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FONSECA, José Sérgio da. O Declínio Do Sentido Público Da Educação
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Rev. Brasileira de Estudos Pedaggicos. Vol 89. N. 223, p. 411-424, set.-dez. 2008
O DECLNIO DO SENTIDO PBLICO DA EDUCAO
Jos Srgio F. de Carvalho
FE USP
APRESENTAO DO PROBLEMA
A partir do final da dcada de 1970, a Europa foi palco de um intenso
esforo poltico que visava renovar procedimentos pedaggicos e objetivos
educacionais de seus sistemas de ensino. Num texto de 1979, Claude Lefort
procurou analisar o sentido poltico dessa reforma "modernizante" e, em tom
ctico, nos alertava para um aparente paradoxo, ao afirmar que
o que h de notvel num tempo como o nosso, em que nunca antes se falou tanto de necessidades sociais da educao, em que nunca antes se deu tanta importncia ao fenmeno da educao, em que os poderes pblicos nunca antes com ela se preocuparam tanto, que a idia tico-poltica de educao se esvaiu (1999, p. 219 grifos nossos).
Trinta anos depois, a "modernizao pedaggica" ento anunciada parece
dominar os discursos educacionais em escala global. O Brasil, a exemplo de
dezenas de pases, incorporou seu jargo nos documentos normativos,
notadamente nas Diretrizes e nos Parmetros Curriculares Nacionais, e seus
procedimentos e conceitos nas polticas de avaliao do rendimento escolar. A
retrica sobre as supostas necessidades econmicas de um sistema
educacional de "qualidade" se consolidou e tornou-se tema recorrente na
mdia, nas campanhas eleitorais, nos discursos de governantes.
Simultaneamente, o discurso republicano clssico, caracterizado pelo ideal de
uma formao escolar voltada ao cultivo de princpios ticos ligados s virtudes
pblicas, passou a soar como algo cada vez mais distante ou anacrnico.
A busca pela compreenso das determinaes histricas e sociais dessa
transformao costuma apontar fatores internos ao campo educacional, como
as deficincias na formao de professores e o carter tecnicista do currculo e
das polticas pblicas contemporneas. Aspectos como esses podem, de fato,
ter grande impacto no modo como atribumos sentido s prticas e aos ideais
educativos, mas no do conta da complexidade do fenmeno de que
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tratamos. Por isso, convm no nutrir a expectativa ingnua de que o
esvanecimento do sentido tico-poltico da educao poderia ser detido por
simples reformulaes nas diretrizes para formao de professores ou por
polticas de reinsero e valorizao das "humanidades" no currculo escolar.
Afinal, isso parece, antes, confirmar tal esvanecimento e no explica sua
gnese nem aponta para seus condicionamentos histricos e sociais...
Nestas reflexes, procuraremos compreender o declnio do significado
poltico da formao escolar a partir de um fenmeno exterior ao campo
pedaggico, mas cujas conseqncias nele se fazem sentir. Examinaremos o
impacto, na educao, da crescente e contnua diluio das fronteiras entre as
esferas pblica e privada na vida contempornea. O que se procurar
demonstrar que, medida que se concebem o valor e a qualidade da
educao com base em seu alegado impacto econmico na vida privada do
indivduo, perde-se seu significado tico-poltico, ou seja, seu sentido pblico.
Assim, objetivos educacionais identificados com a difuso e o cultivo de
virtudes pblicas como a solidariedade, a igualdade, a tolerncia passam a
ocupar um lugar secundrio em relao ao desenvolvimento de competncias
e capacidades individuais ou quilo que, com preciso, se convencionou
chamar de capital humano.
A fim de apresentar uma anlise mais detida dessa tese, examinaremos a
gnese histrico-conceitual das noes de "pblico" e "privado" para, a seguir,
mostrar sua diluio na sociedade de consumo e avaliar seu impacto no campo
da educao.
