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Eneida de Almeida O “construir no construído” na produção contemporânea: relações entre teoria e prática São Paulo 2009

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Eneida de Almeida

O “construir no construído” na produção contemporânea: relações entre teoria e prática

São Paulo

2009

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Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo

O “construir no construído” na produção contemporânea: relações entre teoria e prática

Tese de Doutorado

Eneida de Almeida

Orientador:

Prof. Dr. Luiz Américo de Souza Munari

São Paulo, 2009

Para Marta e Paolo

Agradecimentos Esta pesquisa ganhou forma durante o exercício do ensino na Universidade São Judas Tadeu. A Luiz Augusto Contier, coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo, agradeço a confiança e apoio no desenvolvimento dos estudos. A Kátia Azevedo Teixeira sou imensamente grata pela possibilidade de compartilhar estudos e discussões relativas ao ensino e pesquisa de arquitetura. A Marta Bogéa o diálogo fértil e instigante no convívio em sala de aula e no grupo de pesquisa. A Alessandro Castroviejo Ribeiro agradeço o incentivo e companheirismo durante o desenrolar dessa pesquisa. A Beatriz Mugayar Kühl e Luís Antônio Jorge a generosa contribuição para o aprimoramento deste trabalho. A Natália Roque agradeço a atenção e o cuidado no tratamente gráfico deste trabalho. Aos alunos o estímulo do aprendizado recíproco. Por fim, a Luiz Américo de Souza Munari, meu orientador, agradeço a possibilidade de uma rica interlocução.

Resumo A pesquisa busca avaliar possíveis relações entre o projeto arquitetônico e o restauro de bens culturais. Tendo em vista que esse leque de relações é bastante amplo, procurou-se delimitar o estudo à atuação de dois arquitetos contemporâneos que tenham optado pela aproximação dos critérios de projeto com a análise das preexistências e a observação da cidade histórica. Dentro desse universo foram escolhidos Aldo Rossi (1931-97) e Lina Bo Bardi (1915-92). Rossi, com sua obra A arquitetura da cidade (1966), desperta interesse pelo questionamento aos preceitos do movimento moderno e pela busca de estruturas essenciais permanentes presentes nas cidades em seu devir histórico. Lina Bardi chama atenção pela tentativa de superação da fratura histórica entre o “antigo” e o “moderno” e pela ativação de um pertinente exercício crítico aplicado na intervenção relacionada a preexistências de valor documental. O estudo procura explorar os vínculos que os dois arquitetos estabelecem com os respectivos contextos de formação e com a tradição crítica italiana de modo mais amplo. A investigação adota uma abordagem histórica a partir de um recorte temporal que privilegia três momentos específicos: traça inicialmente um panorama do século XIX e da origem das teorias e práticas de conservação dos bens culturais; analisa, a seguir, a década de 1930 como momento de tensão entre duas posturas antagônicas – a conservação e a inovação – mediante a análise dos seguintes documentos: Carta de Restauro de Atenas (1931) e Carta de Atenas – CIAM (1933); por fim, enfoca o período do pós-guerra – com ênfase nos anos 1960 – como época de reconciliação entre memória e invenção, tendo como pano de fundo o ambiente cultural italiano, com atenção especial à revisão do movimento moderno no que se refere à relação com a história, bem como às discussões ligadas aos temas da conservação dos bens culturais e os desdobramentos desse debate na obra de Aldo Rossi e de Lina Bardi. Entre os objetos de estudo do campo do patrimônio arquitetônico, relacionados à produção de Lina Bardi, destacam-se: a Carta de Veneza (1964), as noções do “restauro científico e “restauro crítico”, além da Teoria del Restauro de Cesare Brandi (1963). O enfoque dos debate recentes sobre a ampliação da noção de patrimônio e suas implicações na cidade contemporânea suscita questionamentos quanto às abordagens centradas em aspectos econômicos e turísticos que relegam a segundo plano as ações de cunho cultural.

Palavras-chave: memória, patrimônio arquitetônico e urbano, restauro e intervenção arquitetônica. Abstract This study aims to evaluate possible relations between architectonic design and cultural heritage restoration. In the light of the wide range of relations, this study has been limited to the work of two contemporary architects who opted for approaching design criteria to both pre-existence analysis and historical city observation. Within such universe, Aldo Rossi (1931-97) and Lina Bo Bardi (1915-92) are the object of this study. Rossi, with his work The Architecture of the City (1966), (‘L'architettura della Citta’) shows interest in both questioning the principles of modern movement and searching for permanent essential structures in the cities related to their historical future. Lina Bo Bardi stands out for her attempt to overcome the historical fracture between the “old” and the “modern” as well as, the activation of a pertinent critical exercise applied to the intervention related to the preexisting documental values. This study tries to explore the bounds that both architects establish with their respective upbringing contexts and with the Italian critical traditions in a broader manner. The investigation adopts a historical approach from a time period which privileges three specific moments: first delineates a panorama of 19th century and the origin of theories and practices of cultural heritage preservation; then, it examines the 1930’s as a moment of tension between the two opposite approaches – preservation and innovation – upon the following documents analysis: Athens Charter (1931) and Charter of Athens – CIAM (1933); and finally, it focuses the post-war period – with emphasis on the 1960’s – as a reconciliation time between memory and invention, having as background the Italian cultural environment, with special attention to the modern movement reviewing in addressing History as well as to the discussions related to cultural heritage preservation and the unfolding of such debate in the work of Aldo Rossi and Lina Bardi. Among the studied objects in the field of architectonic heritage, related to the production of Lina Bardi, stands out: the Venice Charter (1964), the notions in the “scientific restoration” and “critical restoration”, in addition to the Teoria del Restauro by Cesare Brandi (1963). The recent debates focus on the expansion in heritage notions and its implications in the contemporaneous city trigger questionings on the approaches focused on economical and tourism aspects which relegate to second plan the cultural character efforts.

Key-words: memory, architectonic and urban heritage, restoration and architectonic intervencion.

Sumário

Introdução 05

Parte I

1. Metrópole e memória: origem dos conceitos e das práticas de conservação do patrimônio arquitetônico 15

Um panorama geral. Passado e presente: dilema entre divisão e conexão. O interesse pela memória. Memória e coletânea. Memória, nomenclatura e significados. Memória, conservação e restauro. Uma concepção moderna de restauro.

2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição entre conservação e inovação 42

Arquitetura, invenção e memória. Antecedentes: urbanismo versus conservacionismo. O panorama internacional: as diferentes posturas urbanísticas de Le Corbusier e de Gustavo Giovannoni. O panorama nacional: a peculiaridade da aproximação entre modernização e preservação. A Carta de Restauro de Atenas – 1931 (Escritório Internacional dos Museus Sociedades das Nações). A Carta de Atenas – 1933 (CIAM). O cotejo dos documentos. Desdobramentos nos debates recentes.

Parte II

1. Os anos 1960: a Carta de Veneza e o anúncio da conciliação entre memória e invenção 74

A discussão da área específica: antecedentes e desdobramentos. As preexistências e a intervenção arquitetônica. Os novos motes da produção arquitetônica. As discussões urbanas. Alguns questionamentos ligados à prática do “construir no construído”.

2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio 91

Um primeiro olhar. Os caminhos trilhados. O Solar do Unhão, Salvador (1959-62). O SESC Pompéia, São Paulo (1976-86): os edifícios fabris preexistentes; o reconhecimento de valor; as operações realizadas; os critérios de intervenção; o significado renovado de uma fábrica. A Ladeira da Misericórdia (1987): o “construir no construído”; a celebração do restabelecimento de um diálogo interrompido; a retomada do diálogo; um diálogo de tempos solidário às teorias de restauro; as escolhas transitam entre o “restauro científico”, o “restauro crítico” e a teoria de Brandi; o patrimônio urbano. Um balanço crítico.

3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre permanência e transformação 165

A “Escola de Veneza” e a “arquitetura analógica”: uma trajetória profissional entre o projeto e a pesquisa. A Arquitetura da Cidade: o “tipo”, a crítica ao funcionalismo ingênuo, o binômio transformação/permanência. O Cemitério de São Cataldo, Módena (1971-76). O Teatro del Mondo, Veneza (1979-80). A Escola E. De Amicis, Broni (1969-70). O Teatro La Fenice, Veneza (1997-98). Algumas observações.

Conclusão 221

Bibliografia 231

5

Introdução

Por muito tempo – pode-se dizer, desde os primórdios da civilização

ocidental – perdura entre os homens a postura de lidar livremente

com os legados do passado no sentido de adaptá-los às exigências

do presente, sem impor qualquer limitação às alterações ou mesmo

às demolições. Essa conduta, no entanto, altera-se a partir do

momento em que se configura uma nítida separação entre passado e

presente, e, concomitantemente, os legados do passado passam a

ser objeto, não apenas de estudo sistemático, mas também de

interesse de conservação. Isso ocorre a partir de meados do século

XVIII e afirma-se concretamente durante o século XIX, quando tende

a se constituir a autonomia disciplinar do restauro dos monumentos

históricos.

Este estudo pretende realizar uma investigação que relacione as

reflexões produzidas no campo disciplinar da preservação e restauro

do patrimônio arquitetônico, com aquelas elaboradas no âmbito mais

geral do projeto de arquitetura. Indagar sobre as relações entre o

‘projeto’ e o ‘restauro’, entre a criação do novo e a preservação do

antigo, analisar a fronteira entre essas atuações e as possibilidades

de conciliar os interesses de conservação com os anseios de criação

são, portanto, os focos centrais dessa pesquisa.

Considerando que esse leque de relações é bastante amplo, buscou-

se delimitar a pesquisa ao estudo da produção de dois arquitetos:

• Aldo Rossi na articulação que estabelece entre teoria e

prática, especialmente no que diz respeito à atenção às

questões da memória materializada na arquitetura da cidade.

• Lina Bo Bardi em sua produção que atenta para as

preexistências de valor histórico, tendo como referência as

noções elaboradas em seus escritos e o confronto com as

teorias do campo disciplinar do restauro a que se refere nos

seus memoriais de projeto.

Um dos principais objetivos do estudo é percorrer os raciocínios que

amparam as decisões de projeto, com o intuito de relacionar, sempre

que oportuno, os critérios de intervenção adotados pelos arquitetos

6

mencionados acima, às discussões teóricas travadas no âmbito da

conservação do patrimônio dos bens culturais.

A pesquisa se estrutura a partir de três hipóteses básicas:

1. A hipótese inicial parte da constatação de que a intervenção

de restauro, voltada ao monumento histórico, exige limites

mais rigorosos em relação ao exercício de projeto de

arquitetura. Isto se deve justamente em sinal de respeito ao

valor figurativo e ao documento histórico contido no objeto de

intervenção. A demarcação mais nítida dessas diferenças,

como já mencionado, surge a partir da constituição do

‘restauro’ como disciplina autônoma e se acentua à medida

em que o ‘projeto’ é reconhecido – principalmente a partir da

afirmação do movimento moderno – como experiência de

criação guiada essencialmente pelas exigências do presente

e por um estatuto interno, “racional”1. Assim sendo, as

prerrogativas ditadas pelos interesses de conservação

tendem a ser consideradas, pelos arquitetos não

especialistas, imposições que ferem sua liberdade de criação.

2. a segunda hipótese formulada relaciona-se à convicção de

que o pensamento produzido na esfera mais específica do

conhecimento, não obstante as divergências mais imediatas,

estabelece forçosamente relações com as idéias mais gerais

dominantes no ambiente cultural dos momentos analisados.

3. a terceira parte do entendimento de que toda e qualquer ação

de recuperar, rever e resignificar a memória do passado, dá-

se à luz da compreensão do presente, e deve,

necessariamente, prever a continuidade do tempo que implica

na legitimidade de se considerar a dimensão não só analítica,

mas sobretudo propositiva contida na ação arquitetônica, o

que necessariamente comporta, além da conservação do

passado, a prospecção de futuro e de projetos futuros

1 HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 4. O autor, ao discorrer sobre a modernidade, cita Weber e sua descrição

do “racional” como um “processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. (...) as artes tornadas autônomas (...) formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos, ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades internas.”

7

conciliada com a preocupação de preservação. De fato, não

teria o menor sentido aportar valor exclusivamente no

passado, como se toda a criação humana relevante já tivesse

sido realizada, ou como se não houvesse a possibilidade de

compatibilizar a conservação com a continuidade histórica, ou

seja, de se adicionar uma nova camada de tempo que se

evidencia e dialoga criticamente com a preexistência

conservada2. Aliás, a discussão teórica acumulada, já não

mais considera patrimônio unicamente o passado remoto,

exemplar, grandioso, o monumento histórico no sentido

empregado no século XIX, mas, nessa nova compreensão,

incorpora um passado mais recente, produzido em etapas

sucessivas de um devir histórico que aproxima passado e

presente, em síntese, o bem cultural entendido como produto

da atividade humana, sem fazer distinção entre a obra de arte

e as outras formas derivadas do fazer humano 3.

É justamente a afirmação do projeto do presente, em concomitância

com a conservação do passado, que sugere a necessidade de

extrapolar os limites da investigação no campo específico do

restauro, para relacioná-la com a compreensão da produção

arquitetônica contemporânea naqueles pontos de tangência e de

convergência entre esses dois níveis de abordagem.

Convém considerar que os debates sobre os temas do patrimônio

cultural e seus desdobramentos na prática profissional tendem, na

atualidade, a se tornar cada vez mais relevantes, uma vez que a

reciclagem, a revitalização, a requalificação, apresentam-se como

ações que extrapolam os limites da discussão de especialistas, para

tornarem-se problemas cotidianos da agenda do arquiteto

contemporâneo.

2 Essa posição encontra afinidade com a postura defendida por Marco Dezzi-

Bardeschi, um dos teóricos da atualidade que contribui para enriquecer os debates

recentes nessa área, mediante a proposição da “conservação integral”. Para

aprofundar essa abordagem, consultar KÜHL, B. Preservação o patrimônio arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia, S.P., 2008 e

CARBONARA, G. Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti. Nápoles:

Liguori, 1997. 3 Beatriz Mugayar Kühl, op. cit., p. 82, aborda a conotação atual do termo

‘monumento’ e justifica o uso da expressão ‘restauro de monumento’ em uma

acepção atualizada em relação ao emprego na origem da formulação teórica, em

que o termo ‘patrimônio’ correspondia a um sentido mais restrito. As mesmas

considerações são tecidas por Giovanni Carbonara, op. cit., p. 23.

8

Essa condição está ligada diretamente à ampliação da noção de

patrimônio, ocorrida a partir do pós-guerra, e ao crescente interesse

pelo tema no contexto contemporâneo. O destaque dirigido às

questões da conservação pode ser compreendido como uma espécie

de reação à condição de aceleração das transformações, que

tendem muitas vezes a cancelar e substituir rapidamente os traços

materiais e os valores adquiridos do passado.

Nessa perspectiva, a importância da preservação da memória

coloca-se como meio de garantir não só a própria identidade do

indivíduo, mas também a sua ligação a uma coletividade atual e

histórica, bem como a noção de “pertença”4 que configura o

enraizamento não apenas no tempo, mas também no espaço.

A conservação corresponde então à resistência ao esquecimento dos

registros do passado, assim como ao cancelamento das idéias e

princípios que acompanharam a sua criação e desenvolvimento.

Entende-se, portanto, que se verifica na cultura contemporânea,

como decorrência da constatação de que é impossível preservar

absolutamente todos os elementos do passado5 a afirmação de uma

espécie de programa de esquecimento seletivo, metódico e

fundamentado, em um contexto em que passado, presente e futuro

tendem a se conciliar, sem primazia ou prejuízo de um ou de outro,

como nunca se deu em outros tempos.

No que concerne às divergências entre os especialistas em restauro

e os arquitetos ligados ao projeto de arquitetura, é possível observar

algumas questões recorrentes. Uma delas é a percepção de que

prevalece entre os arquitetos envolvidos com a experiência de

projeto, não só o descontentamento ao verem limitadas suas

possibilidades de invenção, mas também a relutância em confrontar

seus critérios de intervenção com as posições formuladas no âmbito

da restauração.

4 Nos termos empregados por Ulpiano Bezerra de Menezes, conforme depoimento

incluído em apêndice da Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge initulada O

espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. (FAUUSP,

1999). O termo corresponde ao vocábulo appartenenza do idioma italiano. 5 Entre outros autores, Paul Ricoeur na obra A memória, a história, o esquecimento.

São Paulo: Unicamp, 2007 trata desse tema.

9

A saída entrevista para esse impasse é, portanto, explorar a

possibilidade de estabelecer relações entre essas experiências

conduzidas dentro de cada um desses campos de atuação. Por esse

motivo, o estudo concentra-se na atuação de arquitetos

contemporâneos que tenham optado pela mediação dos critérios de

projeto com a análise das preexistências e da cidade histórica,

procedimentos tidos como verdadeiros motes de criação.

Certamente, não interessa aqui optar pela análise daquelas

intervenções que permanecem no terreno do empirismo ou da

arbitrariedade e que refutam qualquer diálogo com a reflexão o

domínio do restauro.

A pesquisa adota uma abordagem histórica e estabelece como

recorte temporal o enfoque de três momentos distintos: o século XIX

como período de formulação das teorias e práticas de restauração;

os anos 1930 como momento em que se acentuam os contrastes

entre a invenção do novo e a conservação do antigo; os anos 1960

como época em que se reconciliam as tendências de criação do

projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio construído.

Os capítulos foram escritos de maneira que cada um se

apresentasse, de certo modo, independente dos demais no que se

refere às notas e referências conceituais. Essa orientação pode ter

acarretado uma certa repetição na abordagem de certos assuntos,

um risco a ser enfrentado, diante do intento de se propiciar

autonomia a cada capítulo.

Assim foi definida a estrutura e a abordagem dos capítulos:

Parte I

1. Metrópole e memória: a formulação dos conceitos ligados

à idéia e à prática da conservação. Capítulo em que se

apresenta o processo de formação das metrópoles pós-

industriais, típico dos séculos XVIII e XIX, como momento

propício para uma nova compreensão da história. A atitude

crítica do indivíduo frente ao seu passado cria uma nítida

separação entre passado e presente, em substituição à

noção de continuidade assegurada pela tradição. O

fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio

10

sociocultural, é analisado naqueles aspectos diretamente

relacionados a novas formas de ativação da memória,

reorganização e releitura dos legados do passado que

acompanham o desenvolvimento dos conceitos e das

práticas de conservação do patrimônio cultural. Busca-se

situar as posturas de figuras-chave no contexto cultural desse

período histórico. Entre os personagens de maior interesse

para essa abordagem estão: 1) Viollet-le-Duc e John Ruskin

como iniciadores do debate relacionado à legitimidade do

restauro, a partir de diferentes posicionamentos frente aos

testemunhos do passado; 2) Camillo Sitte e George-Eugène

Haussmann como urbanistas do final do século XIX a suscitar

a controvérsia urbanismo versus preservacionismo que se

acentua nas primeiras décadas do século XX.

2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição

entre conservação e inovação. Capítulo que aborda a

tensão entre duas posturas contrapostas: 1) a consolidação

das prerrogativas da preservação do patrimônio arquitetônico

por ação de especialistas, com destaque para a atuação de

Gustavo Giovannoni; 2) a afirmação dos postulados do

movimento moderno, tomando-se por referência a

contribuição de Le Corbusier. Os dois documentos

internacionais produzidos nessa época, conhecidos como

“Carta de Atenas”, sinalizam essa polarização das discussões

e a participação dos arquitetos acima citados, na condição de

protagonistas dos debates e da elaboração final dos textos. O

primeiro documento é a Carta de Restauro de Atenas,

elaborada pelo I Congresso Internacional de Arquitetos e

Técnicos de Monumentos Históricos, de 1931. O segundo é a

Carta de Atenas do IV CIAM, Congresso de Arquitetura

Moderna, de 1933. Pretende-se, além de cotejar o conteúdo

desses documentos entre si, situá-los no contexto cultural do

momento em que foram produzidos. Interessa ainda analisar,

em linhas gerais, a especificidade com que se dá a discussão

desses temas no panorama brasileiro, em relação ao cenário

europeu. Nesse sentido, é pertinente assinalar a atuação de

11

Lucio Costa, pelo fato de representar a conciliação de

posições até então tidas como inconciliáveis: a de

conservação das heranças culturais do passado e a de

modernização.

Parte II

1. Os anos 1960: conciliação entre memória e invenção.

Capítulo que trata do momento em que se reconciliam as

tendências de criação do projeto contemporâneo e a

preservação do patrimônio arquitetônico. Analisa-se aqui a

ampliação do conceito de patrimônio e a maior aceitação

acerca da legitimidade da preservação. A Carta de Veneza

(1964) é o documento que sintetiza um novo entendimento

das questões relativas à preservação do patrimônio ao selar o

compromisso entre a arquitetura e o contexto urbano, entre a

cidade histórica e a cidade contemporânea. Uma visão geral

das noções debatidas entre os principais teóricos do restauro

é confrontada com as discussões do panorama arquitetônico

e urbano.

2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio. Capítulo

que analisa as intervenções de Lina Bo Bardi voltadas a

preexistências de interesse cultural, de modo a estabelecer

um confronto entre as referências conceituais presentes em

seus textos e os parâmetros contidos nas teorias do campo do

restauro dos bens culturais e na Carta de Veneza. A produção

de Lina Bo Bardi é aqui vista por sua relevância no panorama

nacional e pela atuação que faz surgir o projeto do novo a

partir de uma complexa urdidura entre erudição e cultura

popular, entre presente e passado.

3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre a

permanência e transformação. Capítulo que enfoca, fora do

âmbito específico da conservação do patrimônio cultural, a

atuação de Aldo Rossi (1931-1997) como uma das relevantes

investigações que atentam para as questões ligadas à

memória evidenciadas na arquitetura da cidade. Nesse

sentido, revela-se pertinente a abordagem acerca do arquiteto

12

pesquisador, alinhado ao “neoracionalismo” da Escola de

Veneza, autor do livro Arquitetura da cidade (1966), que

alcança grande repercussão, seja pela capacidade de revisão

crítica das proposições do movimento moderno, seja pela

relação teórica e operativa que estabelece entre a análise

urbana e o projeto de arquitetura.

Convém ressaltar que tanto as atuações de Lina Bo Bardi, quanto as

de Aldo Rossi manifestam em comum firmes vínculos com a tradição

crítica italiana iniciada por Benedetto Croce e continuada por Giulio

Carlo Argan (1909-1992) e, da mesma forma, dialogam com as

contribuições de Cesare Brandi (1906-1988).

Quanto aos debates da atualidade, da mesma forma que ganha

contornos de senso comum, em tempos recentes, a idéia de

valorização do patrimônio cultural sofre um certo desgaste, em

múltiplos aspectos: a ampliação excessiva de repertório e a

apropriação inadequada de setores da indústria cultural e do turismo

de massa, acabam por privilegiar as questões econômicas, as

estratégias de marketing, relegando a plano secundário o rigor dos

princípios elaborados pela reflexão teórica consolidada.

Nesse sentido, o ambiente das cidades contemporâneas favorece

uma ambigüidade de conceitos que deve ser reconhecida a fim de

evitar a conseqüente confusão de significados e a própria deturpação

dos termos: patrimônio vivo e espetáculo, materialidade autêntica e

simulacro, objeto real e imagem.

Essa imprecisão tende a banalizar as noções de patrimônio

arquitetônico e urbano, assim como as práticas de intervenção.

Desse modo, coloca-se aqui a necessidade de, não apenas rever

conceitos e práticas, mas também indicar os aspectos discutíveis da

ação patrimonial mais recente, à luz das contribuições de autores

como Françoise Choay e Michel Sorkin. A reflexão presente em

Ignasi de Solà Morales interessa pela tangência que estabelece entre

os critérios de projeto arquitetônico e os da restauração. Convém

notar que essas ressalvas indicadas acima se dirigem a uma ação de

mais largo alcance que não tem relação direta com os preceitos

amadurecidos e aceitos hoje pelos especialistas.

13

A partir dessas considerações, podem ser colocadas algumas

questões. Quais os limites que separam a “criatividade” invocada

pelo “restauro crítico” e a “inserção do novo” reivindicada pelo

arquiteto contemporâneo? Se a restauração admite hoje a

estratificação de diferentes temporalidades como camadas de um

devir histórico, incorporando, conforme os preceitos da “conservação

integral”6, acontecimentos fortuitos, acidentais, como dados a serem

considerados para efeito de conservação, por que não admitir então

a continuidade do fluxo do tempo para os bens culturais mediante o

aporte de ações comprometidas com a experiência crítica? Como

avaliar a prática contemporânea do “construir no construído”? Em

que termos essa ação pode ser tida como legítima?

6 As vertentes mais recentes são apresentadas em linhas gerais no capítulo 1, parte

II. Para aprofundamento do tema consultar as obras mencionadas acima de

Giovanni Carbonara e Beatriz M. Kühl.

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15

Metrópole e memória: a origem das práticas de conservação

O panorama geral

A metrópole em sua formação configura um complexo quadro cultural

que aproxima e potencializa fenômenos significativos para a

definição das raízes da problemática moderna do restauro: a criação

da estética como disciplina filosófica e específica, a história da arte

como história do estilo, a difusão dos museus, o surgimento do

urbanismo e da arqueologia como disciplinas autônomas, a

iconoclastia dos sans culottes e a pronta reação das instituições

republicanas francesas, enfim, a crença no progresso científico, junto

à valorização romântica do passado.

Este artigo trata das relações entre o ambiente cultural de formação

das metrópoles e o surgimento das primeiras teorias voltadas à

preservação dos bens culturais. O interesse do estudo é apresentar o

fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio

sociocultural, como um dos elementos fundamentais a desencadear

o processo de reorganização da memória que está implícito no

pensamento do restauro moderno.

O objetivo principal dessa abordagem é recuperar e contextualizar a

origem da construção de idéias que contribuem para constituir o

campo disciplinar do restauro, com base na compreensão de valores

e práticas elaborados a partir do final do século XVIII e durante o

XIX. Retomar esse momento histórico, detendo-se nas premissas

que se apresentam para a formulação do problema da conservação e

do restauro, propicia investigar tanto a semântica dos conceitos

elaborados, quanto a maneira como esses temas ecoam na

atualidade. Não se trata aqui de esgotar o tema, uma vez que já foi

amplamente abordado em inúmeras publicações. Busca-se, isto sim,

sintetizar os aspectos essenciais desse contexto cultural,

aproximando as interpretações do campo específico do restauro

daquelas do campo mais geral da historiografia da arquitetura.

16

A idéia de preservação é aqui reconhecida como fruto da

modernidade, uma noção que nasce no mesmo momento em que o

movimento da arte moderna arrisca seus primeiros passos.

Memória e invenção, nesse contexto, são dados entrelaçados –

ainda que por vezes sejam considerados como opções incompatíveis

entre si – e a cidade é matriz de transformação.

Como se sabe, as expressões do pensamento e as manifestações

artísticas desse período histórico estão intimamente ligadas ao

quadro de transformações profundas da ordem social, econômica e

política que remonta à transição do feudalismo para o capitalismo.

Nesse panorama, o despotismo esclarecido e o iluminismo1 têm

grande relevância: o primeiro por mudar a concepção do Estado, o

segundo por propiciar o desenvolvimento das correntes racionalistas

e empiristas que constituem a base teórica das revoluções política e

industrial.

Paris –“local onde habita a Razão”2, onde se prepara a Enciclopédia

(1751-72) e a Revolução, cidade do Homem Universal – é centro vital

desse quadro e continuará a sê-lo na condição de capital das

vanguardas modernistas, no início do século XX. A capital

indiscutivelmente figura como símbolo do século das Luzes que,

aliás, reúne condições privilegiadas tanto para a difusão do

conhecimento, como para a criação de uma nova consciência

histórica. Trata-se de uma nova mentalidade que privilegia formas

dedutivas de conhecimento como meios adequados para a

compreensão da realidade, em detrimento da intuição, misticismo, fé

ou revelação religiosa, o que concorre de forma definitiva para o

questionamento da tradição.

É o que Marvin Perry3 identifica como afirmação da razão e da

liberdade, nascida no ambiente cosmopolita de Paris, capital do

Iluminismo, e que se difunde às principais cidades da Europa

ocidental e da América do Norte. Assim explica o autor:

1 Conforme Franco Venturi em Utopia e riforma nell’illuminismo, Turim: Einaudi,

1970, p.151. 2 Essa expressão comparece em AZEVEDO, Ricardo M. de. Metrópole e abstração.

São Paulo: Perspectiva, 2006, p.10, referindo-se ao discurso de Cloots na

Assembléia de Paris. 3 Em: Civilização ocidental. Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 1985,

p. 296.

17

“Newton descobrira leis universais que explicavam os

fenômenos físicos. Os ‘philosophes’ então indagavam: não

haveria também regras gerais que se aplicassem ao

comportamento humano e às instituições sociais? Seria

possível criar uma ‘ciência do homem’ que correspondesse

à ciência da natureza de Newton? (...) Ao defenderem a

metodologia científica, os ‘philosophes’ afirmaram o respeito

pela capacidade da mente e pela autonomia humana (...)

rejeitando a intervenção do clero e da autoridade

principesca, ela (a mente) conta com a sua própria

habilidade de pensar e confia nas evidências de sua própria

experiência.”

Em tempos mais distantes predomina a prática generalizada de se

dispor das obras do passado para adaptá-las sem restrições às

necessidades do presente. Contribui para esse comportamento

usual, a ausência de uma demarcação mais evidente entre passado,

presente e futuro. [1] [2]

[1] O antigo teatro de Marcello transformado em Palazzo Orsini por Baldassare Peruzzi no séc.

XVI.

[2] A igreja de San Lorenzo in Miranda, inserida no pórtico remanescente de um antigo templo

romano, projeto de Orazio Torriani, 1602. Fonte: Dell’Orto, 1982, p. 52 e 31.

18

Se até então persistia uma noção de continuidade no transcurso do

tempo, o pensamento iluminista contribui efetivamente para

contrapor-se a essa condição. Ao negar a autoridade incontestável

da tradição e buscar a aplicação do método científico ao universo

humano, propicia uma nítida separação entre passado e presente. É

justamente a manifestação de uma atitude crítica do homem frente

ao seu passado a configurar essa nítida separação.

Passado e presente: dilema entre divisão e conexão

Se, por um lado, a observação distanciada de sua vivência permitiu

ao indivíduo uma condição mais objetiva de análise histórica, por

outro, a continuidade entre seu passado e o presente, antes

propiciada pela tradição, acaba por ser restabelecida de uma nova

forma. Por isso a necessidade de se instaurar outra espécie de ponte

entre o ontem e o devir, agora baseada no sentimento de que o

passado continuava a viver através da nostalgia4.

Sob essa perspectiva, o sentimento romântico de apego ao passado,

que concilia historicismo e nacionalismo – e conduzirá aos diversos

revivals estilísticos do século XIX – corresponde a um meio de

preencher o hiato criado entre passado e presente.

É característica marcante dos tempos de mudanças não se encontrar

uma congruência rigorosa de idéias: em meio às significativas

transformações técnicas e sociais, observam-se também importantes

focos de resistência às mudanças. Se há uma vertente racionalista

que tende a cultivar o mito do desenvolvimento linear do progresso,

mantendo sua atenção voltada a um futuro promissor para a

humanidade, há, por outro lado, uma corrente romântica mais

interessada em reatar os vínculos com o passado.

A produção cultural dos séculos XVIII e XIX, portanto, traz em seu

bojo essa oscilação entre o espírito racionalista, como expressão de

um conhecimento universal, e o espírito romântico, enquanto

manifestação de sentimentos nacionalistas e estímulos individuais.

4 Paul Philippot em artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee guida. Em revista

Strumenti 17, 1998, p. 43.

19

A propósito de contraposição de idéias, Giulio Carlo Argan5, ao tratar

das manifestações artísticas que antecedem a produção moderna do

início do século XX, refere-se a dois termos recorrentes: “clássico” e

“romântico”. Designam, segundo o autor, duas visões de mundo que

estabelecem entre si uma relação dialética e estão presentes na

origem da cultura artística moderna. O “clássico”, explica Argan, está

ligado à arte do mundo antigo greco-romano, assim como à cultura

humanística do século XV e XVI; o “romântico” associado à arte

cristã da Idade Média, especialmente às manifestações românicas e

góticas.

Ao discorrer sobre essas diferentes concepções de arte, Argan

retoma Wilhelm Wörringer (1881-1965)6, segundo o qual cada uma

dessas visões está relacionada a uma condição cultural e geográfica

que sintetiza a relação entre o homem e a natureza: a clássica

reporta ao mundo mediterrâneo, onde essa relação é clara e positiva;

enquanto a romântica alude ao mundo nórdico, onde a natureza é

força misteriosa e muitas vezes hostil.

Cada uma dessas posições vai ser investigada por outros autores,

sob pontos de vista diversos, a partir da criação do campo disciplinar

da estética. Esse é, sem dúvida, o momento de teorização da arte

sob a forma de uma filosofia da arte, a estética, em substituição ao

viés tratadista que vigorou desde o Renascimento. Como observa

Argan7:

“Teorizar (sobre) períodos históricos significa transpô-los da

ordem dos fatos àquela das idéias ou dos modelos: é de

fato a partir da metade do século XVIII que aos tratados ou

às preceptivas do Renascimento e do Barroco substitui-se, a

um mais elevado nível teorético, uma filosofia da arte

(estética).”

O autor esclarece que inicialmente o tratado da arte atendia ao

pressuposto da arte universal, como norma a ser colocada em

prática, um raciocínio pertinente ao pensamento clássico. Nos novos

5 Em: L’Arte moderna. Florença: Sansoni, 1988, p. 3.

6 Em obra intitulada Abstração e Natureza.

7 Op. cit., p.3. (tradução da autora)

20

tempos em que a arte não é mais considerada um meio de

conhecimento da realidade, nem tampouco um meio de

transcendência religiosa, mas sim um modo de ser do espírito

humano, a investigação teórica toma novos rumos. Enquanto a

noção de arte calcada no pensamento antigo pressupõe o dualismo

entre o modelo e a imitação, recorrendo à mimesis, a concepção

romântica invoca a poiesis, ou seja, o próprio fazer artístico, centrado

agora na intencionalidade do artista, na criação propriamente dita.

Aqui está, segundo Argan, a origem da autonomia da arte, própria do

movimento moderno. Refere-se à compreensão da arte como uma

experiência primária que não tem outra finalidade senão a própria

criação.

Ao discorrer sobre o pensamento romântico, há autores, entre os

quais Azevedo, que fazem uso do plural – ‘romantismos’ – a enfatizar

a ausência de um programa coeso e unitário para as várias

manifestações artísticas relacionadas a esse universo peculiar. De

todo modo, a historiografia da arte em geral destaca a predominância

de um sentimento que se evidencia na confluência de correntes que

renegam as preceptivas artísticas da tradição clássica, em favor de

uma valorização da capacidade ilimitada do gênio.

O interesse pela memória

A memória e sua prática interessam tanto aos românticos quanto aos

racionalistas, se é que podem ser identificados em posições

rigorosamente contrapostas. Para os românticos, a memória é motivo

de encantamento. Conforme explica Le Goff, “o romantismo

reencontra, de um modo mais literário que dogmático, a sedução

pela memória”8. Para exemplificar, recorre a Michelet que, na

tradução da obra de Vico, De antiquissima italorum sapientia (1710),

encontra a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia.

Fantasia e invenção são atributos indissociáveis da produção de

Giovanni Battista Piranesi (1720-78), figura de destaque no cenário

cultural da época. Célebre por suas gravuras, entre as quais as

Vedute di Roma (Vistas de Roma), visões panorâmicas das ruínas

8 LE GOFF J. Memória-História. Enciclopédia Einaudi. Vol. I Lisboa: Imprensa

Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 37.

21

romanas, estimulou a imaginação dos seus contemporâneos e

inspirou com suas reconstruções fantásticas os adeptos das

concepções neoclássicas e românticas. Os seus Carceri d’invenzioni

(Projetos de prisões imaginárias) [3] [4] prefiguram, segundo Scully9,

“o fim do velho mundo humanista, centrado no homem, com seus

valores fixos – é o começo da era das massas da história moderna,

com seus ambientes enormes e continuidades precipitadas.”

Imagens de espaços ameaçadores, continuam a ser fonte de

inspiração de vários autores do século XX, entre os quais o cineasta

Serge Eisenstein e o dramaturgo Peter Weiss 10

.

Para os racionalistas, a memória é importante instrumento de

conscientização coletiva, não só de rememoração e comemoração,

mas também de reordenação e reedição de situações e informações

passadas. Nesse sentido, a função da memória não é

exclusivamente de celebração, mas principalmente de releitura e

reinterpretação dos acontecimentos.

9 Em Arquitetura moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 19.

10 Em THOENES, C. Et al. Teoria da arquitectura. Do renascimento até nossos dias.

Lisboa: Taschen, 2003, p. 164, comenta-se a respeito da evocação da obra de

Piranesi presente em autores contemporâneos.

[3] [4] Projetos de Prisões Imaginárias, 1761, G. B. Piranesi. Fonte: Argan, 1988, p. 392.

22

Por essa razão na França, após a Revolução, são criados os

arquivos nacionais que reúnem os documentos da memória da

nação. Criam-se também instituições responsáveis pela formação de

especialistas aptos a organizar e fazer funcionar esses arquivos. O

mesmo acontece com os museus, como se observa na análise a

seguir.

Ganha assim importância, no contexto das principais metrópoles, a

ação de historiadores, colecionadores, antiquários, arqueólogos,

além de literatos, pintores e arquitetos que se dedicam à

investigação, apreciação e conservação de obras de arte,

documentos e ruínas. São intelectuais estimulados pelo projeto de

democratização do conhecimento que acompanha o iluminismo,

empenhados em atividades de diversa natureza, mas que contribuem

em conjunto para fortalecer a ligação entre memória e identidade e,

por extensão, a noção de preservação.

Memória e coletânea

Nessa condição de difusão do saber, ou dos “saberes”, com o

desenvolvimento de áreas específicas do conhecimento, a

arqueologia afirma-se pouco a pouco como disciplina autônoma.

Ciência que, a partir das evidências materiais criadas pelos homens,

investiga os costumes e culturas dos antepassados, a arqueologia se

estabelece como especialização do estudo da história. Sua

consolidação requer a adoção de métodos sistemáticos de

levantamento e classificação, além dos processos de coleta e

escavação.

O interesse pelos vestígios específicos da antigüidade clássica se

intensifica após os trabalhos de escavação da cidade de Paestum

(1746), na Magna Grécia, assim como das antigas cidades romanas:

Pompéia (1748) e Herculano (1755). A descoberta desses sítios –

que permaneceram enterrados por muitos séculos – além de causar

grande comoção, foi um dos fatos decisivos para confirmar o sentido

de separação entre passado e presente. Mostrava-se evidente a

descontinuidade entre o momento do sepultamento e o da

descoberta: Paestum vinha desbravada; Pompéia e Herculano

voltavam, literalmente, à luz.

23

A propósito da arqueologia, convém destacar o papel do historiador e

arqueólogo Johann Joachim Winckelmann (1717-68), por estabelecer

em sua obra “História da arte na Antigüidade” (1764) as bases da

história da arte como história do estilo, e exercer forte influência

sobre o desenvolvimento da arquitetura neoclássica11

.

São, portanto, inúmeros os fatores a mobilizar o interesse e a

institucionalizar a conservação material sistemática dos bens

culturais. A reflexão sobre a arte, as descobertas arqueológicas, a

criação dos arquivos e dos museus12

destinados ao grande público,

são os agentes mais significativos a interferir nesse processo.

O museu, importante instituição desse contexto cultural, como

observa Françoise Choay13

, começa a aparecer na sua acepção

atual, durante o século XVIII, seja pela ampliação e transformação

dos espaços privados de coleção em espaços abertos à visitação

pública, seja pela transferência de bens da Coroa e do Clero para a

nação, em um procedimento de expropriação comum na França pós-

revolucionária.

Memória, nomenclatura e significados

Museu e Encyclopédie têm em comum um propósito didático. Nas

páginas de introdução do Dictionnaire raisonné des sciences, des

arts e des métiers, conforme aponta Paolo Rossi, D’Alembert enfatiza

a importância “de um trabalho continuamente iluminado pelo

conhecimento dos princípios teóricos que lhe servem de base, e de

uma pesquisa teórica capaz de ceder lugar a aplicações práticas e

de se reconverter em obras (...)”. Observa-se que os enciclopedistas

quando “se voltavam aos artesãos da França, interrogando técnicos

e operários e, a seguir, tentando definir com exatidão os termos,

métodos e procedimentos próprios das várias artes, para inseri-los

11

Paul Phillipot em artigo: Storia e attualità del restauro. Em: Strumenti 17, 1998, p.

101 12

Idem, p. 89. Museus criados no séc. XVIII: British Museum, Museo Pio Clementino

em Roma e Louvre em Paris. 13

Em Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001,

especialmente nas páginas.62 e 97, a autora tece considerações sobre a criação

dos museus na França.

24

num ‘corpus’ orgânico e sistemático de conhecimento” 14, buscavam

estabelecer um vínculo estreito entre teoria e prática.

Confirmação dessa preocupação em promover os fatos da prática,

relegados tradicionalmente a segundo plano, prossegue Rossi, é o

próprio verbete “Art” da Encyclopédie, em que se critica a distinção

tradicional entre artes liberais e artes mecânicas, por reforçar o

preconceito de que a atenção aos objetos sensíveis e materiais

constitui uma renúncia à dignidade do espírito humano.

Diretamente ligada ao tema deste estudo, a ampliação da

terminologia referente à análise histórica ocorre impulsionada

justamente pela influência do espírito da Enciclopédia. Novos

significados são incorporados ao vocabulário corrente: documento,

monumento, patrimônio, preservação, restauro. São vocábulos cujo

emprego freqüente remete aos novos métodos da memória coletiva e

do estudo da história, um reflexo das preocupações do homem de

manter contato vivo com as obras produzidas pela cultura do

passado.

Documento e monumento têm primazia entre os materiais da

memória coletiva e da história15

. O vocábulo latino documentum,

derivado de docere, ‘ensinar’, com o tempo adquire o sentido de

‘prova documental’ e, a partir do século XIX, o de ‘testemunho

histórico’. Já o termo “monumento”, do latim monumentum, derivado

de monere, ‘lembrar’, ‘rememorar’, em origem indica aquilo que traz à

lembrança acontecimentos, ritos, crenças. Logo, genericamente o

monumentum é um ícone do passado, enquanto obra representativa

construída para fins simbólicos e não para atender a usos

específicos. Desde a antigüidade romana, o monumento tende a

dividir-se em dois tipos: uma obra comemorativa ou um monumento

funerário. Veyne16

ressalta a usual manipulação da memória coletiva

exercida pelos imperadores romanos e a conseqüente reação do

senado contra a tirania imperial, ao criar um expediente que permite

cancelar o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e

das inscrições monumentais, a damnatio memoriae. Ao poder da

14

Em Os filósofos e as máquinas.São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 112. 15

A respeito da importância e da variação de significados, consultar LE GOFF, op.

cit., pp. 95-104. 16

Apud LE GOFF, op. cit., p. 37.

25

memória contrapõe-se a destruição da memória, mecanismo

empregado por diversas vezes, no século XX, em circunstâncias

ligadas a regimes totalitários. Com o transcurso do tempo, o

monumento não só consolida o sentido de obra grandiosa construída

com o objetivo de contribuir para a perpetuação memorialística de

uma pessoa ou acontecimento relevante na história de uma

comunidade, mas incorpora também uma conotação estética.

O “monumento histórico” do século XIX, contemporâneo à nomeação

da Comissão dos Monumentos Históricos da França, em 1837, inclui

três categorias de edifícios: os remanescentes da antigüidade, os

edifícios religiosos medievais e alguns castelos. Trata-se de uma

classificação formulada para fins de inventário e tutela de bens que

constituíram alvos de ataques da população contra os símbolos do

Ancien Régime.

De início, o monumento associado a um passado remoto, ao status

de raridade e suntuosidade, aos poucos vai adquirindo um sentido

mais abrangente, equiparável à conotação de outro vocábulo

também aplicado ao universo da conservação da memória:

patrimônio.

Etimologicamente o sentido do termo ‘patrimônio’17

, proveniente do

latim patrimonium, corresponde ao conjunto de bens pertencente ao

pai, o pater. O significado consolida-se como conjunto de bens

transmitidos dos pais aos filhos por herança. Com o tempo, seu

emprego não se limita às estruturas familiares, mas passa a ser

aplicado às empresas e instituições públicas. Entre os séculos XVIII

e XIX, o termo ganha uma nova compreensão: “patrimônio histórico”.

Assim explica Choay:

“A expressão designa um bem destinado ao usufruto de

uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias,

constituído pela acumulação contínua de uma diversidade

de objetos que se congregam por seu passado comum:

obras e obras-primas das belas-artes e das artes-aplicadas,

17

COLONNA, B. Dizionario etimologico della lingua italiana. Gênova: Newton &

Compton, 1997, p. 283.

26

trabalhos e produtos de todos os saberes e ‘savoir-faire’ dos

seres humanos.”18

Considerado suporte da memória, fonte da história dos homens,

portador de significado, o patrimônio - para se constituir como tal -

pressupõe o reconhecimento de valor, a adoção de critérios de

seleção, e, implicitamente, a importância da conservação. Sob esse

aspecto, só a preservação possibilitará o usufruto do legado recebido

do passado e a sua conseqüente transmissão às gerações futuras.

Memória, preservação e restauro

Pode-se afirmar que antes da revolução, na França, a idéia de

conservação nasce a partir da visão crítica da história. No período

sucessivo, entre 1790 e 1820, no entanto, a preservação passa a ser

uma ação necessária e imprescindível para evitar o cancelamento do

passado. Trata-se de impedir a destruição provocada pela onda de

vandalismo por parte da população perigosa, a turba19, que atinge os

monumentos considerados símbolos do antigo regime e de suas

classes dominantes: o clero e a nobreza.

Processos históricos emblemáticos, a Revolução Francesa e a

Revolução Industrial, da mesma forma que apontam para o futuro,

para transformações de ordem prática e conceitual, reconstroem o

vínculo com o passado.

Na Inglaterra, dois aspectos contribuem especialmente para

despertar o interesse pela conservação: a indignação provocada pela

lembrança do vandalismo religioso da Reforma; a reação às rápidas

e radicais transformações causadas pela revolução industrial, seja na

forma de produção artística, seja no ambiente urbano.

França, Inglaterra e Itália, não por acaso, são palco dos primeiros

debates e ações voltadas à preservação do patrimônio cultural. As

condutas são diferenciadas pela própria condição de cada país:

França e Inglaterra envolvidas com os respectivos processos

18

CHOAY, op. cit., p. 11. 19

Expressão corrente com que se designa a multidão exaltada na época da

Revolução. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.7.

27

históricos revolucionários e a Itália diretamente relacionada à

afirmação da arqueologia.

As teorias formuladas pelos pioneiros – o francês Eugène Viollet-le-

Duc e o inglês John Ruskin – apesar de assumirem posições

antagônicas, têm uma origem comum: a correlação com o espírito

nostálgico dominante no período. A posição dos italianos, por sua

vez, reflete a conduta sistemática que acompanha os trabalhos já

mencionados de escavação arqueológica.

Viollet-le-Duc (1814-1879), historiador, teórico e restaurador, atua

num momento em que a ação do Estado francês faz-se necessária

para impedir a continuidade da escalada de vandalismo que se

desenvolve após a Revolução Francesa.

Após integrar uma comissão que elaborou um levantamento

criterioso das edificações de interesse patrimonial e das condições

de conservação, passou a participar das primeiras iniciativas de

restauração, entre as quais, as catedrais de Paris, Chartres e

Amiens. Estabeleceu então uma conduta de intervenção, após

dedicar-se atentamente ao estudo das técnicas construtivas,

especialmente das catedrais góticas. [5] [6]

Ao propor a recuperação dos edifícios, reporta-se ao conceito de

estilo, entendido como uma realidade histórico-formal unitária e

coerente circunscrita no tempo e bem definida nas suas

características físicas. O estilo seria uma expressão direta de uma

época, de um momento histórico, o que autorizaria a hipótese da

reconstrução de partes não mais existentes. Com base nesse

conceito, a posição de Viollet-le-Duc, que se torna conhecida como

“restauro estilístico”, autoriza a restabelecer o estado primitivo

unitário do edifício. Em outras palavras, legitima as livres

experiências de reconstrução e de livre composição em nome da

exaltação de uma hipotética unidade estilística.

No Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XI au XVI

siècle (editado entre 1854 e 1868), de Viollet-le-Duc, assim diz o

verbete ‘restauração’20: “restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-

20

O verbete foi traduzido para o português por Beatriz M. Kühl e publicado em 2000,

na coleção Artes&Ofícios da editora Ateliê Editorial, que têm reunido relevantes

28

lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode

não ter existido nunca em um dado momento.” 21

Giovanni Carbonara22

comenta que a postura de Viollet-le-Duc

parece mudar com a continuidade de suas ações. Passa de uma

intervenção mais cautelosa, de caráter conservativo, para uma

atuação mais livre e radical de recomposição e reconstrução. Como

se fosse possível inferir a ocorrência de uma maior liberdade de

ação, a partir da prática mais intensa.

contribuições de autores estrangeiros, importantes alicerces das teorias da

conservação. 21

Em KÜHL, B. M. Apresentação e tradução.Restauração. E. E. Viollet-le-Duc.

