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RDS IX (2017), 2, 323-356 O Decreto-Lei n.º 20/2016 e a desblindagem dos estatutos das instituições de crédito: um diploma à prova de bala? PROF. DOUTOR JOSÉ FERREIRA GOMES DR.ª NÁDIA REIS Sumário: 1. Introdução. 2. O Decreto-Lei n.º 20/2016 e o caso BPI. 3. O princípio da proporcionalidade entre risco económico e controlo nas sociedades comerciais. 4. (Cont.) Os tetos de voto. 5. (Cont.) A break-through rule no regime das OPAs. 6. A dimensão patrimonial da participação social e sua conformação pelo poder (relativo) de voto. 7. A (in) constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20/2016: Enquadramento. 8. (Cont.) A configu- ração constitucional da participação social como “propriedade corporativa”. 9. (Cont.) A tutela constitucional da propriedade. 10. (Cont.) A tutela constitucional da “propriedade corporativa” e o Decreto-Lei n.º 20/2016. 11. O direito a uma justa indemnização em caso de desapropriação. 12. A constitucionalidade da disposição transitória (artigo 3.º) que impõe reunião da assembleia geral perante a liberdade de empresa. 13. A constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20/2016 à luz da reserva de competência da Assembleia da República. 1. Introdução I. No dia 1 de julho de 2016 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 20/2016, de 20 de abril, que veio aditar o artigo 13.º-C ao RGICSF 1 , dirigido à “des- blindagem” dos estatutos das instituições de crédito. Como veremos, trata-se de um diploma motivado por um caso especí- fico – o caso BPI –, mas com um mais vasto âmbito de aplicação, que suscita sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Faz recordar o historicamente famoso “Decreto Raquel” 2 , através do qual Marcello Caetano, em 1971, des- 1 Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro. 2 O Decreto-Lei n.º 1/71, de 6-jan.-1971. Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2017).indb 323 Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2017).indb 323 12/06/17 14:56 12/06/17 14:56

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O Decreto-Lei n.º 20/2016 e a desblindagem dos estatutos das instituições de crédito: um diploma à prova de bala?

PROF. DOUTOR JOSÉ FERREIRA GOMES

DR.ª NÁDIA REIS

Sumário: 1. Introdução. 2. O Decreto-Lei n.º 20/2016 e o caso BPI. 3. O princípio da proporcionalidade entre risco económico e controlo nas sociedades comerciais. 4. (Cont.) Os tetos de voto. 5. (Cont.) A break-through rule no regime das OPAs. 6. A dimensão patrimonial da participação social e sua conformação pelo poder (relativo) de voto. 7. A (in)constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20/2016: Enquadramento. 8. (Cont.) A confi gu-ração constitucional da participação social como “propriedade corporativa”. 9. (Cont.) A tutela constitucional da propriedade. 10. (Cont.) A tutela constitucional da “propriedade corporativa” e o Decreto-Lei n.º 20/2016. 11. O direito a uma justa indemnização em caso de desapropriação. 12. A constitucionalidade da disposição transitória (artigo 3.º) que impõe reunião da assembleia geral perante a liberdade de empresa. 13. A constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20/2016 à luz da reserva de competência da Assembleia da República.

1. Introdução

I. No dia 1 de julho de 2016 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 20/2016, de 20 de abril, que veio aditar o artigo 13.º-C ao RGICSF1, dirigido à “des-blindagem” dos estatutos das instituições de crédito.

Como veremos, trata-se de um diploma motivado por um caso especí-fi co – o caso BPI –, mas com um mais vasto âmbito de aplicação, que suscita sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Faz recordar o historicamente famoso “Decreto Raquel”2, através do qual Marcello Caetano, em 1971, des-

1 Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.2 O Decreto-Lei n.º 1/71, de 6-jan.-1971.

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truiu retroativamente o negócio pelo qual António Champalimaud adquiriu a Arthur Cupertino de Miranda o controlo do Banco Português do Atlântico (BPA) 3.

II. Neste texto não nos propomos alcançar uma resposta defi nitiva para essas dúvidas, mas tão-só oferecer uma matriz de enquadramento para uma questão que ultrapassa as suas aparentes fronteiras, ao demonstrar uma especí-fi ca ars faciendi do legislador que todos os juristas de um Estado de Direito são chamados a ponderar.

2. O Decreto-Lei n.º 20/2016 e o caso BPI

I. O Decreto-Lei n.º 20/2016 aditou ao RGICSF o artigo 13.º-C, que tem a seguinte redação:

«Artigo 13.º-CLimites estatutários à detenção ou ao exercíciode direitos de voto em instituições de crédito

1 – A manutenção ou revogação de limites à detenção ou ao exercício dos direitos de voto dos acionistas de instituições de crédito deve ser objeto de deliberação dos acionistas, pelo menos, uma vez em cada período de cinco anos.

2 – A deliberação prevista no número anterior, quando proposta pelo órgão de adminis-tração, não está sujeita a quaisquer limites à detenção ou ao exercício de direitos de voto, nem a quaisquer requisitos de quórum ou maioria agravados relativamente aos legais.

3 – Os limites à detenção ou ao exercício dos direitos de voto em vigor caducam auto-maticamente no termo de cada período referido no n.º 1 se, até ao fi nal do mesmo, não for tomada deliberação sobre a matéria aí referida.

4 – A deliberação de manutenção dos limites aplicáveis pode ser expressa ou tácita, por rejeição de proposta de alteração ou revogação.

5 – O disposto nos números anteriores não é aplicável a caixas de crédito agrícola mútuo nem a caixas económicas.»

3 Para um enquadramento deste Decreto-Lei, veja-se Filipe S. Fernandes, “Quando Marcello Caetano impediu António Champalimaud de engolir um terço da banca portuguesa”, Observador, 4-jun.-2016, disponível em http://observador.pt/especiais/quando-marcello-caetano-impediu-antonio-champalimaud-de-engolir-um-terco-da-banca-portuguesa/.Sobre a sua constitucionalidade (à luz da Constituição de 1933), vide José de Oliveira Ascensão, “A violação da garantia constitucional da propriedade por disposição retroactiva”, Revista dos Tribunais, 91:1883-1885 (1973), 291-304, 339-353, 387-398.

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Neste preceito destaca-se: um dever de ponderação dos tetos de voto pela coletividade de sócios (n.º 1); uma versão da breakthrough rule baseada numa proposta da administração (n.º 2); e uma regra de caducidade das disposições estatutárias sobre tetos de voto quando não ponderadas pela coletividade de sócios (n.º 3).

O n.º 1 traduz uma discutível consolidação normativa de uma recomen-dação de governo societário da CMVM4, mas as maiores dúvidas, que devem ser ponderadas criticamente, são suscitadas pelos n.os 2 e 3. A tanto se dirige o presente artigo.

II. A importância prática deste artigo é em muito reforçada pelas dispo-sições transitórias constantes do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2016. Este impunha que a assembleia geral das instituições de crédito que tivessem tetos de voto deliberasse, até 31-dez.-2016, sobre a manutenção ou revogação desses tetos, sob pena de caducidade dos mesmos.

III. A introdução do artigo 13.º-C no RGICSF traduz uma solução de carácter geral e abstrato, é certo, mas feita à medida do caso BPI – assente no impasse verifi cado entre os seus dois maiores acionistas: o Caixabank5, titular de 44,10%, e a Santoro6, titular de 18,58% do seu capital social7, à data da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/20168 – que se prolongou do fi nal de 2014 a setembro de 2016.

O problema subjacente encontra as suas raízes no facto de, no fi nal de 2014, a Comissão Europeia ter excluído Angola da lista de países terceiros com regulamentação e supervisão equivalentes às da UE9.

Na sequência dessa exclusão, a exposição indireta do BPI ao Estado angolano – através do Banco de Fomento Angola, S.A. (BFA), no qual o BPI detinha 50,1% do capital social – deixou de ser objeto de ponderadores de risco iguais aos previstos na regulamentação angolana (0% ou 20%, consoante as situações), para passar a ser objeto de ponderadores de risco previstos no CRR10. Isto

4 Cfr. a recomendação I.4 do Código de Governo das Sociedades da CMVM de 2013.5 Caixabank, S.A.6 Santoro – Finance Prestação de Serviços, S.A.7 Participação à qual se somam os 2,28% do Banco BIC, S.A.8 Segundo dados do Jornal de Negócios de 2-mar.-2016, consultável online em: http://www.jornaldenegocios.pt/mercados/bolsa/detalhe/bpi_dispara_10_com_negociacoes_entre_caixabank_e_isabel_dos_santos.html.9 Ao abrigo, entre outras disposições, do artigo 114.º/7 do Regulamento (UE) n.º 575/2013, de 26-jun.-2013 (Capital Requirements Regulation ou, simplesmente, “CRR”).10 Capital Requirements Regulation, identifi cado na nota anterior.

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implicou uma exposição acrescida de 3.7 mil milhões de euros, com refl exos nos seus rácios Common Equity Tier 1 (CET1) e na ultrapassagem dos limites dos grandes riscos11.

IV. Com vista à resolução deste problema, o conselho de administração do BPI aprovou um projeto de cisão simples do Banco BPI, no qual se previa o destaque da parcela do seu património correspondente à unidade de negócio de gestão de participações sociais em instituições de crédito africanas (incluindo o BFA), para com ela constituir uma nova sociedade, cujo capital seria atribuído aos acionistas do BPI12.

Esta proposta do conselho de administração foi chumbada pela assembleia geral do BPI a 5-fev.-2016. O resultado dessa deliberação deveu-se ao teto de voto que constava então do artigo 12.º/4 dos estatutos do BPI13 e que, na prá-tica, conferia à Santoro um poder de veto nas deliberações acionistas.

V. Foram então desenvolvidas negociações entre o Caixabank e a Santoro que, no fi nal de março de 2016, se concluiu não terem chegado a bom porto14. Porém, a história seguiu o seu rumo e, no início de abril, o BPI anunciou publicamente que afi nal havia acordo15, para uma semana depois comunicar que afi nal não havia16.

Subsequentemente, o Caixabank lançou uma OPA voluntária sobre o BPI, condicionada à eliminação do teto de voto, à aquisição de mais de 50% do capi-tal do BPI e à obtenção das autorizações administrativas necessárias. Pretendia por este meio resolver o impasse em que então vivia o BPI.

VI. Pelo meio fi cou a tentativa do Governo de mediar o confl ito, entre março e abril. Não tendo sido bem sucedido, avançou com aquele que viria a ser o Decreto-Lei n.º 20/201617. Este constituiu um ponderoso incentivo para o acordo que acabou por ser encontrado pelas partes18.

11 Ultrapassagem esta que foi contestada pelo BPI. Vide comunicado do mesmo ao mercado de 14-dez.-2014, disponível no SDI da CMVM.12 Cfr. comunicado ao mercado de 30-set.-2015, disponível no SDI da CMVM.13 Só tendo sido eliminado por deliberação da assembleia geral de 21-set.-2016.14 Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 24-mar.-2016, disponível no SDI da CMVM.15 Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 10-abr.-2016, disponível no SDI da CMVM.16 Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 17-abr.-2016, disponível no SDI da CMVM.17 Cfr. notícia do Expresso online, de 23/04/2016, disponível em: http://expresso.sapo.pt/economia/2016-04-23-BPI-Ministro-da-Economia-confi a-em-acordo-entre-acionistas.18 “Incentivo” esse já explorado pela imprensa em março. Cfr. Cristina Ferreira e São José Almeida, “Governo quer que Caixabank e Isabel dos Santos se entendam no

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O fundamento apresentado para este diploma não foi a resolução do impasse no caso BPI e a concomitante salvaguarda da estabilidade do sistema fi nanceiro. Foi antes o propósito de «contribuir de forma decisiva para o relançamento da econo-mia, tendo como um dos eixos fundamentais a melhoria das condições de fi nanciamento das empresas», para «gerar mais emprego e mais criação de riqueza»19.