O PBLICO, O PRIVADO E A SOCIEDADE DE CONSUMIDORES
Tornou-se lugar-comum apontar a existncia do que parece ser uma
crescente tenso entre os mbitos pblico e privado, suas fronteiras e
caractersticas. H discursos que, em tom apreensivo, denunciam um declnio
ou mesmo o eventual desaparecimento da esfera pblica como resultado do
que seria uma crescente "privatizao" de todas as esferas da vida em nossa
sociedade. Noutro vis ideolgico, alega-se uma incontornvel ineficincia do
"setor pblico" quando comparado "agilidade da iniciativa privada". Esses
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dois exemplos recorrentes j bastam para sugerir que a dicotomia "pblico" x
"privado" h tempos no se resume a contendas acadmicas. Ao contrrio, ela
parece habitar nosso universo discursivo cotidiano.
provvel que nesse uso habitual nossas referncias sejam
suficientemente claras para os propsitos mais imediatos da comunicao
informar, persuadir ou emitir opinio. Contudo, no difcil dar-se conta de que
os termos da dicotomia so polissmicos cada um deles isoladamente e em
sua relao. Basta apresentarmos questes mais precisas para que a aparente
clareza se desfaa. No raro, por exemplo, que o adjetivo pblico seja direta
e exclusivamente identificado com o que institudo ou mantido pelo Estado,
como uma "escola pblica", um "hospital pblico". Mas a criao e o
financiamento estatal garantem o "carter pblico" de uma instituio? Um
banco criado e mantido pelo Estado deve necessariamente ser considerado
como uma "instituio pblica"? Ou seria simplesmente uma empresa ou
organizao que funciona no padro daquilo que privado, ainda que a partir
de recursos pblicos? Em caso afirmativo, poderia, ento, haver uma
instituio que, do ponto de vista de sua propriedade, seria "patrimnio
pblico", mas, da perspectiva de seu funcionamento, produto ou acesso, uma
"organizao privada"? O "estatal" sempre equivale ao "pblico" ou, ao
contrrio, o interesse do Estado pode entrar em conflito com o "interesse
pblico"?
Talvez a vinculao imediata entre "pblico" e propriedade estatal assim
como entre "privado" e propriedade particular seja uma das formas mais
corriqueiras de definir os termos da dicotomia. Mas bastante problemtica, j
que h bens comuns que no so propriedade nem pblica nem privada
mas so indiscutivelmente classificados como "bens pblicos", como o caso
da lngua de uma nao. A lngua portuguesa como o tupi no uma
propriedade, em sentido estrito, de ningum, embora seja um bem simblico
comum e pblico. Essas observaes iniciais visam unicamente chamar a
ateno para o fato de que o uso dos conceitos de "pblico" e "privado", ainda
que relativamente corriqueiro, pode ensejar imprecises e ambigidades, dada
a pluralidade de significaes que a eles costumamos atribuir.
Assim, mesmo sem pretender uma significao essencial e a-histrica
desses termos, sua adequada compreenso requer, a meu ver, uma referncia
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ao sentido primeiro da experincia poltica que os criou. No porque a ela
poderamos ou deveramos voltar, nem por culto nostalgia, mas pela
convico de que certos conceitos trazem consigo a significao fundamental
das experincias polticas que os geraram e, assim, seu desvelamento poder
ensejar, na medida em que revelar as significaes de que so portadores,
uma reflexo acerca do sentido de certos problemas contemporneos a eles
concernentes.
Iniciemos, pois, com uma breve explanao acerca da gnese da noo
de esfera pblica, tal como ela se constitui pela primeira vez na Antiguidade
clssica. Arendt destaca que a vida na plis denotava uma forma de
organizao poltica muito especial e livremente escolhida, no podendo ser
tomada como o simples prolongamento da vida familiar e privada ou como uma
estratgia de sobrevivncia de um ser gregrio:
A capacidade humana de organizao poltica no apenas difere, mas diretamente oposta a essa associao natural cujo centro constitudo pela casa e pela famlia. O surgimento da cidade-Estado significava que o homem recebera, alm de sua vida privada, uma espcie de segunda vida, o seu bios politiks. Agora cada cidado pertence a duas ordens de existncia; e h uma grande diferena em sua vida entre aquilo que lhe prprio (idion) e o que lhe comum (koinon) (1989, p. 33 grifos originais).