Cotia: Ateliê Editorial, 2000, p. 17. 22

Arquiteto e teórico italiano, autor de várias publicações sobre o tema da

conservação, é atualmente diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il

[5] A catedral ideal de Viollet-le-Duc.

[6] Corte do coro da Catedral de Beauvais. Desenho de Viollet-le-Duc interessado em investigar

as razões do desmoronamento em 1284. Fonte: Thoenes et. al., 2003, p. 347 e 348.

29

Enquanto, na França, Viollet-le-Duc defendia o restauro estilístico,

Ruskin (1819-1900), figura notável da Inglaterra vitoriana, posiciona-

se contra aquela conduta. Sustenta o absoluto e religioso respeito ao

monumento, traduzido por uma admiração contemplativa, como

única forma possível de reverência aos objetos dos antepassados

advindos ao presente.

Voltado para uma posição que concilia a experiência estética e

moral, Ruskin23

concebe a exigência de preservação da produção

humana a partir de uma visão bastante abrangente que coincide com

“a idéia de abnegação por amor da posteridade” e que, ao mesmo

tempo, renega a ação de restauro:

“Nem o público, nem aqueles a quem é confiada a tutela dos

monumentos púbicos compreendem o verdadeiro significado

da palavra restauro. Essa significa a mais total destruição a

que um edifício possa submeter-se: uma destruição que ao

final não permanece nem mesmo um resto autêntico a ser

recolhido, uma destruição acompanhada da falsa descrição

da coisa que destruímos (falso entendido aqui como

paródia). Não enganemos a nós mesmos em uma questão

tão importante; é impossível em arquitetura restaurar, como

é impossível ressuscitar os mortos, por mais grandes e

belos que tenham sido.” 24

Tal concepção deriva da atitude literária que confere ao passado e às

obras antigas, um valor exclusivo frente ao presente. Ao reconhecer

a singularidade e a autenticidade (hinc et nunc) como valores

fundamentais da preexistência de caráter monumental, Ruskin

desautoriza não apenas a reconstrução nos moldes do restauro

estilístico, mas toda e qualquer intervenção do homem. [7]

Na Itália, por outro lado, as descobertas dos sítios arqueológicos

anteriormente mencionados foram decisivas para o início de uma

atuação prática criteriosa de conservação, reconstituição e

Restauro dei Monumenti da Universidade La Sapienza de Roma. A afirmação

comparece em Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti,1997, p. 141. 23

Em ensaio intitulado “The seven Lampsof architecture” (As sete lâmpadas da

arquitetura) de 1849. As referências aqui mencionadas foram extraídas da

publicação italiana da obra de Ruskin, Le sette lampade dell’architettura. Milão: Jaca

Book, 1997 (tradução da autora). 24

Idem, p. 226.

30

consolidação dos componentes redescobertos. O trabalho

desenvolvido contribui para a conduta sistemática de inventário,

coleção e classificação das peças. Além disso, realiza-se a

anastilose e a recomposição das partes originais, desde que se

diferenciem os elementos preexistentes das partes de recomposição.

Esse procedimento, chamado restauro arqueológico, tem como

principais protagonistas Raffaele Stern e Giuseppe Valadier. [8] [9]

Na transição do século XIX para o XX, Camillo Boito25

(1835-1914)

põe fim à aporia criada pelas posições de Viollet-le-Duc e Ruskin, ao

colher contribuições de cada um deles, para compor uma síntese

mais equilibrada.

25

Arquiteto, crítico, professor e restaurador italiano. Formulou em linhas gerais o

conceito de “restauro científico” posteriormente aprofundado por Gustavo

Giovannoni. A esse respeito, consultar a obra Os restauradores. Conferência feita na Exposição de Turim de 1884. Trad. Beatriz M. Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.

[7] Colunatas do claustro Catedral de Ferrara. Um dos quatorze desenhos presentes no livro As sete lâmpadas da arquitetura (4ª Ed. Londres, 1894), elaborados por Ruskin para ilustrar a

riqueza formal da arquitetura por ele admirada. Fonte: Thoenes, et. al., 2003, p. 469.

31

A partir de Ruskin, considera o reconhecimento e respeito à

autenticidade e à materialidade de que é feita a obra, o que implica

em dois procedimentos fundamentais: a diferenciação das partes

recuperadas em relação às partes originais e a preservação dos

acréscimos estratificados ao longo do tempo.

Em relação à posição de Viollet-le-Duc, opõe-se à reconstrução de

partes desaparecidas com base no conceito de estilo, por defender a

singularidade de cada obra; por outro lado, acolhe sua conduta de

valorizar o presente frente ao passado, legitimando o restauro, em

oposição à postura anti-intervencionista de Ruskin.

Uma concepção moderna de restauro

Uma oposição de idéias de natureza diferente daquela observada

entre Viollet-le-Duc e Ruskin pode ser identificada ao analisarem-se

as posturas de dois urbanistas do século XIX: Camillo Sitte e

George-Eugène Haussmann.

[8] Arco de Tito no Fórum Romano em gravura de Piranesi que ilustra a condição precedente ao

restauro. Fonte: Carbonara, 1997, ilustração n. 36.

[9] Foto do Arco de Tito na configuração após os trabalhos de recomposição realizados por

Valadier (1818-34). Um exemplo de diferenciação de materiais e formas simplificadas adotados

nas extremidades, em comparação com os elementos originais situados na parte central. Fonte:

Dell’Orto, 1982, p. 30

32

Essas posições delineiam um primeiro confronto entre as duas

visões contrastantes que irão reermergir no contexto de consolidação

do movimento moderno, a partir da década de 1930: de um lado, a

observação atenta do patrimônio arquitetônico construído no

passado, associada à apreciação estética da paisagem urbana; de

outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto, a

exigência de transformação das cidades antigas, pré-industriais.

O arquiteto e urbanista austríaco Camillo Sitte (1843-1903) reflete

uma visão culturalista ao criticar a rigidez e simetria dos projetos

urbanísticos contemporâneos e destacar as qualidades das cidades

antigas. No outro extremo, Georges-Eugène Haussmann (1809-91),

responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de

Paris, expressa o ideal de renovação do cenário urbano.

O concomitante surgimento do urbanismo, como disciplina

autônoma, fortalece a convicção de que é necessário elaborar um

novo modelo de cidade mais eficiente e mais saudável, segundo

parâmetros daquele momento histórico: um novo desenho e uma

nova escala com condições satisfatórias de circulação do tráfego das

mercadorias, do transporte público de massa e, ao mesmo tempo, a

proposição de uma cidade dotada de equipamentos coletivos e de

infra-estrutura adequada aos novos padrões sanitários.

Como se sabe, Georges-Eugène Haussmann é conhecido como um

dos mais emblemáticos e polêmicos protagonistas dessa tendência

de renovação das cidades. Prefeito do Departamento do Senna em

Paris, entre 1853 e 1870, é encarregado por Napoleão III de

implantar as diretrizes de urbanismo fixadas por Henrique IV e

desenvolvidas por Luís XIV, através do chamado “Plano dos

Artistas”, criado em 1797.26

Os principais elementos desse plano urbanístico são os boulevards

amplos e retilíneos que confluem para os round-points estelares.

Dois aspectos principais orientam esse redesenho da malha urbana

parisiense. Primeiramente aqueles ligados à ordem pública, ou seja,

impedir a formação de barricadas, além de conter as revoltas

26

PEVSNER et. al. Dizionario di architettura. Turim: Einaudi, 1992, p. 306.

33

populares27

. Em segundo lugar os de natureza técnica, ditados pelas

necessidades de melhorar as condições de higiene – principalmente

quanto à iluminação natural e ventilação dos edifícios – e de

circulação do tráfego nas áreas centrais. [10] [11]

A postura de Haussmann pontua, portanto, um viés tecnicista e

higienista que determina a destruição do tecido urbano histórico, para

dar lugar à nova configuração espacial definida pelos largos e longos

boulevards, ladeados por corpos de construção de gabarito

homogêneo e fisionomia uniforme. Cria-se então um conjunto

construído unitário, ao qual se relaciona, em posição de destaque, o

monumento (ou edifício de caráter monumental) que desponta na

perspectiva regular.

27

As revoltas mencionadas referem-se aos eventos ligados à Revolução Francesa,

às rebeliões da população exaltada, a “turba”, que assaltava as ruas e criava as

barricadas, ou seja, obstáculos para a ação da polícia.

[10] Planta do traçado e desapropriações para a abertura da avenida

diante da Ópera de Paris, definida pelo plano de Haussmann,

1876.

[11] Foto da avenida já realizada. Fonte: Gamarra (2008), em

www.bifurcaciones.007.Gamarra.htm. Acesso em 03/10/08.

34

As rotatórias de circulação dão origem a pontos focais de conjunção

de várias vias em disposição radial que favorecem a condição de

isolamento e de destaque do monumento situado na ilha central.

As gravuras do artista Charles Meyron retratam Paris nas vésperas

das demolições promovidas por Haussmann. Essas imagens foram

admiradas por Baudelaire28

pelo cunho de documentação que

contêm e pela capacidade de representar o caráter fugaz daqueles

tempos de modernidade.

Walter Benjamin29

diz a respeito dessa produção que, ao realizar

esses registros, o artista transforma casas comuns em monumentos.

Observa-se aqui não só a compreensão de que indiscutivelmente as

transformações comportam significativos cancelamentos, mas,

sobretudo, a percepção do poder de evocação do passado contido

na arquitetura do cotidiano. [12] [13]

Camillo Sitte colabora para concretizar a compreensão da cidade

como conjunto orgânico detentor de um forte caráter artístico,

impossível de ser reduzido a episódios isolados. Diretor da Escola de

Salisburg e posteriormente da de Viena, obtém notoriedade com a

obra “Der Städtebau nach seinen künstlerischen grundsätzen” (A

reforma urbana para sua valorização artística), 1889, um ensaio

sobre a imagem e o desenho urbanos. Com a ajuda de vários

diagramas, o autor analisa espaços urbanos abertos e destaca os

efeitos positivos e atraentes obtidos pela irregularidade dos tecidos

urbanos. Sitte observa a riqueza da composição mais livre e irregular

dos traçados das cidades históricas. Reconhece, portanto, na cidade

antiga, a dignidade de objeto histórico que de um lado inspira

reverência, e de outro instiga a investigação. Daí a valorização da

sua obra pelos teóricos da preservação e restauro, pois passa a ser

referência importante e uma das bases para a elaboração do

conceito de patrimônio que se amplia do edifício ao território urbano.

28

Apud GAMARRA, G. "Benjamín y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em

bifurcaciones [online]. n. 7, 2008. 29

Idem. Esse texto cita Benjamin ao discorrer sobre a relação entre o plano

urbanístico de Haussmann e os mecanismos de controle ligados à repressão das

revoltas populares. Sua obra inaugura uma rica abordagem sobre Paris do século

XIX e a cultura cosmopolita das metrópoles, sobre os instrumentos de controle e os

comportamentos de desvio às regras estabelecidas.

35

Colocar lado a lado as visões de Sitte e Haussmann permite

identificar claramente os dois posicionamentos antagônicos contidos

em suas propostas: um procedimento de análise e reconhecimento

favorável à valorização de uma memória materializada nas formas e

proporções das cidades pré-industriais; uma conduta de valorização

de um novo modelo estético para a cidade pós-industrial, apoiado no

tecnicismo e higienismo que concorrem, sobretudo, para a eficiente

circulação do tráfego e a afirmação de novas normas sanitárias.

Cabe aqui destacar que a posição de Sitte, como aponta Françoise

Choay, reflete a plena consciência de que essas cidades do passado

estão fadadas ao desaparecimento, e de conseqüência ao

esquecimento, se não houver uma ação deliberada de resgate

cultural.

[12] Le Petit Pont, Charles Meyron, 1854.

[13] Le Pont Neuf, Charles Meyron, 1854. Fonte: GAMARRA, Garikoitz. "Benjamín y Paris: de

las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008.

<www.bifurcaciones.cl/007/Gamarra.htm>. Acesso 03/10/08.

36

Haussmann, conforme relata Choay, refuta as críticas recebidas por

ter destruído a velha Paris e desafia seus opositores a apontar um

único monumento antigo digno de interesse, ou edifício de valor

artístico, que tenha sido destruído em sua administração. Afirma, em

favor de sua ação, ter demolido exclusivamente, em nome da saúde

pública e do progresso, construções degradadas, ruelas insalubres.

Relembra a autora:

“O próprio Victor Hugo, poeta da Paris medieval, que

escarneceu cruelmente dos largos espaços

haussmannianos e da monotonia das novas avenidas da

capital, nunca critica em seus artigos ou em suas

intervenções na Comissão dos Monumentos Históricos a

transformação geral da malha das velhas cidades (...) ele

limita-se, se for o caso, a propor algum desvio das vias

projetadas, a fim de poupar não a continuidade do conjunto

urbano, mas de um monumento (...)” 30

A partir de Sitte, pode se desenvolver outra compreensão de

patrimônio que incorpora o espaço urbano, superando a seleção

exclusiva dos edifícios de caráter monumental de reconhecido valor

artístico, para considerar a própria morfologia da cidade, o conjunto

construído, suas relações espaciais, seu gabarito, sua fisionomia,

seu traçado.

Uma concepção moderna de restauro

Sabe-se que em tempos remotos os homens intervieram em obras

construídas pelos seus antecessores para adaptá-las à vida e aos

usos do seu tempo. Era o presente que contava e não a

preexistência, raros foram os casos em que as intervenções se

voltavam à conservação de edifícios de épocas precedentes. Os

séculos XV e XVI trouxeram algumas mudanças, dado o interesse e

respeito pela cultura antiga, no entanto, as ações de conservação

ainda eram parciais e esporádicas. [14] [15]

30

CHOAY, op. cit. p. 176.

37

O restauro arquitetônico afirma-se, de fato, como uma concepção

moderna que consiste em um modo novo de considerar e de intervir

sobre os bens do passado.

O austríaco Alois Riegl (1858-1905) representa, no início do século

XX, uma original contribuição para a recondução das primeiras

iniciativas na formulação do conceito de restauro. Uma posição que

se sobrepõe à revisão de Camillo Boito e que assinala, no momento

em que nasce a arte moderna, a transitoriedade dos critérios de

valoração de um objeto material. Diz não haver o valor perene da

obra de arte em si, ao contrário, declara existir, isto sim, um valor

relativo, um valor contemporâneo, de natureza subjetiva conferido

pelo observador moderno.

[14] Interior. Alterações nas decorações dos muros internos foram realizadas por Vanvitelli, em

1749.

[15] Planta com destaque para os recintos do tepidario das Termas de Diocleciano, transformados

na igreja de Santa Maria degli Angeli (1561-68), após intervenção sutil de Michelangelo. Fonte:

Boner, 2002, p.72 e p.74.

38

Historiador e crítico de arte de formação jurídica é encarregado de

elaborar uma reforma técnica e político-administrativa de

salvaguarda dos edifícios históricos. Sua experiência pessoal na

institucionalização da história da arte como disciplina autônoma, em

relação à história geral, o credencia para ocupar-se dessa tarefa.

Estabelece como prioridade a definição de uma nova competência, a

tutela dos monumentos, com base em um valor do antigo, fundado

em uma percepção intuitiva, própria da cultura de massa.

Como destaca Sandro Scarrocchia31

, Riegl distingue diferentes

atribuições de valores calcadas em apreensões psicológicas,

sensoriais. Com isso quer sinalizar que o cidadão da metrópole,

apesar de ignorar o conhecimento aprofundado dos especialistas,

não deixa de manifestar atenção e interesse pelos artefatos

produzidos pelo homem em outros tempos.

Entre as categorias de valor definidas estão: valor de antiguidade,

valor de historicidade, e valor de novidade (resultante da

“Kunstwollen”, vontade artística32). Vale ressaltar que, na visão de

Riegl, essas atribuições de valor não dizem respeito tão somente ao

indivíduo singular, nem exclusivamente aos meios eruditos, mas sim

a uma coletividade, e relaciona-se diretamente com a fruição da

produção artística, em um contexto de cultura de massa.

O ‘valor de antiguidade’ refere-se, portanto, a uma satisfação

psicológica emanada por uma identificação de qualidade dos

edifícios mais antigos, associada à capacidade de sobreviver à ação

do tempo e à erosão da história. Desse modo, indica uma nova

apreensão, ditada não apenas pela observação da forma, do estilo

do passado, mas especialmente por uma apreciação da aparência

consumada da produção humana.

O ‘valor de historicidade’ ou ‘valor histórico’ consiste no fato de

representar um estágio particular do desenvolvimento criativo da

atividade humana.

31

Em artigo intitulado L’autonomia della conservazione in forma di colloquio con Alois Riegl na revista Casabella n.584, p.29-33. 32

Também traduzido por ‘volição da arte’ em nota de esclarecimento sobre o

conceito em Kühl, 2008, p.64.

39

Ao ‘valor de antigüidade’ contrapõe-se o ‘valor de novidade’,

decorrente de uma nova sensibilidade do século XX, o “Kunstwollen”,

vontade artística, que se estabelece em contraposição às noções de

desenvolvimento linear da produção artística calcada na sucessão ou

evolução de estilos.

Importante destacar que Riegl realiza uma rigorosa análise das

razões da conservação, embora não chegue a criar uma nova

normativa para as ações práticas. Sua importância deve-se

essencialmente ao fato de acenar à complexidade do tema e sugerir

inúmeras possibilidades de intervenção, de pertinência relativa, mas

devidamente amparadas por critérios de valores.

Conforme assinala Renato Bonelli33

em uma análise retrospectiva:

“o princípio fundamental do restauro, mantido

constantemente nas bases das doutrinas que se sucederam

no curso do século XIX, é aquele de restituir a obra

arquitetônica ao seu mundo historicamente determinado,

recolocando-a idealmente no ambiente onde surgiu e

considerando as relações com a cultura e o gosto do seu

tempo; e contemporaneamente aquele de operar sobre essa

(obra) para torná-la viva e atual, qual parte válida e

integrante do mundo moderno.”

Estão implícitos nessa reflexão dois aspectos essenciais: o primeiro

é o entendimento de que a atribuição de valor artístico se estabelece

a partir da compreensão das relações entre a obra e a cultura do seu

tempo; o segundo é a consciência de que o restauro é uma ação do

presente, condicionada pela interpretação e releitura da própria obra

a ser submetida a essa intervenção.

A aproximação entre ‘metrópole’ e ‘memória’ permite, em síntese,

identificar uma associação entre as transformações do mundo

moderno e a necessidade de se conservar, ordenar, rever e atualizar

experiências passadas e conhecimentos adquiridos.

33

Renato Bonelli, arquiteto e teórico italiano que, junto com Roberto Pane e

Agnoldomenico Pica, desenvolve nos anos 1940-50 o conceito de “restauro crítico”,

superando o enfoque positivista do chamado “restauro científico”. Em verbete

‘restauro architettonico’ da Enciclopedia Universale dell’Arte, v. XI, 1983, p. 344.

(Tradução da autora). Essa vertente é analisada no capítulo referente à atuação de

Lina Bo Bardi.

40

A ativação da memória, implícita nos movimentos preservacionistas,

nestes tempos de transformações e de aceleração da História, diante

da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma

necessidade premente de reconstrução da própria identidade do

indivíduo no seio da nascente sociedade de massa.

A idéia de patrimônio desponta como elemento de cultura associado

ao seu contexto de produção, através do qual o homem afirma sua

identidade, articula a noção de “si mesmo”, e, ao mesmo tempo,

organiza sua prática social e a representação de sua linguagem

simbólica. O tema do patrimônio construído envolve, portanto, uma

consciência coletiva de apropriação do passado pelo presente e,

necessariamente, a perspectiva de transmissão ao futuro, garantida

pela idéia de preservação.

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42

As Cartas de Atenas

Arquitetura, invenção e memória

“Na verdade, os ambientes construídos pelos homens

guardam, através da sua materialidade, a memória tanto das

idéias referentes ao grupo social, como do sistema de

representações ao nível do indivíduo. Em outros termos é

através da matéria, nas suas diversas formas, que os

indivíduos, pertencentes a grupos sociais, expressam sua

visão de mundo, suas expectativas, sentimentos e

experiências. É na materialização, e através dela, que as idéias

se concretizam, colocando o indivíduo frente a seu tempo

histórico, ou melhor, é através da representação que o

indivíduo comunica socialmente.” 1

Um dos objetivos centrais da ação conservacionista é garantir a

compreensão da memória social impregnada na materialidade das

coisas produzidas pelos homens e a um só tempo afirmar a noção de

identidade e pertencimento dos indivíduos, através da preservação

daquilo que for considerado significativo dentro do vasto repertório de

elementos componentes do patrimônio cultural.

Os temas ‘memória’ e ‘patrimônio cultural’ relacionados entre si

configuram uma consciência coletiva de apropriação do passado pelo

presente e necessariamente uma perspectiva de transmissão ao

futuro, garantida pela idéia de preservação.

Como observa Cesare Brandi (1906-1988)2, em seu livro Teoria da

restauração, o indivíduo que “frui da revelação” do bem cultural de

interesse patrimonial impõe a si próprio o imperativo categórico da

conservação, que se desdobra em diferentes ações, que vão desde o

simples respeito, até a intervenção mais radical, o restauro. O

1 MILET, Vera. A teimosia das pedras. Olinda: Prefeitura de Olinda, 1988, p. 14.

2 Crítico de arte e teórico da restauração, foi diretor do Istituto Centrale del Restauro

di Roma entre os anos de 1939 e 1961, professor de História da Arte da

Universidade de Palermo e da Universidade de Roma, autor da Teoria del restauro (1963).

43

problema da preservação dos bens culturais relaciona-se, portanto, a

um reconhecimento de valor. É este reconhecimento que condiciona

e legitima a ação de conservação. Entre as obras produzidas pelo

homem, selecionam-se aquelas entendidas como portadoras de valor

cultural, de significado artístico, histórico e documental, e das quais,

conseqüentemente, tem-se o interesse de lembrar, manter, transmitir

às próximas gerações. Disso decorre a importância da reflexão que

aproxima as preceptivas artísticas às noções de patrimônio e

conservação cultural. A indagação sobre os critérios de

discernimento do que é “arte” e “não-arte”, sobre a formulação, a

transformação e a dissolução dos preceitos que orientam a produção

e a crítica, é pressuposto necessário para a investigação no campo

da restauração.

Este capítulo analisa os documentos internacionais conhecidos como

“Carta de Atenas”, escritos na década de 1930. Essa denominação

indica pelo menos dois escritos distintos, produzidos por instâncias

diferentes: o primeiro é a Carta de Atenas elaborada pelo 1º

Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos

Históricos em 19313; o segundo é aquele redigido no âmbito do

CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – a bordo

do navio Patris II em 1933.

Desse segundo documento, conhecem-se várias versões4. A primeira

corresponde à ata do IV CIAM, publicada nos Anais Técnicos da

Câmara Técnica de Atenas. A segunda versão foi publicada por Le

Corbusier em 1941, sob o título de “A Carta de Atenas”, em que o

autor acrescenta tópicos e ênfases particulares ao conteúdo do

documento dos Anais. A terceira, de autoria de José-Luis Sert, foi

publicada nos Estados Unidos em 1942, como parte da obra: “Can

Our Cities Survive?”. Há referência ainda a uma quarta versão

publicada em holandês, cujo conteúdo confronta o texto de Le

Corbusier com o da ata do IV Congresso. Entre as várias versões,

este estudo considera o texto produzido por Le Corbusier.

3 Constitui um primeiro documento internacional a reunir deliberações de consenso

entre vários países, referentes aos temas do patrimônio e restauro. 4 A menção a essas várias versões relativas às resoluções do IV CIAM é encontrada

na apresentação da tradução da Carta de Atenas de Le Corbusier para o português,

publicada pela HUCITEC/edusp, s/d.

44

Interessa a esta análise não apenas repercorrer as linhas de

raciocínio de cada uma das Cartas referidas acima, mas também

cotejar os seus conteúdos entre si e relacioná-los, em linhas gerais,

ao pensamento arquitetônico dominante no momento em que os

documentos foram produzidos.

O foco principal do estudo é confrontar as abordagens particulares

de dois segmentos distintos do ambiente arquitetônico atuantes

naquele contexto: de um lado, os arquitetos voltados especificamente

à ação de conservação do patrimônio arquitetônico e urbano e, de

outro, os setores engajados com as propostas de inovação do

chamado Movimento Moderno, tanto no âmbito da arquitetura como

no urbanismo.

Além de estabelecer relações entre as idéias contidas nos

documentos e o contexto cultural do qual são partes indissociáveis a

produção e a crítica arquitetônica, pretende-se apresentar, de modo

sintético, como se situa o ambiente cultural do Brasil, face às

discussões e experiências internacionais daquele momento.

Antecedentes da década de 1930: urbanismo versus

preservacionismo

Como já tratado no capítulo anterior, o século XIX apresenta-se

como marco inicial de um primeiro confronto entre duas posições

contrastantes que irão reermergir justamente no contexto de

produção dos documentos aqui analisados:

• de um lado a atenção à qualidade da paisagem da cidade

pré-industrial que constitui a base para a formulação do

conceito de patrimônio urbano;

• de outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto,

a exigência de transformação das cidades antigas,

sinalizando a prioridade da construção da nova cidade

moderna em relação à possibilidade de preservação do

legado do passado.

Cabe aqui relembrar a postura de duas figuras-chave a conduzir as

discussões e propostas urbanísticas desenvolvidas nesse período e

que, portanto, sintetizam as duas posições acima mencionadas:

45

Camillo Sitte, crítico da rigidez e simetria dos projetos urbanísticos

contemporâneos, reflete uma visão culturalista que destaca as

qualidades das cidades antigas; e Georges-Eugène Haussmann,

responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de

Paris.

Conforme relato do primeiro capítulo, sabe-se que em meados do

século XIX, assistiu-se ainda à formulação da noção do patrimônio

histórico e à condução de ações sistemáticas ligadas à conservação

dos testemunhos do passado. Convém observar que mesmo no

interior da cultura preservacionista presencia-se um debate entre

duas posições conflitantes: a do restauro estilístico do francês E.

Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista do inglês J. Ruskin5.

Convém, entretanto, assinalar que a aquisição de uma consciência

do devir histórico que marca a constituição do conceito de

‘patrimônio’, nesse momento, limita-se ao ‘patrimônio arquitetônico’,

isto é, ao edifício. Não há, até esse momento, uma clara

compreensão da noção do ‘patrimônio urbano’, ou seja, a percepção

de continuidade do conjunto urbano como valor a se preservar nos

termos hoje concebidos, como se pretende abordar mais adiante.

A necessidade de afrontar a complexidade das transformações já

ocorridas, de planejar novos modelos urbanos compatíveis como

essa nova escala de cidade, faz surgir uma disciplina específica, o

urbanismo, que irá se ocupar da nova organização das cidades, das

propostas de reformulação dos padrões vigentes, dos grandes temas

sociais e urbanos da modernidade. Na realidade, os postulados

elaborados pelo Movimento Moderno, no século XX, nascem para

solucionar os problemas concretamente vividos ao longo século XIX.

O antigo modo de vida da sociedade européia calcado em séculos de

feudalização, produção agrícola e baixo adensamento urbano

mostram-se superados pela urgência das transformações.

As precárias condições de habitabilidade, os problemas sociais

decorrentes dessa nova condição de vida, a necessidade de atender

a exigências de trabalho e lazer, em resumo, a busca de uma melhor

5 As primeiras formulações do conceito de patrimônio histórico e as posturas iniciais

de atuação no campo do restauro são tratadas em várias publicações, entre as quais

destacam-se CHOAY (2001) e KÜHL (1998)

46

qualidade de vida urbana é questão fundamental a ser enfrentada

nesse momento.

As atuações de Haussmann e Sitte constituem referências

emblemáticas da especialização do conhecimento ocorrida nesse

momento. Mostra-se fundamental a delimitação de campos distintos

para enfrentar e aprofundar diferentes naturezas de investigação que

envolvem o território urbano: de um lado, a atenção à memória

materializada no patrimônio construído e, de outro, a urgência de

reformulação dos padrões e modelos das cidades existentes.

Aproximar o pensamento de Sitte e de Haussmann possibilita

identificar com clareza os dois posicionamentos antagônicos contidos

em suas proposições que, de certo modo, se reapresentam no

período em que se elaboram dos documentos aqui analisados:

• uma atenção à pesquisa morfológica e, conseqüentemente,

ao valor documental da cidade antiga, o que contribui para

afirmar a valorização da cidade em sua perspectiva histórica

por contraste à nova cidade do presente;

• uma preocupação relativa em relação às marcas e

testemunhos cotidianos do passado, para valorizar

monumentos históricos de excepcional valor destacados

como pontos focais isolados, em meio ao conjunto uniforme

redefinido por novos padrões técnicos e formais.

A esse propósito, Françoise Choay, ao tratar da invenção do

patrimônio urbano6, comenta sobre o posicionamento de intelectuais

contemporâneos de Haussmann, entre os quais Balzac e Victor

Hugo, que concordam com a necessidade de modernização radical

da malha urbana antiga. Esclarece que os ilustres escritores

manifestam apenas leve discordância em relação à monotonia das

novas avenidas e à situação de isolamento de algum monumento,

mas não chegam a se colocar como críticos ferrenhos dessa ação de

renovação urbana que impõe extensas áreas de demolições. Isso

ocorre justamente por não haver, até aquele momento, a percepção

comum de que a continuidade do conjunto urbano constitui valor a se

6 Em A alegoria do patrimônio, p. 175-203.

47

preservar. Prevalece, portanto, a exigência de renovação urbana,

frente à idéia de conservação.

Nesse sentido, o plano de modernização de Haussmann para Paris,

de meados do século XIX, ao privilegiar os requisitos técnicos de

mobilidade e higiene; adotar uma visão estética que identifica a

qualidade em parâmetros mais rígidos como simetria, regularidade e

uniformidade da paisagem urbana; além de dirigir atenção especial

aos “monumentos”, preterindo o conjunto urbano em sua

continuidade, pode ser entendido como uma antecipação do

urbanismo funcionalista, um dos principais temas de discussão

levantados pela Carta de Atenas do CIAM.

Para Choay, a invenção do “patrimônio urbano” nasce da dialética

entre história e historicidade, perceptível através de três diferentes

abordagens da cidade antiga, identificadas com as três figuras a

seguir:

• a figura memorial reconhecida na reflexão de John Ruskin

(1819-1900)

• a figura histórica identificada com a posição de Camillo Sitte

(1843-1903)

• a figura “historial” associada à contribuição de Gustavo

Giovannoni (1873-1943)

A figura memorial, para Choay, refere-se à compreensão de Ruskin

de que, mesmo sem as pessoas perceberem, as cidades

desempenham um papel memorial, ou seja, têm o poder de enraizar

seus habitantes no tempo e no espaço. Por considerá-las investidas

de valor de reverência, Ruskin não admite que as cidades possam

sofrer transformações. Por esse prisma, observa Choay, Ruskin

pretende viver a cidade histórica no presente e acaba por encerrá-la

no passado e assim perde de vista a cidade “historial”, a que está

engajada no devir da historicidade.

A figura histórica na obra de Sitte, conforme assinala Choay, assume

um viés propedêutico, isto é, destaca os requisitos da cidade do

passado como referência paradigmática para o desenho da cidade

do futuro. Indaga sobre as possibilidades de se preparar o advento

48

de uma arte urbana ajustada ao devir da sociedade industrial. Quer

extrair lições das cidades antigas, do seu estudo morfológico. Indica

entre os aspectos relevantes: a diversidade de configurações, a

irregularidade, a sinuosidade de traçados, a assimetria.

A autora estabelece relação entre a pesquisa de Sitte para o território

urbano e a pesquisa de Viollet-le-Duc para o campo da arquitetura

explicitada em sua obra, Entretiens sur l’architecture (1863-72). Essa

é uma aproximação ignorada pelo conjunto dos historiadores,

constata Choay. Ambos os estudos tem seus objetos organizados

pela oposição entre passado (consumado) e presente (em gestação).

“Ambos os autores estabelecem antinomia entre razão e arte.

Procuram saídas para uma postura racional, um método heurístico”.7

Se Viollet-le-Duc contribui com um aporte significativo à construção

da figura histórica, Sitte fica na incerteza. Para Sitte, o papel das

cidades do passado acabou, sua beleza plástica permanece. Sua

lógica de preservação inscreve-se na atitude semelhante à

conservação dos objetos de um museu. Sitte não militou pela

preservação dos centros antigos. Outros o fizeram, divulgando sua

obra.

O papel desempenhado por Giovannoni será analisado a seguir em

comparação com a conduta preponderante do “urbanismo

racionalista”.

A década de 1930: o panorama internacional

O período entre as duas Guerras Mundiais, especialmente as

décadas de 1920-30, corresponde a um momento de grande

prestígio do Movimento Moderno. Um prestígio que se reflete na

autoconfiança dos arquitetos de explorar o potencial dos novos

materiais, tecnologias e de afrontar as necessidades da população

em geral. Acredita-se que a carência habitacional e outros problemas

sociais das metrópoles industriais podem ser solucionados com os

baixos custos obtidos com o emprego de formas mais simples,

superfícies lisas, estruturas racionais e a industrialização dos

diversos componentes da construção.

7 Choay, op. cit. p.189.

49

A esse respeito, assim discorre Diane Ghirardo8:

“Embora marcadas por ênfases diferentes – de um lado, o

determinismo tecnológico e, de outro, a idéia de auto-

expressão estética – as idéias de muitos arquitetos

modernistas mantiveram, como constante básica, a crença

no poder da forma para transformar o mundo, ainda que

geralmente vinculada a alguns objetivos amplos e vagos de

reforma social. (...) Esses pressupostos constituíam o

embasamento ideológico dos projetos urbanos de Le

Corbusier para Paris, Marselha, e norte da África, mas

também de seus projetos menores de residências

particulares, como a Villa Savoye.”

A autora observa ainda que, em meados da década de 1930, a

doutrina do Movimento Moderno é reinterpretada como classicismo

monumental, especialmente com o patrocínio dos regimes

totalitários, tais como: a Rússia soviética, a Alemanha nazista e a

Itália fascista. Contemporaneamente, grandes expoentes do

modernismo europeu, dissidentes dos governos autoritários, exilam-

se nos Estados Unidos e ganham o incentivo de importantes críticos

como: Giedion, Pevsner, Zevi e Hitchcock, entre outros. Essa

produção adquire, portanto, um “significado mítico” muito maior que

suas realizações concretas.

Ricardo Marques de Azevedo, em seu livro Metrópole: abstração,

refere-se a essa vertente da crítica como “historiografia apologética”.

Assinala que esses autores condicionam de modo direto a afirmação

do modernismo às transformações da ordem social e econômica,

assim como às inovações operativas trazidas pela revolução

industrial. Pondera que, embora seja incontestável a ligação dos

procedimentos modernos nas artes com as circunstâncias

relacionadas à industrialização, as origens das propostas estão

relacionadas às correntes do pensamento iluminista. As vanguardas

artísticas e ‘positivas’ corresponderiam, portanto, a um modo de

8 Em Arquitetura Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 4.

50

elaboração conceitual que teria seu raciocínio herdado do Século das

Luzes.

Oportuno mencionar as colocações de William Curtis9, a respeito da

interpretação dos primeiros historiadores da arquitetura moderna

que, segundo o autor, tendiam a isolar seu objeto de estudo, a

simplificá-lo, a ressaltar sua singularidade, buscando mostrar como a

“nova criatura” era diferente de suas antecessoras (produtos da

continuidade das Beaux Arts de herança clássica, representantes

dos estilos históricos e do ecletismo). Trata-se, conforme Curtis, de

um “mito” cultivado por esses críticos a noção de que as formas

modernas emergiam “imaculadas” de tais precedentes, uma visão

que combina com o conceito progressista de história e que sugere

um “recomeço do zero”. O autor observa que os arquitetos mais

conscientes não rejeitam exatamente a influência da tradição, mas

sua reutilização superficial. Destaca também que nesse período a

própria arquitetura moderna passa a lançar as bases para uma nova

tradição com seus próprios temas, formas e motivos.

É importante para esse estudo considerar, além dos postulados de

projeto atinentes ao edifício, as noções básicas que acompanham a

inovação funcional da cidade pós-industrial, pela radical reformulação

dos problemas de projeto e desenho urbano que implicam a criação

lógica da metrópole moderna e, por contraposição, a negação da

‘cidade histórica’. São questões intimamente ligadas ao conflito

existente entre as posturas que aportam valor na reformulação do

modelo de cidade, alinhadas com o movimento moderno, e aquelas

identificadas com a preservação do patrimônio.

Ao tratar dessa questão, o urbanista Benedetto Gravagnuolo

identifica na quadrícula urbana a mais adequada metáfora do

funcionalismo, uma das mais significativas linhas de pensamento que

orientam o projeto urbanístico do século XX. Nessa imagem, destaca

o autor, encontram-se condensados traços marcantes dessa atitude

mental:

“(...) desde o gosto pela abstração, até a extrema

essencialidade de um racionalismo exibido na sua pureza

9 Em Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre, Bookman, 2008, p. 13.

51

esquemática; desde a exigência de uma ordem sintática e

estrutural subjacente à composição até o princípio do elenco

e da separação dos elementos como metodologia de

projeto.” 10

Sabe-se que na raiz do funcionalismo está o desejo explícito de uma

inovação radical. O resultado é a adoção da tabula rasa cultural que

conduz à absoluta rejeição da tradição, entendida como bagagem de

experiências e normas transmitidas de geração à geração. Desse

modo, assume-se uma postura de projeto equivalente à solução de

um teorema abstrato a ser enfrentado pela primeira vez, um

recomeçar “desde o princípio”. Essa conduta reflete uma

compreensão, por parte dos arquitetos e urbanistas, de que as

condições do presente são absolutamente inéditas em relação ao

passado e que, portanto, os precedentes históricos não devem ser

tidos em conta para afrontar as novas aspirações.

“O ideograma da ‘cidade nova’ termina, neste sentido, por

lançar também a hipótese de um ‘homem novo’

absolutamente racional, livre de laços sentimentais com o

passado e feliz de viver no ‘novo universo’ do triunfo da

mecanização e na ‘nova era’ projetada em direção a uma

harmonia tecnológica futura e a uma imaginária igualdade

social.” 11

No panorama internacional, Le Corbusier é um dos mais convictos da

pertinência da propagação do ideal desse esprit nouveau, conforme

Gravagnuolo. É com essa convicção que o arquiteto defende a

produção de casas em série, a máquina de morar, como forma de

erradicação dos modelos superados do passado, para adotar um

ponto de vista crítico e objetivo da casa-instrumento, “uma casa

saudável (inclusive moralmente) e bela conforme a estética dos

instrumentos de trabalho que acompanham a nossa existência.” 12

O ideograma abstrato de cidade moderna, conforme observa

Gravagnuolo, tende a permanecer restrito ao plano teórico da utopia,

10

Em Historia del urbanismo en Europa 1750-1960, Madri: Akal, 1998, p. 333

(tradução do autor). 11

Idem, p.334. 12

Em Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1994.

52

ou acaba por se enraizar no humus das cidades históricas e na

vocação morfológica dos lugares, ou então, limita-se a configurar

certos fragmentos da cidade, uma vez que corresponde a um modelo

tido como superado pelas teorias urbanas contemporâneas. [1]

O estudioso Alan Colquhoun representa uma nova leva de críticos

que começa a atuar na cena inglesa a partir dos anos 1960 e procura

reexaminar a cultura arquitetônica moderna sob um enfoque mais

rigoroso e distanciado em relação aos críticos engajados na defesa

dos princípios do movimento moderno, mencionados acima.

[1] Plan Voisin para Paris (1922-29). À esquerda, o projeto em relação à

estrutura urbana existente; à direita, o projeto situado no contexto do

centro da cidade (Ilustração de Euvre complete, 1929-34, p. 91). Fonte:

Thoenes et. al., 2003, p. 711.

53

Nesse sentido, Colquhoun13

, discorrendo sobre a contribuição de Le

Corbusier, destaca não só a ruptura em relação à tradição, mas

alerta para a tensão que se instaura na tentativa de mediar entre

passado e presente:

“O discurso de Le Corbusier tentava sintetizar, no que dizia

respeito ao problema da arquitetura, as contraditórias visões

de mundo que eram correntes na época de sua formação

intelectual. Para compreender essas visões de mundo e

suas decorrentes ideologias e contradições, deve se voltar

ao discurso arquitetônico do século XVII, no momento em

que a tradição de Vitrúvio foi desafiada pela primeira vez (...)

Ao dividir a beleza arquitetônica em dois tipos, beleza certa

e beleza arbitrária, Claude Perrault introduziu no discurso

arquitetônico a distinção epistemológica entre o

conhecimento a priori e o conhecimento empírico, entre o

signo natural e o signo arbitrário, distinção que ocorreu

paralelamente na filosofia contemporânea e na teoria

lingüística.”

O método empírico, assinala o autor, põe em dúvida as antigas

certezas estabelecidas a priori, configuradas pela continuidade da

tradição, mas coloca outras certezas no lugar daquelas. Relembra

que uma importante vertente do século XVIII criara a convicção de

que o gosto e o juízo estético fundamentavam-se em princípios

naturais.

No entender de Colquhoun, no final do século XIX, porém, essa visão

modifica-se. De um lado, o historicismo tenta conciliar a verdade

absoluta com a mudança e a noção de progresso histórico, de outro,

o positivismo afirma que o conhecimento encontra sua comprovação

e significado na ação com o mundo material.

A leitura do texto de Colquhoun oferece alguns indícios de

aproximação entre a experiência de Le Corbusier e a de Lúcio Costa

sob um enfoque talvez pouco explorado: a combinação dos

elementos da tradição com a adoção de formas puras e abstratas,

tão caras ao racionalismo modernista.

13

Em Modernidade e tradição. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p.100.

54

Como observa o autor, especificamente em relação a Le Corbusier, a

tradição a ser preservada e transformada não é propriamente um

conjunto de preceitos morais, mas acima de tudo um conjunto de

exemplos concretos. O desenho é o meio de comunicação e registro

desse conhecimento.

A influência de Le Corbusier na obra dos arquitetos modernistas

brasileiros, especialmente na de Lúcio Costa, é notoriamente

reconhecida pela aplicação dos materiais e técnicas modernas, pelo

emprego dos princípios de racionalidade e pureza das formas dos

edifícios, pela aplicação dos preceitos do urbanismo racionalista,

entre os quais, o zoneamento dos usos, a implantação dos edifícios

isolados em meio ao verde, o uso de pilotis que possibilitam liberar o

solo para favorecer o livre trânsito ao rés-do-chão. No entanto, não é

recorrente a aproximação das experiências de ambos arquitetos a

partir do interesse pela tradição e sua apropriação no

desenvolvimento dos projetos de arquitetura.

Assim como Lúcio Costa, que viaja por Minas Gerais e outros

estados brasileiros e se encanta com os exemplos mais simples e

genuínos de uma arquitetura tradicional – desde elementos

característicos, como os muxarabis, os alpendres, até os princípios

construtivos usados – também Le Corbusier demonstra interesse de

investigação que se traduz no registro das casas da Turquia, de

Pompéia, dos mosteiros de Monte Athos, entre outros exemplos. [2]

[3]

Como destaca Colquhoun, não se trata unicamente de interesse por

tipos históricos:

“Seu baú mental está cheio de objetos que estão prontos

para serem utilizados em um bricolage – objetos que

parecem ter sido todos gravados em sua memória em um

momento de epifania.” 14

O interesse de Le Corbusier pela arquitetura brasileira e a sua

contribuição para a definição do projeto da sede do Ministério da

Educação e Saúde, enquadram-se, na compreensão de Colquhoun,

em um momento da década de 1930 em que o arquiteto francês volta

14

Idem, p. 104.

55

sua atenção ao desenvolvimento de culturas regionais e periféricas,

como as do Rio de Janeiro e de Argel. Destaca o autor que é

possível observar uma singular abordagem nos seus planos de

cidades, em que abandona a geometria mais rígida, em favor de um

urbanismo mais “orgânico” e “geográfico”, no qual “gigantescas

mega-estruturas lineares” seguem os contornos naturais de uma

natureza primordial.

Nesse contexto internacional, merece atenção a figura de Gustavo

Giovannoni (1873-1943) por estabelecer uma conduta de

contraponto à preponderante visão modernista da primeira metade

do século XX, através de sua relevante atuação no campo específico

da restauração. Formado em Engenharia em Roma (1895), dedica-

se ao ensino de arquitetura após freqüentar o curso de História da

Arte de Adolfo Venturi (1897-99). Mantém ao longo da carreira esse

dúplice interesse voltado às questões do projeto e da história, que o

faz desempenhar o exercício profissional tanto na produção do novo,

quanto em obras de restauro. No entanto, é na reflexão teórica no

âmbito da restauração que adquire maior projeção e reconhecimento.

Foi diretor da Faculdade de Arquitetura de Roma de 1927 a 35,

período em que introduz a disciplina “Restauro dos Monumentos”,

novidade absoluta no ensino de graduação.

[2] Lúcio Costa, desenhos do casario de São Luís (MA). Fonte: Costa,

1995, p. 500.

[3] Le Corbusier, rua de Istambul, croqui de viagem. Fonte: Colquhoun,

2004, p.104.

56

É amplamente comentada, entre os estudiosos da conservação do

patrimônio, sua participação no congresso responsável pela

elaboração da Carta de Atenas de 1931. Conhecido seguidor de

Camillo Boito, dedica-se a aprofundar a definição do chamado

‘restauro científico’ ou ‘restauro filológico’, conceito elaborado na

passagem do século XIX para o XX, conforme será analisado mais

adiante.

Entre os teóricos que se dedicam a rever a sua contribuição,

destacam-se Françoise Choay e Guido Zucconi. Ambos ressaltam

que, até os anos 1970, a importância de Giovannoni foi subestimada

devido a paixões ideológicas e políticas. Trata-se obviamente, mais

do que uma questão de postura crítica, de um problema de

aceitação, pois em função de sua presumida ligação com o regime

fascista, foi tido como adversário da arquitetura moderna.

Nos anos 1990, como prova do renovado interesse, uma de suas

principais obras, Vecchie Città ed edilizia nuova, ganha reedições em

italiano e francês coordenadas por Franco Ventura e Françoise

Choay, possibilitando assim a ampliação do conhecimento sobre sua

reflexão.

Sob coordenação crítica de Zucconi, em 1997 é relançado Dal

Capitello alla città. Nessa obra, Giovannoni manifesta a intenção de

afrontar diversos campos de atuação sob uma visão metodológica

única: os problemas do restauro, com enfoque na ótica urbana e, por

outro lado, os problemas urbanos, vistos na perspectiva de

valorização não apenas dos episódios isolados, mas sobretudo do

ambiente construído.

Choay refere-se à polêmica travada entre Giovannoni e Le Corbusier,

destacando a importância de seu posicionamento frente à visão

modernista mais ortodoxa. A autora enfatiza aspectos atuais de suas

reflexões sobre o urbanismo que evidenciam a validade de seu

pensamento. São estudos que ressaltam o papel inovador das novas

técnicas de transporte e de comunicação, das redes de infra-

estrutura, do urbanismo territorial, da cidade difusa, não mais

circunscrita no espaço, destacando o caráter contemporâneo da

cidade em movimento, como um organismo cinético.

57

Segundo Choay, Giovannoni prevê planos e estudos menos

redutivos que os de Le Corbusier e do urbanismo racionalista

funcionalista, pois revela uma abordagem mais complexa das

questões urbanas a serem enfrentadas. Sendo assim, questiona a

rigidez das diretrizes do zoneamento, manifestando-se a favor da

convivência entre movimento, mutação e estabilidade. Além disso,

rejeita a cisão entre centro histórico e núcleos de modernização, mas

passa a considerar fundamental a comunicação multipolar.

No que se refere ao campo específico do patrimônio, Giovannoni

distingue dois valores essenciais que constituem os conjuntos

urbanos antigos: o ‘valor de uso’ e o ‘valor museal’. Este último é

concebido a partir da identificação da cidade como objeto raro,

precioso, equivalente às obras conservadas em museus, adquirido

em correlação com a perspectiva de desaparecimento. Enfatiza, no

entanto, a necessidade de relacioná-los entre si, o que implica

entender o ‘patrimônio urbano’, não como objeto autônomo de

disciplina própria, mas como elemento e parte do campo urbanístico.

[4] Reestruturação urbana prevista pelo plano de 1931 com a abertura da via della Concilazione

nas imediações da praça São Pedro. Vista aérea de 1925, em que se vê a Spina di Borgo ainda

intacta. Fonte: Gravagnuolo, 1998, p.319.

58

É com essa argumentação que se posiciona contrariamente às

demolições previstas no âmbito do programa de transformações para

a cidade de Roma, dos anos 1930, em pleno regime totalitário,

segundo o qual Roma deve converter-se em capital-símbolo do

fascismo. Da mesma forma, opõe-se às destruições da spina del

Borgo, nas imediações da praça São Pedro. [4]

Confirmação de sua postura mediadora em meio à polarização de

opiniões que divide progressistas e conservadores é sua proposta do

“diradamento” para as iniciativas de transformação previstas nos

planos de remodelação e reabilitação urbana que incidem em tecidos

urbanos consolidados. O conceito de “diradamento” evoca a

metáfora de um desbastamento de uma floresta. Corresponde a uma

medida conciliatória de articulação, desobstrução e recomposição da

malha urbana em pontos estratégicos em que se impõem reformas,

contendo as modificações radicais e as conseqüentes destruições.

