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Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
193 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
ODESVELAMENTODAVERDADE:
HEIDEGGEREAONTOLOGIADAOBRADEARTE
TheUnveilingofTruth:Heideggerandtheontologyoftheworkofart
SolangeAparecidadeCamposCostaUESPI
Resumo:EstetrabalhoexaminaotextoheideggerianoAorigemdaobradearteparasustentaranoçãoda verdade como desvelamento. A investigação segue o fio condutor da ontologia da obra de arte,enquanto encaminha o pensar para a busca do lugar e da importância da arte, que se revelaoriginariamente como habitação poética do próprio homem. O desenvolvimento do trabalho seconcentra,principalmente,emtrêspontos:analisaadiferençadaontologiaheideggerianaemrelaçãoàestéticatradicional;entendeocírculohermenêuticocomoomodomaisapropriadodepensaraarteediscute as definições de coisa que conduzem a um novo horizonte para abordar a arte a partir dopensamentoapropriador.A investigaçãoasseguracomoresultadoaconcepçãodequeohomemestálançadonoprocessodedesvelamentodaverdadeque,pelaontologia,viaobradeartelhegaranteumacessoprivilegiadoaoser.Palavras-chave:Heidegger,verdade,ontologia,obradearte,acontecimentoapropriador.Abstract:ThisarticleexaminestheheideggeriantextTheOriginoftheWorkofArttosupportthenotionof truth asunveiling. The investigation follows theontology leading threadof theworkof art,whileforward thinking to seek theplaceand importanceofart, that revealshow thepoetichousingof thehuman itself. The development of this work is divided, mainly, into three points: it analyses thedifference of the heideggerian ontology in relation to traditional aesthetics; it understands that thehermeneuticalcirclesuchasthemostappropriatewaytothinkaboutartanddiscussthedefinitionofthe “thing” that conduct into a new thinking to approaching art from the enowning thought. Theinvestigationassuresastheresulttheideaofthemanisreleasedintheunveilingprocessoftruthandthat,bytheontology,theworkofartassuresyouaprivilegedaccessofbeing.
Keywords:Heidegger,truth,ontology,workofart,enowning.
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Revelaraarteeocultaroartista,
eisafinalidadedaarte.OscarWilde
1. Consideraçõesiniciais
AsquestõesapontadasporHeideggernaOrigemdaobradearterevelamuma
discussão inovadora na sua filosofia. Além da introdução do termo terra, que em
contrapontoaomundoestabeleceumnovolugarparaaobradearte,apróprianoção
deverdadesuscitadapelaobra,ganhanessetexto,umadimensãooriginal.Gadamer,
ao analisar o percurso de Heidegger até meados da década de 30, no texto de
introdução que escreve para a obra, apresenta o fenômeno “hermenêutico da
autocompreensão”1como“novolance”deHeidegger.Oser-aíamplamentediscutido
ecomentadoporHeideggeremSeretempopromoveacompreensãodomundoede
simesmonãomaiscomoserdiantedamão(Vorhandenheit),masapartirdesi,doseu
próprioser.Ser-aíéoentequecompreendeser;compreensãonãoéumapropriedade
que sepossui,mas issoque seé, éummover-sena compreensão.O ser-aí põeem
xeque ametafísica tradicional e passa a pensar o ser como tempo. Essa abordagem
ganha espaço na filosofia heideggeriana. No entanto, certos elementos atemporais
comoaprópriaarteparecemnãoterlugardefinidonohorizontedaautocompreensão
humana:
Oinconsciente,onúmero,osonho,ociclodanatureza,amaravilhadaarte-tudoissopareciaserabarcávelapenasàmargemdohomemque se sabe historialmente e se compreende em si mesmo, comoumaespéciedeconceitoslimite2.
1GADAMER,Hans-Georg.“Paraintrodução”.In:MOOSBURGER,LauradeBorba.“Aorigemdaobradearte”deMartinHeidegger:Tradução,comentáriosenotas.2007.Dissertação.(MestradoemFilosofia)–Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-GraduaçãoemFilosofia,Curitiba,p.25.Oconhecidoensaioheideggeriano“Aorigemdaobradearte”ébaseadoemconferênciasproferidasem1935e36e inseridoporHeideggeremCaminhosdeFloresta(Holzwege)–foifeitaapartirdaversãorevisadapeloautornadécadade50paraumaediçãoespecialda Reclam. Esta edição conta com um posfácio e um suplemento escritos pelo autor, além de umaintrodução por Hans-Georg Gadamer. A introdução de Gadamer foi traduzida pela primeira vez emportuguês nessa dissertação de mestrado citada acima. O texto de introdução escrito por Gadamerlançaumanovapossibilidadeparapensarahermenêuticaapartirdaobradearte,queserviudepontodepartidaparaaproduçãodesteartigo.2GADAMER,Hans-Georg.“Paraintrodução”.In:MOOSBURGER,LauradeBorba.“Aorigemdaobradearte”deMartinHeidegger:Tradução,comentáriosenotas.2007.Dissertação.(MestradoemFilosofia)–
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Então,ésurpreendentequeHeideggertendoalcançadoumacompreensãodo
ser-aí totalmente destituída dos vícios dametafísica se volte para a arte a partir de
elementos tão cosmogônicos, comomundo e terra. SegundoGadamer aOrigemda
obradeartecausaespanto:
Não só porque a arte foi incluída no princípio hermenêutico dacompreensãohumanaemsuahistorialidade,porque foiatémesmocompreendida nessas conferências – como na crença poética deHölderlin e Georges – como o ato de fundação de mundostotalmente historiais; a genuína sensação que significou a novatentativa de pensamento de Heidegger foi a surpreendente novaconceitualização que se antecipou a esse tema. Lá se falava demundoeterra3.
Arelaçãomundoeterracomoelementosbasilaresdaarteéquesustentamo
aparecerdaverdadeedoser-aí,quenãomaissomentecompreendeasieaomundo,
maséaarte,peloembatemundoeterraquedáaohomemumolharnovosobresi
mesmo.ÉnessehorizontehermenêuticodaobradeartequeHeideggerapreendeuma
novaconcepçãodemundoeterra.Assim,essanovaconceitualizaçãocomentadapor
Gadamer permite pensar o surgimento de elementos poéticos que configuram uma
experiênciadeverdadeoriginária.Oabertocriadopelarelaçãoterraemundonaarte,
doam ao homem a verdade em seu aparecer essencial. Essa nova concepção de
verdade só surge a partir da criaçãodo termo “terra”, temaqueperpassa esse viés
poético da obra de arte e permite uma compreensão de verdade pela filosofia
heideggeriana que fundamentará todo pensamento posterior do filósofo,
principalmenteaconcepçãodeacontecimentoapropriador.
Na reflexão sobre a arte, a verdade é experimentada comoacontecimento.Comestanovaexperiênciadaverdade, transforma-se também a experiência da estrutura de construção da verdade:agoranãoémaispensadosomente<<mundo>>comoestaestrutura
Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-GraduaçãoemFilosofia,Curitiba,p.69.3GADAMER,Hans-Georg.“Paraintrodução”.In:MOOSBURGER,LauradeBorba.“Aorigemdaobradearte”deMartinHeidegger:Tradução,comentáriosenotas.2007.Dissertação.(MestradoemFilosofia)–Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-GraduaçãoemFilosofia,Curitiba,p.69.
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de construção,mas o conjunto demundo e Terra. Nesta noção deTerra, oculta-se o passo decisivo queHeidegger concretizou na suaviadepensamentoquandorefletiusobreaarte4.
Éparaessacompreensãoquesevoltaaquestãoquesepretendedesenvolver
neste artigo, Heidegger ao apresentar uma acepção original de verdade surgida a
partirdaartetornapossívelumnovorumoparaopensamento,noentanto,estenão
precisamais repetir o pensar heideggeriano, mas por si mesmo vê em seu próprio
fundamentoarelaçãoorigináriacomaverdadequetodaartetornapossível.Entãoo
que a filosofia heideggeriana possibilita (e na verdade toda e qualquer filosofia
autênticadeveriafazer)éumabalonascategoriaspré-concebidas,nessecaso,dearte
everdade, inaugurandoumpensar fielao seuelementomaisoriginário,qual seja,a
relaçãodeenteeser.Oquesepretendesustentar,portanto,comotesefundamental
destetextoéqueaquiloqueHeideggerpermitevernanovaconcepçãodeverdadea
partirdaartesurgenãopelopensarheideggeriano,masporaquiloqueaprópriaarte
revelaemsi:averdadecomodesvelamento.Dessemodo,épossívelentenderaarte
comoreveladoraedoadoradesentido,porqueelaéantesdetudoumdesvelamento
daverdade.
