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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO THIAGO DO AMARAL MIRANDA O CONSENTIMENTO INFORMADO COMO FORMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DENTRO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE Brasília Dezembro de 2015

O CONSENTIMENTO INFORMADO COMO FORMA DE …bdm.unb.br/bitstream/10483/16283/1/2015_ThiagodoAmaralMiranda.pdf · de erro médico. A responsabilidade nesse caso é considerada como

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

THIAGO DO AMARAL MIRANDA

O CONSENTIMENTO INFORMADO COMO FORMA DE PROTEÇÃO

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DENTRO DA RELAÇÃO

MÉDICO-PACIENTE

Brasília

Dezembro de 2015

  2  

Thiago do Amaral Miranda

O CONSENTIMENTO INFORMADO COMO FORMA DE PROTEÇÃO DOS

DIREITOS DA PERSONALIDADE DENTRO DA RELAÇÃO MÉDICO-

PACIENTE

Monografia apresentada à Banca Examinadora

da Faculdade de Direito da Universidade de

Brasília como requisito para a outorga do grau

de Bacharel em Direito.

Brasília

2015

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Thiago do Amaral Miranda

O consentimento informado como forma de proteção dos direitos da

personalidade dentro da relação médico-paciente.

Monografia apresentada à Banca Examinadora

da Faculdade de Direito da Universidade de

Brasília como requisito para a outorga do grau

de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Msc. Bruno Rangel

Avelino

Brasília, de dezembro de 2015.

________________________________________ Professor Mestre Bruno Rangel Avelino Professor Orientador

________________________________________ Professor Doutor Malthus Galvão Membro da banca examinadora

________________________________________ Professor Mestre Thiago Luís Sombra Membro da banca examinadora

  4  

Aos meus pais, Mauro e Nadya; que tornaram tudo isso possível.

À minha tia, Dra. Katya; por me ensinar que o exercício da medicina

esta intimamente ligado à benevolência. Á Taynara, minha estrela guia.

Você é a luz que me inspira e ilumina meu caminho.

  5  

Agradecimentos

Agradeço ao professor Bruno Rangel, por sua dedicação e orientação.

Sua supervisão foi fundamental para o delineamento e evolução do tema.

Agradeço também aos professores Malthus Galvão e João Costa Neto

por se mostrarem disponíveis a contribuir nessa empreitada com seus

conhecimentos.

  6  

Homo, sacra res homini. Sêneca  

  7  

RESUMO A exigibilidade do consentimento esclarecido para a realização de procedimentos médicos é ponto pacífico na doutrina e jurisprudência brasileiras. Neste trabalho serão discutidos aspectos éticos e jurídicos relacionados à doutrina do consentimento informado com o foco na proteção dos direitos da personalidade do enfermo, em especial a autonomia. A autorização do paciente precisa ser precedida pela sua informação por parte do médico de pontos importantes, tais como a indicação do procedimento, os riscos envolvidos e as alternativas terapêuticas de modo a tomar uma decisão bem fundamentada. Podemos, assim, dividir o consentimento esclarecido em dois institutos jurídicos distintos: o dever do profissional de informar e o direito do paciente de consentir ou não com a realização do procedimento. É importante, do ponto de vista jurisprudencial, que se conheçam as características necessárias para um cumprimento eficiente do dever de informar. Em caso de falha de esclarecimento, o profissional poderá ser responsabilizado judicialmente, a depender do posicionamento jurídico da corte e do nexo de causalidade entre o dano e o risco omitido. Já o consentimento necessita de capacidade do agente para ser válido. No caso de agentes incapazes, o consentimento substituto, fornecido por seus responsáveis legais, é a via mais comum usada para se suprir a necessidade de autorização para realização de procedimentos. Como a vontade de um terceiro não pode interferir nos direitos de personalidade de um indivíduo, a autorização substituta deve necessariamente refletir a vontade presumida do paciente. De maneira a garantir mais eficientemente a proteção da autonomia do enfermo incapaz, vem ganhando força o consentimento antecipado. O testamento vital e a procuração para cuidados de saúde são duas modalidades de autorização adiantada que recentemente ganharam relevância no direito nacional, por meio da Resolução n˚. 1.995/2012 do CFM. Ambos institutos jurídicos merecem um estudo mais aprofundado. Palavras-chave: Direito Médico; Consentimento Informado; Direitos da Personalidade; Responsabilidade Civil.

  8  

ABSTRACT

Both Brazilian legal theory and legal precendent aknowledge the fact that medical doctors are required to obtain consent before performing medical procedures. This paper discusses ethical and legal issues related to the doctrine of informed consent, which aims at protecting the patient's personality rights, especially autonomy. The patient’s consent to a procedure must be preceded by their being informed by their medical doctor of important points such as the indication for a procedure, risks involved, and therapeutic alternatives. The patient relies on this information to make an informed decision. It is possible, thus, to divide informed consent into two distinct legal institutions: a professional duty to inform and a patient's right to either consent or not to a procedure. From the point of view of legal precedence, it is important to describe the requirements for effective compliance with this duty to inform a patient. In case a professional fails to inform, they may be held liable in court, and their conviction will depend on both the legal stance taken by the specific court and on the causal link between the damage to the patient and the risk the professional has failed to inform. On the other hand, consent is based on the agent's capability to provide it. In the case of incapable agents, substitute consent, given by the patient’s legal guardians, is the most common alternative when it comes to fulfilling the requirement of authorization to perform procedures. As the will of a third party ought not to interfere with the personal rights of an individual, the substitute authorization must reflect only the the patient’s will. As of late, in order to ensure an efficient protection of the autonomy of an incapably sick person, the concept of early consent has gained relevance. Because of this, the living will and the power of attorney and representation in matters of health care, two early authorization procedures, have also gained relevance in Brazilian law recently, through Resolution n˚. 1995/2012 CFM. Both legal devices deserve further study. Keywords: Medical Law; Informed Consent; Personality Rights; Civil Responsibility.

  9  

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................................ 11

1. CAPÍTULO 1 - O CONSENTIMENTO ESCLARECIDO: CONCEITO, ORIGENS E

FUNDAMENTAÇÃO

1.1. Consentimento livre e esclarecido: o conceito.................................................................. 14

1.2. Alterações no modelo de relação médico-paciente e seus reflexos jurídicos: a

origem...................................................................................................................................... 16

1.3. Alicerces legais e éticos para a exigência do consentimento livre e esclarecido: a

fundamentação......................................................................................................................... 21

1.3.1. O Direito Constitucional Brasileiro............................................................................. 21

1.3.2. O Direito Civil............................................................................................................. 22

1.3.3. O Direito do Consumidor............................................................................................. 25

1.3.4. Bioética e Ética Médica............................................................................................... 27

1.4. Notas sobre o histórico do consentimento esclarecido e seu desenvolvimento

jurisprudencial................................................................................................................. 29

2. CAPÍTULO 2 – O DEVER DE INFORMAR E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS

2.1. As subdivisões do dever de obter o consentimento esclarecido................................... 34

2.2. Os standards balizadores do conteúdo da informação fornecida................................... 36

2.3. Dos riscos a serem esclarecidos...................................................................................... 39

2.4. Do titular do dever de informação.................................................................................. 42

2.5. Âmbito de Responsabilização pela no Falha Dever de Informação................................. 45

3. CAPÍTULO 3 – O DIREITO DE CONSENTIR E A DEFESA DA AUTONOMIA

3.1.Requisitos para o consentimento válido do paciente...................................................................... 50

3.1.1. Vontade, capacidade civil e consentimento substituto: O Agente Capaz................. 50

3.1.2. Tratamentos experimentais, Leges Artis e a vontade do paciente: O Objeto

Lícito....................................................................................................................................................... 53

3.1.3. Informação adequada e redução a termo escrito: A Forma de Acordo com a

Lei.............................................................................................................................................................  54

3.2.Exceções ao dever de obtenção do consentimento informado.................................................... 56

3.2.1. Situações de urgência e de emergência........................................................................................ 56

3.2.2. Recusa do direito de ser informado............................................................................................... 57

3.2.3. Privilégio terapêutico......................................................................................................................... 59

3.3.O consentimento antecipado................................................................................................................... 60

3.3.1. O Testamento Vital............................................................................................................................ 60

  10  

3.3.2. Procurador para Cuidados de Saúde............................................................................................ 63

Conclusão............................................................................................................................................................. 65

Referências Bibliográficas.............................................................................................................................  69  

  11  

INTRODUÇÃO

A dor, a enfermidade e a morte são perigos que sempre rondam existência humana. Para

combater esses males alguns indivíduos da sociedade assumem o papel de curadores. A

atividade médica sempre esteve ligada com o alivio do sofrimento e o afastamento da morte.

Apesar de outrora constituir uma prática próxima da religião, os serviços de saúde hoje

buscam no método científico uma maneira de aprimorar cada vez mais sua capacidade

resolutiva.

O avanço das ciências médicas ensejou maior conhecimento sobre as doenças, maior

complexidade das condutas a serem tomadas e maior invasividade dos tratamentos. Houve

também mudanças na forma com que profissionais e pacientes se relacionavam. A evolução

das técnicas de diagnóstico e terapêutica foram acompanhadas de um grande encarecimento

dos procedimentos. Assim o processo de cura passou a ser intermediado por instituições

hospitalares, convênios de saúde e outras entidades despersonalizadas do ponto de vista

humano.

As referidas mudanças repercutiram no campo jurídico. O ato médico sempre esteve

envolvido com o núcleo de direitos mais importantes de todo ser humano. A vida, a

integridade física e a autonomia são alguns dos bens que podem ser afetados por erro do

profissional ou pela ocorrência de danos previstos por riscos inerentes a terapêuticas das mais

simples às mais complexas. Assim, é possível observar hoje uma maior litigiosidade na área

médica, até mesmo pela maior expectativa de resolução de problemas. No Brasil, esse

fenômeno é composto de fatores como: o aumento em números absolutos de atendimentos

médicos, as más condições de trabalho em hospitais, a procura cada vez maior, por parte da

população, do judiciário para solucionar conflitos sociais e, também, o aumento do risco de

intervenções mais invasivas e complexas.

A principal modalidade de ação na área médica é a demanda por ressarcimento oriunda

de erro médico. A responsabilidade nesse caso é considerada como subjetiva, fugindo ao

padrão do Direito do Consumidor, afinal estamos tratando aqui de um profissional liberal.

Dessa maneira, caso o paciente consiga prova que o profissional agiu com culpa, em qualquer

de suas modalidades de imperícia, imprudência e negligência, o médico deverá responder pelo

prejuízo causado. 1

                                                                                                               1 GARCIA, Iberê Anselmo. O risco permitido como critério de imputação do erro médico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista do Tribunais, 2006. p.1

  12  

Dadas a especificidade e a tecnicidade da área médica, a produção de provas que

demonstrem a culpa do profissional e o nexo causal entre o ato ilícito e o prejuízo é uma

tarefa complexa. Ademais, muitos danos ocorridos dentro da prática médica não são resultado

direto da ação do profissional, mas sim da ocorrência de danos previstos por riscos inerentes a

operações ou condutas mais invasivas e, por isso, com maior probabilidade de ocorrência de

eventos adversos.2

O aumento na complexidade e no risco das intervenções foi gradualmente acompanhado

pela evolução da doutrina do consentimento informado. O paciente agora necessitaria de

autorizar a realização de um procedimento mais arriscado, pois a ocorrência do efeito adverso

entraria na sua própria esfera de risco. Entretanto, consentimento não poderia ser fornecido

sem que o paciente tivesse obtido o conhecimento das características e riscos da conduta,

além da motivação da sua tomada e suas alternativas. Seu consentimento deveria ser

precedido do esclarecimento pelo médico.