A década de 1930: o panorama nacional

Os anos 1920 são marcados por movimentos de contestação em

praticamente todos os campos da vida nacional. No âmbito político, a

política conservadora do governo central acaba por encorajar

movimentos de oposição que, juntamente com a crise econômica

mundial de 1929, desencadeiam a Revolução de 1930 e o fim da

chamada República Velha. Cria-se, a partir de então, uma conjuntura

favorável à mais completa renovação cultural, o que coloca o Rio de

Janeiro, enquanto capital do país, na condição de palco privilegiado

da gênese da arquitetura moderna no Brasil.

Nota-se, particularmente nesse contexto, uma incomum combinação

de tendências: ao mesmo tempo em que se verifica um significativo

impulso ao Movimento Moderno, dá-se a criação de uma legislação

de tutela do patrimônio cultural. Assim, o debate sobre a

conservação, no cenário brasileiro, surge defasado em relação às

primeiras manifestações européias a esse respeito. Além disso, aqui

se desenvolve num contexto de conciliação de posições

aparentemente incompatíveis: a de modernização e a de

preservação das heranças culturais.

59

Como evidencia a análise das visões de Haussmann e de Sitte, de

meados do século XIX, há um confronto de duas tendências: uma

pela modernização e outra pela conservação. No Brasil, no início do

século XX, sucede algo diferente: a emergência dos temas da

preservação acontece paralelamente à afirmação da modernidade,

ambas enunciadas pelos mesmos protagonistas, numa perspectiva

de interação e não de contraposição de tendências, como havia se

verificado anteriormente na Europa.

Isto significa que o Movimento Moderno expressa, no Brasil, em

consonância com o desenvolvimento das vanguardas européias, os

anseios de inovação, de criação de uma nova linguagem estética.

Essa aspiração ao novo, no entanto, convive com uma necessidade

particular de reconfigurar a identidade nacional e de resgatar as

raízes da cultura popular e com um sentido de continuidade e

reelaboração da tradição.

Confirmação dessa conduta é a trajetória de figuras centrais como

Mário de Andrade e Lúcio Costa. O primeiro foi responsável pela

elaboração do plano de proteção ao patrimônio cultural, juntamente

com a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional). Lúcio Costa, por sua vez, esteve à frente, ainda que por

breve tempo, da modernização da Escola Nacional de Belas Artes do

Rio de Janeiro (1930-31) e liderou a equipe do projeto pioneiro do

edifício do Ministério da Educação e Saúde em 1936, o mesmo ano

em que foi chamado a assumir a direção da Divisão de Tombamento

do SPHAN. O edifício emblemático da modernidade é também sede

do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional.

Coube ao ministro Gustavo Capanema, titular do Ministério da

Educação e Saúde, entre os anos de 1934 e 45, a tarefa de retomar

as discussões relativas à preservação do patrimônio cultural, até

então desenvolvidas de modo descontínuo e pouco conclusivo do

ponto de vista da legislação e tutela efetiva. Dois ícones dessa

condução que concilia conservação e modernidade são o Museu das

Missões e o edifício do MES. [5] [6]

60

O desafio desse período inicial, conhecido como “fase heróica”15

, é

enorme, ainda que de início, a atuação do IPHAN e o uso do

expediente do tombamento, como instrumento necessário de

proteção, tenha se voltado especialmente aos bens de interesse

nacional representativos do período colonial.

A elaboração dos inventários, seguida dos levantamentos e das

propostas de tombamento, embora restritos às obras de valor

excepcional, diante da vasta extensão do território nacional, por si só,

configuram um volume muito grande de trabalho. A equipe recém

constituída, não tendo experiência acumulada, conta acima de tudo

com dedicação e entusiasmo16

.

15

A locução “fase heróica” é também empregada usualmente em referência ao

desenvolvimento do modernismo em sua fase inicial, em que se reconhece, na ação

dos arquitetos, uma espécie de militância em favor de causas inquestionáveis. 16

Vários estudos têm sido elaborados sobre a preservação no Brasil e o papel dos

órgãos de tutela. Entre eles destaca-se Maria Cecília Londres Fonseca. O patrimônio em processo: trajetória política federal de preservação no Brasil. UFRG, Minc,

IPHAN, 1997, que aborda as políticas da gestão do ministro Gustavo Capanema e o

diálogo com intelectuais do movimento moderno.

[5] Prédio do ministério da Educação e Saúde, R.J., 1936. Projeto de Lúcio Costa com Affonso

Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge M. Moreira e Oscar Niemeyer.

[6] Museu das Missões, R.S., 1937. Projeto de Lúcio Costa com colaboração de Lucas

Mayerhofer e Paulo Thedim Barreto. Fonte: G. Wisnik, Lúcio Costa. São Paulo: Cosac & Naify,

2001.

61

Carta de Restauro de Atenas (1931)

A recomendação da Conferência Internacional de Atenas reafirma as

colocações já enunciadas por Camillo Boito17

em 1884, como

princípios fundamentais do restauro na acepção moderna do termo.

Reflete a posição de destaque de Gustavo Giovannoni 18

– seguidor

de Boito – e a sua capacidade de conduzir as discussões a uma

posição consensual que resultaria mais tarde na formulação do

chamado “restauro científico”. Este compreende a superação das

visões românticas consubstanciadas nas duas distintas condutas que

dominaram os debates da primeira metade do século XIX: a

estilística de Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista de John Ruskin.

Um importante aspecto contido no documento é a preocupação com

a legislação de cada país e com a necessidade de se estabelecer

princípios comuns entre os signatários, ainda que adaptados às

circunstâncias locais. Uma das questões mais controversas, nesse

campo, corresponde à conciliação dos interesses públicos e

particulares.

Destaca-se ainda a necessidade de colaboração internacional no

sentido de salvaguardar os “monumentos de interesse histórico,

artístico ou científico”.

Os principais tópicos da pauta do encontro são tratados conforme

segue:

• valorização dos monumentos: recomenda-se o respeito ao

caráter e à fisionomia das cidades, sobretudo nas vizinhanças

dos monumentos antigos, no que se refere à construção de

novos edifícios.

17

Camillo Boito (1835-1914) é arquiteto italiano cuja formação e experiência situa-se

na confluência de dois campos: o da arte do passado e o da técnica moderna.

Formula diretrizes para a conservação de monumentos históricos, apresentadas em

Congressos que consistem em uma síntese elaborada a partir da reflexão sobre as

posturas dominantes na primeira metade do século XIX. Consultar: Os restauradores. Conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Trad. Paulo M. Kuhl e Beatriz M. Kuhl. Cotia: Ateliè Editorial, 2002. 18

Gustavo Giovannoni (1873-1943) arquiteto italiano cuja contribuição foi

menosprezada por muito tempo, seja por motivos políticos (injusta acusação de

participação no regime fascista), seja por ter polemizado com Le Corbusier, arquiteto

de prestígio internacional.

62

• materiais de restauração: aprova-se o uso de recursos

técnicos e materiais modernos, especialmente o concreto

armado, para os casos de consolidação estrutural.

• deterioração dos monumentos: constata-se a agressividade

dos agentes atmosféricos, manifesta-se a dificuldade de se

formular regras gerais e recomenda-se a troca de

informações e publicação de trabalhos realizados nessas

áreas.

• técnica da conservação: antes de se proceder à

restauração, sugere-se analisar escrupulosamente a

existência de patologias; para as ruínas destaca-se a

tendência à recolocação dos elementos originais encontrados

(anastilose), sempre que possível e, ao mesmo tempo,

recomenda-se a diferenciação dos novos materiais de

completamento.

• colaboração internacional: estima-se a importância de

ações educativas de sensibilização e divulgação do interesse

de preservação dos testemunhos de toda a civilização;

afirma-se a necessidade de constituição de inventários

devidamente documentados a serem realizados por

instituições competentes; considera-se desejável que

instituições qualificadas colaborem entre si e manifestem

publicamente o interesse em favorecer a conservação dos

monumentos de arte e de história; indica-se para esse fim, a

Comissão Internacional de Cooperação Intelectual da

Sociedade das Nações e o Escritório Internacional de

Museus.

Uma avaliação geral do conteúdo permite destacar o foco das

principais preocupações enfrentadas naquele momento: os aspectos

legais, os técnico-construtivos e os princípios norteadores da ação de

conservação. O documento declara a necessidade de criação e

fortalecimento de organizações nacionais e internacionais, de caráter

operativo e consultivo, voltadas à preservação e restauro do

patrimônio. Recomenda a criação de legislação normativa a nível

nacional, que encontre respaldo e ressonância nos fóruns

63

internacionais. A importância da legislação é sobretudo para garantir

a prevalência do direito coletivo sobre o individual e, ao mesmo

tempo, mediar eventuais conflitos de interesses, de modo a encontrar

a menor resistência possível aos sacrifícios impostos aos

proprietários de bens tombados.

A eleição dos objetos de interesse está subentendida nos termos

empregados para nomear o patrimônio: monumentos, monumentos

antigos, monumentos de arte e de história, estatuária e escultura

monumentais, monumentos históricos, obras-primas da civilização,

testemunhos de toda a civilização. O entendimento de patrimônio

cultural é inegavelmente associado aos bens de valor excepcional,

de caráter monumental. A referência ao conjunto arquitetônico,

textualmente expressa nos termos da fisionomia das cidades antigas

e das vizinhanças dos monumentos antigos, revela uma

preocupação de manutenção de uma “ambiência urbana”

característica, quando da inserção de elementos novos em uma

paisagem antiga consolidada.

O edifício novo a ser implantado no tecido urbano antigo, deveria,

segundo recomendação formulada pelo documento, curvar-se à

uniformidade do conjunto e respeitar seu caráter peculiar, suas

perspectivas pitorescas. [7]

Condena-se a remoção e deslocamento arbitrário de peças e obras

dos seus lugares de origem. A mudança de local deve ser feita única

e exclusivamente por motivo de conservação.

Priorizam-se as ações de conservação e manutenção, observa-se

uma tendência a abandonar as “reconstituições integrais”. Sendo

assim, as resoluções do documento recomendam o respeito à

autenticidade dos elementos originais e a diferenciação dos novos

elementos introduzidos para completar partes ou lacunas.

Aqui convém enfatizar que é justamente essa orientação o principal

ponto de contraste com a conduta anteriormente aceita do restauro

estilístico. Inúmeras experiências realizadas pelo próprio idealizador,

Viollet-le-Duc, acabam por difundir a condução de obras de restauro

como reconstituição de um estado hipotético original que valoriza a

unidade de estilo.

64

A Carta de 1931, ao contrário, sugere o respeito às transformações

ocorridas no decorrer do tempo e à autenticidade dos materiais

originais. Exige, portanto, a distinção dos novos materiais aplicados

à restauração e condena, de conseqüência, qualquer tentativa de

reconstrução, falseamento ou imitação do aspecto primitivo.

Importante notar, entretanto, que a exigência de respeito à

autenticidade da matéria original e a decorrente diferenciação dos

materiais e elementos novos a serem acrescentados nas

intervenções de restauro, limita-se à arquitetura, não se aplicando,

portanto, à intervenção urbana.

Vale ressaltar que as deliberações que valorizam a continuidade do

conjunto urbano, quando da construção de edifícios novos, podem

condicionar a produção do simulacro, do cenário artificial, no lugar de

um conjunto urbano autêntico, em que o novo se distingue e dialoga

com o antigo.

[7] Edifício do Hotel Danieli Excelsior, Veneza, 1948. Um exemplo de

“moderno ambientado”. Fonte: Strumenti 6, 1993, p. 105.

65

Tanto é que as revisões do restauro científico conduzidas pelo

restauro crítico19

e sua mais recente atualização, a teoria de Brandi,

já consideram superada a proposição de uma “arquitetura neutra”

que desaparece como presença e individualidade para não

comprometer a uniformidade da paisagem dos sítios históricos

consolidados.

Carta de Atenas - CIAM (1933)

Como já dito, este documento corresponde às resoluções do IV

CIAM, inicialmente programado para realizar-se em Moscou, em

razão de a União Soviética constituir então território privilegiado para

os programas da nova arquitetura.

Precede a realização desse evento, sempre em Moscou, em 1931, o

concurso para escolha do projeto do Palácio das Nações. A

premiação de projetos alinhados com princípios acadêmicos, ao

invés de prestigiar soluções inovadoras, comprometidas com as

idéias modernistas, cria uma divisão entre a posição do júri e a dos

arquitetos participantes20

. A relação entre os profissionais e o Estado

Soviético sofre um significativo desgaste. Diante da impossibilidade

de realização do congresso em Moscou, decidiu-se por um local

insólito: o congresso aconteceria a bordo do navio “Patris II”, com o

apoio do governo grego.

O documento sintetiza a visão do “Urbanismo Racionalista”, também

chamado “Urbanismo Funcionalista”. Reúne as contribuições de

praticamente um século de reflexões, desde o socialismo utópico até

a Bauhaus, incorporando as propostas de William Morris, Tony

Garnier, Ebenezer Haward, entre outros21

.

19

Vertente do restauro elaborada por Renato Bonelli e Roberto Pane, desenvolvida

nas décadas de 1940 e 50, a partir das transformações trazidas pela II Guerra

Mundial. Consultar: Verbete ‘restauro’ em Enciclopedia Universale dell’Arte, v. XI.

Novara: Istituto Geografico de Agostini, 1983. A análise dessa posição será

enfrentada no capítulo seguinte, referente à atuação de Lina Bo Bardi. 20

Situação semelhante já tinha sido criada em Genebra, em 1927, em ocasião do

Concurso internacional de arquitetura para o projeto do Palácio da Sociedade das

Nações. 21

A esse respeito consultar: BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. Tradução de Ana M. Goldberger. São Paulo: Perspectiva,1974 e CHOAY, F.

Tradução de Dafne N. Rodrigues. O urbanismo. Utopias e realidades. Uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 2003.

66

Sabe-se que os tópicos relativos ao patrimônio histórico foram

introduzidos por solicitação dos delegados italianos.

Os principais aspectos discutidos na Carta, defendidos pela vertente

funcionalista, eram:

• a necessidade de planejamento regional e intra-urbano

• a implantação do zoneamento, através da separação de usos

em zonas distintas, de modo a evitar o conflito de usos

incompatíveis

• a submissão da propriedade privada do solo urbano aos

interesses coletivos

• a verticalização dos edifícios situados em amplas áreas

verdes

• a industrialização dos componentes e a padronização das

construções.

O Estado e a administração pública, segundo a ótica do documento,

são organismos neutros que, voltados à realização do bem comum,

pautariam sua ação pela suposta racionalidade inerente ao

conhecimento técnico e científico.

O conteúdo específico referente às questões do “patrimônio histórico

das cidades” é sintetizado como segue:

• destaca-se que “a vida e a alma das cidades” manifestam-se

nas obras e nos traçados, constituindo testemunhos do

passado respeitados por valores históricos, sentimentais e

artísticos; os que os detêm são responsáveis pela proteção e

transmissão dessa herança ao futuro

• assinala-se que nem tudo o que é passado, no entanto, tem

por definição direito à perenidade; é necessário saber

reconhecer e discriminar as obras que se mantêm vivas,

distinguindo daquelas presenças que lesam os interesses da

cidade

• considera-se importante conciliar a preservação com as

decisões de renovação: em casos de construções repetidas

podem ser conservados alguns exemplares a título de

67

exemplificação; em outros casos poderá ser isolada uma

única parte como lembrança de um valor real (o restante

modificado para atender a novos usos); em casos

excepcionais, recomenda-se transplantar elementos

incômodos à configuração de novos traçados

• afirma-se que o culto do pitoresco e da história não deve ter

primazia sobre a salubridade da moradia

• diante da prioridade do redesenho urbano, aponta-se a

seguinte ressalva: em casos específicos de grande interesse

(verdadeiros valores arquitetônicos, históricos ou espirituais)

deve-se modificar o projeto, adaptá-lo, mudando o curso das

vias de circulação, ao invés de demolir antigas presenças

marcantes

• defende-se a criação de superfícies verdes ao redor de

monumentos históricos com a demolição de conjuntos de

casas insalubres e cortiços que estejam ao redor; nesses

casos, aceita-se como inevitável a destruição de ambiências

seculares

• condena-se o emprego dos estilos históricos para as novas

construções: “copiar servilmente o passado é condenar-se à

mentira, é erigir o falso como princípio”; tal procedimento, ao

invés de garantir a pureza de estilo acaba por desacreditar os

testemunhos autênticos.

A análise da Carta de Atenas do CIAM possibilita identificar

afinidades entre a conduta de Haussmann e as propostas do

Urbanismo Racionalista. As idéias de Camillo Sitte, ao contrário,

serão duramente criticadas por Le Corbusier, em nome dos CIAM,

identificadas com um espírito passadista e retrógrado.

A preservação da herança do passado, para o CIAM, é uma espécie

de concessão que se faz à história. Reconhece-se que há

testemunhos históricos que não devem ser desprezados, mas a

avaliação é altamente seletiva e observa os mesmos critérios do

68

século XIX: a observância ao bem monumental isolado do contexto

urbano em que se insere.

A arquitetura de caráter ordinário e vernacular em mau estado de

conservação, segundo esses parâmetros, é tida como precária e

insalubre, inadequada aos novos padrões sanitários. Da mesma

forma que ainda não se considera a relevância do tecido urbano,

também não se aventa a possibilidade de recuperar áreas

degradadas. Não sendo prevista a reabilitação urbana, a solução de

saneamento proposta corresponde à demolição desses conjuntos.

O cotejo dos documentos

A principal distinção entre as duas Cartas de Atenas aqui analisadas

diz respeito aos objetivos específicos de cada um dos documentos. A

Carta de 1931 corresponde ao primeiro documento internacional

redigido por especialistas da restauração, com o propósito de

estabelecer diretrizes gerais de orientação. A Carta de 1933 (CIAM),

por sua vez, corresponde às resoluções de um congresso reunido

para discutir e promover os novos rumos para a cidade moderna.

Nesses termos, estabelece como condição para a preservação dos

testemunhos do passado a não contrariedade às novas posturas do

urbanismo funcionalista. Reflete então uma tensão cultural que se

traduz na valorização da aspiração ao novo para se sobrepor ao

respeito do antigo.

O avanço da Carta de 1933 (CIAM) em relação à de 1931, no que se

refere à condenação ao emprego dos estilos históricos para a

construção de novos edifícios em sítios históricos, é decorrência

natural da afirmação dos modelos estéticos modernistas. Uma

afirmação que se traduz em relativa indiferença à história e à

tradição, a uma tentativa de dissolver e abandonar a crença nas

preceptivas artísticas que vigoraram até então. A contraposição entre

o novo e o antigo circunscreve-se nessa ordem de raciocínio. O novo

é identificado com os valores assertivos dos tempos hodiernos de

industrialização e modernidade. [8]

Na atualidade entende-se que a posição da Carta de 1931, quanto à

aceitação das “ambientações” e “simplificações” dos edifícios novos

a serem implantados nos conjuntos antigos, tenha sido equivocada.

69

A defesa de uma pseudo neutralidade nas ações de reintegração do

tecido urbano, em nada contribuiria para a qualidade da intervenção,

ao contrário, poderia ter comprometido a autenticidade do conjunto a

preservar. Da mesma forma que se critica hoje a “supervalorização”

do novo sobre o antigo, segundo a visão dos modernistas, é passível

também de crítica a preponderância intransigente do passado sobre

o presente, conforme sugerem as recomendações da Carta de 1931,

nesse item particularmente.

Desdobramentos nas discussões atuais

A criação do ‘monumento histórico’, no século XIX, não implicou a

legitimação imediata do ‘patrimônio urbano’ como extensão e

continuidade do primeiro conceito. Com certeza, contribui para esse

descompasso o fato de os estudos históricos privilegiarem a

produção arquitetônica de caráter exemplar em relação aos estudos

urbanos e à pesquisa morfológica, ou mesmo em relação à

arquitetura do cotidiano e sua relação com o espaço urbano. Como

destaca Choay22

, por muito tempo a cidade foi vista unicamente

pelas suas instituições, carecendo inclusive de dados essenciais

para a investigação e disponibilização de informações sobre o

território urbano tais como cartografia e levantamentos cadastrais.

O próprio desenvolvimento disciplinar do urbanismo, embora

favoreça o estudo dos temas urbanos, privilegia o enfoque do

planejamento das cidades novas e da renovação dos tecidos

urbanos antigos. Exemplo patente dessa orientação é o plano de

modernização de Haussmann para Paris, de meados do século XIX,

que privilegia os requisitos técnicos de mobilidade, higiene e adota

uma visão estética que identifica qualidade na uniformidade da

paisagem urbana, associada ao destaque focal para monumentos de

caráter excepcional.

A ampliação da noção de patrimônio, ocorrida a partir dos debates da

segunda metade do século XX – a ser examinada no capítulo a

seguir – determina que se incluam nos elencos de bens a se

preservar os edifícios mais modestos, a arquitetura vernacular,

edifícios mais recentes, conjuntos urbanos e rurais, além do conjunto

22

CHOAY, op. cit. p. 178.

70

construído (compreendido em suas relações com os espaços

abertos) e da paisagem natural, aspectos já enunciados por Gustavo

Giovannoni.

Com essa visão mais abrangente muda a compreensão da relação

entre o bem cultural e o espaço físico em que este se insere. É

estabelecido um vínculo indissociável entre o edifício de interesse

histórico e estético e o ambiente em que se situa. Desloca-se o foco

do monumento considerado isoladamente para a noção de conjunto

urbano, sítio histórico. Consideram-se portanto as relações espaciais

entre a construção e os espaços livres, os gabaritos dos edifícios

construídos e os traçados urbanos.

A Segunda Guerra Mundial apresenta-se como um dos fatores

decisivos para a revisão das posturas rigorosas e inflexíveis do

“restauro científico” sintetizado por Giovannoni: exige a reformulação

da teoria e dos procedimentos práticos na área de preservação e

restauro. A magnitude da destruição impõe a reavaliação da

intervenção, seus critérios, sua duração, seus custos e métodos. A

perda de referenciais insubstituíveis leva a uma maior valorização de

aspectos simbólicos, afetivos, frente a avaliações mais objetivas de

valor artístico e histórico.

[8] Plan Voisin para o centro de Paris. Le Corbusier, 1925. Maquete da

proposta. Fonte: Lopes et. al., 2006, p. 153.

71

A Carta de Veneza23

, como análise a seguir, será o documento a

recolher e sintetizar essas novas contribuições e reflexões. Se a

Carta de 1931 prioriza os aspectos ligados à história, ou seja, os

aspectos documentais do bem cultural a ser conservado, a Carta de

Veneza destaca em condição de igualdade os valores estéticos e

históricos.

Considera-se importante atentar à tendência manifestada em tempos

mais recentes de diluir as separações entre as ações de preservação

do antigo e a construção do novo. Entre os vários fatores que

concorrem para essa visão destacam-se os seguintes:

• a ampliação do universo de ação e interesse do patrimônio

cultural

• a necessidade de propor novos e diferentes usos para as

construções antigas, em condição de abandono, que

apresentem um programa de uso obsoleto

• a decisão de ampliar um edifício antigo de valor documental

ou arquitetônico, em que a aproximação de elementos

construtivos novos e antigos passa a ser inevitável.

Hoje entende-se como patrimônio arquitetônico tudo aquilo que

concerne à relação sinérgica entre o edifício, a sua história, o seu

uso e o contexto urbano no qual se insere. A intervenção deve levar

em conta as ligações entre todos estes elementos para que o objeto

de interesse não seja considerado isoladamente, mas associado ao

conjunto do qual faz parte.

O arquiteto contemporâneo é chamado a posicionar-se como

intérprete dos projetos que a sociedade do seu tempo formula e

deseja. As noções de memória e patrimônio, articuladas entre si,

afirmam-se como conceitos que emanam do coletivo, por outro lado,

as exigências por transformações impõem-se em tempos cada vez

mais breves.

23

Documento deliberado pelo II Congresso Internacional de Arquitetos e técnicos de

Monumentos Históricos em 1964, reunido em Veneza, e referendado pelo ICOMOS

– Conselho Internacional de Museus no ano seguinte. Seu conteúdo será objeto de

análise no capítulo referente à atuação de Lina Bo Bardi.

72

A fronteira entre os termos ‘restauro’ e ‘projeto’ (e relativas

intervenções) tende a diluir-se, a dissolver-se. O restauro vem sendo

chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente

conservativo, deve modificar, requalificar, para atender as exigências

do presente, aproximando-se da ação de projeto. Da mesma forma, a

intervenção de projeto vem sendo chamada a considerar as

preexistências, a se contextualizar, a tirar partido da experiência

histórica, a se ancorar nos valores do passado e a conviver e

compartilhar o acúmulo de experiências, a avaliar cada demolição,

cada destruição.

Nesse sentido, é quase impraticável a página em branco, o território

livre, o campo aberto à franca experimentação. O peso do passado,

o consenso do seu valor, tendem a impor-se ao arquiteto

desbravador de novos caminhos, obrigando-o a encarar sua ação

como poética de construir no construído.

Se a arquitetura é produto tanto da memória como da invenção,

então as ações de preservar o antigo e construir o novo não podem

ser consideradas antitéticas. É necessário, ao contrário, reconhecer

que estratégias de preservação precisam estar absolutamente

entrelaçadas com as dinâmicas de inovação. Improcedente, portanto,

a defesa de posições extremadas, como se fosse possível preservar

tudo, ou seu contrário, destruir tudo para construir o novo.

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. 82.

74

Os anos 1960: o anúncio da conciliação entre

memória e invenção

A discussão da área específica: antecedentes e

desdobramentos

Os anos 1960 são aqui analisados principalmente nos aspectos

ligados à ampliação e “naturalização” da noção de preservação, que

supera a valorização do “monumento histórico” como era entendido

no século XIX, para incorporar o valor documental da arquitetura

ordinária e da própria morfologia das cidades: reflexão desenvolvida

em concomitância à formulação da revisão crítica do movimento

moderno.

As discussões da atualidade concentram-se na tendência à

conciliação entre restauro e invenção, fenômeno que ocorre a partir

da própria ampliação do corpo constituído como patrimônio a se

preservar. Um alargamento conceitual que acaba por não

estabelecer diferenças significativas entre o bem cultural de valor

inestimável e a comum preexistência.

No domínio disciplinar da conservação dos bens culturais a Carta de

Veneza (1964) reafirma as recomendações da Carta de Restauro de

1931 quanto à conservação das sobreposições das diversas épocas,

desde que não deturpem ou descaracterizem o objeto de

intervenção. Da mesma forma, ratifica a compreensão de que os

elementos de recomposição de lacunas, ou acréscimos

indispensáveis em uma ação de restauro arquitetônico, devem ser

reconhecíveis e ter a linguagem do próprio tempo. Confirma-se a

tendência de internacionalização das discussões, através da atuação

de organismos internacionais, como a UNESCO, e a conseqüente

difusão da consciência de conservação que extrapola os bens de

caráter excepcional, para incluir a arquitetura do cotidiano, o traçado

urbano, a fisionomia das cidades, além dos bens ambientais. Outra

conseqüência importante da difusão desses temas é a ampliação do

público interessado nesses debates.

75

As deliberações desse documento, efetivamente incorporam a

releitura das posturas precedentes elaborada pelo “restauro crítico”,

proposta por Roberto Pane e Renato Bonelli em meados dos anos

1940, assim como as atualizações representadas pela contribuição

de Cesare Brandi e sua Teoria del restauro (1963). São essas

credenciais que contribuem para que esse documento, ainda hoje, se

situe em uma posição de destaque. Esses assuntos são tratados

especialmente no capítulo que enfoca a atuação de Lina Bo Bardi.

A respeito das posições mais recentes, pode ser conveniente

distinguir, como observa Giovanni Carbonara1, o que diferencia o

restauro das intervenções de outra natureza. Assim se estabelece

com maior clareza o que não é restauro: não é ato arbitrário

realizado em detrimento de um bem, não é seguramente a pura e

simples recuperação do aspecto visual e da funcionalidade da obra;

não é o ato de refazer ou reconstruir; não é a manutenção, nem a

prevenção – ações importantíssimas, mas que se enquadram no ato

de conservação – não é a requalificação, ou ações equivalentes de

reutilização ou reciclagem, tão em voga na atualidade, que

comportam adaptações indiscriminadas no edifício preexistente.

Essas podem constituir um meio a ser empregado com

comedimento, mas fazendo uso do exercício crítico, cuja motivação é

assegurar o reconhecimento dos valores figurativos e documentais

do bem submetido à intervenção. Não podem, no entanto, constituir

propriamente a finalidade da ação de preservação, mesmo porque

não esgotam em si toda a problemática do restauro.

Entre as definições modernas de restauro que permanecem atuais,

de acordo com Carbonara2, destacam-se, com indicação de data e

autor, conceitos formulados antes e depois dos anos 1960:

• 1938, G. C. Argan: “O restauro (...) é hoje usualmente

considerado como atividade científica e precisamente como

indagação filológica dirigida a reencontrar e recolocar em

evidência o texto original da obra, eliminando alterações e

1 Em Avvicinamento al restauro...Nápoles: Liguori, 1997, pp. 23-33, dedica-se ao

tema das definições atuais de restauro. Ao lado de importantes definições, elenca

uma série de ações que não podem ser confundidas com o restauro, p. 27. 2 Idem, pp. 28-29. As definições acima mencionadas correspondem a conceituações

formuladas por importantes teóricos do ambiente cultural italiano. (Tradução da

autora).

76

sobreposições de qualquer gênero até consentir que se

obtenha, daquele texto, uma leitura clara e historicamente

precisa.”

• 1959, P. Philippot: “O restauro, visto em espécie como

problema de reintegração de lacunas, é um ato de

interpretação crítica, destinado a restabelecer uma

continuidade formal interrompida, (...) desde que reste latente

na obra mutilada aquilo que perdeu. Tal interpretação crítica

não se limita a um juízo verbal, mas se concretiza em ato (...)

sem alteração do original.”

• 1963, G. Urbani: “No restauro têm parte preeminente as

operações de caráter estritamente conservativo, voltadas a

preservar da degradação, natural ou ocasional, os materiais

que concorrem à construção física das obras de arte.”

• 1963, R. Bonelli: O restauro entendido como avaliação crítica,

se identifica com a história artística e arquitetônica”.

• 1981, M. Dezzi-Bardeschi: (O restauro) “deve operar com o

único fim de assegurar a conservação da autenticidade da

obra, que é constituída de todos os aportes relativos à

matéria que lhe são estratificados no próprio corpo e que

justamente representam (...) aquele insubstituível e irrepetível

hic et nunc que caracteriza e distingue em modo específico

aquele e não outro artefato: perdido ou comprometido, do

qual é perdido ou comprometido o texto, o valor de

testemunho e a própria credibilidade do objeto.”

O próprio Carbonara apresenta sua definição através do confronto

entre ‘restauro’ e ‘conservação’:

“(...) ‘restauro’ entendido, em primeira definição, como

intervenção voltada à obra e também como sua eventual

modificação, conduzida sempre sob um rigoroso controle

histórico-crítico; ‘conservação’, como obra de prevenção e

salvaguarda, a ser atuada exatamente para evitar que se

77

deva intervir com o restauro, o qual constitui sempre um

evento traumático.”3

O restauro não pode, portanto, ser reduzido à mera operação prática,

mas corresponde obrigatoriamente a “ato de cultura e

especificamente de compreensão histórico-crítica, antes de ser visto

como procedimento técnico.”

O autor justifica o uso atual do termo ‘monumento’ e, por extensão, a

expressão ‘restauro dos monumentos’, pelo fato de terem passado

por um processo de renovação semântica e por uma equivalente

atualização. Nesse sentido, Carbonara defende que o emprego da

palavra ‘monumento’ pode atender à ampliação da totalidade dos

bens culturais e arquitetônicos hoje compreendidos como patrimônio

– desde obras mais modestas, exemplos da chamada “arquitetura

menor”, até “expressões áulicas e nobres de arquitetura maior.”

Com base nessas considerações, Carbonara endossa o restauro

como ato decorrente do prévio reconhecimento de valor:

“(...) há uma série de objetos que possuem um ‘valor’

particular, artístico ou documental, estético ou histórico,

porque são considerados pela cultura atual como obras de

arte, como testemunhos de história ou também como as

duas coisas juntas. Em cada caso como ‘objetos de ciência,

ou em outras palavras, como ‘objetos de cultura’,

testemunhos materiais com ‘valor de civilização’, bens

culturais, conforme o termo mais difundido e consolidado.”4

Resta analisar, de modo geral, em que medida há solidariedade

entre as reflexões do campo específico da preservação do patrimônio

construído e a visão mais ampla da crítica arquitetônica,

especialmente aquela interessada no diálogo com os temas da

memória e da análise histórica.

3 CARBONARA, op. cit., p. 23 (tradução da autora).

4 Idem, pp. 30-31 (tradução da autora).

78

As preexistências e a intervenção contemporânea

Solà-Morales é referência significativa da crítica contemporânea. Em

seu livro Intervenciones associa o conceito de “intervenção

arquitetônica” aos projetos de arquitetura que lidam com

preexistências no contexto da atualidade. Uma das primeiras

questões levantadas pelo autor é a de que a relação existente entre

a nova proposta e a arquitetura preexistente depende dos valores

culturais e dos significados atribuídos tanto ao “antigo” como ao

“novo”5. Toda intervenção cria relações inevitáveis com a obra

existente, seja de ordem visual que espacial, além disso elabora uma

interpretação do material histórico com que intervém. Adverte que

seria um equívoco pensar em uma doutrina permanente, ou mesmo

em uma definição científica para a “intervenção arquitetônica”. Até

aqui suas colocações não estabelecem claro conflito com as

posições dos especialistas acima assinaladas.

Porém, quando Solà-Morales observa que diante da impossibilidade

de se definir uma doutrina permanente, não resta outra possibilidade

que atuar caso a caso, convém destacar uma sutil distinção entre

sua posição e a de Carbonara, referência do campo do restauro.

Para Carbonara, o exame do “caso a caso” está diretamente

vinculado aos parâmetros dos postulados fundamentados no campo

disciplinar e não ligado exclusivamente ao arbítrio do arquiteto

projetista.

Solà-Morales, ao comentar a tendência de se estabelecer uma

relação de contraste entre o “velho” e o “novo”, faz menção aos

projetos urbanos das décadas de 1920 – como o projeto de Mies van

der Rohe para a Alexaderplatz (1921), ou o Plan Voisin de Le

Corbusier (1925) – que se valem das técnicas de fotomontagem e de

desenhos em perspectiva para acentuar os contrastes entre a antiga

e a nova arquitetura. Associa esse procedimento à recusa em

relação ao pastiche histórico que saturou a produção do século XIX e

ao concomitante apoio ao Zeitgeist (espírito do tempo) de matriz

5 SOLÀ-MORALES, I. Intervenciones. Barcelona: Gustavo Gili, 2006. Em texto cujo

título é “Del contraste a la analogia. Transformaciones en la concepción de la

intervención arquitectónica”, pp. 33- 50.

79

hegeliana. Como visto no capítulo referente à década de 1930, essa

conduta prevaleceu naqueles anos.

O autor enfatiza que atualmente esse contraste entre “velho” e

“novo”, antes proposto como único princípio estético a ser adotado, é

coisa do passado. Destaca que esse conceito passa por uma

mudança relacionada à percepção pela qual a arquitetura

estabelecida define sua importância dialética no contexto da cidade

metropolitana. Observa que a partir dos anos 1960, passa a vigorar

uma nova e mais complexa relação entre a sensibilidade

contemporânea e a arquitetura do passado. Sinaliza que, de certo

modo, essa nova percepção já tinha sido anunciada nas reflexões de

Alois Riegl, no início do século XX, referentes à apreensão de uma

natureza mais intuitiva dos critérios de valoração do bem cultural por

parte do observador moderno6.

Um exemplo dessa postura mais recente, segundo Solà-Morales, é a

atuação de Giorgio Grassi no Castelo de Abbiate Grasso (1970). O

crítico menciona que o arquiteto cria uma base metodológica para a

intervenção a partir da própria arquitetura do edifício existente, ou

seja, a partir da interpretação de suas leis internas. Não há dúvidas

de que a metodologia desenvolvida por Grassi, para as intervenções

em preexistências, tem ligações com os princípios empregados por

Rossi, pois ambos participam do mesmo ambiente, integram o grupo

Tendenza, e condividem a defesa das mesmas teorias de análises

tipológicas que inspiram os seus respectivos projetos de arquitetura.

Sob esse ponto de vista, o projeto contemporâneo surge como

compromisso entre os modos peculiares à tradição moderna, que se

baseiam na independência da velha e da nova estrutura, e os

conceitos tipológicos que criam uma correlação mútua capaz de dar

certa unidade ao conjunto submetido à intervenção. Sincronia,

similaridade, mas não identidade, ou eliminação completa da

diferença entre o novo e o antigo.

Esse mesmo método é empregado por Rafael Moneo, no sentido de

seguir as pistas dadas pelo próprio edifício, percorrer sua lógica de

composição e de organização espacial, para então estabelecer uma

tênue analogia entre a preexistência e a nova estrutura.

6 A contribuição de Alois Riegl é abordada no capítulo I - parte I.

80

Como ressalta Solà-Morales, a crítica da linguagem de Wittgenstein

desmonta a pretensão de generalidade e permanência contida nos

processos culturais do modernismo em sua formação. Prevalece,

segundo autor, uma divisão entre o reconhecimento do valor estético

e material, a dimensão factual da obra concreta e o sistema infinito

de referências que povoa o imaginário coletivo.

Na atualidade se reconhece que o mecanismo de análise morfológica

desenvolvido pela “escola” de Rossi não assegura necessariamente

um patamar elevado para o projeto quanto à qualidade arquitetônica.

No entanto, há de se convir que o abandono de critérios e de

princípios orientadores da intervenção incorre em maior chance de

conduzir à superficialidade e à casualidade dos procedimentos

adotados.

É comum observar alguns vícios de conduta em ações de

intervenção em preexistências entre os quais o arbitrário

“descascamento” do revestimento com o intuito de se evidenciar os

materiais e as técnicas construtivas. Essa atitude permanece por

algumas décadas como extensão de um gosto moderno, em lugar de

se optar por uma diagnose crítica.

Sobre a visão multifacetada do pensamento contemporâneo, autor

observa que:

“El conocimiento histórico, al igual que las técnicas

analíticas del proyecto, se mueve en la contradicción entre

el sofisticado desarollo de sus áreas de conocimiento y la

depauperación metodológica más absoluta. Microhistoria,

historia antropológica o historia de las mentalidades son, en

el fondo, las respuestas privadas, reduccionistas y

fragmentarias que se producen ante la impossibilidad de

sostener modelos interpretativos de más vasto alcance.”7

É possível, portanto, criar uma rede de significados cuja ativação só

pode ser propiciada pela obra em si, como suporte dessa

manipulação de significados, hoje exercida com ampla liberdade de

interpretação, pela própria natureza da transformação do estudo da

7 Idem, p.49.

81

história na atualidade, como assinala Solà-Morales. A questão mais

polêmica gira entorno da margem de liberdade na interpretação de

significados e na leitura crítica que se faz da obra preexistente como

fundamento para a intervenção. Os significados que nos propõem as

obras não são únicos, nem são únicas as interpretações, aliás, estas

podem ser, no máximo, coerentes, convincentes e consistentes, mas

dificilmente serão definidas categoricamente como verdadeiras ou

falsas, como certas ou erradas.

Segundo o autor, a intervenção como operação estética é:

“(...) la propuesta imaginativa, arbitraria y libre por la que se

intenta no sólo reconocer las estructuras significativas del

material histórico existente, sino también utilizarlas como

pauta analógica del nuevo artefacto edificado.”8

Solà-Morales aceita como dado irrefutável a arbitrariedade e

aleatoriedade da intervenção: “el sistema particular definido por el

objeto existente es el fundamento de toda analogia, y sobre esta

analogia se constuye todo significado possible y aleatorio.”

Essa é justamente a controvérsia que se cria com as posições do

campo do restauro que não admitem a arbitrariedade. Basta citar as

observações de Phillipot9 sobre o quanto são raros os arquitetos que

dispõem de uma formação histórica suficiente a permitir que

reconheçam os valores a salvaguardar. Ao contrário, sinaliza o autor,

o arquiteto normalmente quer permanecer criador em todas suas

intervenções. Raramente tem a modéstia de se submeter às

exigências ditadas pelo respeito dos valores históricos e estéticos da

obra preexistente.

Vale destacar, entretanto, o quão é significativa a revisão de critérios

e métodos de projeto realizada por arquitetos da segunda e terceira

geração do movimento moderno, no que se refere à reflexão e

interpretação a respeito da herança cultural do passado.

8 Idem, p. 50.(O grifo é nosso).

9 PHILLIPOT, P. Em Strumenti 17, Saggi, sul restauro e dintorni. Antologia. Roma:

Bonsignori, 1998. Artigo: “Restauro: filosofia, criteri, linee di guida”, p. 106.

82

Os novos motes da produção arquitetônica

Os arquitetos que atingem a maturidade nos anos 1960 têm alguns

traços comuns: nasceram entre 1915 e 1930, logo, seus primeiros

anos de vida foram marcados pela segunda guerra mundial; seus

vocabulários se estabelecem tendo como pano de fundo o declínio

do Estilo Internacional; têm como referência o trabalho dos mestres

não apenas no início da carreira, mas em momentos posteriores em

que é mais evidente a busca de uma expressão pessoal.

Essas considerações podem ser aplicadas à análise das afinidades

entre a obra de Lina Bo Bardi e Aldo Rossi. Ainda que Lina Bo Bardi

respeite alguns princípios da arquitetura moderna, não defende a

certamente a ortodoxia servil, capta à distância as discussões do

panorama europeu. Sua posição é marcada pela tensão entre a

fidelidade aos mestres fundadores e a necessidade de atentar para

uma nova situação que reclama a auto-expressão e que reata os

vínculos com a história. Rossi, mais jovem e atuante no próprio

ambiente cultural onde ocorrem os debates, participa mais

intensamente da revisão crítica do modernismo.

Sigfried Giedion, conforme informa William Curtis10

, identifica a

presença de uma “terceira geração” a reconhecer a continuidade de

um espírito interno do projeto moderno transmitido de uma geração à

outra.

Indiscutivelmente os anos 1950 e 60 sinalizam a complexidade do

período pós-guerra no que tange às exigências de reorganização e

reconstrução das cidades, bem como à tendência de vulgarização e

reducionismo de certos modelos seminais da arquitetura moderna.

Nota-se a difusão de uma versão simplista dos projetos modernos,

encampados de modo superficial por setores do mercado imobiliário,

envolvidos com a tarefa de solucionar com agilidade os problemas

urbanos daquele momento. Os arquitetos dessa geração devem

distinguir o “bom” do “mau” exemplo e se vêem incertos diante das

possibilidades de prosseguir no aprofundamento e ampliação dos

princípios arquitetônicos modernos ou optar pela busca constante de

inovação de valores e tecnologias.

10

CURTIS, W. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008, p.

547.

83

A arquitetura moderna, em suas mais diversas manifestações,

continua a oferecer a promessa de transformação social ou, ao

menos, a fornecer inspiração formal para os anseios de mudança.

Os anos 1960 não mostram, entretanto, uma linha única de

pensamento, ao contrário, evidenciam abordagens pluralistas em

meio a um contexto em que prosperam os questionamentos e, mais

do que as certezas, destacam-se as controvérsias e debates.

Alguns dos dilemas desses anos têm origem na discussão sobre os

problemas urbanos, no rápido desenvolvimento econômico e

tecnológico e na nova visão da história.

Curtis observa que:

“tanto dos discursos críticos do período se referem à

necessidade de se criar uma esfera pública viável, de

combinar o novo com modelos preexistentes de ruas e

praças, de se valer das camadas e memória e hábitos

sociais inerentes a lugares específicos.”11

Reyner Banham12

(1922-1988) agrupa importantes obras do fim dos

anos 1950 e início dos anos 1960 sob a identificação de uma nova

tendência, o “neobrutalismo”, segundo o qual a arquitetura apresenta

uma maior contundência estrutural, combinada com o uso de

materiais brutos, sem decoração e tratamento, deixando à vista as

instalações dos edifícios. Lina Bo Bardi vem freqüentemente

associada a essa concepção de projeto.

A esse respeito, Curtis manifesta uma percepção, não propriamente

uma certeza, de que há uma sensibilidade compartilhada, no

período, pela expressão dos materiais, “da coisa em si”, como denota

a recorrência às superfícies de concreto aparente propositadamente

marcadas pelos sinais das formas de madeira.

Na Itália, apesar da retórica demolidora do futurismo das primeiras

décadas do século XX, a tradição nunca foi completamente banida.

O discurso mais ortodoxo do movimento moderno tem, nesse país,

diversos opositores entre os quais se destacam: Bruno Zevi e sua

11

CURTIS, op. cit. p. 549. 12

Em El brutalismo en arquitectura (1966).

84

defesa da arquitetura orgânica; Paolo Portoghesi e sua proposta

formalista de linhagem neobarroca; as vertentes críticas esquerdistas

de diversas matizes representadas por Leonardo Benevolo,

Manfredo Tafuri, entre outros.

Convém ressaltar a presença de uma corrente neoracionalista

caracterizada pela fusão de princípios abstratos da vanguarda

racionalista com a tradição clássica sempre presente na cultura

italiana. Um dos principais representantes dessa vertente é Ernesto

Nathan Rogers que, aliás, exerce grande influência no ambiente

milanês dos anos 1950 e 60, através de sua atividade editorial, à

frente da revista Casabella.

A influência de Rogers pode ser colhida seja na obra de Lina Bo

Bardi que na de Aldo Rossi, como será exposto a seguir. De modo

equivalente, ecoam nas reflexões de ambos os arquitetos as

proposições de Benedetto Croce sobre a arte e a história, bem como

as idéias de Giulio Carlo Argan sobre os vínculos entre a arquitetura

e o “contexto” da cidade.

Aldo Rossi segue uma via alternativa frente às vertentes que

defendem o avanço e sofisticação da tecnologia, como também em

relação às tendências que apontam para a fragmentação e a ruptura

mais incisiva dos princípios fundadores do movimento moderno. Sua

reflexão e aplicação prática estão preocupadas com noções como

“memória”, “monumento”, “tipologia” e “lugar”, vinculadas às cidades

tradicionais e, ao mesmo tempo, inspiradoras da arquitetura do

presente, são abordadas a seguir.

Lina Bo Bardi, apesar de deixar a Itália, traz na bagagem preciosas

referências culturais. Enfrenta o desafio de lidar com as

preexistências de interesse histórico em um território em que as

discussões sobre o patrimônio ainda são incipientes. Não afronta

apenas o edifício isoladamente, mas atua em intervenções de caráter

urbano. Assim, a análise de sua atuação permite confrontar seus

critérios com aqueles do campo específico do restauro do edifício,

além de abordar as motivações culturais de um rigoroso trabalho de

recuperação urbana.

85

As discussões urbanas

O Team X, atuando no próprio interior do espaço de discussões dos

CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), constitui

um dos grupos mais ativos no enfrentamento do que considera ser

um excesso de racionalismo e funcionalismo do urbanismo esboçado

pelo movimento moderno.

No pós-guerra, a tão propalada tabula rasa torna-se uma dura

realidade a ser enfrentada. Além disso, a enorme demanda

habitacional acaba por favorecer a massificação os conjuntos

habitacionais. A urgência da reconstrução das cidades européias põe

em cheque a Carta de Atenas como doutrina a ser seguida.

Nos primeiros CIAMs do pós-guerra, a tônica das discussões é a

reorganização do movimento que havia se desestruturado na década

anterior. Um primeiro questionamento começa a surgir na ação do

arquiteto holandês Aldo Van Eyck (1918-1999) que, em 1947, diz: “o

CIAM sabe que a tirania do consenso cartesiano chegou à sua última

fase”.13

O evento de 1949, realizado em Bérgamo, cidade histórica italiana,

influencia a escolha do próprio tema do colóquio seguinte (CIAM

VIII), The heart of the city, organizado pelos ingleses em 1951, e que

marca uma nova fase. Esse congresso, ao eleger como tema os

centros das cidades (em grande parte destruídos pela ação da

guerra), impõe o questionamento sobre como atuar diante das ruínas

e sobre como lidar com as preexistências, temas pouco comuns

nesses encontros até então.

Começa também a ganhar ênfase a preocupação com o usuário real

das cidades, em contraposição a uma visão generalista que situava

as discussões no plano mais abstrato do homem ideal. A partir do

momento em que se intensifica o enfoque das questões ligadas à

singularidade e diversidade, as doutrinas genéricas e

internacionalmente aceitas, como a Carta de Atenas e a própria

13

Em MUMFORD, E. The Ciam discourse on urbanism, 1928-1960. Cambridge

Mass., MIT, 2000. apud JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003, p. 26. Van

Eyck demonstra grande interesse pelo que é considerado arquitetura vernacular ou

popular. È uma das referências de Lina Bo Bardi.

86

instituição do CIAM14

, passam a ser tidas como inadequadas para

afrontar a questão urbana sob novos pontos de vista.

