

por outras normas constitucionais através da ponderação (BRASIL, p. 39).

Nesse sentido, à luz da teoria e da hermenêutica constitucional, cita-se uma

de suas premissas basilares, que afirma não existirem direitos absolutos. Outrossim,

na perspectiva de que o direito penal tem a função de proteger os bens jurídicos mais

importantes da sociedade, entender que a sistemática do nosso ordenamento jurídico

veda o cumprimento provisório da pena de forma irrestrita e absoluta vai ao encontro

do direito fundamental que a população tem a uma proteção penal eficiente. Nesse

sentido, ensina Marmelstein:

…sacralizar as garantias criminais, como se fossem valores absolutos e exageradamente inflexíveis, significa abrir a porta para a impunidade e, vale enfatizar, os direitos fundamentais não compactuam com a impunidade, já que o Estado tem o dever de punir qualquer violação a esses direitos. Portanto, jamais se deve imputar aos direitos fundamentais a culpa pela impunidade crônica que assola o país. A culpa, na verdade, não é dos direitos em si, mas das interpretações extremistas que são feitas, inclusive por alguns membros do Judiciário, que colocam as garantias processuais como valores irretocáveis e inflexíveis, sem atentar para a ideia de

67

proporcionalidade e para o dever de combate à criminalidade. (2013, p. 415-416).

Em consonância ao que se defende no presente trabalho, Barroso discorre

justamente sobre o dever de proteção suficiente do Estado e assenta:

O princípio da proporcionalidade, tal como é hoje compreendido, não possui apenas uma dimensão negativa, relativa à vedação do excesso, que atua como limite às restrições de direitos fundamentais que se mostrem inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais em sentido estrito. Ele abrange, ainda, uma dimensão positiva, referente à vedação à proteção estatal insuficiente de direitos e princípios constitucionalmente tutelados. (2016, p. 42)

E na sequência, afirma:

Na presente hipótese, não há dúvida de que a interpretação que interdita a prisão anterior ao trânsito em julgado tem representado uma proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas. Afinal, um direito penal sério e eficaz constitui instrumento para a garantia desses bens jurídicos tão caros à ordem constitucional de 1988 [Destacou-se]. (2016, p. 42)

E arremata justificando que: “Em verdade, a execução da pena nesse caso

justifica-se pela necessidade de promoção de outros relevantes bens jurídicos

constitucionais.” (BRASIL, 2016, p. 43)

Em um segundo ponto, há de se verificar que via de regra, os recursos

extraordinário e especial têm a função nomofilácica de proteção ao direito

constitucional e a legislação federal, não sendo instrumentos aptos a rediscutir matéria

fática. Destarte, é inconcebível que após uma condenação em primeiro grau,

confirmada pelo segundo grau, continue a se falar em presunção de inocência

(BARROSO, 2016, p. 41). Ora, a função jurisdicional, por mais que tenha seu exercício

dividido, é una, exercendo cada órgão judiciário suas funções mediante competência

previamente estabelecida da Constituição Federal. É extremamente prejudicial para a

sistemática judiciária brasileira a manutenção desse sistema judiciário a partir do qual

as instâncias inferiores são meramente grau necessário para se chegar à verdadeira

decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, afinal as instâncias ordinárias são

tão investidas de jurisdição e idoneidade quantos as superiores. Desta feita,

consignou o Ministro Joaquim Barbosa no julgamento de 2009:

Isto significa que não se deve fazer letra morta das decisões proferidas

68

pelas instâncias ordinárias do Poder Judiciário. Do contrário, melhor seria que todas as ações fossem processadas e julgadas diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, já que somente uma decisão irrecorrível desta Corte poderá dar credibilidade a uma decisão condenatória[...] Veja-se que não se trata de relegar a inoperância o princípio da presunção de inocência do acusado, mas se estará a velar pelo cumprimento provisório de provimento condenatório, já exaustivamente decidido nas instâncias ordinárias. Volto a frisar, as instâncias competentes para o exame dos fatos. Ora, o princípio do estado de inocência não é absoluto e incontrastável em nosso ordenamento jurídico; foi com base na sua ponderação que, por exemplo, esta Corte sempre entendeu e continua entendendo legítimos os institutos da prisão preventiva e da prisão temporária. Relativamente ao condenado, a execução provisória da pena também é de ser admitida, considerada não a culpa inconteste do réu, mas a existência de decisões judiciais condenatórias, calcadas nos exames dos fatos, que tornam legítima a privação da sua liberdade. (Voto do Ministro Joaquim Barbosa nos autos do HC 84.078-7, p. 1142/1143).