Para sustentar esse argumento o artigo aqui proposto se divide da seguinte
forma:primeiropropõeinvestigar,seguindoatrilhadopensador,aconcepçãodaobra
de arte como origem, observando a ontologia heideggeriana e sua diferença em
relaçãoàestética.Emseguida,tematizaocírculohermenêuticocomoumnovomodo
de compreender a obra de arte via ontologia e, por último, faz uma análise
exploratória do texto heideggeriano, no que concerne as noções de coisa, que
aparecem no início do ensaio. No entanto, o que se almeja não é apenas repetir a
terminologia e o pensamento heideggeriano, mas abordar a concepção de coisa
segundoumnovoenfoque,quetranscendeanoçãodeutensílioaqualnormalmente
está atrelada. Esse procedimento ajudará a definir e compreender termos
fundamentais da ontologia da arte que sustenta a nossa argumentação do
desvelamentodaverdade.
4PÖGGELER,Otto.AviadopensamentodeMartinHeidegger.Lisboa:InstitutoPiaget,2001,p.199.
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Então, antes de tratar especificamente do texto heideggeriano convém
analisar,aomenosdemodoconciso,osurgimentoeoconceitodeestética5queserá
renunciadapelofilósofoemAorigemdaobradearte.
2. BrevedefiniçãodeEstética
Desde a Antiguidade, o homem se depara com temas ligados a arte, no
entanto,nafilosofiaopensamentosobreelasósetornaráumadisciplinaautônomaa
partirdoséculoXVIII.
Nafilosofiaantiga,porexemplo,aarteédiscutidaporfilósofoscomoPlatãoe
Aristóteles.Platãotratadaarteemdiálogoscomo“Fedro”e“Íon”,nelesaartenãoéa
questãoprincipal,elaserveparacomporaideiadebelezaquefundamentaanoçãode
mímesis,algoqueporsuanatureza,belaeboa,deveserimitada.Nosdiálogos,oque
está em jogo é antes a formação ética do homem que ao imitar uma ordenação
natural das coisas reproduz o belo e atinge não apenas a beleza da forma,mas do
espírito.Assim,afamosarecusadePlatãoaospoetasnaRepúblicaesboçaesse ideal
de formação perfeita que o belo faculta e contrasta com a sedução mundana
provocada pela poesia. Platão não nega o valor da arte, antes a arte só pode ser a
partirdovalor,dosentidomoralqueeladetém.Por issoamímesispossuiumpapel
valiosonaeducação,paraqueoBelosejacontemplado,alcançandoomáximopossível
aperfeiçãodaideia.
SegundoBeneditoNunesnaobraIntroduçãoàfilosofiadaarteastrêsacepções
fundamentaisdeBeloqueprevalecementreosgregoséaestética,moraleespiritual.
Essas trêsconcepçõesconvergemparaqueohomempossaatingirumaconstituição
maispróximapossíveldaplenitude,afimdeespelhararelaçãoprimitivaentreokalós
eagathós.
5Trataremosaquideumabrevedefiniçãodeestética,tentandoentendercomoafilosofiaseincumbiudesseassuntodesdeaantiguidade.Contudo,nãonosaprofundaremosnessaabordagem,vistoqueéumtemaperiféricoaquestãocentralapresentadanotrabalho,servindoapenascomofundamentoparaentender a crítica à estética defendida por Heidegger e para fundamentar a tese que defendo daverdadenaobradearte. Sendoassim,aescolhadealguns filósofos comoPlatãoeKant (no lugardediversosoutrosquepoderiamsermencionados)noquetangeacompreensãodaobradeartesedeveaessanecessidadedeentenderoque significa a estéticadeummodogeral, oque justifica tambémaconcisãoebrevidadedaargumentaçãoutilizada.
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O significado comum das três acepções analisadas, que se ligamentre si como as facetas de umprisma, é a excelência e o grau deperfeição desejáveis nas coisas exteriores, na conduta e noconhecimento.PorissoéqueaBeleza,exteriorizandoessaperfeiçãoque o homem tende a alcançar, como ser racional que é, constituifontedeprazerparaossentidoseparaainteligência,índicedavidafelizealvodelouvores6.
Outra noção ocupa também a discussão sobre arte na antiguidade. A
compreensãodeartesereferiráapartirdeAristótelesapoéticaenquantotéchne7,ou
seja,adescriçãodosgênerosdearte.AobraPoética8deAristóteles seráoprimeiro
grandetratadodefilosofiaatematizarsobreela.Nele,ofilósofodefineosgenêrosde
arte,analisasuacomposiçãoedissertasobreasnormasinternasquearegem.
Nessedomíniodaéticaedatéchnesemanteráadiscussãosobreaarteatéa
modernidade.Comafilosofiaalemãeoadventodaestéticaaprópriacompreensãode
arte se modifica, tornando possível entender não somente os elementos que
compõemaobradearte,maso seumovimentopróprio, seuvir-a-ser, istoé,aquilo
quegaranteidentidadeaobra.DeacordocomPedroSüsskind9:
As poéticas clássicas, passando por Horácio, até a época doIluminismo, resumiam-se a doutrinas normativas que, a partir dadivisãodapoesiaemseustrêsgêneros,definiamoqueeleserameensinavamcomosedeviaescreverumaepopéia,umpoemalíricoouumpoemadramático.Coma filosofiadaartedo Idealismoalemão,tanto os gêneros poéticos quanto os conceitos estéticosfundamentais(comoobeloeosublime)passaramaserpensadosemsuadialéticahistórica,dentrodossistemasfilosóficos.
Por volta de 1750, o termo Estética é criado por Alexander Gottlieb
Baumgarten. A partir de então, surge a compreensão do Belo como sentimento
passível de ser despertado pela arte, podendo surgir de uma contemplação
6NUNES,Benedito.Introduçãoàfilosofiadaarte.SãoPaulo:Ed.Ática,2002,p.19.7NaGréciaantigafoicunhadaaexpressãotechnècomoumaformadeconhecimentoqueprovocaumaabertura.A téchnè não significa técnica, no sentido [moderno]demétodose atosdeprodução, nemarte,nosentidoamplo[medieval]dehabilidadeparaproduziralgumacoisa.Antes,téchnèéumaformade conhecimento [desses processos, métodos e habilidades]; significa: conhecer de dentro, isto é,possuirfamiliaridadecomoqueestánabasedecadaatodefeituraouprodução.8ARISTÓTELES.Poética.SãoPaulo:AbrilCultural.1973.9 SÜSSKIND, Pedro. “Prefácio”. In: SZONDI, P.Ensaios sobre o trágico.Rio de Janeiro: Zahar Editores,2004,p.11.
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desinteressada, não necessariamente vinculada a uma utilidade objetiva. Aí,
definitivamenteaestética lança suasbases,agoraaartenãoservemaisaumoutro
princípio, jáquedesdeaantiguidadeelaseestabelececomoauxiliaresecundáriana
problematização de outras questões éticas ou da teoria do conhecimento. Na
modernidade, a estética passa a servir a sua própria causa e o que interessa é
conhecer,investigaroobjetoestéticoeosentimentoqueeleproduz.
Apalavra “estética” vemdo gregoaísthesis, que significa sensação,sentimento. Diferentemente da poética, que já parte dos gênerosartísticosconstituídos,aestéticaanalisaocomplexodassensaçõesedos sentimentos, investiga sua integração nas atividades físicas ementaisdohomem,debruçando-sesobreasproduções(artísticasounão)dasensibilidade,comofimdedeterminarsuasrelaçõescomoconhecimento,arazãoeaética10.
Asdiscussõespropostaspelaestética jáexistiamnopensamentodesdemuito
tempo,noentanto,égraçasasuasistematizaçãoqueelaganhaautonomiafrenteaos
outroscamposdafilosofia.ElapassaasefocarnoestudodoBeloenosentimentoque
obrade arte provoca.A estética, embora admita que as obras possuamum sentido
históricoematerial,nãosereduzahistóriadaarte,atéporqueaestéticanãoseocupa
somente com a obra de arte em si, mas também com outros elementos que
corriqueiramenteevocamobeloeosublime,porexemplo.