A falha no dever de informar ou na obtenção do consentimento se torna hoje o ponto

focal dos processos contra médicos em muitos países.3 A maior facilidade de se comprovar os

fatos narrados e de se estabelecer o nexo de causalidade faz com que esse tipo de processo se

torne mais comum que os processos por erro médico em países como a Alemanha. Desse

modo, a doutrina estrangeira possui muitas considerações sobre o tema. As referências a

institutos, leis e autores estrangeiros neste trabalho buscam apresentar as mais recentes

discussões sobre o consentimento informado, bem como traçar considerações sobre pontos

pouco debatidos dentro de território nacional. Não se tem, neste estudo, o intuito de se

trabalhar com direito comparado, busca-se apenas enriquecer o debate sobre o tema.

O primeiro capítulo deste trabalho terá o objetivo de traçar um panorama do

consentimento informado. Inicialmente, será realizada uma introdução sobre o assunto em

questão. O conceito, histórico e fundamentos jurídicos e éticos do consentimento livre e

esclarecido de pacientes serão esclarecidos. Além disso, será apresentado um paralelo entre o

desenvolvimento da relação médico-paciente e o tratamento jurisprudencial do instituto.

No desenvolvimento do tema, o consentimento informado será divido em dois campos

mais amplos: o dever de informar e a direito de consentir. As especificidades de cada um

serão tratadas em um capítulo separado.

                                                                                                               2 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 441 3 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 46

  13  

O dever de informar diz respeito a obrigação do médico de esclarecer o paciente sobre a

conduta a ser tomada. O ato de informação é um aspecto freqüentemente questionado nas

ações que versam sobre o assunto. Os requisitos para que se avalie a completude, o objetivo e

a titularidade da informação serão elucidados nesse ponto do trabalho. Um importante tema a

ser tratado no capítulo é a relação entre o dano e a informação incompleta. A discussão do

âmbito de incidência do dever de informar e a extensão de sua proteção contra danos é um

tema controverso e especialmente importante na jurisprudência estrangeira.

O direito de consentir é uma proteção importante dos direitos de personalidade do

paciente. Que ele seja exigido para que se execute operações ou outros procedimentos dá ao

enfermo maior segurança e domínio de seu corpo. As situações em que o consentimento do

paciente é dispensada também serão abordadas, bem como os fundamentos dessa

flexibilização. A questão da autorização por pessoas incapazes ainda continua bastante

controversa. O consentimento fornecido por responsáveis legais pode não refletir a autonomia

do paciente, especialmente quando a incapacidade é transitória.

Uma questão especial a ser abordada no terceiro capítulo é a do consentimento

antecipado. Esse instituto tem assumido grande importância na Europa e Estados Unidos, sob

a dupla forma do testamento vital e da procuração para cuidados de saúde. O consentimento

antecipado procura trazer maior autonomia de vontade para pacientes que perdem sua

capacidade civil no decorrer de seu processo mórbido. Sua aplicabilidade é extremamente

comum em casos de enfermos portadores de patologias sem perspectiva terapêutica, sendo um

importante instrumento para a defesa da morte digna. Infelizmente, tanto a doutrina quanto a

jurisprudência brasileiras ainda se monstram reticentes ao tratar o tema. Recentemente, o

Conselho Federal de Medicina procurou endossar tais institutos, fato que, sem dúvida trará

força para o debate em todo o Brasil.

 

  14  

CAPÍTULO 1 - O CONSENTIMENTO ESCLARECIDO: CONCEITO, ORIGENS E FUNDAMENTAÇÃO

3.4. Consentimento livre e esclarecido: o conceito. Consentimento, conforme informa Miguel Kfouri Neto, é: “[…] o comportamento

mediante o qual se autoriza a alguém determinada atuação.”4. Nesse sentido, o consentimento

para o ato médico é uma permissão para que um profissional habilitado interfira na esfera

físico-psíquica do paciente, com o propósito de melhoria da saúde do próprio enfermo ou de

terceiro incapaz. Portanto, a justificativa da necessidade dessa autorização é, inicialmente, a

proteção do paciente, tendo como destino final a melhoria de sua saúde. Já no tocante ao

direito, podemos afirmar que a exigência do consentimento esclarecido prévio é uma forma de

proteção geral aos direitos de personalidade do indivíduo como, por exemplo, o direito à

integridade física e o direito à autonomia, além de uma reafirmação da importância da ética

médica.5

A necessidade de haver consentimento para a realização de procedimento médico é

defendida pela jurisprudência, por órgãos médicos e pela doutrina jurídica no Brasil.

Tribunais têm reafirmado que a falta de anuência expressa do paciente constitui violação do

direito de autonomia do receptor do serviço e do dever de informar do fornecedor. De modo

similar, órgãos médicos nacionais e internacionais como o Conselho Federal de Medicina

(CFM) e a Associação Médica Mundial (WMA, World Medical Association) têm emitido

documentos e resoluções reconhecendo a importância e a necessidade de se obter o

consentimento informado do enfermo. Já a doutrina nacional, influenciada em grande parte

por obras estrangeiras, tenta introduzir e adaptar à realidade pátria os conceitos que há algum

tempo tem sido debatidos nos Estados Unidos e na Europa. Um dos principais temas tratados

pelos autores brasileiros são as características do dever de informar e os requisitos para um

consentimento efetivo.

Para formar uma idéia inicial do conceito de consentimento informado, é necessário o

conhecimento dos elementos que devem estar presentes em uma autorização válida. De forma

apenas introdutória, podemos estabelecer que, de acordo com Miguel Kfouri Neto, são quatro

os requisitos principais para o consentimento do ato médico: “(1) ser voluntário; (2) dado por

quem seja capaz; (3) após ter sido informado; e (4) encontrando-se esclarecido.”6

                                                                                                               4 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 46 5 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 808 6 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 283

  15  

Não é suficiente obter apenas o consentimento do enfermo. Ele precisa ser livre, no

sentido de que não podem haver vícios de vontade7 na autorização, sob pena desta ser

reputada como anulável. O consentimento é, antes de tudo, uma manifestação externa da

vontade subjetiva do indivíduo. Assim sendo, também não pode o consentimento ser

concedido por agente que não esteja plenamente capaz, seja por idade, por patologia

psiquiátrica ou até mesmo por significativas diferenças culturais. Tal pessoa teria prejudicada

tanto a sua vontade quanto, em alguns casos, sua capacidade de processar as informações

fornecidas. Não obstante, recentes documentos legais como, por exemplo, a Lei de Proteção à

Pessoas com Deficiência reforçam a defesa da autonomia destes indivíduos e contém

dispositivos que ditam expressamente que estes sejam informadas sobre suas condições de

saúde.8

A explicação ao paciente das características de sua patologia, das hipóteses

diagnósticas, do plano de tratamento e de suas alternativas é essencial para que a

manifestação do seu consentimento esteja de acordo com a sua vontade. A informação deve

ser fornecida por profissional capacitado e deve ser inteligível para o doente. É necessário que

se adeque a linguagem ao nível intelectual do receptor9. Somente com a compreensão do

paciente pode haver o seu esclarecimento e, desse modo, a autorização apropriada para a

prática do ato médico.

O fornecimento de informação atua em sinergia com a manifestação da vontade,

aperfeiçoando a relação médico-paciente. Apenas mediante o cumprimento desses dois

requisitos, o ato médico estará de acordo com os princípios ético-jurídicos preconizados pelo

direito brasileiro e pelo regramento emanado pelos órgãos fiscalizadores da atividade médica.

Dessa forma, o profissional estará, em regra, salvaguardado diante de eventuais queixas

contra a ocorrência de danos inerentes a riscos previstos para o procedimento10, além disso

poderá contar com maior colaboração e cumplicidade do doente durante o tratamento. O

adequado fornecimento de informação e a correta obtenção da autorização para o tratamento

trará benefícios também ao paciente, como por exemplo: a segurança do cumprimento de sua

vontade e o respeito a sua autonomia. A autorização informada assume, assim, um duplo                                                                                                                7 Como, por exemplo, situações de coação ou de diminuição da capacidade de raciocínio. 8 Os referidos dispositivos estão contidos na Lei 13.146/2015, arts. 11-13. 9 Essa discussão será desenvolvida de forma mais específica no capítulo 2, quando forem apresentados os standards de informação. 10 Não se discute aqui a responsabilidade médica devido à imprudência, imperícia ou negligência. O erro médico ocasionado pela culpa não é, de modo algum, eximido pelo consentimento informado. Toda atividade médica pode ser considerada como uma obrigação de meio e, excepcionalmente, como obrigação de resultado (como, por exemplo, intervenções de cunho estético). A violação de tal obrigação ocasionada pela culpa resulta em responsabilidade civil por erro médico. A salvaguarda do consentimento informado diz respeito, como será melhor delineado adiante, aos riscos inerentes ao procedimento que podem se realizar mesmo sem erro do professional.

  16  

atributo de condição indispensável à formação do contrato de prestação de serviços,

preservando a expressão da liberdade fundamental do indivíduo de se recusar a sofrer dano a

seus direitos de personalidade. 11

Podemos concluir que o consentimento livre e esclarecido para o ato médico é a

anuência dada pelo paciente ao profissional que observa os requisitos supracitados. Assim,

sua validade dependerá do cumprimento do dever de informação do profissional e do

esclarecimento e vontade do agente capaz.

3.5. Alterações no modelo de relação médico-paciente e seus reflexos jurídicos: a origem.

A capacidade resolutiva da ciência médica, em termos de profilaxia, diagnóstico e

tratamento tem evoluído, de forma vertiginosa, pode-se dizer, desde o século XVIII.

Descobertas de técnicas de diagnóstico e tratamento, associadas a mudanças na atuação

governamental no campo da saúde e na própria percepção da população sobre o que é estar

saudável, pressionaram e pressionam a ciência médica a aperfeiçoar seus métodos de

abordagem constantemente. Essa pressão inovadora tem reflexos no mundo jurídico, pois,

com a capacidade resolutiva da medicina, aumentam de maneira diretamente proporcional os

riscos de dano ao paciente e as expectativas dos doentes. É inerente ao progresso uma

elevação da freqüência de eventos adversos decorrentes de práticas mais invasivas e com um

potencial maior de lesividade.12

A medicina dos séculos XVIII e XIX era marcada pela atuação do médico de família.13

Esse profissional, após sua formação em grandes centros, atuava nas cidades ou regiões rurais

de forma solitária e sem o auxílio dos recursos técnicos existentes hoje em dia. Seus serviços

se baseavam, em primeiro lugar, no precário conhecimento médico da época, o qual, por ser

menos complexo, não gerava a necessidade de especializações. Um mesmo profissional

(ainda que de forma relativamente ineficiente) era capaz de atender todos os tipos de

problemas e, secundariamente, de manter uma boa relação médico-paciente. Por isso, esse

profissional gozava de grande credibilidade e confiança junto à sociedade, o que muitas vezes

o revestia de certa aura de infalibilidade pela segurança e conforto que proporcionava aos

                                                                                                               11 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 52 12 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 814-815 13 Barros Júnior, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 100.