Porém, o seu verdadeiro propósito é claro e expresso nas entrelinhas. São expressivas as referências à captação de investimento estrangeiro em Portugal e, em especial, à promoção da sustentabilidade das empresas e à “devolução” da sua capacidade de tomada de decisões estratégicas20.

Difi cilmente se podem entender tais referências desligadas do pretendido investimento do Caixabank num dos pilares do nosso sistema fi nanceiro, do bloqueio em que o mesmo se encontrava e da necessidade urgente de se encon-trar uma solução para o mesmo, com vista à salvaguarda da estabilidade do sistema fi nanceiro.

Se dúvidas houvesse, fi cariam esclarecidas perante as disposições transitórias do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2016: tudo teria de ser resolvido até ao fi nal de 2016, data limite imposta pelo BCE ao BPI para a resolução do pro-blema da exposição a grandes riscos.

Nesse contexto, cedo se ouviram críticas da Santoro no sentido da parcia-lidade da intervenção21.

BPI”, Público, 4-mar.-2016, disponível em https://www.publico.pt/economia/noticia/governo-quer-que-caixabank-e-isabel-dos-santos-se-entendam-no-bpi-1725181.19 Cfr. preâmbulo do diploma. 20 Pelo caminho fi ca a afi rmação enganadora de que a solução consagrada é «em tudo semelhante» à recomendação da CMVM sobre o tema. Cfr. recomendações I.3 e I.4 do Código de Governo das Sociedades da CMVM de 2013, nas quais se pode ler:

«I.3. As sociedades não devem estabelecer mecanismos que tenham por efeito provocar o desfasamento entre o direito ao recebimento de dividendos ou à subscrição de novos valores mobiliários e o direito de voto de cada ação ordinária, salvo se devidamente fundamentados em função dos interesses de longo prazo dos acionistas.

I.4. Os estatutos das sociedades que prevejam a limitação do número de votos que podem ser detidos ou exercidos por um único acionista, de forma individual ou em concertação com outros acionistas, devem prever igualmente que, pelo menos de cinco em cinco anos, será sujeita a deliberação pela assembleia geral a alteração ou a manutenção dessa disposição estatutária – sem requisitos de quórum agravado relativamente ao legal – e que, nessa deliberação, se contam todos os votos emitidos sem que aquela limitação funcione.»

21 Cfr. notícia do Público online, de 19-abr.-2016, disponível em: https://www.publico.pt/economia/noticia/isabel-dos-santos-diz-que-governo-tomou-medida-parcial-no-caso-bpi-1729517:

«Constatamos que, apesar do construtivo envolvimento do Governo português em dada fase da conciliação do processo, foi agora tomada uma medida historicamente sem precedentes e declaradamente parcial com a aprovação do Decreto-Lei – identifi cado como “o diploma do BPI” – que favorece, uma das partes, no momento em que estas se encontravam em pleno processo negocial.»

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VII. Duas semanas depois da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 20/2016, o conselho de administração do BPI apresentou uma proposta de “desblinda-gem” dos estatutos (eliminação do teto de voto) à assembleia geral22.

Atentas as providências cautelares requeridas por um dos acionistas23, a reu-nião da assembleia geral de 22 de julho foi adiada, primeiro para 6 e, depois, para 21 de setembro de 2016. Só nesta foi eliminado o teto de voto que cons-tava do artigo 12.º/4 dos estatutos do BPI.

Este resultado foi acompanhado de um acordo relativo ao controlo do BFA, que assim passou das mãos do BPI para a esfera da Unitel24.

3. O princípio da proporcionalidade entre risco económico e con-trolo nas sociedades comerciais

I. O artigo 384.º/1 CSC dá corpo à regra “one share, one vote” no sistema jurídico português. Os desvios admissíveis são elencados no n.º 2, neles se incluindo os chamados “tetos de voto”, i.e., a possibilidade de os estatutos esta-belecerem que «não sejam contados votos acima de certo número, quando emitidos por um só acionista, em nome próprio ou também como representante de outro».

Trata-se de uma solução destinada a limitar o poder de voto dos grandes acionistas, independentemente da percentagem de capital social por si detida.

II. A regra geral do “one share, one vote” é tributária do princípio da propor-cionalidade entre a exposição dos acionistas ao risco empresarial e o seu con-trolo sobre a sociedade. Este princípio assenta na ideia de que as pessoas mais indicadas para conformar as decisões essenciais da sociedade são aquelas que suportam, de forma mais intensa, as consequências económicas dessas mesmas decisões25.

Um tal princípio é frustrado pela consagração estatutária de tetos de voto, na medida em que impõe uma maior ou menor dissociação entre o risco eco-nómico e o poder de voto, afastando o controlo do acionista que mais tem a perder com os eventuais infortúnios da atividade social.

Com efeito, havendo um teto de voto, o acionista não deixa de ser cha-mado a quinhoar nas perdas da sociedade na proporção da sua participação

22 Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 14-jun.-2016, disponível no SDI da CMVM.23 A Violas Ferreira Financial, S.A. Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 23-ago.-2016, disponível no SDI da CMVM. 24 Cfr. comunicado do BPI ao mercado de 7-out.-2016, disponível no SDI da CMVM.25 Cfr. Franck Easterbrook e Daniel Fischel, The economic structure of corporate law (1991), 67-70.

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(artigo 22.º/1, CSC), até ao limite da sua entrada (artigo 271.º/1, CSC), mas perde o poder proporcional de voto que o acompanharia perante a solução legal supletiva.

III. Por isso mesmo, a SEC26 tentou em tempos impor nos EUA a obser-vância estrita da regra one share, one vote, mas sem sucesso27. A mesma regra foi também recomendada por alguns códigos de bom governo28 e pelo Relatório Winter I (2002)29.

IV. Apesar disso – e do que parece decorrer do Decreto-Lei n.º 20/2016 – não são de todo claros os méritos da imposição normativa de uma tal solução, em preterição da autonomia privada.

Veja-se, nesse sentido, a análise mais desenvolvida do Relatório sobre o princípio da proporcionalidade na União Europeia (2007)30, no qual se desta-cam três conclusões: (i) os dados empíricos não são conclusivos sobre as vanta-gens da imposição normativa do princípio da proporcionalidade (com conco-

26 Securities and Exchange Commission.27 Referimo-nos à controversa Rule 19c-4, adotada em 1988 pela SEC, e rejeitada logo em 1990 pelo District of Columbia Court of Appeals no caso Business Roundtable v. SEC, 905 F.2d 406 (D.C. Cir. 1990):

«Securities and Exchange Commission exceeded its statutory authority in promulgating rule barring national security exchanges and associations from listing stock of corporations which nullify, restrict or disparately reduce per share voting rights of common shareholders (…).»

28 Veja-se, e.g., a recomendação I.3.3. do Código de Governo das Sociedades da CMVM de 2007 [anotada por André Figueiredo, Código do governo das sociedades anotado (2012), recom. I.3.3., 79 e ss., em especial, 92], bem como a recomendações I.3 e I.4 do Código de Governo das Sociedades da CMVM de 2013.29 The High Level Group of Company Law Experts, Report on issues related to takeover bids (2002) (“Relatório Winter I”), 3, 21-23, no qual se afi rma:

«(…) proportionality between ultimate economic risk and control means that share capital which has an unlimited right to participate in the profi ts of the company or in the residue on liquidation, and only such share capital, should normally carry control rights, in proportion to the risk carried. The holders of these rights to the residual profi ts and assets of the company are best equipped to decide on the aff airs of the company as the ultimate eff ects of their decisions will be borne by them. (...)

The holder of the majority of risk-bearing capital should be able to exercise control. Capital and control structures in a company which grant disproportionate control rights to some shareholder(s) should not operate to frustrate an otherwise successful bid for the risk-bearing capital of the company. (…).»

30 Institutional Shareholder Services (ISS), Sherman & Sterling LLP (S&S) e European Corporate Governance Institute (ECGI), Report on the proportionality principle in the European Union (2007), em especial, 8-9.

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mitante afastamento dos chamados control enhancing mechanisms) e (ii) os desvios a este princípio (através de control enhancing mechanisms) são comuns na prática31.

Ainda em 2007, o tema foi tratado pelo European Corporate Governance Forum (ECGF)32 que, contrapondo as vantagens e desvantagens33 comummente associadas aos desvios ao princípio da proporcionalidade e secundando as con-clusões do Relatório sobre este princípio, recomendou que as intervenções legislativas se limitassem à previsão de deveres de informação que assegurassem uma maior transparência societária; outras medidas deveriam fi car dependentes de análises mais detalhadas que as permitissem fundamentar.

V. No fundo, prevalece a ideia de que ao legislador cabe o ónus de demons-trar a necessidade e o mérito de cada intervenção legislativa perante o pano de fundo da autonomia privada e da salutar concorrência interempresarial.

Estas conclusões e recomendações foram consideradas pelo legislador euro-peu que, na Diretriz dos direitos dos acionistas34, optou por não tratar este tema.

31 André Figueiredo, CGS Anotado, cit., recom. I.3.3., 91.32 Cfr. Paper of the European Corporate Governance Forum Working Group on Proportionality (2007) e Statement of the European Corporate Governance Forum on Proportionality (2007).33 As desvantagens enunciadas são:

«(i) board entrenchment; where deviations allow for full board entrenchment this would be unacceptable from a corporate governance perspective, (ii) extraction of private benefi ts by the controlling shareholder; deviations may off er increased incentives to the controlling shareholder to extract private benefi ts to the detriment of other shareholders, (iii) incontestability of corporate control; deviations reduce the contestability of corporate control, obstructing the operation of market judgements and (iv) ineff ectiveness of corporate governance codes based on comply or explain; deviations facilitate the avoidance by the controlling shareholder of the full eff ect of a corporate governance code and the comply or explain mechanism.»

As vantagens apontadas são as seguintes:

«(i) monitoring by the controlling shareholder; there may be merit in this monitoring role but deviations nonetheless become problematic when the extraction of private benefi ts exceeds the benefi ts to other shareholders generated by such monitoring, specifi cally when control is entrenched by such deviations, (ii) access to capital markets; deviations from the proportionality principle may provide an incentive to entrepreneurs to list their companies on a stock exchange in order to have access to additional capital while retaining control, but the trend appears to be to a reduced use of deviations at initial public off erings, (iii) long term and stakeholder protection; the objectives put forward in this area are often sincere but there is doubt as to whether the means to further these objectives are always proper and justifi ed and sometimes they may be in breach of free movement of capital and freedom of establishment and (iv) freedom of contract and effi cient competition; these arguments rightly place the onus on those who plead for regulatory intervention to justify it.»

Cfr. ECGF, Paper, cit., 2-3.34 Diretriz 2007/36/CE, de 11-jul.-2007, relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas.