Nessa época a literatura alemã é ainda incipiente como afirma Carpeaux 11:
“Por volta de 1700, a Alemanha é o único país da Europa civilizada sem literatura
alguma. Os alemães afiguram-se aos seus vizinhos como nação iletrada”. Após esse
momentoopaíspassaporumtempodeproduçãoliterárioparticularmenteintenso.O
séc.XVIIIsemostraparaaAlemanhacomoumperíodomuitoprofícuonaliteraturae
nafilosofia.Nessaépoca,surgemsimultaneamente,movimentosimportantescomoo
Iluminismo,oSturmundDrang,oClassicismoeoRomantismo.
Influenciados pelos princípios norteadores da Revolução, mas ao mesmo
tempo,tentandofundamentaroespíritoalemãodesuaépoca,filósofoscomoKante
Fichte discutem, além de outros temas importantes, o espaço da obra de arte. A
10ROSENFIELD,Kathrin.Estética.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,2009,p.7.11CARPEAUX,O.Literaturaalemã.SãoPaulo:NovaAlexandria.1994,p.42.
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filosofiadeKant,criaumanovacompreensãoteóricadoBelo,taisquestõesabremo
horizontepara a reformulaçãodoproblemadas relações entre arte e realidadeque
adentradefinitivamenteoespaçodareflexãofilosófica.
Ainda que Baumgarten seja considerado o criador da estética, será Kant que
realmente fundará suas bases na modernidade. Para Kant o Belo provoca uma
experiência diferenciada que não é despertada nem pelos juízos de conhecimento
(sensibilidadeeentendimento),nempelaexperiênciamoral(dosprincípiosuniversais
válidos para a conduta), mas por uma espécie de satisfação desinteressada, no
entanto, ela não émeramente subjetiva, pois é universalizável. “Não basta, porém,
dizer que a satisfação que acompanha o juízo de gosto é interior e de caráter
contemplativo.OprazerrelacionadocomoBelotendeauniversalizar-se,eénissoque
diferedoprazer sensível”12. Então, seráo juízodegostoquedescortinaráparaKant
umanovaformadeperceberarealidade,oBeloporsertotalmentelivre(dosjuízosdo
conhecimento e da experiência) é que exercerá esse papel de integrar Espírito e
Natureza, realizando a ponte entre intuição e o conceito, entre a subjetividade e o
mundofenomênico.
No juízo de gosto, relacionado com a satisfação desinteressada,contemplativa, apreciamosaBelezapor simesma,desprendidadosnexoscausaisqueconstituemaordemnaturaldosfenômenos,comose,atravésdela,seafirmassenascoisasaliberdadedaqualemanamosfinsideais integrantesdaordemética,equeéumaafirmaçãodoEspírito.13
Abelezanãopossui,portanto,umautilidadeprática,elaélivreedespertaum
prazerquenão temuma funçãopreviamentedeterminada, é um fimem simesma.
SegundoKant14:“AsfloressãobelezaslivresdaNatureza.Obotânicosabeoqueuma
flordeveser;masele,queavêcomoórgãodafecundação(conceito)nãolevaeem
conta esse fim natural (objetivo) quando julga de acordo com o gosto.” O juízo de
gosto kantiano fundamentado na sua Crítica do juízo emerge de uma experiência
estéticaautônoma,ealiobelonãopossui funçãopedagógicaoumoral,comotivera
12NUNES,Benedito.Introduçãoàfilosofiadaarte.SãoPaulo:Ed.Ática,2002,p.49.13NUNES,Benedito.Introduçãoàfilosofiadaarte.SãoPaulo:Ed.Ática,2002,p.50.14KANT,Immanuel.Critiquedujugement.TraduitparJ.Gibelin.Paris:J.Vrin,1951,p.61.
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em períodos anteriores. Para Kant, ele não está nem tão somente no objeto que
provocaosentimentodobelo,nemtãosomentenosujeitoqueoexperimenta,masna
própriaexperiêncianaqualeleésuscitado.Aexperiênciaestéticanascedaatividade
interna de nosso espírito, da imaginação, que evoca o prazer estético a partir da
relaçãocomobelo.
OespíritodoidealismotranscendentalinclinaKantparaanegaçãodetodaobjetividadedobelo;obelonãoénemuma ideiaemsi, nemumaideianoobjeto,nemumconceitoobjetivamentedefinível,nemuma propriedade objetiva do objeto; é uma qualidade queatribuímos ao objeto para exprimir a experiência que fazemos decerto estado de nossa subjetividade atestada pelo nosso prazer.[SegundoKant]‘comose,aochamarmosumacoisabela,setratassede uma propriedade do objeto nele determinada por conceitos e,contudo,abeleza,separadadosentimentodosujeito,nãoénadaemsi’15(DUFRENNE,2002,p.40-41).
O Romantismo e o Idealismo Alemão surgem nitidamente influenciados por
esses princípios kantianos e pela necessidade de fundamentar um pensamento
característico da Germânia (que defina uma identidade própria frente às discussões
francesas). Essas aspirações já se revelavam latentes no movimento do Sturm und
Drang, que abriu espaço para o desenvolvimento do Romantismo16. Nesse sentido,
surge a noção do artista como gênio imaginativo, que pormeio de uma inspiração
criadora(domdanatureza)é impelidoaproduziraobradearte.Oprocessocriativo
passaaseranalisadodesdesuaorigem,eparaoespectadorrestaainvestigaçãosobre
aapreensãodaobra,segundoosentimentouniversalqueelapodedespertar.Assim,
surgem os grandes debates da estética do séc. XVIII e XIX com textos de Fichte,
Schelling,Novalis,GoetheeHegel,entreoutros.
A estética descende dessa discussão que torna a arte um campo a ser
investigado pelo conhecimento e é dessa compreensão que o pensamento
heideggeriano se esquiva. Será com essas influências que surgirão suas primeiras
investigaçõesecríticas.
De acordo com Benedito Nunes o pensamento heideggeriano rompe com a 15DUFRENNE,Mikel.Estéticaefilosofia.Trad.RobertoFigurelli.SãoPaulo:Perspectiva,2002,p.40-4116Sobreessetemaver:SUZUKI,M.Ogênioromântico.SãoPaulo:Iluminuras,1998eGUINSBURG,J.Oromantismo.4.ed.SãoPaulo:Perspectiva,2005.
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estética tradicional e com suas discussões que moldam o pensamento moderno.
SegundoNunes:
Nos Tempos Modernos, a arte passava a ser compreendida,apreciadaeavaliadasobascondiçõesdeumsaberenglobanteacercade sua natureza e de sua função, como experiência vivida, jápreviamentedifusonaculturaantesdeser tematizadana formadeum discurso teórico, de um regime especial e específico deconhecimento. A Estética especificou o estudo doBelo comoo seuobjeto, e considerou a Arte como campo especial de configuraçãodessemesmoobjeto,separadodetodososoutros–doreligiosooudosagrado,domundopráticoedoconhecimentocientífico17.
Com isso, Nunes afirma que a estética não surge completamente na
modernidade,suasquestõesjáestavamdispersasemtodaahistóriadopensamento,
o que não existia era uma ciência específica que se dedicasse unicamente a seu
estudo.Comacriaçãodaestética,adiscussãosobreaobradeartenafilosofiasetorna
independente frente aos outros saberes. O referido artigo citado trata tambémdos
paradoxosdaestética.DeacordocomNunes,emboraaestéticaganhesuaautonomia
namodernidade, seu surgimento traz consigoumaespéciede indigência, uma falta,
poisque,aomesmotempoemqueelainauguraumanovapossibilidadedeanalisara
arte,essasóserápossívelviauma investigaçãodoprópriohomem(enquantoser-aí)
comoaquelequecriaeécriadoporela.Porissoaúnicaviadeentendimentoparaa
arte será para o autor o da hermenêutica que coloca o pensar e a arte como
elementosdeumamesmaraiz.Seráessaco-pertinênciaorigináriaentrearteepensar
possibilitado pela hermenêutica que é esquecida pela estética e por isso mesmo
criticada por Heidegger. Daí descende o pensamento hermenêutico heideggeriano
sobre a arte, principalmente porque a acepção do filósofo desloca a interpretação
estéticaparaaontológica.
Heidegger, nesse sentido, não se ocupa do sentimento universal despertado
pelaarte,nemdesuafunçãoéticaoupedagógica.NãoháparaHeideggerinteresseem
entender como acontece o processo criador, se o artista é mesmo um ser dotado
como queriam os românticos ou se a obra é um objeto passível de ser sentido ou
analisado.ParaHeidegger,antesaartefundaummundo,ouseja,aartefazaverdade
17NUNES,Benedito.Notempodoniilismoeoutrosensaios.SãoPaulo:Ed.Ática,2008,p.55.