  17  

pacientes e o levava a tomar as condutas muitas vezes, baseado apenas em sua convicção. 14

Este modo de agir do médico é criticado hoje como sendo paternalista; ou seja, ao assumir

essa postura o profissional estaria decidindo o que é melhor para o assistido de acordo apenas

com a sua opinião, não levando em consideração a vontade do enfermo.15 Não eram comuns,

no entanto, relatos de descontentamento com a atuação médica daquela época, creditando-se

um eventual insucesso a forcas além da compreensão humana, como a vontade de Deus16.

Não negamos aqui a existência de hospitais e a presença de médicos que, devido ao fato

de atuarem apenas em uma determinada área, poderiam ser comparados aos modernos

especialistas.17 Contudo, o atendimento hospitalar, especialmente no Brasil, não possuía a

capilaridade dos médicos de família. À época, o pilar do serviço de atenção à saúde era o

médico de família. Ademais, mesmo no caso de médicos que clinicavam em hospitais,

podemos afirmar que a falta de uma total compreensão do funcionamento do corpo humano e

da sua capacidade de resposta a estímulos externos, associada a procedimentos mais invasivos

e lesivos, tornava imperiosa a cooperação do paciente, o entendimento das motivações para a

realização de tal processo e a compreensão dos riscos aos quais estaria sendo submetido.18 É

importante ressaltar que a anestesia foi concebida no século XIX19, já a prática cirúrgica vem

sendo realizada desde a antiguidade. Assim, os cirurgiões da antiguidade e da modernidade

pré-anestésica tinham o hábito de informar e esclarecer os doentes 20 , uma vez que

necessitavam de sua plena cooperação, afinal de contas os últimos teriam que suportar o

doloroso procedimento acordados e imóveis.

Em conseqüência, podemos afirmar que a circunstância determinante da prática médica,

nessa época, era o vínculo estabelecido entre o curador e seu paciente. É exatamente por isso

                                                                                                               14 GARCIA, Iberê Anselmo. O risco permitido como critério de imputação do erro médico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista do Tribunais, 2006. p. 32 15 LOPES, Fabio Firmino. A relação médico paciente: entre a atenção e a incompreensão. In: PEREIRA, Hélio do Valle; ENZWEILER, Romano José (Coordenadores). Curso de Direito Médico. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. p. 312. 16 KFOURI Neto, Miguel. A Responsabilidade Civil do Médico. Revista dos Tribunais, Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 57 17 Entretanto os mesmos atuavam de forma mais ampla que hoje realizando além de cirurgias abdominais e torácicas, procedimentos em pacientes ginecológicos, pediátricos e até neurocirurgias. 18 GARCIA, Iberê Anselmo. O risco permitido como critério de imputação do erro médico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista do Tribunais, 2006. p. 29 19 Em 16 de outubro de 1846 o dentista William Thomas Green Morton, de Boston, conduziu a primeira demonstração pública da anestesia por inalação no Hospital Geral de Massachusetts com a utilização de éter. Depois que Morton anestesiou o paciente, o cirurgião John Collins Warren realizou uma extração de um tumor de pescoço sem intercorrências. Pouco tempo depois disso, numa carta para o Dr. Morton, o médico e escritor Dr. Oliver Wendell Holmes propôs que o nome do procedimento fosse anestesia e anestesiado o estado a que o paciente fora levado. Para mais informações vide Breve história da anestesia geral dentro da obra de REZENDE, Joffre Marconde. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina. São Paulo: Unifesp, 2009. pp. 103-109. 20 Tal prática não pode ser comparada ao moderno consentimento esclarecido. Apesar da informação fornecida, tais médicos não tinham a prática de solicitar o consentimento do doente.

  18  

que a expressão relação cliente-profissional não é muito utilizada na área médica, por seu

enfoque nas dimensões contratual e mercantil. O termo predominantemente utilizado, relação

médico-paciente, enfoca a interação humana, personalíssima e lastreada na confiança. E é

essa confiança que sofreu grande impacto no desenrolar da história da prática médica.

Ocorre que, com o passar do tempo, o avanço tecnológico, a maior confiança depositada

nos procedimentos diagnósticos complementares em detrimento do conhecimento do

profissional, a massificação da medicina como meio único de atendimento à saúde, o

desconhecimento de direitos e deveres por parte dos médicos e dos pacientes, a maior

necessidade de especializações gerando cada vez mais interconsultas21, a automedicação, o

desrespeito aos preceitos éticos por profissionais, levando à iatrogenia associada à maior

divulgação das más práticas pela mídia22 modificaram brutalmente a maneira de se exercer a

medicina e também causaram um grande impacto na credibilidade de toda uma classe

profissional.23

A organização do sistema de saúde, visando o atendimento massificado, merece ser

destacada, pois foi um evento importante no processo de desacreditação do médico. A relação

personalíssima entre o paciente e o médico foi bastante enfraquecida quando, procurando um

pronto-socorro ou sendo atendido utilizando-se de um convênio, o enfermo se viu assistido

por alguém de quem não sabia sequer o nome.

Do ponto de vista dos médicos, também houve problemas. O avanço da tecnologia fez

surgir a necessidade de que, para o exercício de uma medicina atualizada e adequada, fossem

utilizados equipamentos complexos e caros. Tal situação, em grande medida, desestimulou a

prática profissional independente. A perda do caráter autônomo da profissão trouxe

conseqüências ruins para o modelo de atendimento do paciente, com o crescimento em

importância de valores como a produtividade e a lucratividade.

Concomitantemente, temos a multiplicação das demandas por reparação de erro médico

não só no Brasil como em diversos outros países.24 Em 2010, estimou-se que estavam

transitando, somente em São Paulo, cerca de 5 mil processos contra médicos, por alegadas

más práticas no exercício profissional, sendo que grande parte deles inclui arguição de

responsabilidade civil. 25 É importante ressaltar que juristas como Elias Farah expressam

                                                                                                               21 A consulta do médico generalista que não foi capaz sozinha de resolver o problema apresentado pelo paciente, tornando necessário o encaminhamento a um especialista é chamada de interconsulta. 22 FARAH, Elias. Atos médicos – Reflexões sobre suas responsabilidades. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 140. 23 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 295 24 FARAH, Elias. Atos médicos – Reflexões sobre suas responsabilidades. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 140 25 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 296

  19  

preocupação quanto à dificuldade que as cortes encontram em traçar distinções entre o erro

médico e o resultado desfavorável incontrolável, considerando equivocadamente este como

igual àquele, o que reforça a insegurança na prestação de serviços e encoraja o profissional a

uma prática cada vez mais distante, retraída e defensiva.26

Em resposta a tal cenário, no ano de 1992, a Associação Médica Mundial, em uma

reunião na Espanha, emitiu a Declaração de Marbella contendo reflexões e orientações acerca

das mudanças na relação médico-paciente. Também foi abordada em tal declaração a

caracterização da responsabilidade civil médica e o crescente aumento de reivindicações de

ressarcimento por erros médicos.

Outra conseqüência foi o abandono do modelo paternalista ultrapassado. A reação

previsível dos profissionais foi a de, diante de uma situação organizacional da saúde que

impunha a despersonalização do atendimento e a perda do caráter liberal da profissão,

começar a ver seus clientes como potenciais litigantes, assim agravando o distanciamento

entre médico e paciente27. Tal posicionamento, longe de gerar uma diminuição no número de

processos, aumentou ainda mais a insatisfação dos enfermos. Afinal, de forma proporcional à

elevação da litigiosidade se elevavam os encaminhamentos para especialistas, a solicitação de

exames complementares complexos e caros para a documentação do diagnóstico e a

burocratização da medicina.

O que se precisa entender é que a confiança permanece como fulcro da relação médico-

paciente. Esta não deverá ser mais gerada apenas pelo fato do profissional ser detentor do

diploma médico, mas sim por sua formação, recomendações e postura individual frente ao

paciente.28 Novas diretrizes precisaram ser delineadas de forma a estabelecer um novo tipo de

relação. Nesse novo modelo, cabe ao médico a responsabilidade pelas decisões técnicas,

expondo ao paciente às possibilidades de conduta a serem tomadas. Ao paciente incumbe

decidir consentir ou não a tomada dessas condutas, de acordo com suas necessidades e

características subjetivas.

Surge assim um novo modelo de relação médico-paciente, o modelo contratualista.

Neste padrão de relacionamento o médico preservaria a sua autoridade, consubstanciada no

conhecimento técnico e na experiência profissional, tendo o paciente participação no processo                                                                                                                26 FARAH, Elias. Atos médicos – Reflexões sobre suas responsabilidades. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 159. 27 André Gonçalves, em sua obra, ressalta o exemplo dos médicos alemães que, diante das extremas exigências das cortes deste país, procedem ainda hoje com atendimentos despersonalizados requerendo que o paciente assine uma infinidade de formulários de forma a tentar dirimir ações judiciais. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 441. 28 MAIA, Maurilio Casas. O princípio da proteção a confiança na relação médico-paciente: Da confiança cega à confiança médica informada. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 268.

  20  

de tomada de decisões após ser devidamente informado sobre as suas opções terapêuticas ou

diagnósticas.29

Assim, o consentimento esclarecido se torna não só um requisito jurídico para

fundamentar a tomada de uma conduta como também figura central na moderna concepção da

relação médico-paciente. Nas palavras de Miguel Kfouri Neto:

[…] O consentimento informado representa mais do que uma mera faculdade de escolha do médico, de dissenso (ou recusa) sobre uma terapia, ou mero requisito para afastar o espectro da negligencia médica. A obtenção do consentimento representa o corolário do processo dialógico e de recíprocas informações entre médico e paciente, a fim que o tratamento possa ter início.30

Não se considera aqui que uma melhor relação médico-paciente seja a panacéia para a

crescente onda de demandas judiciais e o desgaste da assistência à saúde. Entretanto, se

exercida com zelo profissional e de acordo com o novo modelo proposto, tal processo

dialógico pode se converter em poderoso instrumento de melhora da assistência à saúde e de

incentivo para que se cumpram os direitos do assistido. Reforçando esse posicionamento,

podemos mencionar a seguinte afirmação de Genival Veloso de França:

[...] Todos sabem que uma boa relação entre o médico e seu paciente é uma forma de melhor entrosamento, de melhor percepção dos problemas do assistido e uma maneira de estimular o interesse e a dedicação do profissional. Uma relação médico-paciente amistosa deixa o assistente e o assistido em condições de exercer tranqüilamente seus papéis. Infelizmente, por fatos os mais variados, esta relação, embora de forma não generalizada, vem se transformando numa tragédia, ou no mínimo um encontro desconfortável. Lamentavelmente, a deterioração da relação médico-paciente se apresenta como o motivo mais forte do aumento de ações de responsabilidade profissional.31

Reafirma-se que o consentimento informado é hoje um pressuposto tanto para o

exercício dos direitos de personalidade dos pacientes quanto para a prática médica embasada

na ética e na confiança mútua. Trata-se de um tema importantíssimo não só para o Direito

Civil como também para a prática médica cotidiana.