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Foram também ponderadas pela OECD Steering Group on Corporate Gover-nance que, num relatório sobre o tema35, chegou a idênticas conclusões36.

O nosso legislador, porém, parece tê-las ignorado ao intervir nesta matéria sem qualquer estudo ou análise prévia que permitisse fundamentar os méritos da solução introduzida.

VI. No nosso mercado, sempre frágil, mas especialmente deprimido na atualidade, com um tão reduzido número de sociedades cotadas37, deve recor-dar-se que a imposição estrita do princípio da proporcionalidade (e a elimi-

35 Lack of proportionality between ownership and control: Overview and issues for discussion (2007).36 As conclusões enunciadas (p. 5-6) são as seguintes:

«– There is nothing a priori onerous about separating ownership and control. On the contrary, given the diff erences in expertise and resources of diff erent economic agents doing so is often effi ciency enhancing. However, those benefi ting from a disproportionate degree of control may have incentives to seek private benefi ts at the cost of non-controlling shareholders. The latter can obtain full compensation through a value discount on the shares they purchase, but from a societal perspective this may represent market failure and a source of economic ineffi ciencies.

– The cost of regulating proportionality would be considerable. Simply ruling out voting right diff erentiation on companies’ shares would neither be eff ective nor effi cient. The number of alternative [Proportionality-Limiting Measures (PLMs)] that can be used to a similar eff ect is such that incumbent owners could simply seek other routes to the same result. To eff ectively achieve proportionality a broad-based regulation targeting multiple elements of the corporate governance landscape, plus most likely also tax codes and new fi nancial instruments, would be needed. The direct cost of such sweeping measures would include the deterrence of companies controlled by owner-entrepreneurs from seeking stock market listing. Indirect costs include the eff ects of the multi-faceted regulation on economic activities not related to PLMs. The cost of softer regulation such as comply-or-explain, while lower, could also be excessive.

– Strengthening corporate governance frameworks is a better alternative. If the source of ineffi ciencies is the spectre of excessive private benefi ts then the fi rst-best solution is to discourage the extraction of such benefi ts. This point is illustrated by the fact that PLMs apparently make less of a diff erence to investors in countries with strong legal and regulatory frameworks, including in terms of disclosure and enforceable rights of non-controlling shareholders. Measures to regulate related party transactions and to encourage minority shareholder participation in shareholder meetings could be considered in this context. The OECD Principles of Corporate Governance recommends corporate governance frameworks and practices that, if fully implemented, go a long way toward achieving this goal.

– Specifi c problems can be dealt with through carefully targeted regulation. Countries with weak corporate governance frameworks may be unable to discourage some forms of abuse and hence need to regulate certain forms of proportionality. Such regulation needs to be based on recognised principles of regulatory impact assessment, including cost-benefi t analysis and a careful assessment of all available courses of regulatory action.»

37 Cfr. Abel Sequeira Ferreira, O futuro da bolsa, intervenção no I Congresso de Valores Mobiliários e Mercados Financeiros, organizado pela Almedina em 2016, disponível em www.emitentes.pt/images/media/docs/255_logos_1504161126_AEM_CongressoVMMF_Almedina_GovLab_versaoSite.pdf (consultada em 5-jan.-2017).

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nação de medidas defensivas contra OPAs hostis) tende a afastar as sociedades do mercado de capitais para se fi nanciarem, comprometendo o crescimento e contribuindo para a desvitalização do próprio mercado que assim se vê privado de “matéria-prima”38.

4. (Cont.) Os tetos de voto

I. É verdade que os tetos de voto podem ser usados para proteger a equipa de gestão perante a ameaça de OPAs hostis, assim frustrando o potencial do mar-ket for corporate control, ou perante uma efetiva fi scalização por grandes acionistas.

Porém, é também verdade que os mesmos podem servir como um impor-tante instrumento de proteção dos acionistas minoritários face a grandes acio-nistas39 ou, por outras palavras, de promoção da paridade entre acionistas40.

Recordamos aqui a clássica contraposição entre managerial agency problem e controlling shareholder agency problem e o risco associado à presença de um acio-nista controlador que, tendo incentivos para controlar a equipa de gestão, tem igualmente incentivos para usar a sua posição privilegiada para extrair “benefí-cios especiais de controlo”, em prejuízo da sociedade e dos seus minoritários41.

38 António Menezes Cordeiro, A OPA estatutária como defesa contra tomadas hostis, ROA, 58:1 (1998), 133-145 (135).A isto somam-se as dúvidas de alguma doutrina sobre os ganhos de efi ciência para o mercado associados às OPAs. Assim, v.g., Mary A. O’sullivan, Contests for corporate control, corporate governance and economic performance in the United States and Germany (2000), 169, sustenta que os efeitos das OPAs hostis são geralmente ambíguos ou mesmo negativos, concluindo que, salvo exceções, a maioria dos estudos empíricos sobre o desempenho pós-takeover não conseguiu demonstrar o seu papel disciplinador e alguns estudos sugerem até que o mercado para o controlo societário reduz o desempenho económico.Peter Hall e David Soskice, Varieties of capitalism. The institutional foundations of comparative advantage (2001), 61, vão mais longe, afi rmando que os efeitos das OPAs hostis na economia de mercado são inteiramente negativos. Comprometem o funcionamento do mercado por causarem incerteza e descredibilizarem os compromissos, quebrando a confi ança e provocando, a longo prazo, a insustentabilidade da cooperação estável.39 Como sublinha ISS, S&S e ECGI, Report on the proportionality principle, 8.40 Luca Enriques, Henry Hansmann e Reinier Kraakman, “The basic governance structure: Minority shareholders and non-shareholders constituencies”, in AA.VV., The anatomy of corporate law: A comparative and functional approach, 2.ª ed. (2009), 90-91. Cfr. tb. Paul Davies, Luca Enriques, Gerar Hertig, Klaus Hopt e Reinier Kraakman, “Beyond the anatomy”, in AA.VV., The anatomy...2, cit., 307-309. Em sentido crítico, v.g., Armando Triunfante, A tutela das minorias nas sociedades anónimas, 2 (2004), 95.41 Remetemos para a exposição sobre a teoria dos problemas e custos de agência em José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades: a obrigação de vigilância dos órgãos da sociedade anónima (2015), 32-67.

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A existência de tetos de voto impossibilita o controlo da sociedade por um só acionista ou por um número reduzido de acionistas42, reduzindo o potencial de extração de tais benefícios.

II. Esta potencialidade na proteção dos minoritários é frequentemente asso-ciada à promoção de projetos empresariais assentes na iniciativa das respetivas equipas de gestão que, não tendo fundos próprios para os fi nanciar, cativam um conjunto mais alargado de investidores não-controladores que apostam nos méritos do projeto e da equipa reunida para o desenvolver.

Na medida em que nenhum acionista pode, por si, exercer o controlo, assegura-se a centralidade do projeto desenvolvido pela equipa de gestão, em preterição do projeto de um qualquer acionista controlador.

Esta é precisamente a história, por exemplo, do Banco Comercial Por-tuguês, S.A.43 e do Banco BPI, S.A.44, que hoje se apresentam como pilares centrais do nosso sistema fi nanceiro.

III. Refi ra-se ainda que os limites ao exercício de direitos de voto cons-tituem um incentivo para a dispersão acionista – os investidores tendem a não adquirir participações para lá do teto de voto, acabando estas por ser distribuídas por uma base acionista mais alargada –, o que, num mercado como o portu-guês, deve ser visto com bons olhos. Com efeito, a dispersão acionista é fator de efi ciência e, logo, de desenvolvimento dos mercados de capitais (que muita falta nos faz).

IV. Por tudo quanto foi exposto, concluímos que o princípio da pro-porcionalidade (one share, one vote) não encontra fundamento na efi ciência económica45.

42 António Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, As limitações ao poder de voto dos accionistas e as acções do Estado e do I.P.E., RLJ, 119:3745 (1986), 97-101 (98).43 Como se pode ler no seu sítio da internet: «O Banco foi fundado com o suporte de um grupo de mais de 200 acionistas fundadores e uma equipa de profi ssionais bancários experientes que capitalizaram a oportunidade para constituir uma instituição fi nanceira independente (....)». Cfr. https://ind.millenniumbcp.pt/pt/Institucional/quemsomos/Pages/historia.aspx (consultada em 10-nov.-2016).44 O BPI encontra a sua origem na Sociedade Portuguesa de Investimentos, S.A. (SPI), constituída por iniciativa de Artur Santos Silva, com apoio de mais de cem empresários e sociedades e cinco das mais importantes instituições fi nanceiras internacionais. Cfr. http://bpi.bancobpi.pt/index.asp?riIdArea=AreaGbpi&riId=GHistoricos#1981 (consultada em 10-nov.-2016).45 Neste sentido, Guido Ferrarini, One share – one vote: A European rule?, European Company and Financial Law Review, 3:2 (2006), 147–177, citado na versão disponível online em www.ssrn.com.

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Nesta medida, não pode aceitar-se como boa a justifi cação apresentada pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 20/2016, segundo o qual a solução introdu-zida visa melhorar as condições de fi nanciamento das empresas, nomeadamente através da atração de investimento estrangeiro. Como vimos, não existe base empírica que permita sustentar uma maior capacidade de fi nanciamento das empresas com uma estrutura acionista concentrada. Antes pelo contrário, o fi nanciamento através de equity tende a ser facilitado pela existência de um mais alargado free fl oat que assegura liquidez aos títulos em causa e, assim, melhores condições para um eventual desinvestimento. Recorde-se que a possibilidade de desinvestimento é condição necessária do investimento.

V. Na mesma linha, somos forçados a concluir que não há dados que per-mitam demonstrar a afi rmação de Paulo Olavo Cunha46 de que a desblindagem estatutária maximiza a cotação de mercado das sociedades. Esta posição aparece sustentada na premissa, que nos parece necessariamente indemonstrada (porque uma tal demonstração sempre seria casuística e não aprioristicamente generali-zável), de que o projeto empresarial de um acionista controlador permitirá uma maior valorização da sociedade do que aqueloutro da administração47. A socie-dade valorizar-se-á mais ou menos no mercado consoante o mérito do projeto em causa, seja este formulado por exclusiva iniciativa da administração ou por imposição (de facto) de um qualquer acionista controlador.

A afi rmação de que a desblindagem «permite catapultar a cotação de mercado das empresas» é correta quando circunscrita às situações de disputa pelo controlo da sociedade em sede de OPA, mas isso não traduz uma valorização estrutural das empresas no mercado. Estando o oferente disposto a pagar um prémio pelo controlo da sociedade e tendo, perante o nosso quadro legal, de repartir esse prémio por todos os acionistas, a cotação das ações tende a subir para acompa-nhar a contrapartida em sede de OPA. Esta subida, porém, é meramente con-juntural: tendencialmente não refl ete uma qualquer valorização intrínseca da sociedade em função do projeto que o controlador pretende implementar, mas

46 Paulo Olavo Cunha, A breakthrough rule e o paradoxo da blindagem societária, Jornal de Negócios, 9- jan.-2008.47 Como bem sustenta Paulo Olavo Cunha, «os accionistas bastar-se-ão com a liquidez e valorização constantes decorrentes de uma boa gestão da sua empresa». Porém, a boa gestão não resulta necessariamente da presença de um controlador, sendo certo que esta reduz drasticamente a liquidez dos títulos em causa... Esta posição do autor fora já desenvolvida em “Breve nota sobre os direitos dos sócios”, in AAVV, Novas perspectivas do direito comercial (1988), 229-246 (241), onde sustentou que os acionistas atuais não têm qualquer preocupação com o voto, desde que lhes seja assegurado outro tipo de vantagens.