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aparecereesseseucarátermaisoriginárioéquerealmentecabeàfilosofia.
O choque que provoca, então, a obra não é mais o de uma“experiência estética”, é do advento da verdade, do momento emque a história começa ou recomeça. Pois toda obra tem umadimensão abrupta, inicial, auroral, porque ela repete ou retoma arelaçãomundo-terraaqualestamosincessantementeexpostos,masque, sobapressãodocotidiano, seguidamenteesquecemos.Aartenosdevolveomundoe terraemestadonascente, istoé, comtudoque eles ainda tem de indeterminados, de desmesurado einquietante18.
A discussão que propomos adentra essa senda aberta por Heidegger. Se a
argumentaçãoaquitratadaarteésomentenessehorizonte,alheioaestéticaclássica
quebuscaesmiuçaroobjetoestéticoparaseconcentrarnaessênciadaartemesma,
naquiloquearelacionacomasdemaiscoisasnomundo,demodoqueaprópriaarte
instituiummundo,noqualnóspodemostambémnosreconhecer.
O objeto estético resume e exprime numa qualidade afetivainexprimível a totalidade sintética do mundo: ele me fazcompreenderomundoaocompreendê-loemsimesmo,eéatravésdesuamediaçãoqueeuoreconheçoantesdeconhecê-loequeeunelemereencontroantesdemeterencontrado19.
Aarte,nessesentido,abreespaçoparaqueascoisasapareçamnasuaorigem.
Esse é seu caráter mais inquietante e extraordinário, ela possui uma competência
natural de mesmo sendo um objeto, uma música, uma escultura, por exemplo,
transporessecorpoedarsentidoatodososelementosquenoscercam.Aarteaocriar
eordenaressemundonaobratambémdásentidoacadaumdenós.
Por issoaartenãoétratadaaquisomentenocampodaestética,porquenão
há nessa acepção um campo específico para a arte de modo que também não é
possívelcriarummétodoquedêcontadeanalisá-lacompletamente.Aliás,nãoéesse
nosso intento, pois se a arte é em estado nascente, cabe a nós pensarmos esse
nascimentoesuapontecomnossasquestõesmaisoriginárias, istoé, comopróprio
destino do pensar. Desse modo, se for mesmo necessário dizer algo sobre como
18HAAR,Michel.Aobradearte:ensaiosobreaontologiadasobras.Trad.MariaHelenaKühner.RiodeJaneiro:Difel,2000,p.91.19DUFRENNE,Mikel.Estéticaefilosofia.Trad.RobertoFigurelli.SãoPaulo:Perspectiva,2002,p.53.
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devemosabordaraarte,entãopoderemossituá-lanocampodaontologia20,natarefa
sempreincessantedepensá-laapartirdeseufundamentooriginário,pensá-laaolargo
dametafísica,no ser.Aontologia,diferentedaestética tradicional,buscaalcançara
essênciadaartee,assim,decertomodo,alcançamosanossaprópriaessência.
Nestecaminho,ométodohermenêutico21aparececomoomaisadequadopara
realizar a ponte entre a obra e nós, pois ele torna possível a “abertura” da obra à
profundidadeinterpretativa,istoé,“abertura”dosujeitomanifestadapelainquietude
daarte,razãodomovimentoedoencontrohermenêutico.
Menos emais do que ciência, no sentido deepistéme, a Estética éHermenêutica. E comoHermenêutica, ela recai no espaço reflexivodo confronto e de aproximação coma ciência histórica e científica.Dessa forma, irremediavelmente filosófica, a Estética não podeinterpretaraarte,seminterpretar-sedeacordocomospressupostosquelheforneceotododaculturadequefazparte22.
A grande possibilidade e aomesmo tempo o grande problema como qual a
estética se depara é o fato de que a arte não é apenas um objeto para o
conhecimento,masaartetambéméalgocriado,quetransformaere-criaoespaçoe
as coisas as quais está ligada. Por isso, o que se propõe aqui nessa abordagem
hermenêutica, via ontologia, é entender a arte como uma interpretação da nossa
própriaexistência,poiselafundaaverdadeenessafundaçãoestabeleceaordemda
nossahistória.Oquesepretendeé,portanto,entenderaartenoseusentidoauroral
(comoafirmaHaar),nessecaráterprimevoeorigináriodeseunascimentonoqualco-
existecomtodasasdemaiscoisasnanatureza.Apreenderessesentidoédarsentido
20ParaHeidegger,jánoparágrafo7ºdeSeretempoaontologia“sóépossívelcomofenomenologia”,(HEIDEGGER,Martin.Seretempo.VolI.Trad.MárciaSáCavalcanteSchuback.Petrópolis:Vozes,2012.p.75),ouseja,comodinâmicade interpretaçãocujodeslocamentoseapresentanaconfluênciaentreaquiloqueaobrarevelaeanossaapreensãodoseusentido.Ésónessarelaçãoqueafilosofiaétomadapelaarte,nessapossibilidadedeumaabordagemfenomenológicaquetrataaartenãocomoumobjetodoconhecimento,mascomointerpretaçãodosentidooriginário.“Osentidometodológicodadescriçãofenomenológicaéainterpretação.AfenomenologiadoDaseinéhermenêutica,nosentidoorigináriodapalavraemquesedesignaoofíciodeinterpretar”.HEIDEGGER,Martin.Seretempo.VolI.Trad.MárciaSá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2012.p. 77. Há assim, em Heidegger, o exercer de umapráticahermenêuticafenomenológica,ou,fenomenologiahermenêutica21Overbohermeneueinédizer,explicaretraduzir.Conf.PALMER,Richard.Hermenêutica.TradMariaLuísaRibeiro.Lisboa:edições70,2006.22NUNES,Benedito.Notempodoniilismoeoutrosensaios.SãoPaulo:Ed.Ática,2008,p.60.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
205 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
(porissohermenêutica)aotodo(aarteeanósmesmos).
3. Ocírculohermenêutico
HeideggeriniciaotextoAorigemdaobradeartebuscandodeterminaroque
significaorigem,paraalcançaroqueaobradearteé,ouseja,oqueacontecenaobra,
um caminho fundamental baseia-se, para o pensador, na pergunta pela origem. Ao
indagar-sepelaobra,emverdade,sebuscasuaorigem,ouseja,oquegaranteàobra
suaefetividade.Entretanto,origemnãoéaquitomadacomopontodepartida,como
inícioquepermaneceemumpassado longínquoeobscuro,mas como fundamento,
aquiloqueforneceàscoisassuaidentidade,aunidadeessencialqueimpulsionaàsua
existência.Quandodizemos,porexemplo,queajanelaé,aorigemdajanelaconstitui-
secomoo“é”,issoéoqueatornajanelaenãooutracoisa.Assim,assegura-seporela
a identidade da coisa consigo mesma. Essa unidade que revela a coisa sua força
própria, Heidegger denomina essência. “Originário significa aqui aquilo a partir de
ondeeatravésdoquealgoéoqueeleéecomoeleé.Aistooquealgoé,comoeleé,
chamamos sua essência. O originário de algo é a proveniência da sua essência”.
(HEIDEGGER,2010,p.35).Aessênciaéoinstantequeinauguraaaberturadacoisae
que a permeia. Portanto, a origem também não é causalidade, não instiga algo de
outro,maséoquepermitequeascoisasapareçamtalcomosão.
A primeira pergunta levantada sobre a origem, instaura um círculo
hermenêutico.Aorigem ligaaobraeoartista,ambos sãoaorigemumdooutro.A
arteé aorigemdaobraedoartista, pormeiodelaestes confirmamsuaexistência.
Dessaforma,épelaartequeoartistaeaobrasetornampossíveis.Aartetraça,então,
ovínculoentreartistaeobra; sónapresençadaarteéqueaobra semanifesta, só
sendo tomadopela arte é queo artista cria. Propõe-se que, ao invés de abandonar
esse imbricadopensamentocircular, seadentrenelea fimdeapreendê-lo.Ocírculo
hermenêuticoseintensifica,agorahádesaberoqueéaarte.
A opinião corrente exige que este círculo seja evitado, pois é umaviolaçãodalógica.Pensa-sepoderdeduziroqueéaarteatravésdeumaobservaçãocomparativadasobrasdearteexistentes.Mascomopodemosestarcertodequeparaumatalobservaçãonóstenhamos
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
206 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
comobaseefetivamenteobrasdearte,senósaindanãosabemosoqueéarte?23
O que Heidegger pretende com essa reflexão não é apenas compreender a
origemdaarte,masantes,compreenderaformacomoopensamentosedá,poiséo
pensarquepercebeovínculodaarteeaorigem.Então,asugestãoéquenãoolhemos
naarteeprocuremosnelaaquiloqueelapossuideoriginário,mascomoepelopensar
adentremosnaverdadedaartedemodomaisessencial,ouseja,pelopensamento.