Entre os grupos envolvidos nos debates dos anos 1960 convém

incluir os Situacionistas. Apesar dos métodos distintos, é possível

identificar afinidades entre esse grupo e o TEAM X. Entre os pontos

comuns podem ser destacados: a opção pela diversidade e mistura

de usos contra a ortodoxia da separação das funções; a atenção às

singularidades, sobretudo das pessoas comuns e reais das cidades

existentes, à busca de identidade em substituição à impessoalidade

simbolizada na figura do Modulor de Le Corbusier; uma volta à

pequena escala, à escala humana e à participação dos habitantes.

Se hoje as duas figuras representativas das correntes hegemônicas

do pensamento urbano contemporâneo, como identifica Paola

Berenstein Jacques15

, são a cidade-museu e a cidade genérica – a

primeira propensa ao congelamento; a segunda à difusão e

urbanização generalizada, ambas unidas pelo fenômeno da

espetacularização – talvez seja de fato pertinente retomar as

iniciativas dos Situacionistas em relação à cidade. Nesse sentido, é

oportuno citar a apresentação de Jacques que pontua os moventes

dessa ação.

“A Internacional Situacionista (IS) – grupo de artistas,

pensadores e ativistas – lutava contra o espetáculo, a

cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja,

contra a não-participação, a alienação e a passividade da

sociedade. O principal antídoto contra o espetáculo seria o

seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os

campos da vida social, principalmente no da cultura. O

interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma

conseqüência da importância dada por estes ao meio

urbano como terreno da ação, de produção de novas

14

O último encontro ocorre em 1959, na Holanda, quando os membros decidem

encerrar suas atividades. 15

JACQUES, op. cit.

87

formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou

ausência de paixão, da vida cotidiana moderna.”16

Assim como se nota no terreno da arquitetura o surgimento de

correntes pós-modernas interessadas em recuperar os modelos

históricos das culturas preexistentes, através do emprego de motivos

reconhecíveis como espécies de citações compositivas, também é

possível reconhecer no plano urbano uma tendência à museificação

e patrimonialização que oscila entre a petrificação do espaço e o

pastiche histórico, privilegiando a visão cenográfica da cidade. Essas

duas abordagens são comentadas respectivamente em linhas gerais

nos capítulos a seguir que tratam das atuações de Aldo Rossi e Lina

Bo Bardi, vistas como alternativas mais consistentes a essas ações

acima descritas.

Alguns questionamentos ligados à prática do ‘construir no

construído’

Como já observado, na situação contemporânea os temas da

conservação e restauro ganham maior repercussão e consenso na

sociedade, superando, portanto, os limites do campo de estudo

especializado, para tornar-se matéria de ampla discussão

interdisciplinar. Na mesma medida em que ganham destaque, os

temas da preservação cultural sofrem certo desgaste pela maneira

como são encampados por abordagens ligadas a aspectos

econômicos e turísticos que envolvem o planejamento e a gestão das

cidades contemporâneas, distanciando-se, por conseqüência, da

orientação mais rigorosa de cunho conceitual estético e filológico.

Essa preocupação comparece em autores importantes, na análise

das cidades atuais tendo em vista seu devir histórico. As abordagens

envolvem seja a atenção específica do tema do patrimônio, como o

faz Françoise Choay, seja o estudo das questões mais gerais

relacionadas às cidades contemporâneas, entre as quais se situa o

convívio com as preexistências, como em Michel Sorkin. Esses

autores são citados na análise das intervenções de Lina Bo Bardi.

16

Idem, p. 13.

88

Pode-se dizer que persiste na atualidade uma dupla interrogação

sobre a relação que o presente instaura com o passado. Por que

hoje se fala tanto em memória, conservação, resgate? Como pode

ser encarada a pesquisa histórica em tempos de pós-modernidade,

quando se considera superada a noção de que a tarefa dos

historiadores deve estabelecer a verdade dos fatos ocorridos no

passado?

Uma terceira questão se coloca especificamente ligada ao patrimônio

construído. Como distinguir os bens culturais das genéricas

preexistências, quando o campo da ação patrimonial se amplia,

incorporando as noções da micro-história, da antropologia?

Sabe-se que a intervenção de restauro, entendida na acepção

moderna, é a ação diretamente ligada à pesquisa histórica e, de

conseqüência, distinta das demais operações – manutenção,

reforma, recuperação e reuso (também denominado reutilização,

requalificação ou reciclagem) – e, portanto, não pode ser equiparada

tampouco às práticas, tão comuns no passado, de reconstrução e

reconfiguração livres e arbitrárias. Logo, é necessário identificar

essas operações discutíveis que ignoram os princípios e as

contribuições acumuladas no campo disciplinar do restauro e que,

por isso, lidam de modo descompromissado com a arquitetura tida

como bem cultural.

Ao contrário, observam-se intervenções dignas de nota e de estudo

exatamente por surgirem de uma aproximação crítica rigorosa em

relação às preexistências de interesse cultural e, conseqüentemente,

têm em conta e respeitam essas preexistências em seus valores

plásticos e construtivos, sem, no entanto, encará-las como um ciclo

fechado, mas reinserindo-as no presente.

Não há como negar também que certa arquitetura pode ter seu uso

adaptado para novas funções, na medida em que o abandono é um

importante inimigo da preservação. Não se trata, contudo, de aceitar

toda e qualquer adaptação que implique descaracterização e perda

de valor para o objeto de intervenção.

Tudo se inscreve na questão dos valores e do metódico

reconhecimento desenvolvido através do estudo atento do bem

89

cultural – de sua natureza, de sua qualidade – considerado em

relação aos interesses da cultura hodierna e tendo em vista as

exigências de tutela desse bem enquanto testemunho do passado e

não certamente por fetichismo, nem tampouco por razões

econômicas, mas sim por motivos culturais mais profundos.

A partir dessas considerações, não seria legítimo avaliar a afinidade

de princípios e métodos do campo disciplinar do restauro com a

metodologia de Lina Bo Bardi, cuja ação de projeto desenvolve-se

em diálogo com a história e comprometida com a experiência crítica?

Não seria pertinente considerar, nesses casos, o rigor de método e a

paciente pesquisa que antecede a intervenção, em favor do interesse

histórico e figurativo da preexistência sobre a qual se atua?

A restauração hoje admite a estratificação de diferentes

temporalidades, incorporando inclusive acontecimentos fortuitos,

acidentes, desastres e catástrofes, como dados a serem

considerados para fins de conservação. Por que então não

considerar a continuidade do fluxo do tempo histórico para os bens

culturais? O que dizer de ampliações necessárias realizadas em

obras de interesse cultural?

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91

Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio

“(...) o que reputamos necessário, hoje em dia, é um justo meio,

é pois nem o ‘dogmatismo’ nem o ‘impressionismo’, mas uma

espécie de medida, naturalmente crítica que, levando em

consideração a história como herança e continuidade, abra as

mais amplas liberdades às possibilidades do arquiteto, hoje

mais do que nunca mediador responsável pelo ‘modo de viver’

dos homens.” 1

Um primeiro olhar

Definitivamente uma trajetória singular. Não somente pela condição

livre de profissional que decide migrar, mas também pelo prazer da

descoberta, pela inquietude, um dos traços marcantes do caráter de

Lina Bo Bardi, sempre pronta a captar a riqueza das situações mais

corriqueiras a que um nativo nem sequer daria atenção.

Lina Bo Bardi é uma exploradora dos tempos modernos, aliás, os

Bardi juntos atuaram como exploradores de tempos recentes.

Valendo-se da condição de intelectuais europeus que são recebidos

de portas abertas, através dos vínculos mantidos lá fora,

estabelecem um circuito de relações internacionais e encontram no

Brasil um território aberto a pesquisas e experimentações.

Aproveitam essas oportunidades e esse circuito privilegiado de

amizades para realizar um trabalho de grande relevância cultural.

O olhar estrangeiro concede-lhe a capacidade de enxergar a

peculiaridade e a vitalidade da cultura popular sem confundi-la com

folclore, com as sacramentadas interpretações oficiais. Nada em

comum com a visão estereotipada do forasteiro frente às diferenças

culturais, sua percepção aguda possibilita o reconhecimento de

valores como autenticidade e singeleza, muito distante da ideia

1 Lina Bo Bardi em Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura.

São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2002, p.51. O escrito corresponde à tese

apresentada ao Concurso da disciplina de Teoria de Arquitetura da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1957. (O texto tinha sido

publicado em tiragem limitada, em italiano, em 1992).

92

banalizada sobre a produção artesanal brasileira. Ao contrário do

lugar-comum, sua avaliação é surpreendente, acurada e profícua,

identificando qualidade nas soluções inventivas com os meios mais

escassos e nelas colhendo inspiração.

Uma sólida formação humanística permite-lhe dominar as mais

diversas situações: afere com atenção as possibilidades a explorar,

os eventuais entraves a superar, para então estabelecer um

diagnóstico preciso e traçar um projeto não só possível, mas

concretamente criativo. O conhecimento técnico e construtivo conduz

sua disposição em contornar dificuldades e transformar as limitações

em estratégias particulares, dispondo dos recursos disponíveis e

apropriando-se das habilidades dos construtores, dos colaboradores

em geral, de seus conhecimentos, de sua experiência pessoal. Até

mesmo a consciência do despreparo da mão-de-obra, decorrente

das não raras condições precárias de instrução e formação

profissional, não a faz subestimar nem depreciar as potencialidades

naturais e as possibilidades reais de aprendizado dos trabalhadores.

Lina Bo Bardi capta o vigor da miscigenação cultural, a força criativa

das soluções sincréticas autóctones. Coleta, coleciona, mapeia,

musealiza e reinventa não só o monumental, mas sobretudo o

cotidiano. Não por acaso é identificada como “caso híbrido” por

Eduardo Subirats2, para quem o hibridismo é a palavra de ordem das

culturas divididas entre a vitalidade local e as influências dos grandes

centros corporativos de produção de tecnologia e informação. Uma

obra que une a “extrema fantasia à sobriedade extrema”, nas

palavras do autor.

De início, pouco explorada, a produção de Lina Bo Bardi,

repentinamente nos anos 1990 e, mais intensamente, a partir dos

anos 2000, desperta interesse renovado seja no Brasil que na

Europa. Surgem a partir desse período vários ensaios críticos,

pesquisas acadêmicas3 e exposições de divulgação do seu trabalho.

2 GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Venezia: Marsílio, 2004. O livro foi

publicado por ocasião da 9ª Bienal de Arquitetura de Veneza e conta com a

participação de vários autores, entre os quais Eduardo Subirats, filósofo e poeta,

amigo de Lina Bo Bardi, que assina o texto: “Lina Bo: Un’epoca nuova e già

cominciata”, pp. 21-52. 3 Entre as pesquisas concluídas em tempos mais recentes, que abordam sua

atuação, destacam-se: OLIVEIRA (Dissertação de Mestrado, FAUUSP, 2008);

93

É de certo modo repelida pelos ambientes acadêmicos,

especialmente pela USP, quando se candidata a ocupar uma vaga

como professora do curso de arquitetura em 19574. Conforme relata

Marcelo Ferraz5, um de seus diletos colaboradores, Lina Bo Bardi é

submetida a uma espécie de ostracismo, vítima não só do regime

militar, mas também “das vistas grossas da arquitetura oficial”. Isso

ocorre, certamente, por ela não se alinhar ao pensamento

dominante, aos grupos e suas lideranças, por manter-se fiel às suas

convicções pessoais e à sua formação consistente e autônoma.

Manifesta-se sempre com franqueza, sem hipocrisias nem

sectarismos, não somente sobre os temas da sua profissão. Avessa

aos reducionismos, não teme o debate, ambiciona a transformação,

a prática da cidadania, e com absoluta propriedade combina utopia e

realidade, rigor e liberdade.

A este estudo interessa analisar a atuação de Lina Bo Bardi sob um

enfoque mais diretamente ligado às questões discutidas no âmbito

da conservação do patrimônio cultural. Para tanto, inicia-se com o

enfoque de sua formação e prossegue-se com a análise de três

intervenções específicas selecionadas como objeto de estudo: o

SESC Pompéia (1977-86) em São Paulo, o Solar do Unhão (1962) e

a Ladeira da Misericórdia (1987), ambos em Salvador, Bahia. Os dois

últimos projetos constituem parte de um ambicioso plano de

recuperação do centro histórico de Salvador executado em duas

etapas distintas.

É a própria atividade do arquiteto que acaba por constituir o interesse

central do estudo, na medida em que se estabelecem relações entre

as intervenções analisadas. Nesse sentido, pretende-se repercorrer a

lógica de elaboração dos projetos, reconstituir a poética contida

ROSSETTI (Dissertação de mestrado, UFBA, 2002; Tese de Doutorado, FAUUSP,

2007); RUBINO (Tese de Doutorado, UNICAMP, 2002). Entre os livros publicados:

OLIVEIRA, O. Lina Bo Bardi, sutis substâncias da arquitetura. São Paulo: Romano

Guerra: Barcelona: Gustavo Gili, 2006; GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto.

Veneza: DPA: Marsílio, 2004. 4 Lina Bardi, em debate que segue sua conferência intitulada: Aula de arquitetura,

publicada pela Revista Projeto n. 133, 1990, ao falar sobre a impossibilidade de

afrontar um tema complexo em exíguo intervalo de tempo, diz textualmente: “Para

isso, eu precisaria ainda dar aula na FAU. Mas me jogaram fora, não me quiseram

mais lá, na rua Maranhão. Não foi o corpo discente, mas as pessoas importantes.” 5 Em texto intitulado “Numa velha fábrica de tambores...”, publicado no portal

<www.vitruvius.com.br> seção: Minha cidade. Acesso em 20/04/2009

94

nesses processos de trabalho, confrontar e cotejar os critérios de

intervenção.

A escolha dos projetos a serem analisados foi pautada

essencialmente pela importância e pioneirismo devidos, entre outros

motivos, à antecipação de condutas e à discussão de conceitos

propiciada a partir da elaboração de escritos que acompanham o

desenvolvimento dos projetos. Trata-se da ação de um arquiteto não

especialista na área da conservação, com uma postura que

surpreende não só os técnicos dos serviços de tutela do patrimônio

cultural, mas os arquitetos em geral. Lina Bardi demonstra ter um

preparo teórico sólido e amplo em sua formação européia: em seus

textos menciona Gustavo Giovannoni, o “restauro científico”, o

“restauro crítico” e a Carta de Veneza6, temas sobre os quais este

estudo pretende deter-se.

A esta pesquisa interessa, sobretudo, a discussão sobre as vertentes

mencionadas por Lina Bo Bardi ao discorrer sobre os princípios que

norteiam suas intervenções – especialmente o restauro “científico” e

o “crítico” – além de uma análise comparativa entre os

procedimentos por ela adotados e as deliberações da Carta de

Veneza. Outro aspecto a ser investigado é a aproximação entre sua

conduta e a reflexão de Cesare Brandi (1906-1988)7. Todas essas

referências teóricas são muito pouco divulgadas no Brasil na época

em que Lina Bardi desenvolve os projetos mencionados. Nesses

trabalhos, ela faz questão de adaptar esse conhecimento não só às

circunstâncias específicas de cada situação, mas principalmente à

sua convicção e interpretação pessoal.

Não se deixa levar por uma concepção superficial que confunde

respeito histórico com timidez de ação, nem cai no equívoco de

repetir uma prática corrente que funde as operações de recuperação

e reconstrução de elementos preexistentes, sem distingui-las entre

6 A Carta de Veneza reúne as deliberações do Congresso Internacional de

Arquitetos e técnicos de Monumentos Históricos realizado em 1964 e foi adotada

pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios da UNESCO) em

1965. 7 Autor do livro Teoria del Restauro (1963), é um dos intelectuais italianos mais

expressivos do século XX, no campo da crítica da arte. Dirigiu o Istituto Centrale del Restauro de Roma entre 1939 e 1961. Sua reflexão teórica acerca do restauro, não

obstante ter mais de quarenta anos completos, continua essencial e ainda atual. Seu

livro foi traduzido para o português com o título Teoria da restauração por Beatriz M.

Kühl e publicado em 2004.

95

si, sem diferenciá-las dos novos componentes introduzidos. Reafirma

sua posição contrária a uma conduta que impera até hoje, o conceito

de matriz violletiana de volta a um estado original8. Reflete e expõe

seus pontos de vista em confronto com as referências teóricas

acumuladas, na forma de memoriais explicativos, abrindo assim a

possibilidade de discussão e debate sobre suas condutas de

intervenção.

Os caminhos trilhados

Seu modo de ser independente e irreverente pode dar a entender, a

princípio, que Lina Bo Bardi não se importa com a cultura oficial

consolidada. Engano pensar que ela desconheça ou ignore a

produção teórica dos seus conterrâneos, ou pensar que seus

projetos sejam fruto de pura e simples intuição. Um denso preparo

teórico e técnico ampara suas decisões.

Convém, portanto, ressaltar os aspectos ligados à sua formação e à

experiência profissional que possam iluminar a compreensão de seu

trabalho relacionado aos temas da memória e da intervenção voltada

à arquitetura preexistente.

Lina Bo Bardi nasceu em Roma em 1915 e morreu em São Paulo em

1992. Formou-se em 1939 pela Faculdade de Arquitetura de Roma

cuja tradição de ensino centrava-se nas “disciplinas histórico-

arquitetônicas”, reflexo da própria condição da cidade enquanto

estratificação de tempos históricos, conforme seu relato pessoal9:

“O fato de Roma ser um dos centros da cultura clássica,

fazia com que os alunos aplicassem a maior parte do tempo

de seu estudo à observação dos monumentos antigos.”

A formação ligada à escola romana, sob influência de Gustavo

Giovannoni, explica o apreço pelo sentido histórico do ofício do

arquiteto10

. No entanto, a jovem arquiteta não se deixa acomodar: a

8 A persistência do conceito violletiano de restauração é analisada por Antônio Luiz

Dias de Andrade em sua Tese de Doutorado, cujo título é: Um estado completo que pode jamais ter existido, FAUUSP, 1993. 9 Conforme relato da própria Lina Bo em seu Curriculum Literário, em FERRAZ

(org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 9. 10

OLIVEIRA, Olívia de. “I mondi immaginari e i modi reali”, em GALLO, op. cit., p.

84.

96

atmosfera de Roma, capital do fascismo, a presença sufocante de

sua história e de suas ruínas faz Lina Bardi procurar um ambiente

mais dinâmico, mais propenso a acolher as propostas inovadoras do

movimento moderno, diferente daquele racionalismo monumental

das obras de Marcello Piacentini. Muda-se então para Milão, para

“adquirir prática”. Colabora Gio Ponti, o “último dos humanistas”11,

diretor das Trienais de Milão e da revista Domus. Essa atividade

rendeu-lhe uma rica e variada experiência: desde o design de

mobiliário, passando pela moda, até projetos urbanísticos.

A guerra, no entanto, paralisa a produção arquitetônica, o que faz

com que se concentre na atividade de pesquisa (especialmente

sobre artesanato e Desenho Industrial) e de ilustração, colaborando

com diversas revistas e jornais, alguns deles de relativa importância.

Essa circunstância específica da guerra, que paralisa a atividade de

projeto, não a imobiliza: ainda muito jovem, com a impossibilidade de

projetar, Lina Bardi dedica-se a intenso trabalho na área editorial.

Seleciona temas, recolhe material, documenta, edita e publica.

Cultiva, assim, a prática da escrita que não será abandonada quando

terá a chance de voltar à atividade de projeto. Ao contrário, concilia o

pensar e o fazer arquitetura pela mediação do texto escrito,

explicitando critérios, motivações, raciocínios que orientam a prática.

A duríssima prova da guerra impõe um claro posicionamento político:

“Em tempo de guerra, um ano corresponde a cinqüenta

anos, e o julgamento dos homens é o julgamento dos

pósteros. Entre bombas e metralhadoras fiz um ponto da

situação: importante era sobreviver, de preferência

incólume, mas como? Senti que o mundo podia ser salvo,

mudado para melhor, que esta era a única tarefa digna de

ser vivida, o ponto de partida para sobreviver. Entrei na

Resistência, com o Partido Comunista clandestino. Só via o

mundo em volta de mim, como realidade imediata, e não

como exercitação literária abstrata.”12

11

Assim se definia o arquiteto, conforme declara a própria Lina Bardi. 12

FERRAZ, M. C. (org.) Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi,

1993. Fragmento de seu Curriculum Literário, p. 10.

97

Ao exercício da escrita agrega-se o da ilustração [1], possibilitando o

desenvolvimento de uma forma especial de expressão que

caracteriza seus projetos, como assinala Luís Antônio Jorge, ao

definir seus croquis:

“(...) narrativa literária, onde Lina dialoga com seus distintos

interlocutores, através de inumeráveis anotações, evocando

idéias, imagens, referências, montando uma espécie de

story-board, voltado muito mais à demonstração dos

fundamentos do projeto, dos conceitos da proposta, do que

à sua melhor representação. A ênfase nas idéias e a

coerência entre elas e as imagens geratrizes do projeto, ao

mesmo tempo em que evitam a retórica do desenho pelo

desenho, desmistificam o ato criador em prol de uma

pedagogia poética.” 13

13

JORGE, Luís Antônio. Tese de Doutorado intitulada: O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. FAUUSP, 1999, p. 105.

[1] Ilustração Revista “Illustrazione Italiana”, 1942.

Fonte: FERRAZ, 1993, p. 29.

98

Sugestiva e precisa a observação sobre a singularidade do seu

desenho:

“Desenho que pretende ser minucioso sem perder o

despojamento quase irreverente de quem vê e cria.

Desenho criador. Retrato criativo. Por isso, feliz. Felicidade

que, como afirma Bachelard, provém da vontade e da

imaginação criativa e não do conteúdo, do que se quer

retratar.” 14

Com Bruno Zevi, Lina Bo Bardi funda a revista semanal “La cultura

della Vita”, editada em Milão pelo mesmo editor de Domus, antes de

vir para o Brasil, em 1946, já casada com o jornalista e crítico de

arte, Pietro Maria Bardi. Aqui, no “país inimaginável onde tudo era

possível”, encontrou território adequado para viver e realizar sua

atividade inventiva. Com a revista Habitat15 passa a ocupar um

espaço no mundo editorial brasileiro.

Entre os vários autores que se dedicam à análise de sua obra

destacam-se aqui Montaner (1997) e Oliveira (2006). Josep Maria

Montaner a situa junto a Louis Khan, Jorn Utzon, Aldo van Eyck, Luis

Barragán e Fernando Távora, representantes de uma terceira

geração do movimento moderno que “rechazan el formalismo y el

manierismo del estilo internacional y reclaman mirar de nuevo hacia

los monumentos, la storia, la realidad y el usuario, hacia la

arquitectura vernacular”16

Lina Bardi, para o crítico, representa uma das experiências mais

originais e significativas entre os arquitetos dessa terceira geração.

Assim sintetiza a essência de sua obra:

“(...)consiguió superar los límites del mismo arte moderno, sin

romper con sus principios básicos. Si la arquitectura moderna

era antihistórica, ella consiguió hacer obras en las que

modernidad y tradición no eran antagónicas. Si el arte

moderno era intelectual, internacional y reacio

14

Idem, p. 105. 15

Lina Bardi participa do corpo editorial da revista Habitat, revista do MASP,

publicada de 1950 a 1959. 16

Em MONTANER, J. M. La modernidad superada. Arquitectura, arte y pensamiento del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997, p. 12.

99

al gusto establecido y a las convenciones, en Brasil han sido

possibles una arquitectura y un arte modernos enraizados en

la experiencia del arte popular, negro e indígena,

rigurosamente distintos del folclorismo, el populismo y la

nostalgia. Si la arquitectura racionalista se basaba en la

simplificación, la repetición y los prototipos, Lina Bo Bardi

supo introducir sobre un soporte estrictamente racional y

funcional, ingredientes poéticos, irracionales, exuberantes e

irrepetibles. Concilió funcionalidad con poesía, modernidad

con mímesis.”17

Destaca ainda que sua arquitetura mantém os valores básicos da

arquitetura do movimento moderno: humanismo, projeto social,

vontade de renovação formal, construção utilitária, funcionalista, mas

com uma característica fundamental: a marca da expressão do

trabalho artesanal.

Conforme lembra Montaner, Bruno Zevi havia defendido uma

necessária liberação dos limites e rigores da arquitetura moderna

racionalista, em favor da peculiaridade da arquitetura orgânica.

Ernesto Nathan Rogers havia afirmado que o único modo de ser

moderno na condição contemporânea era fazer presente o sentido

vivo da história, evitando os automatismos e vícios da experiência

passada.

Olívia de Oliveira, assim como Montaner, observa no trabalho de

Lina Bardi a superação do esquematismo abstrato da linguagem

moderna. Dessa forma explica o compromisso do “architetto”18

com a

reconsideração da relação com a história, a atenção à tradição

popular e ao ambiente preexistente, seja natural, seja construído.

Traços essenciais de seu trabalho que guardam afinidade com as

idéias postuladas por Rogers.

Como bem coloca a autora, essa aproximação com os elementos

artesanais e o uso dos materiais recorrentes na arquitetura popular,

17

Idem, p. 13. 18

Era assim que Lina Bo gostava de ser chamada, architetto, no masculino como se

diria no idioma italiano, em que a maioria das profissões não possui denominação

feminina.

100

no entanto, nada têm a ver com o ideal romântico de Ruskin e Morris.

Não se trata de mitificar o artesanato, mas sim privilegiar a

simplicidade das soluções, o uso de recursos disponíveis e de baixo

custo combinados à valorização da criatividade.

O Solar do Unhão (1959-1962)

A principal publicação do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi que reúne as

memórias de seu trabalho traz uma documentação parcial da obra e

um texto que descreve sucintamente as suas operações técnicas e

as decisões conceituais que envolvem o projeto19

. Destaca o

importante conjunto arquitetônico do século XVI, modificado no

século XVII e que no século XIX recebe a instalação de uma das

primeiras manufaturas do Brasil. Informa que o conjunto foi objeto de

tombamento pelo SPHAN em 1940 e comenta a pretensão em

incorporar as intervenções significativas que o conjunto sofreu

durante sua história: “todos os aspectos dramáticos do ambiente

foram respeitados”20.

As operações de conservação realizadas no solar são voltadas a

recuperar e sublinhar a “belíssima” estrutura interna de madeira de

lei (pilares, piso superior assoalhado e estrutura de sustentação da

cobertura de telhas de barro tipo capa e canal). Mantém-se o monta-

carga existente, substitui-se a velha escada pela nova com pilar

central e detalhe de encaixe dos pisos com as traves laterais

emprestado dos “carros de boi”. Um projeto que, como o descreve

Subirats, enfrenta o problema tecnológico não do ponto de vista da

tecnologia avançada, mas essencialmente do domínio e

transformação das tecnologias arcaicas.

Elementos funcionais e escultóricos, as escadas são exploradas em

sua engenhosidade, na peculiaridade dos materiais e na forma de

articulação dos diferentes níveis e, especialmente, na plasticidade

desses elementos que se destacam como presenças marcantes no

conjunto de sua arquitetura. [2]

19

FERRAZ, op. cit., pp. 152-157. 20

Em seminário promovido pelo Programa de Pós-Graduação da USJT sobre o

tema: Cidade e indústria: ações contemporâneas, realizado em 13/10/09, Silvana

Rubino menciona a desmontagem da fábrica de rapé que funcionava nesse local.

Assinala a atitude seletiva de Lina Bardi que considera pouco relevante a atividade

e, portanto, não digna de manutenção.

101

[2] Escadas: Escada-flor do Centro de Convivência Vera Cruz, escada-rampa do

MASP e escada de acesso da casa de vidro.

Fonte: FERRAZ, 1993, p. 371, 108 e 80.

102

As ilustrações reunidas no livro mostram alguns desenhos de projeto

e fotos que documentam, entre outros aspectos: o solene solar

recuperado com as paredes brancas caiadas e as janelas de madeira

pintadas de vermelho; os operários recuperando os azulejos

“holandeses” dos guarda-corpos que ladeiam o acesso principal [3]; a

“velha” e acanhada escada ao lado da nova [5]; o terreiro antes e

depois da liberação do espaço aberto para possibilitar o

desenvolvimento de manifestações tradicionais, como “cheganças,

ranchos, sambas de roda e capoeira” (conforme assinala a legenda

da imagem) [4]; um velho guindaste deixado como “monumento” no

espaço recém liberado do terreiro; os rústicos pavilhões industriais

também recuperados.

[4] Pátio lateral antes e depois da liberação. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 152 e 153.

[3] Solar do Unhão e recuperação dos azulejos do guarda-corpo junto à

entrada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 156.

103

Alguns poucos elementos novos introduzidos no conjunto como

intervenções mínimas reaparecerão no projeto do SESC Pompéia,

entre os quais, o piso cimentado salpicado com seixos rolados e as

divisórias de treliças de madeira.

Importante enfatizar a operação de liberação do terraço debruçado

sobre o mar, disposto em um dos lados do solar. Se uma das

imagens mais características desse projeto é a escada que, de modo

criativo, reinventa o encaixe dos carros de boi, provavelmente a ação

mais contundente é justamente a demolição dos edifícios acrescidos

de forma aleatória que determinavam a obstrução da continuidade

daquele espaço inicialmente aberto. Uma decisão que exerce a

legitimidade de eliminar elementos descaracterizadores que implicam

perda de valor para a preexistência. Ações como essa devem ser

identificadas nos desenhos e nos documentos que registram as

operações previstas na intervenção, como recomenda

expressamente a Carta de Veneza de 196421

.

A publicação dá destaque ao ambicioso projeto cultural que faz da

recuperação desse conjunto um dos pontos de apoio de um

“triângulo” cultural que pretende articular a Bahia à Pernambuco e à

Fortaleza.

21

Ver tópico Documentação e Publicação, art. 16º.

[5] Escadas velha e nova. Fonte: Ferraz, 1993, p. 157 e 158.

104

O texto de Lina Bardi menciona o período de “1958 a 1960 e pouco”

como um momento proveitoso em que “a Bahia viveu o esplendor de

um conjunto de iniciativas que representou uma esperança muito

grande para o país todo (...)”. Cita as instituições que compõem

essas iniciativas: a Escola de Teatro, de Dança, a Escola Superior de

Música e o Museu de Arte Moderna (cuja sede ocupa o Solar do

Unhão) e comenta o programa de cunho sócio-político elaborado

com representantes dos poderes públicos e personagens ligados à

cultura da região22

. O intuito é incorporar certas manifestações do

reconhecido “fermento cultural” local e associá-las a exposições

itinerantes que dialogam com eventos de natureza análoga

existentes em outras localidades. Um movimento que busca explorar

aspectos genuínos da cultura tradicional.

O projeto de arquitetura inscreve-se, portanto, em um amplo

programa de estímulo à reconfiguração da identidade nacional,

partindo das bases da cultura popular23

. Nesses termos, a

implantação do Centro de Documentação sobre Arte Popular e

Centro de Estudos Técnicos do Nordeste, “visando à passagem de

um pré-artesanato primitivo à indústria moderna”, promove uma

política pública de incentivo à cultura, articulada a uma nova política

de industrialização. Como enfatiza Lina Bardi: não se pensa em um

museu do folclore como interpretação de um “fazer” popular pelo

olhar da cultura erudita, mas um autêntico centro de documentação e

produção dos artefatos do cotidiano, um centro de experimentação

que incorpora as práticas vernaculares.

Eduardo Subirats discorre sobre esse projeto cultural e político

radical desenvolvido entre os anos 1958 e 1964, associando-o aos

anos admiráveis em que conhece Glauber Rocha, Caetano Veloso,

22

Os vínculos com o cenário cultural da Bahia na passagem dos anos 1950-60

(alimentados pela atuação da UFBA), a relação com Glauber Rocha e a afinidade

com as teses do Cinema Novo, são temas tratados por Antonio Risério em Avant Garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995, bem como na

Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge, intitulada: O espaço seco imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. São Paulo: FAUUSP, 1999, pp. 99-

102. 23

A esse respeito, ver texto de Lina Bo Bardi em FERRAZ, op. cit., “Cinco anos

entre os brancos”, pp. 161-162. O relato comenta essa experiência (motivações,

iniciativas, instituições e parceiros envolvidos) e discorre sobre o desmantelamento

da proposta após o golpe militar de 1964. A dissertação de Mestrado de Raissa de

Oliveira (FAUUSP, 2008) aborda o período de abertura política que marcou a

transição do governo militar para a redemocratização do país e o posicionamento de

Lina Bo Bardi frente às circunstâncias desse momento particular.

105

Gilberto Gil e outras figuras notáveis. Retoma as palavras de Lina

Bardi para comentar o programa formulado:

“a criação dum movimento cultural que assumindo os

valores duma cultura historicamente (em sentido áulico)

pobre, superando as fases “culturalista” e “historicista” do

Ocidente, apoiando-se numa experiência popular

(rigorosamente distinta do folclore), pudesse lucidamente

entrar no mundo da verdadeira cultura moderna, com os

instrumentos da técnica e dum novo humanismo.” 24

Afirma que, com a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia e do

Museu de Arte Popular do Unhão, Lina Bardi cristaliza a síntese

entre o elemento popular e a vanguarda.

Sobre a pertinência de uma arquitetura capaz de aglutinar pessoas,

escreve:

“Lina é arquiteto de espaços para a reconstrução e

redefinição da cidadania da sociedade civil militarmente

destruída pelos regimes autoritários. Engloba memórias

populares, capazes de transformar um episódio casual (...)

em um momento crucial de poética do espaço, e concebe

sempre a arquitetura como um instrumento de integração

da existência humana com a natureza e com seus

mistérios, e como meio de confronto com a cidade e seus

conflitos.” 25

O projeto do Solar do Unhão, segundo o filósofo, apesar de

conservar os sinais que o definiam como mercado de escravos,

como lugar de sacrifício humano, não é um mausoléu. É um lugar de

recreação da memória e recuperação da dignidade humana através

da arte. O projeto, destaca o autor, pode ser reconhecido como

alternativa ao espetáculo da arquitetura contemporânea, ao fetiche

ligado ao acrítico consumo cultural. Uma espécie de manifesto de

exaltação da imaginação poética, tida como componente

24

Subirats em texto intitulado: “Lina Bo: un’epoca nuova è già cominciata”, em

GALLO, op. cit., faz referência à citação de Antônio Risério em Cultura aqui, ali, cultura além, em cópia datilografada do arquivo de Lina Bo Bardi, p. 31. 25

Idem, p. 25.

106

indissociável da condição essencial de sobrevivência da

humanidade. Nesse sentido, é apropriada sua síntese a respeito da

intervenção que afronta o tema da ‘memória’ sem sobrepujar a

preexistência: “Uma reconstrução arquitetônica que não destrói nem

nega as memórias, os seus lugares e as suas ruínas, para afirmar

narcisicamente a temporalidade absoluta e fátua do eternamente

novo.” 26

Como destaca Bierrenbach27

os edifícios testemunham a rotina de

labor nas suas dependências, uma densa história que deixa marcas

de modificações e acréscimos decorrentes de diferentes usos nos

séculos de existência, traços marcantes da produção humana como

marcas do tempo e da cultura. É justamente essa leitura que

caracteriza o reconhecimento de valor elaborado por Lina Bardi e,

essencialmente, o que chancela a proposição do novo uso.

O SESC Pompéia (1976-86)

Muitos autores já se detiveram sobre o projeto do SESC Pompéia,

muito já foi escrito sobre a intervenção de Lina Bo Bardi. Há que se

enfrentar então o risco de cair na repetição. Ou melhor, passados

mais de vinte e cinco anos de sua inauguração (1982), há que se

buscar uma síntese do que já foi destacado e mais: arriscar uma

nova leitura, mesmo que despretensiosa.

De início, esse projeto causou muita surpresa quer pela precisa e

absolutamente reconhecível inserção de novos elementos nos

espaços dos edifícios fabris, com o intuito de dotar de novo uso

aqueles ambientes, quer pelo contraste produzido entre os novos

edifícios construídos e os galpões industriais preexistentes. Hoje,

embora bastante conhecido e usufruído, o lugar conserva a mesma

vitalidade dos anos 1980, quando foi finalizada a primeira etapa da

intervenção.

26

Idem, p. 26. 27

BIERRENBACH, A. C. de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as interpretações da história. PPG-AU/FAUFBA, Dissertação de Mestrado, 2001.

107

Os edifícios fabris existentes

Situado em um bairro de origem industrial, em terreno que já tinha

pertencido à Chácara Bananal depois loteada pela Companhia

Urbana Predial – proprietária do terreno entre os anos de 1911 e

1913 – o edifício principal foi projetado em 1938 para a família alemã

Mauser. No ano seguinte, foi vendido à Fábrica de Nacional de

Tambores Ltda., de propriedade da Indústria Brasileira de

Embalagens (IBESA) que posteriormente abrigaria em seu espaço a

linha de montagem de uma indústria de geladeiras. [6] Entre 1962 e

1963 o prédio principal sofreu transformações, além disso, foram

construídos outros dois galpões menores. Em 1967, a indústria ali

instalada encerra suas atividades e, em 1971, o SESC adquire o

terreno (17.000 m²), iniciando suas atividades em 1973, em caráter

provisório.

Os três anos seguintes podem ser entendidos como um intervalo de

maturação da idéia de intervenção. Nesse período estava em estudo

o traçado da linha oeste do metrô que, eventualmente, poderia

interferir na área em questão, motivo pelo qual a definição do projeto

teve que ser adiada. Lina Bo Bardi é convidada a apresentar sua

proposta em 1976. Atuam como seus colaboradores os arquitetos

André Vainer e Marcelo Ferraz. Com a aprovação do projeto em

1977, o SESC interrompe o funcionamento provisório para dar início

às obras.

[6] A antiga fábrica de tambores. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 14, 17 e 23.

108

As fotos aéreas evidenciam a potência desses edifícios, que se

distinguem na massa informe e heterogênea do entorno em

transformação desordenada, mas que encontram alguns similares

em quadras vizinhas e que mantiveram a fisionomia primitiva. A

morfologia pode ser decomposta em vários elementos: a tipologia

comum do edifício fabril (composta por blocos extensos cobertos por

telhas de barro, com inclinações de quatro ou duas águas, dotadas

de lanternim); os volumes compactos de feições sóbrias e uniformes;

a disposição regular dos blocos independentes de planta retangular

que estabelece uma hierarquia entre edifícios e espaços abertos (o

eixo longitudinal é o principal, os transversais secundários) e que,

sem recuos frontais, acompanha o alinhamento das calçadas,

reproduz o traçado urbano. [7]

[7] Vista aérea do conjunto: antes e depois da intervenção. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 220.

109

O reconhecimento de valor

Durante a fase inicial de funcionamento, as instalações fabris

revelam sua força expressiva associada à sobriedade e solidez dos

primeiros exemplares industriais, à distinta estrutura de concreto28

,

como também à possibilidade de uso vislumbrada pela generosidade

de seus espaços, após a demolição das divisões internas. Desse

modo, percebe-se a versatilidade necessária à prática de diferentes

atividades, mas principalmente a empatia instaurada entre a

população e a atmosfera daquele lugar. Dificilmente um novo projeto

teria suscitado o mesmo efeito. Pode-se dizer que as construções

aliadas à ambientação estavam arraigadas na memória das pessoas

que, familiarizadas, estabeleciam vínculos afetivos com aquela

estrutura existente. Trata-se de uma espécie de memória profunda,

uma memória involuntária, nos moldes proustianos, distinta da

memória voluntária, dada pela inteligência, pela racionalidade.

Para Proust:

“(...) um odor, um sabor, reencontrados em circunstâncias

diferentes, revelam em nós, a despeito de nós mesmos, o

passado; nós sentimos o quanto esse passado era diferente

daquilo que acreditávamos nos recordar, e que nossa

memória voluntária pintava, como os maus pintores, com

cores sem verdade.”29

Um misto de sabedoria e intuição indica um caminho distinto daquele

a que levaria a vaidade ou presunção: a demolição dos edifícios

antigos para dar lugar a um projeto todo novo. Indo na direção

oposta, Lina Bardi chega à solução que entrevê o poder de evocação

da memória impregnada nos muros daquelas construções, decidindo

mantê-las. Recorrendo mais uma vez a Proust, o procedimento é

avalizado:

28

Lina Bardi associa as características dos elementos estruturais de concreto

armado dos edifícios industriais aos projetos pioneiros de Hennebique. 29

Essas declarações comparecem na revista Espaços & Debates n. 33, 1991 na

seção Entrevista intitulada “Marcel Proust e a memória”, pp. 80-81. Segundo texto

introdutório, a referida entrevista foi concedida por Proust em 1912 e extraída da

revista Globo n. 59, jul/ago 1991. (O grifo é nosso).

110

“(...) eu creio que é quase somente nas recordações

involuntárias que o artista deveria buscar a matéria-prima

de sua obra. Primeiro, precisamente, porque elas são

involuntárias, porque elas se formam por si mesmas,

atraídas pela semelhança de um minuto idêntico: só elas

possuem a marca de autenticidade. Depois, elas nos

relembram as coisas numa dosagem exata entre a memória

e esquecimento. E, enfim, como elas nos fazem provar uma

mesma sensação numa circunstância inteiramente outra,

elas liberam-na de toda contingência, dando-nos a sua

essência extratemporal (...)” 30

O escritor refere-se à literatura, mas não unicamente a ela. Se usa a

metáfora do pintor, autoriza, de conseqüência, a se estabelecer uma

analogia com o procedimento do arquiteto (assim, genérico, sem

diferenciação de gênero, com queria a autora do projeto).

Já nas primeiras visitas, declara Lina Bo Bardi, como num relato de

memórias:

“Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica

de Tambores da Pompéia, em (19)76, o que me despertou

curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para

transformar o local num centro de lazer, foram aqueles

galpões distribuídos racionalmente conforme os projetos

ingleses do começo da industrialização européia (...).

Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora

estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro

Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra.”31

É como se a memória involuntária que ativa a criação de Lina Bo

Bardi se sobrepusesse à memória involuntária dos usuários, que

acolhem e confirmam o acerto da decisão de projeto. Assim continua

o relato, arrolando os outros motivos, não menos importantes,

referentes à manutenção também das práticas que animam aquele

local:

30

Idem, p. 81. 31

Em FERRAZ, op. cit., p.220. (O grifo é nosso).

111

“Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era

outro: não mais a elegante e solitária estrutura

“hennebiqueana” mas um público alegre de crianças, mães,

pais, anciãos, passava de um pavilhão a outro. Crianças

corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía

dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na

água.(...) Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda

essa alegria.”32

Uma intervenção que faz “numa cidade entulhada e ofendida (...) de

repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento.”

Nada melhor do que retomar as palavras de Lina Bardi para

descrever os elementos essenciais desse projeto:

“E aí está a Fábrica da Pompéia, com seus milhares de

freqüentadores, as filas na choperia, o ‘Solarium-Índio’ do

Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que

continua: pequena alegria numa triste cidade.”33

Vale lembrar que não havia, naquela ocasião, nenhuma restrição à

demolição dos antigos galpões. A decisão de mantê-los foi

exclusivamente da arquiteta que ali reconheceu a autenticidade e

dignidade de um conjunto fabril de valor documental: um testemunho

da história da industrialização da cidade de São Paulo.

As operações realizadas

A intervenção começa no cimentado da calçada salpicado de seixos

rolados – “divertente” – como repetia Lina Bardi àqueles que a

ouviam descrever seu processo de trabalho “amistoso e afetivo

ofertado à sociedade.”34

O acesso dá-se pela ‘rua-corredor’ no interior do lote que assume

importância estratégica de ligação entre os edifícios e as diversas

atividades que se desenvolvem em cada um deles, conduzindo ao

final do percurso ao solarium, também chamado de ‘praia’, que, por

sua vez, leva aos novos edifícios. Singulares canaletas revestidas de

32

Idem, p. 220. 33

Idem, p. 220. 34

Conforme depreende Luís Antônio Jorge, op. cit., p.87.

112

seixos rolados flanqueiam o caminho de paralelepípedos, rentes aos

edifícios, captam e conduzem as águas pluviais. [8]

Os pavilhões, inicialmente rebocados nas faces voltadas para a rua,

foram descascados, deixando à vista as alvenarias de tijolos de barro

maciços e a estrutura interna de concreto, permanecendo o

invólucro, após a liberação do espaço interno. Além da estrutura de

concreto, é mantida e recuperada a estrutura de madeira que

sustenta a cobertura de telha-vã (de barro, tipo francesa).

[8] Totem sinalizador e rua interna com canaleta de seixos rolados. Fontes: VAINER e

FERRAZ, 1996, p. 66 / FERRAZ, 1993, p. 223.

[9] Espaço reservado à leitura e recreação. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 225.

113

No maior dos galpões (com área de 50 x 70 m), módulos justapostos

de concreto aparente, delimitados por muretas baixas, dispostos nos

vãos entre a primeira e terceira fileiras de pilares, independentes das

estruturas preexistentes, criam espaços para leitura, reunião e

projeção de audiovisuais. Implantada em quotas de nível acima do

piso térreo, em dois lances com alturas diferentes, como uma

espécie de mezanino, essa área possibilita, para quem ali se instala,

uma visão de conjunto do pavilhão. Locadas próximas da entrada, as

estantes que acomodam o acervo de livros e revistas já sofreram

várias transformações em seu lay-out o que, no entanto, não

compromete o todo. [9]

O mobiliário de madeira, a lareira, o traçado sinuoso do espelho

d’água – “o rio São Francisco” – desenhado no piso de pedra Goiás

de variados tamanhos (que substitui o piso anteriormente existente,

ao que tudo indica um cimentado comum), preenchido com seixos

rolados (os mesmos da calçada e das canaletas) como convém a um

rio, complementam a ocupação desse grande ambiente de estar que

também acolhe exposições temporárias, espetáculos, salão de jogos

e brinquedoteca, além da recepção ao público em geral. [10]

[10] Espaço de convivência. Fonte: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 78 e 79.

114

Os acréscimos, elementos criados para propiciar os novos usos

propostos, distinguem-se com clareza das estruturas existentes e, a

rigor, podem ser removidos sem prejuízo da construção primitiva. O

caráter de simplicidade desses ambientes foi preservado com a

manutenção das tubulações e instalações à mostra, com a colocação

de elementos singelos e, ao mesmo tempo, duráveis como os painéis

em treliças ou as básicas portas de correr em madeira que, isentas

de guarnições e acessórios desnecessários, deixam à vista as

roldanas e cabos de escorrimento.

Restaurante, teatro [11] [12] e oficinas-ateliês [13] são os usos

propostos para os outros edifícios menores dispostos ao longo do

eixo principal. Ao descrever o projeto do “teatro-auditorium”, espaço

organizado a partir do palco central e de duas arquibancadas

dispostas em lados opostos, Lina Bardi considera importante explicar

os motivos da utilização de cadeiras de madeira, ao invés de

poltronas estofadas:

“(...) os Autos da Idade Média eram apresentados nas

praças, o público de pé e andando. Os teatros greco-

romanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e

os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus

do estádio de futebol, que também não têm estofados. Os

estofados apareceram nos teatros áulicos das cortes, no

Settecento e continuam até hoje no ‘confort’ da Sociedade

de Consumo.”

“A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas

uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de

‘distanciar e envolver’, e não apenas de sentar-se.” 35

É a idéia da chamada “Arquitetura Pobre, isto é, não no sentido da

indigência mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e

Dignidade máxima através dos menores e humildes meios.”36

35

FERRAZ, op.cit., p. 226. 36

FERRAZ, op. cit., p. 220. Os teatros são programas arquitetônicos recorrentes na

trajetória de Lina Bo Bardi. O tema é enfrentado em casos específicos como no

Teatro Politheama de Jundiaí ou no Teatro Oficina em São Paulo. O primeiro

corresponde a uma restauração nos termos declarados por Lina de compromisso

entre “os critérios da restauração de hoje” e a “plena realização de uma Continuidade Histórica no Tempo e na Memória.” (FERRAZ, p. 264). O segundo é

115

encarado não só como reconstrução de uma estrutura “Física e Tátil”, mas persegue

a reconstrução de uma identidade cultural destruída pela “Tempestade”, uma alusão

aos tempos difíceis do regime ditatorial. (FERRAZ, p. 258).

[11] Corte transversal do teatro. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

[12] Foyer e interior do teatro. Fontes: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 90 /

FERRAZ, 1993, p. 227.

[13] Oficinas. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 229.

116

Com esse mesmo espírito de resgate de uma dignidade popular

organiza o espaço dos ateliês/oficinas é a articulação entre o

trabalho artesanal e o “saber-fazer”. A arquitetura é aquela que extrai

da escassez de meios a sua expressão genuína: recintos autônomos

distribuídos ordenadamente no espaço livre, de um lado e outro da

fileira central de apoios, com formas e dimensões diversificadas,

constituídos de alvenaria em blocos de concreto aparentes de altura

limitada, para que seja visível o desenvolvimento das atividades por

quem circula entre os recintos dos ateliês. O procedimento utilizado

permite mais uma vez distinguir o espaço das oficinas como uma

inserção mais recente em uma estrutura preexistente. A técnica e

materiais empregados eliminam revestimentos e exigem um trabalho

primoroso de aparelhamento dos blocos, rigoroso inclusive por não

corrigir com a espátula as “rebarbas” da argamassa do rejunte das

peças. Um detalhe que representa não a falta de cuidado na

execução, mas uma operação essencial em que são subtraídos

elementos e gestos desnecessários.

