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O DEBATE EM TORNO DA MEDICINA EXPERIMENTAL NO SEGUNDO REINADO THE DEBATE ON EXPERIMENTAL MEDICINE UNDER THE SECOND REIGN Flavio Coelho Edler* EDLER, F. C.: The debate on experimental medicine under the second reign'. História, Ciências, Saúde Manguinhos, III (2):284-299, Jul.-Oct. 1996. Although Brazil's twentieth century medicine was strong in the clinical tradition, this was no structural barrier to innovationsfrom the realm of laboratory experiments, contrary to what some historians have argued. The broad debate over the rules of 'experimental methods' reveals a dimension of the struggle waged between proponents of rival medical theories, within a context where dissension among physicians threatened their scientific authority vis-à-vis that of other types of healers. KEYWORDS: experimental medicine, history of medicine, history of Brazil. "Que resultados grandiosos para o comércio, para a indústria, para a agricultura, para o engrandecimento de nossa pátria, se todas essas atividades recebessem a consagração do método experimental" {Gazet. Méd. Braz., 1882). "Cumpre ainda observar não seja a experiência tida num sentido tão exclusivo como admitem muitos filósofos, que fazem nela consistir toda a medicina. Pesando, pois, devidamente os fatos observados, os recursos da arte diante das dificuldades insuperáveis, que se lhe antolham, cumpre ser prudente e não se deixar levar pelo entusiasmo até certo ponto dominante da nossa época, por essa injusta sofreguidão em abraçar sem reparo refletido as doutrinas prometedoras, o que é em grande parte efeito da credulidade vulgar" (dr. Moncorvo, 1874, p. 192). A partir da década de 1870, o dissenso em torno dos fun- damentos epistemológicos do saber médico, que caracterizara o panorama da medicina acadêmica na primeira metade do século XIX, começou a se alterar em alguns aspectos fundamentais. Uma nova representação dos fundamentos do saber médico, expressa pela noção de 'medicina experimental', passou a conquistar adeptos principalmente entre a geração de médicos mais jovens. Devido sobretudo ao trabalho de persuasão política dos grupos que se articulavam em torno do reduzido número de * Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Av. Brasil, 4365 Rio de Janeiro — RJ 21040-360

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O DEBATE EM TORNO DA MEDICINAEXPERIMENTAL NO SEGUNDO REINADO

THE DEBATE ON EXPERIMENTALMEDICINE UNDER THE SECOND REIGN

Flavio Coelho Edler*

EDLER, F. C.: The debate on experimental medicine under the second reign'. História, Ciências, Saúde— Manguinhos, III (2):284-299, Jul.-Oct. 1996.

Although Brazil's twentieth century medicine was strong in the clinical tradition, this was no structuralbarrier to innovations from the realm of laboratory experiments, contrary to what some historians haveargued. The broad debate over the rules of 'experimental methods' reveals a dimension of the strugglewaged between proponents of rival medical theories, within a context where dissension among physiciansthreatened their scientific authority vis-à-vis that of other types of healers.

KEYWORDS: experimental medicine, history of medicine, history of Brazil.

"Que resultados grandiosos para o comércio, para a indústria,para a agricultura, para o engrandecimento de nossa pátria, setodas essas atividades recebessem a consagração do métodoexperimental" {Gazet. Méd. Braz., 1882).

"Cumpre ainda observar não seja a experiência tida num sentidotão exclusivo como admitem muitos filósofos, que fazem nelaconsistir toda a medicina.

Pesando, pois, devidamente os fatos observados, os recursosda arte diante das dificuldades insuperáveis, que se lhe antolham,cumpre ser prudente e não se deixar levar pelo entusiasmo atécerto ponto dominante da nossa época, por essa injusta sofreguidãoem abraçar sem reparo refletido as doutrinas prometedoras, oque é em grande parte efeito da credulidade vulgar" (dr.Moncorvo, 1874, p. 192).

A partir da década de 1870, o dissenso em torno dos fun-damentos epistemológicos do saber médico, que caracterizara opanorama da medicina acadêmica na primeira metade do séculoXIX, começou a se alterar em alguns aspectos fundamentais.Uma nova representação dos fundamentos do saber médico,expressa pela noção de 'medicina experimental', passou aconquistar adeptos principalmente entre a geração de médicosmais jovens. Devido sobretudo ao trabalho de persuasão políticados grupos que se articulavam em torno do reduzido número de

* Pesquisador da Casa deOswaldo Cruz/Fiocruz.Av. Brasil, 4365 Rio deJaneiro — RJ 21040-360

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1 Ver sobre a profis-sionalização da medicinano período do SegundoReinado e sua correlaçãocom as transformaçõesepistemológicas do sabermédico europeu con-temporâneo, Edler (1992).Para uma análise seme-lhante sobre as contro-vérsias científicas nocampo médico, num pe-ríodo anterior ao ana-lisado por nós, ver o tra-balho recém-concluídode Ferreira (1996).

periódicos, a medicina brasileira aproximou-se dos mais recentestrabalhos médicos produzidos nos centros científicos do VelhoMundo e da América do Norte. Dessa forma, difundia-se a crençade que a competência atribuída à medicina nos países que nosserviam de modelo devia-se, fundamentalmente, às reformaspromovidas nas instituições voltadas à pesquisa e ensino médicos,o que resultou na ampla reforma do ensino médico de 1879,inspirada no modelo germânico.1

Este período que antecede à Belle Époque da medicina,simbolizada pelas conquistas da era pastoriana, tem sido objetode interpretações controversas por parte da historiografiaespecializada. Neste artigo, queremos enfatizar uma dimensão'esquecida' do amplo movimento através do qual foram sendoerigidos o prestígio do médico, como detentor de um saberespecializado, e a crença inabalável no poder preventivo e curativoda medicina 'científica', que tenderiam a se expressar por meiode representações de fundo cientificista, então pré valentes nosmeios intelectuais.