Permanecernocírculoéomodomaisprópriodecompreenderaarteeassim
encontrarasuaorigem.Atarefadohomem,asuamorada24,estáemaceitarocírculo
comoelementodopensamento.25“Assimprecisamospercorrerefetivaeplenamente
ocírculo. Istonãoénemumasoluçãopassageira,neméumadeficiência.Aposição
vigorosaétrilharestecaminhoepermanecerneleafestadopensar,postoquepensar
éumofício”26.
23HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.39.24Ocírculohermenêuticoserealizaaodaraohomemsuaocupaçãomaisprópria,opensar.Averdadeque cria e promove o círculo na obra de arte se converterá, na filosofia heideggeriana, neste e emoutrosensaios,natarefamaisessencialdoprópriopensamento,apoesia.Énapoesia(Dichtung)quealinguagemsetornaobradearte.“Maisdoquesondagemdeumsentido,ahermenêuticaheideggerianatornar-se-ánasegundafase,umempreendimentodeauscultaçãodalinguagem,quesepretendeliberarcomolinguagememsuapuraessênciadizente.Poressaauscultação,afilosofiaseavizinharádapoesiatantoquantoapoesiadafilosofiaeambasfalarãosempredoser.”Cfme:NUNES,Benedito.Passagemparaopoético.FilosofiaepoesiaemHeidegger.SãoPaulo:EdiçõesLoyola,2012,p.192.25Nafilosofia,pelaviadaontologia,écomumousodocírculocomoformadedemonstrarcomoprópriopensamentopodeseefetivar,poisopensarnãoobedecepornaturezaalinearidadequenormalmenterequeremosdele,assim,ocírculoespelhamelhoressacapacidadequeopensamentopossuidesereeper-fazer.Cadapontonocírculoésempreofimeoiníciodealgo,demodoquetambémomovimentoque o impele é incessante, pois não há um ponto final em nenhuma parte dele. Tal como afirmaHeráclitonofragmento103. In:ANAXIMANDRO,PARMÊNIDES,HERÁCLITO.Ospensadoresoriginários.Petrópolis: Vozes, 2005, p.87: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo.” Toda figuraconcorreentãoparaquehajaaharmonia,detal formaquecadaespaçocriadonocírculoémotordecontinuidadeeaomesmotempodetransformação.Assim,ocírculonãoserefereaumpensarimutávelerepetitivo,queseguesempreamesmacadência,eleétomadocomoexemploderenovação,poisseutraçado é sempre restabelecido e, portanto, revigorado. Essa forma circular aparece também emNietzschenacríticaaconcepçãodomundocomomovimentoevolutivo,oquegeraráacompreensãodoeternoretorno,noqualtodatransformaçãoenovidadedaexistênciasempreregressaaomesmoinícioe com a mesma força. “Não houve primeiro o caos e depois gradativamente um movimento maisharmoniosoeenfimumfirmemovimentocirculardetodasasforças:emvezdisso,tudoéeterno,nadaveioaser.(...)Ocursocircularnãoénadaqueveioaser,éumaleioriginária,assimcomoaquantidadedeforçaéleioriginária,semexceçãonemtransgressão.”In:NIETZSCHE,Friedrich.Oeternoretorno.InColeçãoospensadores.2edição.SãoPaulo:AbrilCultural,1978,p.389.26HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.39.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
207 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
Oofíciodopensamentofazcomqualquerpressuposiçãosobreaobradearte
caiaporterra.Comumentepossuímosdeantemãoumconceitodoqueéobradearte
por vê-la cotidianamente nosmuseus ou em livros, por exemplo. No entanto, essa
antecipação do que é arte, que confortavelmente se sustenta nas concepções da
estética tradicional não revela a obra de arte em sua essência, pois ao invés de
investigaraorigemdaobra,partedeumapré-definiçãodela.Essecaminhoéquegera
astrêsdefiniçõesdecoisaqueHeideggerapresentan’Aorigemdaobradearteeque
pormuito tempo impediu qualquer investigação sobre a verdade da arte. Assim, o
paradoxo engendrado pelo círculo hermenêutico alémde levar o pensar para o seu
lugarmaispróprio,apoesiaeporfimalinguagem,revelaainsuficiênciadaestéticaem
entenderaobradearte.
4. Asdefiniçõesdecoisa
ParaentendercomoHeideggerempreendeocírculohermenêuticoecomose
apresentaaquestãodaarteviaontologiaparaofilósofo,faz-senecessárioretomara
discussãoinicialqueaparecenoensaioAorigemdaobradeartesobreocarátercoisal
daobra.Essapassagemnormalmenteabordadaapenasparacompreenderocaráter
deutensíliodaobradearte, revelaemseu interiorumaquestãomais importantee
que aqui propomos tematizar, a saber, a verdade da arte como abertura. Nessa
perspectiva, entendemosquea compreensãoque serádesenvolvidaposteriormente
pelafilosofiaheideggerianacomoacontecimentoapropriadorjásemanifestananoção
de coisa abordada nas primeiras páginas do ensaio. É justamente ao tratar
detalhadamente dessa questão, que parece acessória numa leitura desatenta do
ensaio, que o texto heideggeriano nos fornecerá a base daquilo que ali é apenas
apontado,aobradearteemseucaráterontológicocomoacontecimentoapropriador.
O que pretendemos nesse artigo é então, a partir de uma análise do texto
heideggeriano,evidenciaressaquestãodaobracomoviraserquealiéevocadapelo
carátercoisaldaobradearte.Assim,muitomaisdoqueapenasinterpretarotextode
Heideggeroqueaquiconjecturamoséahermenêuticadaprópriaobradearte.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
208 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
Todaobraéantesdetudoumacoisa.Éimpossíveldescartarocaráterdecoisa
da obra, pois é o que mais imediatamente aparece: o quadro, a música, o poema
surgemantescomocoisasnomundo,comoentes.Acompreensãodaobracomocoisa
tambémsugereanoçãodarepresentação,elaparecesempreestarligadaaumoutro,
que seria sua verdadeira essência.Oproblemaé que a estética tomouo caráter de
alegoria e símbolo da arte como sua compreensão mais autêntica e a partir dela
passouaentenderacoisidadedaobradearte.
Umaobradeartenãosignificaalgo,nãoserefereaumasignificaçãocomo um sinal,mas apresenta-se em seu próprio ser, de talmodoqueoqueocontempladorérequisitadoademorar-secomela.Étãoelamesma que está aí, que, ao contrário, aquilomesma de que éfeita,pedra,cor,sompalavra,vemsomentenelaaseupróprioestaraí27.
Oqueaontologiadaobradeartepropõeentãoéquenãoháoutronaobrade
arte, ela é toda em si mesma. Portanto, ao tratar da coisidade da obra de arte
investiga-setambémasuaessência.Domesmomodoéimpossívelsepararenteeser,
comoseoentefosseumarepresentaçãodoser,ambossão juntosenesseprocesso
doamasieasoutrascoisasdomundooseu lugar.28Dessamaneira,acompreensão
derivada da estética de que a arte aponta para alguma outra coisa, se constituindo
entãocomoumamímesisdarealidade,nãocondizcomaverdadeiraessênciadaobra.