A imposição da área non-edificandi, de grande empecilho à

acomodação do novo programa de uso, converte-se em importante

espaço lúdico constituído pelo grande deck de madeira – a praia.

Assim explica Lina Bo Bardi o raciocínio que conduz o projeto:

“Uma galeria subterrânea de ‘águas pluviais’ (na realidade o

famoso córrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da

área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase

totalidade do terreno destinado à zona esportiva “non

edificandi”. Restaram dois ‘pedaços’ de terreno livre, um à

esquerda, outro à direita, perto da ‘torre-chaminé-caixa

d’água’ – tudo meio complicado. Mas, como disse o grande

arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: ‘as

dificuldades são nossos melhores amigos’. Reduzida a dois

pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos

‘fortes’ militares brasileiros, perdidos perto do mar (...).

Surgiram, assim, os dois ‘blocos’, o das quadras e piscinas

e o dos vestiários. No meio, a área ‘non edificandi’. E...

como juntar os dois ‘blocos’? Só havia uma solução: a

117

solução aérea, onde os dois ‘blocos’ se abraçam através de

passarelas de concreto protendidos.”37 [14]

Uma invenção que se nutre da memória, um projeto com profundo

sentido poético, ou seja, compreendido como um “fazer”, um modus

operandi’ que se ampara em conhecimento acumulado, em

experiência vivida, uma operação que, nos termos colocados por

Alessandro Castroviejo38

, articula o universal e o particular.

37

Idem, p. 231. 38

RIBEIRO, Alessandro J. Castroviejo. Arquitetura: poéticas nos anos 90 vistas através da arquitetura. Dissertação de Mestrado pela FAUUSP, 2001.

[14] A “praia” e ao fundo os dois novos blocos unidos pelas passarelas.

Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 101.

118

Os critérios de intervenção

Os textos de Lina Bardi apresentam a mesma índole de sua

arquitetura: concisos e enfáticos tocam nos aspectos cruciais para

explicitar os fundamentos que orientam as escolhas de projeto:

“Ninguém transformou nada. Encontramos uma fábrica com

uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante,

original, ninguém mexeu... o desenho de arquitetura do Centro

de Lazer Fábrica da Pompéia partiu do desejo de construir uma

outra realidade. Nós colocamos apenas algumas coisinhas: um

pouco de água, uma lareira”.39

Mais uma vez, as próprias palavras de Lina Bardi exprimem o

espírito da ação quanto à relação passado/presente:

“Não se trata de só devolver o prédio como uma máquina

do tempo no passado. Isso é preciso esclarecer porque a

retromania está tomando conta do mundo, não é isto que

estou fazendo (...) se formos tomar por princípio absoluto o

uso que fizemos dos espaços da fábrica da Pompéia,

haverá gente querendo recuperar e proteger uma salada de

edifícios que são velhos e não históricos. Assim a cidade

transformar-se, por excesso de zelo, numa cidade de

cacarecos, o que não é desejável. É preciso deixar também

florescer a nova arquitetura.”

Assim atua, mantendo os antigos pavilhões industriais e

reconfigurando o conjunto com a concepção dos novos blocos

verticais monolíticos de concreto aparente, voltados às funções

esportivas. A carga expressionista dessa nova arquitetura foi

destacada por vários autores, entre os quais Bruno Zevi40

e Eduardo

Subirats41

. [15] [16] [17]

39

FERRAZ, op. cit., p.220. 40

Em artigo intitulado “A fábrica dos signos”, publicado na revista L’Espresso (maio/1987), em coluna dedicada à crítica de arquitetura que o autor manteve por

vários anos. 41

Em vários textos entre os quais o já mencionado na nota 1.

119

[15] Planta do conjunto. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

[16] Corte longitudinal do galpão das oficinas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

[17] Elevações. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 61.

120

O significado renovado de uma fábrica

Um texto de Ruth Verde Zein, publicado em uma edição especial da

revista Projeto42

dedicada a Lina Bo Bardi, sob o título “Fábrica da

Pompéia, para ver e aprender”, é particularmente instigante. Inicia

discorrendo sobre a cidade – “um confuso amálgama de signos (...)

em permanente mutação” – que, segundo a autora, praticamente

impede de se falar em contextualismo, o que impõe ao projeto a

estratégia de dotá-lo, diante da impossibilidade de adotá-lo (o

contexto). No SESC Pompéia, aponta Ruth Verde Zein, Lina Bo Bardi

consegue o duplo feito: não só adotar o contexto do bairro de caráter

industrial, como também dotá-lo de um sentido próprio,

“transformando seu significado de espaço introvertido de produção

em espaço extrovertido de lazer”.

A extroversão se materializa na reconfiguração da rua-corredor de

paralelepípedos no interior do lote, como um convite ao público a

entrar, propiciando a continuidade entre o espaço urbano e a viela

interna.

Os galpões são mantidos em sua configuração volumétrica como

grandes recipientes capazes de abrigar diferentes atividades. Os

novos elementos e instalações indispensáveis para os novos usos

propostos não rompem com a amplitude e a continuidade espacial

originárias.

Um dos primeiros aspectos surpreendentes na decisão da arquiteta

certamente foi a reutilização dos galpões. A resolução antecipa uma

tendência que vai se tornar mais comum na década seguinte, com

projetos notáveis, promovidos pelo poder público, como o da reforma

da Pinacoteca do Estado (1993-98), projeto de Paulo Mendes da

Rocha, e a criação da Sala São Paulo (1997-99), nas antigas

dependências da Estação Júlio Prestes, projeto de Nelson Dupré.

Opta pela reutilização que não se mimetiza, ao contrário, distingue-

se com clareza através da inserção de elementos precisos a

desempenhar funções definidas por um programa arquitetônico

rigoroso, atento às diferentes atividades e, ao mesmo tempo flexível,

polivalente, deixando também espaço para o imprevisto e para as

42

Revista Projeto n. 149, pp. 24-35

121

imprevisíveis possibilidades criadas tanto pelos gestores, como pelos

usuários habituais do lugar.

O crítico Bruno Zevi, amigo de Lina Bardi, em artigo já mencionado,

cita Ruth Verde Zein e refere-se ao projeto como “um corajoso

restauro inventivo” que investe de novos conteúdos a arquitetura

preexistente. Conclui sua descrição enfatizando o espaço “denso de

humanidade e poética fantasia”:

“O objetivo não é o da mundana “inclusividade”, mas um

confronto entre eventos de matriz e carga expressiva

heterogêneas. Apesar dos pressupostos ideológicos de

uma estética do choque, emerge “um equilíbrio quase

prefeito”. Bo Bardi usou magistralmente os ingredientes

lingüísticos à sua disposição: a flexível planimetria

oitocentista, o vernáculo do bairro, os ótimos multicoloridos

dos camponeses imigrados, os códigos da vanguarda, além

de citações de Sant’Elia, Le Corbusier, Mies van der Rohe e

das “Höfe” vienenses. Extraordinária montagem de

fragmentos, que evita virtuosisticamente qualquer aspecto

Kitsch. Renunciando declaradamente à mitologia da beleza

clássica, este centro sociocultural de São Paulo joga a carta

das dissonâncias com atrevimento e espontaneidade.”

O “direito ao feio” é uma reivindicação recorrente em Lina Bardi, uma

alternativa ao belo que comparece em um manifesto apresentado

como peça de divulgação de uma exposição organizada no próprio

SESC, em 1982 – I Exposição de Artes dos Funcionários do INAMPS

– cujo texto afirma:

“A expressão Kitsch surgiu na Alemanha no fim do século

XIX quando a Revolução Industrial tomou definitivamente o

poder. É o estigma da alta burguesia culta contra os setores

da mesma classe, menos afortunados, que através da

industrialização começavam a ter acesso aos “Tesouros da

Arte”, ao “Belo”.

Esta pequena exposição não é uma – Integração do Kitsch

– é apenas um pequeno exemplo do DIREITO AO FEIO,

122

base essencial de muitas civilizações, Desde a África até o

Extremo Oriente que nunca conheceram o “conceito” de

Belo, campo de concentração obrigado da civilização

ocidental.

De todo esse processo foram excluídos uns ainda menos

afortunados: o povo.

E o povo nunca é Kitsch.

Mas esta é uma outra história.”

São idéias como essa que fazem de Lina Bo Bardi um personagem

admirável que não obstante sua erudição empenha-se em

estabelecer, em sua incansável busca criativa, uma comunicação

direta entre o repertório moderno e a tradição da cultura popular.43

A Ladeira da Misericórdia (1987)

Dois aspectos essenciais são destacados na análise desse projeto: a

aproximação entre a visão de Lina Bo Bardi acerca da história e o

pensamento produzido no campo da restauração; a correlação entre

o projeto de Salvador e a experiência de recuperação do centro

histórico de Bolonha dos anos 1970-80, sob coordenação de Pier

Luigi Cervellati e Roberto Scannavini, enquanto adoção de uma

política atenta à estrutura tipológica da arquitetura existente e ao

cidadão usuário.

Construir no construído

A análise desse projeto, juntamente com a do SESC Pompéia,

presta-se de modo especial ao reconhecimento de que a ação de

Lina Bo Bardi e equipe (formada por Marcelo Ferraz e Marcelo

Suzuki) envolve uma expressiva poética do “construir no construído”.

Esse é, sem dúvida, um dado relevante e oportuno para afrontar a

delicada questão da fronteira entre o restauro e a intervenção que se

coloca não apenas como operação meramente conservativa, mas

43

Esse tema é abordado por Eduardo P. Rossetti no artigo “Tensão

moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura”. Em Cadernos PPG-AU,

FAUFBA, ano I – número 1 – 2003, pp. 11-26. Em texto intitulado: “Centro histórico

da Bahia, antigo e moderno”, publicado nos anais do XIII Simpósio Multidisciplinar

da USJT (set. 2007), Marta Bogéa refere-se à “sofisticada edição entre o erudito e o

popular” presente na sua obra.

123

que admite a transformação da preexistência, ainda que controlada

por critérios rigorosos. [18]

Nesse sentido, o estudo recorre à reflexão representada pelos

chamados “restauro científico” e “restauro crítico” e, em especial, à

contribuição de Cesare Brandi, importante crítico de arte do século

XX, italiano, interlocutor de Giulio Carlo Argan44

, autor do livro Teoria

del restauro, publicado em 1963. Brandi é aqui lembrado por sua

reflexão filosófica sobre o problema do restauro que, de certa forma,

dá prosseguimento à concepção do chamado restauro crítico45

. O

autor representa fonte necessária e fundamental de pesquisa na

atualidade: elabora uma análise rigorosa que busca definir princípios

gerais orientadores da prática a partir do conceito que se tem da obra

a ser submetida ao restauro tida como objeto de interesse histórico e

artístico.

44

Em História da arte como história da cidade. No cap. 1: “História da arte” Brandi é

mencionado em várias passagens, entre as quais a da p. 27, em que Argan

relaciona o juízo estético de matriz idealista, à compreensão fenomenológica da

produção artística de Brandi. Em Projeto e destino comparece um texto intitulado:

“Eliante” ou da arquitetura (Carta a Cesare Brandi) de 1956, uma réplica à sua crítica

ao modernismo racionalista. 45

Entende-se por restauro crítico a elaboração teórica, produzida por Roberto Pane,

Agnoldmoenico Pica e Renato Bonelli, na Itália em meados do século XX, em meio

aos debates do pós-guerra. Define o restauro como um ato de cultura e ato criativo

cujo escopo é conservar e reintegrar o valor expressivo da obra, apoiado em

critérios de identificação da qualidade artística. Para uma análise aprofundada,

consultar verbete ‘restauro architettonico’ em Enciclopedia Universale dell’Arte, vol.

XI, Veneza-Roma, Istituto per La colaborazione culturale, 1963.

[18] Implantação geral do Plano de Salvador.

Fonte: FERRAZ, 1993, p. 273.

124

A outra perspectiva de investigação refere-se às relações

indissociáveis das áreas centrais de interesse histórico com o tecido

urbano e metropolitano. Uma compreensão diferente daquela

hegemônica até pelo menos as décadas de 1960-70, segundo a qual

essas áreas eram consideradas como elementos estanques, cindidos

de continuidade com a realidade urbana da cidade difusa e

policêntrica. Esse novo enfoque possibilita conciliar a preocupação

preservacionista, às diretrizes mais gerais do planejamento urbano.

Entretanto, se até meados do século XX a ação conservacionista

afirmava-se principalmente como reação ao abandono e às

demolições injustificadas, hoje se identificam excessos em certos

processos chamados de “patrimonialização”46

que devem ser

contidos.

A celebração do restabelecimento de um diálogo interrompido

Ao saber da iniciativa do prefeito Mário Kertézs que, em 1986, decide

retomar a profícua relação de Lina Bo Bardi com a cidade de

Salvador e com a cultura baiana, Jorge Amado manifesta grande

entusiasmo. Reconhece a importância da ação iniciada no Museu de

Arte Moderna e no Museu de Arte Popular, integrantes do projeto do

Solar do Unhão e comemora a realização do projeto da Casa do

Benin.

Assim recorda o autor a situação que antecede a intervenção:

“(...) processo de abandono e devastação, o contínuo

vandalismo, a memória apodrecendo em esquecimento, o

patrimônio – o do povo, o que pertence à nação – posto à

venda a preço vil.”47

Em poucas palavras o escritor consegue reunir aspectos centrais

ligados ao tema da conservação: a consternação derivada do

46

Conceito elaborado por JEUDY, 2005: refere-se ao processo de fruição do

patrimônio cultural, banalizado por estratégias de marketing e políticas culturais de

consumo e turismo de massa que privilegiam a imagem, o simulacro, em detrimento

do fato material genuíno, além de preterir a população local, em favor dos visitantes

ocasionais. Em CHOAY, op. cit., o tema é igualmente abordado. A autora refere-se

ao fenômeno resultante da expansão e banalização do conceito de patrimônio como

“um complexo de Noé”, p. 209. 47

Texto publicado na revista Projeto n.º 149, em edição especial dedicada à obra de

Lina Bo Bardi, p. 46.

125

descuido, o apropriado sentido coletivo associado à idéia do

patrimônio cultural e a crueza dos interesses econômicos que

solapam as bases de uma herança comunitária. [19]

A retomada do diálogo

Outro texto, de Lina Bo Bardi, datado de março de 198748

, expõe os

critérios de condução do projeto de recuperação do centro histórico

de Salvador, descrevendo a “idéia geral” que permeia a intervenção:

“A palavra restauração lembra, em geral, as tristes

restaurações. Dentro de um certo período histórico

precedente há a destruição de um edifício, isto é, a

destruição pelo Tempo, ou pelos homens, por incidentes,

por uma guerra, um terremoto...

Em geral, a restauração é a restituição a um estado

primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de

Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco

de ranço de uma obra restaurada sempre continua. É muito

difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro.

O que estamos procurando na recuperação do Centro

Histórico da Bahia é justamente um marco moderno,

respeitando rigorosamente os princípios da restauração

histórica tradicional.”

48

FERRAZ, op. cit., p. 292. Texto também publicado na revista Projeto n.º 149, p.

48.

[19] Salvador. Imagens do centro histórico degradado.

Fonte: Couto, [et al.], 2000, p.100.

126

“Para isso, pensamos num sistema de recuperação que

deixe perfeitamente intacto o aspecto não somente exterior,

mas também o espírito, a alma interna de cada edifício.

Será um sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da

parte histórica, denunciado pela sua estrutura e pelo tempo

atual. Não vamos mexer em nada, mas vamos mexer em

tudo.”

O arrazoado de Lina Bardi inicia com uma associação entre

restauração e tristeza, refere-se textualmente à lembrança de “tristes

restaurações”. A menção deixa espaço para interpretações. A

tristeza tanto poderia estar ligada ao processo desencadeado antes

da intervenção de restauro – a destruição por ação do tempo, do

homem ou de incidentes traumáticos, entre os quais as guerras –

como também poderia referir-se a uma visão saudosista que,

descontente com a ação do tempo que tudo transforma, pretenderia

restabelecer uma condição ideal originária, como se fosse possível

retroceder, ou interromper a passagem do tempo. Uma alusão clara

às proposições fantasiosas de Viollet-le-Duc49

. Chega a atribuir

avanços à contribuição da Carta de Veneza, mas não vê motivos

para muita animação. Detecta a presença de certo “ranço” atribuído à

obra restaurada. Esse ranço, que remete à idéia de

conservadorismo, é tudo o que ela quer evitar.

Certamente Lina Bardi não se identifica com uma posição romântica,

saudosista, de apego ao passado, nem tampouco com uma visão

conservadora de oposição a inovações de modo geral.

Sua intervenção é fortemente marcada pela contraposição a uma

conduta que vigorou no passado, mas que ainda continua fortemente

arraigada ao senso comum de restauração, compreendido como

cancelamento das vicissitudes do tempo, em favor da restituição de

um estado mítico primitivo. Algo muito próximo da posição defendida

pelo francês Viollet-le-Duc que, no século XIX, juntamente com John

49

A definição de Viollet-le-Duc sobre o termo ‘restauração’, conforme consta no

primeiro capítulo desta pesquisa, está presente no Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XI au XVI Siècle, traduzido para o português:

Restauração. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia, S.P.: Ateliê Editorial, 2000, p. 17. Em

síntese: “Restaurar um edifício (...) é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento”.

127

Ruskin, protagoniza o debate ligado à preservação da herança

adquirida do passado.50

O inglês, por sua vez, radicaliza sua posição,

não admite sequer uma mínima intervenção, em nome de uma

deferência absoluta à materialidade e ao conhecimento histórico. O

respeito à autenticidade histórica prescreve a intocabilidade dos

vestígios do passado. Entre as duas posições, aquela que obtém

maior ressonância é a de Viollet-le-Duc, o que determina uma maior

popularidade e também uma espécie de renitência.

Lina Bo Bardi, ao afirmar que pretende respeitar “rigorosamente os

princípios da restauração histórica tradicional”, mostra que tem plena

consciência dos passos dados por Camillo Boito e consolidados por

Gustavo Giovannoni51

, no sentido de superar o impasse criado pelas

visões contrapostas dos primeiros teóricos. Sabe que esses

arquitetos asseguram uma visão moderada que acolhe os

ensinamentos da arqueologia e do estudo rigoroso dos documentos

históricos. Tal posição afirma-se na primeira metade do século XX

como “restauro histórico-filológico” que se desdobra no chamado

“restauro científico”, cuja contribuição será analisada a seguir.

A menção à Carta de Veneza é indicação de que Lina Bardi está

ciente da ampliação da noção de patrimônio que ultrapassa o limite

do monumento, das “grandes criações”, para nela incluir a produção

arquitetônica ordinária, ou seja, as “obras modestas, que tenham

adquirido, como o tempo, uma significação cultural”52. Uma

ampliação que passa a considerar dignas de interesse de

preservação as edificações mais recentes, o conjunto urbano, seu

traçado, suas relações entre volume construído e espaços abertos,

além do próprio ambiente natural. Essa maior extensão do acervo

dos bens patrimoniais, assim como a vasta destruição provocada

50

As condutas iniciais voltadas à preservação e restauro, elaboradas no século XIX,

são tratadas no primeiro capítulo deste trabalho. Vale relembrar que tema é

abordado em várias publicações, entre as quais se destaca: KÜHL, B. M. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo. Reflexões sobre sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998, pp. 179-197. 51

Camillo Boito (1836-1914) tem grande relevância no panorama cultural do século

XIX como arquiteto, restaurador, crítico e professor. Sua obra Os restauradores,

apresentada na conferência de Turim de 1884, constitui uma das bases essenciais

da teoria contemporânea da restauração. Seu discípulo, Gustavo Giovannoni,

aprofunda a reflexão iniciada por Boito, dando sua decisiva contribuição para a

redação da Carta de Restauro de 1931. A vertente criada por ambos ficou

conhecida como “restauro científico.” 52

Carta de Veneza: Artigo 1º. Consulta ao site www.iphan.br, acesso em 2/04/2008.

128

pela Segunda Guerra Mundial, contribuem para a crise metodológica

que atinge o restauro científico, abrindo caminho para a revisão

conduzida pelo restauro crítico.

Um aspecto relevante do projeto da Ladeira da Misericórdia envolve

a técnica aplicada à consolidação e travamento das estruturas

existentes, resultado da parceria com João Filgueiras Lima, o Lelé.

Uma solução que obedece às orientações da Carta de Veneza que

no artigo 10º afirma:

“Quando as técnicas tradicionais se revelarem

inadequadas, a consolidação do monumento pode ser

assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas

de conservação e construção cuja eficácia tenha sido

demonstrada por dados científicos e comprovada pela

experiência.”

Neste caso, o procedimento técnico inovador corresponde à

utilização dos painéis plissados em argamassa armada, ora usados

como divisórias internas, ora como lajes que substituem os

assoalhos irremediavelmente deteriorados, ora empregados como

contrafortes de estabilização dos edifícios existentes, recompondo a

continuidade do conjunto naqueles lotes vazios em que as

construções primitivas foram demolidas. [20]

Esse é um sistema de consolidação estrutural que nasce a partir de

uma triangulação conceitual proposta por Lina Bardi que,

conhecendo o processo de concepção estrutural de Lelé,

recomenda-lhe de observar o trabalho de Pier Luigi Nervi, a respeito

da reelaboração do processo construtivo do ferro-cimento53

. Um

dado curioso testemunha essa articulação operada por Lina Bardi.

Na impossibilidade de comparecer a um primeiro encontro de

trabalho com Lelé que deveria acontecer na Fábrica de Escolas, no

Rio de Janeiro, Lina envia, por intermédio de seus colaboradores,

uma folha de “capim-palmeira” dentro de uma caixa, com o seguinte

53

A esse respeito consultar texto dos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da

USJT, São Paulo, 2007, intitulado: “Projeto Piloto Ladeira da Misericórdia pela lente

de um caleidoscópio. Lente 3: Longe dos olhos e perto da criação: Lina, Lelé e

Nervi.” A aproximação entre o sistema idealizado por Nervi e o das peças pré-

fabricadas de argamassa armada de Lelé, intermediada por Lina Bo Bardi é descrita

em detalhes.

129

recado: “entreguem isso a Lelé e digam que eu penso em uma

estrutura assim. Ele vai entender (...)”. Em carta de resposta a Lina

Bardi, acompanhada de estudos das peças pré-fabricadas em ferro-

cimento, Lelé demonstra ter entendido a sugestão e explicita a

referência de consulta em forma de um P.S.: “Foi muito importante

examinar o material que você me mostrou do Nervi.” 54 [21] [22]

Talvez seja justamente o back-ground teórico, associado a um

consistente preparo técnico, o que impede o diálogo com as equipes

do SPHAN local, dificuldade mencionada por Cecília Rodrigues dos

Santos55

ao comentar o veto à continuidade de implantação do

projeto.

Ainda hoje é comum deparar-se com posições datadas em

discussões com especialistas. Quando o tema é o patrimônio urbano,

é recorrente a evocação de argumentos enunciados pelo chamado

restauro científico, marcados por uma visão positivista, de certo

modo esquemática, das questões estéticas.

54

Cf. LATORRACA, Giancarlo (org.). João Filgueiras Lima Lelé. São Paulo: Blau:

Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, em texto em que é descrito o processo de concepção

dos elementos pré-fabricados, intitulado: “Recuperação do Centro Histórico – FAEC.

Salvador, BA, 1988”, p. 166-170. 55

Revista Projeto n.º 149, jan./ fev. 1992, p. 54.

[20] Contrafortes em argamassa armada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.

130

O respeito histórico como culto desmedido ao passado determina

proposições de “ambientamento”56, com o uso de formas de estilo

simplificado para os elementos novos. Medidas fundadas em uma

pretensa neutralidade na inserção do novo, no contexto histórico

consolidado, estabelecem a adoção de normas muito rígidas e

genéricas que priorizam volumes, alturas, mas não garantem a

qualidade arquitetônica da intervenção contemporânea.

56

O termo é do idioma italiano e refere-se à conduta sugerida pelos teóricos do

“restauro científico”, com respeito à tutela dos ambientes de reconhecido valor

histórico. Recomenda que na construção de novos edifícios na recomposição de

lacunas no tecido urbano (por demolição ou perdas de continuidade), mantenham-se

os volumes dos edifícios preexistentes, assim como os elementos estruturadores da

forma que integram o repertório tradicional. O interesse declarado é o de preservar a

uniformidade, ou seja, evitar a discrepância de linguagem entre o “velho” e o “novo”.

Esse tema é tratado no segundo capítulo desta pesquisa.

[21] Plantas com indicação dos painéis de argamassa armada.

Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.

131

Um diálogo de tempos

Indiscutivelmente a análise de intervenções em preexistências de

valor artístico e documental requer necessariamente o balizamento

dos critérios adotados no projeto com aqueles preceitos

desenvolvidos no campo disciplinar da preservação de bens

culturais. Nesse sentido, é fundamental considerar a reflexão teórica

já produzida e consolidada, como instrumento que formula os

princípios gerais a serem reelaborados nas circunstâncias

específicas dos casos analisados.

Uma abordagem preliminar desatenta pode sugerir uma completa

independência de Lina Bardi em relação ao pensamento produzido

no terreno da preservação e restauro. A sua postura livre,

contestadora, e sua personalidade controversa corroboram essa

tese. De fato, não é o caso de rotular seu procedimento de projeto

conforme esta ou aquela vertente da restauração. A este estudo

interessa, entretanto, identificar certas tangências de raciocínio.

Interessa, sobretudo, investigar como Lina transita entre o rigor

exigido pelo respeito histórico e a liberdade que tanto preza.

A esse propósito, convém retomar as posições do “restauro

científico” e “crítico”, no intuito de entender de que modo são

incorporadas ao fazer arquitetônico de Lina Bo Bardi.

[22] Conjunto antes e depois da recuperação. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 292 e 293.

132

Giovanni Carbonara57

, em seu livro Avvicinamento al restauro (1997),

dedica um capítulo ao tema do “restauro científico”58

. Observa

inicialmente a ascendência do chamado “restauro histórico”, espécie

de transição que, a partir das primeiras proposições, impõe certos

limites às reconstituições, na medida em que as atrela à análise

cuidadosa de documentos e de iconografias existentes, além de

atentar não exclusivamente à condição primitiva do edifício a ser

restaurado. Compreensão que destaca o valor documental da

arquitetura, o “restauro científico” afirma-se nas primeiras décadas do

século XX e consolida a convicção de que se devam preservar as

diversas passagens que marcam a existência de um edifício, como

camadas de tempos distintos que sinalizam a trajetória da história.

Colocando-se como mediação de posições conflitantes: opõe-se à

visão de Viollet-le-Duc de que o restauro deva passar inobservado ao

recomendar que a intervenção seja distinguível da preexistência,

mas, do mesmo modo, opõe-se à posição de Ruskin ao afirmar a

legitimidade da restauração. Como “teoria intermediária” propõe rigor

e cautela na intervenção, ou seja, priorizar as obras de manutenção,

reparo e consolidação, nessa ordem, deixando as ações mais

invasivas para os casos indispensáveis.

Por respeito à autenticidade do material original é que se impõe a

diferenciação dos acréscimos em relação às partes antigas e, da

mesma forma, que as reconstruções se baseiem em dados precisos,

refutando hipóteses incertas. Tanto a distinção entre o antigo e o

novo nas operações de restauro, como a manutenção da

sobreposição de passagens sucessivas, contribuem para que o

restauro científico promova o diálogo de tempos.

57

Carbonara é professor, diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed Il Restauro dei Monumenti della Facoltà di Architettura dell’Università degli Studi di Roma – La sapienza. Contribui de modo significativo para a reflexão no campo

disciplinar da restauração com diversas publicações, entre as quais se destaca os

livros consultados: Avvicinamento al restaro: Teoria, storia, monumenti. Nápoles,

Liguori, 1997 e La reintegrazione dell’immagine. Roma: Bulzoni, 1976. Em

Avvicinamento... contempla, mais do que as técnicas, os princípios reguladores da

prática no trato da restauração, no sentido de garantir “aquela operosidade

consciente dos próprios deveres e dos próprios limites dos quais se adverte,

frequentemente, a ausência.” 58

CARBONARA, G. Avvicinamento... em parte II, cap. 8, trata do “Restauro

Científico”, pp. 231-268. Na parte III, cap. 2, aborda o “Restauro Crítico”, pp. 285-

301.

133

Assinala Carbonara que durante várias décadas o “restauro

científico” é visto como postura de absoluto rigor, justamente pelo

fato de representar importantes reparos às imprecisões e arbítrios

possibilitados pelas interpretações das primeiras teorias. Dois

fatores, no entanto, concorrem para que essa conduta seja

considerada superada, em meados do século XX, como ocorre

inevitavelmente com os postulados históricos:

- o primeiro é a afirmação de novas teorias estéticas, entre as quais a

de Benedetto Croce59

, uma compreensão crítica atenta às

especificidades de cada obra e à sua trajetória no tempo, mais do

que aos aspectos estilísticos e enfoques evolutivos priorizados por

uma leitura de matriz positivista, como o era a do restauro científico;

- outro fator que contribui para o questionamento dessa posição é a

destruição avassaladora provocada pela Segunda Guerra Mundial,

que exige respostas rápidas e urgentes, ações em larga escala, não

compatíveis com a ação cautelosa e inflexível de selecionar

criteriosamente cada objeto de intervenção, de realizar estudos

(bibliográficos e de arquivos) e levantamentos (in-loco) rigorosos e

demorados antes de proceder à intervenção propriamente dita, como

querem os preceitos dessa linha de atuação.

Mesmo porque, nessas circunstâncias excepcionais não se trata

exclusivamente de reparo, recuperação e reconstrução de obras de

valor arquitetônico consagrado: as ações voltam-se de modo geral

aos bens comuns de caráter ordinário e devem suprir carências mais

imediatas. O próprio Giovannoni admite adaptações: “melhor um

restauro cientificamente imperfeito, que represente uma ficha perdida

na história da arquitetura, que a renúncia completa, a qual privaria as

nossas cidades do seu aspecto característico nos mais significativos

monumentos de arte.”60

Há que se considerar um aspecto novo que aflora de forma

contundente: a questão emotiva, sentimental. A guerra comove,

revolve sentimentos, faz emergir motivações de caráter afetivo,

tornando discutíveis as prerrogativas ditas “científicas” da postura até

então em vigor.

59

Ver CROCE, B. Breviário di estética, 1931. 60

CARBONARA, op. cit., p. 248 (tradução da autora).

134

São esses questionamentos a colaborar para o desenvolvimento do

“restauro crítico”, entre os anos 1940 e 1960, principalmente por

mérito dos teóricos: Renato Bonelli, Roberto Pane e Agnoldomenico

Pica, que nesses anos apontam as dificuldades de aplicação das

orientações previstas pelo restauro científico e defendem a

necessária revisão. Os aspectos mais discutidos, segundo

Carbonara, eram: a orientação classificatória e positivista no modo

de entender as manifestações artísticas, a ênfase em uma

abordagem “evolutiva” na condução da análise histórica da produção

artística, um substancial desinteresse pelo componente estético do

problema, especialmente no que tange às recomendações de

soluções formais neutras, no aconselhamento ao “ambientamento”,

que acabam por subestimar as qualidades figurativas dos

monumentos. Destaca o autor que os debates mais expressivos do

ponto de vista filosófico, especialmente estético, ocorrem em

Nápoles e Roma.

Conforme destaca Carbonara, o restauro crítico parte da premissa de

que:

“cada intervenção constitui um caso em si, não enquadrável

em categorias (como aquelas meticulosamente indicadas

pelos teóricos do chamado restauro “científico”:

‘completamento’, liberação, inovação, recomposição, etc.),

nem adaptável às regras preestabelecidas ou a dogmas de

qualquer tipo, mas a se reinventar com originalidade, caso a

caso, nos seus critérios e métodos.” 61

De acordo com esse entendimento, o restaurador deve ter, além de

competência técnica, um profundo conhecimento da história da arte e

da arquitetura, condições que lhe permitem distanciar-se de decisões

arbitrárias, para encontrar a escolha apropriada, condizente com uma

adequada investigação histórico-crítica.

A discussão versa sobre os procedimentos mais comuns: a

reintegração de lacunas, a remoção de acréscimos inconvenientes, a

diferenciação de elementos novos, a reversibilidade e a escolha da

técnica a ser adotada nas operações a serem realizadas.

61

Idem, p. 285 (tradução da autora).

135

A qualidade da solução aplicada em cada operação está

necessariamente ligada à criatividade e à capacidade de invenção,

requisitos essenciais da ação arquitetônica. Uma criatividade que

deve ser orientada, ainda que não exclusivamente, mas em grande

medida para a conservação.

Uma das preocupações básicas é, através do juízo crítico, diferenciar

a obra arquitetônica de caráter excepcional, enquanto qualidade

artística e valor estético, da obra de valor documental, testemunho da

atividade humana, pois, segundo a concepção do restauro crítico, a

finalidade da ação é justamente liberar a “verdadeira imagem”. Uma

vez que os conceitos de qualidade não são permanentes, mas se

transformam com o tempo, estes exigem, portanto, o esclarecimento

dos motivos e dos critérios que amparam o reconhecimento de valor.

Conforme observa Carbonara, o restaurador alinhado com essa

vertente mostra-se mais confiante na sua própria capacidade crítica e

atribui prioridade ao valor artístico, pois a ele não interessa preservar

unicamente o valor da obra enquanto documento, mais do que isso,

o que realmente interessa é o esforço de atualizar o ato criativo.

Nesses termos, o restauro é entendido como processo crítico e ato

criativo, duas operações aproximadas em uma relação dialética, em

que a segunda é subordinada à primeira. Assim sintetiza o autor

essa atitude voltada a tornar viva e presente a obra de arte e de

arquitetura:

“Aqui se unem o reconhecimento e a satisfação derivada do

valor artístico-histórico com a necessidade de restituir à

obra a eficácia e a pregnância62 que o tempo corroeu e

diminuiu. O restauro como avaliação crítica é paralelo à

história da arte, da qual extrai princípios e métodos;

representa, em essência, um caso particular, em que a

ação crítica se prolonga na prática. (...) demonstra o

62

Conforme definição do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa

1.0.10: forma e estabilidade de uma percepção; lei ou princípio geral da teoria da

Gestalt segundo o qual a configuração perceptiva particular que reponta, entre todas

as outras potenciais, é tão boa quanto o permitirem as condições prevalentes, e

suas propriedades são a simplicidade, a estabilidade, a regularidade, a simetria, a

continuidade, a unidade, a concisão (p.ex., uma circunferência com pequenas falhas

no traçado é vista como se fosse perfeitamente fechada)

136

conhecimento do momento histórico e uma consciente

continuidade com o passado” 63

Sem dúvida, as definições carregam o peso de incorrer em

interpretações pessoais pouco rigorosas, pelo próprio vocabulário

usado pelos teóricos dessa vertente, (atualização, valorização, forma

completa, liberação da verdadeira forma, verdadeira unidade

figurativa), quando apropriado por agentes motivados por ações de

modernização e transformação arbitrária ou duvidosa.

Uma contribuição no sentido de aprimorar essa conduta e de conter

as imprecisões a que inadvertidamente induz pode ser reconhecida

na teoria de Cesare Brandi. Apelando mais uma vez a Carbonara,

admite-se que a filosofia do restauro na Itália, ainda hoje vê seu

ponto de referência no pensamento de Brandi, fundador e diretor do

Istituto Centrale di Restauro di Roma, o mais prestigioso organismo

nesse campo. A partir de uma orientação crítica de ascendência

kantiana e inspiração crociana, organiza seu pensamento, com

amplas e originais aberturas à fenomenologia de Husserl e ao

estruturalismo de Heidegger.

As escolhas transitam entre as teorias

Para situar os procedimentos de Lina Bardi em confronto com as

posturas a que faz referência, nada mais oportuno que iniciar com a

sua compreensão a respeito das conexões entre a história e as

memórias coletivas, entre a narrativa oficial e as diferentes

interpretações que constituem o cotidiano:

“Mas o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo

não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a

qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e

inventadas soluções, sem começo nem fim.”64

Tempo e história nessa citação são sinônimos, o que equivale a

entender a história, como passado vivo que incide diretamente no

presente e conduz à reflexão. Vale observar que essa é uma das

63 Carbonara, op. cit. p. 278 (tradução da autora). 64

FERRAZ, op. cit. Citação de fechamento da publicação.

137

discussões propostas pela chamada “Nova História”65

, uma

abordagem contemporânea que renuncia à temporalidade linear,

detendo-se nos múltiplos tempos vividos, entendendo que a

experiência individual se enraíza no social e no coletivo, como se

pretende analisar.

Fundamental para esta análise investigar o seu entendimento acerca

da locução “presente histórico”: “Existe porém outro tipo de Passado

que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de

‘Presente Histórico’, acompanhando o presente real da vida de todos

os dias.” 66

O termo já tinha sido nominado na mencionada Aula de arquitetura67

e reaparece no texto sobre a intervenção que transforma o antigo

Palácio das Indústrias em nova sede da Prefeitura do Município de

São Paulo68

nos seguintes termos:

“É preciso se libertar das ‘amarras’, não jogar fora

simplesmente o passado e toda a sua história: o que é

preciso é considerar o passado como presente histórico. O

passado, visto como presente histórico, é ainda vivo, é um

presente que ajuda a evitar as várias arapucas... Frente ao

presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro presente,

‘verdadeiro’, e para isso é necessário não um conhecimento

profundo de especialista, mas uma capacidade de entender

historicamente o passado, saber distinguir o que irá servir

para as novas situações de hoje que se apresentem a

vocês, e tudo isto não se aprende somente nos livros.

Na prática, não existe o passado. O que existe ainda hoje e

não morreu é o presente histórico. O que você tem que

65

Ver a esse respeito texto de Jacques Le Goff em Enciclopédia Einaudi. Lisboa:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. Verbete Memória, p.44. A revista Annales d’histoire économique et sociale, criada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre,

provocou polêmica e surpreendente transformação nos domínios da historiografia.

Da Escola dos Annales, como passou a ser chamada, nasce a Nouvelle Histoire, associada a importantes nomes como Emmanuel Le Roy Ladurie, Fernand Braudel,

Pierre nora, além do próprio Le Goff. 66

FERRAZ, op. cit., p. 276, em texto sobre o “Projeto Barroquinha”. 67

O primeiro parágrafo consta no texto da Aula Inaugural da FAUUSP de 1990,

publicada na revista Projeto n. 133, p. 105. 68

Sobre o projeto para a instalação da sede da Prefeitura Municipal de São Paulo no

antigo Palácio das Indústrias (1990-92), convém destacar a sugestiva ideia da

instituição “antikafkiana” mencionada por ela.

138

salvar – aliás, salvar não, preservar – são certas

características típicas de um tempo que pertence ainda à

humanidade.

Mas, se a gente acreditar que tudo o que é velho deve ser

conservado, a cidade vira um museu de cacarecos. Em um

trabalho de restauração arquitetônica, é preciso criar e fazer

uma seleção rigorosa do passado.

O resultado é o que chamamos de presente histórico.” 69

Essas colocações fazem pensar à apreensão de uma dimensão

histórica que não se reporta a um passado idílico, o dos tempos idos

“que os anos não trazem mais”, como lastimava o poeta, mas que,

ao contrário, enxerga as coisas vivas do presente como resultantes

de todo um acúmulo de experiências passadas que lhe conferem

peso e significado cultural. Remete ainda à fronteira entre lembrança

e esquecimento, à imprescindível seleção implícita no processo de

reconhecimento daquilo que se elege para conservar. É natural

também associar essas reflexões com a visão do “restauro crítico”

acima discorrida.

Por outro lado, tal noção sugere de pronto uma aproximação com

aquela enunciada por Brandi em seu livro, Teoria da restauração70,

ao apresentar a história e a estética como os elementos centrais da

obra de arte ou do bem cultural sujeito aos interesses de

preservação.

Rever as contribuições de Cesare Brandi revela-se oportuno em

razão da autoridade representada pelo autor no domínio da

preservação e do restauro. A relevância de sua obra dá-se pela

busca de princípios e métodos de intervenção filiados ao

pensamento crítico e científico. Defende a postura rigorosa de que

toda e qualquer intervenção deva se apoiar na filologia e na

hermenêutica, ou seja, no estudo dos fenômenos da cultura por meio

69

FERRAZ, op. cit., p. 319. 70

BRANDI, C. Teoria da restauração. Trad. Beatriz M. Kühl. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2004. A tradução do livro para o português permitiu a maior divulgação

dessa obra fundamental no Brasil, bem como a ampliação e atualização das

discussões, conforme os debates mais recentes do panorama internacional.

139

de textos, documentos e, desse modo, se contrapor ao empirismo e

à arbitrariedade.

Uma primeira contribuição do autor equivale à apreensão da

peculiaridade da ação de conservação voltada ao bem cultural,

distinta daquela dirigida ao artefato comum. Em uma acepção

corrente a noção de restauro pressupõe a recuperação de uma

condição de uso. Se, para o artefato comum esse aspecto é

relevante, para a obra de arte, de acordo com Brandi, essa condição

pode ser secundária, tendo em vista a preponderância de sua

expressividade figurativa, frente às questões utilitárias.

Dessa apreensão decorre o primeiro corolário enunciado pelo autor:

“(...) qualquer comportamento em relação à obra de arte71,

nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende

de que ocorra ou não o reconhecimento da obra de arte

como arte.” 72

O valor atribuído ao objeto de intervenção condiciona definitivamente

a ação, isto é, a própria intervenção deverá articular seu conceito não

com base nos procedimentos operativos, mas com base no conceito

que se faz da obra.

Assim conclui Brandi:

“Chega-se, desse modo, a reconhecer a ligação indissolúvel

que existe entre a restauração e a obra de arte, pelo fato de

a obra de arte condicionar a restauração e não o contrário.”

73

Para compreender o alcance da reflexão de Brandi, convém, em

primeiro lugar, retomar a sua definição de restauro:

“(...) a restauração constitui o momento metodológico do

reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física

71

A referência de Brandi à obra de arte deve ser contextualizada. Na atualidade

essa compreensão é mais alargada, subentende a noção do patrimônio numa

acepção mais ampla, equivalente a de bem cultural. 72

BRANDI, C. op. cit., p. 28. 73

Idem, p. 29.

140

e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas

à sua transmissão para o futuro.” 74

Conforme sugere Carbonara, da definição depreende-se que:

• restauro é ato crítico, atento ao juízo de valor, dirigido ao

reconhecimento da obra na sua dupla polaridade estética e

histórica;

• do reconhecimento surge o dever75

de conservação;

• por tratar de obras de arte (como já mencionado, vale

estender a compreensão à noção de bem cultural, ou seja,

particulares expressões do fazer artístico, portadoras de

significado cultural), a restauração deve privilegiar a instância

estética, por constituir o fato basilar da “artisticidade”, aspecto

fundamental que define a obra de arte como tal;

• a obra é entendida na sua totalidade indissociável de forma,

imagem e matéria (que veicula a imagem consubstanciada na

forma).

Cabe aqui esclarecer acerca do “momento metodológico”

mencionado na definição de Brandi. Segundo o próprio autor, a ação

de preservação se impõe como um imperativo categórico no próprio

instante do reconhecimento da obra. Tal reconhecimento advém de

modo intuitivo na consciência individual, representando porém uma

consciência coletiva que exige a conservação. O caráter

metodológico vinculado à ação impõe uma postura científica, a

adoção de um corpo de regras e diligências que orientem os

trabalhos, como único modo de conter o “casuísmo” da intervenção.

No entender de Brandi, o restauro está situado no momento da

manifestação da obra de arte como tal na consciência de cada um. A

ação encontra origem no momento de reflexão, nessa súbita

revelação que impõe a necessidade de transmissão ao futuro.

74

Idem, p. 30. 75

Nos termos colocados por Emannuel Kant (1724-1804), conforme Houaiss: “(...)

obrigação de agir segundo uma lei moral ditada pela pura razão, a despeito de

quaisquer inclinações sensoriais ou afetivas, ou mesmo de regras e valores de

origem religiosa ou política”

141

Restauro é, portanto, providência vinculada ao reconhecimento de

valor que, por sua vez, requer um processo organizado, lógico e

sistemático de instrução.

Essa idéia sobre a formulação do juízo estético, enquanto

reconhecimento de valor da obra de arte, apresenta afinidades com

as de Giulio Carlo Argan:

“O valor é, obviamente, um algo mais de experiência da

realidade ou da vida, pelo qual o objeto transcende a

própria instrumentalidade imediata; e este algo mais não

passa do objeto para o sujeito se a consciência, no

momento em que o recebe, não reconhece que ele se situa

além da esfera da contingência, na esfera dos valores

permanentes da civilização, da história.” 76

Sobre os componentes constitutivos do objeto de intervenção, assim

discorre Brandi:

“Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca,

com efeito, uma dúplice instância: a instância estética, que

corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra

de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete

como produto humano realizado em um certo tempo e lugar

e que em certo tempo e lugar se encontra.” 77

Mais adiante pontua o caráter dúplice da historicidade:

“Foi dito que a obra de arte goza de uma dúplice

historicidade, ou seja, aquela que coincide com ato de sua

formulação, o ato de criação, e se refere, portanto, a um

artista, a um tempo e a um lugar, e uma segunda

76

ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. Trad. Píer Luigi Cabra.

São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 17. Com já mencionado, autor explicita a

afinidade ao mencionar Brandi diversas vezes, como na p. 28, quando afirma que

“Brandi reconhece que a obra de arte é percebida pela consciência em sua historicidade”. Em outro trecho afirma: “O próprio Brandi exclui que a obra de arte seja comunicação de mensagens ou conteúdos dados, os quais, de fato, se fossem fielmente retraduzidos em palavras e conceitos, resultariam com freqüência insignificantes ou incoerentes.” (p. 29-30). 77

Idem, p. 29. Conforme Argan, em Projeto e destino, p.59, o conceito de

“artisticidade”, em sentido fenomenológico, foi posto com clareza por Dino

Formaggio em L’idea di artisticità (1962). Argan aconselha ainda consultar a obra:

L’integrazione estética, de 1959, de Rosario Assunto.

142

historicidade que provém do fato de insistir no presente de

uma consciência (...)

O período intermediário entre o tempo em que a obra foi

criada e esse presente histórico que de modo contínuo se

desloca para frente, será constituído de outros tantos

presentes históricos que se tornaram passado, mas de cujo

trânsito a obra poderá ter conservado traços.” 78

O entendimento do presente histórico, formulado por Brandi, é

fundamental para a definição do momento adequado para situar a

intervenção de restauro.

“(...) o único momento legítimo que se oferece para o ato

da restauração é o do próprio presente da consciência

observadora, em que a obra está no átimo e é presente

histórico, mas também é passado e, a custo, de outro

modo, de não pertencer à consciência humana, está na

história. A restauração, para representar uma operação

legítima, não deverá presumir nem o tempo como

reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro,

ademais, e pela mesma exigência que impõe o respeito da

complexa historicidade que compete à obra de arte, não se

deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas

deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é,

pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de

transmissão da obra de arte para o futuro.” 79

Vale destacar a clara intenção de evidenciar a intervenção, não

mimetizar, não esconder, não confundir o público em geral, seja

composto por iniciados ou não.

Difícil saber se o presente histórico de Lina Bardi tem por base a

expressão brandiana80

. Contudo sua origem e formação apontam

para uma familiaridade com a notável produção desse intelectual

78

Idem, pp. 32-33. 79

Idem, p. 61. (O grifo é nosso.) 80

Em debate realizado no MASP, em 25/08/09, por ocasião do lançamento do livro

Lina por escrito, Silvana Rubino (umas das organizadoras da publicação junto com

Marina Grinover) comenta a respeito da acepção crociana dessa expressão.

Benedetto Croce representaria certamente um dos pontos de contato entre os

presentes históricos de Lina Bardi e de Cesare Brandi.

143

italiano. Fato é que a citada Carta de Veneza surgiu na esteira do

debate criado entorno do chamado “restauro crítico” e tanto o

documento, como as idéias defendidas por essa tendência, são

materiais burilados pelo pensamento de Brandi e ainda permanecem

nos dia de hoje como referências válidas para aqueles que atuam no

campo disciplinar do restauro. Mais relevante que apontar essas

aproximações, talvez seja observar que a orientação geral do projeto,

sob certos aspectos, afina-se com os princípios apresentados pelo

teórico.

É oportuno reafirmar que não se trata aqui de pretender enquadrar

forçosamente a conduta de Lina como arquiteto disposto a lidar com

as preexistências conforme as diretrizes de uma precisa vertente da

teoria da restauração, e sim buscar afinidades no encadeamento

lógico do problema. Mesmo porque não se pode subestimar o peso

de sua formação, inclusive no tocante ao campo específico da

restauração, tão relevante na produção acadêmica de Roma, cidade

em que se formou. Os ensinamentos de Gustavo Giovannoni, aliás,

eram freqüentemente mencionados e confirmados pelo relato de

seus colaboradores mais próximos, enquanto referência de uma

significativa herança cultural adquirida. Daí o apreço pelo sentido

histórico do ofício do arquiteto, contra as posições mais abstratas e

simplistas do movimento moderno que defendiam fazer do passado

tábula rasa.

A história entendida como presente histórico e memória viva é o

mote da intervenção que promove um diálogo de tempos no território

da Ladeira da Misericórdia. Uma recriação, algo indicado como

pertinente pelo próprio Brandi, não obstante sua postura rigorosa:

“apesar de não entrar no campo da restauração, pode ser

perfeitamente legítimo também do ponto de vista histórico,

porque é sempre testemunho autêntico do presente de um

fazer humano e, como tal, monumento não dúbio de

história.”