A tese da contemporaneidade das controvérsias científicasdesenvolvidas no meio médico brasileiro, em relação ao europeu,não é um ponto pacífico na historiografia relativa à medicinaacadêmica brasileira. Mesmo alguns dos trabalhos mais recentesassumem, implicitamente, a hipótese da existência de umadefasagem qualitativa entre a espécie de saber médico cultivadonas sociedades burguesas industriais européias e aquele professadopelas academias da Corte e de Salvador. Uma suposta recusa dospostulados da medicina experimental pelas instituições médicasoficiais — onde reinaria a metafísica dos sistemas médicos — foium argumento sustentado originalmente por Caldas Coni (1952,p. 34) para explicar as dificuldades de incorporação dos modelosinstitucionais definidos pelo padrão europeu.

Façamos, inicialmente, uma breve incursão na literaturaespecializada, destacando os critérios de periodização usados poralguns do autores que tentaram definir as fases que marcam aevolução da medicina no Império.

Os trabalhos pioneiros sobre a história da medicina brasileiraforam redigidos quase que exclusivamente por médicos voltadospara o passado de sua profissão, com a perspectiva de estabeleceruma certa memória que conduzia inexoravelmente à celebraçãoda medicina vigente. O resgate dos fatos, personagens einstituições que se destinavam a lutar contra as doenças e apromover a saúde, na época colonial ou imperial, repousamgeralmente numa narrativa de caráter bastante descritivo eesquemático.

Ao partirem de uma visão triunfalista da medicina contem-porânea, definida como aquela cujo grau de eficácia é explicado

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2 Santos Filho (1977) eNava (1947) apresen-tam uma periodizaçãoanáloga.

Uma importante crí-tica, desenvolvida a par-tir de outra perspectiva,sobre as abordagens his-tóricas na área da saúdecoletiva no Brasil, en-contra-se em Carvalho eLima (1992).

pelo padrão experimental dado à produção do saber e reificadapelo espaço do laboratório — erigido como o centro único deprodução de verdades cientificamente elaboradas —, estes estudostraduzem explicitamente uma concepção evolucionista da ciênciamédica. Apresenta-se, assim, a história da medicina através deum esquema teleológico onde os valores e instituições que acaracterizam na atualidade são apreendidos como o corolário dosesforços individuais ou coletivos de remotos precursoresiluminados, imbuídos dos desejos de introduzir a medicinaexperimental — entenda-se científica — em ambiente repletode metafísica (Freire, 1968, p. 59). Ausente, entretanto, umaanálise circunstanciada das relações concretas que se teceramentre a medicina acadêmica e aquela sociedade oligárquica, quepermita esclarecer como se articularam os conhecimentos e aspráticas médicas, mediados pelas instituições em diferentesconjunturas.2

A partir de meados da década de 1970, surgem novos estudoselaborados por historiadores profissionais ou cientistas sociais,destacando a problemática de correlacionar a produção do sabermédico com o processo de constituição do Estado brasileiro.3

Dos estudos em questão, o trabalho de Luz (1982) é o que exigemaior aprofundamento analítico, já que incide sobre muitas dasquestões que envolvem nosso tema, dando-lhes um tratamentocom o qual nem sempre concordamos. Antes, porém, vale apena uma menção ao trabalho anterior de Machado (1978), quetambém vai privilegiar um tipo de abordagem cujo traço comumàquela feita por Luz é a denúncia radical da ciência, que confundeseus usos com sua própria essência, transformando-a num entedotado de projeto próprio.

A referida obra destaca o papel da medicina acadêmica nadisciplinarização da população urbana do Império. Através deum "conjunto de teorias, políticas e práticas que se aplicam àsaúde e bem-estar da população" — apreendidas pelo conceitode 'polícia médica' —, o autor analisa o tipo de poder que amedicina social implica necessariamente. Fortemente influenciadopelos estudos de Michel Foucault, este trabalho tenta aplicar àsociedade patriarcal e escravista brasileira um enfoque que serevelou pouco apropriado, posto que carente de base empírica.Tomando como dado relevante da realidade o que não passavade um projeto defendido por segmentos da corporação médica,e com expressão apenas residual nas instituições que sustentavamo poder da classe senhorial, ele vai afirmar que a partir de 1850,quando a criação da Junta Central de Higiene Pública esvazia opoder das câmaras municipais, "a medicina ocupa uma posiçãocentral no saber e seus braços sustentam a sociedade. O projetomédico defende e justifica uma sociedade medicalizada, lutando

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A genealogia social dasteorias científicas é ex-pressamente defendidapela autora quando afir-ma não se tratar "comose pensa geralmente deum conhecimento ela-borado a priori, olim-picamente, que dariaorigem a um conjunto depráticas que poderiameventualmente dege-nerar em distorções(mas, ao contrário, trata-se)" de práticas ... sobreas quais se construírammodelos de conheci-mento" (Luz, 1982, p. 17).

por uma posição em que o direito, a educação, a política e amoral seriam condicionadas a seu saber" (op. cit., p. 190).