Assim, a esfera privada, ligada casa e famlia, caracterizava-se por
ser um plano da existncia no qual se buscava prioritariamente atender s
necessidades da vida, garantir a sobrevivncia individual e prover a
continuidade da espcie. Era, pois, a esfera da necessidade e do ocultamento;
da proteo e manuteno da vida, da defesa dos interesses prprios (idion
refere-se ao que prprio a um indivduo ou grupo particular, origem da
palavra idioma e do termo idiots, que, para os gregos, refere aquele que s
cuida de si ou do que exclusivamente seu). Por isso, no pensamento
clssico, a existncia nesse plano no era verdadeiramente "humana", mas
caracterizava-se por ser um esforo pela sobrevivncia de mais um exemplar
da espcie. Anlogo, portanto, aos esforos das demais formas de vida animal.
Esse plano da existncia o dos esforos pela manuteno da vida,
caractersticos da esfera privada mantido pelo labor1, ou seja, pelo conjunto
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de atividades cujo produto consumido no prprio ciclo vital. A atividade de
cozinhar, por exemplo, caracterstica do labor, j que a finalidade de seu
produto a refeio ser consumido no esforo de manuteno da vida,
individual e da espcie.
J a esfera pblica surge a partir da constituio de um mundo comum,
no no sentido de um espao coletivo vital e natural, mas no de um artifcio
propriamente humano, que nos rene na companhia dos outros homens e de
suas obras. No se trata de simples esforo gregrio para prover formas de
subsistncia coletiva (o que pode acontecer no mbito privado da famlia, por
exemplo), mas da possibilidade de criao de um universo simblico e material
comum e compartilhado. Por isso no mera continuidade ampliada da esfera
privada. O bios politiks (o modo de vida da plis, da Cidade) uma nova
esfera de existncia que congrega cidados livres em torno daquilo que lhes
comum um espao pblico e cria uma realidade compartilhada (koinon, por
oposio ao idion). Se a esfera da privatividade a do ocultamento, a dos
mistrios da vida e do zelo na sua proteo, a esfera pblica esse mundo
comum no qual todos podem ser vistos e ouvidos na sua singularidade
existencial:
O termo pblico significa o prprio mundo, na medida em que comum a todos ns. Este mundo, contudo, no idntico Terra ou Natureza como espao limitado para o movimento dos homens e a condio geral da vida orgnica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto das mos humanas, com os negcios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum (ARENDT, 1989, p. 63 grifos nossos).
Assim, a esfera pblica constituda pelas obras da fabricao humana,
pelo trabalho (poiesis)2. Ora, se o labor se caracteriza pela produo de bens
que sero consumidos imediatamente no prprio ciclo da subsistncia, o
trabalho visa produzir bens que permanecem para alm de seu uso imediato.
Se cozinhar pode ser um exemplo de labor, fabricar uma panela trabalho, j
que seu produto uma obra que permanece no mundo e a este empresta
durabilidade. Da por que o mundo comum
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...transcende a durao de nossa vida tanto no passado como no futuro: preexistia nossa chegada e sobreviver nossa breve permanncia. isto o que temos em comum no s com aqueles que vivem conosco, mas tambm com aqueles que aqui estiveram antes e viro depois de ns. Mas esse mundo comum s pode sobreviver ao advento e partida das geraes na medida em que tem uma presena pblica. o carter pblico da esfera pblica que capaz de absorver e dar brilho a tudo que os homens venham a preservar da runa natural do tempo (ARENDT, 1989, p. 65).
Se o labor perpetua o ciclo da vida, atendendo a necessidades
humanas; o trabalho busca a permanncia do mundo, revelando sua
criatividade. Mas a durabilidade desse artifcio depende no s da existncia
de obras, como do reconhecimento pblico de seu pertencimento a um mundo
comum. Uma catedral, um monumento ou uma mesa s podem vir a existir
porque a fabricao humana retira a pedra ou a madeira do ciclo da natureza
que as gerou e as consumiria e lhes empresta um novo uso e um significado
comum e compartilhado. Uma mesa e uma catedral, se no forem
reconhecidas como obras desse mundo comum, voltam a ser madeira e pedra,
reintegrando-se ao ciclo de consumo da natureza e da vida. Da por que serem
as obras de arte, para Arendt, os mais mundanos dos objetos: almejam a
transcendncia que s existir na medida em que forem publicamente
reconhecidas como tal. E s o sero na medida em que no se confundirem
com objetos do consumo ou de uso dirio.