Importante ainda analisar como é abordado pelo autor o problema da

conservação ou remoção de acréscimos extemporâneos sob os dois

elementos essenciais que constituem as obras objetos de

144

intervenção: o da história e da estética. Indagar em que medida se

aplica a razão histórica ou prevalece a razão estética, e buscar uma

alternativa em caso de eventual discrepância.

Observa Brandi que segundo a instância da historicidade, a princípio,

a adição é um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da

história e como tal tem o direito de ser conservada. A remoção, ao

contrário, deve ser justificada, pois apesar de se inserir igualmente

na história, destrói um documento e não documenta a si própria, o

que equivaleria a um cancelamento de uma passagem histórica.

Disso decorre que, para a historicidade, a conservação da adição é

norma enquanto que a remoção é excepcional.

Do ponto de vista da estética, inverte-se o raciocínio: o acréscimo

reclama a remoção. Delineia-se, assim, o conflito entre as duas

instâncias e a resolução é determinada por aquela que tem maior

peso.

“E como a essência da obra de arte deve ser vista no fato

de constituir uma obra de arte e só em segunda instância

no fato histórico que individua, é claro que se a adição

deturpa, desnatura, ofusca, subtrai parcialmente a vista,

essa adição deve ser removida (...)” 81

Vale enfatizar que será sempre um juízo de valor a determinar a

prevalência de uma ou de outra instância – histórica ou estética – na

conservação ou remoção dos acréscimos.

Lina Bo Bardi não cai na armadilha do excesso de zelo do presente

frente ao passado. Não acata as recomendações de

“ambientamento”, nem tampouco os clichês de um “novo

envidraçado” que, fingindo-se discreto, se apresenta com

espalhafato. Opta por uma calculada intervenção em que a ruína

continua ruína, assegurando assim sua presença como vestígio de

um tempo humano, ao mesmo tempo em que impede o avanço da

corrosão, do desmantelamento, por meio da consolidação estrutural

com o emprego dos contrafortes de argamassa armada, uma técnica

nova e apropriada. Os terrenos baldios propiciam projetos de novos

81

Idem, p.84. (O grifo é nosso).

145

edifícios que convivem com muros e vegetação preexistentes. Novos

usos diversificam e animam as atividades ali presentes.

É importante destacar a atenção do projeto ao espaço interno dessas

construções em que as modificações são claramente perceptíveis: as

paredes novas, que empregam a mesma técnica dos contrafortes,

distinguem-se daquelas mantidas. A transformação não ofende, mas

dialoga como o existente.

As escolhas notadamente pessoais, descoladas das posições aceitas

no campo da restauração, podem ser identificadas nas decisões de

pintar de branco as paredes, de remover as tintas da madeira dos

caixilhos, deixando evidentes o aspecto e a cor do material. Estas

atitudes são facilmente reconhecidas como marcas de um raciocínio

moderno. Coincidem com as estratégias de valorizar a autenticidade

dos materiais, de optar pela simplicidade e pela ausência de cor.

O patrimônio urbano

Ao se tratar da Ladeira da Misericórdia, fala-se de uma intervenção

em um trecho de cidade, uma ação que extrapola o edifício para se

reportar ao urbano, um contexto marcado pelos testemunhos da

arquitetura tradicional.

O entendimento da relação inseparável que atrela a arquitetura ao

território é condição essencial para a formulação do conceito do

patrimônio urbano, considerado em sua dimensão de bem cultural

coletivo, que ultrapassa os limites estritos do valor econômico, da

mercadoria. Tomar por referência a notável reabilitação do centro

histórico de Bolonha é indicação clara desse pressuposto. Trata-se

de uma ação exemplar elaborada em fins dos anos 1960 e realizada

ao longo das décadas de 1970-80: uma das primeiras ações de

grande repercussão internacional a reverter um fenômeno de

degradação e desvalorização que acomete não só Bolonha, mas

outras áreas centrais de importantes cidades européias. A situação

de desgaste agrava-se na mesma medida em que se pronuncia um

mecanismo de expansão urbana, associado à especulação

imobiliária que, ao privilegiar áreas periféricas para implantação de

novos projetos e serviços, relega os centros históricos à condição de

abandono.

146

A falta de investimentos particulares (e também públicos) contribui

para uma evasão acentuada de habitantes e para uma limitação de

uso, o que determina a permanência preponderante daqueles

usuários com poucos recursos financeiros para arcar com as

despesas das obras de recuperação e modernização das

edificações. Faz-se então necessária a intervenção do poder público

para promover investimentos e alterar aqueles processos gerados

pela atividade do mercado imobiliário.

No diagnóstico elaborado pelos idealizadores do programa, entre os

quais havia políticos, arquitetos e urbanistas ligados ao Partido

Comunista Italiano que administrava o município desde o pós-guerra,

pode ser notado o tom cético em relação ao modelo vigente de

expansão urbana e à situação dos sítios históricos:

“(...) conviene subrayar la necesidad de tener una visión

global del problema del centro histórico y su recuperación,

partiendo de un análisis crítico del sistema de desarrollo de

nuestro país y de las consecuentes tendencias en la

ordenación del territorio como causa primordial de la

destrucción actual de los centros históricos y de la

marginación de las clases sociales menos pudientes y de las

actividades más humildes. Dentro de este sistema, que se

traduce, por su parte, en un constante aumento de la

producción de casa nuevas e, por otra, en una

concentración de las instalaciones productivas dentro de las

áreas metropolitanas, está claro que el centro histórico

reviste hoy un valor marginal y subalterno.” 82

Parte-se então da premissa de que não se pode definir uma política

de conservação urbana desvinculada da política econômica e

territorial, ou seja, entende-se que os aspectos da conservação

estejam intimamente ligados aos fenômenos econômicos e sociais.

Nesse sentido, o centro histórico é considerado como um bem

cultural inalienável, como um notável patrimônio econômico edificado

que não pode ser desperdiçado, nem deixado nas mãos da

82

Na edição em espanhol de CERVELLATI, P. L., SCANNAVINI, R. Bolonia politica y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Gustavo Gili,

1976, p.1

147

especulação, mas que pelo contrário deve ser conservado e

recuperado para fins de habitação social, alijado de transformações

estruturais e funcionais a que, na ausência de uma ação tutelar de

natureza conservativa, estaria espontaneamente submetido.

Estão lançadas as bases da chamada “Conservação Integrada” que

obterá grande repercussão internacional após a “Declaração de

Amsterdã” (1975) que, sob influência das ações em Bolonha,

recomenda expressamente a conciliação entre as preocupações de

conservação e as diretrizes do planejamento urbano e territorial.

O resultado é uma intervenção cuidadosa que dispensa a devida

atenção à população residente e aos grupos de baixa e média renda,

que procura viabilizar a execução das obras de recuperação sem

provocar a expulsão dessa mesma população. O mecanismo de

gentrification83 tão acentuado em ações mais recentes, em que essas

preocupações não são postas em evidência, é assim contido.

Outra questão pertinente na análise desse plano é o cuidado com a

materialidade arquitetônica e o trabalho meticuloso de levantamento

e análise das tipologias construtivas que antecederam as

intervenções. Esta é uma orientação fundamental, ditada pelo

respeito histórico, pelo reconhecimento de que o valor daquele

conjunto edificado está aportado em aspectos interligados entre si,

tais como: a configuração espacial, a técnica construtiva, o emprego

dos materiais, a organização interna dos edifícios. Isto significa que a

atenção está muito além da simplificação que considera tão somente

o volume, seu contorno, ou a aparência externa, para levar em conta

a arquitetura em toda sua inteireza. [23]

Os rumos tomados pela experiência, em certos aspectos, se

distanciaram das premissas iniciais. Observou-se, por exemplo, que

a própria expansão da universidade colaborou para uma procura por

habitação nas áreas centrais, por parte de estudantes e professores

que necessariamente desalojaram antigos moradores de menor

83

O significado do termo, usado genericamente para indicar um processo de

transformação de uma zona popular em região nobre, é analisado em detalhes, nas

diversas nuances dadas por diferentes autores em texto de Silvana Rubino:

“Gentrification: notas sobre um conceito incômodo”. In: SCHICCHI, M. C. et al. (org),

Urbanismo: dossiê São Paulo-Rio de Janeiro. Campinas: Rio de Janeiro: PUC-

Campinas, PROURB-UFRJ, 2003. A autora informa que o termo foi usado foi pela

primeira vez pela socióloga inglesa Ruth Glass em 1964.

148

poder aquisitivo. Esses dados confirmam que a cidade é organismo

vivo, sujeito a pressões e conflitos, que nem tudo pode ser decidido

na mesa dos planejadores e que deve haver espaço para

negociação. Provavelmente Lina Bardi alude a esses aspectos,

quando lamenta as limitações dos resultados obtidos84

. Ainda assim,

essa intervenção continua a ser uma importante referência, e mesmo

com todas as ressalvas, mostra-se pertinente evocá-la por suas

preocupações sociais, por sua atenção aos habitantes do local, aos

usos peculiares e principalmente por respeitar os testemunhos

autênticos da cidade antiga, sem transformá-los em réplicas ou

simulacros.

84

FERRAZ, op. cit., p. 270: em texto que descreve o projeto da Ladeira da

Misericórdia, Lina Bardi menciona os erros cometidos em planos de recuperação

urbana de diversas cidades européias, entre as quais Roma e Bologna, em que os

moradores antigos são substituídos por populações de maior poder aquisitivo.

[23] Bolonha. Trecho do bairro de S. Leonardo. Levantamento e foto das obras de

recuperação. Fonte: FAZIO, 1997, p. 166.

149

A esse respeito, Giulio Carlo Argan ressalta os avanços obtidos pela

prefeitura de Bolonha e destaca que essa experiência foi tida como

modelo para intervenções análogas no centro histórico de Roma, no

período em que esteve à frente da administração municipal da

capital. Enfatiza o processo:

“de uma regeneração integral do tecido urbano do centro

através de procedimentos que, ao mesmo tempo, destinam-

se a restabelecer um grau de dignidade social e a submeter

os edifícios a uma restauração propriamente dita.” 85

Observa que nas camadas populares bolonhesas há um grande

apego à cidade e ao bairro de origem, o que convalida a intervenção.

Assinala ainda que a administração pública consegue conter e

reprimir significativamente a especulação na construção civil.

É mais uma vez Argan quem formula questionamentos válidos para

afrontar a problemática articulação entre as ambições de projeto para

o futuro das cidades e a legitimidade de conservação do patrimônio:

“Podemos acaso dizer que nossas escolas de história da

arte preparem estudiosos capazes de participar de equipes

de projetistas, de colaborar no estudo dos processos vitais

da cidade, e não somente de colocar obstáculos e limites,

os quais têm, com certeza, sua razão de ser, mas apenas

na medida em que os pontos da conservação forem

enquadrados e, de certo modo, garantidos por um tipo de

cultura urbana que não repudie a sua historicidade, mas

dela tenha consciência dela?” 86

Argan defende uma postura ativa, ética, um compromisso político, e

não meramente analítico do próprio historiador da arte que para ele é

o mesmo que historiador da cidade. Se não fosse assim,

provavelmente não teria aceitado o desafio de atuar como prefeito de

Roma entre 1976 e 1979. Decididamente propõe uma reformulação

da história da arte como disciplina, quando coloca o “problema de

85

ARGAN, op. cit., p. 80. 86

Idem, p. 82.

150

uma nova (ou antiga) ética profissional, que reconheça como capital

a atividade do besorgen, de cuidar das coisas”.

Prossegue, definindo um novo papel para o historiador:

“Portanto, é necessário que os historiadores da arte

considerem o estudo científico de todos os fenômenos da

cidade como inerente à sua disciplina; a conservação do

patrimônio artístico como metodologia operativa inseparável

da pesquisa científica; a sua intervenção no devir da cidade

como o tema fundamental da sua ética disciplina (...)” 87

Importante destacar que Argan reitera sua convicção sobre a

complementaridade de ação entre o planejamento e a conservação:

“para revitalizar os centros históricos não se pode contar

apenas com as possibilidades técnicas de recuperação. Se

a reanimação deve traduzir-se numa refuncionalização mais

orgânica, é claro que a intervenção dos técnicos do

patrimônio cultural é necessária desde a primeira fase do

estudo do projeto e que tal intervenção não deverá ser

limitada aos centros históricos propriamente ditos, mas

estendida a toda a área da cidade na medida em que influa

no centro histórico e o condicione. E, restaurar, é bom

lembrar, não significa recuperar, nem modernizar.” 88

Essa é uma interação vislumbrada por Argan para o desempenho

profissional do historiador, mas que cabe com maior pertinência ao

arquiteto, pela própria natureza propositiva de sua profissão: uma

ação que não pode ser exclusivamente defensiva e inibidora, mas

que deve entrar no mérito das propostas, dos projetos para o futuro

da cidade.

Diferente dos critérios de intervenção adotados na experiência de

Bolonha, assim como das oportunas observações de Argan, que

encontram afinidade com a atuação de Lina Bo Bardi – cuja atenção

volta-se ao centro histórico comprometido com suas raízes culturais

e com a população que nele habita – o Programa de Recuperação do

87

Idem, p. 83. 88

Idem, p. 80.

151

Centro Histórico de Salvador (plano iniciado em 1992), considera

prioritariamente o território urbano como um produto econômico.

Vale-se de estratégias de marketing para a construção da imagem de

uma administração pública ancorada em uma pseudovalorização da

identidade cultural e das tradições da Bahia em seus aspectos mais

estereotipados. Um procedimento muito em voga no panorama

internacional que aponta para o consumo cultural e o turismo de

massa como elementos fundamentais para reverter processos de

degradação e abandono das áreas centrais.

Conforme sinaliza, ainda que sem ampla divulgação, o texto de um

documento elaborado pela CONDER (Companhia de

Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador), órgão do

governo estadual que, com o IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e

Cultural da Bahia), é encarregado de gerenciar a intervenção, a área

recuperada deve assumir as características de um “shopping center

ao ar livre”, gerando uma dinâmica que contaminaria “saudavelmente

as quadras vizinhas (...) viabilizando o Centro Histórico”89. No

entanto, essa visão da área como empreendimento comercial, mas

que depende do investimento público para sobreviver, revela a

incoerência, a hipocrisia e inadequação da intervenção.

A implantação do programa determina a remoção e indenização de

cerca de mil e novecentas famílias que vivem precariamente nessas

áreas degradas. Essas pessoas vivem, até então, naqueles locais

justamente por pagarem preços muito baixos de aluguel em

habitações insalubres, ou por ocuparem construções invadidas. Vale

destacar que não se verifica, por parte dessa população, resistência

ao desalojamento. Entre outros motivos, a oferta de indenização, por

mais baixa que seja, é um atrativo. Além disso, não há nenhuma

forma de organização comunitária que favoreça uma reação

minimamente programada. Lamentavelmente não há preocupação

do poder público com o destino dessa população que se desloca

para outras regiões em condições igualmente precárias.

89

Apud Sant’Anna, 2003.

152

Como assinala Márcia Sant’Anna90

o que determina o perfil

centralizador da gestão da administração pública é essencialmente:

“(...) a possibilidade de controlar e manter a área

recuperada como uma espécie de out door permanente da

administração estadual e uma ‘sala de visitas’ sempre

arrumada para o turista. Para que funcione desse modo, o

Pelourinho tem de ser pintado constantemente e se parecer

o tempo todo com uma fotografia. Tem que ser um hiper

Pelourinho, sempre novo em folha e isento das marcas de

suas próprias contradições, a fim de cumprir essa função

midiática e múltipla de signo da baianidade, ícone do

turismo e do lazer e de símbolo do consenso e do bom

governo.”91

Convém ressaltar o equívoco da concepção cenográfica que ignora

as tipologias tradicionais, as relações de parcelamento do solo que

compõem a substância histórica do espaço urbano. Nesse sentido é

igualmente discutível a estratégia de permeabilidade para uma nova

configuração espacial de certas quadras associadas a novos usos

(encontro e lazer), modificando o caráter peculiar dos quarteirões na

estrutura espacial da cidade tradicional. Vale-se da aplicação acrítica

de um mecanismo recorrente nas ações contemporâneas que

privilegia a articulação entre os lotes, a ligação entre o edifício e a

cidade. Ignora, por outro lado, a estrutura urbana consolidada no

tempo, as relações entre espaços construídos e espaços abertos,

certos elementos de valor documental como os anexos que formam

conjuntos de construções enfileiradas nos fundos de lotes,

construídas para os ex-escravos após a libertação. [24]

A concepção de lugar turístico apartado do cotidiano e da vida da

cidade, com seu caráter superficial, não colabora para vencer as

dinâmicas de esvaziamento que constantemente ameaçam esses

90

Em texto intitulado: “A recuperação do Centro Histórico de Salvador: origens,

sentidos e resultados”, publicado na revista RUA – Revista de Urbanismo e

Arquitetura, n. 8, Salvador, jul/dez 2003. O artigo desenvolve uma análise

aprofundada do programa de recuperação, de seus critérios e etapas de

implantação. 91

Idem, p. 52.

153

territórios, nem contribui para solucionar os sérios problemas

estruturais ligados à pobreza urbana.

Todo projeto de arquitetura e urbanismo, depende de um conjunto de

ações políticas de valorização humana para se concretizar.

Impossível requalificar e recuperar cidades se há degradação das

condições mais gerais de vida.

Nesse sentido, nem o projeto de Lina Bo Bardi se mostra imune à

persistência das graves questões estruturais e da degradação social.

De qualquer forma, sua ação se contrapõe ao espetáculo, evita

transformar o Pelourinho em alegoria turística.

Em sua proposta para a Ladeira da Misericórdia, Lina Bardi mantém

o uso comercial e de serviços no pavimento térreo. Nada em comum

com as atividades voltadas unicamente para turistas, associadas a

um novo agente empreendedor. Por outro lado, não exclui a

presença de visitantes, atraídos por novos usos propostos para os

terrenos vagos, como o restaurante Coaty. Desse modo, projeta uma

nova arquitetura que se coloca como afirmação de um novo tempo.

Como sugere Michael Sorkin: “a melhor defesa de uma arquitetura

histórica autêntica é o complemento de uma autêntica arquitetura

contemporânea.”92

92

Em artigo publicado na revista RUA, n. 8, Salvador, jul/set. 2003.

[24] Salvador. Vista aérea mostra espaços requalificados no interior das quadras.

Proximidade do largo do Pelourinho ilustra a concepção cenográfica da intervenção.

Fonte: COUTO, [et al.], 2000, p. 101 e 105.

154

Algumas considerações

A história entendida como memória viva é a matéria-prima da

arquitetura de Lina Bo Bardi, cuja síntese pode ser reconhecida na

busca de superação da fratura histórica entre “antigo” e “moderno”,

na construção de uma continuidade entre passado e presente.

Supõe-se, portanto, que a chave de leitura para a compreensão de

sua atuação em bens culturais passe por essa noção de

continuidade histórica. Não se trata do restabelecimento daquela

condição de tempos mais distantes em que a intervenção sobre as

preexistências obedecia unicamente aos ditames e conveniências do

presente, mas um processo de ativação do exercício crítico atento e

indispensável em relação aos testemunhos do passado que não só

norteie a conservação, mas, sobretudo, oriente a transformação

criteriosa do bem a ser submetido à intervenção.

Sua compreensão sobre a história é, portanto, tida aqui como

condição central para entender a postura de intervenção em

preexistências associadas à noção de patrimônio arquitetônico. No

prefácio de sua obra, Contribuição propedêutica ao ensino da teoria

da arquitetura, ao discorrer sobre a atuação recomendável do

professor em fazer despertar no estudante o desejo de reflexão e

pesquisa, tece considerações sobre a relação entre a arquitetura e a

história:

“(...) a arquitetura moderna é, como todas as atividades

humanas, o produto da experiência do homem no tempo, e

de que não existe fratura entre o assim chamado “moderno”

e a história, visto ser o “moderno” antes o produto da

história mesma, através da qual somente é possível evitar

as repetições de experiências superadas. É a história,

quando não entendida como ‘uma coisa de tesouras e cola’,

mas como coisa viva e atual, revivida em seus problemas

fundamentais dotados de transmissibilidade e fecundos

ensinamentos, essa história que, como é óbvio, não é

aquela dos manuais escolares, monótona e de segunda

mão, capaz apenas de sugerir a idéia de que o ‘passado’

passou e não tem mais validade, e que o mundo começou

155

hoje, atribuindo-se ao homem, assim, a tarefa de refazer,

sozinho, a experiência do ‘paraíso perdido’; mas, assim a

história que não seja a mera ‘História’ abstrata e sim a vida

concreta e fecunda.” 93

Ao mesmo tempo em que seu entendimento de história mostra-se

afinado com a concepção da mencionada Nova História, suas

palavras também comprovam a percepção de que o panorama

contemporâneo impõe a revisão crítica do modernismo ortodoxo, o

que corresponde à antecipação dos debates mais recentes,

principalmente naquilo que diz respeito ao questionamento da

dominante visão anti-histórica que permeia o ambiente cultural da

primeira metade do século XX94

.

A história como vida “concreta e fecunda” é a mola essencial da

intervenção em edifícios ligados às discussões do patrimônio

construído, em que se aplica a noção do presente histórico. Uma

noção que se apresenta como a motivação essencial para subordinar

a preexistência e sua representação, enquanto conjunto de valores e

costumes, à fruição do presente.

A atenção à arquitetura como fato cultural, como “organismo apto à

vida”, que se traduz na sua acuidade profissional em elaborar um

programa de usos pertinente, exeqüível e duradouro, bem como no

devido equacionamento do espaço arquitetônico pronto a acolher as

atividades programáticas, é o motor de sua ação.

Vale relembrar sua habilidade em reconhecer e ativar práticas

sociais, especialmente no tocante ao articular conhecimentos e

experiências eruditas àquelas populares. Pois bem, a intervenção

resulta dessa combinação entre a visão contemporânea da história e

essa percepção profissional aguda que se apropria dos meios

convenientes para materializar suas intenções plásticas e

construtivas, articuladas à configuração de um programa funcional

93

Em BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica... pp. 5-6. Texto elaborado em

1957. 94

É necessário ponderar que na passagem dos nãos 1970 para os 80, anos em que

a autora freqüenta o curso da FAUUSP (precisamente entre 1977-81), ainda se

pensava e fazia arquitetura como se a vertente racionalista e funcionalista fosse a

última palavra de referência metodológica para a produção. Os ventos pós-

modernistas agitavam o ambiente acadêmico, de modo geral, como uma espécie de

modismo, uma adesão às novas tendências da forma, sem a necessária discussão

conceitual.

156

rico e versátil. É o que Marta Bogéa reconhece como “competência

em edificar”, recorrendo a Choay.95

Sem dúvida, sua ação colabora para maturar outra condução das

políticas culturais do SESC. Com uma visão que valoriza as

atividades esportivas como chances de encontro e recreação, ao

invés de competição e práticas agonísticas, acaba por contribuir para

o novo enfoque da instituição, agora centrado em atividades culturais

e práticas sociais, mais do que em práticas esportivas, como de

início.

Convém, contudo, enfatizar mais uma vez que o exercício do

restauro e de intervenções correlatas impõe, ao contrário da

confiança exacerbada na capacidade de criação e na aspiração à

novidade contida na invenção do projeto do novo. Imprescindível,

portanto, considerar a importância estética e histórica da obra a ser

submetida à intervenção, além de cotejar os critérios de projeto com

as teorias da restauração. Como já destacado, esse exercício

reclama não só conhecimento das teorias, mas também das técnicas

tradicionais e contemporâneas, e principalmente a contenção da

vaidade para impedir a adoção de soluções descomedidas que

sobrepujem os valores reconhecidos na preexistência. O diálogo de

tempos não admite suplantar o significado cultural de uma herança

do passado, mas sim a aceitação do transcorrer do devir histórico e

da convivência respeitosa entre as diferentes épocas.

Os projetos aqui analisados evidenciam uma combinação de

comedimento e ousadia na atuação. Comedimento próprio de quem

busca a simplicidade, a intervenção mínima indispensável para

possibilitar o desenvolvimento das atividades previstas no programa

arquitetônico. Ousadia própria da atitude corajosa de quem abre

caminhos, inaugura procedimentos novos. O SESC Pompéia,

particularmente, surge como marco do reconhecimento da dignidade

da arquitetura de caráter ordinário, um exemplar da arquitetura

industrial, até então visto com certo desprezo pelos críticos, pelos

técnicos responsáveis pelos inventários do patrimônio arquitetônico.

95

Em artigo já citado, publicado nos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da USJT,

São Paulo, set. 2007, cujo título é “Lente 2: Centro histórico da Bahia: antigo e

moderno.”

157

É o projeto de Lina Bardi a valorizar aquela arquitetura, o

tombamento reconhece a intervenção como um acréscimo de

significado, uma ulterior qualidade a ser preservada, na medida em

que sua ação tinha explicitado o juízo de valor acerca da arquitetura

existente.

O conjunto após a intervenção, além de ser referência obrigatória

nos debates sobre revitalização de edifícios históricos, passa a ser

objeto de uma discussão mais ampla que extrapola os limites do

âmbito da conservação do patrimônio arquitetônico. Como observa

Luís Antônio Jorge:

“Este projeto é um acontecimento para a geração de

arquitetos formada nos anos 1980, que reconhecia na obra

um ponto de inflexão na história da arquitetura

contemporânea; dissonante num contexto de afasia;

extravagante, provocativo e delirante onde só se via

repetição; poético e criativo, ocupando um vazio de debates

e reflexão.” 96

Não resta dúvida de que atribuir um uso compatível com as

características do edifício, reintegrando-o a um circuito dinâmico de

fruição que, aliás, é aspecto essencial da arquitetura, é um passo

importante para o resgate da arquitetura, removendo-a do “limbo”

representado pela condição de abandono.

Não há como negar, entretanto, que a decisão de demolir as paredes

internas e de descascar as fachadas voltadas para a rua, bem como

o descarte das máquinas97

são atitudes que contrariam as

orientações ligadas à conservação dos bens identificados como

patrimônio industrial.

Importante, portanto, confrontar os critérios de intervenção com as

recomendações de um documento arrolado como referência

fundamental: a Carta de Veneza. A questão do uso dos bens

culturais, abordada no artigo 5º, enfatiza a importância do uso para a

96

Op. cit., p. 108. 97

Provavelmente, quando Lina Bardi é contratada para desenvolver o projeto, as

máquinas já não estão mais lá, no espaço da fábrica desativada.

158

conservação, mas estabelece limites precisos para as

transformações:

“A conservação dos monumentos é sempre favorecida por

sua destinação a uma função útil à sociedade; tal

destinação é portanto, desejável, mas não pode nem deve

alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. É

somente dentro desses limites que se deve conceber e se

pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos

usos e costumes.” (o grifo é nosso)

Além das modificações realizadas nos antigos galpões, a solução

arquitetônica dos novos edifícios projetados por Lina Bo Bardi para

as atividades esportivas também diverge do artigo 6º da Carta de

Veneza, conforme segue:

“A conservação de um monumento implica a preservação

de um esquema em sua escala. Enquanto subsistir, o

esquema tradicional será conservado, e toda construção

nova, toda destruição e toda modificação que poderiam

alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas”.

Dois aspectos, no entanto, devem ser destacados: o primeiro refere-

se à atribuição de valor, o segundo, à natureza da intervenção em si.

Quanto ao reconhecimento de valor, convém destacar que os

edifícios industriais do SESC Pompéia não configuram obras-primas

inconfundíveis, de valor inestimável, obras que exigiriam limites mais

severos de intervenção, ou até mesmo uma postura de conservação

integral. Ao contrário, representam alguns entre tantos exemplares

de edifícios industriais, de valor documental. É necessário

reconhecer que a atuação de Lina Bardi impediu a demolição, fim

previsível reservado à maioria dos edifícios semelhantes,

especialmente os não tombados. Quanto à natureza da intervenção,

admite-se, a princípio, que o uso do termo ‘restauro’, em sentido

estrito, seja impreciso e inadequado. O projeto de Lina Bo Bardi

corresponderia, a rigor, a uma ação de requalificação, reutilização ou

reciclagem, na medida em que reconhece a dignidade e o valor

documental da arquitetura preexistente e, mediante a transformação

159

elaborada, potencializa e resignifica a preexistência, reanimando e

reinventando tanto o programa, quanto a qualidade do espaço.

A relevância do novo uso prepondera em relação à predisposição de

conservação da arquitetura preexistente, o que acaba por conduzir

as modificações operadas nos edifícios da antiga fábrica.

Certamente, o caráter da arquitetura industrial, que se afirma como

recipiente capaz de abrigar grandes máquinas em amplos e

contínuos espaços de trabalho, – marcados pela grelha estrutural –

colabora para ratificar a decisão de deixar intacto o volume

constituído pela cobertura e paredes externas, além da estrutura

interna composta pelas vigas e pilares de concreto.

Vale ressaltar a integridade da ação de Lina Bardi no tocante ao juízo

de valor atribuído “não só às grandes criações, mas também às

obras modestas”, nos termos referidos pela Carta de Veneza. Do

mesmo modo, é importante admitir a atenção à autenticidade da

arquitetura preexistente e o rigor empregado na inserção dos

elementos novos que segue as recomendações do artigo 9º da Carta

de Veneza: “todo trabalho complementar reconhecido como

indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da

composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso

tempo.”

Embora seja possível identificar pontos de concordância entre as

posturas teóricas e os critérios de intervenção adotados por Lina Bo

Bardi, é, por outro lado, indiscutível certa desenvoltura na

apropriação e reinterpretação dessas noções a que faz menção.

Importante, entretanto, notar que ela tende a acolher com maior

entusiasmo as posições do restauro crítico, não só por serem mais

favoráveis à estratificação das temporalidades, mas principalmente

por permitirem “atualizar o ato criativo.” 98

Convém notar que, no caso específico do Brasil, é prática comum

confundir recuperação e reconstrução, o que possivelmente se deve

ao freqüente descaso concedido às operações de manutenção

ordinária em bens culturais. As intervenções em geral ocorrem

98

Em Il restauro architettonico, verbete da Enciclopédia Universale dell’Arte, vol XI,

Veneza-Roma, 1963, reeditado em BONELLI, R. Scritti sul restauro e sulla critica architettonica. Roma: Bonsignori, 1995, p. 30.

160

quando o estado de deterioração é tão avançado que a intervenção,

assumindo grandes proporções, revela a necessidade de efetuar

várias substituições de elementos originais. Tratando-se de práticas

freqüentes, acaba-se perdendo a preocupação com a autenticidade

das peças componentes. Nessas circunstâncias, os elementos

antigos autênticos acabam por se confundir com peças substituídas e

refeitas. Tudo ganha um aspecto uniforme, renovado, com se tivesse

sido recém acabado. Além disso, as transformações descuidadas,

lamentavelmente, ainda se apresentam como procedimentos

comuns, sejam resultantes de acréscimos, que de subtrações, sem a

devida atenção ao reconhecimento de valor da preexistência.

A experiência de Lina Bo Bardi é, portanto, diferente dos

procedimentos usuais, seja dos especialistas, seja dos arquitetos em

geral. Diferente das reconstruções que se fazem necessárias em

função da precariedade e estado de degradação a que chegam os

edifícios, depois de um longo e tortuoso percurso de desleixo e

abandono, de ausência de manutenção ordinária, quando finalmente

são submetidos à intervenção. Difere também do emaranhado entre

restauro e reconstrução, quando a necessidade de substituição é

incontornável, quando a reparação não é mais possível, quando as

lacunas são numerosas a comprometer a integridade e autenticidade

do conjunto. Coloca-se, isto sim, como intervenção afirmativa que se

distingue da preexistência, possibilitando não só a diferenciação,

mas também a reversibilidade, na medida em que os acréscimos são

autônomos e independentes da estrutura primitiva.

Nesse sentido, é louvável reconhecer a pertinência da ação que

distingue o novo do antigo e se reserva o direito de introduzir novos

elementos com parcimônia e deferência à arquitetura existente para

viabilizar uma nova apropriação desse espaço arquitetônico.

Desse modo, é cabível aqui comparar a atuação de Lina Bardi com a

de Carlo Scarpa (não obstante as evidentes diferenças de valoração

do bem submetido à intervenção): assim como ele que, em sua

intervenção no Castel Vecchio de Verona, contribui para a

configuração de uma narrativa arquitetônica ativada com o

deslocamento do usuário no espaço, deixando rastros para uma

releitura da preexistência, também Lina Bo Bardi favorece uma

161

apropriação pessoal, assegurando as possibilidades de novas

interpretações, pessoais e coletivas.

O crítico italiano Francesco Dal Co, ao comentar a obra de Scarpa99

,

marca sua posição contrária à interpretação de certo crítico anglo-

saxônico, não nomeado, mas cujas pistas levam a Reyner Banhan. O

que a crítica anglosassone interpreta erroneamente como falta de

erudição, no entender de Dal Co representa a apreensão de uma

cultura genuína, o domínio do ofício, equivalente à afirmação de uma

espécie de dialeto do fazer arquitetônico. Destaca, dessa forma, a

atuação de Scarpa como resultado da apropriação do saber dos

artífices revisitado pela linguagem moderna. Uma experiência que

articula, portanto, os princípios do movimento moderno com a

tradição vernacular. Um traço que se evidencia em diversos aspectos

do seu trabalho, tais como: nos desenhos vistos como processos

contínuos de aprimoramento, como pensamento expresso

graficamente, voltado à invenção; no cuidado com o detalhe,

elemento essencial de articulação entre as partes e o todo; na

narrativa poética presente na sua composição arquitetônica.

Todos esses aspectos mencionados permitem aproximar as

atuações de Lina Bardi e Carlo Scarpa. Interessante atentar para

esse operar de outros tempos, do imprescindível desenho elaborado

à mão, dos croquis aparentemente exaustivos para Scarpa, lúdicos

para Lina, expressivos e absolutamente resolutivos para ambos.

No que concerne às teorias do campo disciplinar do restauro, hoje se

mostram evidentes os limites do restauro científico, principalmente

quanto à prescrição de esquemas redutivos, como a proposição de

elementos neutros e as soluções de “ambientamento”. Da mesma

forma, questiona-se o menosprezo dos valores estéticos em relação

aos históricos, como se o respeito histórico impusesse uma ação

tímida de projeto, o que acaba por distanciar de uma solução mais

corajosa, para enveredar por um caminho ambíguo, incerto, que não

assegura certamente a obtenção de qualidade na intervenção. Não

obstante o reconhecimento desses equívocos é, por outro lado,

99

Em palestra proferida sobre a obra do arquiteto veneziano, na Bienal de

Arquitetura de São Paulo, 2005.

162

visível o avanço obtido em relação às posturas precedentes,

justamente no que se refere ao respeito histórico. Antes dessa

postura, as ações oscilaram entre a incúria e o imediatismo das

intervenções de cunho viollettiano, propensas a eliminar os sinais da

passagem do tempo, para recobrar a unidade de estilo ou a condição

primitiva, identificando valor exclusivamente na origem do objeto de

intervenção.

A crise do pós-guerra acelera a revisão do restauro científico e

alimenta a formulação do restauro crítico a partir dos anos 1950.

Carbonara100

alerta para as críticas dos anos 1960-70 que alegam

superação das bases filosóficas sobre as quais estava fundado o

conceito do restauro crítico. Isso ocorre, provavelmente, pelo retorno

dos interesses pragmáticos, de um lado, e neo-positivistas, de outro.

Como se diante de questões prementes a teorização representasse

um acovardamento.

Os debates mais recentes vinculam a teoria de Brandi ao restauro

crítico, afirmando que o restauro, longe de ser uma ação empírica,

acha seu fundamento na história e na crítica e, antes ainda em uma

reflexão estética.101

Giovanni Carbonara dá indicações precisas a respeito de uma

possível ação de restauro que supera o limite da “pura conservação”

para afrontar o problema da criação:

“A diferença entre o antigo agir espontâneo e instintivo sobre

os monumentos e a ação requisitada pela cultura moderna,

consiste no constante controle crítico sobre o projeto; nesta

perspectiva,(...) o restauro poderia ser também pensado

como operação crítica desenvolvida fazendo-se uso do

mesmo sistema lingüístico que caracteriza o objeto da

investigação-restauro,(...) recorrendo-se ao sistema verbal:

sob este aspecto a operação de restauro se apresentaria

como ato de ‘metalinguagem’, isto é, como meditação e

100

Em Avvicinamento..., p. 295. 101

Idem, p. 292.

163

reflexão, figurativamente expressa, sobre outro fato

figurativo.” 102

Coloca-se então em discussão uma concepção de restauro como

ação complexa e aberta a adições criativas, tal qual uma página de

crítica literária que pode ser plena e legítima literatura. Uma ação

análoga àquela chamada por Brandi de “recriação”, mas que o autor

situa fora do âmbito da restauração.

Vale destacar que essa compreensão é elaborada no interior do

campo disciplinar do restauro arquitetônico, naturalmente mais

restritivo às transformações. No entanto, mais incisivo que o debate

interno, a reflexão sobre o projeto, nos dias de hoje, colabora

decididamente para a diluição da fronteira entre restauro e projeto.

Uma tendência contemporânea corrobora essa aproximação:

enquanto o restauro é chamado a intervir, requalificar, modificar para

atender a necessidades vitais de transformação, o projeto é chamado

a considerar as preexistências, a levar em conta o contexto em que

se insere, a tirar partido da experiência histórica, a avaliar cada

demolição, cada destruição.

A força do passado e a concordância acerca do seu valor tendem a

se impor ao arquiteto deus ex machina construtor de um mundo

novo, obrigando-o a enfrentar o conflito entre preservação e

inovação. Assim faz Lina Bo Bardi com coerência e desenvoltura, por

entender que memória não é relíquia, mas sim lugar do imaginário e

da recriação.

102

CARBONARA, G. La reintegrazione dell’immagine. Roma: Bulzoni , 1976, p. 108.

(Tradução da autora.)

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165

Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como reflexo da tensão entre permanência e transformação

A “Escola de Veneza” e a arquitetura analógica

“(...) qualquer cultura de projeto vive de uma intensa dialética

entre continuidade e descontinuidade, entre permanência e

mutações, entre recorrências e casualidades. Por um lado não

pode existir um autêntico avanço de uma pesquisa se esta não

goza de uma relativa estabilidade no tempo confirmando os

paradigmas, os temas e os instrumentos disciplinares de que se

alimenta; por outro, se não interviessem ciclicamente improvisas

reviravoltas ou adaptações talvez traumáticas dos quadros

teóricos e operativos consolidados, a própria pesquisa arriscaria

repetir-se em fórmulas já experimentadas, caindo em uma

imobilidade perigosa.” 1

Nos anos 1970, a arquitetura italiana ocupa uma posição significativa

no panorama internacional por conta da ação de arquitetos que

convertem em invenção e novidade conteúdos de caráter fortemente

identitário, ancorados no estudo das tipologias da cidade tradicional.

Aldo Rossi (1931-1997) é um desses arquitetos que, junto com Carlo

Aymonino, Giancarlo De Carlo, Vittorio Gregotti e Giorgio Grassi,

formam o grupo La Tendenza, também conhecido como Escola de

Veneza. A partir da herança deixada por Ernest Nathan Rogers

(1909-1969), importante ponto de referência da cultura arquitetônica

italiana dos anos 1950-60, reintroduzem conceitos como ‘tradição’,

‘história’ e ‘monumento’, termos praticamente banidos da linguagem

moderna teorizada e experimentada na primeira metade do século

XX.

Entre outras correntes neoracionalistas, esse grupo revê os temas da

modernidade, procurando constituir uma relação teórica e operativa

entre a análise urbana e o projeto de arquitetura. Uma pesquisa que

1 Em PURINI, F. Permanenze e mutamenti nell’architettura italiana. Roma: Palombi,

2004, p. 5. (Tradução da autora).

166

se desdobra em três enfoques principais: a conexão entre a tipologia

arquitetônica e a forma urbana; a concepção do projeto como

expressão da cidade; a correlação entre tradição e inovação. [1]

O arquiteto Franco Purini2 observa, de modo apropriado, que essa

orientação se manifesta em uma zona de eqüidistância entre três

diferentes pólos, indicados a seguir, sem entretanto se confundir com

nenhum deles:

• a posição que se identifica com a radical negação da história

defendida pelas vanguardas modernistas;

• a orientação historicista do pósmodernismo, um historicismo

muitas vezes culto e emotivo, mas que não tem

necessariamente compromisso com o rigor da releitura, nem

com a coerência construtiva;

• a atuação do campo disciplinar da conservação e restauro.

2 PURINI, op. cit., p. 12.

[1] Rossi. Estudo para quarteirão em Schutzenstrasse, Berlim.

Fonte: Revista Casabella 654, p. 17.

167

Dentro dessa perspectiva, a arquitetura de Aldo Rossi afirma-se

como expressão da cidade e, conseqüentemente, transita numa

posição de centralidade entre inovação e tradição. Valendo-se da

primazia da cultura humanista impregnada na experiência italiana, da

referência da escala humana, forte elemento de identidade da cidade

tradicional, busca parâmetros de criação duradouros, procedentes da

reinterpretação da herança clássica. Parâmetros esses que se

propõem como modelos de uma ação disciplinar de projeto em

estreita ligação com a investigação teórica e com a observação da

cidade existente.

Vale destacar as considerações de Purini3 acerca desses parâmetros

de projeto que, segundo ele, se apresentam imbuídos de realismo.

Um realismo que, conforme destaca o autor, não se confunde com a

prática que reduz a arquitetura a ofício correto, mas sempre

subalterno, porque submetido exclusivamente a decisões externas.

Não se confunde tampouco com a concessão “remissiva” do projeto,

preso às normativas, como o da escola ligada a Benevolo, Cervellati,

entre outros, vista com reservas, no entender de Purini, por encarar a

arquitetura como um serviço social, subestimando sua natureza

artística. Um realismo também distante do projeto como resposta

puramente técnica e, portanto, “desproblematizada”. Ao contrário,

conclui Purini, trata-se de uma concepção de realismo que

estabelece um compromisso de projeto no limite entre o peso dos

condicionantes e as potencialidades dos recursos.

Uma trajetória profissional entre projeto e pesquisa

Formado pelo Politécnico de Milão em 1959, Aldo Rossi desenvolve

desde cedo uma experiência dividida entre o projeto e a pesquisa.

Ingressa na universidade em 1949 e, ainda estudante, em 1955,

participa como Delegado no Congresso da UIS (Unione

Internazionale degli Studenti di Roma), viajando para Praga e União

Soviética. Nesse mesmo ano, atendendo a convite de Ernesto

Nathan Rogers, inicia uma colaboração duradoura com a revista

Casabella-continuità, chega a ser membro do conselho editorial,

entre os anos 1961 e 1964, ano em que a publicação é interrompida.

3 Idem, p. 14.

168

Nos anos 1956-57 colabora com Ignazio Gardella e com Marco

Zanuso. Convidado por Hans Schmidt, diretor da Deutsche

Bauakademie em Berlin, visita a República Democrática da

Alemanha em 1961.

Torna-se assistente de Ludovico Quaroni na Scuola di Urbanismo di

Arezzo e de Carlo Aymonino no IAUV (Instituto de Arquitetura da

Universidade de Veneza) em 1963. Sua experiência ganha impulso

justamente à frente do IAUV, no período de 1963-65, onde inicia a

carreira acadêmica na condição de pesquisador e retorna como

professor em 1975.

No período entre 1965 e 1975 ensina no Politécnico de Milão. A

atuação como diretor da seção internacional de arquitetura da Trienal

de Milão de 1973 marca o início de uma experiência de grande

repercussão, não só na Europa, mas também fora do continente

europeu. Nessa ocasião, realiza o filme Ornamento e delitto,

parafraseando Adolf Loos.

Em meados da década de 1960, Rossi traduz para o italiano, além

de editar e prefaciar a obra Architecture: essai sur l’art, de Étienne-

Louis-Boullée. Seu interesse pela arquitetura do iluminismo confirma-

se no decorrer de sua trajetória, como é possível notar nas

referências explícitas presentes em seus textos.

Em 1970 é aprovado em concurso para a cátedra de Caratteri degli

edifici na Scuola di Urbanística di Palermo, atividade que concilia

com o ensino no Politécnico de Milão. Arquiteto, professor e teórico,

Rossi desenvolve essas três frentes de atuação profissional.

L’Architettura della città, livro de sua autoria cuja primeira edição é de

1966, conforme destaca Braghieri4, canaliza uma significativa

expressão de alento especialmente nos estudantes e jovens

arquitetos daqueles anos próximos à publicação, motivando-os a

redescobrir, estudar e analisar a cidade no seu devir histórico. Esse

procedimento é visto como uma possibilidade concreta de enfrentar o

impasse a que chega a cultura arquitetônica, imersa em uma

4 Em BRAGHIERI, G. Aldo Rossi. Barcelona: Gustavo Gili, 1986, p. 12. Entre os

anos 1971 e 1984, Aldo Rossi desenvolve projetos em parceria com Gianni

Braghieri.

169

atmosfera de reducionismo e esgotamento em relação aos

postulados da vanguarda modernista, a partir da banalização do

assim chamado “Estilo Internacional”. A discussão desencadeada por

essa publicação, principalmente após a edição em língua inglesa,

impulsiona um movimento de investigação sobre os textos e obras de

Rossi, que se difunde com grande intensidade pelas principais

escolas da Europa e da América do Norte.

Entre 1978 e 1980 Rossi participa de vários eventos, entre os quais,

lembram-se as conferências realizadas na Venezuela, Argentina e

Brasil. Nesse último ano leciona na Yale University e em 1983 em

Harvard. Em 1990 recebe o prêmio Pritzker.

Sobre a experimentação a que se dedicam os jovens arquitetos

motivados por seu trabalho, afirma o próprio Rossi: “na realidade as

formas arquitetônicas elaboram-se no tempo e tornam-se patrimônio

comum da arquitetura como acontece com qualquer técnica ou

ciência. Alguém antes de nós viu certas coisas e no-las transmite.” A

respeito da invenção que se apropria da experiência acumulada,

continua Rossi: “engano pensar que a criação nasce do nada ou de

cada um”.

Crê, paradoxalmente, que continuidade e firmeza são os mais claros

pressupostos para se atingir a mudança. Indica entre seus mestres:

Mies van der Rohe, Adolf Loos e Heinrich Tesenow. Do primeiro, diz

ter aprendido que o “detalhe é invenção só na medida em que é

aplicação da mente à clareza do resultado e que desta forma nos

preservamos de todas as falsidades do êxito”; do segundo, declara

ter aprendido “a temer o engano que se esconde também naquilo

que cremos ser ótimo porque o engano consiste não só no

ornamento mas também no hábito e naquilo em que nos deleitamos

sem que nós mesmos nos engrandeçamos.”; do terceiro afirma ter

aprendido que “o ofício é parte da região e que pode realizar-se com

meios diversos como a ironia ou a redução ao elementar, para fazer

frente aos limiares últimos do inexprimível.”5

Conforme observa Braghieri: “a arquitetura de Rossi destaca-se pelo

extremo rigor, pela simplicidade na composição, rigor e simplicidade

5 BRAGHIERI, G. op. cit., pp.5-6.

170

que não devem confundir-se com esquematismo.” O desenho para

Rossi, continua o autor, não é nunca um fim em si mesmo, é sempre

arquitetura porque reflete uma condição, um momento da própria

vida, da realidade. O contínuo redesenhar dos elementos fixos

propicia escolher o lócus ao qual devem pertencer. È a partir daí que

se tornam arquitetura de fato, conclui. [2]

Kate Nesbitt6, na apresentação do texto de Aldo Rossi “Uma

arquitetura analógica”, destaca sua condição de líder do grupo La

Tendenza, situado no contexto do movimento neoracionalista

italiano. Comenta a respeito do grande êxito do livro L’architettura

della città, publicado na Itália em 1966, depois traduzido para o inglês

pela Oppositions Book em 1982, quando adquire notável projeção

internacional.

6 Em NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica da

arquitetura de 1965 a 1995, São Paulo: Cosac & Naify, 2006, p. 377-378.

[2] Rossi. “Città con cupole e torri”. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991,

p. 66.

171

A autora aponta essa obra de Rossi como um texto fundamental do

pensamento pós-moderno. Atribui o grande sucesso obtido,

essencialmente, por se tratar de uma obra teórica que estabelece

uma relação indissociável entre as idéias enunciadas e o trabalho de

projeto desenvolvido pelo arquiteto, uma prática que se fortalece

precisamente como concretização dos conceitos elaborados.

O texto de Rossi “Uma arquitetura analógica”7 discorre sobre o seu

método de projeto, com base na “operação de lógica formal”

estruturada a partir da definição do psicanalista Carl Gustav Jung

(1875-1961) em uma correspondência com Freud:

“(...) pensamento ‘lógico’ é o que exprime em palavras

dirigidas ao mundo exterior na forma de discurso. O

pensamento ‘analógico’ é percebido ainda que irreal, é

imaginado mesmo que silencioso; não é um discurso, mas

uma meditação sobre temas do passado, um monólogo

interior. O pensamento lógico é um ‘pensar em palavras’. O

pensamento analógico é arcaico, inexplícito e praticamente

inexprimível em palavras.”8

A definição de Jung dá a entender que o pensamento analógico

distingue-se daquele lógico pela sua condição intuitiva que, mais do

que estabelecer relação efetiva com a realidade, corresponde a um

subjetivo e introspectivo exercício de memória. Inevitável a

associação com a “memória involuntária” de Proust9 que, ao

contrário da “memória voluntária” – ditada pela inteligência – forma-

se por si mesma, e assim se desvincula de uma condição específica

de tempo e espaço, para remeter a uma condição extratemporal.