A obra de arte não é uma ponte (aparência) que leva a essência,mas é a essência
27GADAMER,Hans-Georg.Para introdução. In:MOOSBURGER, LauradeBorba. “Aorigemdaobradearte” de Martin Heidegger: Tradução, comentários e notas. 2007. 158f. Dissertação. (Mestrado emFilosofia) –Universidade Federal do Paraná, Setor deCiênciasHumanas, Letras eArtes, ProgramadePós-GraduaçãoemFilosofia,Curitiba,p.74.28 No texto intitulado “Sobre a Sistina” (breve texto de apenas três páginas publicado em 1955 paraservirdeposfácioàmonografiadeumadesuasalunas,ahistoriadoradearteMarielenPutschersobreaMadonaSistinaouMadonadeSãoSistodeRafael),Heideggertratadanoçãodesítio,dolugardaobrae,contrariandoanoçãoderepresentaçãonaarteafirma:“Naimagem,enquantoessaimagemaconteceoaparecerdotornar-sehomemdeDeus,aconteceessametamorfosequechegapropriamentenoaltarcomo“transubstanciação”,comooquehádemaispróprionosacrifíciodamissa.Sóqueaimagemnãoé uma cópia, nem simplesmente um símbolo da santa transubstanciação. A imagemé o aparecer dojogoespaço-tempo,aqueéoprópriosítioondeosacrifíciodamissaécelebrado.”(HEIDEGGER,Martin.“SobreaSistina”.In:DUARTE,RodrigoeFIGUEIREDO,Virginia.Mímesiseexpressão.BeloHorizonte:EdUFMG,2001,p.23.)Notexto,aimagemdaMãequecarregaofilho,“homemdeDeus”,nocolonãoéum símile, não imita algo,mas traz para o aberto damissa, o Deus encarnado. O quadro de Rafaelevoca,então,o sagradoaaparecer.Assim,oqueamissa celebranãoéa lembrançadoDeus,masaevocação,apresençaalimesmodopróprioDeus.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
209 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
mesma que se “essencializa” na obra. Na obra repousa todo o sentido de sua
existênciae,assim,amatériadequeé feitapulsa juntocomessesentidooriginário.
Essabuscaconstanteemencontraralgocomoqueescondidoparaalémdaobranasce
de uma necessidade nossa de controlar e ordenar a realidade a partir de um saber
legislador(talcomofazemoscomoutrasesferasdavida),noentanto,essesaberacaba
porsedistanciardaverdade.
Assimcomooqueéavida,assimtambémnuncapoderemossaberoqueéaarteouapoesiapelasmãosdaestéticaoucomoauxíliodeuma teoria literária! E por que não? Por um motivo bastanteconvincente.Tantoaestéticacomoateorialiteráriajádevemsaber,de antemão, o que é arte e o que é poesia, para então poderencontrar, tratar ou julgar certas obras, como de arte, e certosversos,comoumpoema.Eamedidaemqueignoraremtalmododeser,seráamedidaemquenãosabemoquefazem.Éporissoqueseafanamtantocomasdiscussõessobremuitasgêneses,aautoriaeaassinatura de obras e poemas. Assim é por nos acharmos tãoenleadosnastramasqueasrepresentaçõesdosabermodernotecemem torno da vida, que temos tamanha dificuldade de nosdesvencilhar de tantas respostas e pensar a experiência radical davida29.
Ainvestigaçãosobreocaráterdecoisanaobradeartelevaráaapresentartrês
definiçõescorrentesdecoisaqueforamfundamentadasaologodatradição.Decerto
modo, elas não se separam da compreensão de arte como alegoria. Apesar de o
caminho nos levar a questionar as três compreensões de coisa, pois se mostram
infrutíferas para alcançar o que é a arte em si mesma, uma delas será usada para
entender a relação entre coisa e utensílio e a partir daí investigar a obra de arte
propriamentedita.
Aprimeiradefiniçãoqueaparecenoensaioheideggerianoéadecoisacomo
suportedepropriedades.Todoentepossuicaracterísticasqueocompõe,umamesa,
porexemplo,édemadeiraoudevidro,possuiumtamanhograndeoupequeno,etc,
essassãoasqualidadesquereunidasconcedemamesaoseucarátercoisal.Acoisaé
definida,segundoessacompreensão,comoonúcleoaoredordoqualseagregamas
suaspropriedades. 29LEÃO,EmmanuelCarneiro.Aprendendoapensar.2ªEd.Vol.II.Petrópolis-RJ:Ed.Vozes,2000,p.132.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
210 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
Para os gregos, esse núcleo, a unidade fundamental do existente (origem)
chamava-sehypokeímenon.Ohypokeímenon enquanto totalidade se resguarda, não
aparececompletamente,maséoalicercedetodooaparecer,éaessênciaqueprojeta
oquesemostranarealidade.Portanto,elesefazcomooserdacoisa,aaçãodesere
vir-a-ser o que se é.No entanto, o que aparece é desdeo já revelado e conhecido,
assim, o hypokeímenon só é acessível pelo seu aparecimento em um ente
determinado.Aessênciasósemostranascoisas,ouseja,emboraofundamentoem
sua totalidade que permite essa revelação nos escape, sua presença em alguns
aspectos se faz visível. Mas há que atentar ainda que o próprio visível do
hypokeímenon se faz no aparecimento que encobre, ou seja, o ente determinado é
mais do que algo simplesmente dado, ele é ação que aponta para a origem, sem
desvelá-lacompletamente.
Oserdoente,ohypokeímenon,foitraduzidopelosromanosporsubjectum.A
partirdessatradução,omododecompreensãogregoseperdeu.Entende-se,apartir
deentão,substânciacomoalgoveladopordetrásdasaparências(acidentes).Atarefa
dohomemdentrodessacompreensãoéatingirasubstância,demodoque,elealcança
a compreensão da coisa, encontrando o substrato sobre o qual repousa toda a
realidade.Acoisa se torna,nessaperspectiva,oobjetivo,ametaa seratingidapelo
homem e não mais a ação que projeta e governa a realidade. Por esse caminho
abandonamosaexperiênciagregadaessênciacomoorigemetomamosacoisacomo
umnúcleoaserdesvendado.
Essacompreensãodecoisafoisetornandonaturalaolongodotempoeacabou
também por migrar para o discurso. A fala na sua construção sujeito-predicado
espelha,decertomodo,arelaçãonecessáriaentresubstância-acidentes,entendidaa
partir daacepção romana.Nodiscurso, aproposição sóparece lógica semantivero
mesmoesquemaestruturalsujeito-predicado.Assim,tantoaestruturadaproposição
comooconceitodecoisatornaram-sehabituaiseohomemasaceitaeasutiliza.No
entanto, a verdadeira compreensão de coisa permanece impensada. O homem
dominadopelohábitodeixoudebuscaraessênciadascoisas.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
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Oquenosaparececomonaturaléprovavelmenteapenasohabitualde um longo hábito que esqueceu o in-habitual do qual aquele seoriginou. Um dia, contudo, aquele in-habitual tomou de assalto,como um estranho, o homem e levou o pensar para a eclosão doadmirar30.
Apartirdestahabituaçãoenelaohomemumdia conheceuo inabitado,das
Ungewohnte, estranho-estrangeiro (fremd) que causa admiração, deslocando o
habitual e o hábito para o in-habitual. O in-habitual e inesperado, assim, não
simplesmente sucedem o habitual no momento que o homem é puxado para o
estranhamento: é antes o próprio inabitado que funda o habitual e habitado. No
inabitado, o homem reconhece o salto (Sprung) da origem, na estranheza de saltar
para trás.Dessemodo,nãobasta apenas abandonarohábitopara reconhecero in-
habitualcomoorigem,éprecisoantesestaratento,prestaratençãonoordinário,no
usual, para que a admiração, o estranhamento31 levem o homem para o lugar do
pensamento,aprópriaorigem.
A passagem heideggeriana citada acima não consiste apenas num jogo de
palavrashermético,masserefereaopróprioprocessodovir-a-ser.Então,elatratade
mostrar que, o originário, a natureza em sua formamais pura e elementar, surge a
partirdeumaquebra,umsaltodocotidiano.Portanto,énarealidademaisordinária,
mais corriqueira que se esconde a verdade essencial. Para ilustrar esse sentido vale
mencionar um trecho que aparece na obraHeráclito de Heidegger, na qual o pré-
socrático se aquece junto ao fogo, quando algumas pessoas chegam à porta e o
observamespantados.Heráclitoresponde:“Mesmoaqui,osdeusesestãopresentes”.
Esse mesmo aqui se refere à presença do extraordinário no ordinário. No afazer 30HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.55.31 No texto “Que é isto – a filosofia?” Heidegger afirma que o espanto, a admiração, é o páthos dafilosofia, ou seja, é a força que direciona o homem para o seu lugar: o pensar. Então, não existepensamento semaadmiração,umaespéciedequebrano cotidianoquepermiteabandonar todasaspressuposiçõesqueatravancamopensamento.Oin-habitualquesurgedocorriqueirosóapareceseohomemestiverdispostoasertomadoporessaadmiração.Nessemesmotexto,Heideggercomentaquetanto Platão como Aristóteles citam o espanto (thaumázein) como princípio da filosofia, mas este éesquecidoao longodotempoeohabitualacabaporsesolidificarcomoverdadeabsoluta.Oespantocomoprincípiodofilosofarnãoéapenasumacausa,ummotorpropulsordopensamento,masconvoca,mesmoquedeformalatente,apensaroserdoente.“Opáthosdoespantonãoestásimplesmentenocomeçodafilosofia,como,porexemplo,olavardasmãosprecedeaoperaçãodocirurgião.Oespantocarregaefilosofiaeimperanoseuinterior.(...)Assimoespantoéadis-posiçãonaqualeparaqualoserdoenteseabre.”(HEIDEGGER,1979,p.23).