Mas o mundo pblico tambm onde os homens, liberados da
necessidade da luta pela vida (labor), podem se encontrar para, juntos, criar e
gerir, por seus atos e palavras, o bios politiks, ou seja, a dimenso pblica e
poltica de sua existncia; a ao (prxis). Trata-se de uma terceira dimenso
da existncia humana, voltada no para a manuteno da vida ou para a
produo de objetos, mas para a constituio de uma teia de relaes
humanas. Se o produto do labor algo a ser consumido na necessidade de
manuteno da vida, o do trabalho uma obra pertencente ao mundo, e o fruto
da ao a histria humana. Melhor seria dizer: as histrias dos atos e
palavras por meio dos quais os homens, na singularidade de sua existncia,
mostram quem so.
A ao , pois, a dimenso na qual podemos experimentar a liberdade
como fenmeno poltico, ou seja, vivenciar a capacidade histrica de romper
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com os automatismos da reproduo social e criar o novo. Se o espao pblico
fosse simplesmente uma associao ampliada do privado, permaneceramos
no mbito da necessidade, sem a experincia de criar em conjunto um mundo
comum a todos. Da por que, para Aristteles, o bem comum o ideal
regulador da ao do Estado (da plis), segundo o qual se deve agir em busca
do interesse comum.
Como se v, a distino entre essas dimenses da existncia (a
particular e privada e a comum e pblica; a de suprimento das necessidades e
as da criao e livre gesto do mundo) no era fruto de um conceito terico,
mas um reflexo da experincia da vida na plis, essa organizao peculiar da
Antiguidade, que marca etimologicamente nosso conceito de poltica. Nela, por
exemplo, ser escravo designava menos uma condio econmica do que um
status poltico de privao. Ao escravo era interditada a participao na esfera
pblica, logo, a possibilidade de, por seus atos e palavras, revelar quem ; de
fundar e gerir, com outros cidados livres e iguais, corpos polticos autnomos;
ser escravo era, portanto, estar privado da liberdade como experincia de ao
poltica.
Ora, essa experincia existencial de uma dicotomia que sustenta a
necessidade de ambos os plos o privado e o pblico , assim como de sua
separao em instncias diferentes e complementares, que parece
gradativamente se obscurecer no mundo moderno3. Alguns aspectos dessa
indistino nos so bem familiares e imediatamente identificveis. So cada
vez mais expostos assuntos e experincias que tradicionalmente eram
preservados no mbito privado como a dor, o amor e a morte, que, por
encerrarem os mistrios da existncia, deveriam ser protegidos da luz pblica.
Tem-se, ento, que, por um lado, a mdia eletrnica e a impressa fazem da
vida privada de celebridades assunto comum e pblico; por outro, aquilo que
deveria ser, a princpio, assunto comum e pblico como a poltica ou a arte
passa progressivamente a ser tomado como uma opo individual, uma
"questo de gosto; e gosto no se discute".
H, contudo, uma dimenso menos perceptvel dessa diluio de
fronteiras, mas cujas conseqncias parecem ser ainda mais profundas. Trata-
se do fato de que a atividade por excelncia ligada ao mbito do privado e da
necessidade, o labor e o consumo que o caracteriza na luta pelo ciclo vital
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ganha progressivamente espao e visibilidade no mundo pblico, engolfando
as esferas do trabalho e da ao. Forma-se, assim, uma nova esfera, nem
propriamente pblica nem privada. Trata-se do que Arendt denominou esfera
social, caracterizada pela organizao pblica do prprio processo vital:
a sociedade a forma na qual o fato da dependncia mtua em prol da subsistncia, e de nada mais, adquire importncia pblica, e na qual as atividades que dizem respeito mera sobrevivncia so admitidas em praa pblica (1989, p. 57 - grifos nossos).
E assim, poderamos acrescentar, expulsam da esfera pblica aquilo
que lhe era mais caracterstico: a ao poltica. Ela se torna, na melhor das
hipteses, mera coadjuvante para o xito da vida privada.