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tão-só o prémio que este pretende pagar pelo controlo e pelos seus inerentes “benefícios especiais”.

Estes benefícios que, por defi nição, não são repartidos por todos os acio-nistas na proporção das suas participações, são em geral sinónimo de inefi ciência económica.

5. (Cont.) A break-through rule no regime das OPAs

I. O princípio da proporcionalidade assumiu uma relevância central nas sucessivas discussões sobre a conformação do regime jurídico das OPAs na União Europeia48.

Em particular, o Relatório Winter I (2002), dedicado precisamente a este tema, concluiu49 que a construção de um mercado único de capitais exigia a criação de um level playing fi eld no domínio das OPAs50, no qual os desvios ao princípio da proporcionalidade não deveriam constituir obstáculo ao sucesso das ofertas51.

48 A Comissão Europeia anunciou, em 1985, a intenção de propor uma Diretriz que aproximasse a legislação dos Estados-membros sobre OPAs. A primeira proposta completa foi publicada apenas a 19-jan.-1988 e suscitou fortes receios, na medida em que sua densifi cação colidia com as culturas societárias de diferentes Estados-membros. Em 1996 foi apresentada nova proposta, menos ambiciosa na harmonização, deixando maior margem a cada Estado-membro para implementar os princípios que enunciava. Cfr. Relatório Winter I (2002), 13. Perante a oposição a esta nova proposta, a Comissão constituiu uma equipa de sete peritos em direito societário, liderada por Jaap Winter, para propor soluções aos entraves colocados pelo Parlamento Europeu. Cfr. European Commission, Commission creates High Level Group of Company Law Experts, Press release IP/01/1237 (2001).O relatório por esta produzido – o Relatório Winter I (2002) – apresentou dois princípios-base: o princípio de decisão pelos acionistas e o princípio da proporcionalidade entre o capital e o controlo. O primeiro assenta na premissa de que não cabe ao conselho de administração decidir sobre a aceitação de uma oferta que é dirigida aos acionistas. O relatório rejeita o argumento de que a intervenção do conselho permite a ponderação dos interesses dos vários stakeholders da sociedade. O conselho está sujeito a um confl ito de interesses signifi cativo: não é expectável que sacrifi quem a sua posição e reputação para maximizar o valor da sociedade. O segundo princípio foi justifi cado com base no argumento de que aqueles que suportam o risco de investimento estão na melhor posição para decidir sobre a OPA: o controlo deve ser proporcional ao risco assumido.49 Considerando que as OPAs tinham probabilidades de sucesso muito diferentes consoante o Estado-membro em causa, com refl exo na real possibilidade de os acionistas venderem as suas ações numa OPA.50 Assente nos dois princípios fundamentais referidos na nota 48 supra.51 Relatório Winter I (2002), cit., 3.

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A solução passaria pela introdução de uma regra destinada a ultrapassar os mecanismos e estruturas que traduzem desvios àquele princípio. Foi batizada pelo relatório, de forma sugestiva, como “break-through rule”52.

II. Note-se que esta regra, tal como confi gurada no Relatório Winter I (2002), pressupunha a existência de diferentes control enhancing mechanisms nos diferentes Estados-membros da União Europeia (incluindo tetos de voto) que se manteriam efi cazes, salvo no contexto de uma OPA.

Assim, o oferente que tivesse realizado uma oferta geral sobre todas as ações da sociedade visada e, através desta, tivesse adquirido mais do que um deter-minado número mínimo dessas ações (não superior a 75% do capital social), (i) deveria poder exercer, em assembleia geral, um número de direitos votos proporcional ao risco económico por si suportado (não se aplicando, v.g., tetos de voto eventualmente previstos nos estatutos) e (ii) deveria poder exercer os direitos de controlo fundamentais que a lei comummente atribui aos acionistas, incluindo o direito de destituir, suspender e designar os membros dos órgãos sociais, bem como o direito a conformar os estatutos da sociedade (não se apli-cando as disposições estatutárias que a tal se pudessem opor)53.

De forma sintética: um oferente bem sucedido «deveria ter a possibilidade de ultrapassar quaisquer mecanismos que pudessem frustrar o exercício de um controlo proporcional»54.

III. Esta proposta foi objeto de muitas críticas. Para o que ora nos ocupa, destaca-se o facto de a break-through rule determinar uma perda de poder de voto para aqueles que benefi ciavam de control enhancing mechanisms (como tetos de voto, por exemplo) sem direito a qualquer compensação55.

Não surpreende que esta proposta tivesse um reduzido impacto na Diretriz das OPAs (2004)56 que, para grande desagrado de Jaap Winter57, incluiu a pro-posta portuguesa da break-through rule como regra supletiva (e não injuntiva): estendeu aos Estados-membros a possibilidade de opt-out e às sociedades cotadas

52 Relatório Winter I (2002), cit., 4.53 Relatório Winter I (2002), cit., 4.54 Relatório Winter I (2002), cit., 29.55 Erik Berglöf e Mike Burkart, European takeover regulation, Economic Policy, 36 (2003), 173-208 (em especial, 203).56 Diretriz 2004/25/CE, de 21-abr.-2004, relativa às ofertas públicas de aquisição. Cfr. Ferrarini, One share – one vote, cit., 5.57 Jaap Winter, EU company law at the cross-roads, in Guido Ferrarini, Klaus Hopt, Jaap Winter e Eddy Wymeersch, Reforming company and takeover law in europe, (2004), 3-20 (18-19).

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a possibilidade de opt-in (artigos 11.º/4 e 12.º). Enquanto tal, acabou por se tornar irrelevante na prática58.

Especialmente importante para efeitos do presente artigo foi o facto de o artigo 11.º/5 desta Diretriz ter imposto aos Estados-membros que criassem soluções de indemnização equitativa para os titulares de direitos suprimidos por efeito, v.g., da break-through rule prevista no seu artigo 11.º/4.

IV. Na transposição desta Diretriz, a CMVM propôs não uma solução injuntiva, mas sim uma solução dispositiva, bem acolhida no processo de con-sulta pública promovido, atenta a reduzida dimensão e grau de desenvolvi-mento do mercado de capitais português e a necessidade de respeitar o princí-pio da liberdade contratual entre os acionistas59.

Foi assim aditado o artigo 182.º-A ao CVM, nos termos do qual as socie-dades sujeitas a lei pessoal portuguesa podem prever estatutariamente (i) a suspensão das restrições à transmissão de ações no âmbito da oferta, (ii) a suspensão das restrições ao exercício de direitos de voto na deliberação (em assembleia geral) de autorização para a prática de determinados atos pela administração (segundo a regra da neutralidade desta perante a OPA, artigo 182.º) e (iii) que, quando, na sequência de OPA, seja atingido pelo menos 75% do capital social com direito de voto, ao oferente não são aplicáveis as restrições relativas à transmissão e ao direito de voto, nem podem ser exercidos direitos especiais de designação ou de destituição de membros do órgão de administração da sociedade visada.

6. A dimensão patrimonial da participação social e sua conformação pelo poder (relativo) de voto

I. A posição dos sócios enquanto sócios, perante a sociedade e os demais sócios, é por natureza complexa e compreensiva, mutável ao longo dos tem-pos, de acordo com as concretas vicissitudes socioeconómicas da sociedade, sem que tal prejudique a sua identidade própria. Melhor descrita como status

58 Ferrarini, One share – one vote, cit., 5.59 No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 219/06, de 2-nov., que transpôs a Diretiva das OPAs, pode ler-se:

«O artigo 12.º da directiva prevê que os Estados membros possam conferir às entidades visadas a possibilidade de dispensar, no todo ou em parte, o disposto em determinadas disposições da directiva, incluindo as previstas no artigo 11.º, sem prejuízo do princípio da reciprocidade. Deste modo, o legislador nacional opta, no novo artigo 182.º-A, por um regime ponderado, atenta mais uma vez a argumentação que defende uma maior liberdade de circulação de capitais em contraponto com a que defende o primado da autonomia privada.»

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socii, compreende situações jurídicas ativas e passivas, entre as quais se destaca o direito de voto60.

Este direito constitui uma verdadeira “trave mestra”61 do conjunto de posi-ções jurídicas imputadas aos sócios, nos termos gerais do artigo 21.º/1, b) CSC e das disposições específi cas de cada tipo societário, correspondendo ao interesse de cada sócio em conformar a atividade comum da sociedade que incorpora62.

Traduz, no fundo, a possibilidade normativamente reconhecida a cada sócio de participar no exercício em comum da atividade societária que carac-teriza o tipo “sociedade comercial”63, num complexo esquema de articulação interorgânica.

II. Sem prejuízo da sua centralidade no quadro da participação social, o direito de voto não é absoluto, no sentido de não ter limites ou restrições, como resulta do próprio artigo 21.º/1, b) CSC.

Sendo um meio de participação na vida societária e de defi nição das regras a que os acionistas pretendem, em modo coletivo e em cada momento, sub-meter-se e sob as quais desejam que a sociedade opere64, está sujeito a limites intrínsecos e extrínsecos65.

60 Sobre o recurso à técnica do status, cfr. António Menezes Cordeiro, Direito das sociedades, 1, 3.ª ed. (2011), 620-622, 630-636. Cfr. tb. os importantes desenvolvimentos de Diogo Costa Gonçalves, Fusão, cisão e transformação de sociedades comerciais: A posição jurídica dos sócios e a delimitação do statuo viae (2008), 19-20, 339-367. Para uma visão distinta, cfr. a classifi cação plural de Pedro Pais de Vasconcelos, A participação social nas sociedades comerciais, 2.ª ed. (2006), 389 ss., com indicações bibliográfi cas relevantes que permitem compreender o estado da doutrina nacional à data.61 João Labareda, Das acções das sociedades anónimas (1988), 159-161.62 Armando Triunfante, A tutela das minorias nas SA, 2, cit., 95.63 Cfr., v.g., Vasco da Gama Lobo Xavier, Sociedades Comerciais, Lições aos alunos de direito comercial do 4.º ano jurídico (policopiadas) (1987), 13, João Labareda, “Posição do sócio alienante na deliberação sobre o pedido de consentimento para a cessão de quotas”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura (2003), 2, 467-494 (472), Filipe Cassiano dos Santos, Estrutura associativa e participação societária capitalística (2006), 122, Pedro Maia, Voto e corporate governance, dissertação de doutoramento ainda não publicada (2009), 7, 21, 51, 98-105. Contra, sustentando que não se reconhece um “exercício em comum” pelos sócios nalgumas sociedades comerciais, cfr., v.g., Luís Carvalho Fernandes, Teoria geral do direito civil, 1, 5.ª ed. (2009), 487, Pais de Vasconcelos, A participação social2, cit., 29.64 João Labareda, “Posição do sócio alienante...”, cit., 472-473. 65 João Labareda, Das acções..., cit., 162 ss.

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Os limites intrínsecos recortam o direito por dentro, por referência à sua ordenação teleológica, determinando a nulidade do voto que exceda o fi m a que se destina66.