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
212 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
doméstico,nocotidianoatodeseaquecer,tambémosdeusesserevelam,vicejaaío
vigordaorigem.
(...) e justamente aqui, na inaparência do ordinário, vigora oextraordinário do aparecimento. Isso quer dizer: aqui onde eu, opensador, me abrigo, o inaparente se encontra na intimidade doaparecimento e do brilho mais extremos. Aqui onde possuo umabrigo, o que parece estar excluído do outro reúne-se numaunidade32.
Por isso também a necessidade de um esforço constante para compreender
queo tododaorigemsó se fazvisívelatravésdeumabrecha,quesedámesmono
corriqueiro e eventual, pois que é a morada do homem. “A morada do homem, o
extraordinário”33.Oordinário,ocotidianopermitenasuaquebraumabrevevisadano
extraordinário, do hypokeímenon, da origem. O que está em voga aqui é como o
pensar não apontameramente para um algo alémde si e nós, como autores dessa
tarefa,podemosencontrarnoquenosémaispróximoumsaltoparaoextraordinário.
Essadigressãoabreumlabirintodepossibilidadesparaopensamento,cabeacadaum
denósencontrarmosasaída(ounosembrenharmosmaisdentrodele)eaartecomo
veremosmais adiante, será então ummodo de fazer com que o pensar perceba o
extraordinárionocorriqueiroeeventual.
Retomando a primeira definição de coisa como suporte de propriedades,
percebemosqueessadefiniçãoapenasapreendeascoisasnarealidade,masnãotrata
daessênciadecoisa,doin-habitualnoordinário.Esseconceitoseconcentranacoisa
como algo objetivo (acidente, predicado), capaz de ser analisado e classificado, se
acomoda nas qualidades da coisa e não no hypokeímenon. “Certamente o conceito
corriqueirodecoisaserveacadamomentoparacadacoisa.Contudo,nãoconcebeem
seuapreender,acoisaessencial,masantesaagride”34.
A segunda definição de coisa é a de unidade de sensações, segundo essa
concepção,acoisaseriaentãoperceptívelpelossentidos.Umaflor,porexemplo,exala
32HEIDEGGER,Martin.Heráclito.Trad.MárciadeSáCavalcanteSchuback.Petrópolis:RelumeDumará,1998,p.25.33 HERÁCLITO. In: ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Fragmento119.Petrópolis:Vozes,2005,p.91.34HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.57.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
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determinadoaroma,possuiumacorcaptadapelavisão, revelaumatexturadelicada
ao tato.A flor seria, assim, a reuniãodessas sensações, quede certomodo, afetam
nosso corpo. No entanto, a presença da coisa se perde, pois que a coisa é mais
imediata do que a própria sensação e não uma construção a priori e abstrata das
sensações percebidas.O aromada flor, por exemplo, sempre está junto da flor, co-
nascecomela,nãoháaromaemsimesmo,nãoháumentre (ossentidos)acoisae
nós. Então, essa acepção tambémnãodá conta de explicar o que é realmenteuma
coisa,poisfalhaaocriarumajunçãodeimpressõessensoriaisquesóafastamacoisa
denossacompreensão.
Enquantoaprimeirainterpretaçãodacoisacomoqueamantémeacoloca demasiadamente afastada do corpo, a segunda a projetademaissobreocorpo.Nasduas interpretações,acoisadesaparece.Porisso,devemseevitaroexagerodasduasinterpretações.Acoisamesma precisa ficar deixada no seu repousar-em-si. Ela é para serapreendidaemseucaráterdeconstânciaquelheépróprio35.
Seaprimeiradefiniçãodecoisacomonúcleodepropriedadeserraaoimaginar
algoparaalémdasaparências,talcomoafirma,porexemplo,afilosofiaaristotélicada
substância tomada pela tradição demaneira descompromissada (e que acabará por
gerarospressupostosmetafísicos);o segundosignificado tambémerraaocreditara
essênciadacoisasomenteàpercepçãosensível,aofeixedesensações.
Aterceiracompreensãodecoisaaapresentapeloajunteconceitualmatériae
forma. Essa estrutura proveniente do pensamento representativo herdado de uma
longa tradição do pensamento ocidental é a base tambémde toda teoria da arte e
estética. Sendo assim, não apenas no campo da estética, mas a do próprio
pensamentoderiva,decertomodo,desseajuntematériaeforma,comoporexemplo,
o par forma e conteúdo ou o sujeito e objeto. Por isso nos soa tão familiar essa
definição, a realidade mesma ao nosso redor parece espelhar essa relação
fundamental.Épreciso,noentanto,desconfiardessemododepensareinvestigarsua
origem.
35HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010.p.61.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
214 |Pensando–RevistadeFilosofiaVol.7,Nº13,2016ISSN2178-843X
Percebe-se que a junção matéria e forma procede da noção de utensílio e
utiliza este para explicar toda e qualquer coisa. A nossa interpretação de ente fica
desde sempre pressuposta por essa definição, tanto que os significados das coisas
parecemnaturalmenteumamanifestaçãodessa junçãomatéria e forma. Essemodo
depensaré,noentanto, frutodeumenganoque tomaa coisae tudoqueaparece
pelainstrumentalidade,noparmatériaeforma.
Heidegger chega à conclusão de que matéria e forma, comointerpretaçãodoente,definemdemaneirafundamentaleoriginal,aessência do utensílio. É aqui que encontramos a origem dessasnoções. Matéria e forma não são, de modo algum, as definiçõesoriginaisdacoisidadedacoisapura.A interpretaçãodacoisa,comocomposto de matéria e forma, é já uma transposição (umaampliação) dessas noções extraídas da instrumentalidade doutensílio36.
Sadzik afirma que a concepção de coisa como matéria e forma deriva da
compreensãodeutensílioeacaracterísticabásicadoutensílioéodaserventia,assim,
omododeentenderascoisasétodoele instrumental,ouseja,sebuscaafinalidade
das coisas,para quê e como elas servem.O utensílio é algo fabricado, por isso não
podedesignaracoisapuraqueoprecede.Então,aplicaracompreensãoinstrumental
àscoisasé,decertomodo,tomá-laspeloavesso.“Matériaeformanãosão,demodo
algum, determinações originárias da coisidade da própria coisa”37. Ocorre aí uma
inversão,aotomarascoisaspeloparmatériaeforma(quefuncionaparaentendero
utensílio,acoisafabricada,masnãoparacompreendernemameracoisa,nemaobra
de arte) o ente se distancia. “E é aqui que o problema começa a surgir. Porque o
esquematradicional,apoiadonaautoridadedahistóriadafilosofia,estádiantedenós
como um obstáculo. Com premissas impostas a priori, nos torna impossível a
experiênciaimediatadoserdoente”38.
Seamatériaeformanãosereferemimediatamentenemacoisaenemaobra
dearte,(massóacoisafabricada:utensílio)porqueentãotodaarealidadeéexplicada
36SADZIK,Joseph.LaestéticadeHeidegger.Barcelona:LuisMiracle,1971.p.31-32,traduçãominha.37HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.67.38SADZIK,Joseph.LaestéticadeHeidegger.Barcelona:LuisMiracle,1971.p.35,traduçãominha
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atravésdela?Paraisso,pode-seapresentardoismotivos:primeiroporqueoutensílio
ocupaaposiçãointermediáriaentrecoisaeobra39esegundo,porquesetende,graças
àcrença,aentenderarealidadecomoalgocriadoporDeus.Entãotudoqueexisteé,
emcertamedida,umutensílio,criadoporEle.
Toda essa discussão culminará numa crítica aos conceitos de coisa, forma,
matéria,representaçãoeproduçãonaintençãodedesfazeromododepensardetal
esquema.Assimsendo,astrêsnoçõesdecoisamaisdoquealcançaraorigemsobre
compreensãodecoisaeobradearte,demonstramnaverdadequeaprópriareflexão
está viciada e dominada por certos conceitos a priori que impedem o livre
pensamento.