Consequentemente, a partir da seriedade que se deve atribuir às instâncias

ordinárias, verifica-se que “o princípio da presunção de inocência adquire peso

gradativamente menor na medida em que o processo avança, em que são produzidas

provas e as condenações ocorrem.” (BRASIL, 2016, p. 41)

Malgrado possa-se até cogitar que o preso possa conseguir faticamente

alterar a sua situação mediante a utilização dessas ferramentas, verifica-se que isso

ocorre de forma excepcionalíssima. A partir de dados da assessoria de gestão

estratégia do STF, o Ministro Luís Roberto Barroso consignou em seu voto que no

período de 01/01/2009 até 19/04/2016 o percentual de recursos criminais providos em

favor do réu é de 1,12%, dentre as quais se configuram decisões favoráveis em

provimento de recursos para promover a progressão de regime, remover o óbice à

substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, conceder regime

menos severo que o fechado no caso de tráfico, reconhecimento de prescrição e

refazimento de dosimetria, dentre outros (BRASIL, 2016, p. 33).

São mais raros ainda os casos de absolvição: “em 25.707 decisões de

mérito proferidas em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões

absolutórias não chegam a representar 0,1% do total de decisões.” (BRASIL, 2016, p.

33)

Neste ponto, faz-se imprescindível salientar uma constatação óbvia que,

na maior parte dos casos, é negligenciada quando se discute o assunto: ao retirar dos

recursos constitucionais o efeito suspensivo e permitir a execução provisória da pena

o Supremo estabelece uma regra que obviamente no caso concreto pode sofrer

69

relativização. É inconcebível querer disciplinar a exceção como a regra, mormente

quando as consequências se mostram tão caras para a sociedade, como ocorre no

presente caso. Porém, não se pode deixar de mencionar que em situações

excepcionais, quando patente a ilegalidade, deverá o judiciário se utilizar da técnica

do distinguishing para no caso concreto afastar o precedente e possibilitar que o réu

aguarde o trânsito em julgado em liberdade, fazendo uso, por exemplo, de habeas

corpus.

Sobre a aludida ferramenta, conceitua a doutrina:

Em dadas hipóteses, ao atribuir racionalidade a uma decisão pautada em um dado precedente que atua na qualidade de paradigma, o julgador observa e expõe que, apesar de aparente semelhança ou analogia, a demanda apreciada possui peculiaridades próprias aptas a afastar a incidência do precedente paradigma, mesmo que vinculante. Esse método de decisão denomina-se de distinção. (TARANTO, 2010, p. 280)

Todavia, não se pode confundir a distinção com o mero não seguimento da

orientação paradigma (TARANTO, 2010, p. 281). Fato esse que favorece a

insegurança jurídica e demonstra um desrespeito para com a colegialidade dos órgãos

superiores. Infelizmente, isso tem sido feito por próprios ministros do STF, que

vencidos no julgamento do HC 126292/SP neste ano, continuam se negando a aplicar

a orientação firmada pela Suprema Corte, inclusive fazendo uso de decisões

monocráticas23.

Barroso continua e também defende que após a condenação em segundo

grau, a execução provisória da pena mostra-se necessidade de ordem pública. Ele

afirma que o STF tem entendido como ordem pública: “a necessidade de resguardar

a integridade física do acusado e impedir a reiteração de práticas criminosas, a

exigência de assegurar a credibilidade das instituições públicas, notadamente do

Poder Judiciário.” (2016, p. 44) Nesse sentido:

No momento em que se dá a condenação do réu em segundo grau de jurisdição, estabelecem-se algumas certezas jurídicas: a materialidade do delito, sua autoria e a impossibilidade de rediscussão de fatos e provas. Neste cenário, retardar infundadamente a prisão do

23 Por todos, cite-se os exemplos dos Ministros Celso de Mello e do Presidente da Corte Ricardo Lewandowski, que já após o julgamento do aludido habeas corpus, concederam liminar monocrática para impedir o cumprimento provisório da pena. No caso do Presidente do STF, a liminar foi concedida durante o recesso judiciário, tendo o próprio Ministro Relator do Caso, Edson Fachin, ao retornar do recesso, revogado a liminar.