3.6.Alicerces legais e éticos para a exigência do consentimento livre e esclarecido: a

fundamentação.

                                                                                                               29 LOPES, Fabio Firmino. A relação médico paciente: entre a atenção e a incompreensão. In: PEREIRA, Hélio do Valle; ENZWEILER, Romano José (Coordenadores). Curso de Direito Médico. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. p. 312. 30 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 46. 31 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 288.

  21  

3.6.1. O Direito Constitucional Brasileiro

A Constituição Federal Brasileira de 1988 possui diversos dispositivos relacionados à

necessidade do consentimento informado livre e esclarecido. Desse modo, de forma direta ou

indireta, podemos afirmar que tal direito do paciente encontra-se embasado em certos

segmentos do texto constitucional.

Podemos afirmar que a saúde, seja pelo art. 6˚32 (que a define como um direito social),

seja pelo art. 19633 (que a define como um direito de todos), é considerada um direito básico

da população. Embora a Carta Magna tenha como objetivo maior desses dispositivos o

estabelecimento da saúde como um dever do Estado, não podemos deixar de considerar que

tal ação não tenha repercussões outras além da inicialmente pretendida. O direito à saúde

assegura ao cidadão a noção de que, ao ser atendido em uma instituição hospitalar, mesmo

que gratuita por estar vinculada ao poder público ou à organização de caridade, está a se valer

de um direito constitucionalmente protegido e não a ser beneficiado pela boa vontade de

terceiros. Nessa mesma perspectiva, direitos como o de informação não lhes devem ser

subtraídos, assim afirma Genival Veloso de França:

A saúde, dentre todos os direitos sociais, apresenta-se como um requisito essencial da dignidade humana, fundamento básico de qualquer estado democrático que tem como projeto o alcance da personalidade e da cidadania. Por isso a saúde não pode ficar circunscrita apenas nos seus aspectos psicofísicos, mas deve se estender aos limites permitidos à liberdade consciente do homem e da mulher. Na esteira deste pensamento, o chamado consentimento livre e esclarecido não deve ficar apenas entendido como mais uma regra na atividade profissional do médico, mas também no respeito a vontade do paciente em que o direito a saúde é um direito fundamental de cada ser humano. Esta é uma forma de garantir ao indivíduo a sua própria soberania. 34

Segundo o autor, o consentimento esclarecido é mais do que um pré-requisito ao exercício da

atividade médica, mas uma faceta do direito fundamental à saúde.

O direito ao consentimento esclarecido encontra-se embasado nos direitos da

personalidade. Tal conjunto de direitos constitui um dos mais importantes fundamentos para a

exigibilidade de autorização informada para a realização de procedimentos médicos. A tutela

                                                                                                               32 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 33 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 34 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.275

  22  

jurídica dos direitos da personalidade tem como suporte básico o princípio fundamental

expresso no art. 1°, III, da Constituição Federal, de dignidade da pessoa humana.35

A Constituição confere também proteção ao direito à informação. No inciso XIV36 do

art. 5˚, a Carta Maior assegura textualmente que, ressalvado o sigilo da fonte nos casos de

segredo profissional, a informação deve ser fornecida. É evidente que a proteção do direito à

informação deve ser aplicada de forma a se assegurar a obtenção prévia do consentimento

esclarecido para que se proceda o ato médico. Afinal, não há duvida de que um dos tipos mais

importantes de informação que pode ser fornecida a uma pessoa é aquela concernente ao seu

estado de saúde.

Cabe ressaltar também que a Lei nº 9.263 de 1996 (Lei do Planejamento Familiar), que

regula o § 7º37 do art. 226 da Constituição Federal, é um dos documentos legais que expressa

de forma mais explícita a necessidade do consentimento. Tais exigências estão presentes no

inciso I e no §1º38 do art. 10. Nesse caso, é evidente que o tratamento jurídico de um tema tão

importante quanto a esterilização humana voluntária deve se embasar acima de tudo na

proteção dos direitos humanos. Daí então a conclusão de que a exigência da informação e da

autorização do paciente, inclusive com a obtenção de termo escrito, constituem, segundo a

opinião dos legisladores, importante instrumento de proteção a valores defendidos pela

constituição como dignidade humana.

3.6.2. O Direito Civil

A fundamentação legal do consentimento esclarecido está tradicionalmente mais

presente na esfera do Direito Civil. Caso não se obtenha o consentimento, em regra, restarão

violadas a autonomia do paciente, o direito de não ser constrangido a tratamento médico e a

                                                                                                               35 Amaral, Francisco. Direito Civil: Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 7° ed. p. 284 36 Art. 5˚ [...] XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional 37 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 38 Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce; § 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.

  23  

capacidade de disposição do próprio corpo por exigência médica.39 Todos estes institutos

encontram-se enumerados no Capítulo III do Código Civil, são os direitos da personalidade.

O art. 1340 deste diploma declara que pode haver disposição do próprio corpo em caso de

exigência médica, já o art.1541 talvez a norma mais diretamente relacionada ao consentimento

esclarecido, estabelece que ninguém poderá ser constrangido a submeter-se, com risco de

vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Desse modo, a exigência de obtenção de

autorização para a realização de procedimentos de saúde pode ser considerada como um

pressuposto para que não haja lesão de direitos de personalidade. Nesse sentido, Miguel

Kfouri Neto afirma:

[…] A proteção dessa esfera físico-psíquica encontra-se sobre a tutela do direito geral da personalidade, pois o consentimento informado implica mais do que a mera faculdade de o paciente escolher um médico, ou de recusar um tratamento indesejado, mas na manifestação de liberdade como proteção contra invasões na esfera de qualquer pessoa humana. 42

Tal visão é compartilhada por Edmilson de Almeida Barros Junior, que menciona o

seguinte:

O consentimento esclarecido com base no princípio da informação adequada é válido para algumas modalidades de direito da personalidade. Mas até os limites legais. Uma dessas modalidades é a integridade física, a disposição do próprio corpo é proibida nos casos diminuam permanentemente essa integridade ou quando sejam contrários a lei e aos costumes sendo proibida a sua disposição mesmo quando consentida. O consentimento não vai ter efeitos jurídicos válidos. 43

Além da proteção aos direitos de personalidade, a exigência do consentimento

esclarecido também é um requisito para que a relação obrigacional entre o médico e o

paciente siga o regime preconizado pelo Código Civil de 2002. De acordo com a maior parte

da doutrina e da jurisprudência, a referida relação tem caráter contratual44. Segundo essa

definição, o consentimento atua como manifestação de livre vontade e concordância entre as                                                                                                                39 BARROS Júnior, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 110 40 Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. 41 Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. 42 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013p. 46 43 BARROS Júnior, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 111 44 BRANCO, Gerson Luiz Carlos . Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico. Revista dos Tribunais | vol. 733 | p. 53 | Nov / 1996 Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil | vol. 5 | Out / 2011 DTR\1996\582 p. 543

  24  

partes, sendo que essa autonomia é própria das relações jurídico-privadas que caracterizam o

contrato.45 Vale ressaltar a existência de hipóteses excepcionais, de atendimentos médicos que

não caracterizam uma relação contratual, como por exemplo o socorro a desmaiados no meio

da rua 46,.

Outra característica da relação contratual é a incidência do princípio da boa-fé, indicado

nos artigos 11347, 18748 e 42249 do Código Civil.50 A incidência da boa-fé objetiva na relação

obrigacional tem como efeito o surgimento de deveres anexos à obrigação principal, dentre os

quais os deveres de colaboração, lealdade e respeito às expectativas legítimas da outra parte.

51 Se considerarmos que o posicionamento do paciente em tal contrato pressupõe a

desigualdade do nível de conhecimento técnico, é fato que tais deveres anexos não poderão

ser satisfeitos sem que antes seja observado o dever de esclarecimento pelo médico.

Desse modo, não podemos avaliar de forma eficaz a obtenção do consentimento

informado sem que sejam avaliados seus fundamentos legais. Portanto, a autorização só

poderá ser levada em conta quando estiver em consonância com os direitos da personalidade e

as normas que regem as obrigações contratuais. A título de exemplo, o consentimento para

uma cirurgia desnecessária é inválido não só devido à incidência da norma que proíbe o ato

que causa diminuição permanente da integridade física.52, mas também pela violação do

princípio da boa-fé contratual.

Muitos desses princípios, especialmente os concernentes a obrigações contratuais, são

aplicados de forma muito similar no direito do consumidor, de forma que passaremos, a

seguir, a tratar desse tópico.

3.6.3. O Direito do Consumidor

                                                                                                               45 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.277 46 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 83 47 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 48 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 49 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 50 MIRAGEM, Bruno Nuvens Barbosa. Responsabilidade Civil Médica no Direito Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 6 51 Ibidem. p. 6 52 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 50

  25  

O Código de Defesa do Consumidor (CDC, Lei n˚ 8.078/90) surgiu com o objetivo de

regular as relações de consumo entre pessoas físicas e/ou jurídicas no Brasil. A relação entre

médico e paciente, embora haja controvérsias doutrinárias a respeito, tem caráter, na maioria

das vezes, contratual e é caracterizada, mais uma vez de forma não unânime, como uma

relação de consumo.

O consentimento informado leva ao consumidor a oportunidade de ter o conhecimento

prévio do contrato que versará sobre o serviço de saúde disponibilizado e de avaliar, dentre as

opções apresentadas pelo profissional, qual procedimento indicado teria melhor relação custo-

benefício para o seu caso específico.

Assim, o médico tem o dever de informar o cliente acerca das condições prévias do

contrato, como, por exemplo: o currículo e a qualificação do profissional, forma de

pagamento de honorários, utilização de convênios, etc. O médico tem ainda obrigação de

recomendar a melhor solução para resolver determinado problema de saúde, seja ela o

repouso, o tratamento medicamentoso ou a intervenção cirúrgica. Deve, ademais, alertar o

paciente de possíveis riscos à saúde ou à vida a que será submetido. 53

De acordo com Bruno Miragem54, o dever de informação e esclarecimento constitui

pressuposto básico da relação de consumo entre médico e paciente e encontra-se positivado

no sistema jurídico brasileiro nos arts. 6.º55 , 3156 , 4657 e 5158 do CDC.

Gerson Branco classifica a necessidade do consentimento informado em deveres

comuns e específicos do profissional médico. Segundo ele o médico, atuando como

profissional prestador de um serviço, possui deveres comuns a todos os outros que prestam

                                                                                                               53 BRANCO, Gerson Luiz Carlos . Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico. Revista dos Tribunais | vol. 733 | p. 53 | Nov / 1996 Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil | vol. 5 | Out / 2011 DTR\1996\582. p. 543 54 MIRAGEM, Bruno Nuvens Barbosa. Responsabilidade Civil Médica no Direito Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 6 55 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; 56 Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. 57 Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. 58Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; [...]§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: [...]II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.