Os extrínsecos decorrem não da sua natureza, mas de restrições heteró-nomas de base legal ou estatutária. Entre estes incluem-se67 (i) a exclusão do direito de voto nas ações preferenciais sem voto (artigos 341.º ss. CSC), (ii) a

66 No mesmo sentido, João Labareda, Das acções..., cit., 166.As afi rmações de que o confl ito entre o interesse social e o interesse de um sócio determina o impedimento de voto deste último (artigos 251.º e 384.º/6) e de que, não sendo respeitado esse impedimento, o voto é nulo e a deliberação anulável, não oferecem hoje dúvidas. O desafi o está na delimitação do que seja o confl ito de interesses normativamente relevante para este efeito. Em geral, entende-se existir um confl ito entre dois interesses quando a prossecução de um determina necessariamente um prejuízo para outro. Porém, nem todos os confl itos entre dois interesses são relevantes para todos os efeitos normativos. O esclarecimento da questão exige a articulação dos regimes dos impedimentos de voto com aqueloutro da invalidade das deliberações e, em particular, com o resultante do artigo 58.º/1, b).Entende-se em geral que o regime dos impedimentos de voto, enquanto solução de prevenção de confl ito de interesses, se restringe aos casos em que esteja em causa uma relação jurídica entre o sócio e a sociedade. Diferentemente, o regime da anulabilidade das deliberações abusivas cobre todas as deliberações que sejam objetivamente «apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos». Para o que ora releva, não se exige a demonstração de um concreto prejuízo para a sociedade, nem de um concreto benefício para o sócio, mas apenas a demonstração da adequação da deliberação para o efeito. Ao presidente da mesa (e, com as necessárias adaptações, ao presidente da assembleia, no caso das SQ), enquanto centro de poder instituído nas SA, independente (especialmente nas sociedades cotadas, por força do artigo 374.º-A/1 CSC), compete zelar pelo regular e ordenado funcionamento da assembleia geral. Neste contexto, sendo imparcial, deve tutelar os direitos de todos os acionistas, sendo-lhe reconhecidos os poderes-deveres necessários para o desempenho desta função, que inclui não só a garantia do cumprimento de todas as regras, legais e estatutárias, relativas ao processo deliberativo, mas também o respeito pelos direitos individuais dos acionistas. Cfr., v.g., Dietmar Kubis, Münchener Kommentar zum Aktiengezetz, 3, 3.ª ed. (2013), § 119, n.º 121, e, entre nós, Pedro Maia, “O presidente da mesa das assembleias de sócios”, in AA.VV., Problemas do Direito das Sociedades (2002), 423-425, Paulo Tarso Domingues, CSC em Comentário, 6 (2013), artigo 374.º, 32.Existindo uma causa de nulidade das deliberações, o presidente está adstrito a um dever específi co de não permitir a concretização da deliberação. Porém, perante uma causa de anulabilidade da deliberação, como sucede nos casos de confl ito de interesses para efeitos do artigo 58.º/1, b), deve o presidente ponderar, com uma certa margem de discricionariedade vinculada, se o risco de impugnação deve ser aceite. Neste sentido, v.g., Johannes Semler, Münchener Handbuch des Gesellschaftsrechts, 3.ª ed. (2007), § 36, n.º 39.67 Cfr. João Labareda, Das acções..., cit., 162-165.

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exigência estatutária de um certo número de ações para a titularidade do direito de voto [artigo 384.º/2, a) CSC] e (iii) a fi xação estatutária de tetos de voto [artigo 384.º/2, a) CSC]68.

III. Este direito, como todos os demais inerentes à participação social, é de natureza patrimonial 69. Num parecer inédito70, citado por alguns autores71, explicava Raul Ventura que a classifi cação dos direitos inerentes em função do seu conteúdo económico não pode ser confundida com a classifi cação civilista e genérica dos direitos subjetivos em patrimoniais e não patrimoniais, porquanto:

«(…) nesta classifi cação civilista, todos os direitos componentes da acção duma sociedade são patrimoniais e as lesões por eles sofridas são danos patrimoniais. Ninguém duvidará de que a acção é um bem patrimonial e ela não é mais do que o agrupamento de todos os direitos-pa-trimoniais, no sentido específi co do direito societário, ou administrativos.»

Como bem sublinhava o Prof. Raul Ventura, todos os direitos incluídos na participação social são teleologicamente ordenados à garantia de uma «adequada rentabilização do seu investimento».

Este ponto é importante para a análise subsequente sobre se o Decreto-Lei n.º 20/2016 produziu ou não um dano patrimonial na esfera de determinados acionistas do BPI. Com efeito, a referida natureza patrimonial traduz a projeção económica da participação social como um todo. Tipicamente, a sua aquisição traduz um investimento assente numa específi ca ponderação da relação risco/benefício que lhe é inerente72.

IV. Nesta específi ca ponderação releva, naturalmente, a infl uência que para o sócio advém de uma determinada participação, ou seja, o poder de voto que

68 Neste caso pode discutir-se se estamos perante uma mera restrição ao exercício do direito de voto ou se esta solução estatutária traduz afi nal uma restrição ao direito em si.69 Nega-se, portanto, a clássica distinção entre direitos patrimoniais e não patrimoniais inerentes às ações que está subjacente à afi rmação da cindibilidade dos primeiros e da incindibilidade dos segundos.70 Ao qual não tivemos acesso direto.71 Carlos Osório de Castro, Valores mobiliários: conceito e espécies (1998), 89 (n. 31), José Marques Estaca, “O destaque dos direitos de voto em face do código dos valores mobiliários”, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, 2 (2008), 1347-1361 (1351-1352).72 Neste sentido, cfr. as interessantes considerações de Clemente V. Galvão, Conteúdo e incumprimento do contrato de compra e venda de participações sociais: Um contributo, ROA, 70:3-4 (2010), 533-573, § 2.2, a propósito da aquisição de “empresas” através de share deals.

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esta lhe confere na conformação dos destinos da sociedade através das delibe-rações sociais73.

Este é um poder relativo, dependente do número de votos inerentes à sua participação e do peso relativo dos mesmos na totalidade dos votos emitidos ou suscetíveis de emissão74. É, portanto, também dependente da existência de tetos de voto, cuja consagração aumenta o peso relativo dos minoritários75 e, assim, a possibilidade de uma efetiva autotutela dos seus interesses.

Por isso, a existência de um teto de voto desvaloriza economicamente a participação do sócio cujos direitos são restringidos e valoriza as demais76; a eliminação desse teto benefi cia economicamente o primeiro e prejudica os segundos.

V. No caso em apreço, o poder de voto da Santoro era particularmente rele-vante, correspondendo na verdade a um poder de veto, como vimos já.

Conferia-lhe, portanto, uma certa medida de controlo sobre os destinos da sociedade e, nessa medida, uma particular valorização da sua participação que via o seu preço de mercado infl acionado por um prémio de controlo77.

73 Destacando a desvalorização das ações dos minoritários perante uma tomada de controlo, «em virtude de o direito de voto que incorporam passar a ter um peso político relativamente diminuto no conjunto global dos direitos de voto», Juliano Ferreira, Excepções ao dever de lançamento de oferta pública de aquisição, DSR, 3:6 (2011), 189-224 (195).74 Coutinho de Abreu, CSC em Comentário, 6 (2013), artigo 384.º, 126-127.75 Luca Enriques, Henry Hansmann e Reinier Kraakman, “The basic governance structure: Minority shareholders and non-shareholder constituencies”, in AA.VV., The anatomy of corporate law: A comparative and functional approach, 2.ª ed. (2009), 89-113 (91).76 Eduardo Lucas Coelho; Direito de voto dos accionistas nas assembleias gerais das sociedades anónimas (1987), 50-58 (em especial, 57).77 O prémio de controlo traduz a estimativa dos benefícios especiais de controlo, sendo igual à diferença entre (i) o valor por ação pago ao sócio controlador na alienação do controlo da sociedade e (ii) a cotação das ações da mesma categoria no dia seguinte à divulgação da transação. Cfr. Michael Barclay e Clifford Holderness, Private benefi ts of control of public corporations, Journal of Financial Economics, 25 (1989) 371-395, Alexander Dyck e Luigi Zingales, Private benefi ts of control: An international comparison, The Journal of Finance, 59 (2004) 537-600 (540-542). Entre nós, cfr., entre tantos outros, João Paulo Menezes Falcão, “A OPA obrigatória: Fundamentos e regime no novo Código dos Valores Mobiliários”, in AA.VV. Direito dos Valores Mobiliá rios, 3 (2001), 179-228 (192), Juliano Ferreira, Excepções ao dever de lançamento de OPA, cit., 195 (n. 4), Carlos Ferreira de Almeida, OPA obrigatória no direito português. Pressupostos do dever e efeitos civis do incumprimento (2013), disponível online em www.institutovaloresmobiliarios.pt, 9-10.Naturalmente, o prémio de controlo da Santoro era delimitado pela existência de um outro acionista de controlo com uma participação maior (ainda que restringida pelo teto de voto). Neste sentido, cfr. Alexander Dyck e Luigi Zingales, Control premiums and the eff ectiveness of corporate governance systems, Journal of Applied Corporate Finance, 16:2-3 (2004) 51-72 (55).

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Esta situação foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 20/2016 que, como vimos, visou permitir a desblindagem dos estatutos do BPI, alterando as regras a meio do jogo. Permitiu ultrapassar o braço-de-ferro entre o CaixaBank e a Santoro, esfumando o poder de veto desta e, com isso, desvalorizando a sua participação.

7. A (in)constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20/2016: Enquadra-mento

I. Perante o cenário descrito, propomo-nos apresentar não uma posição defi nitiva sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20/2016, mas sim recordar e clarifi car a correspondente matriz de análise.

Começamos por analisar a caracterização constitucional da participação social como “propriedade corporativa”, abrindo o caminho para a ponderação subsequente do sentido e alcance da tutela constitucional da propriedade.

II. Só depois de delimitado o conteúdo deste direito fundamental se pode discutir a sua restrição pelo legislador ordinário78.

Caso se conclua que do Decreto-Lei n.º 20/2016 resulta uma compressão do direito de propriedade, constitucionalmente tutelado como direito funda-mental, impõe-se a avaliação dessa restrição à luz dos princípios da proporcio-nalidade e da tutela da confi ança.

III. Paralelamente, importa recordar o direito subjetivo a uma justa indem-nização, seja a referida compressão do direito de propriedade lícita ou ilícita do ponto de vista constitucional.

IV. Deixamos para o fi nal umas breves referências à constitucionalidade das disposições transitórias do Decreto-Lei n.º 20/2016 (artigo 3.º), e à consti-tucionalidade orgânica deste diploma, à luz da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º/1, b) CRP].

78 J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1, 4.ª ed. (2007), artigo 18.º, 388-389.

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8. (Cont.) A confi guração constitucional da participação social como “propriedade corporativa”

I. O direito de propriedade constitucional não se confunde com o seu homónimo civil: protege não apenas direitos reais (propriedade e direitos reais menores), mas todos os direitos com relevância económica direta79. Cobre por-tanto a generalidade dos direitos patrimoniais, como expressamente reconheceu o Tribunal Constitucional (TC).

No seu acórdão n.º 491/02, de 26-nov.-2002 (P. Mota Pinto)80, o TC desenvolveu esta perspetiva, fi rmando defi nitivamente o alcance da tutela cons-titucional da propriedade, no sentido de abranger as participações sociais81. Nas palavras do tribunal:

«(…) o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange ape-nas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os “direitos sociais” – incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades (…)» (realce nosso).