Luz, por sua vez, partindo da tese de que a diversidade demodelos científicos reproduzidos nas diversas instituições médicasdo Império vinculava-se à origem social e às referências políticasdos movimentos que se organizavam em torno da questão dasaúde, adota uma perspectiva construtivista macrossociológicapara a medicina brasileira daquele período.4

Esta perspectiva conduziu-a a encarar a Academia Imperial deMedicina (AIM) como porta-voz de um único modelo deconhecimento hegemônico na medicina do Império. Emcontraposição, os trabalhos desenvolvidos pela Escola TropicalistaBaiana — que, segundo a referida autora (1992, pp. 103-4),nunca teve seus postulados científicos incorporados ao discursooficial da época — indicariam outra articulação saber/prática,uma outra defesa de interesses, e a necessidade de outra ordempolítica, refletindo o antagonismo existente em sua base social.Assim, a teoria miasmática sobre a causa das doenças seria imanenteàquela sociedade escravista e agroexportadora, hegemônica,portanto, nos aparelhos ideológicos do Estado: na AIM, na JuntaCentral de Higiene Pública e nas faculdades médicas da Corte eda Bahia. O modelo da medicina experimental e biologicista,centrado numa etiologia ontológica, defendido pelos adeptos daEscola Tropicalista Baiana, revelaria, por outro lado, os interessesdos grupos sociais subalternos, capitaneados pela emergenteburguesia industrial baiana (idem, ibidem, pp. 129-30).

Um outro trabalho ainda mais recente (Pires, 1989, p. 81)chama a atenção para o considerável atraso da medicina brasileirado século XIX, "em relação aos resultados obtidos pela humanidadeem outros países":

"As doenças eram vistas como causadas pelo meio ambiente,sem uma explicação racional, experimental ou demonstrativa decomo evoluem . . . . É o saber de base metafísica que predominano ensino e na prática médica até o final do século ... . (istoacontecia num momento em que) o microscópio, a prensa e otelescópio já eram uma realidade; a circulação sangüínea e ascélulas nervosas já eram conhecidas pelos homens, e Descartese Newton já utilizavam a ciência objetiva na física e na matemática."

O saber médico hegemônico no Brasil imperial seria, portanto,"basicamente a continuidade da reprodução do conhecimentodominado pela Igreja Católica, na Idade Média na Europa e maistardiamente em Portugal e Espanha" (idem, ibidem, p. 104).

Estas afirmações carecem de respaldo empírico. Basta, paracontradizê-las, observar que as disciplinas básicas das faculdades,como a física ou a química, seguiam o programa do ensino médico

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5 Dentre as aplicaçõesda física médica desta-camos: as consideraçõesmeteorológicas que in-fluem sobre a saúde e odesenvolvimento dasmoléstias; efeitos dapressão atmosférica so-bre a economia (hu-mana) etc. (Figueiredo,1874).

francês contemporâneo.5 A surpresa que causam estas idéias aoleitor a par das polêmicas que envolviam a ciência médica européiano período oitocentista deve-se ao fato de Pires (op. cit.) terlevado às últimas conseqüências as interpretações tradicionais,que afirmam estar a medicina acadêmica do Império cindida entredois modelos de conhecimento.

Desse modo, duas idéias devem ser revistas: em primeirolugar, o preconceito difundido pelo positivismo comtiano, deque a medicina científica é aquela elaborada somente no espaçodo laboratório, através do método experimental criado por ClaudeBernard. Tal raciocínio conduz ao menosprezo de uma série depesquisas realizadas pelos médicos brasileiros, desde o início doséculo XIX, visando o conhecimento do estado sanitário dedeterminadas regiões, que se traduziram em uma série demonografias sobre as febres nas cidades (Nava, 1949, pp. 40-6).

Na realidade, o pressuposto de que as doenças eram provocadaspelas condições atmosféricas e telúricas obrigava os médicos areivindicar um certo programa de pesquisas sobre a nosografianacional, associado a um levantamento topográfico. Isto era feitocom o emprego dos métodos desenvolvidos pela disciplinadenominada climatologia médica, como observa Ferreira (1996).Outras pesquisas que se associavam às deste tipo eram as análisesquímicas das fontes de água mineral, os estudos químicos sobreas propriedades terapêuticas das plantas nacionais — visandoconstituir as bases da matéria médica brasileira — e as importantesdescrições de casos clínicos e tipos de tratamento, que os médicospublicavam, tendo como referência sua prática profissional. Umafonte inestimável onde é possível encontrar o tipo de investigaçãolevada a cabo por alguns médicos da Corte, antes do período queestamos analisando, é a Gazeta Médica do Rio de Janeiro (1862-64), além das Teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Igualmente equivocada é a suposta divisão do saber médicoentre dois modelos apresentados como estanques e contrapostos,representativos de dois tipos de mentalidades: o miasmático(metafísico), e o apoiado no paradigma da etiologia específica(científico). Tal contraposição falseia a complexa constelação deproblemas práticos e teóricos que envolvia a medicina acadêmicano século XIX. Ainda que aceita, seria necessário esclarecer quetal divisão reportava-se a apenas uma das questões afetas aosesculápios: a que se referia à explicação sobre a origem, patogeniae etiologia das doenças. Para que se tenha uma dimensão realdesta controvérsia no contexto da emergência da medicinaexperimental, basta lembrar que o advento da fisiologia, comodisciplina autônoma em relação à anatomia clássica, bem comoseu desenvolvimento de Bichat a Claude Bernard, fez-se ini-cialmente sem referência e posteriormente em oposição ao para-