  26  

serviços e deveres específicos de sua profissão. Entre os deveres gerais podemos mencionar o

dever de informação e entre os deveres específicos o dever de aconselhamento.59

O autor, portanto, entende que o médico estaria vinculado contratualmente à já mencionada

obrigação de informar e ao dever específico de aconselhamento. As definições para tais

categorias foram definidas no trecho a seguir:

O dever geral de informação está relacionado com a necessidade do médico, ao tratar com seu cliente numa fase pré-contratual, de estabelecer as condições contratuais para utilização de seus serviços, como, por exemplo, o preço da consulta, os convênios com que trabalha, sua especialidade e todas aqueles elementos necessários à decisão do cliente em contratar ou não. Além disto, quanto à consulta, que já é execução de sua prestação, deve realizá-la de forma que o cliente possa compreender o que se passa com sua saúde, utilizando vocabulário compreensível e claro. Apesar da inexistência de limites absolutos sobre o que seja informar e aconselhar, entende-se que o aconselhamento já é a transmissão de um conteúdo de informações sobre o próprio tratamento e estado de saúde do paciente, fornecendo condições ao paciente para decidir sobre determinado tratamento, inclusive pesando os riscos a que irá se submeter.60

Da mesma forma, consistirá também dever de aconselhamento a indicação ou o

encaminhamento para um especialista que possa, na opinião do médico assistente, suprir de

forma mais adequada as necessidades do paciente.61

Gilberto Lima se refere ao dever geral de informação como princípio da transparência

do direito do consumidor. Tal princípio é definido por Cláudia Marques da seguinte forma:

Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual isto é na fase negocial dos contratos de consumo62

Ambos autores concordam que o consentimento é parte essencial de um processo que se

move na direção de estabelecer limites aos direitos e deveres do prestador e do consumidor.

Caso não haja observância do dever de informação, o objeto do contrato contaminar-se-á de

vício atacável por via judicial.63

                                                                                                               59 BRANCO, Gerson Luiz Carlos . Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico. Revista dos Tribunais | vol. 733 | Nov / 1996 Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil | vol. 5 | Out / 2011 DTR\1996\582. pp. 74, 75. 60 Ibidem. p. 74. 61 Ibidem. p. 74. 62 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo registro das relações contratuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. apud Lima, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 90 63 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 91

  27  

Gerson Branco menciona limites a essa espécie de obrigação contratual. Segundo o

doutrinador, o dever de informação não dá ao profissional permissão para abalar psíquica e

emotivamente o seu cliente. Tal afirmação certamente põe o profissional em uma situação

difícil, pois a sensibilidade de cada indivíduo pode variar de forma extraordinária,

principalmente se considerarmos pessoas em situação psicológica vulnerável, abaladas por

sua doença. Como se poderia, então, adivinhar se uma informação necessária para o efetivo

consentimento do tratamento será ou não nociva? O autor mencionado não indica uma

resposta, mas recomenda que, por prudência, “caso o paciente não receba todas as

informações sobre seu problema, o médico deve informar aos familiares que tenham

ascendência sobre o doente.” 64

3.6.4. Bioética e ética médica

A subsunção da prática médica ao crivo dos preceitos éticos nunca foi algo estranho aos

profissionais da área. Entretanto, a noção de participação do paciente no planejamento de sua

estratégia diagnóstica ou terapêutica como pressuposto de um exercício profissional em

consonância com a deontologia médica é algo que não seria tão comum para clínicos do início

do século passado e final do retrasado. Nessa época, a ascensão da ciência como meio único

de se atingir o bem comum e o enraizamento no imaginário popular da idéia do progresso

deram exacerbado poder àqueles que detinham o conhecimento.

Infelizmente, apesar de tal período histórico ter sido marcado por notável

desenvolvimento científico, vimos que, ao contrário do que se pensava na época, nem todo

progresso tecnológico é completamente positivo. Um dos fatos que mais abalou a opinião

pública da época e que gerou conseqüências que se preservam na atualidade foi a vinda a

público de relatos de experiências realizadas com grupos vulneráveis de seres humanos sem

que houvesse preocupação com a proteção a seus direitos nos campos de concentração

nazistas e também em território americano.65

                                                                                                               64 BRANCO, Gerson Luiz Carlos . Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico. Revista dos Tribunais | vol. 733 | p. 53 | Nov / 1996 Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil | vol. 5 | Out / 2011 DTR\1996\582. p. 74 65 São citados aqui aos experimentos realizados nos campos de concentração nazistas em judeus e em prisioneiros de guerra, em sua maioria russos e ao estudo de Tuskegee, cidade localizada no sul dos Estados Unidos . No primeiro caso, sob o pretexto de tentar delimitar o limiar da resistência do corpo humano a temperaturas e a pressão extremas os pesquisadores nazistas denominavam como experimentos verdadeiras sessões de tortura. Já a segunda referência diz respeito a um estudo realizado entre 1932 até 1972 pelo U.S. Public Health Service. A pesquisa tinha como objetivo de compreender a progressão natural da sífilis não tratada. Assim, sob a crença de estarem receber tratamento gratuito, um grupo de trabalhadores rurais negros foi acompanhado durante o período da pesquisa sem a aplicação de qualquer medicação apesar de desde 1940 a penicilina ser validada como tratamento padrão para essa patologia.

  28  

Como reação a tais práticas houve uma grande mudança na concepção do que seria ou

não permitido na ciência, assim a idéia de busca ao progresso sem limitações foi sepultada.

Desse modo, foi editado em 1948 o Código de Nuremberg. Tal norma internacional

representou o grande marco da resposta ético-jurídica às intervenções científicas não

autorizadas. Nessa esteira, o consentimento livre e esclarecido dos participantes tornou-se

parte crucial de qualquer projeto de pesquisa. O art. 1˚ do referido Código dispõe que o

consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial para qualquer pesquisa

moderna.66 Temos também a criação em vários países de comitês de ética em pesquisa que

passariam a fiscalizar a aplicação de regras referentes a estudos científicos.

De forma reflexa, a própria prática médica diária passou a atribuir maior importância ao

consentimento e à cooperação dos pacientes. Tal constatação, associada a mudanças

socioculturais, modificou a visão que os pacientes tinham de seus próprios direitos de decisão,

inclusive no que diz respeito a escolhas para as quais não estariam tecnicamente capacitados.

Essa tomada de consciência terminou por influenciar decisivamente não só o processo de

modificação da relação médico-paciente como também a interpretação do papel da autonomia

do enfermo no novo modelo de cuidado a saúde, como já foi referido aqui. Outro reflexo

direto dessas mudanças foi edição da Declaração de Lisboa da Associação Médica Mundial

de 1981 cujos principais temas foram os direitos do paciente. A organização buscou nesse

documento orientar a prática médica no sentido de reforçar o respeito à condição vulnerável

do enfermo. Damos destaque ao reforço da necessidade ‘a obtenção do consentimento

esclarecido que figura nos princípios de número 367 (que trata do direito a autodeterminação)

e768 (referente ao direito a informação)

No Brasil, as instituições reguladoras da ética médica também estão de acordo com esse

entendimento. A ação mais tangível nesse sentido encontra-se em alguns dispositivos do                                                                                                                66 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 108 67 3. Right to self-determination: a. The patient has the right to self-determination, to make free decisions regarding himself/herself. The physician will inform the patient of the consequences of his/her decisions. b. A mentally competent adult patient has the right to give or withhold consent to any diagnostic procedure or therapy. The patient has the right to the information necessary to make his/her decisions. The patient should understand clearly what is the purpose of any test or treatment, what the results would imply, and what would be the implications of withholding consent. c. The patient has the right to refuse to participate in research or the teaching of medicine. 68 7. Right to information: a. The patient has the right to receive information about himself/herself recorded in any of his/her medical records, and to be fully informed about his/her health status including the medical facts about his/her condition. However, confidential information in the patient's records about a third party should not be given to the patient without the consent of that third party. b. Exceptionally, information may be withheld from the patient when there is good reason to believe that this information would create a serious hazard to his/her life or health. c. Information should be given in a way appropriate to the patient's culture and in such a way that the patient can understand. d. The patient has the right not to be informed on his/her explicit request, unless required for the protection of another person's life. e. The patient has the right to choose who, if anyone, should be informed on his/her behalf.

  29  

Novo Código de Ética Médica (NCEM – Resolução 1.931/2009 do CFM). O Código dispõe

em seu Capítulo inaugural – Princípios Fundamentais – VI, o princípio da beneficência e não

maleficência e os principais preceitos éticos da medicina, presentes no Juramento de

Hipócrates, que devem guiar toda ação do profissional incluída a prática do dever de

informação. Mais especificamente nos artigos 22 a 24 do NCEM, constantes no Capitulo IV

(direitos humanos), o médico é proibido de praticar certas condutas, tais como deixar de obter

o consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o

procedimento a ser realizado, exceto em caso de risco iminente de morte. O profissional deve

sempre respeitar a dignidade humana, sendo-lhe proibido restringir o direito do paciente de

decidir livremente sobre o seu bem estar. 69

Assim, a necessidade de informar e o respeito à vontade do enfermo devem constituir os

pilares da prática médica atual. A obrigação de cunho ético é tão fundamental que autores

como Genival Veloso França afirmam que o paciente deve ser informado mesmo que seja

incapaz e que seus pais ou responsáveis tenham tal conhecimento, afinal ele tem o direito de

ser esclarecido, principalmente acerca de precauções essenciais. O entendimento sob o prisma

ético não teria a mesma inflexibilidade da lei, pois certas decisões, mesmo que oriundas de

indivíduos civilmente incapazes, devem ser levadas em conta e discutidas com aqueles que

são legalmente responsáveis por esses indivíduos, especialmente quando se avaliam situações

mais delicadas.70

3.7.Notas sobre o histórico do consentimento esclarecido e seu desenvolvimento

jurisprudencial

A prática do esclarecimento, o fornecimento de informação e o pedido de

consentimento não eram tão estranhos à prática médica do passado. É bem verdade que os

clínicos e cirurgiões do início dos séculos anteriores, apesar de tomarem tais medidas, não

concordavam com a participação ativa do doente na escolha de seu plano terapêutico. Mesmo

assim, como já foi mencionado, muitos deles tinham o costume de informar e de pedir a

autorização do paciente para a execução de um procedimento. Essa prática encontrava

fundamento mais na moral pessoal do profissional do que no direito.

Desse modo, é interessante questionarmos quando foi que o consentimento deixou de

ser um problema da ética pessoal e ganhou os tribunais. Miguel Kfouri Neto menciona em sua

                                                                                                               69 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 109 70 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.250

  30  

obra o primeiro caso registrado que punha em questão o direito de informar ocorreu em 1767.