70

réu condenado estaria em inerente contraste com a preservação da ordem pública, aqui entendida como a eficácia do direito penal exigida para a proteção da vida, da segurança e da integridade das pessoas e de todos os demais fins que justificam o próprio sistema criminal. Estão em jogo aqui a credibilidade do Judiciário – inevitavelmente abalada com a demora da repreensão eficaz do delito –, sem mencionar os deveres de proteção por parte do Estado e o papel preventivo do direito penal. (2016, p. 45)

Outro ponto que deve ser observado diz respeito ao direito comparado.

Obviamente que, quando se fala na legislação de outros países, deve-se considerar

que o direito como uma construção social deriva de características próprias de cada

povo. Todavia, essa constatação não impede que se observe e aprenda com aquilo

que é benéfico para a sociedade brasileira.

Desta feita, o Ministro Teori Zavascki, relator do habeas corpus em

comento, cita a Ministra Ellen Gracie quando do julgamento do HC 85.886, que na

ocasião assentou: “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de

jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da

Corte Suprema”.

E vai além, trazendo para o bojo de seu voto o trabalho de Luíza Cristina

Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman, denominado Execução

Provisória da Pena. Um contraponto à decisão do Supremo Tribunal Federal no

Habeas corpus n. 84.078, verbis:

a) Inglaterra Hoje, a legislação que trata da liberdade durante o trâmite de recursos contra a decisão condenatória é a Seção 81 do Supreme Court Act 1981. Por esse diploma é garantida ao recorrente a liberdade mediante pagamento de fiança enquanto a Corte examina o mérito do recurso. Tal direito, contudo, não é absoluto e não é garantido em todos os casos. (…) O Criminal Justice Act 2003 representou restrição substancial ao procedimento de liberdade provisória, abolindo a possibilidade de recursos à High Court versando sobre o mérito da possibilidade de liberação do condenado sob fiança até o julgamento de todos os recursos, deixando a matéria quase que exclusivamente sob competência da Crown Court’. (…) Hoje, tem-se que a regra é aguardar o julgamento dos recursos já cumprindo a pena, a menos que a lei garanta a liberdade pela fiança. [...] b) Estados Unidos A presunção de inocência não aparece expressamente no texto constitucional americano, mas é vista como corolário da 5ª, 6ª e 14ª Emendas. Um exemplo da importância da garantia para os norte-americanos foi o célebre Caso ‘Coffin versus Estados Unidos’ em 1895. Mais além, o Código de Processo Penal americano (Criminal Procedure Code), vigente em todos os Estados, em seu art. 16 dispõe que ‘se deve presumir inocente o acusado até que o oposto seja