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O artigo de Derby foitraduzido recentementepara o português e pu-blicado pela revistaCiência Hoje, vol. 10(59), PP- 18-21.

digma da causalidade ontológica das doenças (Canguilhem, 1977,pp. 59-62). Por outro lado, esta maneira de colocar o problematraduz implicitamente uma concepção linear e cumulativa dodesenvolvimento do saber científico, que cada vez mais a históriae a sociologia das ciências vêm rejeitando (Chalmers, 1994).

Encontramos, assim, um denominador comum entre as diversasabordagens apresentadas. Trata-se do critério de periodização damedicina no Brasil, baseado numa concepção positivista daevolução histórica. A distinção entre uma etapa predo-minantemente metafísica do saber médico oficial, no séculopassado, seguida por outra, científica, fundada em fatos positivose no método experimental é aceita inclusive por aqueles autoresque se pretendem críticos radicais do positivismo.

Antes de passarmos à apreciação da crítica epistemológicaque os médicos do período faziam à concepção ingênua daquelesque depositavam uma fé irrestrita na medicina experimental,reforcemos o argumento sobre a contemporaneidade do sabermédico brasileiro, diante da medicina européia.

Muitos dos depoimentos usados pela historiografia da medicinabrasileira para corroborar a tese da defasagem' são testemunhosdeixados por médicos que lutavam pelas reformas na legislaçãosanitária e no ensino médico, condenando o caráter livresco,superficial, doutrinário e escolástico — para usar alguns dos adjetivosempregados à época — do saber veiculado pelas academias. Épreciso, entretanto, compreender o significado real destas opiniõesemitidas pelos próprios professores das faculdades. Elas visavamatingir o governo imperial, que se mantinha negligente em relaçãoàs reformas reclamadas havia décadas pelas elites médicas. Aomesmo tempo, tentavam denunciar o caráter meramente consu-midor e passivo, mas não genericamente distinto, da medicinaacadêmica brasileira em relação ao movimento científico queempolgava a Europa. Esta é, por exemplo, a compreensão reveladapor Orville Derby (1852-1915) em artigo publicado no início de1883 pela revista Science, no qual afirmava que "se o progressocientífico brasileiro for lento não será por indiferença ou ignorânciada verdadeira natureza da ciência, mas porque o desenvolvimentomaterial do Império não oferece as facilidades de pesquisadesfrutadas em países mais velhos e mais ricos".6

Um comentário semelhante foi atribuído pelo lente de anatomiapatológica, Cipriano de Freitas (1853-1925), ao fisiologista LouisGouty, professor de fisiologia da Escola Politécnica. Referindo-se àilustração da "classe médica no Brasil", Couty teria afiançado "queas obras de Claude Bernard e outros professores são tão conhecidasno Brasil quanto na França" (Freitas, Conferência de 26.8.1880).

Dois anos antes, em editorial assinado pelo médico hel-mintologista Júlio de Moura na Revista Médica (1878, p. 114), por

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7 Benchimol (1995)apresenta minuciosoestudo sobre a impor-tação das idéias pas-torianas em fins doséculo XIX. Seus ar-gumentos destroem asinterpretações sim-plistas que imputam aOswaldo Cruz o papelde demiurgo da bac-teriologia brasileira,como o faz Stepan(1976), dentre outros.

ocasião da morte de Claude Bernard, afirmava-se que: "não haviaum só médico brasileiro que não admirasse, na carência de estudospráticos de que se ressente o ensino em nossas faculdades, osfrutos proveitosos que sobre inúmeras questões de fisiologia sedevem ao colosso intelectual que acaba de ser fulminado".

O estigma de mero consumidor de idéias científicas elaboradasno exterior, a incapacidade de acompanhá-las a partir deexperiências próprias, a ausência quase absoluta de investigaçõesoriginais nas áreas de ponta, enfim, uma cultura científica decunho fundamentalmente livresco — o que não significa quali-tativamente defasado — podem ser aquilatados pelo comentárioarguto de Martins Teixeira (Conferência de 29.8.1880), professorde física médica, sobre os concursos realizados na Faculdade deMedicina da Corte: "Os tiroteios de opiniões nos concursos sobretal matéria (fisiologia) faz parecer sempre vitorioso o que apresentaopiniões que garante serem chegadas pelo último paquete."

Mas se os médicos brasileiros do Segundo Reinado mostravam-se a par das mais recentes novidades científicas realizadas noVelho Mundo, que razão especial pode explicar a existência deum consenso tão arraigado entre vários historiadores quanto àprevalência de um suposto ambiente metafísico? Acreditamosque tal caracterização deve-se ao impacto causado pelo paradigmapastoriano sobre as teorias médicas do século XIX, e à tradiçãoempirista e positivista que marcou até recentemente a historiografiadas ciências.