O trecho do autor encontra-se transcrito a seguir:

ê[…] A primeira referencia a consentimento e informação data de 1767: Na Inglaterra, um paciente, Sr. Slater. Procurou o Dr. Baker, que atuava junto ao Dr. Stapleton, para dar continuidade ao tratamento de uma fratura óssea em sua perna. Os dois médicos, sem consultar o paciente, ao retirarem a bandagem, desuniram o calo ósseo, propositadamente, com o objetivo de utilizar um aparelho, de uso não convencional, para provocar tração durante o processo de consolidação. O paciente foi à Justiça acusando os médicos de terem provocado por ignorância e imperícia nova fratura, causando danos desnecessários, além de não o terem informado ou consultado sobre o procedimento que seria realizado. Com o objetivo de esclarecer os detalhes do caso, foram utilizadas testemunhas peritas, ou seja, outros médicos reconhecidamente competentes nesta área para darem sua opinião sobre o ocorrido. Os dois médicos que testemunharam como peritos foram unanimes em afirmar que o equipamento utilizado não era de uso corrente, que somente seria necessário refraturar a lesão óssea no caso de estar sendo muito mal consolidada, e, finalmente, que eles somente realizariam uma nova fratura em um paciente que estivesse em tratamento com o seu consentimento. O paciente alegou, inclusive, que teria protestado quando o procedimento foi realizado, solicitando que o mesmo não fosse levado adiante. A Corte condenou os médicos por quebra do contrato na relação assistencial com o paciente. […]. Na sentença ficou claro que o juiz estava preocupado tanto com a falta de consentimento quanto com a falta de informação. Vale lembrar que, naquela época, era prática dos cirurgiões informar os pacientes sobre os procedimentos que seriam realizados devido à necessidade de sua colaboração durante as cirurgias pois ainda não havia anestesia. 71

Tal julgado foi emblemático, uma vez que menciona a falta de consentimento e de

informação tanto como causa de pedir quanto como fundamentação da sentença. É claro que o

embasamento legal da necessidade de autorização esclarecida não foi o mesmo de hoje. A

quebra de um contrato que pressupunha o dever de informar e a necessidade de consentir foi o

ponto focal da sentença. Não se cogitava ainda que havia em tal caso a violação de direitos

que não estivessem definidos pelo instrumento privado. Mas isso acabou sendo modificado

com o tempo.

Nos Estados Unidos da América em 1914 foi julgado o caso Schloendorff vs. Society of

New York Hospital. Em janeiro de 1908, a Sra. Mary Schloendorff foi internada devido a

uma dor epigástrica associada a massa abdominal. Os médicos assistentes a informaram da

necessidade de se realizar um “exame de éter”, nomenclatura utilizada para cirurgias de forma

geral, pois o éter era o principal anestésico da época. A paciente relatou em seu testemunho

que foi enfática ao referir sua recusa em ser submetida a tratamento. Assim, foi obtido o

consentimento apenas para a realização do exame diagnóstico (“de éter”). Entretanto, a

autora, portadora de um fibroma, teve o tumor extraído cirurgicamente. Houve agravamento

do estado de saúde da paciente que foi acometida por um processo infeccioso. O mesmo                                                                                                                71 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 47 (grifo nosso)

  31  

evoluiu para gangrena dos dedos da mão, tendo estes posteriormente sido amputados. A

paciente processou o hospital pelo ocorrido, alegando, entre outras coisas, o descumprimento

de sua vontade. 72

Perdendo na instância inicial, a autora recorreu até que seu caso fosse avaliado pelo

Tribunal de Apelações de Nova York (New York Court of Appeals). Em decisão

emblemática, o juiz Benjamin Cardozo destacou que todo ser humano adulto e mentalmente

são tem o direito de determinar o que será feito com seu próprio corpo. Segundo o juiz,

cirurgiões que operam sem a autorização dos pacientes estão realizando uma agressão, sendo

possível sua responsabilização por perdas e danos. Na decisão foi afirmado que se excetuam a

essa regra situações de emergência em que o paciente esteja inconsciente e o médico necessite

agir com urgência. 73

Um fato interessante sobre o caso é que a solicitação de indenização da autora foi

completamente negada. Na causa em questão a parte contrária era um hospital de caridade de

Nova York. A sentença foi veemente em afirmar que instituições sem fins lucrativos não

poderiam ser processadas por atos seus ou de seus prepostos. Esse princípio, o qual não

sobreviveu até os dias de hoje, ficou conhecido no direito americano como the Schloendorff

rule.

Desde a divulgação desse caso, a jurisprudência norte-americana vem desenvolvendo

seu entendimento em relação ao consentimento. Um caso emblemático é Salgo v. Leland

Stanford University Hospital (1957), em que o paciente consentiu à realização de um

procedimento, mas não foi devidamente informado do risco de paralisia advindo da operação,

paralisia essa que acabou ocorrendo. A decisão reputou o dever de informar como pré-

requisito do consentimento.

Já o caso Natanson v. Kline (1960) ensejou uma sentença que afirmava que o dever de

informar não estaria cumprido se o paciente não viesse a ser suficientemente esclarecido.

Outra decisão digna de menção é a do caso Canterbury v. Spence (1972) em que a

forma de analisar a completude do dever de informar foi alterada. Nos Estados Unidos, antes

desta época, o dever de informar restaria cumprido caso o profissional mencionasse aquilo

que os outros profissionais normalmente informavam (physician-based standard of

disclosure). Após a sentença em questão, o entendimento de alguns tribunais mudou. O dever

                                                                                                               72 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 48 73 No texto original da decisão, foi afirmado pelo juiz: “Every human being of adult years and sound mind has a right to determine what shall be done with his own body; and a surgeon who performs an operation without his patient's consent commits an assault for which he is liable in damages. This is true except in cases of emergency where the patient is unconscious and where it is necessary to operate before consent can be obtained.”

  32  

de esclarecimento passou, em alguns estados americanos, a ser medido pela capacidade do

profissional de garantir que um paciente capaz tenha informações suficientes para tomar uma

decisão adequadamente (objective patient-based standard of disclosure)74.

Houve também ações direcionadas à proteção dos direitos do paciente em países que

não os Estados Unidos. A Constituição Portuguesa de 1974, por exemplo, em seu artigo de

número 25, conferiu proteção aos direitos da personalidade, entre eles o direito à integridade

físico-psíquica e o direito à liberdade de vontade. Um dos resultados desse dispositivo foi o

reforço da exigência de autorização esclarecida em Portugal.

Tribunais europeus, em um período mais recente, também se manifestaram sobre o

tema. A Corte de Cassação Italiana afirmou em sentença de 1982 que o cirurgião, antes de

proceder à operação, deve obter o consentimento válido do paciente. Tal ato é essencial para a

licitude do ato médico. A gravidade da intervenção deve ser ponderada sem prescindir de uma

avaliação séria e científica e comunicada ao paciente, por meio de palavras acessíveis,

indicando a ele as possibilidades razoáveis de sucesso, que justificariam o ato médico como

oportuno, e as eventuais negativas, que o desaconselhariam. 75

Já a Corte de Cassação Francesa, em 1997, cassou e anulou um julgado ao fito de

condenar o médico que realizou uma colonoscopia para retirada de pólipo, a qual resultou em

perfuração intestinal, risco do qual o paciente não havia sido previamente informado.

Fundamentou-se a condenação não na imperícia do profissional, mas sim na omissão da

informação a paciente sobre o risco de perfuração no decurso daquele procedimento cirúrgico.

Considerou-se que cabe ao médico a prova de haver cumprido a obrigação de informar os

riscos do tratamento a ser realizado, devendo ele obter, com antecedência, o consentimento

informado – ausente no caso sob exame. 76

Podemos perceber que, em retrospecto, cada decisão apresentada contribuiu de certa

forma para o delineamento da prática do consentimento informado. Hoje é indiscutível a

necessidade de autorização do paciente para a realização de procedimentos, embora a questão

seja muito mais profunda do que pode parecer à primeira vista. A evolução constante do

conhecimento biomédico associada com alterações no modelo de atenção a saúde podem ser

prejudiciais à defesa da autonomia dos pacientes em situações tão dramáticas quanto o

processo de adoecimento. A proteção jurídica, entretanto, não deve se enrijecer a ponto de se

                                                                                                               74 SMITH, George P. The Vagaries of Informed Consent. Indiana Health Law Review. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 117. Tais conceitos serão melhor discutidos no próximo capítulo. 75KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 47 76Ibidem. p. 47

  33  

tornar um catalizador para a dissolução da relação médico-paciente, fazendo do processo

dialógico entre doente e profissional um duelo onde cada parte busca, primeiro, se

salvaguardar de qualquer prejuízo e, depois, se preocupar em cooperar com a outra. Com este

objetivo o tema do consentimento esclarecido será discutido a seguir.

  34  

CAPÍTULO 2 – O DEVER DE INFORMAR E SUAS IMPLICAÇÕES

JURÍDICAS

3.8.As subdivisões do dever de obter o consentimento esclarecido

O dever de informar e o direito de consentir, longe de adquirirem uma forma definitiva

de imediato, são institutos em plena evolução. Muito de seu formato atual se deve a elementos

advindos da interpretação de tribunais em casos concretos. Seja por decretos da corte, seja por

uma reação por parte dos profissionais e empresas, a prática do consentimento esclarecido

vem sendo modificada visando uma maior proteção da autonomia do paciente e da segurança

do médico.

O consentimento esclarecido pode, diante do que já foi estabelecido, ser considerado

um reflexo da autonomia pessoal e um pré-requisito para a prática do ato médico. Seu

conceito pode ser dividido em duas obrigações principais: o dever de informar e o dever de

obter o consentimento do paciente (ou, por outro lado, o direito de consentir do enfermo).

Muitas vezes o próprio direito à informação irá assumir um significado autônomo, como por

exemplo no caso da revelação de resultados de testes para o vírus HIV ou de exames

genéticos. O mesmo ocorre em casos de diagnósticos de doenças que não possuem

possibilidade terapêutica, nesse caso o dever de informar encontra-se desacompanhado do

consentimento para uma terapia. O consentimento também pode vir desacompanhado de

dever de informação, como por exemplo nos casos de expressa recusa do paciente de ser

esclarecido sobre sua doença.

A divisão mencionada tem um importante reflexo no direito americano, gerando

implicações importantes do ponto de vista processual. Os casos envolvendo o consentimento

esclarecido nos Estados Unidos podem ter duas vias de fundamentação denominadas battery e

negligence. A diferenciação irá depender de qual obrigação ou direito foi lesado na situação

fática.

O tort of battery consiste em uma interferência intencional no corpo de outra pessoa

sem que haja causa de justificação.77 O ato médico realizado sem a autorização de seu

receptor, ou com a recusa deste, é interpretado como uma injusta lesão ao direito à integridade

física. Sua fundamentação legal se encontraria nos direitos da personalidade do individuo.

Não é necessário o estabelecimento de qualquer dano ou de causalidade, tratando-se de um

tort per se. Dentro do sistema de Common Law isso quer dizer que o autor da ação tem                                                                                                                77 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 494

  35  

direito ao ressarcimento dos danos materiais e também aos nominal damages, ou seja a uma

indenização pela pura lesão do direito sem que haja haja prejuízo de cunho patrimonial.78

Já as ações por negligence tratam de casos em que, embora houvesse consentimento

para o ato médico, houve insuficiência na quantidade e qualidade da informação fornecida

pelo profissional, de acordo com os parâmetros legalmente estabelecidos.79 Em tais ações o

paciente não só tem o ônus da prova como também fica incumbido de provar num juízo de

“balance of probabilites”, ou seja, o autor da ação deve, embasado em argumentos e provas

materiais, demonstrar que, caso o esclarecimento tivesse sido adequado, não teria consentido

com a intervenção.80

Dessa forma podemos ver que, devido às diversas implicações materiais e processuais

acerca do tema, não se pode tratar o consentimento esclarecido como um todo. Assim,

adotaremos aqui a distinção entre o dever de informar (fornecido pelo médico) e o direito de

consentir (fornecido pelo paciente).