II. Neste acórdão, o TC acompanhou a perspetiva segundo a qual a parti-cipação social «constitui sempre uma propriedade “mediatizada” pela interposição de uma entidade corporativa dotada de personalidade e organização jurídica próprias»82.

É uma propriedade cujos contornos só são percetíveis à luz do tipo socie-tário em causa, por cujas regras se rege, sendo o seu conteúdo suscetível de compressão e extensão em função de vicissitudes societárias várias.

Em todo o caso, a referida compressão determina sempre, como confi r-mam as regras jus-societárias, uma justa compensação do sócio atingido. Vejam--se, nesse sentido, os regimes da dissolução com transmissão global do patrimó-

79 M.ª Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador (1998), 530, 548, Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade do Estado por actos legislativos (1992), 248 ss., Miguel Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade numa democracia constitucional (2006), 907 ss. Cfr. tb. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 800.80 Proc. 310/99.81 Como há muito afi rmara claramente o Prof. Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 339-341, com apoio no direito comparado.Cfr. tb. TC Ac. n.º 373/03, de 15-jul-2003 (Mário Torres), Proc. 480/98, TC Ac. n.º 273/04, de 20-abr.-2004 (Gil Calvão), Proc. 506/03. Cfr. ainda Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1247.82 José Engrácia Antunes, “O artigo 490.º e a lei fundamental: «Propriedade corporativa», propriedade privada, igualdade de tratamento”, in Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (2001), 147-276.

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nio para um sócio (artigo 148.º/ 1 CSC), da amortização compulsiva de quotas ou ações (artigos 233.º/1 e 2, e 347.º/1, 3, 4 e 5 CSC), a fusão [artigos 97.º/5, 98.º/1, e), e 105.º CSC], da cisão [artigos 119.º/1, f), e 120.º CSC], da trans-formação (artigos 135.º/2, e 137.º CSC), da aquisição tendente ao domínio total (artigo 490.º/2 CSC), ou da constituição de um grupo por contrato de subordinação [artigos 494.º/1, a), 495.º, d) e e), e 499.º/1 CSC]83.

III. Está portanto claro que, à luz desta construção, a posição do sócio não é intangível: está sujeita às vicissitudes societárias operadas à luz das correspondentes regras legais e estatutárias.

Fica por verifi car se a mesma pode ser atingida já não por tais vicissitudes internas, mas por alterações do quadro normativo e, em caso afi rmativo, em que termos. Em particular, importa saber se tais alterações exigem compensação dos sócios afetados ou não. A tanto nos dedicamos nos pontos seguintes.

9. (Cont.) A tutela constitucional da propriedade

I. No quadro geral da nossa Constituição, a propriedade é protegida, antes de mais, pelo artigo 62.º. Trata-se de um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias84. Enquanto projeção e instrumento da autono-

83 Engrácia Antunes, “O artigo 490.º e a lei fundamental...”, cit., 246-247, 249 ss..84 Cfr., v.g., TC Ac. n.º 187/01 (P. Mota Pinto), Proc. 120/95. Cfr. tb. Rui Medeiros, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição portuguesa anotada, 1, 2.ª ed. (2010), artigo 62.º, 1242. Adiante veremos se tal natureza se estende a todas as suas concretizações. É essa discussão que justifi ca a afi rmação de Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 800, de que o regime dos direitos, liberdades e garantias se lhe aplica «naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles»).Em sentido contrário, M.ª Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado…, cit., 570-579, sustenta que do artigo 62.º/1 CRP não resulta um direito subjetivo, com natureza de direito fundamental do tipo direito liberdade e garantia, mas tão só uma garantia objetiva, de instituto, da qual decorrem limites ao poder do legislador ordinário na conformação da propriedade, para lá dos quais é imputado ao particular um direito a ser indemnizado pela lesão do seu direito. Perante esta construção, o particular não tem direito à conservação do seu direito de propriedade, mas tão só à justa indemnização. Esta resulta do n.º 2 do artigo 62.º, só este consagrando um direito subjetivo, o direito à justa indemnização, como direito fundamental do tipo direito, liberdade e garantia. Este direito encontra a sua “autoridade exclusiva” na Constituição, não sendo sustentável a posição de que a indemnização só é devida nos casos e com o conteúdo previsto em lei ordinária. Constitui-se perante qualquer expropriação, entendido aqui o conceito no seu sentido constitucional e não no sentido administrativo que decorre do artigo 1.º do Código das Expropriações. Nesse sentido, vale para todo o património e não apenas para os direitos reais relativos a imóveis; vale para todas as formas de realização do interesse público, e não apenas para os casos de utilidade pública

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mia e do livre desenvolvimento das pessoas85, traduz uma garantia fundamental da propriedade privada, ocupando um lugar central «no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano colectivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que per-mita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político»86.

II. Abrange, como vimos no ponto anterior, não apenas direitos reais (pro-priedade e direitos reais menores), mas todos os direitos com relevância econó-mica direta, incluindo portanto a generalidade dos direitos patrimoniais.

III. Na densifi cação do conteúdo do direito fundamental de propriedade, identifi cam-se tipicamente três direitos: «(i) o direito de aceder à propriedade, (ii) o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade, e (iii) o direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa»87. Perante a ausência de uma refe-rência normativa expressa, tem sido discutido se o artigo 62.º compreende o direito de usar e fruir os bens de que se é proprietário ou, no caso dos bens produtivos, de os aproveitar e explorar economicamente88.

individualizável e determinável; vale perante «todos os sacrífi cos patrimoniais privados que sejam graves e especiais» e não apenas perante atos ablatórios típicos da expropriação clássica; vale quer tais sacrífi cos resultem de ato administrativo quer direta e imediatamente da lei.85 José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, 2 (2006), 666, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1243. Contra, v.g.: Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 800.86 TC Ac. n.º 421/09, de 13-ago.-2009 (M.ª Lúcia Amaral), Proc. 667/09.87 TC Ac. n.º 148/05, de 16-mar.-2005 (Vítor Gomes), Proc. 143/03. Cfr. tb. Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1247.88 Em particular, no domínio urbanístico e de ordenamento do território, discute-se se o ius aedifi candi se inclui no direito de propriedade constitucionalmente consagrado ou, em sentido contrário, se resulta do ato administrativo autorizativo (licença de construção). A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem conhecido uma fl utuação signifi cativa: se, no início, recusava a tutela constitucional do ius aedifi candi, depois passou a alternar entre as duas teses tradicionais. Para efeitos de cálculo do quantum indemnizatório, o Tribunal Constitucional reconhece que a possibilidade de construção é um elemento de forte valorização do bem a ter em consideração. São por isso inconstitucionais normas que na determinação do critério de indemnização, excluem ilegitimamente a aptidão de edifi cabilidade do terreno, pelo menos nas situações em que o solo envolva uma muito próxima ou efetiva potencialidade edifi cativa. A questão é relevante para o tema aqui em discussão, pelos paralelos que se podem estabelecer face ao aproveitamento económico da participação social. Cfr. Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1248 ss., em especial, 1251--1252, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 804, Fernando Alves Correia, A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999 (2000), 232 ss..

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Sem prejuízo desta matriz unitária, em cada caso haverá que ponderar a individualidade e destinação do bem em causa para concretizar o conteúdo do correspondente direito de propriedade89.

Em todo o caso, sublinhe-se, o direito de propriedade é objeto de uma tutela relativa: é garantido «nos termos da constituição» (artigo 62.º/2 CRP); o seu conteúdo é delimitado em função dos princípios, valores e critérios constitu-cionais que o enformam90. Trata-se de uma visão consentânea com a função social da propriedade91.

IV. Dito isto, cabe ao legislador ordinário delimitar o concreto conteúdo do direito de propriedade92, adaptando-o em função das mutações verifi cadas nas inerentes relações sócioeconómicas93. Esta delimitação pode traduzir uma mera concretização de vetores constitucionais ou introduzir-lhe restrições, caso em que entramos no tratamento das leis restritivas (artigo 18.º/2 CRP).

A tutela constitucional da propriedade não obsta a uma tal conformação jurídica do bem e do poder do proprietário, desde que verifi cadas três condi-ções: (i) o respeito pela «estrutura fundamental da propriedade privada como direito de domínio individual», (ii) o fundamento de uma tal conformação em princípios e valores constitucionais, (iii) o respeito pelos princípios da proporcionalidade e da proteção da confi ança94.

Neste sentido, são assegurados os direitos e faculdades elementares dos bens patrimoniais apropriáveis, mas não garantidos especifi camente os múltiplos tipos de direitos de carácter patrimonial existentes95.

89 Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1276.90 Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1254. Cfr. tb. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 801-802.91 Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1255.92 TC Ac. n.º 421/09, 13-ago.-2009 (M.ª Lúcia Amaral), Proc. 667/09. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 802, sustentam que a ausência de uma explícita reserva de lei restritiva causa alguma perplexidade.93 Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade (2001), 302 ss., em especial, 312-313, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1244-1245, 1255.94 TC Ac. n.º 301/02, 03-jul.-02 (P. Mota Pinto), Proc. 93/02. Cfr. tb. Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1256, Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 853.95 Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1245. Veja-se também, já à luz da Constituição de 1933, Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 342-344, onde o Professor sustenta que o sacrifício da propriedade privada só é legítimo para afetação direta do bem ao desempenho de uma função social mais relevante do que a preenchida pelo mesmo à data.

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10. (Cont.) A tutela constitucional da “propriedade corporativa” e o Decreto-Lei n.º 20/2016

I. Nos termos já descritos, o conteúdo da participação social, entendida como “propriedade corporativa”, só é percetível à luz do tipo societário em causa.

Sendo os tipos regulados por lei ordinária, questiona-se se dos mesmos resulta uma qualquer confi guração constitucional que condicione a atuação do legislador ordinário. Será que o equilíbrio próprio de cada tipo ascende à natu-reza constitucional, limitando alterações legais subsequentes?

II. O artigo 62.º/1 CRP garante a cada pessoa a existência de bens e direi-tos em face do poder do Estado, «nos termos em que eles foram adquiridos, em con-formidade com as normas vigentes no momento relevante»96.

Desta “garantia de permanência” não decorre, porém, uma petrifi cação da ordem jurídica97. O legislador pode reconfi gurar o equilíbrio próprio de cada tipo societário, alterando as correspondentes regras legais, não obstante a sua relevância central na conformação da “lei fundamental” da sociedade98 que jus-tifi cou a adesão e o investimento de cada um dos sócios.

Simplesmente, quando uma tal reconfi guração se projete também sobre as relações previamente constituídas, só será lícita na medida em que respeite os princípios da proporcionalidade e da proteção da confi ança99.

III. O princípio da proporcionalidade apresenta-se hoje como núcleo central dos requisitos materiais exigidos às restrições aos direitos fundamentais100, nele se reconhecendo comummente três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito101.

Para o que ora nos interessa, este princípio veda a conformação arbitrá-ria da propriedade privada, essencial à dignidade da pessoa, pelo legislador

96 Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 852-853.97 Mas tão-só que os particulares não podem ser privados do seu direito sem uma justa indemnização. Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 852-853.98 Engrácia Antunes, “O artigo 490.º e a lei fundamental...”, cit., 264 (n. 274), qualifi ca como “lei fundamental” o quadro legal-estatutário do ente coletivo.99 Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 853.100 Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa (2004), 161-162.101 V.g.: J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 7.ª ed. (2003), 451 ss., Reis Novais, Os princípios constitucionais..., cit., 162.