Os historiadores tradicionais da medicina asseveram que ostrabalhos de Pasteur representariam um marco fundamental narefutação definitiva de certos mitos médicos do passado. A Teoriados Germes, que para muitos representa a fundação da medicinacientífica (Bernal, 1969, p. 666), é geralmente apresentada comoo resultado mais alvissareiro da aplicação do protocolo meto-dológico estabelecido por Claude Bernard. Fixa-se, desse modo,uma linha de continuidade entre a fisiologia bernardiana e aspesquisas bacteriológicas de Pasteur, através da reificação dométodo prescrito pela medicina experimental. Lembremos que opróprio Claude Bernard corroboraria esta visão, pois negava apossibilidade de revoluções ou sobressaltos entre as teoriascientíficas, desde que elaboradas em consonância com suas regrasmetodológicas (Canguilhem, 1977, pp. 59-60).

Desse modo, muitos estudiosos procuraram demarcar umaruptura entre uma etapa pré-científica ou metafísica da medicinabrasileira em relação a outra, científica, através de um recursobásico: de um lado foram colocados os espíritos supostamenteretóricos, anticientíficos, isto é, aqueles que rejeitavam as tesespastorianas; do outro, os verdadeiros luminares da medicinaexperimental, Oswaldo Cruz à frente.7 É claro que algumas polêmicas

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A defesa que PedroNava (1949, p. 43) fezdo professor de clínicainterna da Faculdade deMedicina, Torres-Ho-mem (1837-87), em seuaffair científico com seucolega de cátedra, obacteriologista Domin-gos Freire (1842-99), édemonstrativa de umdestes esforços voltadospara a reabilitação demédicos que se viramprescritos do universocientífico do século XIX,através deste artifícioreducionista.

surgiram entre memorialistas e historiadores que se empenharamem salvar do naufrágio histórico alguns dos mais célebres médicosdo Império que polemizaram com os sectários das tesespastorianas.8

Entretanto, a análise dos argumentos utilizados pelos médicos,que se opuseram total ou parcialmente às teorias parasitológicase bacteriológicas, confirma o acerto da tese kuhniana, que afirmaser a nova ciência originada não do erro ou da superstição e simda ciência antiga (Kuhn, 1978). O detalhado estudo de Benchimol(1995), sobre o contexto histórico de importação das teoriasparasitárias das doenças, ressalta a ampla negociação que envolviamédicos brasileiros, adeptos e adversários das idéias de Pasteur,tendo como pano de fundo, além de outras variáveis, a luta pelaobtenção do reconhecimento das instituições hegemônicas nocenário internacional. Além desta espécie de credencial, necessáriapara legitimar as querelas científicas nacionais, os debatedoresbaseavam-se numa idêntica imagem do método experimental, àqual apelavam na imputação recíproca de desvio na aplicaçãodas regras da ciência.

Curiosamente, a rígida demarcação entre uma medicinametafísica e especulativa e outra, de cunho científico, pertence àretórica desenvolvida naquele processo de legitimaçãoprofissional, a partir dos argumentos fornecidos por Magendie,Claude Bernard e seus seguidores. Um dos médicos quereivindicaram, nas famosas Conferências da Glória, a reforma doensino médico assim se pronunciava:

"O método experimental foi largamente inaugurado na Europapela ciência francesa, mas enquanto Magendie o sustentava noColégio de França, o novo meio de ensino foi revolucionar aAlemanha, onde, desenvolvendo-se de um modo prodigioso,elevou em quarenta anos esse país à primeira nação científica domundo. Sem investigação experimental não há medicina científicapossível" (Carvalho, Conferência de 19.8.1880).

Da mesma forma se pronunciava o dr. Felício dos Santos aoafirmar num editorial da Revista Médica (1.7.1876) sua confiançairrestrita nas transformações operadas na medicina pelo métodoexperimental:

"Enquanto as deduções da razão pura resolvem-se no mesmocírculo estreito, reproduzindo os monótonos e mesmo eternoseinsolúveis problemas, magníficos faróis se acendem nas hordasdo domínio experimental e a ciência positiva firma em sólidossopedâneos [alicerces] o critério da verdade. As ciências naturais,origem do bem-estar e do estupendo progresso hodierno,estabelecerão o domínio do homem sobre a matéria.

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9 Memória Histórica daFMRJ vol. V, 67-68.

10 Ecller, op. cit., noprimeiro capítulo, tratadeste período marcadopela rápida obsoles-cência dos sistemas mé-dicos herdados.

O método experimental retemperou-se. O seu caráter depassividade, de expectação antiga desapareceu: em vez de esperarpaciente as descobertas do acaso ele armou-se de instrumentos,de aparelhos, multiplicou seus processos e levou o escalpelo àsentranhas da natura matter, para surpreender os segredos da criação.

Hoje a medicina, extreme do espírito dogmático das teoriasocas do racionalismo, ressaibo da escolástica, e sacudindo o torporda expectação hipocrática, dispondo do opulento arsenal dasciências naturais, tornou-se ciência vasta e complicada. A nossalegenda não é mais a observação e o registro dos fatos, mas aexperimentação e o indefesso laboremos..."