A atual concepção de consentimento livre e esclarecido não tem as mesmas

características daquela praticada ocasionalmente pelos médicos do passado. Para melhor

compreendermos tal instituto e assumirmos uma fundamentada posição crítica sobre o

entendimento que as cortes e os doutrinadores vêm assumindo sobre o assunto, devemos tecer

algumas considerações.

A primeira delas é sobre a modificações na maneira como se entendem o dever de

informar e seus componentes básicos. Diante de um alegado caso de informação insuficiente,

o juiz deverá escolher um padrão para mensurar o grau de cumprimento do dever pelo

profissional. A opção entre uma análise objetiva e uma subjetiva se relaciona diretamente com

a visão que o julgador tem do direito a informação e, por isso, não consiste em uma resposta

fácil. Também deve ser levada em conta a visão doutrinária sobre o que se preceitua como

núcleo mínimo dos conhecimentos a serem repassados para o paciente.

Por outro lado, o direito do paciente de consentir ou de recusar um tratamento também

tem suas peculiaridades. Tal prerrogativa só pode ser entendida a partir de uma análise de

seus princípios e fundamentos.

                                                                                                               78 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 495 79 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 108 80 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 495

  36  

Por fim, serão feitas algumas considerações sobre a redução à forma escrita do

consentimento informado. A recepção jurídica do chamado termo de consentimento livre e

esclarecido será avaliada, bem como seus requisitos formais.

2.2. Os standards balizadores do conteúdo da informação fornecida

Embasado principalmente no direito à informação do consumidor, o dever de informar é, nos dias de hoje, reconhecido tanto pelos tribunais quanto pelos legisladores.81 Diversos autores tentam definir qual seria o conteúdo mínimo de informação fornecida ao paciente de forma a satisfazer o dever de esclarecimento. Entre eles podemos citar Edmilson de Barros:

A informação fornecida pelo médico deve ter como escopo básico o alcance da autodeterminação esclarecida do paciente. Assim deve ter no mínimo, os seguintes requisitos: diagnóstico, prognóstico possível para cada tipo de tratamento, opções terapêuticas padrão e alternativas, riscos, complicações, vantagens e desvantagens. 82

Tal definição, em uma abordagem mais superficial, pode ser suficiente para uma rápida

resolução dos casos que vierem a ser judicializados. Entretanto, a acepção do conteúdo dessa

obrigação não é homogênea. A informação fornecida tem de ser inteligível e útil ao doente. O

linguajar técnico típico de áreas especializadas como a medicina tende a alienar os leigos de

uma completa compreensão dos termos. Outro obstáculo ao esclarecimento é o excesso de

informação que, longe de orientar o paciente a tomar uma decisão fundamentada, tende a

demonstrar que a situação possui um grau de complexidade maior do que o real,

desorientando e angustiando o doente. Assim, se o objetivo é assegurar o verdadeiro

cumprimento do dever de informar, é necessário ir além da mera definição genérica dos

conteúdos. Uma melhora na execução do dever de esclarecimento deve ser acompanhada de

um modelo de avaliação (standard) capaz de julgar, de forma mais objetiva, a qualidade do

conteúdo da informação.

De acordo com a jurisprudência americana, podem ser utilizados dois tipos de critérios

para avaliar de forma geral o cumprimento do dever de esclarecimento. Um dos critérios tem

base no emissor e o outro tem base no receptor da informação.

O primeiro método, chamado physician-based standard of disclosure, tem como

referência o que a comunidade científica consideraria como satisfatório informar sobre

determinado procedimento. Ou seja, o dever de informar de um médico seria comparado ao                                                                                                                81 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 108 82 Ibidem. p. 110

  37  

que os outros profissionais dessa classe consideram como razoável.83 Dentro desse modelo, o

médico deve comprovar que forneceu a informação que um profissional consideravelmente

prudente (reasonably prudent practitioner) teria fornecido se estivesse em seu lugar. Caso

não seja verificado o adimplemento dessa obrigação, o paciente deve comprovar que não teria

realizado o procedimento caso soubesse do risco e que a omissão do médico foi uma causa

direta da lesão.84 Este método foi classicamente adotado pelos tribunais e pela doutrina e,

ainda hoje, encontra respaldo em grande parte dos tribunais dos estados americanos.85

Entretanto, em 1972, o caso Canterbury v. Spence representou uma virada no

pensamento de algumas cortes americanas. O foco nesse caso era o dever de informação e sua

relação com o consentimento esclarecido. No julgado, é apresentada a história de um garoto

jovem que inicialmente queixava-se de dor nas costas. A investigação da doença revelou que

a origem da dor era a constrição de uma raiz nervosa vertebral. Assim, foi indicada pelo

médico, Dr. Spence, a realização de uma laminectomia86. No dia seguinte à cirurgia, o

paciente caiu da cama, evento que resultou em paralisia. Procedeu-se com uma cirurgia de

emergência que apenas resultou em melhora parcial dos sintomas.

Dois aspectos do caso devem ser levantados. O primeiro é que o consentimento

informado da mãe do doente foi obtido após a realização do primeiro procedimento. Já o

segundo é que o risco de paralisia, o qual o próprio réu, em depoimento, admitiu existir,

acometendo cerca de 1% dos doentes, não constava no rol de informações concedidas.

A sentença prolatada asseverou que o médico foi responsável pelo dano ocorrido pois

falhou com seu dever de advertir o paciente e a sua responsável legal dos riscos do

procedimento. Segundo os juízes, a informação deveria ser fornecida levando-se em conta o

que seria interessante para o doente compreender de forma a fundamentar sua decisão.87

A decisão teve como um dos principais reflexos a mudança do padrão de análise do

consentimento esclarecido em alguns locais, que passou a ser reconhecida como uma

necessidade do paciente. Os médicos devem fornecer subsídios para que o enfermo, ou o seu

responsável legal, possa tomar decisões fundamentadas sobre a sua saúde. Este modelo é

                                                                                                               83 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. 4˚ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 277 84 KING, Jaime Staples; MOULTON, Benjamin. Rethinking Informed Consent: The Case for Shared Medical Decision- Making. American Journal of Law & Medicine. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 441 85 Ibidem. p. 430 86 Procedimento habitualmente realizado por neurocirurgiões que tem como objetivo a retirada de parte do trajeto ósseo de uma raiz nervosa medular para descomprimir tal estrutura para evitar complicações como paralisia, parestesia e dor neuropática. 87 SMITH, George P. The Vagaries of Informed Consent. Indiana Health Law Review. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 117

  38  

denominado objective patient-based standard of disclosure.88 A pedra fundamental deste

modelo é o conceito de “risco material” (material risk), ou seja, “um risco que, na opinião do

médico, influenciaria significativamente na esfera de decisão de uma “pessoa razoável” em

consentir ou não a realização de um procedimento”.89 Assim, caso uma intervenção cause

uma lesão cujo risco seria considerado como “material” e tal informação não foi revelada pelo

profissional, temos satisfeitos o requisitos da responsabilização.90

A influência do julgado e da teoria que o embasou não se restringiu aos Estados Unidos.

No Brasil, doutrinadores como Antônio Jeová Santos consideram que o fornecimento da

informação visando as necessidades do paciente é o melhor modelo a ser seguido, como

podemos aduzir do trecho a seguir:

Ao condenar o médico pelos danos, o Tribunal estabeleceu dois princípios capitais. Primeiro que o direito do paciente de tomar suas próprias decisões é que fixa a extensão do dever do médico de informar. Segundo, que o dano não havia sido conseqüência de uma má prática cirúrgica, mas que se produziu como conseqüência direta da ausência de informação; isto é, que a falta da informação causou dano apesar da correta técnica seguida. O caso “Canterbury” reafirmou que a autodeterminação é a só justificação e a meta do consentimento informado, e que afetar a autodeterminação pela deficiente informação entregue ao paciente, torna o médico responsável pelo resultado danoso derivado de sua intervenção, ainda que esta tenha sido tecnicamente correta, e o dano surgisse do próprio risco corrente em toda a intervenção médica.91

Outro doutrinador brasileiro, Genival Veloso de França, sustenta, de forma similar, que

a informação deve sempre ser baseada no chamado “paciente padrão razoável”92, ou seja, a

informação deve ser capaz de ser compreendida e deve satisfazer as expectativas do paciente

levando-se em conta a sua condição socioeconômica e cultural. Tais posições se aproximam

do padrão adotado por grande parte dos tribunais americanos.

Apesar das considerações apresentadas, o debate acerca do padrão de divulgação das

informações não está finalizado. Uma minoria de tribunais dos estados americanos tem

defendido o denominado subjective patient-based standard of disclosure.93 Essas cortes

                                                                                                               88 KING, Jaime Staples; MOULTON, Benjamin. Rethinking Informed Consent: The Case for Shared Medical Decision- Making. American Journal of Law & Medicine. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 442 89 A risk is material if the physician believes that a reasonable person in the patient's position "would be likely to attach significance to the risk or cluster of risks in deciding whether or not to forego the proposed therapy." (traducao livre). KING, Jaime Staples; MOULTON, Benjamin. Rethinking Informed Consent: The Case for Shared Medical Decision- Making. American Journal of Law & Medicine. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014.. 445 90 Ibidem. p. 445 91 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. 4˚ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 276 92 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 277 93 Tal posicionamento ganhou destaque após o caso Scott v. Bradford onde a Suprema Corte de Oklahoma descartou a tese do objective patient-based standard of disclosure e defendeu que no caso concreto apresentado deveria ser adotado o subjective patient-based standard of disclosure. Tal decisão é um dos grandes fundamentos do novo standard. KING, Jaime Staples; MOULTON, Benjamin. Rethinking Informed Consent:

  39  

afirmam que o conteúdo do direito à informação não deve considerado como aquilo que um

paciente padrão deveria saber para tomar uma decisão fundamentada, mas sim o que um

determinado indivíduo, na condição de paciente, gostaria de saber sobre a sua saúde.94 Esse

posicionamento, apesar de aparentemente proporcionar uma maior proteção aos direitos do

paciente, acrescenta uma elevada carga de subjetividade à analise do caso concreto, criando

um alto grau de insegurança jurídica para os profissionais, o que pode levar a uma posição

mais defensiva da prática médica, gerando mais custos, maior morosidade e burocratização

dos serviços de assistência à saúde.

O objective patient-based standard of disclosure, modelo de informação em que se

baseia a doutrina pátria, possui como principal característica a possibilidade de um ampla

interpretação do caso concreto pelas cortes, com o objetivo de promover o arbítrio judicial. O

conteúdo da informação não se encontra mais vinculado ao entendimento de uma categoria de

profissionais, mas sim à subjetividade do paciente, a qual deverá oportunamente ser

interpretada pelos tribunais.