Desse modo, as atividades que dizem respeito ao labor cuja meta a
busca pela sobrevivncia e o produto, algo a ser consumido nessa busca
ganham importncia crescente no mundo moderno, transformando-o num
espao das atividades de manuteno da vida e de consumo. A prpria
expresso coloquial "ganhar a vida", ao ser usada como sinnimo de trabalhar,
deixa patente que concebemos nossa atividade produtiva como um modo de
perpetuar o ciclo da vida, uma luta pela sobrevivncia ou uma forma de gerar
a opulncia do consumo e nada mais. No se trata, pois, de criar algo cuja
permanncia o integrar e indiretamente nos integrar durabilidade do
mundo comum. Trata-se, antes, de um modo de garantir a prpria vida e o
bem-estar da famlia, bens supremos da ordem "social".
Pense-se, ainda como exemplo, na estrutura espacial de nossas
cidades. Cada vez menos so concebidas e utilizadas como um lugar comum,
de reunio dos cidados, ou seja, como palco para a ao. Ao contrrio, suas
vias so projetadas para a circulao de bens e mercadorias; para o
deslocamento de um transeunte que vai da esfera ntima do lar esfera
privada da produo ou da distribuio de mercadorias; freqentemente num
veculo prprio. E o ponto de encontro no a praa pblica, mas o shopping
center; moldado no para abrigar a igualdade dos cidados, mas a
diferenciao dos consumidores.
claro que numa organizao social dessa natureza uma sociedade
de consumidores num mercado de obsolescncia a noo de um mundo
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comum que transcende a existncia individual, tanto no passado como no
futuro, se esvai. O mundo deixa de ser um artifcio comum a compartilhar entre
geraes para, tambm ele, ser consumido no presente. No se trata, em sua
verso contempornea, de uma negao do mundo em favor de uma busca de
transcendncia espiritual, como o isolamento de um monge ou de um eremita:
A absteno [...] das coisas terrenas no , de modo algum, a nica concluso a se tirar da convico de que o artifcio humano, produto de mos mortais, to mortal como seus artfices. Pelo contrrio, esse fato pode tambm intensificar o gozo e o consumo das coisas do mundo e de todas as formas de intercmbio nas quais o mundo no concebido como koinon, aquilo que comum a todos. A existncia de uma esfera pblica e a subseqente transformao do mundo em uma comunidade de coisas que rene os homens e estabelece uma relao entre eles depende inteiramente da permanncia. Se o mundo deve conter um espao pblico, no pode ser construdo apenas para uma gerao e planejado somente para os que esto vivos: deve transcender a durao da vida de homens mortais (ARENDT, 1989, p. 64).
Desse modo, numa sociedade de consumo estruturada na
obsolescncia de objetos, idias e relaes, o que homens tm em comum no
um mundo de significaes, prticas e valores compartilhados, mas a
fugacidade de seus interesses particulares. Da por que, nessa ordem, o ideal
regulador do Estado no a noo de busca do bem comum, como em
Aristteles, mas a administrao competente dos interesses particulares ou
privados em conflito o que significa a submisso da ao poltica ao labor.
Algumas das conseqncias polticas dessa transformao tm sido
bastante exploradas e criticadas. O que nos interessa aqui apresentar so as
profundas repercusses que esse modo de vida tem tido no que diz respeito s
concepes dos sentidos poltico e social da formao educacional.
EDUCAO: DO SENTIDO PBLICO AO VALOR DO CAPITAL HUMANO
Iniciamos estas reflexes apresentando a hiptese de um declnio do
sentido tico-poltico da educao. Voltemos, pois, nossas atenes s
especificidades do impacto que essa crise, originariamente de natureza
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poltica, tem tido no campo da educao escolar. Para isso, retomaremos
algumas das questes subjacentes ao paradoxo j anunciado: o que seria esse
sentido tico-poltico que marcou o ideal humanista de educao? Como se
operou seu progressivo desaparecimento? Como pode coexistir com a
profuso de discursos que exaltam o valor e a necessidade da educao?