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ordinário, o qual deve atender ao fundamento e critérios fi xados pela ordem constitucional102.

Concretiza-se, portanto, num direito de não ser privado da propriedade, nem do seu uso, arbitrariamente103: a desapropriação tem de ser efetivamente justifi cada por razões de interesse público. Para além disso, tem de obedecer a um específi co procedimento e confere ao lesado um direito a uma justa com-pensação104, como veremos adiante.

IV. O princípio da proteção da confi ança é um dos mais fundamentais princípios de qualquer ordem jurídica105: a tutela de expectativas é uma função primária106 ou essencial do Direito107.

É pacífi co o seu reconhecimento constitucional para lá do texto da lei fun-damental: apesar de não estar expressamente previsto na Constituição108, «a confi ança está na base da própria possibilidade da ordem constitucional»109. Enquanto fundamento jurídico-constitucional, decorre do mais vasto princípio do Estado de Direito110, assegurando aos particulares a estabilidade, a autonomia e a segu-rança de que necessitam para a organização dos seus planos de vida111.

Este não é, porém, um princípio absoluto, razão pela qual o TC sempre restringiu o seu juízo de inconstitucionalidade sobre leis retroativas aos casos que implicassem uma «retroactividade intolerável, que [afectassem] de forma inadmis-sível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos»112. Esta

102 Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 853, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1258.103 José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema..., 2, cit., 672, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 805, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1258. 104 TC Ac. n.º 421/09, 13-ago.-2009 (M.ª Lúcia Amaral), Proc. 667/09.105 Claus-Wilhelm Canaris, Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht (1971), 3.106 João Baptista Machado, Tutela da confi ança e venire contra factum proprium, in Obra dispersa, 1 (1991), 345-423 (346).107 Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança na «jurisprudência da crise»“, in Gonçalo de Almeida Ribeiro e Luís Pereira Coutinho, O Tribunal Constitucional e a Crise: Ensaios Críticos (2014), 133-181 (136).108 Encontra a sua origem histórica na decisão do BVerG de 19-dez.-1961. Cfr. Maria Lúcia Amaral, “O tempo e a protecção da confi ança”, in Almeida Ribeiro e Pereira Coutinho, O Tribunal Constitucional..., cit., 21-29 (22-23).109 Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança...”, cit., 135, 137.110 Cfr. Ac. n.º 463 da Comissão Constitucional, de 13-jan.-1983, apêndice ao DR 23-ago.-1983, 133. Cfr. tb. Paulo Otero, Direito constitucional português, 1 (2010), 87-90, Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança...”, cit., 137-138.111 Reis Novais, Os princípios constitucionais..., cit., 261.112 Cfr. TC Acs n.os 11/83, de 12-out.-83 (Martins da Fonseca), Proc. 94/83, 17/84, de 22-fev.-84 (Monteiro Diniz), Proc. 25/83, 86/84, de 24-jul.-84 (Messias Bento), Proc. 95/83.

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afectação seria aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios fi xados em 1990113:

«a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucio-nalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (...)114.»

Nas restrições ao direito de propriedade, este princípio estabelece a ponte entre a “garantia de permanência” da propriedade115 e o problema da retroati-vidade constitucionalmente admissível das leis116.

V. No confronto com estes princípios, o Decreto-Lei n.º 20/2016 suscita fundadas dúvidas de constitucionalidade.

Comecemos pelo princípio da proporcionalidade: vimos já que o Decreto-Lei n.º 20/2016 foi inequivocamente motivado pelo caso BPI e pela necessidade de assegurar a estabilidade do sistema fi nanceiro. A opção do legislador, porém, foi escamotear esse propósito, apresentando no preâmbulo uma fundamentação in(s)ipiente117, centrada no «relançamento da economia», na «melhoria das condições de fi nanciamento das empresas», para «gerar mais emprego e mais criação de riqueza».

Tivemos já oportunidade de demonstrar que o fundamento apresentado não convence. Melhor teria andado o legislador se tivesse desenvolvido a necessidade de salvaguarda da estabilidade do sistema fi nanceiro. Em todo o caso, um tal fundamento – ainda que escamoteado – não pode ser ignorado, sem prejuízo das dúvidas que a jurisprudência do TC suscita sobre o mesmo118.

113 TC Ac. n.º 287/90, de 30-out.-90 (Sousa Brito), Proc. 309/88. Acompanhamos a exposição de Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança...”, cit., 138-139, sobre a jurisprudência do TC, para cujos desenvolvimentos remetemos.114 Estes critérios viriam a ser sistematizados em acórdãos posteriores, mas sem desenvolvimentos materiais. Assim, v.g., no TC Ac. n.º 128/09, de 12-mar.-09 (M.ª Lúcia Amaral), Proc. 772/07. Cfr. Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança...”, cit., 140-142.115 A garantia da existência de bens e direitos em face do poder do Estado, «nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante». Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 852-853.116 Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 853.117 O sentido da adjetivação é propositado, mas também se poderia ter optado no texto pela “in(c)ipiência”, atentas as necessidades de fundamentação que uma medida desta natureza convoca, nos termos já referidos.118 Mantendo o pressuposto de que a medida se exigia pela salvaguarda do sistema fi nanceiro nacional, não podem deixar de referir-se os Acs. TC n.º 474/2013, de 29-ago., e n.º 862/2013,

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Assumido este fundamento, pode afi rmar-se que o tempo se encarregou de demonstrar que o Decreto-Lei foi adequado, no sentido de apto à realização do fi m visado. Fica porém por demonstrar o respeito pelos subprincípios da necessidade (ou indispensabilidade) – i.e., que este era o meio menos restritivo possível – e proporcionalidade em sentido estrito – i.e., a justa medida entre o sacri-fício imposto e o benefício prosseguido119.

Ainda assumindo este fundamento, fi ca a dúvida sobre se não estamos perante a camufl agem de uma lei-medida, como tal inconstitucional à luz do artigo 18.º/3 CRP, segundo o qual as leis restritivas de direitos fundamentais têm de revestir carácter geral e abstrato, não podem ter efeito retroativo, nem podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais...120 Recorde-se aqui quanto afi rmou o Prof. Oliveira Ascensão a propósito do “Decreto Raquel”121:

«Muito fácil seria se o legislador pudesse tornear a difi culdade de produzir leis indivi-duais em violação da Constituição desde que lhes desse uma roupagem genérica.

Por isso, as leis formalmente genéricas mas substancialmente individuais são para todos os efeitos leis individuais, sujeitas ao regime para elas estabelecido.

Num caso destes caberá, pois, ao intérprete aplicador verifi car se a formulação exterior da generalidade corresponde ou não à sua essência.»

VI. São também legítimas as dúvidas relativamente à constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20/2016 no confronto com o princípio da tutela da confi ança.

Deste decorre, como vimos, o direito dos particulares a não ver frustradas as suas legítimas expectativas quanto à permanência de um quadro legislativo. Em coerência, dele decorre também, em princípio, a inconstitucionalidade da lei retroativa restritiva de direitos fundamentais122.

A existência de legítimas expectativas é indiscutível: foi com base nelas que os minoritários investiram, construindo os seus blocos de ações, e estabelece-ram entre si relações de diferente alcance, ao longo dos anos. Seguramente não

de 19-dez., segundo os quais a ablação da confi ança só se justifi caria no quadro de uma «visão estratégica», sendo as «medidas ponderadas e concebidas dentro do próprio sistema como uma sua reforma estrutural» e como uma «medida transversal». Cfr. Luís Pereira Coutinho, A “convergência das pensões” como questão política, e-pública, 1 (2014) 1-20 (15-17), no qual o autor critica esta jurisprudência por criar uma bitola de apreciação potencialmente inatingível, encarando o TC como governante de última instância.119 Reis Novais, Os princípios constitucionais..., cit., 162-163.120 Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 805, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 18.º, 393.121 Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 395.122 Reis Novais, Os princípios constitucionais..., cit., 263, 265.

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esperavam uma intervenção do legislador que, alterando “a meio do jogo” as relações de força internamente estabelecidas, desvalorizasse signifi cativamente o seu investimento, de um dia para o outro123. Não estamos, portanto, dentro de uma qualquer “zona de previsibilidade”, nos termos construídos pelo TC124.

Nos termos desenvolvidos pela “jurisprudência de crise” do TC, a “situa-ção de confi ança” é determinada com base não em factos ou elementos de prova concretos, mas em presunções ou conclusões que o TC vai adotando125.

Porém, a compressão de posições estabilizadas no conteúdo da propriedade corporativa pode ser justifi cada pela demonstração de um interesse público premente e compulsivo126, tanto mais que estamos perante um caso de retroa-tividade inautêntica (“unechte Rückwirkung”)127. Nesta ponderação dos interes-ses em presença128 deve recorrer-se ao princípio da proporcionalidade (artigo

123 Não é de admitir o argumento de que, tendo o Governo mediado o confl ito entre os acionistas do BPI, estes deveriam prever que, frustrado o acordo, o Estado sempre teria de intervir. Nesse momento estavam há muito consolidadas as posições das partes envolvidas, com base em investimentos passados.124 Cfr. TC Acs n.os 399/10, de 27-out.-2010 (Ana Guerra Martins), Proc. 523/10, 353/12, de 5-jul.-2012 (João Cura Mariano), Proc. 40/12, 187/13, de 5-abr.-2013 (Carlos Fernandes Cadilha), Proc. 2/13, 602/13, de 20-set.-2013 (Pedro Machete), Proc. 531/12, 794/13, de 21-nov.-2013 (Pedro Machete), Proc. 935/13. Cfr. tb. Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança…”, cit., 144-156.125 Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança…”, cit., 168.126 Reis Novais, Os princípios constitucionais..., cit., 263, 265-266. Cfr. tb. TC Acs n.os 287/90, de 30-out.-90 (Sousa Brito), Proc. 309/88, 128/09, de 12-mar.-09 (M.ª Lúcia Amaral), Proc. 772/07, 474/13, de 29-ago.-13 (Fernando Vaz Ventura), Proc. 754/13.127 Verifi ca-se perante relações duradouras ou factos complexos já parcialmente realizados. Foi o que sucedeu com o Decreto-Lei n.º 20/2016, que só produz efeitos ex nunc, mas afeta posições jurídicas constituídas no passado que prolongam os seus efeitos à data da entrada em vigor do mesmo. Sobre a fi gura, cfr., v.g., Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança…”, cit., 139. Sobre a fi gura no espaço alemão, cfr., v.g., Bernd Grzeszick, in Theodor Maunz e Günter Dürig, Grundgesetz-Kommentar, 78 EL (set.-2016), Artigo 20, n.os 76-79, 88-92.Sem prejuízo da referência constitucional, não podem ignorar-se as coordenadas concretizadoras do Direito comum. O princípio da não retroatividade da lei surge neste expresso no artigo 12.º CC. Sobre este, cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador (1983), 223 ss., e, do mesmo autor e com maior desenvolvimento, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil : casos de aplicação, critérios fundamentais (1968). Veja-se também, mais recentemente, Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito (2012), 279-298.128 Poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional não pode sindicar a ponderação do legislador entre os interesses particulares e o interesse público prevalecente. Porém, não tendo o legislador demonstrado cabalmente a prevalência do interesse público, deve o Tribunal intervir: o legislador tem ónus de fundamentar a sua intervenção. Cfr. Pereira Coutinho, A “convergência das pensões”..., cit., 9-11, Paulo Mota Pinto, “A proteção da confi ança…”, cit., 158.