Assim,ainvestigaçãodosconceitosdecoisanoslevaadesmontaromodode
pensar tradicional sobre a arte alémde questionar a estética clássica40, que toma a
obracomoobjetoapartirdeumaexperiênciasubjetiva.Essemododepensardomina
toda interpretaçãodaobradeartee tambémavançana formacomoentendemosa
realidade.
Nossoquestionamentoemrelaçãoàobraestáabalado,porquenãoperguntamospelaobra,massim,emparteporumacoisa,empartepor um utensílio. Só que isto não foi um questionamento que nósprimeiro desenvolvemos. É o questionamento da Estética. Omodo
39Essaposiçãointermediáriaentrecoisaeobrasedeveaofatodequeoutensílio,depoisdeterminado,repousaemsimesmocomoameracoisa (talcomoumapedra,porexemplo),masnãoésuaprópriaorigem,poisdevémdemãoshumanas.Outensíliotambémtemalgodaobradeartenamedidaemqueéumproduto,massedistanciadaobraporqueelatemumaorigemprópriaenãopossuiumaserventia.“Destemodo,outensílioé,emparte,coisa,porquedeterminadopelasuanaturezadacoisa,e,contudo,mais ainda; ao mesmo tempo é, em parte, obra de arte e, contudo, menos, porque sem a auto-suficiênciadaobradearte”. (HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.67). Seráessaposição intermediáriaquefaráHeideggerinvestigarocaráterinstrumentaldoutensílio,(poisqueéoqueestámaispróximodohomem)usandoafamosaimagemdasbotasdacamponesanoquadrodeVanGogh.40Dirá Lacoue-Labarthe a esse respeito: “Umadas acusaçõesmais radicais e violentas que a filosofiadeste século terá feito contraa interpretaçãoouadeterminaçãodaarteenquantomímesis pode serencontrada nas duas páginas que concluem a primeira versão (1935) das famosas conferênciasrealizadas porHeidegger em1936 e reunidas após a guerra nosHolzwege sobo título “AOrigemdaObradeArte”.AliHeideggerlamentaoqueelechamade‘notávelfatalidade’àqualficaramsubmissas‘desdeosgregosatéosdiasdehojetodameditaçãosobreaarteeaobradearte,todateoriadaarteetoda a estética’ ”(LACOUE-LABARTHE, Philippe. “A vera-semelhança”. In: DUARTE, Rodrigo eFIGUEIREDO,Virginia.Mímesiseexpressão.BeloHorizonte:EdUFMG,2001.p.15).
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comoelade antemão considera aobrade artepermanece sobreodomíniodainterpretaçãotradicionaldetodo[ente41]42.
Nessesentido,aoabandonarospressupostosdaestética,propomosconsiderar
aobraontologicamenteenãomaisonticamente,ouseja,aobradeartenãoémais
tomada como um ente, mas em seu ser, ela é abertura do ser. Esse novo
posicionamento investiga o ser desde dentro, pois a obra de arte não é apenas um
objetoentreoutros,maselaéaaberturaquerevelaoser.Enela,nasuaabertura,o
própriohomemenquantoser-aíaparece.Essamudançadeperspectiva sobreaobra
nãoserestringeapenasasuasuperfície,masdizrespeitoasuaorigem.Aproveniência
da obra é o ser e nesse horizonte não cabem às reflexões da estética, mas as da
ontologia.“Heideggerencontraopontodereferênciaparadescobrirumaatividadedo
homem que não só ôntica (interior ao mundo do ente), mas também ontológica
(determinante, isto é, a própria abertura em que se apresenta o ente) na obra de
arte”43.
Tradicionalmenteaarteéconsideradaumobjetodateoriadaarte,issoindica
um desvio do ser-aí com relação ao ser, pois, se admitimos que a obra de arte é
autossuficienteeautorreferenciadae,portanto,capazdefundarummundo,elanão
pode ser entendida tão somente comoumacontecimento subjetivo. Se cedemos a
essa interpretaçãoo caráterônticodaobra se sobrepõeaoontológicoe seperde a
questãodoser,queésuaessênciamaisoriginária.Claroquepodemostomá-laapenas
noseucaráterdeadorno,decontemplação,didático,entreoutros,masoqueestáem
voga aqui é antes a capacidade fundacional que a arte possui, ela que tem em si o
poderdeinstituirpre-sençaeerigirummundo.Essepensamentonoqualsesustenta
41ApalavraDasSeiendeéinterpretadapelostradutoresIdalinaAzevedoeManuelAntôniodeCastronaOrigemdaobradeartepelapalavra“sendo”.Naapresentaçãoquefazemdaobraheideggeriana(cfme:CASTRO,ManuelAntóniode.“Notasdetradução”. In:HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.SãoPaulo:Edições70,2010.p.23)defendemumaexplicaçãoparaesseusonatradução.ApesardetodapolêmicaedificuldadearespeitodaspalavrasusadasporHeidegger,aquinestetrabalho,optamospormanteratraduçãodedasSeiendeporente,comocorrentementeétraduzidoporoutroscomentadores.Assim,emborautilizandoatraduçãodosprofessoresacimacitados,decidimosusarapalavra“ente”nolugar da palavra “sendo” utilizada por eles. De todomodo, ela sempre aparecerá entre colchetes deformaadestacarousoescolhidopornós.42HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.95.43VATTIMO,Gianni.IntroduçãoaHeidegger.Lisboa:Edições70.1996,p.122.
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nosso argumento acena para umamudança não apenas de ponto de vista,mas de
princípio,oquepodemos fazerapartirdeentãoé tomaraartenãomais comoum
objetoentreoutros,mascomocasadoser,comodesvelamentodaverdade.
Por isso, o Suplemento escrito por Heidegger em 1956 ajuda a compreender
essanovatarefa.NeleoautorapresentaopensamentoqueorientaAorigemdaobra
dearteetambémodesuaobraposterior:aperguntasobreoser.
TodooensaioAorigemdaobradeartemove-seconscientemente,aindaquesemodizer,nocaminhodaperguntapelaessênciadoser.A reflexão sobre isso, o que seja a arte, é determinada inteira edecididamenteapenasapartirdaperguntasobreoser.Aartenãoétomadanemcomoumaáreade realização culturalnemcomoumamanifestação do Espírito. Ela pertence ao acontecer-poético-apropriante, apartirdoqual sedeterminao“sentidodoser” (cfmeSereTempo).Oquesejaaarteéumadaquelasperguntasàsquaisoensaio não dá nenhuma resposta. O que parece ser resposta nãopassadeindicaçõesparaoperguntar44.
Esse “acontecer-poético-apropriante”, a Ereignis, de que fala Heidegger, é
entendido como evento: uma dimensão na qual o próprio homem se encontra
lançado.Mas, seoensaionãodánenhumarespostacomoafirmaopróprio filósofo,
eleabreespaçoparaqueaperguntasobreoserpossaserfeitaapartirdeumnovo
horizonte.Aíseencontraaquestãocentraldenossoartigo:aarteé,pornaturezaum
acontecerpoético.Muitoantesdadescriçãoheideggeriana,moranaartemesmaesse
seucaráterdoador,essacondiçãoecapacidadedefundarummundo.Nessesentido,
podemosentender,porexemplo,quenãosãoosgregosquecriamumaarteapolínea
baseadanabelezadasformas,masantesaarteapolíneaseapossadoespíritogrego
paradesvelaraverdadedahonra,dadignidadedohomem,dabelezadoscontornos
deseupovo.Então,oqueo“acontecer-poético-apropriante”evoca,nãoserestringea
algoquepodeserdefinidodemodoexternoeobjetivo.Nenhumadescriçãodaobra
deartedará,dessemodo,contadasuaessênciaeporissotambémoensaioAorigem
da obra de arte não pode conduzir a uma resposta única, ele apenas levanta as
questões e abala omodo como conduzimos corriqueiramente nosso pensar sobre a 44HEIDEGGER,Martin.AorigemdaobradeArte.Trad. IdalinaAzevedodaSilvaeManuelAntôniodeCastroSãoPaulo:Edições70,2010,p.219.
Costa,SolangeA.deC. Odesvelamentodaverdade
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arte.Nofundonósretomamospelaleituradoensaioaquelaquestãofundamentalpela
verdade que sempre instigou a busca humana desde seu nascimento. No entanto,
agoraohomemnãoestámaisdepossedeumsaberinstauradordaverdade,agorao
próprio homem está entregue a forma como a verdademesma acontece demodo
originárionaobradearte.
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DoutoraemFilosofia(UFPB/UFRN/UFPE)ProfessoraAdjuntodoCursodeFilosofia/UESPI–CampusdeParnaíba
E-mail:[email protected]