Num texto em que examina a repercusso da crise do mundo moderno
na educao, Arendt apresenta uma perspectiva conceitual cujas razes
remontam aos ideais humanistas de formao, forjados ao longo do
Renascimento e incorporados por pensadores e educadores iluministas. Sua
anlise parte da constatao de que o nascer de cada ser humano apresenta
sempre uma dupla dimenso: o nascimento e a natalidade; pois a criana
simultaneamente um novo ser na vida e um ser novo no mundo. O nascimento
a maneira pela qual a vida (a dimenso biofsica da existncia) se renova e
perpetua suas formas. J a natalidade indica que cada ser humano, alm de
um novo ser na vida, um ser novo num mundo pr-existente, constitudo por
um complexo conjunto de tradies histricas e realizaes materiais e
simblicas s quais atribumos utilidade, valor e significado.
Assim, o nascer de uma gata fmea, tal qual o da fmea humana, um
fenmeno da vida, j que ambas passam a participar da luta pela sobrevivncia
individual e pela continuidade cclica da espcie. Mas a fmea humana nasce
simultaneamente para um mundo de artificialismos simblicos e materiais: ter
um nome de mulher (escolhido dentre vrios das diversas tradies religiosas,
tnicas ou estticas de uma comunidade lingstica), passar a ser vestida
como uma mulher (de acordo com os smbolos de uma dada cultura: vus,
vestidos, adornos femininos), aprender gestos e condutas que a fazem tornar-
se uma mulher, o que significa compartilhar smbolos culturais de identidade
feminina. Uma gata nasce gata, enquanto uma fmea humana ter de se
constituir como mulher, por ser tanto um ser novo na vida como um novo ser no
mundo.
Assim, a educao o ato de acolher e iniciar os jovens no mundo,
tornando-os aptos a dominar, apreciar e transformar as tradies culturais que
formam a herana simblica comum e pblica. Se se tratasse de uma herana
exclusivamente material, seus herdeiros se apossariam dela imediatamente,
dados os trmites legais. Mas, por se tratar de uma herana cuja significao
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social e o carter simblico so compartilhados, a nica forma de termos
acesso a ela e dela nos apropriarmos a aprendizagem. Podemos herdar, de
forma imediata, um quadro ou uma casa, mas no a compreenso do que
representam ou os meios de constru-los, que precisam ser aprendidos. E
procurar ensin-los a tarefa do educador.
O acolhimento dos novos no mundo pressupe, ento, um duplo e
paradoxal compromisso por parte do professor. Por um lado, cabe a ele zelar
pela durabilidade desse mundo comum de heranas simblicas, no qual ele
acolhe e inicia seus alunos. Por outro, cabe a ele cuidar para que os novos
possam se inteirar dessa herana pblica, integr-la, fru-la e sobretudo
renov-la, posto que ela lhes pertence por direito, mas cujo acesso s lhes
possvel por meio da educao. Como to bem resume Arendt:
A educao o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salv-lo da runa que seria inevitvel no fosse a renovao e a vinda dos novos e dos jovens. A educao tambm onde decidimos se amamos nossas crianas o bastante para no expuls-las de nosso mundo e abandon-las a seus prprios recursos, e tampouco arrancar de suas mos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para ns, preparando-as, em vez disso, com antecedncia para a tarefa de renovar um mundo comum (1978, p. 247).
O amor ao mundo a que se refere Arendt no implica sua aceitao
acrtica, mas, antes, a constituio de uma relao de pertencimento e
identidade, capaz de emprestar futilidade e brevidade da existncia
humana individual um lastro tanto em relao ao passado como ao futuro. Da
por que o desaparecimento da esfera pblica e do mundo comum, com suas
heranas e realizaes histricas, pode representar uma grave ameaa:
estamos ameaados de esquecimento, e um tal olvido [...] significaria que, humanamente falando, nos teramos privado de uma dimenso, a dimenso da profundidade na existncia humana. Pois memria e profundidade so o mesmo ou, antes, a profundidade s pode ser alcanada pelo homem atravs da recordao (ARENDT, 1978, p. 131).
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A educao , nessa perspectiva, um elo entre o mundo comum e
pblico e os novos que a ele chegam pela natalidade. Nesse sentido, o ensino
e o aprendizado se justificam no preponderantemente pelo seu carter
funcional ou pela sua aplicao imediata, mas pela sua capacidade formativa.
