o Dicionário Das Horas Impossíveis Edno Gonçalves Siqueira

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O DICIONÁRIO DAS HORAS IMPOSSÍVEIS Edno Gonçalves Siqueira. Narrativa Poética.

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O DICIONRIO DAS HORAS IMPOSSVEIS Edno Gonalves Siqueira

Tinha acabado de me separar do meu marido. Foram anos de espera, de esperana, de querer que tudo desse certo, mas no deu. Da minha gerao, na roa, eu sempre fui um misto de aberrao pra dentro e mocinha de famlia pra fora. No era mscara, nem mentira, nem falsidade. Fui criada como e para ser me de famlia sria, nos moldes do interior. Sexualidade pra prole e algum gozo possvel. No entanto, eu devaneava e viajava pra longe de toda priso do momento.Desde cedo queria ser exploradora, cientista naturalista. Era isso que eu queria e com cinco no sabia nem que nome era. Ganhei um livro assim que comecei a ler. Era UM Dicionrio de animais e plantas brasileiros. O autor era formado em letras e era zologo tambm. Cincia dura e arte fludica fizeram dele um mix de naturalista bem estereotipado e cronista do encontro da natureza com o homem: o indiana que vem aos trpicos e exerce sua taxonomia que, via de regra, vira taxidermia mas ao modo brasilis, o que ele paralisava mesmo era a relao entre o homem e o meio, na sua descrio dos hbitos. Porque as descries vinham com observaes da vida viva dos homens que conviviam com animais e plantas, costumes e crenas, tudo numa coisa s. Um dente de jaguatirica, seu poder mgico; uma raspa de casca de rvore, uma magia possvel de curar; uma planta assim, um ch, o desejo de uma vida salva. Passei a ver a vida assim: o cru e o cozido, o duro e o flexvel, a cincia e a arte, a tcnica e o artesanato, a causalidade e o impondervel. Nunca mais deixei de ver entre o real tolo cotidiano e a fragmentao dele em cada cabea humana.Passei a suspeitar que toda verdade era s fora da crena que vem antes dela, mas no ela mesma a verdade a crena que se acredita verdadeira, mas no conta pra ningum, nem pra si. Isso apavora os que amam a verdade, deleita os que dela no dependem, ignorado pelos que vivem no fluxo contnuo do viver sem raiz pra trs ou pra frente. Da que passei a adotar a aporia (caminho inexpugnvel, sem sada) como um smbolo de definio e tomada de sentido da vida: o beco sem sada, a encruzilhada do no-saber por onde ir, a torre sem entrada, a inexpugnvel muralha, o horizonte sem trilha, a auto-contradio, o segundo pra tomada de deciso sem volta, o labirinto sem chave, a hora da virada s cegas, o paradoxo que se no decifrado te devora.Ando em terras de no-saber, de preto, em luto, cega e atenta, sigo andando. Presto ateno em tudo, mais em mim. Como morcega, ponho ateno em tudo que chega e reverbera; assim que sei quem sou agora na reao! So duas almas ento: uma que observa em luto de vida o que ocorre outra. Essa outra o corpo, o humor, a simpatia inesperada, o debater-se contra a vida, a aceitao do inevitvel, tudo que for possvel em decorrncia da aporia, do impondervel. Sigo na ateno, eu, a alma de dentro e a de fora tambm. O dicionrio grosso, pesado, de capa azul-parede pobre, era uma admirao s. Fui me dicionarizando. Engordei de ver, engrossei de saber, enlargueci pra conter mais, mas hoje, de luto, as pginas cheias no pesam e as ainda em branco s tm uma marca dgua que acolhe o que vem e recolhe de til o que deve passar: aporia essa marca! E com ela suporto essa espera gloriosa por mais o que escrever. Segue o livro surrado, de capa momentaneamente preta, aberto.