Com base nessa compreensão, Rossi atenta às formas

permanentes, às estruturas urbanas essenciais, ao valor do limite

7 Ensaio publicado originalmente na revista japonesa Architecture and Urbanism 56,

maio 1976, pp.74-76. 8 Apud ROSSI, “Uma arquitetura analógica”, em NESBITT, 2006, p. 379. A palavra

“analógico” em grego – formada por "ana" que significa "no alto" ou "por alto" e

"logos" que é "pensamento", "palavra" – significa "proporcional, o que é em relação

com". Nesses termos, “análogo” não é precisamente “igual”, nem “parecido”, mas

significa “aquilo que pode estabelecer uma relação com”. Portanto, Jung refere-se à

analogia como uma relação entre coisas diferentes, talvez por isso inexprimível em

palavras.

9 O conceito de memória involuntária de Proust é mencionado no capítulo que

analisa o projeto do SESC Pompéia de Lina Bo Bardi.

172

entre o espaço público e o privado, aos traços da vida que restam

impressos nos muros dos edifícios de uma cidade em constante

transformação. Ao invés de se resignar diante das perdas, ou

prender-se unicamente ao passado, expressa sua busca pela

permanência das coisas relevantes justamente na reedição da

memória, atuada na construção do próprio presente, na elaboração

do projeto contemporâneo.

O conceito de “cidade analógica” de Aldo Rossi é elaborado a partir

da articulação entre a definição de pensamento analógico, formulada

por Jung, e a imagem de Canaletto intitulada “Capricho com edifícios

palladianos”. A tela de Canaletto representa uma paisagem

imaginária, distinta da cidade real, em que o projeto do arquiteto

Andrea Palladio para a ponte de Rialto, não construído de fato,

aparece em meio a dois célebres edifícios palladianos – Palazzo

Chiericati e Palazzo della Ragione – na realidade, construídos em

Vicenza, mas que na pintura de Canaletto comparecem como parte

do cenário do Canal Grande veneziano. Como Piranesi, ao retratar o

sugestivo cenário de ruínas em suas “Vistas de Roma”, Canaletto

mistura realidade e fantasia nesse retrato de Veneza. [3]

[3] Canaletto. “Capricci con palazzi palladiani”, 1755 ca. Fonte: GRECCO,

2005, p. 128.

173

Assim analisa Rossi:

“Os três monumentos, dos quais um era apenas projeto,

constituem um análogo da Veneza real composto de

elementos definidos que se relacionam simultaneamente

com a história da arquitetura e com a história da própria

cidade. A transposição geográfica dos monumentos

realmente existentes para o local da pretendida ponte

compõe uma cidade visivelmente construída como um local

de valores puramente arquiteturais.”10

Instigante a articulação elaborada por Rossi. Sua observação

evidencia o encantamento diante da obra de Canaletto que, com o

deslocamento de obras emblemáticas da arquitetura de Palladio de

Vicenza para Veneza, configura uma “representação analógica”

impossível de ser traduzida em palavras. Confere assim uma

dimensão conceitual à obra do artista e, ao relacionar essa atitude ao

pensamento “analógico” de Jung, transforma essa operação em um

método de projeto.

A partir desse entendimento, encontra um sentido diferente da

história concebida não somente como fato concreto, “mas como uma

série de coisas, objetos afetivos a serem usados pela memória ou na

concepção de um projeto.” Assim a analogia explica como o recorrer

a uma diversidade de aproximações – entre as quais se destaca a

associação entre os tipos e determinadas formas arquetípicas –

desperta a memória não só individual, mas de ressonância coletiva.

Nas palavras de Rossi:

“Hoje (1976) penso minha arquitetura no contexto e nos

limites de uma grande diversidade de associações,

correspondências e analogias. Quer no purismo de minhas

primeiras obras, quer na atual investigação de ressonâncias

mais complexas, sempre considerei o objeto, o produto, o

projeto como dotado de uma individualidade própria, que

tem relação com o tema da evolução material e humana. Na

realidade, a pesquisa sobre os problemas da arquitetura

10

NESBITT, op. cit., p.379.

174

significa para mim pouco mais que a de uma natureza

humana mais geral, pessoal ou coletiva, aplicada a um

campo específico.”11

Aspecto importante de sua reflexão enfatizado no seu discurso é o

‘contexto’ entendido em sua dúplice acepção: de ‘lugar’ e de ‘cultura’.

A esse respeito, cita Walter Benjamin, o teórico da Escola de

Frankfurt, que diz: “Eu sou indiscutivelmente deformado pelas

relações com tudo que me cerca”. Declara expressamente que a

frase encerra o pensamento daquele ensaio e traduz sua arquitetura

daqueles anos. Não só essa citação indica a existência de um

vínculo entre o IAUV e a Escola de Frankfurt, explicitado e reforçado

pela obra de ilustres representantes da Escola de Veneza, como

Francesco Dal Co e Manfredo Tafuri.

À maneira de um Cézanne12

que descreve sua tensa busca por uma

geometria latente nos objetos, a ser traduzida na espacialidade

tangível da tela, ou de um Morandi que explora incansavelmente as

formas dos objetos do cotidiano como protagonistas de um “teatro da

realidade”, Rossi ilustra seu método de trabalho. Reflexo de tensões

gerais e pessoais, a deformação das relações aflora, segundo Rossi,

nas inquietações que circundam o tema principal. Vários desenhos

seus possibilitam notar essas desfigurações dos elementos e de

suas diferentes partes sobrepostas a uma ordem geométrica,

inicialmente adotada como matriz de composição.

“Essa deformação atinge os próprios materiais e lhes

destrói a imagem estática, acentuando seu caráter

elementar e sobreposto. A questão das coisas em si, como

composições ou componentes – desenhos, edifícios,

modelos ou descrições – me parece cada vez mais

sugestiva e convincente. Mas não se deve interpretar isso

no sentido do ‘vers une architecture’, tampouco como uma

nova arquitetura. Estou pensando em objetos familiares,

cuja forma e posição já são fixas, mas cujos significados

podem ser modificados. Celeiros, estábulos, abrigos,

11

Idem, p. 380. 12

A esse respeito consultar: “Dallo sferoide al poliedro” in BARILLI, R. L’Arte contemporanea. Da Cézanne alle ultime tendenze. Milão: CDE, 1987, pp. 27-33.

175

oficinas etc., objetos arquetípicos cujo apelo emocional

comum desvenda preocupações eternas. Esses objetos

situam-se entre o inventário e a memória.”13

Oportuno associar essa postura de investigação de Aldo Rossi,

interligada à sua prática de relacionar formas arquetípicas a

diferentes usos e significados, a determinada fase da trajetória de Le

Corbusier, a partir da década de 1930, destacada por Colquhoun,

como momento em que o arquiteto abandona a geometria mais

abstrata, estereométrica, em favor da recorrência a motivos

armazenados na memória. Ao comentar essa conduta, o autor evoca

a imagem de um baú mental repleto de referências a serem

selecionadas para compor uma espécie de bricolage compositivo14

.

Situada entre a memória e o inventário, a arquitetura analógica de

Rossi é a negação do culto à personalidade associada à

originalidade, à singularidade, como querem os primeiros arquitetos e

historiadores da arquitetura moderna15

. Amálgama entre o geral e

particular, entre o racional e o surreal, entre a analogia e o contraste,

suas obras, radicadas na cultura da cidade européia, entretanto, não

renunciam ao imprevisto, à invenção e, nesse sentido, afirmam-se

como criações incontestavelmente contemporâneas.

A Arquitetura da cidade

“A cidade, objeto deste livro, é nele entendida como uma

arquitetura. Ao falar de arquitetura não pretendo referir-me

apenas à imagem visível da cidade e ao conjunto de suas

arquiteturas, mas antes à arquitetura como construção.

Refiro-me à construção da cidade no tempo. Considero que

esse ponto de vista (...) remete ao dado último e definitivo

13

Idem, p. 380. 14

A menção a essa imagem do “baú mental cheio de objetos que estão prontos a serem utilizados em um bricolage(...)” foi citada em passagem da pesquisa em que

se analisa a atuação de Le Corbusier . 15

CURTIS, W. em seu livro Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre:

Bookman, 2008, p. 13, comenta a respeito do mito dos primeiros historiadores da

arquitetura moderna de que suas formas tinham emergido “imaculadas”, como um

“recomeço do zero”, menosprezando a influência da arquitetura do passado.

176

da vida da coletividade: a criação do ambiente em que esta

vive.”16

A arquitetura, vista sob esse prisma, é construção inseparável da

vida civil e da sociedade e é, por natureza, expressão coletiva. Como

destaca Rossi, desde tempos mais remotos o homem constrói não

apenas para criar um ambiente mais favorável à vida, mas também o

faz conforme uma intencionalidade estética. A arquitetura surge,

portanto, junto com as primeiras formas urbanas e, sendo

inseparável da formação da civilização, constitui um fato permanente,

universal e necessário, pois dá forma concreta à sociedade.

Continua Rossi:

“Mas com o tempo a cidade cresce sobre si mesma,

adquire consciência de si. (...) Na sua construção

permanecem os motivos originais, mas, simultaneamente, a

cidade torna mais precisos e modifica os motivos de seu

desenvolvimento.”17

Da mesma maneira que se transforma, a cidade preserva seus

elementos essenciais:

“(...) os lugares são mais fortes que as pessoas, o cenário

mais que o acontecimento. A possibilidade da permanência

é o único critério que permite que a paisagem ou as coisas

construídas sejam superiores às pessoas.”

Rossi analisa a construção de certas cidades no tempo através de

imagens, gravuras e fotografias que ilustram a dinâmica de

transformação resultante, quer da criação, quer da destruição. Dessa

forma, observa que o devir histórico motiva tanto as transformações

que incidem sobre o território, quanto a permanência de elementos

que asseguram unidade na expressão urbana e sua continuidade no

espaço e no tempo.

A cidade é fato material, mas é também o locus da memória coletiva.

Analisar a cidade, para Rossi, implica reconhecer a distinção entre a

16

ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1. 17

Idem, p.2.

177

cidade concreta, da imagem e da memória que se cria da própria

cidade, isto é, reconhecer a construção que supera e transcende a

própria materialidade, um processo que nasce da relação entre o

indivíduo e sua cultura. Essa compreensão comporta a identificação

de diferentes valores em jogo: o valor da cidade real, enquanto

artefato, e o da representação da cidade, isto é, o de significados

simbólicos aos quais se associa a sua materialidade.

A análise remete a outra natureza de diferenciação: à oposição entre

o particular e o universal, entre o individual e o coletivo. Nesses

termos, analisa as relações entre esfera pública (identificada como

elementos primários) e privada (classificada como área-residência),

entre edifícios públicos e privados, entre o projeto racional da

arquitetura urbana e os valores do locus.

Noção de origem antiga, a ‘res pubblica’ refere-se, em sentido geral,

a valores compartilhados por integrantes de uma sociedade fundada

sob leis de igualdade e justiça respeitadas pela maioria, tendo em

vista uma convivência pacífica. Nesse sentido, o conceito de ‘res

pubblica’ resguarda tanto o interesse comum, a coletividade, quanto

o indivíduo em particular.

O locus é entendido por Rossi como “aquela relação singular mas

universal que existe entre certa situação local e as construções que

se encontram naquele lugar.” Relembra que a escolha do lugar para

fundar uma cidade ou mesmo para implantar um novo edifício, tinha

uma grande importância no mundo clássico, uma vez que se

considerava ser o sítio governado pelo “genius loci”, divindade que

presidia o lugar. Observa ainda que o conceito de locus continua

presente tanto nos tratados renascentistas, como nos dos séculos

seguintes, como o de Palladio, ou de Milizia. Mesmo em Viollet-le-

Duc, continua Rossi, o esforço para entender a arquitetura como uma

série de operações lógicas baseadas em poucos princípios racionais,

refere-se ao lugar como espaço singular e concreto, mas que

também faz parte da idéia geral de arquitetura. A identificação

desses “pontos singulares” pode ser atribuída a um acontecimento

determinado que tenha sucedido naquele sítio, ou pode depender de

inúmeras causas que de alguma maneira possam ter contribuído

para o reconhecimento da peculiaridade do lugar.

178

Ao comentar sobre a relação entre a arquitetura e o lugar, Rossi faz

menção às pinturas do Renascimento:

“(...) onde o lugar da arquitetura, a construção humana,

adquire um valor geral de lugar e de memória, porque assim

fixado numa hora única; mas essa hora também é a primeira

e mais profunda noção que temos das praças da Itália,

estando pois ligada à mesma noção de espaço que temos

das cidades italianas. Noções desse tipo estão ligadas à

nossa cultura histórica, à nossa vida em paisagens

construídas, às referências que fazemos em cada situação à

outra situação.”18

Essa observação faz pensar à idéia geral de ‘lugar’ arraigada na

cultura italiana presente em obras célebres da Renascença, como as

imagens da Cidade Ideal. Não há como dissociar essas imagens de

uma incisiva lembrança de lugar primordial e ao mesmo tempo

eterno, atemporal. [4]

18

Idem, p.149.

[4] Luciano Laurana (atribuição). “Città Ideale”. c. 1580. Fonte: GRECO, 2005, 82.

179

O tipo

Articulado ao conceito de lugar comparece o de tipo que constitui,

para Rossi e os neoracionalistas italianos, um dos fundamentais

componentes da morfologia da cidade. O interesse pelo tema da

tipologia é reintroduzido, no início da década de 1960, com a

publicação de um notável ensaio de Giulio Carlo Argan19

sobre o

teórico francês do século XIX, Quatremère de Quincy.

Dentro da tradição acadêmica, Antoine-Crysostome Quatremère de

Quincy estabelece no Dictionnnaire historique de l’architecture (Paris,

1832) uma diferenciação entre o tipo ideal (type) e modelo físico

(modèle), retomada por Argan. ‘Tipo’ corresponde aqui à idéia de um

elemento que deve servir de norma para o modelo que, portanto,

equivale à idéia genérica, platônica, arquetípica, à forma básica

comum da arquitetura como, por exemplo, um edifício que se

organiza ao redor de um pátio. ‘Modelo’ é aquilo que pode

continuamente ser repetido tal qual se apresenta, como um carimbo

que possui uma série de caracteres expressivos. Por exemplo,

dentro da espécie de construção ao redor de um pátio, certos palazzi

da renascença correspondem a modelos que podem ser

reproduzidos.

Os tipos arquitetônicos de Quatremère de Quincy são reduzidos por

Argan a uma forma original comum identificada a partir de obras

específicas de um contexto cultural particular, portadoras de

propriedades funcionais e formais semelhantes. Desse modo, para

Argan, o ‘tipo’, mais do que um conjunto de entidade fixas

estabelecidas a priori, corresponde a um princípio passível de

variações definidas como respostas relacionadas a mudanças

tecnológicas e socioculturais.

Josep Maria Montaner20

lembra que entre os primeiros filósofos que

teorizaram a respeito da noção de ‘tipo’ no pensamento moderno,

está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua escola. A partir da influência

de Kant, esses teóricos estabelecem, no final do século XIX, a teoria

dos “três tipos de visão do mundo”: o naturalismo, o idealismo da

19

Ensaio intitulado “Sobre o conceito de tipologia arquitetônica”, publicado

originalmente em 1962, inserido no livro Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2004,

pp. 65-70. 20

Em As formas do século XX. Barcelona: Lisboa: Gustavo Gili, 2002, p.148.

180

liberdade e o idealismo objetivo. Perseguem, conforme indica

Montaner, a intenção de encontrar um compromisso entre o

positivismo e o espiritualismo; entre o realismo naturalista e a

generalidade metafísica; entre a quantidade dos fenômenos e a

qualidade de suas interpretações. Em suma, pretendem sintetizar

aquilo que mais tarde vai se configurar como a historicidade e a

permanência do estruturalismo com a vitalidade dinâmica definida

por Henri Bergson21

.

O conceito de ‘tipo’, anunciado por Dilthey, é retomado na cultura

contemporânea por Max Weber (1864-1920) e aplicado à história, às

ciências sociais e à cultura. Segundo essa visão, é possível

estabelecer conceitos extremos ideais que podem dimensionar,

ordenar e relacionar a realidade empírica com a finalidade de ilustrar

determinados elementos significativos. Os ‘tipos’ de Weber são

construções conceituais, puramente ideais, entendidas como meios

de compreensão de uma realidade complexa. Um aspecto essencial

da noção weberiana do ‘tipo ideal’ é que tal categoria pode ser

submetida a uma verificação contínua. Pressupondo a mutabilidade

que acompanha o fluxo da história e a transitoriedade das sínteses

estabelecidas, o autor defende a reformulação da noção de ‘tipo’,

transformada em nova construção típico-ideal, sempre que

comprovada sua inadequação.

A noção weberiana está presente no substrato de grande parte das

interpretações da arquitetura moderna e contemporânea. Um dos

autores a se valer do conceito para aplicá-lo à metodologia de

análise da arquitetura contemporânea é Renato De Fusco22

.

O conceito de tipologia arquitetônica, da maneira como foi utilizado

pelos italianos, aplica-se tanto para o momento analítico, quanto para

o momento do projeto. Racionalidade e poética, memória e criação

podem ser conciliadas na prática da crítica tipológica. Para Rossi,

Grassi ou Aymonino, o elemento mais racional da arquitetura é a sua

tradição interna revelada nas estruturas tipológicas. O fenômeno

arquitetônico, para esses arquitetos, é concebido como uma série de

21

Em BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação entre o corpo e o espírito. Tradução de Paulo N. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 22

Em Storia dell’architettura contemporanea, Roma: Laterza, 1982, p. 443.

181

estruturas inicialmente reconhecidas, dissecadas na análise e

reelaboradas no projeto.

A propósito da diferença do emprego do conceito de ‘tipo’ para

Gregotti e Rossi, Nesbitt cita Alan Colquhoun:

“Mantendo-se aberto à contingência, Gregotti parece

mostrar o ‘tipo’ no processo de sua erosão ou

transformação. Rossi mostra-o em tal nível de generalidade

que, não sendo mais vulnerável à interferência da tecnologia

ou da sociedade, [o tipo] permanece congelado numa

eternidade surreal”.23

Aqui se encontra provavelmente a proximidade da arquitetura de

Aldo Rossi, mais precisamente de seus desenhos, com as obras do

pintor Giorgio De Chirico. O projeto afirma-se como uma espécie de

convergência e sobreposição entre a observação da cidade existente

e uma memória atemporal, uma recorrência atávica incontornável. A

esse respeito, comenta Nesbitt que, embora Rossi declare-se

racionalista, sua obra tem uma forte componente poética pela

constante conjunção entre universal e particular, entre racional e

intuitivo. [5] [6]

A crítica ao funcionalismo ingênuo

Rossi, ao adotar uma posição crítica frente às certezas estabelecidas

pelo movimento moderno, subverte a relação forma/função como

entendida pelos arquitetos desse movimento: uma relação simplista

de causa e efeito desmentida pela realidade, segundo a qual a

função “determina” a forma. Afirma que a função é aspecto

secundário, insuficiente, para esclarecer a respeito da constituição e

conformação da arquitetura enquanto fato urbano. Exemplo disso é a

recorrência de arquiteturas de interesse histórico e artístico em que a

função muda no tempo sem, por esse motivo, perderem a

importância.

A sua convicção de que está definitivamente superada a idéia de

função e forma, vinculadas por uma relação unívoca, é tal que Rossi

23

COLQUHOUN, A. “Rational architecture”, Architectural Design 45, n. 6, 1975.

Apud Nesbitt, 2006, p. 378.

182

elabora projetos com formas similares para funções completamente

diferentes. Isso se justifica na medida em que reitera que são as

relações ou o contexto a determinar o significado, portanto, os

objetos fixos (formas) podem ser submetidos a mudanças de sentido.

Assim, as formas arquitetônicas elementares podem ser reutilizadas

para fins diferentes em situações diferentes. Isso corresponde à idéia

estruturalista do papel dos elementos fixos (estruturas reconhecidas)

na linguagem.

Essa questão referente à crítica do funcionalismo é uma das

discussões mais relevantes levantadas pela cultura pós-moderna em

relação a um dos conceitos-chave da vertente racionalista da

arquitetura moderna. A opinião de que a função de um edifício pode

mudar, sem que essa alteração de uso comporte necessariamente

em perda de significado, reafirma-se no contexto da cidade

contemporânea com a adoção usual dessa estratégia nas

intervenções de reutilização e requalificação de certos exemplares de

arquitetura preexistente dotadas de interesse histórico e figurativo.

[5] Giorgio De Chirico. “La nostalgia dell’infinito, 1913.

[6] “L’enigma di una giornata”, 1914. Fonte: Revista Art Dossier, n. 28.

183

É importante notar que em muitos casos trata-se de uma apropriação

inadequada do tema com vistas à utilização descompromissada da

preexistência, visível, por exemplo, na proliferação dos centros

culturais. Quanto aos edifícios de interesse patrimonial, convém

reafirmar que a intervenção deve, antes de tudo, ser avaliada em sua

conveniência, para posteriormente ser controlada por critérios

precisos que levem em conta tanto o significado cultural do objeto de

intervenção, quanto às suas qualidades formais, para que

efetivamente essa mudança de uso não comporte alterações e

adaptações inadequadas e, de conseqüência, implique subtração de

valor arquitetônico.

O binômio transformação/permanência

Ao desenvolver a hipótese da cidade como artefato24

, Rossi sustenta

três proposições:

• afirma que o desenvolvimento urbano é correlato em sentido

temporal, ou seja, é possível conectar situações de diferentes

tempos como fenômenos comparáveis entre si;

• aceita a continuidade espacial da cidade, o que implica em

não distinguir como fatos de natureza diversa o centro

histórico e as áreas periféricas ou de ocupação mais recente;

• admite que no interior da estrutura urbana há alguns

elementos de natureza particular que têm o poder de retardar

ou acelerar o processo urbano e que, por sua peculiaridade,

são relevantes.

Dessa compreensão decorre a divisão da cidade em “elementos

primários” e “área-residência”, esta última identificada como “área-

estudo”, quando reconhecida como elemento qualitativo do entorno

urbano de um local de intervenção. Mediante esse procedimento

analítico, recorre à abstração com respeito ao espaço real da cidade,

como estratégia de investigação. Desse modo, Rossi distingue duas

categorias fundamentais da estrutura dos fatos urbanos, reflexos das

24

Este é, entre outros, um conceito que guarda afinidade com as teses defendidas

por Giulio Carlo Argan em seu livro História da arte como história da cidade. São

Paulo: Martins Fontes, 1995.

184

esferas públicas e privadas que não só se contrapõem, mas às vezes

se confundem na cena urbana.

Os primeiros, sinais de vontade coletiva, são núcleos de agregação

identificados com os monumentos, pontos de referência da dinâmica

urbana, marcados pelo caráter de permanência. Distinguem-se com

base na sua forma e com base na sua excepcionalidade no tecido

urbano.

Já a área-residência refere-se a uma porção substancial da

arquitetura da cidade, constituída pelo conjunto ou soma de muitas

partes: sítio, ruas, bairros, casas. O bairro torna-se um setor da

forma urbana intimamente ligado à sua evolução física e social. A

residência é o fato preeminente na composição da cidade que

representa o modo concreto de vida, a manifestação pontual de uma

cultura, e interfere intimamente na sua forma física, na sua imagem e

na sua estrutura. Princípios e modificações do real constituem a

estrutura da criação humana.

Baseando-se nos escritos de Carlo Cattaneo25

, conclui que a

continuidade dos fatos urbanos – fundamento de sua ação de projeto

– deve ser buscada nas camadas profundas, onde se entrevêem

certas características fundamentais que são comuns a toda dinâmica

urbana.

O “monumento”, identificado como “elemento primário”, destaca-se

em meio à trivialidade da “área-residência”. Esta por sua vez abriga a

linguagem e as técnicas tradicionais, reconhecidas como formas

vernaculares. Convém aqui lembrar que o termo ‘vernáculo’, derivado

do latim vernaculus, empregado para designar o escravo nascido na

casa do amo, passa a indicar algo produzido no país. Em sentido

figurado, diz-se da linguagem correta, sem estrangeirismos na

pronúncia, o idioma castiço, tanto no que se refere ao vocabulário,

quanto às construções sintáticas. Sua larga aplicação no campo da

produção artística, principalmente arquitetônica, consagrou o sentido

de “arquitetura vernacular” como aquela produção própria da cultura

do lugar, que se conserva ligada às raízes locais, ao saber e às

25

CATTANEO, C. La città come principio ideale delle istorie italiane. Milão, 1858.

Ensaio publicado pela primeira vez em 1858, dividido em quatro números do jornal

“Crepuscolo”, e reeditado em 1931.

185

técnicas populares. Uma visão assertiva que procura a valorização

desses exemplares, como uma espécie de alerta aos estudiosos a

não se atentar exclusivamente à produção erudita, nem se limitar à

observação isolada dos edifícios de caráter monumental.

Nesse sentido, a compreensão da cidade como história contrapõe-se

à retórica racionalista-funcionalista do urbanismo moderno. Com

base na concretude histórica, na observação dos registros

disponíveis, conforme observa Rossi:

“dever-se-ia evidenciar melhor o significado de certas

intervenções tendentes a qualificar a cidade em sentido

moderno e a estabelecer uma relação entre seu passado e

a fisionomia das principais cidades européias.”

Citando Halbwachs:

“Quando um grupo é inserido numa parte do espaço, ele a

transforma à sua imagem, mas, ao mesmo tempo, dobra-se

e adapta-se a coisas materiais que resistem a ele. A

imagem do meio exterior e das relações estáveis que este

mantém com aquele passa para o primeiro plano da idéia

que o meio faz de si mesmo.”26

Ampliando a proposição de Halbwachs, Rossi afirma:

“Essa relação entre o ‘locus’ e os citadinos torna-se, pois, a

imagem predominante, a arquitetura, a paisagem; e, como

os fatos fazem parte da memória, novos fatos crescem

juntos na cidade. Nesse sentido, de todo positivo, as

grandes idéias percorrem a história da cidade e a

conformam.”27

Se a memória é vista como fio condutor da complexa estrutura

urbana, então a análise histórica deve permitir uma melhor

compreensão do significado da estrutura urbana, da sua

individualidade, enfim, da arquitetura da cidade.

26

HALBWACHS, La mémoire collective, p.132, apud ROSSI, op. cit., p. 198. 27

ROSSI, op. cit, p. 198.

186

Prossegue Rossi:

“Assim, a união entre o passado e o futuro está na própria

idéia da cidade, que a percorre tal como a memória

percorre a vida de uma pessoa e que, para concretizar-se,

deve conformar a realidade, mas também conformar-se

nela.”28

Importante atentar para o sentido dessa afirmação, tão consonante

com a noção de “continuidade histórica” de Lina Bardi.

Aqui está seu mote de invenção para o projeto do novo,

definitivamente calcado na análise da estrutura urbana e, mais do

que isso, na tentativa de compreensão dos nexos nela contidos.

O Cemitério de São Cataldo, Módena (1971-76)

O projeto de Aldo Rossi29

corresponde à ampliação do cemitério

neoclássico preexistente, projeto de Cesare Costa, realizado entre os

anos 1858-76. A estrutura do século XIX adota uma tipologia

tradicional do grande pátio retangular delimitado por colunatas onde

se reúnem os nichos fúnebres. [7]

28

Idem, p. 200. 29

Vencedor de um concurso público, o projeto foi elaborado em parceria com Gianni

Braghieri, desenvolvido entre os anos 1971-76 e construído entre os anos 1980-85.

[7] O antigo cemitério. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 91.

187

Os pórticos, elementos característicos da morfologia urbana das

cidades da região da Emilia Romagna, já presentes na configuração

do antigo, são também os elementos centrais da arquitetura do novo

cemitério de Rossi. Constituem os columbários que delimitam o

espaço do novo conjunto e criam percursos retilíneos ora perimetrais,

ora centrais, ora ao rés-do-chão, ora em níveis superiores. [8]

No centro da área estão situados os ossários, dispostos em lâminas

paralelas entre si de diferentes comprimentos que definem, no

conjunto, uma seqüência planimétrica de formato triangular, a sugerir

uma espinha dorsal que se amplia na direção da base. Esses

paralelepípedos, que inscrevem um triângulo isósceles em planta,

elevam-se progressivamente em altura, em sentido contrário à

progressão em planta. Assim o elemento mais longo é o mais baixo,

enquanto que o mais curto é o mais alto, configurando um triângulo

também na seção transversal do conjunto.

No centro, um eixo transversal interliga as extremidades dessa

espinha, onde se encontram dois elementos construtivos

fundamentais com forma definida: o cubo e o cone. O primeiro abriga

o sacrário dos mortos da guerra e dos restos do cemitério antigo. O

cone, por sua vez, acolhe a fossa comum.

[8] Planta do novo cemitério implantado ao lado do antigo. Fonte: ARNELL

e BICKFORD, 1991, p. 90.

188

Esses dois elementos, unidos pela espinha central, encerram

significados importantes: a construção cúbica, sem teto, nem

andares, cujas aberturas regulares evocam portas e janelas que não

se abrem, nem fecham, mas somente recortam os muros, simboliza

a casa dos mortos; o volume cônico, que domina a fossa comum,

unindo-se ao percurso central da espinha dos ossários, representa a

recordação. Um pórtico maior em forma de “U” envolve todo o

conjunto descrito.

Uma cidade em miniatura, para Jonathan Glancey30

, constituída de

lembranças, de sonhos, “uma seqüência soberba de monumentos

hipnóticos delineados com sombras profundas e dispostos ao longo

de eixos inflexíveis.” [9]

30

GLANCEY, J. A história da arquitetura. São Paulo: Loyola, 2007, p. 203.

[9] Rossi. Estudo de projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 88.

189

Sugestivo é o relato do arquiteto que, ao descrever o andamento do

trabalho, ressalta a autonomia dos desenhos, como se durante o

processo contínuo de reformulação, estes adquirissem a capacidade

de se autogovernar:

“No processo de redesenhar o projeto, colocar os vários

elementos e aplicar cores às partes que exigiam destaque,

o desenho foi adquirindo tão completa autonomia em

relação ao projeto original que se poderia dizer que a

concepção inicial era somente um análogo do projeto

concluído. O desenho sugeriu uma nova idéia baseada no

labirinto e na noção contraditória de distância percorrida (...)

Mais tarde me ocorreu que o quadrado ‘morte’ é

especialmente visível, como se contivesse algum

mecanismo automático profundo muito distante do espaço

pintado em si.”31

Autonomia do desenho à parte, permanece o método que privilegia a

contínua variação da mesma forma, a repetição de motivos como a

traduzir a persistente busca de aperfeiçoamento. Às claras

referências do antigo cemitério existente, Rossi associa as leituras de

visões utópicas de Étienne-Louis-Boulée e Claude Ledoux e a

memória dos pórticos das cidades italianas, configurando um

itinerário análogo, uma expressiva metáfora da cidade dos mortos,

com a mesma intensidade dramática das paisagens de De Chirico.

[10] [11] [12] [13]

31

Rossi, “Uma arquitetura analógica”, em NESBITT, op. cit., p. 381.

[10] Vista do cemitério de Rossi. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 89.

190

[11] Columbário. Interior e vista externa. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 97 e

http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm. Acesso 16/09/2008.

[12] Escadas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 101

[13] Pórticos. Vista frontal e do interior.

Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.

Acesso 16/09/2008.

191

O Teatro del Mondo, Veneza (1979-80)

Encarando o projeto de arquitetura como continuidade e extensão da

análise teórica, Aldo Rossi vale-se do profundo conhecimento de

Veneza para criar o seu Teatro del Mondo. Um projeto que combina

dois dos conceitos fundamentais elaborados por ele: o da arquitetura

como “fato urbano” inseparável da vida civil; e o da “construção

analógica”, resultante de um exercício de imaginação situado entre a

memória individual e coletiva.

Assim, o Teatro del Mondo se apresenta como novo fato disposto a

dialogar com a cidade, a recompor sua paisagem e a reinventar

imagem que dela se tem, num procedimento equivalente ao já

mencionado “capricho” de Canaletto.

Pertinente a descrição de Marta Bogéa32

:

“Como um fragmento que se destaca do corpo do qual faz

parte, o Teatro del Mondo navega pelas águas e aporta em

diferentes locais com a naturalidade de quem é parte do

lugar. Projetado enquanto corpo itinerante, autônomo, o

Teatro del Mondo traz em seu desenho elementos da

cidade, transformados, porém reconhecíveis. Constitui-se

assim como parte de Veneza, uma forma a um só tempo

nova e familiar, que reinterpreta os dados da cidade, e ao

se reinventar, reinventa também a cidade.”

Construído sobre uma balsa, o teatro de madeira dotado de estrutura

metálica desmontável, nasce como uma arquitetura efêmera, mas

que se conserva na memória e na iconografia da cidade

essencialmente pela capacidade de síntese do caráter veneziano

que congrega em sua própria imagem. [14] [15]

Inspirado em uma antiga tradição veneziana dos teatros flutuantes,

documentada na iconografia dos séculos XVI e XVII, Rossi atualiza

essa proposta, reinserindo-a em uma reflexão mais ampla que se

desdobra em três aspectos: a meditação sobre o teatro, sobre a

cidade e, por fim, sobre a memória, através da possível relação com

o ‘teatro da memória’ ou ‘teatro da sabedoria’, uma alegoria da

32

BOGÉA, M. Cidade errante:... Tese de Doutorado, FAUUSP, 2006.

192

arquitetura do conhecimento, do saber enciclopédico, como se

observa a seguir.

Inaugurado oficialmente em 197933

, o Teatro foi colocado diante do

prédio da antiga Alfândega, por ocasião da Bienal de Veneza. A

estrutura tubular de ferro soldada à balsa, revestida de madeira,

define prismas justapostos: o cubo central ladeado pelos volumes

das escadas. Sobre o prisma central apóia-se o volume de planta

octogonal das galerias superiores, encimado por uma cobertura

piramidal. No alto da cobertura destaca-se a haste com uma esfera e

uma bandeira, motivos que reverberam o coroamento de edifícios

vizinhos identificados por Rossi como “elementos primários”.

33

O Teatro del Mondo, conforme relata Arantes, foi encomendado para o carnaval

de 1979 e incorporado à Bienal de Veneza do ano seguinte.

[14] Desenho de Aldo Rossi. Fonte:

www.designboom.com/history/teatrodelondo.html e www.vitruvio.ch.

Acesso 16/09/2008.

[15] Imagem do Teatro Del Mondo no Canale della Giudecca, atrás da

igreja de Santa Maria della Salute, Veneza. Fonte: ARNELL e BICKFORD,

1991, p. 237.

193

Tipologicamente o teatro combina o sistema de arquibancadas (que

se desenvolvem em lados opostos do palco central) com o de

galerias aéreas (dispostas em três andares), correspondendo a uma

capacidade de 250 lugares.

Otília Arantes34

assim o descreve:

“Com sua planta em forma de cruz, encimada por uma

cúpula octogonal, esse Teatrinho, ancorado ao lado da

antiga Alfândega, como já foi lembrado no início de nosso

itinerário, rima com a igreja de San Giorgio ao fundo, ao

mesmo tempo que reproduz parcialmente as formas e

planos do prédio aduaneiro em estilo barroco, que, situado

na entrada de Veneza, se não tem a função, aos poucos foi

assumindo a fisionomia familiar de um farol.”35 [16] [17] [18]

Importante reexaminar as relações entre a arquitetura do Teatro e o

contexto cultural do qual é parte integrante, a Bienal de Veneza de

1980, como faz Otília Arantes.

O próprio título do evento, – “Presença do Passado” – relembra

Arantes, anuncia uma aparente contradição em relação ao que se

espera dessas mostras, ou seja, novidade. É preciso observar, no

entanto, que o imperativo do novo, ostentado pelo movimento

moderno desde as primeiras décadas do século XX, transformado

numa “tradição do novo”, mostra-se nesse momento um tanto

desgastado. Nada mais compreensível, portanto, que explicitar na

própria denominação da mostra o dissenso em relação à repetição

das fórmulas identificadas com o “Estilo Internacional”, ou ao que

identificam com uma “ortodoxia servil” em relação aos princípios da

arquitetura moderna36

.

34

Em ensaio intitulado “Arquitetura simulada”, inserido no livro, O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp, 1993, pp. 17-72. 35

Arantes, op. cit. p. 43. 36

Cf. CURTIS, op. cit., p. 547, a expressão “ortodoxia servil” exprime a repetição de

formas que acabam por serem esvaziadas de seu conteúdo polêmico inicial e

vulgarizadas por interesses comerciais ou burocracias estatais, resultando na

adoção de clichês identificados como uma espécie de academicismo moderno.

194

[18] Cortes. Fonte: ARNELL e BICKFORD,1991, p. 225.

[17] Plantas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 223.

[16] Elevações do projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 223.

195

A presença do passado aparece nas fachadas alinhadas da Strada

Nuovissima, uma rua cenográfica composta de citações da

arquitetura italiana do passado, reconhecíveis porque incorporadas à

cultura não só dos especialistas, mas do público em geral. Situada

no espaço da Cordoaria do Arsenal, ao longo dos 320 metros da

nave central, essa “rua-manifesto” é resultado da intervenção de

vinte arquitetos conhecidos internacionalmente.

Não há, nessa proposta, o rigor de uma reconstituição fiel. Ao

contrário, é a “brincadeira”, o que move a iniciativa dessa colagem de

fachadas extraídas de diferentes contextos urbanos. Uma ironia que

ressuscita, em forma de alegoria, a “rua corredor”, cuja morte tinha

sido decretada por Le Corbusier, ao propor o novo urbanismo

racionalista-funcionalista da Carta de Atenas do CIAM em 1933.

A entrada da exposição, obra de Aldo Rossi, relembra um fragmento

de muralha antiga, pontuado por espécies de torres-contrafortes, que

se ajusta discretamente ao espaço disponível do acesso principal.

Estabelece uma ligação com o Teatro, enquanto componentes da

“cidade análoga” que temporariamente são incorporados à cidade

existente. [19]

[19] Processo de construção. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 222.

196

Se por um lado, o portal de entrada aparentemente antecipa a

proposta da rua desenhada no interior, por outro se distingue, da

mesma forma que o Teatro, daquilo que Arantes denomina

“arquitetura simulada”, como se explica a seguir.

Otilia Arantes, assinala a inserção desses dois elementos – portal e

teatro – ao contexto urbano, não apenas com respeito às relações

físicas ou topográficas, mas também do ponto de vista das

articulações estabelecidas entre a morfologia local e uma tipologia

atemporal, entre as formas puras e as arquiteturas concretas. Nesse

sentido é que se refere ao Teatro de Rossi, como um significativo

exemplo de arquitetura “situada” em contraponto com a arquitetura

“simulada”, nascida de um ambiente cultural ligado ao pós-

modernismo, que abusa das colagens e das citações historicistas,

em uma atmosfera de culto ao humor pop e, portanto,

“descontextualizada”.

A proposta de Rossi, por sua vez, revela-se como uma espécie de

paradoxo a esta perspectiva, na esteira do pensamento italiano do

grupo Tendenza, como afirmação de uma arquitetura comprometida

com o lugar. [20] [21]

Da mesma forma que redefine a paisagem ao navegar pelas águas

do Canal Grande, o Teatro del Mondo possibilita, através de

pequenas aberturas dispostas no corpo do edifício, ao espectador

assistir, do seu interior, ao espetáculo da própria cidade.

Teatro, mirante, farol, signo urbano, o edifico navegante de Rossi

encerra muitos significados e evoca outro mais antigo, obra de um

curioso personagem veneziano, célebre a seu tempo: Giulio Camillo

Delminio (c.1480 – 1544), também conhecido como “Il Divino

Camillo”. Trata-se do Teatro della Sapienza, do qual há relatos de

que tenha sido elaborado um modelo em madeira, além do projeto e

do texto que o descreve: L’Idea del teatro. Seus escritos têm

despertado interesse renovado, após reedições recentes, pois

denotam a figura de um estudioso que se alinha com o ideal

renascentista de criar um sistema de conhecimento desvinculado da

197

hierarquia do modelo teológico medieval, recorrendo à cultura antiga,

especialmente ao modelo retórico.

O projeto do Teatro da Sabedoria, enquanto local que reúne e

organiza toda a sabedoria humana, baseia-se no modelo clássico

descrito por Vitrúvio (cuja estrutura reflete a concepção do universo)

e incorpora as noções da mnemotecnia antiga. Constituído por sete

ordens horizontais subdivididas em sete partes (correspondentes aos

planetas) encerra quarenta e nove compartimentos (câmaras de

memória, loci do saber), cada um deles identificado por uma imagem

extraída da mitologia.

[21] Vistas do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 237.

[20] Desenho e vista do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 220 e 237.

198

A historiadora inglesa Frances Yates37

descreve detalhadamente não

só as peripécias de Giulio Camillo em busca de patrocínio para sua

invenção, como também particularidades do projeto detraídas de

documentos examinados a respeito do assunto. [22] [23]

Em seus estudos, a historiadora investiga a fundo a mnemotécnica

antiga e sua transformação no tempo, enquanto capacidade de

associar mentalmente imagem de coisas a lugares organizados em

sistemas arquitetônicos rigorosos.

Como relata Yates, de acordo com esse procedimento, o bom orador

antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu

discurso, através de uma edificação construída mentalmente,

extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de

objetos, argumentos e personagens38

.

37

Em A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. São Paulo: Editora Unicamp,

2007. No capítulo intitulado “Teatro de Camillo e o Renascimento Veneziano”, pp.

205-218, a autora discorre sobre o tema. 38

Conforme Yates, a criação da técnica de ativar e conservar a memória – a

mnemotecnia – é atribuída a Simônides de Céos (c. 556-468 ªC.). A autora relata

que Cícero, no seu De oratore [2, 86], conta sob a forma de lenda religiosa a

invenção da mnemotécnica: durante um banquete em que Simônides canta um

poema em honra de Castor e Pólux, o anfitrião diz que pagaria somente a metade

do valor estabelecido, deixando que os deuses pagassem o restante. Logo em

seguida, Simônides retira-se do local, chamado por dois jovens (uma alusão aos

deuses homenageados), pouco antes que o teto desabasse. O reconhecimento dos

corpos, após a tragédia, é feito por Simônides que se lembra do lugar ocupado por

cada um ao redor da mesa, antes do desabamento.

[22] Teatro da memória reconstrução por Yates.

[23] Ilustração extraída da edição veneziana de 1552 das obras de

Giulio Camillo. Fonte: wwwI-camillo.com/Camillo/Cam-IT-6htm.

Acesso 10/09/06.

199

Tal estratégia baseia-se na concepção de que a memória é

constituída a partir de um processo de espacialização, como

constituição de um espaço mental em que as imagens são

arquivadas, exatamente como no Teatro da Sabedoria, idealizado

pelo Divino Camillo. Um modelo que articula os lugares da memória

à construção de esquemas de relações, como se a memória pudesse

corresponder a um espelho da totalidade do mundo, uma espécie de

reprodução esquemática do mundo exterior.

Nesses termos, o teatro de Camillo pode ser interpretado como a

própria alegoria da enciclopédia universal, como lugar do saber

alicerçado na memória.

A aproximação dos dois teatros – aquele de Camillo e o de Rossi –

permite relacionar um e outro nas associações que estabelecem

entre memória, conhecimento e invenção. O sentido de

espacialização do conhecimento do Teatro della Sapienza, presente

na elaboração mental do Teatro Del Mondo, reforça os vínculos

existentes entre ambos e, o que é mais importante, acentua os

vínculos que o teatro de Rossi estabelece com a cidade, na medida

em que este se transforma de teatro efêmero em herdeiro de todas

as arquiteturas de Veneza.

Paul Ricoeur39

, filósofo francês que estuda a relação entre memória e

imagem (importante, segundo o próprio autor, para a consciência

moderna que o indivíduo tem de si mesmo), observa que a redução

da memória à condição de arquivamento de imagens, mera

lembrança de impressões vagas das coisas, corresponde a um

equívoco. Isso ocorre não só por se ignorar a dimensão temporal,

mas também por se destituir a capacidade de representação e

interpretação do passado, condição imprescindível da análise

histórica. Esse é justamente o aspecto levantado pela crítica que

reconhece nessa mostra da Bienal de Veneza, como em certa

produção dos anos 1980 rotulada genericamente de pós-moderna, a

convalidação de um historicismo efêmero, um modismo que se

39

Em A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora Unicamp, 2007.

200

sustenta unicamente de imagens: “mistura de simulacros e cópias,

tons áulicos e vernaculares, academia e regionalismo.”40

Importante, porém, considerar a alternativa apresentada por Ricoeur

para reparar o equívoco anteriormente mencionado, ou seja, atentar

para a memória como modo de acesso à realidade ontológica do

indivíduo que é fundamentalmente “condição histórica”. Tal estratégia

permite articular conhecimentos muitas vezes apreendidos de modo

estanque: a fenomenologia da memória, a epistemologia da história e

a hermenêutica da condição humana, a fim de constituir o campo de

reflexão sobre a natureza constitutiva da representação do passado,

da referência ao ausente, enquanto fundamento para a determinação

da experiência moderna do “si mesmo”. [24]

A reflexão proposta por Ricoeur desperta interesse pelo fato de

entender o resgate da memória em relação de reciprocidade, e não

de oposição ao estudo da história, como já foi entendida no passado.

40

Bruno Zevi, apud Arantes, op. cit., p. 29.

[24] Interior do Teatro. Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.

Acesso 16/09/2008, e ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 237.

201

À luz das considerações de Ricoeur, seria injusto e redutivo

interpretar o exercício analítico de Rossi como uma mera evocação

de imagens, como afirma Moneo referindo-se à arquitetura

Improcedente portanto igualar a investigação de Rossi aos exercícios

historicistas de um pós-modernismo passageiro, cujo ápice

manifesta-se justamente nos anos 1980. Sua arquitetura não se

limita a reproduzir simulacros, a ater-se unicamente à vestimenta, à

epiderme da arquitetura. Talvez pretensiosa, não certamente

superficial, sua produção explora e concilia a tratadística neoclássica

sobre a cidade (Poete, Lavedan, Habwalchs), com as visões utópicas

de Ledoux e com os estudos sobre a tipologia arquitetônica (de

Quatremère de Quincy, revisitados por Argan). Uma tipologia que

não se relaciona apenas com as questões construtivas ou funcionais,

mas essencialmente se vincula à estrutura espacial básica do edifício

inserido na trama da cidade. [25]

[25] Rossi. Estudo para Escola Broni. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 201.

202

Recorrendo mais uma vez a Bogéa: “quer para endossar o caráter do

lugar, quer para reinventá-lo, esse projeto reconhece a preexistência

como mote de invenção e dessa forma edita tempos distintos da

cidade.” Atento ao presente, o Teatro del Mondo de Rossi, concilia

memória e história, tendo em vista sua continuidade no tempo. Assim

permite que a nova obra, além de reapresentar e resignificar o

passado, constitua uma marca incontestável da produção

contemporânea.

Escola Edmondo De Amicis, Broni (1969-70)

Um projeto de recuperação e ampliação de pequeno porte, mas

especialmente importante pela atenção dirigida ao edifício

preexistente que se traduz em uma intervenção singela, mas que, ao

mesmo tempo, corresponde a um aporte significativo.

O edifício transformado em escola no final do século XIX apresenta

uma sóbria fachada umbertina41

. A proposta de Rossi reconstrói o

pórtico de entrada, a escadaria principal e o pátio interno, conforme

indicação em destaque na planta e imagem da fachada principal. [26]

41

O termo umbertino refere-se ao estilo arquitetônico usado no final do século XIX

na Itália, durante o reinado de Umberto I de Savóia.

[26] Planta da Escola De Amicis. Em destaque modificações propostas por

Rossi. Fonte: Revista a+u, Nov/1982.

203

Esta é uma intervenção particularmente interessante para o estudo

que pretende articular as reflexões do campo disciplinar do restauro

com a compreensão do arquiteto envolvido mais diretamente na

prática de projeto e, por isso, não necessariamente informado a

respeito das discussões conceituais da área específica.

A intervenção de Rossi estabelece um sutil contraste com o edifício

preexistente, fazendo com que o novo seja entrevisto dentro do

antigo. Conserva o pátio e dá destaque aos elementos verticais: o

pórtico do térreo, a galeria superior coberta e o saguão de entrada.

Ilumina as escadas centrais que saem do pátio, fazendo a luz

penetrar no interior. [27] [28]

Embora não se trate de uma preexistência de caráter monumental,

nem de uma obra de valor inquestionável do ponto de vista

arquitetônico, merece de Rossi o devido respeito, propriamente por

ser um exemplar de uma arquitetura do cotidiano que encerra um

não desprezível valor documental.

[27] Escola De Amicis. Galeria voltada para o pátio interno e escada

redesenhada. Fonte: Revista a+u, Nov/1982.