Em contraste com a primeira metade do século XIX, isto é,quando os postulados de Magendie e Claude Bernard nãopassavam de uma promessa que pretendia revigorar as bases dosaber médico e influir positivamente na sua prática, as elitesmédicas apresentam, agora, um panteão de luminares construtoresda medicina científica (Revista Médica, 10.6.1873):

"Laennec instituindo a auscultação, Awenbrugger descobrindo ePiorry aperfeiçoando a percussão, Magendie e Claude Bernardfundando as bases sólidas da fisiologia experimental, Wunderlicke Traube estudando a termometria clínica, Virchow dissipando astrevas da anatomia patológica etc. bem atestam a verdade queemitimos."

Podemos estabelecer com maior precisão a receptividadealcançada, no último terço do século XIX, pelo novo ideal empiristae positivista de cientificidade estabelecido a partir da noção demedicina experimental, confrontando um discurso do viscondede Sabóia (1835-1909), proferido no ato de doutoramento dosalunos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1883,com outro, produzido vinte anos antes, em circunstânciassemelhantes, pelo seu antecessor na direção daquela instituição,o conselheiro Jobim (1802-78).

Na primeira ocasião, em novembro de 1863, Jobim discursarasobre aspectos da profissão médica, chamando atenção para oimperativo de firmar-se uma postura ética no seio da corporaçãomédica prescrevendo a caridade e a liberalidade entre os colegascomo uma necessidade ditada "pela boa política", num contextoem que "sabemos pouco, observamos mal e conjeturamosmuito".9Jobim era um crítico feroz do ecletismo e do empirismoclínico como solução para os impasses gerados pela crise nosfundamentos da medicina acadêmica. Ele mostrava-se pragmáticoe consciente dos impasses inerentes às circunstâncias em que osestudos de fisiologia experimental não passavam de uma apostaque colocava em risco o status profissional.10

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O discurso de Sabóia (1883, pp. 11-3), pelo contrário, refletiajá a plena confiança nas sólidas bases do saber médico. Peranteos formandos, o imperador e o ministro do Império, o diretor dafaculdade afirmava que a medicina havia realizado "no últimoquartel do século progressos admiráveis que só podem sernegados, amesquinhados, ou ridicularizados por aqueles que nãovêem proclamada e estabelecida a cura absoluta de toda e qualquerenfermidade". Assim, após proclamar o fim "da fase especulativae doutrinária" no ensino médico e o início de um novo "estadoverdadeiramente científico" ele concluía:

"Nunca compreendi estudo médico sem laboratório em que aobjetividade dos fatos, que possam ser percebidos ou caiamdebaixo de nossos sentidos, tenha a sua confirmação na análise everificação experimental bem estabelecida em todas as fases dofenômeno, que se queira estudar ou conhecer.

Quem diz medicina diz implicitamente ciência do conhe-cimento das manifestações mórbidas ou anormais da vida nasdiversas esferas da atividade orgânica. A medicina não fez senãoprogressos lentos e até duvidosos enquanto seu papel se reduziua procurar o princípio das coisas ... em que a doutrina substituía aanálise, e as concepções abstratas adiantavam-se à lógica dosfatos e à crítica experimental. Foi somente depois que se aplicouao seu estudo o método e o processo indutivos e os instrumentosde precisão, que a vemos volver das regiões do empirismo paraelevar-se a um alto nível científico... .

Quando em lugar de perscrutar os fenômenos orgânicos e deapreciá-los sob o ponto de vista da causalidade ... os médicos,abandonando o método indutivo lançaram-se no mundo dametafísica, em indagações puramente escolásticas sobre a vida,discutindo se esta precedia ou era consecutiva à organização,não produziram também senão o animismo de Sthall e o vitalismotranscendental de Hahnemann!"

Mas não havia só exaltação fetichista das virtudes da medicinaexperimental. Excelentes argumentos foram produzidos dentre osmédicos que viam como uma ingenuidade a adesão irrestrita decertos colegas aos novos paradigmas sobre a causalidade das doenças.

O ataque mais comum aos fervorosos defensores das teoriasparasitológicas e bacteriológicas visava a sua pretensão exclusi-vista. Um comentário neste sentido foi feito pelo editor da RevistaMédica (31.8.1875), o famoso darwinista Miranda de Azevedo,em relação à conferência proferida em 1875 pelo então jovemSilva Araújo (1853-1900), na Escola da Glória:

"O doutor Silva Araújo, no decorrer do discurso, revelou muitadisposição para a oratória e dotes para a tribuna, bem que ao mesmo

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tempo patenteasse imaginação por demais ardente e impetuosapara um médico que se dedica a investigações positivas daciência... . Deixou-se levar pelo entusiasmo, a ponto de sustentarpor vezes, no seu discurso, que o parasitismo explica uma sériede moléstias, como o tétano, a hematúria, e todas as moléstiasinfecciosas e contagiosas."