71

estabelecido em um veredicto efetivo’. (…) Contudo, não é contraditório o fato de que as decisões penais condenatórias são executadas imediatamente seguindo o mandamento expresso do Código dos Estados Unidos (US Code). A subseção sobre os efeitos da sentença dispõe que uma decisão condenatória constitui julgamento final para todos os propósitos, com raras exceções. (…) Segundo Relatório Oficial da Embaixada dos Estados Unidos da América em resposta à consulta da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, “nos Estados Unidos há um grande respeito pelo que se poderia comparar no sistema brasileiro com o ‘juízo de primeiro grau’, com cumprimento imediato das decisões proferidas pelos juízes”. Prossegue informando que “o sistema legal norte-americano não se ofende com a imediata execução da pena imposta ainda que pendente sua revisão”. c) Canadá (…) O código criminal dispõe que uma corte deve, o mais rápido possível depois que o autor do fato for considerado culpado, conduzir os procedimentos para que a sentença seja imposta. Na Suprema Corte, o julgamento do caso R. v. Pearson (1992) 3 S.C.R. 665, consignou que a presunção da inocência não significa, “é claro”, a impossibilidade de prisão do acusado antes que seja estabelecida a culpa sem nenhuma dúvida. Após a sentença de primeiro grau, a pena é automaticamente executada, tendo como exceção a possibilidade de fiança, que deve preencher requisitos rígidos previstos no Criminal Code, válido em todo o território canadense. d) Alemanha (…) Não obstante a relevância da presunção da inocência, diante de uma sentença penal condenatória, o Código de Processo Alemão (…) prevê efeito suspensivo apenas para alguns recursos. (…) Não há dúvida, porém, e o Tribunal Constitucional assim tem decidido, que nenhum recurso aos Tribunais Superiores tem efeito suspensivo. Os alemães entendem que eficácia (…) é uma qualidade que as decisões judiciais possuem quando nenhum controle judicial é mais permitido, exceto os recursos especiais, como o recurso extraordinário (…). As decisões eficazes, mesmo aquelas contra as quais tramitam recursos especiais, são aquelas que existem nos aspectos pessoal, objetivo e temporal com efeito de obrigação em relação às consequências jurídicas. e) França A Constituição Francesa de 1958 adotou como carta de direitos fundamentais a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, um dos paradigmas de toda positivação de direitos fundamentais da história do mundo pós-Revolução Francesa. (…) Apesar disso, o Código de Processo Penal Francês, que vem sendo reformado, traz no art. 465 as hipóteses em que o Tribunal pode expedir o mandado de prisão, mesmo pendentes outros recursos. (…) f) Portugal [...] O Tribunal Constitucional Português interpreta o princípio da presunção de inocência com restrições. Admite que o mandamento constitucional que garante esse direito remeteu à legislação ordinária a forma de exercê-lo. As decisões dessa mais alta Corte portuguesa dispõem que tratar a presunção de inocência de forma absoluta

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corresponderia a impedir a execução de qualquer medida privativa de liberdade, mesmo as cautelares. g) Espanha (…) A Espanha é outro dos países em que, muito embora seja a presunção de inocência um direito constitucionalmente garantido, vigora o princípio da efetividade das decisões condenatórias. (…) Ressalte-se, ainda, que o art. 983 do Código de Processo Penal espanhol admite até mesmo a possibilidade da continuação da prisão daquele que foi absolvido em instância inferior e contra o qual tramita recurso com efeito suspensivo em instância superior. h) Argentina O ordenamento jurídico argentino também contempla o princípio da presunção da inocência, como se extrai das disposições do art. 18 da Constituição Nacional. Isso não impede, porém, que a execução penal possa ser iniciada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. De fato, o Código de Processo Penal federal dispõe que a pena privativa de liberdade seja cumprida de imediato, nos termos do art. 494. A execução imediata da sentença é, aliás, expressamente prevista no art. 495 do CPP, e que esclarece que essa execução só poderá ser diferida quando tiver de ser executada contra mulher grávida ou que tenha filho menor de 6 meses no momento da sentença, ou se o condenado estiver gravemente enfermo e a execução puder colocar em risco sua vida. (HABEAS CORPUS 126292/SP, p. 12-15)

No último dia 05 de outubro, o Supremo Tribunal Federal apreciando, em

sede de cautelar – por maioria – a ADC 44 e ADC 43 ajuizada, respectivamente, pelo

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Partido Ecológico

Nacional, que visavam, a partir da leitura do art. 283 do CPP, obstaculizar a execução

provisória da pena, a partir de divergência aberta pelo Excelentíssimo Ministro Fachin,

concedeu interpretação conforme a Constituição ao aludido dispositivo do CPP, a fim

de atribuir efeito suspensivo e possibilitar a execução provisória da pena24.

Com efeito, qualquer pretenso garantismo que constitua óbice à efetivação

dos fins ao qual o direito penal se presta, consubstanciar-se-á como pretexto para a

impunidade. No presente trabalho, já foi exaustivamente citado quais fins são esses,

dentre os quais: a própria punição e a prevenção geral e específica. Dentro da matéria

da execução provisória da pena, querer obstaculizar sua possibilidade em razão da

literalidade do texto constitucional, olvidando toda a construção da teoria do direito

constitucional e da nova hermenêutica constitucional é querer utilizar do garantismo

para perpetrar a impunidade, distanciando-se do seu fim maior e, consequentemente,

contribuindo para sua banalização.