Ora, justamente essa sorte de compromisso pblico com o mundo e com os
novos que tende diluio na "modernizao pedaggica" dos discursos
contemporneos. Neles, a educao tende a ser concebida como um
investimento privado, o que explica, por exemplo, a vinculao que fazemos da
qualidade da educao com o acesso s escolas superiores de elite e com o
xito econmico do indivduo ou da nao. Vejamos, a ttulo de ilustrao, um
exemplo influente desse iderio pedaggico que, ao mesmo tempo em que
exalta a necessidade de educao, nela obscurece o significado poltico e
pblico.
No final da dcada de 1990, o economista francs J. Delors, relator da
Comisso Internacional sobre Educao para o Sculo XXI da UNESCO,
publica a obra Educao: um tesouro a descobrir. Traduzida para diversas
lnguas, suas pretenses so audaciosas: veicular "a concepo de uma nova
escola para o prximo milnio" (grifo nosso) e fornecer "pistas e
recomendaes importantes para o delineamento de uma nova concepo
pedaggica para o sculo XXI" (Cf. DELORS, 2001). muito pouco provvel
que qualquer outra obra recente no campo educacional tenha tido uma
repercusso comparvel4. Sua difuso ampla e influncia marcante em
polticas pblicas no decorrem, porm, da originalidade de suas teses ou da
profundidade de sua perspectiva.
Ao contrrio, seu contedo, bastante trivial, marcado por expresses
vagas que mais se assemelham a slogans nos quais a fora persuasiva da
frmula retrica parece substituir qualquer esforo reflexivo. Tomem-se como
exemplo os famosos "quatro pilares da educao do sculo XXI": aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser. No obstante a
anemia semntica dessas expresses, elas so apresentadas como diretrizes
educacionais consensuais numa infinidade de documentos de dezenas de
pases, inclusive no Brasil. Assim, sua fora parece derivar da capacidade que
tm em sintetizar uma perspectiva crescentemente adotada quanto ao que
deve ser concebido como o valor da educao em nossa sociedade. E nesse
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sentido que a obra nos interessa, como a marca de um programa que procura
imprimir uma perspectiva econmico-utilitarista educao.
Nela se afirma, por exemplo, que as comparaes internacionais
realam a importncia do capital humano e, portanto, do investimento
educativo para a produtividade (DELORS, 2001, p. 71 grifos nossos). Assim,
o ideal maior a ser almejado pela educao no o da participao e da
renovao de um mundo comum e pblico, mas o da obteno de
competncias e habilidades para a produo numa sociedade de consumo.
Claro que no se pretende que um sistema educacional se desvincule
das necessidades da vida. O aspecto preocupante do consenso em torno
dessa concepo de educao que, nela, um dos mbitos da atividade
humana o labor e seus produtos, cujo destino o consumo no ciclo vital
acaba por dominar as esferas do trabalho e da ao. Assim, a produo para o
consumo engolfa os mbitos da criao de obras, cujos frutos emprestam
durabilidade ao mundo, e da ao como exerccio de liberdade poltica.
Note-se que essa supremacia do labor, da produtividade e do consumo
nas metas educacionais no implica o abandono imediato da retrica acerca da
formao do "cidado". Tampouco resulta necessariamente no
desaparecimento de disciplinas e saberes tidos como integrantes de uma
concepo humanista de formao, como a literatura, as artes ou a filosofia.
Significa, antes, que mesmo esses ideais e saberes passam a ter outro papel,
o de coadjuvantes na supremacia do labor, do mercado e do consumo.
No caso da concepo humanista at h pouco a matriz e o princpio
dos ideais republicanos de educao , disciplinas e saberes escolares no se
isolavam da formao do Sujeito, e esta, como destaca Lefort, era concebida a
partir de uma nascente perspectiva histrica de atuao poltica. Os homens do
Renascimento olhavam para si como herdeiros da Antiguidade e, nessa
dimenso histrica, buscavam seu alimento espiritual e poltico:
A cultura se d assim na forma de um dilogo. Um dilogo com os mortos, porm com os mortos que, desde o momento em que so levados a falar, esto mais vivos do que os seres prximos [...] so imortais e comunicam sua imortalidade
queles que se voltam para eles aqui e agora (1999, p. 212).