A expressão 'investigações positivas', usada aqui por Mirandade Azevedo, não traz a marca de uma estrita ótica empirista, comoé possível supor-se à primeira vista. Nas referências constantes à"ciência positiva" ou "fato positivo" o termo 'positivo' possui trêssignificados básicos: em geral era usado no sentido de real, emoposição a quimérico; positivo tinha também a ver com preciso,em oposição a vago; por fim, num sentido axiológico designavaum empreendimento útil, em contraposição a ocioso. A fé no puroindutivismo havia sofrido um forte revés, num contexto marcadopor querelas científicas em áreas localizadas do saber médico,como as que opuseram, por décadas, contagionistas versusanticontagionistas. Nesse caso, por exemplo, cada corrente vinhaacumulando evidências empíricas relevantes sem apresentar umaexplicação satisfatória sobre a causa das doenças epidêmicas,dificultando, assim, a formação de um consenso corporativo sobreas medidas higiênicas consideradas, então, eficazes.

Num artigo publicado pelo j'ornal Arcbivo Médico em maio de1874, isto é, quatro anos antes de Pasteur apresentar na Academiade Ciências de Paris sua Teoria dos Germes, um médico tentavadefinir as diferenças entre as teorias contagiosas e infecciosasque disputavam a explicação sobre a etiologia das doenças. Antes,porém, ele alertava quanto a dificuldade de se estabelecer umaverdade definitiva, apelando apenas para as inferências indutivas:

"Baseando nossos estudos em fatos e na observação não damos-Ihe contudo o valor que se tem pretendido dar. Inegavelmente aobservação é um elemento de grande valor para a resoluçãodesses problemas; mas ela pode ser incompleta, os fatoserroneamente apreciados ou mal interpretados, e enfim ascoincidências estão longe de ser raras. Todas essas circunstânciaspodem ser a causa de grandes erros e são a origem das divergências,que cada vez mais extremam os contagionistas e infeccionistas.

Em qualquer moléstia, por uns reputadas contagiosas, de ambosos lados se invocam fatos para decidir a questão. Os fatos resolvemtanto a favor de uns como de outros, nada decidem, sua autoridadeé nula, sendo portanto falso o pseudo-axioma: contra fatos nãohá argumentos.

Sem a intervenção do raciocínio, sem a dupla arma da lógica edos fatos é impossível chegar-se a conclusões verdadeiras."

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Opiniões semelhantes, embora mais próximas à tradiçãoempirista, foram emitidas pelo dr. Felício dos Santos, ao comentaruma polêmica científica envolvendo os médicos Pereira Guimarãese Moncorvo (Revista Médica, 15-3.1874), sobre a ação abortivado sulfato de quinina, então muito empregado no combate àsdoenças:

"Esta questão só poderá ser resolvida pela experiência e essaainda é insuficiente. A nossa ciência é toda experimental e nadaganha com discussões teóricas a priori. Cumpre confessá-lohumildemente embora riam de nós os adeptos do filosofismo(que) as ciências experimentais não têm outro meio para adescoberta além da observação. É o método analítico com todasas desvantagens e com todos os perigos. Desses o mais comum ésem dúvida o POST HOC ERGO PROPTER HOC."

A crítica sustentada pelo visconde de Sabóia em 1883 (pp.20-4) contra os partidários de Pasteur revela a um tempo nãoapenas seu respeito aos princípios metodológicos postulados pela"medicina experimental", como deixa explícito o fato de que apolêmica opunha paradigmas explicativos distintos e não modelosepistemológicos divergentes. Deixemos a palavra com o diretorda faculdade:

"Não tem deixado de aparecer doutrinas que tentam explicartodos os fenômenos dessa entidade mórbida (inflamação), e nãoignorais também que, não satisfeitos com os conhecimentos quea ciência apresenta a respeito, alguns médicos e patologistas,com afã e ânsia quase vertiginosa, têm estudado nestes últimosanos o mundo dos infinitamente pequenos e procurado ali aorigem e causa dos estados febris; a descoberta do micróbio docarbúnculo, o do cholera das galinhas, por Pasteur, foi um gritode alarma para que todos quisessem ser o Colombo de um novomicróbio, de modo que hoje não há estado febril grave ou moléstiade natureza zimótica ou epidêmica e mesmo cura difícil ouimpossível, que não se queira atribuir aos micróbios .. . .

Sem negar a grande vantagem das pesquisas tendentes aoconhecimento da origem e causa de certas moléstias ..., creio,entretanto, que muitos médicos nessas pesquisas vão se es-quecendo de regras e preceitos da ciência experimental tãobemfundados por Magendie e aperfeiçoados por Claude Bernard;deixando um pouco de lado o estudo minucioso das alteraçõesorgânicas, quer morfológicas, quer químicas, para se abalançaremnesses excessos de generalização de uma só causa para muitasmoléstias diversas, em procura da glória que poderá esvair-se nofumo das decepções da vida, com prejuízo, entretanto, do caráterde seriedade que deve revestir as ciências médicas... .

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As precauções apon-tadas por Sabóia devem-se em grande parte aoclima de euforia que secriara em torno dostrabalhos do prof. Do-mingos Freire (1842-99). Souza Lima (1842-1921), lente de higieneda mesma faculdade epresidente da AIM noexercício de 1883 e1884, combatia Freireasseverando sua incon-formidade com: "a velhae cômoda sentença deque contra fatos não háargumentos. Não háproposição mais banal,enquanto os fatos nãoforem bem observados,e convenientemente in-terpretados, de nadavalem, e não poderãoconstituir base ou prin-cípio irrefragável deargumentação" (Lima,1884, p. 131).