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18.º/2 CRP)129, dando-se aqui por reproduzidas as dúvidas já expostas a esse propósito.

VII. Poderia argumentar-se que do Decreto-Lei n.º 20/2016 não resulta, formalmente, nenhuma restrição à propriedade corporativa, seja porque uma tal restrição (a existir) depende de uma deliberação dos sócios, seja porque os direitos de voto dos minoritários não são, em si, afetados.

Uma tal posição nega, porém, a projeção material e económica da partici-pação social e, em particular, do direito de voto, cujo relevo no quadro político--societário não pode ser compreendido senão na sua dimensão de poder (rela-tivo) de voto, já analisada.

No presente caso, o poder de voto dos minoritários foi severamente afe-tado pela previsão normativa de uma fórmula de “desblindagem” dos estatutos, como vimos já.

11. O direito a uma justa indemnização em caso de desapropriação

I. Na sequência de análise do Decreto-Lei n.º 20/2016, cabe agora recordar que, mesmo nos casos em que a desapropriação forçada seja constitucionalmente lícita, é imputado ao lesado o direito a uma justa indemnização130.

Nestes casos, a garantia individual da propriedade transforma-se numa garantia do valor da propriedade, também esta qualifi cada como um direito fundamental de natureza análoga131.

A constituição prevê expressamente a requisição e a expropriação por utili-dade pública, mas medidas semelhantes (incluindo ablação de propriedade privada a favor de privados) conferem igualmente direito a uma justa indemnização132.

129 TC Ac. n.º 287/90, de 30-out.-90 (Sousa Brito), Proc. 309/88.130 Acompanha-se Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 854 ss., 972 ss., 1017 ss., na afi rmação da primazia da função primária de defesa (garantia de permanência) sobre a função secundária ou de compensação (garantia de valor).Este exercício da ponderação do direito a uma justa indemnização foi também realizado, a propósito do “Decreto Raquel”, por Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 396 ss, onde conclui que «[a]inda que as lesões fossem lícitas, nem por isso se dispensaria uma indemnização».131 José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema..., 2, cit., 672 (n. 659), Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1261, Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 349.132 Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 62.º, 805, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1262-1265.

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Isso pode resultar da aplicação de um conceito alargado de expropriação ou do reconhecimento de que «a garantia constitucional da propriedade impõe que esta não possa ser sacrifi cada sem indemnização, mesmo em casos em que formalmente a titulari-dade privada se mantém e não há, pois, tecnicamente, expropriação»133.

II. Por maioria de razão, quando o ato ablativo é inconstitucional, opera igual-mente a garantia constitucional do valor da propriedade, com constituição de um direito a uma justa indemnização, sempre que a tutela primária do direito de propriedade, assente na invalidação do ato ablativo ilegítimo, não opere ou não seja a resposta adequada do sistema.

Esta solução de responsabilidade objetiva, assente no sacrifício do direito fun-damental do direito de propriedade, é particularmente relevante porque a ope-racionalidade dos mecanismos de responsabilidade subjetiva depende da verifi ca-ção de requisitos mais exigentes.

A coerência do sistema interno exige que a indemnização perante agressões ilícitas não seja mais difi cultada do que a exigível perante agressões lícitas134.

III. No caso ora em análise pode sustentar-se que os acionistas do BPI, quando investiram aceitaram o risco inerente. Porém, como vimos, não é de todo claro que tal risco compreendesse a alteração das regras (nas quais assenta-vam avultados investimentos e complexas negociações entre acionistas) a meio do jogo, através de uma intervenção do Governo.

Mais: a existir uma alteração do correspondente quadro normativo, seria expectável que a mesma fosse coerente com o princípio da igualdade entre os acionistas, de tal forma que os custos que dela decorressem fossem suportados por todos na proporção das suas participações135.

Não tendo sido assim, existem fortes argumentos para sustentar uma de duas conclusões: ou o ato é inconstitucional por ter reduzido signifi cativamente o poder de voto dos minoritários (traduzindo uma desapropriação material dos

133 José de Oliveira Ascensão, “A caducidade da expropriação no âmbito da reforma agrária”, in Estudos sobre expropriações e nacionalizações (1989), 64-65. Cfr. tb. Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1263.134 Mário Aroso de Almeida, Anulação contenciosa de actos administrativos e relações jurídicas emergentes (2002), 821, Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1264.135 Neste sentido, já Oliveira Ascensão, A violação da garantia constitucional da propriedade..., cit., 349-350, 390 ss.. Cfr. também Carla Amado Gomes, “A compensação administrativa pelo sacrifício: refl exões breves e notas de jurisprudência”, Revista do Ministério Público, 129 (2012) 9-47 (23 ss.).

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mesmos) sem compensação136, ou os acionistas materialmente afetados pelo ato têm direito a uma compensação adequada à perda sofrida.

12. A constitucionalidade da disposição transitória (artigo 3.º) que impõe reunião da assembleia geral perante a liberdade de empresa

I. Como vimos, o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2016 impôs a reunião da assembleia geral das instituições de crédito que tivessem tetos de voto até 31-dez.-2016, para que deliberasse sobre a manutenção ou revogação desses tetos, sob pena de caducidade dos mesmos.

Esta solução só é compreensível atento o caso BPI e a necessidade de o mesmo resolver o seu problema de ultrapassagem dos limites dos grandes ris-cos, perante a sua exposição indireta ao Estado angolano, no prazo fi xado pelo BCE.

Uma tal imposição, por um diploma que entrou em vigor a 1 de julho de 2016, traduz uma intervenção “especialmente agressiva” do governo sobre o funcionamento interno de empresas privadas, que deve ser ponderada à luz da liberdade de empresa.

II. A liberdade de empresa encontra o seu fundamento constitucional nas liberdades de associação (artigo 46.º CRP)137 e de iniciativa económica privada (artigo 61.º CRP). Compreende não só a liberdade de constituição de empresas pelos cidadãos, mas também a livre organização e prossecução da atividade pela própria empresa138.

136 Como resulta do Ac. TC n.º 210/93, segundo o artigo 62.º/2 CRP, a compensação constitui pressuposto de legitimidade do ato expropriativo. Cfr. novamente Carla Amado Gomes, A compensação administrativa..., 14. Note-se que a autora fundamenta a compensação por sacrifícios provocados pela função legislativa não no artigo 62.º/2, mas na conjugação dos artigos 62.º/1, 13.º e 18.º/2 e 3 CRP (17). Com efeito, explica, o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos reclama, à partida, compensação ao cidadão que sofre uma perda signifi cativa a favor da comunidade; o princípio da proporcionalidade determina, à chegada, se, em função do prejuízo sofrido, se justifi ca a compensação e em que medida (18).137 Afastamos aqui a restrição do conceito de associação às suas fronteiras civilistas, enquanto organização de pessoas sem fi ns lucrativos, que excluiria do âmbito de aplicação do artigo 46.º as sociedades. No sentido da restrição, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 46.º, 643. Contra, Jorge Miranda, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição portuguesa anotada, 1, 2.ª ed. (2010), artigo 46.º, 954.138 Evaristo Ferreira Mendes, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição portuguesa anotada, 1, 2.ª ed. (2010), artigo 61.º, 1183, 1192, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 61.º, 789-791.

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A Constituição admite restrições por força de lei, em nome de interesses gerais. Porém, tais restrições têm de obedecer ao disposto no artigo 18.º/2 e 3 CRP139.

III. Perante isto, deve questionar-se a constitucionalidade de uma norma que incide diretamente sobre o funcionamento de um órgão interno das insti-tuições de crédito, impondo a sua reunião e uma concreta deliberação num tão curto espaço de tempo após a sua entrada em vigor.

Não se vislumbra nenhum interesse geral que imponha uma tal violência. Os específi cos contornos do caso BPI seguramente não permitem fundamentar uma tal intervenção de carácter geral e abstrato140.

Valem, portanto, aqui todas as considerações já aduzidas a propósito da aplicação do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamen-tais (artigo 18.º/2 CRP).

13. A constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20/2016 à luz da reserva de competência da Assembleia da República

I. Terminamos com a ponderação da constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20/2016, à luz da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º/1, b) CRP].

Recordamos a este propósito que o TC tende a aplicar aos direitos de natu-reza análoga a direitos, liberdades e garantias não apenas o regime material, mas também o regime orgânico destes. Esta aplicação conhece porém reservas, em particular, a propósito do direito de propriedade141.

II. A compreensível relutância do TC em incluir todas e quaisquer confor-mações do conteúdo da propriedade na reserva de competência da Assembleia da República – que determinaria uma excessiva ampliação da esfera de com-petência exclusiva desta –, tem contribuído decisivamente para a restrição do direito de propriedade constitucionalmente consagrado.

Nas palavras do TC:

139 Evaristo Mendes, CP Anot., 12, artigo 61.º, 1192-1193, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., 14, artigo 61.º, 791.140 Recorde-se que, caso a intervenção fosse especif icamente dirigida ao caso BPI, muito provavelmente colidiria com o artigo 18.º/3 CRP.141 Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1258-1259.

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só se justifi ca que integrem a reserva parlamentar as intervenções legislativas que respeitam às dimensões do direito de propriedade que tiverem uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pois só nessas matérias tem pertinência a aplicação do regime destes142.

Neste aresto, onde o TC apreciou a constitucionalidade de uma norma limitativa do direito do proprietário em realizar obras de alteração em cons-truções que lhe pertencem, acrescentou – com relevância para o que ora nos ocupa – que de fora da reserva fi cam, tipicamente, as faculdades integrantes do ius aedifi candi, «por não serem essenciais à realização do Homem como pessoa»143.

III. Essa restrição do direito de propriedade é desadequada perante a atual relativização da própria reserva de lei e o reconhecimento de que a mesma comporta diferentes graus144.

Nesta outra perspetiva, deve ser restringido não o direito, mas a reserva parlamentar, aos casos em que esteja em causa «a nova disciplina de uma posição jurídica que seja de qualifi car como propriedade em sentido constitucional, eliminando ou restringindo fortemente um direito de uso nela anteriormente contido, ou, de um modo geral, quando for restringido o alcance e efeito do direito fundamental de propriedade»145.

IV. Em todo o caso, do Decreto-Lei n.º 20/2016 não resulta, formalmente, a ablação de um direito de propriedade, nem sequer do direito de voto que é inerente à participação social, mas uma restrição da sua concretização prática num poder (relativo) de voto, confi gurado como um direito de veto.

Não parecem portanto verifi cados os pressupostos para a integração desta medida na reserva parlamentar, à luz da interpretação do TC.

142 TC Ac. n.º 14/09, de 13-jan.-2009 (João Cura Mariano), Proc. 368/08.143 Ibidem.144 Como explica Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1260, «não repugna que se reconheça que o alcance da reserva não é idêntico em face de medidas normativas que se limitam a determinar o conteúdo da propriedade ou que, pelo contrário, atingem o próprio alcance e efeito do direito fundamental de propriedade».145 Nogueira de Brito, A justifi cação da propriedade..., cit., 992-993. Cfr. tb. Rui Medeiros, CP Anot., 12, artigo 62.º, 1260.

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