24 Disponível em: <http://migre.me/vyAZR>. Acesso em: 17 out. 2016.

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Não há como se negligenciar que o direito funciona como um sistema de

incentivos. Na esteira do que ensina Barroso, as decisões das pessoas são tomadas

levando-se em conta riscos e benefícios. Assim, quando o sistema de justiça penal de

uma sociedade não é dotado de credibilidade, há uma certeza da impunidade e o

favorecimento da prática de crimes (BRASIL, 2016, p. 52).

Todavia, essa constatação do autor não é nova e já foi ensinada desde o

século XVII por Beccaria, em passagem que poderia sintetizar a mensagem que se

quer passar neste trabalho: “A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável

causará sempre uma forte impressão, mais forte do que o vago temor de um suplício

terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade.” (2012,

p. 59)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do apresentado no presente trabalho, pode-se sintetizar, mais uma

vez, que todas as vezes que houver uma afronta aos bens jurídicos mais importantes

da sociedade, o direito penal deverá incidir e, quando isso não ocorrer,

consubstanciar-se-á a impunidade.

A questão é que os efeitos negativos da impunidade para qualquer

sociedade são inúmeros, mas há um exemplo bem próximo da cultura nordestina que

bem pode demonstrar isso: a história de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que

teria entrado para o cangaço devido a uma injustiça, o assassinato de seu pai que

teria sido tratado com descaso pela justiça. Na ocasião, quando Lampião fez a

denúncia, o juiz solicitou um advogado e três testemunhas. Jorge Melo conta que:

“passado algum tempo e decepcionado com aquilo, Lampião entregou-se ao cangaço.

Munido de uma espingarda e 300 balas disse: diga pro [sic] juiz que agora eu tenho

um advogado e 300 testemunhas.” (2016, p. 15)

No Brasil, o quadro da impunidade é desolador, principalmente quando

estudos mostram que a cada 100 homicídios cometidos no país, tão somente, entre 5

e 8 são elucidados. Observe-se que quando se fala em elucidação, diz-se respeito a

crimes que foram devidamente investigados, todavia, não necessariamente julgados

(JORGE NETO, 2016, p. 221-222)

A consequência direta disso se perfaz no quadro de violência brasileiro,

segundo dados da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz, através do Conselho

Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, Fortaleza é hoje a 12ª cidade mais

perigosa do mundo25. Em 2013, o Mapa da Violência mostrou que o Brasil tem uma

taxa de 19,3 homicídios para cada 100 mil habitantes, enquanto o Ceará apresenta

25 para cada 100 mil, salientando que a Organização Mundial de Saúde considera

endêmicos os índices de violência superiores a 10 homicídios para cada 100 mil

habitantes (JORGE NETO, 2016, p. 237).

Nada obstante, ainda há quem diga que no Brasil se prende demais, afinal

o país conta a quarta maior população carcerária do mundo. Todavia, não há como

25 Disponível em: <http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/biblioteca/prensa/category/6-prensa> Acesso em: 28 ago. 2016

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se desconsiderar o lobby por trás de afirmações como essas, principalmente quando

não é considerado o fato de o Brasil ser o quinto país mais populoso do mundo e que

tem uma taxa de 301 presos para cada 100 mil habitantes, que o coloca na trigésima

primeira posição com maior população carcerária do planeta dentre 222 participantes.

O interesse por trás desse tipo de discurso se perfaz na mudança de objetivo, pois: “o

foco passa a ser, simplesmente, apoiar leis que possam diminuir penas e número de

pessoas presas,” (JORGE NETO, 2016, 250) favorecendo a quem interessa um direito

penal fraco e retirando da responsabilidade do Estado o aparelhamento do sistema

penitenciário.

O descrédito na justiça e o crescimento da violência faz acreditar que a

sociedade brasileira tem enfrentado o fenômeno semelhante ao que Arendt

denominou de banalidade do mal, ao descrever o julgamento de Otto Adolf Eichmann,

membro do regime de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial e responsável pelo

extermínio de milhares de judeus.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Eichmann, exilado na Argentina,

foi sequestrado por agentes da Mossad e levado a Jerusalém para ser julgado por

seus crimes contra o povo judeu. Todavia, ao assistir o seu julgamento, a autora não

viu no réu um sádico perseguidor de judeus, mas um cidadão que cumpriu suas leis.