204

Segundo relato do próprio Rossi:

“(...) o movimento diário fundiu logo em seguida os dois

corpos, o velho e o novo, num todo único, mas com certa

ambigüidade. Isso dá a impressão de que minha intervenção

contém uma proposta completamente nova para o edifício.” 42

A referência a “uma proposta completamente nova”, contida na frase

de Rossi, remete à tentativa de extrair uma regra de caráter mais

geral de um processo particular, como sugere sua menção ao

procedimento, enquanto um método a adotar em projetos de

conservação e renovação de edifícios preexistentes ou de centros

antigos:

“O mesmo método pode ser usado para a conservação de

prédios antigos e para a renovação de centros históricos

urbanos. Nesse último caso, cada novo acréscimo, por

independente que seja a sua concepção, tem uma existência

física dentro de um contexto predeterminado. Esse contexto é

não somente diverso em termos formais, mas também tem

uma dimensão própria no tempo, que deve ser levada em

consideração toda vez que se quiser modificar o contexto.” 43

42

Em Nesbitt, op. cit. p. 386.

[28] Escola De Amicis. Pátio interno e detalhe da fonte. Fonte: revista a+u, Nov./1982.

205

O interesse desse projeto é justamente o raciocínio explicitado na

solução proposta. Um exercício de intervenção em preexistência que

propicia refletir a respeito de um possível método a ser aplicado em

situações análogas. O novo e o antigo não se confundem, mas

dialogam sem conflito44

.

Teatro La Fenice, Veneza (1997-2003)

O projeto de reconstrução do teatro veneziano La Fenice permite

discutir um tema controverso do campo disciplinar da restauração

que emerge no período do pós-guerra: a proposta de reconstrução

“com’era, dov’era” (como era, onde estava). [29] A orientação inicial é

voltada a edifícios desaparecidos por ação dos bombardeios,

portanto de modo repentino e traumático. [30] [31] A discussão acaba

se ampliando para casos em que a perda seja resultante de um

episódio abrupto e acidental. É evidente que em situações extremas

de crise e trauma os argumentos que apelam à razão podem perder

terreno para aqueles carregados de emoção.

43

Id. p. 386. 44

Convém observar que, embora Rossi não faça qualquer menção a respeito,

poucos anos antes da realização desse projeto, ou seja, em 1964, tinha sido votada

no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos monumentos históricos

promovido pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios) a Carta

de Veneza que recomenda, entre outras medidas, que os acréscimos indispensáveis

em obras de restauração devem ser reconhecíveis e ter a linguagem do próprio

tempo.

[29] Gravura do interior do teatro do século XIX. Fonte: http://vec.wikipedia.org/wiki/Teatro_%C5%81a_Fenicehttp://vec.wikipedia.o

rg/wiki/Teatro_%C5%81a_Fenice. Acesso 08/09/09.

206

Essa é a situação que envolve o La Fenice de Veneza que, em 1996,

sofre um incêndio doloso devastador – o segundo de sua história, o

primeiro tinha ocorrido em 1837. Após o acontecido, a Prefeitura

local não tem dúvidas: institui um concurso nos moldes de uma

concorrência pública para execução de obras em que o projeto e a

construção estão interligados entre si. Determina-se, desta forma,

que os concorrentes sejam empresas do ramo da construção civil

que, por sua vez, contratam escritórios de arquitetura para

desenvolver os projetos a serem submetidos à avaliação do júri.

A rápida ação da administração pública gera polêmicas por dois

motivos principais: o primeiro ligado à modalidade de seleção que

elimina o concurso de projetos, para optar pelo processo de

concorrência que atrela a solução de projeto aos custos de

execução; o segundo motivo está relacionado a um dos pontos do

edital que dispõe que o teatro seja reconstruído no mais breve

período de tempo, conforme a lógica da reconstrução “com’era

dov’era”, ou seja, como se o teatro devesse quase que literalmente

ressurgir das cinzas tal qual era antes do infortúnio45

.

45

A polêmica que envolve o concurso não se limita a esses aspectos que

antecedem a escolha do primeiro colocado. A construção do projeto vencedor, que

reunia a empresa L’Impregilo (Grupo Fiat) e o projeto da arquiteta Gae Aulenti, foi

embargada judicialmente pelo fato de não ter sido contemplado, naquela proposta, o

projeto para a ala sul prevista no edital. Com o veredicto final define-se a

continuação da obra conforme o segundo classificado: o consórcio das empresas

Hotzmann-Romagnoli com projeto de Rossi.

[30] Imagem aérea, o teatro destruído. Fonte:

http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.

Acesso 08/09/09.

207

Além das dificuldades de reconstituição de praticamente todo o

interior do edifício, pois permanecem intactos apenas os muros

perimetrais de tijolos maciços de aproximadamente um metro de

espessura, a obra envolve questões ligadas à logística da

construção: a necessária montagem do canteiro em Mestre para

armazenamento do material por absoluta falta de espaço no próprio

local, o que determina que o transporte deva ser obrigatoriamente

por via aquática.

As estruturas da platéia, dos palcos e da cobertura originalmente em

madeira com previsão de reconstrução pelo edital, não contam com o

aval dos bombeiros que exigem o uso de material resistente ao fogo.

Os ambientes do foyer, bilheteria, as salas de dança e ensaio, assim

como as Salas Apolíneas devem, conforme o edital, ser

reconstruídos de acordo com o método filológico. Isto significa que

um estudo rigoroso de documentos e levantamentos iconográficos

existentes deve amparar a reconstrução, e que a partir da

interpretação desse material devem ser estabelecidos

criteriosamente todos os elementos figurativos a serem refeitos e os

métodos empregados na reconstituição.

[31] O teatro em ruínas.

Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.

Acesso 08/09/09.

208

Sobre a decisão de reconstrução do teatro na sua configuração

primitiva, assim se manifesta Aldo Rossi antes mesmo da definição

do resultado do concurso46

, declarando-se favorável ao partido do

“com’era, dov’era”: [32]

“É a única escolha sensata para Veneza, se não fosse

reconstruída a torre campanária de San Marco com’era

dov’era não seria a mesma Veneza47. Se Roma perde um

monumento é um drama mas Veneza não é cidade de

grandes monumentos, é composta de pequenos episódios.”

46

Em entrevista concedida a G. Leoni, publicada no periódico “AREA”, 32, maio-

junho de 1997, pp. 44-47. (Tradução da autora). 47

Rossi refere-se à reconstrução da Torre campanária de San Marco após o

desmoronamento ocorrido em 14/07/1902. A reconstrução (1903-12) foi realizada

com base nos desenhos de G. Spavento (c.1504), sob supervisão de Gaetano

Moretti (1860-1938), cf. Carbonara, 1997, p.183.

[32] Imagem do interior. Fonte:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f8/Teatro-la-

fenice-sala.jpg/280px-Teatro-la-fenice-sala.jpg. Acesso 08/09/09.

209

Conforme essa observação entende-se que, para o arquiteto, a

excepcionalidade da obra monumental constitui a principal condição

a exigir uma atitude de cautela em relação à reconstrução.

Subentende-se, portanto, que a preocupação central esteja ligada à

autenticidade, a não se incorrer em falsificação48

. Aldo Rossi, por

outro lado, não vê problemas em reconstruir um edifício não mais

existente se este não se trata de um monumento de caráter singular,

marcado pela atribuição de autoria. Adota, portanto, segundo essas

declarações, uma atitude diferente para obras de caráter ordinário,

de ascendência vernacular, como qualifica o próprio teatro em

questão.

De todo modo, Rossi afirma que o edital não deveria ser tão

restritivo:

“Eu penso que se devesse limitar ao respeito à volumetria

originária, para não prejudicar o skyline veneziano. Refazer

o interior filologicamente, como prescreve o edital por uma

precisa determinação da tutela municipal [de proteção do

patrimônio], é em certo sentido paradoxal. Naturalmente

cada um levará a experiência própria, também o tapeceiro

particular, e será um elemento de novidade. A torre cênica

será, ao contrário, totalmente refeita, inclusive nos limites

volumétricos, e é a única parte projetável ex novo.”

Rossi lamenta a respeito das rígidas restrições definidas pelos entes

públicos ligados à tutela do patrimônio arquitetônico que se valem do

princípio da intocabilidade da “cidade museu” – conforme expressão

do próprio arquiteto – e faz ressalvas explícitas à noção do

“patrimônio ambiental”:

“Diria que nunca me interessei muito aos valores

ambientais. Ainda que em polêmica com meu mestre

Rogers, nunca condividi a idéia das preexistências

ambientais; é um conceito de sabor cenográfico.”

48

A esse respeito consultar o conteúdo do apêndice dedicado ao tema, presente no

livro de Cesare Brandi Teoria del restauro (1963). Por comodidade e adequação faz-

se aqui mais uma vez referência à tradução para o português de Beatriz Kühl: Teoria da restauração (2004), ver Falsificação, pp. 113-120. Nesse texto a falsificação é

analisada a partir do juízo de falsidade que pressupõe a não congruência do sujeito

ao seu conceito, às determinações que deveria possuir.

210

Sobre o traço característico do território veneziano afirma: “Aliás,

Palladio foi o primeiro a entender que Veneza é feita de elementos

isolados, enquanto Sansovino procurava por em comunicação, unir.”

A partir dessas considerações mencionadas pode-se ter uma idéia

do conteúdo controverso daquele depoimento. Quando se decide

pelo projeto de Rossi, o arquiteto já tinha falecido, mas perdurava a

polêmica sobre a reconstrução.

A execução do projeto não obedece literalmente ao princípio do

“com’era, dov’era”. Basta analisar a atual “Sala Nuova”, local onde

antes do incêndio estavam as instalações de aquecimento, para se

dar conta da transformação: adaptada a sala de ensaios para

orquestra e coro, essa sal ganha uma instalação sui generis que

constitui uma cenografia em madeira da Basílica Palladiana de

Vicenza. [33]

[33] A cenografia Palladiana. Fonte:

http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.

Acesso 09/10/09.

211

O método empregado na reconstituição da decoração interna opta

pela “evocação” do teatro de Gianbattista Medusa – o cenógrafo que

decorou internamente a sal principal do teatro. Ao invés de refazer os

elementos decorativos (estuques e baixo-relevos que constituem a

decoração superposta à estrutura muraria), prefere-se recorrer à

pintura. Adota-se o recurso ilusório da própria cenografia como meio

não só de se respeitar a autenticidade do teatro existente antes da

destruição, mas também pela constatação da impossibilidade de se

recriar o teatro desaparecido. Inicialmente se trabalha sobre um

esqueleto geométrico desenhado sobre a estrutura arquitetônica, a

ser posteriormente preenchido com a pintura para chegar ao efeito

visual equivalente à decoração primitiva49

.

Algumas observações

“De Quincey afirma que el cerebro del hombre es un

palimpsesto. Cada nueva escritura cubre la escritura anterior y

es cubierta por la que sigue, pero la todo poderosa memoria

puede exhumar cualquier impresión, por momentánea que haya

sido, si le dan el estímulo suficiente.

La memoria del hombre no es una suma: es un desorden de

posibilidades indefinidas.

Comprendí que las tres facultades del alma humana, memoria,

entendimiento y voluntad, no son una ficción escolástica.”

(Jorge Luís Borges em La memoria de Shakespeare)

Atento, em seus anos de formação e de início de carreira, às

primeiras críticas formuladas à recente tradição moderna, Aldo Rossi

procura um fundamento próprio e específico para a arquitetura.

Movido pela busca do conhecimento, recorre a fontes de pesquisa de

diferentes áreas, compondo um rico mosaico de ascendências,

influências e derivações, que se refletem na sua elaboração teórica e

na metodologia de projeto adotada. Esse é justamente um dos

aspectos mais relevantes da sua produção: a explícita ligação entre o

pensar e o fazer arquitetura.

49

Todo esse trabalho foi amplamente documentado e está disponível na internet, no

site http://www.ricostruzionefenice.it. Data de acesso: 09/08/2009.

212

No início da trajetória profissional, é inegável, sobre Rossi e os

arquitetos de sua geração, a influência das idéias de Ernest Nathan

Rogers50

– professor e diretor da revista Casabella. Rogers é uma

das figuras mais ativas do ambiente arquitetônico de Milão, uma

espécie de mentor dos jovens arquitetos que se formaram nos anos

1950.

As influências, no entanto, não se limitam ao campo estrito da

arquitetura. É grande a atração que o pensamento marxista exerce

sobre os jovens italianos naqueles anos. As leituras de Gramsci, as

teorias de Lukács, formam um corpo de doutrinas significativo para a

elaboração de sua teoria urbana.

Outra fonte de pesquisa essencial é o pensamento estruturalista que

se expande ao longo do século XX, especialmente após a 2ª Guerra

Mundial, e se manifesta nas teorias e nas obras dos autores ligados

às manifestações da arte e da arquitetura, orientando o estudo das

cidades e dos fenômenos históricos associados à permanência de

estruturas formais.

Essa busca pelas formas permanentes, pelas estruturas essenciais,

através da ativação da memória e da recorrência aos mecanismos

tipológicos, teve alguns antecedentes entre os quais se destaca a

obra de Louis Kahn (1901-1974). Este, entretanto, considera o ‘tipo’

como organismo autônomo em sua forma e escala em relação ao

lugar. Procura discernir a hierarquia que permite distinguir

funcionalmente os espaços de circulação e serviços dos espaços de

permanência e estar, recorrendo aos instrumentos da geometria e da

ordenação axial, bem como à lógica construtiva observada nos

diversos períodos históricos, para então configurar a matriz de

composição de seus projetos. Introduz volumes que fazem referência

a elementos históricos sem, no entanto, realizar um retorno

historicista: as estruturas espaciais e o valor simbólico das formas

tornam-se assim os elementos soberbos, independentes do contexto

de inserção.

Desde o início de sua carreira, Aldo Rossi entende o trabalho dos

arquitetos como semelhante aos dos profissionais das ciências

50

Cf. depoimento do próprio Rossi, Rogers é chamado “o meu mestre” (em

entrevista já mencionada).

213

naturais e humanas, o que lhe permite resgatar a visão iluminista

enquanto ponto de partida para identificar o território próprio da

arquitetura, estabelecendo analogias com o método das ciências

naturais.

Nesse sentido, Rossi polemiza frontalmente com críticos como Bruno

Zevi, que representa uma crítica engajada com os ideais

modernistas. Historiador e crítico de grande repercussão naquele

momento, Zevi é particularmente conhecido pelo gosto em cultivar

controvérsias e pelo modo impetuoso com que defende suas idéias.

Encara o modernismo como um desfecho triunfante da arquitetura e

das atividades artísticas em geral, como momento de plenitude após

um longo percurso de evolução e progresso tanto social, quanto

tecnológico, que coincide com a evolução em termos visuais e

figurativos da arquitetura associada à primazia do espaço. Bom

contestador, não se alinha, entretanto, com a corrente hegemônica –

o racionalismo – mas cultiva a produção de outra vertente, o

organicismo.

Rossi, por sua vez, distanciado do pensamento modernista,

empreende uma ambiciosa tarefa de elaborar um tratado de

arquitetura, e após concluir que o território da arquitetura é a cidade,

declara que é preciso explorar sua gênese, os princípios que

conduzem o seu desenvolvimento e investigar de que modo vão se

formando as distintas áreas e bairros que as compõem. Sua

pesquisa é marcada pela posição que vê na descrição da cidade a

chave para explicar e produzir a nova arquitetura.

Conforme destaca Montaner51

, para a elaboração do seu livro A

arquitetura da cidade, Rossi baseou-se essencialmente em três

metodologias: o pensamento neopositivista propenso a recuperar a

experiência dos arquitetos iluministas para criar uma ciência urbana;

as idéias marxistas que se refletem na procura por uma objetividade

que possa romper com uma orientação essencialmente artística da

arquitetura e assumir um responsável papel social; e, por fim, o

estruturalismo que, através do estudo de Lèvi-Strauss e do lingüista

Ferdinand de Saussure, conduz sua análise da morfologia urbana e

da permanência das formas.

51

Em As formas do século XX, 2002, p. 150.

214

Rossi interliga ainda os tratados urbanos de Sitte, Poète, Lavedan e

Mumford, para defender a complexidade dos episódios urbanos,

aproximando geografia, urbanismo, política e literatura. Considera as

contribuições da teoria da Gestalt, as ligações com a psicologia

estabelecidas por Kevin Lynch no livro A imagem da cidade (1960).

O mecanismo poético da analogia, da maneira como foi utilizado por

Aldo Rossi, fundamenta-se nos estudos de Carl Gustav Jung. Dessa

maneira, Rossi o expressa com elementos e objetos encontrados em

sua experiência de observação da cidade – cúpulas, silos, faróis,

torres, casas antigas, galerias, e assim por diante – elementos que

se configuram como motivos recorrentes em seus projetos.

A idéia de ‘tipo’ pode ser relacionada ao conceito antropológico e

psicanalítico de arquétipo. Recorrendo mais uma vez a Montaner52

, o

autor assinala que Jung pesquisa o caráter arcaico e mitológico do

inconsciente, em uma condição contemporânea na qual a

complexidade da psique aumenta proporcionalmente à perda da

espiritualidade e ao crescente empobrecimento dos signos. Continua

Montaner, o inconsciente coletivo, para Jung, é inato, tem um caráter

universal e procede da busca de imagens protetoras e benéficas

para o homem.

Nesse sentido, Aldo Rossi, Claude Levi-Strauss e Carl Gustav Jung

participam de uma mesma linha de pensamento que recorre ao

inconsciente coletivo, aos mitos, à memória coletiva, para se situar

no mundo contemporâneo.

A crítica tipológica interliga-se, portanto, às teorias da linguagem. As

metodologias estruturalistas aproximam a lingüística estruturalista

criada por Saussure e a crítica tipológica53

que investiga o

fundacional e o intemporal. Essas pesquisas envolvem

interpretações transcendentais que buscam valores essenciais e

permanentes, princípios únicos e constantes. Muitos dos autores

citados por Rossi mitificam a experiência da viagem à origem. Uma

viagem iniciática que, depois da ida tortuosa, permite voltar à

realidade presente com a bagagem de certezas essenciais.

52

Idem. p. 152. 53

A crítica tipológica foi batizada por Manfredo Tafuri em Teorias e história da arquitetura (1968).

215

Do mesmo modo que Aldo Rossi, também Rafael Moneo estabelece

uma relação de reciprocidade entre a atividade crítica e o exercício

de projeto. Sem dúvida, seu método descende, dentre outras

influências, do aprendizado com a Escola de Veneza e, por isso

mesmo, seu trabalho apresenta afinidades com o de Rossi no que

diz respeito à estratégia de reportar-se continuamente à experiência

concreta da história da arquitetura, à tentativa de compreender as

razões profundas que motivam certas escolhas formais e

construtivas, à preocupação com a inserção urbana do edifício.

É interessante notar que, apesar das afinidades, Moneo54

questiona

a relação entre a crítica ao funcionalismo, elaborada por Rossi, e o

emprego do ‘tipo’ como mote de invenção. Observa que a partir do

momento em que Rossi elimina qualquer relação determinista entre

função e forma, acaba por admitir a irrelevância da função e, de

conseqüência, concede à forma valor em si mesma. Desse modo,

afirma Moneo, a noção de ‘tipo’ (para Rossi) deixa de ser pura

referência instrumental para converter-se propriamente em imagem,

deixa de ser sistema classificatório, para se tornar recurso

interpretativo articulado com o processo criativo. Os ‘tipos’, conclui

Moneo, dão valor à forma arquitetônica e configuram essencialmente

a trama da cidade pensada e projetada por Rossi.

Montaner alerta para a dissolução da força crítica dos conceitos de

tipologia, ao longo dos anos 1970-8055

. Observa que esse desgaste

ocorre em decorrência da multiplicação de uma espécie de

maneirismo tipológico que acaba banalizando essas propostas. É

possível reconhecer que esse fenômeno de expansão apresenta

uma insuficiência congênita: um peso excessivo à análise histórica

não plenamente correspondido pelo interesse dirigido ao projeto,

concebido como conhecimento técnico e construtivo.

Além desses aspectos ligados à banalização da releitura histórica e

tipológica, há que se considerar outras ressalvas apontadas pelos

críticos com relação à produção arquitetônica de Aldo Rossi: a

54

Em Inquietud teórica y estrategia proyetual…Barcelona: Gustavo Gili, 2004, pp.

101-143. 55

Em Después del movimiento moderno. Barcelona: Gustavo Gili, 1993, p. 151. Cita

entre outros autores Micha Bandini e seu artigo “Typology as a form of convention”

(1984), em que comenta a diluição dos conceitos relacionados à crítica tipológica

que, segundo o autor, tende a se converter em uma nova convenção.

216

primeira refere-se ao caráter eurocentrista de suas análises

históricas; outra crítica recorrente diz respeito ao uso repetitivo das

formas primárias, simples e elementares, muitas vezes tido como

procedimento empobrecedor.

Convém, no entanto, salientar que o interesse despertado por sua

arquitetura suplanta o alcance dessas observações depreciativas.

Nesse sentido, vale ressaltar as palavras de Arduino Cantàfora56

no

intuito de sintetizar a essência ontológica atribuída à produção de

Rossi, isto é, a relação indissociável entre o pensamento, a

linguagem e a realidade observada presente em sua obra:

“Poucas e profundas coisas, isto me aconselhava Aldo

Rossi (...). Por isto a sua arquitetura da cidade é a

arquitetura da vida e sobretudo da vida dos mais humildes,

que tanto respeitou em sua vida. Rossi sabia ser duríssimo

com os arrogantes, sempre intimamente participe da

honesta simplicidade. E a sua arquitetura é um canto

dirigido a esta humanidade sofrida, dando-lhe espaço no

palco da vida. (...) não dava a ilusão de redenção através

de presuntos jogos formais, como se algum achado

pudesse bastar para tornar menos dramática a fatiga do

viver. Utilizava, ao contrário, aquele repertório que significou

a arquitetura desde sempre, para pô-lo como espelho do

ser, para que cada um pudesse reconhecer-se como

pertencente.”

Cantàfora destaca nesse texto o sentido ético do profissional cuja

marca não é a procura de um repertório de grandes achados, mas ao

contrário uma contínua evocação, uma transmissão a outro sentido,

uma metalinguagem profunda e “ao mesmo tempo leve como uma

dádiva necessária”, um olhar atento à permanência das poucas e

profundas coisas que interessam, aos traços de vida retidos nos

muros das construções, “ao valor do limiar entre espaço público e

privado, no qual sempre entrou em ponta dos pés”.

56

Um de seus discípulos, em artigo intitulado ”Poche e profonde cose” da revista

Casabella 654 (março 1998), pp. 4-7. (Tradução da autora)

217

A força expressiva dos desenhos de Rossi amplia-se quando

considerada sustento cotidiano da sua paciente pesquisa de

repertório, qual formação de um vocabulário plástico essencial que

parte do inventário de formas conhecidas, para se transformar na

invenção do novo. Considerando que o termo latino inventàre,

provém de invenire (= achar, encontrar) e inventário, do latim

inventarium, corresponde a “elenco para achar”, Rossi estabelece

uma correlação pertinente, própria de quem não considera o

inventário como um fim em si mesmo, um retorno ao passado, mas

faz desse elenco de achados a fonte de conhecimento para atuar no

presente.

A esse respeito, oportuno lembrar as observações de Ulpiano

Bezerra de Meneses57

, para quem o que interessa de fato é o

processo de ativação da memória e não o produto ou o objeto de

rememoração. É por isso que a valorização da cultura material não

interessa apenas como listagem de bens, mas, sobretudo, como

busca do entendimento da produção individual e de sua

representação social. A proposta de Ricoeur, mencionada acima a

propósito do Teatro del Mondo, coincide com essa postura de

ativação da memória entendida como compreensão ontológica, qual

reflexão mais abrangente a respeito do ser.

Ao destacar que a memória opera sobre o passado, mas se faz no

presente, em função do presente, Meneses assinala que, ao mesmo

tempo em que, corresponde a um processo de acúmulo, de

armazenamento de dados, é também exclusão, filtragem. Sob esse

aspecto, menciona Montaigne e sua advertência para a inadequação

do conceito de biblioteca como repositório da memória da

humanidade, uma vez que enfatiza o processo de exclusão implícito

no mecanismo de seleção aplicado na formação do acervo. Ressalta

que, do mesmo modo que preserva, ao reunir e conservar em um

local de estudo e leitura um número significativo de obras, a

biblioteca, em igual medida, exclui outros tantos exemplares,

57

Cf. depoimento presente na forma de apêndice em Tese de Doutorado de Luís

Antônio Jorge, intitulada O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura na América, FAUUSP, 1999.

218

impedindo o acesso dos homens a esse conhecimento deixado do

lado de fora do seu recinto.

Nesse sentido, sinaliza Meneses, todo museu pode ser visto como

registro da experiência humana segundo algum critério. Museu é,

portanto, lugar em que a memória se transforma em objeto de

análise de como a sociedade ou os grupos constroem suas

memórias e as operam. Menciona Pierre Nora, para quem os

museus, entre outros organismos, correspondem a “lugares da

memória”, isto é, são instituições, coisas e ações que ativam a

lembrança, enquanto suportes da memória não mais vivenciada e

que por isso mesmo necessita de elementos externos para se

manifestar. Uma memória necessariamente objetivada, porque não

estar mais na prática, imersa no cotidiano.

A partir dessas reflexões, observa-se que todo processo realizado

por instituições de caráter memorialístico, como o são, além das

bibliotecas, os museus, os arquivos históricos, os próprios

procedimentos que caracterizam as ações de conservação do

patrimônio cultural, resulta de um mecanismo, não só de

armazenamento, mas também de seleção e, portanto,

essencialmente de exclusão.

Cabe aqui retomar uma constatação equivalente advinda da literatura

de Borges: impossível pretender manter uma memória integral como

aquela de Irineo Funes, o memorioso, cuja capacidade ilimitada de

arquivar e reevocar os dados retidos na memória, de preciosa

qualidade, acaba por se converter em incontornável transtorno. De

tal modo que o impede de pensar, porque incapaz de abstrair e

generalizar, preso à contingência e à inteireza do ocorrido, do dado

circunstancial.

Como bem coloca Meneses, a memória está para o tempo, assim

como a pertença está para o espaço. Tudo indica que seja

justamente a articulação entre memória e pertença o aspecto

fundamental a se destacar no trabalho de Aldo Rossi, como aliás

observa Cantàfora.

Retomando as explicações do próprio Rossi:

219

“Sempre me interessou a mudança artística de uma palavra

ou de uma frase, partindo do significado próprio para um

outro, operação que os gregos chamavam metáfora (...). E

entre os arquitetos, o sublime Palladio usou com extrema

consciência este trasladar de significado, transportando os

elementos da arquitetura com uma função a outra e

acrescentando e mudando com simples transferências as

partes elementares do edifício, modificando-lhe o

significado próprio num outro. Assim, através da sua obra, a

arquitetura grega reaparece em Veneza e no mundo inteiro,

e a transferência não foi construção mental mas história

viva dos homens: encontramo-la indiferentemente nas

construções cultas e naquelas que nos parecem não

eruditas.”58

São considerações que se prestam tanto à conceituação da sua

arquitetura analógica, como possibilitam elucidar o sentido do seu

Teatro del Mondo. Rever suas reflexões e reexaminar esta entre

outras obras hoje, passados trinta anos de sua criação, permite

detectar a consistência e coerência de uma arquitetura sensível às

vicissitudes humanas.

Retornando a Cantàfora59

:

“A arquitetura de Aldo Rossi é ética, por isto é trágica, e é

disto que nasceu o Teatro del Mondo, como mais belo não

se podia imaginar. Mas os ‘Teatri del Mondo’ já tinham sido

os teatros da vida, feitos para tentar ligar mais uma vez o

homem à natureza. E Rossi conseguiu recriar o encanto

shakespeariano, giocando sui gabbiotti, brincando com os

volumes entorno aos quais vagueiam os gondoleiros

venezianos.”

Mais do que a qualidade figurativa das obras – tanto as suas, quanto

as preexistentes que observa e perscruta – o que interessa à

arquitetura de Aldo Rossi é especialmente a motivação presente nas

suas materialidades. Do mesmo modo observa as diferentes

58

Em BRAGHIERI, op. cit. p. 6. 59 Em artigo já mencionado na nota 55 (tradução da autora).

220

atribuições de significados advindas no curso do tempo. A criação

arquitetônica é vista então como prolongamento da história e se

reapresenta como variação do já conhecido, como seleção de

objetos retidos na memória, e não como novidade absoluta, como se

pretendeu nas propostas da vanguarda modernista. A obra de Rossi

procura um outro sentido de originalidade, agora associado à

singeleza do gesto essencial presente na origem das coisas e

reelaborado nos artefatos feitos pelo homem no decorrer dos

tempos.

Contrariando a idéia de que Rossi e Bruno Zevi nada têm em

comum, retoma-se aqui uma observação do crítico que se aproxima

da postura do arquiteto:

“Se a história acha uma saída como componente

metodológica do projeto, por sua vez o projeto prolonga na

história seus critérios e seus instrumentos. Isto significa que

o projeto propõe uma operação histórico-crítica de novo

tipo, uma história da arquitetura redigida com os

instrumentos expressivos do arquiteto e não somente com

aqueles do historiador da arquitetura”.60

A intervenção sobre a preexistência não poderia então ser

compreendida como ação de projeto mediada pelo conhecimento

histórico? Coloca-se, desse modo, em pauta uma ação de projeto

distinta da reivindicação da “página em branco”: nada em comum

com o palimpsesto que cancela o texto primitivo para dar lugar ao

novo, mas, ao contrário, como um diálogo de tempos, uma

convivência cordata, favorável à continuidade histórica, resultado da

estratificação das temporalidades e da postura crítica implícita na

escolha da solução proposta.

60

ZEVI, B. La storia come metodologia del fare architettonico. Conferência proferida

na Aula Magna da Universidade de Roma em 18-12-1963. Apud TAFURI, M. Teoria e storia. Bari: Laterza, 1970, p. 125. (Tradução da autora).

221

Conclusão

Del rigor em la ciencia

…En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal Perfección

que el Mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y

el Mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, estos

Mapas Desmesurados no satisficieron y los Colegios de

Cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio, que tenía el

Tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos

Adictas al Estudio de la Cartografía, las Generaciones

Siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin

Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y los

Inviernos. En los Desiertos del Oeste perduran despedazadas

Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en

todo el País no hay otra reliquia de las Disciplinas Geográficas.

Suárez Miranda: Viajes de varones prudentes,

libro cuarto, cap. XLV, Lérida, 1658.

O conceito de restauro, a partir de uma análise etimológica1, significa

restabelecer e traz consigo um componente de projeto indiscutível

representado pelo prefixo re(staurare), como re(fazer). O termo

reporta, portanto, desde a origem, à recomposição de um hiato

criado entre passado e presente, ou mesmo entre passado e futuro,

se considerada a perspectiva de que o projeto subentende

necessariamente a idéia de concepção, de intenção de realizar algo

no futuro.

É oportuno, entretanto, relembrar que a noção moderna de restauro,

ratificada pela concepção brandiana, formulada nos anos 1960, ao

contrário do que pode inferir uma primeira aproximação ao tema,

admite que o interesse de preservação, atrelado à idéia de restauro,

1 Em COLONNA, B. Dizionario etimológico della língua italiana. L’origine delle nostre

parole. Roma: Newton & Compton, 2005, p.188-189. Conforme verbete

restaurare/staurare, do latim, instaurare (= dare in compenso, poi ristabilire), da staurare (stare), associável ao grego staurós (=palo), stylos (=colonna).

222

surge não propriamente para estabelecer uma continuidade com o

passado, mas decorre justamente da percepção de uma nítida

separação entre passado e presente propiciada pela investigação da

história, isto é, pela atitude crítica do indivíduo frente a seu passado.

Contribui para essa percepção, a descontinuidade provocada pelos

processos revolucionários2. É da ruptura com a tradição e com o

fluxo ininterrupto do tempo, portanto, que se configura também a

interrupção de uma prática comum de apropriação das obras

herdadas do passado para adaptá-las sem restrições às

necessidades do presente3.

A questão fundamental que se coloca é a reclamação por uma

necessária dimensão de projeto – via de regra, de transformação –

incorporada à ação de restauro, desde que não conflite com a

intenção de conservação. É a proposição de equilíbrio contida na

postura de conciliação entre permanência e transformação. É

também resultado de uma inevitável constatação heraclitiana: a de

que é impossível deter o curso do tempo e as transformações que

esse desenvolvimento comporta.

Para Marco Dezzi-Bardeschi4, considerar unicamente a conservação,

especialmente para os edifícios gravemente danificados, implica

abdicar da possibilidade de restituir ao objeto de intervenção sua

plena identidade, ou seja, sua capacidade de viver de modo

completo no presente e no futuro. Não defende com isso uma ação

arbitrária, mas impõe como condição a ação filológica, isto é, aquela

2 Conforme abordado no primeiro capítulo desta pesquisa, essa mentalidade

manifesta-se como uma reação de certos setores da sociedade às significativas

transformações, ocorridas na Europa na passagem do século XVIII para o XIX.

Decorre da difusão de dois processos revolucionários que se iniciam

respectivamente na França e Inglaterra: o primeiro, de busca pela liberdade e

igualdade, deflagra a contestação ao Ancien Régime e condiciona o vandalismo

voltado aos edifícios-símbolo dessa antiga ordem; o segundo, marcado pelo

nascimento da indústria moderna que, além de modificar radicalmente os modos de

produção, implica importantes mudanças nos costumes e no ambiente urbano.

3 A esse respeito discorre o teórco Paul Phillipot, com já mecionado no primeiro

capítuio, em artigo: “Restauro: filosofia, criteri, linee di conduta”, em Revista

Instrumenti n. 6, 1998, pp. 43-50. 4 Em www.antithesi,info/test/categorie/s_comm_aut.asp?autoreID=Dezzi_Bardeschi,

acesso em 10/09/09.

223

que se vale de todas as investigações e documentações necessárias

para estabelecer as premissas de intervenção.

Trata-se de não reconhecer a intocabilidade da obra deturpada ou

desfigurada por alegação de se pretender preservar a sedimentação

histórica, pois renunciar a intervir com linguagem e meios

contemporâneos, muitas vezes, significa pretender conceder

dignidade à própria deturpação, à incúria, como se esta fosse um

legítimo componente da evolução do organismo arquitetônico,

favorecendo praticamente ulterior desmazelo. Nesse caso, a falta de

manutenção ordinária passaria a fazer parte decisiva da história da

obra arquitetônica, parte da estratificação histórica, como estado que

não se admite remover, alterar, em nome da estrita e exclusiva

conservação.

Em última análise, para as obras gravemente danificadas, a

aceitação exclusiva da conservação, corresponderia a acolher,

conforme Dezzi-Bardeschi, não obstante a reflexão dos últimos cento

e cinqüenta anos, as teses de John Ruskin que, por excesso de zelo

e respeito pelo passado, preferia decretar a morte dos bens de

grande interesse artístico e histórico, a admitir a intervenção.

Em latim, tradire deriva de tradere (=consegnare), equivalente ao

‘trazer’ do português, e provém da narrativa evangélica em que

Cristo é entregue às autoridades por Judas (daí o sentido de ‘trair’

consolidar-se como atraiçoar).

Como esclarece Ada Cortese5, socióloga e psicanalista, o verbo

carrega o sentido de transmitir uma ordem preestabelecida, em nome

de um novo sistema de valores:

“Sanciona portanto o drama da passagem do velho ao novo

e em essência o eterno drama do processo evolutivo. A

traição tem algo em comum com o abandono por parte de

um sistema de precedentes regras ou configurações a favor

da novidade.”

5 Apud Vilma Torselli “Tradimento e tradizione” disponível em site da internet:

www.antithesi.info/testi/testo__pdf.asp?ID=334, acesso em 10/09/09. (Tradução do

autor).

224

A palavra tradizione (tradição), também em arquitetura, tem o

significado de transportar, de entregar aos pósteros uma ordem, um

conjunto de regras, de normas consolidadas, sem perder de vista

também o sentido de passagem, de conversão do velho ao novo, de

abandono no sentido de trair aquilo anteriormente aceite, em favor de

algo que passará a vigorar.

Continua Cortese: “quando a nova regra ou configuração se afirma, a

traição se transforma em tradição (...). É exatamente esse o

significado etimológico da palavra tradição: é a história das traições

passadas”.6

Esse processo de transformação manifesta-se no interior de uma

inelutável dinâmica tradição/traição, isto é, através do abandono da

última “entrega” herdada do passado, que será traída em nome da

próxima. Sem tradição não há aquisição de conhecimento, não há

continuidade, mas sem traição não há mudança, modernidade.

Diferente é o sentido de traduzione (do latim trans-ducere,

transportar) que em campo cultural, especialmente o literário, não

deve se confundir com tradimento (traição), sob o risco de tradire

(trair) em lugar de tradurre (traduzir), subvertendo ou subtraindo o

sentido do texto original, adotando uma indesejável dinâmica:

tradução/traição, não aceitável por ocorrer em detrimento e não a

favor da plena compreensão da obra que se pretender traduzir.

Vale lembrar que o interesse pela preservação da arquitetura não

nasce de um fenômeno natural, nem corresponde a um simples

capricho cultural, tampouco se apresenta como um efêmero

modismo. Como se sabe, as primeiras formulações teóricas e as

práticas de conservação ganham expressão em um cenário cultural

movido por rápidas e profundas mudanças, como um necessário

compromisso para evitar perdas irreparáveis na transmissão da

herança cultural do passado às futuras gerações, ou seja, a partir de

um processo construído sobre bases culturais.7

A visão atenta à produção humana de tempos passados

corresponde, portanto, a uma reação às alterações, demolições e

6 Idem. (O grifo é nosso).

7 O relato da origem do conceito de restauro e do histórico da conservação do

patrimônio cultural é abordado no primeiro capítulo desta pesquisa. Ali são

mencionadas fontes de consulta para um aprofundamento do assunto.

225

descaracterizações de edifícios antigos e de partes da cidade como

ações corriqueiras em um contexto em que vigora uma visão

progressista voltada ao futuro. Entretanto, como já observado, é

comum reconhecer a contraposição de idéias em tempos de

mudanças. Assim, em meio às significativas alterações técnicas e

sociais, identificam-se as reações a essas mesmas alterações.

À primeira vista, essa resistência às mudanças poderia ser

identificada como uma ação conservadora de recusa em aceitar

novos valores. Nesse sentido, assumiria uma genérica conotação

pejorativa de obstrução ao progresso.

No entanto, convém observar outra conotação de conservação

cultural: aquela ligada à idéia de identidade e à articulação entre

memória individual e coletiva na apreensão do processo histórico. A

esse respeito, é oportuno recorrer às colocações do historiador

Ulpiano Bezerra de Menezes:

“A História não é a disciplina do passado, mas da diferença.

Claro que ela necessita do passado para identificar e

explicar a diferença. Porque pela diferença se compreende

a transformação, a dinâmica que rege novas vidas. Sem

uma idéia de passado que assegure divisar os sentidos, os

mecanismos, as lógicas, os vetores, os agentes da

diferença e da transformação, a mudança é ininteligível, e

apenas fator de angústia.” 8

A consciência histórica permite, conforme esse entendimento,

elaborar a noção de identidade, não pela negação das mudanças ou

simplesmente pela contraposição a elas, mas sim pela capacidade

de identificar, em meio a um contexto em transformação, uma matriz

de reconhecimento constituída por elementos com caráter de

permanência.

Frente a essa nova condição da sociedade de massa, a ativação da

memória implícita na conduta preservacionista configura-se então

como uma necessidade de reconstrução da própria identidade por

parte do indivíduo. São inúmeros os agentes a mobilizar o interesse

pela memória e a conciliá-lo com a apreciação das artes, condição

8 Em MIRANDA, D. (org.), 2007, p. 22.

226

fundamental para aceitar a pertinência da conservação dos bens

culturais. Entre esses ativos partícipes se destacam: historiadores,

arqueólogos, colecionadores, literatos, artistas e arquitetos. Não por

acaso, o museu é uma das principais instituições a integrar esse

mecanismo de estímulo e processamento da memória e de

interligação desta com a história.

É o próprio Meneses quem orienta a reflexão sobre a identidade: um

conceito que, a princípio, se define pela semelhança consigo mesmo.

No entanto, como alerta o historiador, o universo é por excelência

dinâmico. Diante da impossibilidade de se encontrar essa referência

imutável na realidade, pelo constante processo de transformação a

que está sujeita, seria então necessário reconhecer que a identidade

corresponde a um eixo de permanência em meio à transformação.

De modo equivalente, assinala um aspecto dual contido na noção de

identidade: a dialética entre a remissão a si mesmo e a relação com

o outro. Isto significa que não há como conceber a idéia de

identidade sem considerar a alteridade.

Essa compreensão, observa Menezes, pressupõe um processo

dinâmico de demarcação de fronteira entre a semelhança e a

dessemelhança, já que não existem focos de identidade absolutos,

mas sim conotações diversas de identidade, conforme as situações

em que os indivíduos envolvidos interagem.

Admitindo, portanto, a transformação como a dinâmica essencial da

vida, não está colocada a possibilidade de interromper esse

processo, mas unicamente de contê-lo, de contemporizar entre a

mudança e a conservação e, mais do que isso, participar ativamente

através da investigação, da atribuição de significados aos

mecanismos e agentes de mudança, assim como da seleção

criteriosa daquilo que se pretende preservar.

Fronteiras, abolição de fronteiras, restauro e projeto, novo e antigo,

manter e transformar.

Algumas das questões a serem postas seriam as possíveis

aproximações e inevitáveis contradições a serem destacadas neste

estudo que investiga as atuações de Lina Bo Bardi e Aldo Rossi,

como posturas que se reportam à experiência concreta da história da

227

arquitetura para embasar a concepção de projeto. A análise de Bo

Bardi é centrada nos projetos que envolvem preexistências de valor

documental e figurativo; o estudo de Rossi focado em seu método de

projeto que extrai da observação da cidade existente os elementos

essenciais para a formação de um repertório a ser empregado no

projeto do novo.

O primeiro aspecto a se destacar são as raízes culturais comuns que

envolvem a formação de ambos e que, apesar da diferença de idade

de cerca de dezessete anos, preservam vínculos com uma renovada

cultura humanista que se afirma a partir de meados do século XX.

Ambos podem ser identificados como herdeiros do ambiente cultural

milanês, marcado pela presença de personagens como Ernesto

Nathan Rogers, assim como pela influência de importantes veículos

de divulgação e discussão de idéias, entre os quais se destaca a

revista Casabella Continuità e o prosseguimento da versão atual,

Casabella, cujo corpo editorial representa importante posicionamento

favorável à aproximação entre tradição e inovação.

Além desses vínculos mais imediatos, convém sinalizar referências

teóricas comuns aos dois arquitetos presentes no cenário italiano a

se apresentarem como importantes fontes de posicionamento

ideológico. Citam-se entre os autores mais importantes Gramsci,

além de intelectuais como Claude Lèvi-Strauss e Jean Paul Sartre.

Com os mestres italianos aprenderam a não menosprezar a história,

ao contrário, a considerar os exemplos concretos da produção

arquitetônica não só erudita, mas especialmente a produção popular.

Quanto à consideração da história, Lina Bardi fala em “história

concreta e fecunda” e enfatiza o sentido da história como uma justa

medida entre a herança e a continuidade que, entretanto, não cerceie

as “amplas liberdades às possibilidades do arquiteto, hoje mais do

que nunca mediador responsável pelo modo de viver dos homens.”

Aldo Rossi, mais do que ao registro concreto da herança adquirida,

atenta à memória involuntária, à uma percepção afetiva e intuitiva,

como destaca em sua definição de “arquitetura analógica”.

228

Apesar dessa aparente contradição, de certo modo, é possível notar

confluências nos trabalhos de Rossi e Bo Bardi, na medida em que

ambos transitam no limiar entre o racionalismo e a intuição.

Pode-se indicar como afinidade entre a postura dos dois arquitetos a

valorização do ofício na associação que estabelecem entre certas

matrizes eruditas e as raízes populares materializadas na produção

vernacular.

Cada um a seu modo busca a simplicidade e comedimento, sem

abdicar da expressão pessoal. Se Lina Bo Bardi prioriza reexaminar

o procedimento técnico como manufatura, Aldo Rossi persegue a

estrutura permanente, a geometria básica, os ‘tipos’ da arquitetura

que se reapresentam no correr dos tempos. Um se atém às questões

mais concretas de um fazer, enquanto o outro evade para um

território fugidio do imaginário coletivo. Nem por isso é correto afirmar

que Lina Bo Bardi se distancie de uma ação poética, de um

componente surrealista e da recorrência à memória involuntária.

Lina Bardi, lúdica, diz que o interessante são as pessoas e portanto a

arquitetura deve amparar as atividades que animam a vida e que

proporcionam encontros. Rossi, trágico, apesar de afirmar que a

arquitetura é inseparável da vida civil, acaba por admitir que “os

lugares são mais fortes que as pessoas”. Dessa atitude decorre a

insistência nos motivos atemporais.

A esse respeito vale retomar Solà-Morales9 que cita David Hume,

segundo o qual a “experiência estética surge a partir da comoção

inesperada provocada por um reconhecimento aleatório, por uma

acumulação de imagens, por um excesso de sensações.” Como se a

referência a uma obra estivesse fora dela mesma, buscada através

de uma recordação, de um acontecimento, de um tempo histórico,

das origens, de determinados valores eleitos. Solà-Morales afirma

que todo debate sobre a técnica é um debate ético. Segundo o autor,

Heidegger – entre outros pensadores – ao refletir sobre a técnica e

seus produtos o faz a partir de um ponto de vista ético, na

perspectiva de uma reconstrução depois do niilismo nietzescheano.

9 Em Diferencias. Topografia de la arquitectura contemporânea. Barcelona: Gustavo

Gili, 2003, p. 38.

229

Essa preocupação com a ética é latente na obra dos arquitetos

estudados.

O desenho para Lina é informação, representação necessária à

execução, mas nem por isso impessoal e desprovido de expressão.

Para Rossi é essencialmente força de comunicação que supera a

representação técnica para adquirir autonomia, como afirma o

próprio Rossi, a conduzir o rumo do projeto. Quase mais encantador

que a própria obra construída, agrada pela beleza e pela força

expressiva, trágica, appunto.

Nenhum dos dois ignora, nem tripudia a preexistência. Buscam as

razões profundas que motivam as escolhas formais. Rossi, mais do

que Bardi, mitifica as origens e seus ecos na história.

Vale destacar que as tendências atuais do campo do restauro

compartilham de uma premissa básica: os bens legados do passado

requerem uma aproximação de cunho cultural que deve prevalecer

em relação às exigências práticas e às questões de ordem

econômica. As ações voltadas à preservação dos bens culturais

entendidos como patrimônio a se deixar enquanto herança cultural

para as gerações futuras envolvem um leque muito amplo que

compreende: registros, levantamentos, inventários, medidas de

manutenção e conservação (que, a rigor, evitam e retardam

intervenções mais invasivas). Incluem ainda a própria reflexão

teórica, as providências legais, as políticas públicas e as atividades

de educação patrimonial.

Beatriz Mugayar Kühl10

sintetiza as três vertentes principais a se

destacar no ambiente italiano da atualidade11

: a crítico-conservativa,

a conservação integral e a manutenção-repristinação.

Como adverte a autora, apesar de a reflexão sistemática no campo

disciplinar do restauro existir há pelo menos dois séculos, mesmo na

10

Para aprofundar essa abordagem, consultar: Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia: Ateliê

Editorial, 2008, pp. 81-101. 11

Idem. A autora explica o motivo pelo qual prioriza a análise das vertentes

debatidas na Itália, nos dias de hoje: especialmente pelo fato de esse país se

destacar no esforço de conceituação do restauro e na consolidação do seu estatuto

disciplinar, além de apresentar-se como um dos principais ambientes culturais

favoráveis à solidariedade entre a reflexão teórica e as práticas de conservação.

230

Itália, mas com maior intensidade no Brasil, grande parte das

intervenções atuais nos bens de valor patrimonial não considera os

preceitos consolidados ao longo dessa experiência. Não raras vezes,

prevalece o desrespeito ao bem que se declara querer preservar.

Como relata Kühl, nos últimos anos tem ocorrido um maior

intercâmbio de experiências e discussões entre os representantes da

corrente crítico-conservativa e da conservação integral, buscando-se

pontos de aproximação sem, contudo, anular os diferentes pontos de

vista entre essas duas vertentes.

Provavelmente o caminho de conciliação entre a reivindicação da

inserção do novo requerida pela intervenção contemporânea e o

respeito histórico-crítico ditado pela reflexão sistemática do campo do

restauro seja a posição defendida por Dezzi-Bardeschi: uma vez

assegurada a “conservação integral” das diferentes camadas de

tempo depositadas na obra, aceita também a ação de projeto como

mais uma camada a se sobrepor, isto é, “um projeto do novo,

compatível mas não mimético, isto é respeitoso, dialeticamente

consciente e, ao mesmo tempo, declaradamente legível e

autônomo”.12

Da epígrafe selecionada entre os escritos de Borges invoca-se um

necessário relativismo no curso das investigações, pela simples

certeza de que os conceitos mudam com o tempo, de que a história é

movida por tradição, mas também por traições. O que revela ser inútil

defender uma posição irredutível, de modo absolutamente inflexível,

apegar-se com unhas e dentes a aspectos que hoje se apresentam

imprescindíveis, irrefutáveis, sabendo-se que os conceitos não são

permanentes, mudam, como tudo, como a vida.

12

Apud KUHL, p. 85.

231

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