O sábio Pasteur, a quem todos querem imitar — o que nãocensuro, e antes aplaudo —, quando resolveu por um modoadmirável a questão microbiana do carbúnculo, tratou de elucidartodas as questões relativas à produção do calor no organismo;mas apesar disso, não foi ultimamente contestado por Koch emBerlim a exatidão dos fatos tão engenhosamente indicados porPasteur?"

Sabóia (1835-1909) queria alertar neste discurso para osformandos de 1883 sobre os riscos de um tipo de ilusão cognitivasemelhante àquela que Bacon designara por idola tbeatri.11 Porisso sentenciara que "deduzir do desconhecido ou hipotético parao conhecido, se pode ser, algumas vezes, o facho temerário deuma experiência feliz será quase sempre um método perigosonas pesquisas científicas".

Conclusão

Vimos aqui que a associação entre ciência médica e progressomaterial expressou-se por meio de um discurso triunfal que hoje,retrospectivamente, podemos qualificar como ingênuo. Mas, aocontrário do que em geral se supõe — e os depoimentos dosmédicos brasileiros empenhados na institucionalização dasdisciplinas experimentais o comprovam —, o discurso marcadopela reificação do método experimental pertencia mais à retóricavoltada à afirmação profissional do que às convicções profundasdaqueles homens.

O exame das controvérsias geradas entre os adeptos eadversários das teorias médicas concorrentes revela que os maisargutos ridicularizavam os exageros do empirismo, impugnandoas certezas dogmáticas dos mais afoitos adeptos do expe-rimentalismo. Se os médicos-cientistas renunciaram de uma vezpara sempre ao mito do experimentum crucis, capaz de garantirpor si só a veracidade de um princípio científico, sabiam, entretanto,que o controle empírico das teorias se tornara fundamental parao avanço do conhecimento.

Se, por um lado, é necessário distinguir entre o discurso voltadopara a legitimação profissional, baseado numa representaçãomística da medicina experimental, daquele que constituía partede um argumento científico — bem mais consciente das limitaçõesda experimentação no processo de elaboração do saber —, épreciso, por outro, explicar o porquê da convivência entrediscursos opostos sustentados muitas vezes pelos mesmosindivíduos. A resposta, acreditamos, está na raiz de outro fenômenoconexo: a construção simultânea de uma imagem 'pura' e outra'utilitária' da ciência, que não conflitavam. De fato, a profissiona-

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lização da medicina colocava em questão o problema de sealcançar seu reconhecimento público como sistema perito e, aomesmo tempo, manter sua autonomia e status. Essa busca daautonomia institucional e disciplinar teve como contrapartida odesenvolvimento de um controle social interno que gerou nãoapenas a necessidade de implantação de um código de éticamédica, como também os discursos sobre os procedimentosmetodológicos universais ao conhecimento científico. A atualpercepção social da ciência, que concilia representações opostas— a imagem de uma esfera distante, misteriosa e fechada, de umlado, e utilitária e iconoclasta, de outro —, foi elaborada epopularizada durante aquele período de construção de ummonopólio legítimo de ação profissional.

A presença de uma forte tradição clínica na medicina brasileiraoitocentista não constituiu uma barreira estrutural ao ingresso dasnovidades produzidas no terreno da experimentação. A clínicanutriu-se das conquistas alcançadas pela medicina experimental,ainda que inicialmente o tenha feito de forma passiva. Ainstitucionalização da pesquisa experimental na esfera estatal nãofoi obra de um esforço demiúrgico de Oswaldo Cruz. Muito jáhavia sido feito pelos mestres da famosa geração de sanitaristasda República Velha através da última reforma do ensino superiorno Império — Lei Leôncio de Carvalho (1879) — complementadapela gestão do visconde de Sabóia na Faculdade de Medicina daCorte (1880-89).

A década de 1870 marcou um momento de inflexão na trajetóriada profissionalização da medicina acadêmica, com a elite médicado Império lutando pela redefinição do estatuto de cientificidadedo saber médico, pela elaboração de um programa de pesquisasorientado para a nosologia e terapêutica nacionais, e pelaemancipação da esfera destinada à formação profissional emrelação à tutela exercida pela burocracia imperial (Edler, 1992).

O processo de apropriação e institucionalização do arsenaltécnico e teórico das disciplinas e dos modelos institucionais querevolucionaram a medicina em fins do século XIX dependeu, emlarga medida, dos consensos e dissensos entre os própriosmédicos em torno dos fundamentos epistemológicos de seu própriosaber, o que se expressou pelo debate em torno da noção demedicina experimental.

EDLER, F. C.: 'O debate em torno da medicina experimental no Segundo Reinado'. História, Ciências,Saúde — Manguinhos, III (2):284-299, jul.-out. 1996.

A presença de uma forte tradição clínica na medicina oitocentista não constitui uma barreira estruturalao ingresso das novidades produzidas no terreno da experimentação em laboratório, como afirmam

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alguns historiadores. O amplo debate em torno das regras do 'método experimental' revela umadimensão da luta travada entre adeptos de teorias médicas rivais, num contexto em que a dissensãoentre os esculápios ameaçava sua autoridade científica, frente a outras categorias de curadores.

PALAVRAS-CHAVE: medicina experimental, história da medicina, história do Brasil.

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Recebido para publicação em maio de 1996.