Hannah assevera que “à medida que passavam os meses e os anos, ele perdeu a

necessidade de sentir fosse o que fosse. Era assim que as coisas eram, essa era a

nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer.” (ARENDT, 1999, p. 152)

Atualmente, vê-se que a sociedade se acostumou assustadoramente com

o mal. As grandes emissoras de televisão têm dado destaque a programas policiais

que exploram com sensacionalismo a mais profunda miséria que a violência provoca

na vida das pessoas; o crime passou a ser algo do cotidiano do brasileiro; o roubo, o

furto e até o homicídio não chocam; a sociedade não acredita mais na polícia e no

judiciário.

Por óbvio que não se olvida que no sistema penal há diversas injustiças

que refletem as próprias desigualdades da sociedade brasileira. Há diversos presos

que estão encarcerados por crimes que não apresentam lesividade suficiente para

justificar uma constrição, que enfrentam excesso de prazo em suas prisões, a quem

são devidos a progressão de regime, mas que não são beneficiados com seu direito.

Não se pode esquecer que há sim por trás do direito penal um interesse

social que a justiça não pode negligenciar. Todavia, não se pode confundir esse

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interesse social com o mero clamor popular que é movido apenas pela emoção, sendo

desprovido de cientificidade e que almeja tão somente a vingança enquanto aquele

representa o interesse social legítimo.

Por exemplo, quando se fala em contramajoritariedade dos direitos

fundamentais, leva-se em consideração que os direitos fundamentais inerentes a um

único indivíduo não podem ser relativizados frente a uma coletividade; assim, as

minorias têm seus direitos garantidos em face das maiorias eventuais. Todavia, é

errado se falar, mesmo nesses casos, que a justiça não deve levar em consideração

a sociedade, porque na própria contramajoritariedade reside um interesse social. Essa

ideia é mais facilmente explicada na frase de Martin Niemöeller, pastor protestante

que costumava pregar sermões de caráter antissemita no início da Segunda Guerra

Mundial e, com o desenrolar do holocausto, foi enviado para campo de concentração

nazista por ser negro: “eles vieram primeiro para os comunistas e não disse nada

porque não era comunista; então eles vieram para os judeus, mas não disse nada

porque não era judeu; então eles vieram para os católicos, mas eu não disse nada

porque era protestante; ai eles vieram para mim e não havia mais ninguém que

pudesse falar por mim.”26

O tema ora tratado é muito complexo e necessita do estudo aprofundado

de outros temas, que deverão ser aperfeiçoados quando de uma futura pesquisa

acadêmica, dentre os quais se evidencia: a possibilidade de atribuição de direitos

fundamentais a coletividades e a dicotomia entre Alexy e Ronald Dworkin, a

possibilidade de se falar no âmbito da teoria da decisão judicial em decisão correta e

errada, a existência de deveres fundamentais, a teoria das velocidades do direito

penal, o direito como um sistema de incentivos, dentre outros.

Este trabalho não tem a pretensão de trazer soluções para o sistema penal

e penitenciário brasileiro ou, sequer, qualquer verdade pronta. O que aqui se propõe

a fazer é se discutir um assunto que é negligenciado principalmente no âmbito da

academia, mas que é importante e urgente. Faz-se necessário que surjam estudiosos

e operadores do direito comprometidos com a efetividade do direito penal por meio de

discussões práticas e que reflitam em benefícios para a sociedade.

A doutrina constitucionalista sempre faz lembrar da obra de Homero,

quando no capítulo XII da “Odisseia”, o personagem principal Ulisses, em uma viagem

26 Frase posta no Memorial do Holocausto de Boston/EUA.

78

de barco, ao saber que passaria próximo a uma ilha de sereias, famosas por seus

cantos enfeitiçadores que comumente atraiam os marinheiros para o afogamento,

determinou à tripulação que se amarassem em um dos mastros do navio, pois caso

contrário sucumbiriam diante dos cantos das sereias. Assim, é o direito constitucional

como um pré-compromisso da sociedade diante das dificuldades que podem vir a

enfrentar.

O operador do direito constitucional e penal está diante de dois tipos de

cantos: querer atribuir ao direito penal as soluções para os problemas da sociedade e

lidar com o direito como se fosse um fim em si mesmo, negligenciando os interesses

sociais. Caso escolha dar ouvidos a qualquer deles, a sociedade certamente

sucumbirá.

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