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Por isso, o conhecimento dos feitos e palavras dos homens da
Antiguidade era o alimento para a ao poltica "aqui e agora". Da a noo de
que o conhecimento continha, em si, a dimenso tica, a poltica e a esttica, e
sua busca no se justificaria como um meio para algo que lhe fosse extrnseco.
Ora, se hoje falamos de uma sociedade do conhecimento, foroso
reconhecer que se trata de outra perspectiva, mesmo que por vezes
recorramos aos mesmos termos. Os contedos passaram a ser concebidos
como meios para a constituio de competncias e valores e no como
objetivos do ensino em si mesmo (conforme o que se l nos Parmetros
Curriculares Nacionais (PCN): ensino mdio, 2002, p. 87). No se trata de banir
certos contedos, mas de vincular seu sentido ao desenvolvimento de certas
caractersticas psicolgicas e habilidades cognitivas tidas como necessrias
pelos reclamos de uma sociedade de consumo:
o que os pensadores e gestores daquele modelo de ensino desconheciam a necessidade hoje tornada explcita a partir do prprio sistema produtivo que as sociedades tecnolgicas tm de que o indivduo adquira uma educao geral, inclusive em sua dimenso literria e humanista (...) (PCN: ensino mdio, 2002, p. 327 grifos nossos).
Opera-se, assim, a substituio do sentido pblico e poltico da formao
por seu valor de mercado. O que seria a iniciao numa herana cultural
pblica como a filosofia ou a poesia passa a ser concebido como a
transmisso de um capital cultural privado, cujo valor pode ser aferido a partir
de seu impacto noutras dimenses da existncia, em geral ligadas produo
ou ao consumo de novas mercadorias.
Sucede, ento, com a atual experincia escolar, aquilo que Arendt
afirmava ser caracterstico da relao da sociedade moderna com os objetos
culturais, mais especificamente com as obras de arte: elas deixam de ser
objetos de culto, dotados de um sentido pblico, para serem concebidos como
objetos portadores de um valor de distino. E, assim, transformam-se num
meio circulante mediante o qual se compra uma posio mais elevada na
sociedade ou se adquire uma "auto-estima" mais elevada. Nesse processo, os
valores culturais passam a ser tratados como outros valores quaisquer, a ser
aquilo que os valores sempre foram, valores de troca, e, ao passar de mo
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em mo, se desgastam como moedas velhas (cf. ARENDT, 1978). Ou seja, eles
perdem a faculdade que originariamente lhes era peculiar: formar Sujeitos.
BIBLIOGRAFIA
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1 O labor a atividade que corresponde ao processo biolgico do corpo humano, cujo crescimento espontneo, metabolismo e eventual declnio tm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida (ARENDT, 1989, p. 15). 2 Vrios autores, dentre eles Andr Duarte, comentam, com razo, a fragilidade da escolha dos
termos labor e trabalho para traduzir labor e work, sugerindo, respectivamente trabalho e fabricao. Preferimos manter a traduo que consta nas edies brasileiras do livro A Condio Humana simplesmente para facilitar a leitura. O importante ressaltar que Arendt usa o termo work como equivalente do grego poiesis, que indica a ao de fabricar, a confeco de um objeto artesanal, de natureza material ou intelectual, como a poesia. Da mesma forma, ao (action) visa traduzir o termo grego prxis agir, cumprir, realizar at um fim , usada nos campos tico e poltico. Assim, enquanto na poiesis o objeto criado e seu artfice so distintos e separveis, na prxis no, pois a ao revela quem o agente .
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3 A expresso mundo moderno aqui utilizada na acepo estrita que lhe d Arendt, referindo-
se ao modo de vida que marca a experincia ocidental no sculo XX, j que a "era moderna", relativa aos sculos XVII e XVIII tambm marcada pela tentativa de restabelecimento de uma distino entre as esferas pblica e privada. 4 Segundo dados do buscador Google Acadmico, ela citada em quase 20.000 artigos!