Ultrapassada a discussão sobre qual deve ser o foco do discurso informativo, é possível

partir para um ponto mais complexo dentro da problemática do dever de informar: a decisão

sobre quais os riscos do procedimento que obrigatoriamente devem ser esclarecidos e quando

considerar insuficiente a informação fornecida.

2.3.Dos riscos a serem esclarecidos

Dentro do setor de serviços de saúde, muitos procedimentos oferecidos pelo mercado

apresentam riscos ao consumidor. No caso das intervenções médico-cirúrgicas, tanto

diagnósticas quanto terapêuticas, riscos são verificados sempre e incidem diretamente sobre a

esfera dos direitos da personalidade do paciente. Diante da relevância dessa situação, é mais

do que necessário que o indivíduo em questão esteja consciente dos eventos desfavoráveis

que podem advir de tal ingerência.

Não estamos aqui tratando da exclusão da responsabilização por meio da informação e

do subseqüente consentimento. A negligência, imperícia e imprudência como fatores

causadores do dano não integram esta classificação. Definimos aqui os riscos como eventos

desfavoráveis, previsíveis ou não, ocorridos mesmo apesar de um perfeito planejamento e

execução oportuna, por profissional habilitado, do procedimento indicado para o caso

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         The Case for Shared Medical Decision- Making. American Journal of Law & Medicine. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 443 94 Ibidem.pp. 429-501

  40  

concreto. Como nenhum procedimento médico é livre de riscos, a decisão de executá-lo deve

ser sempre tomada de maneira conjunta entre o profissional e o paciente, tendo foco neste

último. Entretanto, para uma decisão eficaz, a informação deve possuir elevada utilidade

marginal para o individuo leigo, imbuindo seu detentor de real aumento de capacidade

decisória.

Infelizmente, a descrição categórica e exaustiva dos riscos que um procedimento pode

vir a apresentar dificilmente orientaria qualquer um. Podemos utilizar como exemplo as bulas

de medicações, que, mesmo nas raras ocasiões em que são lidas, passam longe de orientar o

leitor sobre a utilização ou não do produto, mas causam angústia desnecessária.

A doutrina européia, segundo o autor português André Gonçalo Pereira, responde com a

utilização do conceito do “risco significativo”.95 Segundo as palavras desse jurista:

O risco será considerado significativo, em razão dos seguintes critérios: (a) necessidade terapêutica da intervenção, (b) em razão da sua freqüência (estatística), (c) em razão de sua gravidade e (d) em razão do comportamento do paciente. 96

A necessidade terapêutica da intervenção está atrelada ao conceito de custo-benefício.

Desse modo, existem certas categorias de procedimentos que, por possuir indicação eletiva,

ou não terapêutica, incumbem o médico de reforçar a informação fornecida, esclarecendo o

paciente de todos os riscos possíveis. Podemos mencionar aqui: transplante de órgãos,

esterilização pura, cirurgia estética97, ensaios clínicos de medicamentos e intervenções

diagnósticas. De forma contrária, quanto mais urgente o procedimento a ser realizado menor é

o rigor exigido no dever de informação.98

                                                                                                               95 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 426 96 Ibidem. p. 426 97 Podemos observar posicionamentos de cortes brasileiras adotando tal posicionamento. Em apelação cível o desembargador Alfeu Machado apresentou os seguintes tópicos na ementa para embasar a decisão: “Na cirurgia plástica estética, assume relevância a existência de um documento denominado "consentimento informado", pelo qual o paciente/cliente é esclarecido detalhadamente sobre o procedimento, eventuais efeitos colaterais, medidas de resguardo que deve tomar antes da realização da intervenção cirúrgica e durante a sua recuperação, dentre outros dados. Cabe ao cirurgião empregar a terapêutica com rigorosa segurança e, no plano da informação (CDC, art. 6o, III; CC, art. 15), prevenir o paciente de todos os riscos previsíveis, ainda que não se realizem senão excepcionalmente, informando-lhe, sem exceções, as situações que surgirão com o ato interventivo, inclusive as pré e pós-operatórias. Se a paciente não foi advertida dos efeitos negativos, há violação do dever de informar, suficientemente para respaldar a responsabilidade médica.” TJ-DF_APC_20100112316318_ae05c (grifo nosso) 98 Nesse sentido a Convenção Européia para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina de 1997 dispõe, em seu art. 8˚, que em situações de urgência o procedimento pode ser realizado sem nenhum tipo de consentimento prévio. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convbiologiaNOVO.html> Acesso em: 23 de novembro de 2015.

  41  

A freqüência e a gravidade são elementos clássicos usados para classificar os riscos a

serem informados. Desse modo, riscos simples mas freqüentes, bem como os raros, mas

graves devem ser informados.99 Já a inclusão do comportamento do paciente dentro do

conceito de risco significativo é uma tentativa de dar um contorno mais subjetivo ao instituto.

O comportamento do paciente e suas características socioculturais devem ser levados em

consideração à hora de se estabelecer o conteúdo do dever de informação.

Apesar de a doutrina dominante estar bem firmada, a jurisprudência européia se divide

na difícil questão de quais riscos informar. Em diversos países caracterizados como de Direito

Continental (Itália, Espanha e Países Baixos), apenas os riscos previsíveis e sérios devem ser

divulgados. Um dos principais exemplos dessa abordagem é a Bélgica. Os tribunais belgas

aplicam a teoria dos riscos normais e razoavelmente previsíveis, devendo somente a falta

destes fazer incidir a responsabilização do médico. Isto significa que não é necessário

informar sobre os riscos graves raríssimos ou freqüentes, porém insignificantes em relação à

lesividade. 100

Por outro lado, países como a França, apesar de possuírem normas dispondo que os

riscos freqüentes, independentemente da gravidade, e graves normalmente previsíveis

(“risques fréquens ou graves normalement prévisible”, de acordo com a lei francesa de

direitos do paciente101), exigem do profissional um dever de informação amplo. Tenta-se

mitigar, por meio desse dispositivo, antigos posicionamentos enraizados na jurisprudência

francesa uma vez que o dever de informação sempre foi interpretado extensivamente por tais

cortes. Apesar do novo estatuto, os magistrados franceses mantêm-se fiéis à sua compreensão

ampla do instituto, continuando a determinar também a informação dos riscos graves, mesmo

que raríssimos.102

Assim como a francesa, a jurisprudência alemã, adota elevado grau de exigência em

relação ao conteúdo da informação fornecida, apesar de um grau menor de exigência em

relação a riscos longínquos. A violação ao direito à autodeterminação ocorrida após um

consentimento viciado pelo esclarecimento insuficiente é, para as cortes alemãs, falta

gravíssima, justificando exigência de ampla divulgação dos riscos. Em resposta a essas

                                                                                                               99 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. pp. 432-436 100 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 425 101 Loi n° 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000227015&dateTexte> Acesso em: 23 de novembro de 2015. 102 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. pp. 434-435.

  42  

exigências jurisprudenciais, os médicos alemães muniram-se de um arsenal de formulários

relativos ao consentimento informado com vistas a evitar condenações em ações de

responsabilidade civil por violação do dever de informar. 103

O exagero na interpretação da extensão dos deveres do profissional acaba se revertendo

em algo nocivo ao paciente e à comunidade em geral. Entre as distorções criadas pela estéril

litigiosidade exacerbada, podemos citar a maior morosidade na atenção à saúde, maior custo

em todas as etapas do processo de atendimento, além da deterioração da relação médico-

paciente. André Gonçalo Pereira exemplifica bem tal distorção:

Se aceitarmos que o médico está obrigado a informar de todos os riscos graves, mesmo que raros, estamos a defender uma solução que recusa todo o paternalismo e a colocar nas mãos do paciente toda a informação necessária para que este se autodetermine responsavelmente. Porém, este caminho da hiperinformação pode assumir algumas desvantagens: Em primeiro lugar é verdade que se cria uma situação de angústia a todos os pacientes perante os riscos que quase nunca se verificam. A utilidade marginal desta informação para a esmagadora maioria dos pacientes é, pois, baixíssima, sendo diretamente proporcional ao valor estatístico da verificação dos riscos. Em segundo lugar o crescimento da litigiosidade médica (e as ações de responsabilidade por violação do consentimento informado são cada vez mais importantes) cria o fenômeno da medicina defensiva: isto é, o médico antes de tomar uma medida terapêutica mune-se de um arsenal de meios complementares de diagnóstico, e antes de arriscar uma ousadia terapêutica vai medir cautelosamente todas suas possibilidades de sucesso; o consentimento informado corre o risco de se transformar num calvário de extensos formulários prevendo todo e qualquer risco, ao invés de ser um momento de diálogo terapêutico que visa, a um tempo, criar um ambiente humano que favoreça a própria relação médico-paciente e que permite o livre desenvolvimento da personalidade do paciente. 104

Dessa forma, cabe ao Direito o importante papel regulador de tal relação. Deve-se

proporcionar o maior nível possível de proteção à autonomia do paciente sem que isso

provoque uma reação exacerbada por parte dos profissionais de saúde. A melhor forma de se

chegar a esse resultado é aprendendo com a experiência adquirida por meio de julgados, tanto

nacionais quanto estrangeiros. Com isso, podemos fundamentar melhor o nível de informação

que deverá ser exigido dos profissionais. Diante disso, é possível estabelecer limites ético-

jurídicos claros a serem seguidos pelos médicos, dando-lhes mais segurança no exercício de

suas atividades e, ao mesmo tempo, beneficiando o paciente, que terá seus direitos mais

amplamente respeitados.

2.4.Do titular do dever de informação

                                                                                                               103 A jurisprudência alemã tem direcionado suas decisões em torno da exigência do esclarecimento do risco mais grave possível de determinado procedimento, mesmo que raríssimos. Riscos raros, porém específicos de determinado procedimento também devem ser obrigatoriamente esclarecidos. Ibidem. p. 441 104 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 441

  43  

A individualização do agente responsável pelo dever de informar não seria um tópico

digno de debate no modelo clássico de atenção à saúde do médico de família. Entretanto, o

moderno exercício da medicina conta com o trabalho de equipes multiprofissionais, rodízio de

profissionais por escala de serviço, encaminhamentos para especialistas, o que acaba criando

um cenário de incerteza para o paciente. Antônio Gonçalo Pereira caracteriza o problema da

seguinte forma:

[...]a obrigação de informar recai sobre o médico, designadamente sobre o médico consultado ou interrogado pelo paciente, ou seja, em primeiro plano, sobre o médico assistente. Não obstante, sabemos que hodiernamente o exercício da medicina é cada vez mais realizado por uma equipe multidisciplinar e hierarquizada, o que levanta o problema de saber quem deverá fornecer a informação e obter o consentimento e quem fica abrangido por esse mesmo consentimento.105

Desse modo, não se pode mais contar apenas com a figura do médico assistente, aquele

que primeiro atende o doente ou que este busca regularmente para se consultar. A assistência

nos grandes hospitais muitas vezes é prestada por diversos profissionais (médicos,

enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, etc...) em uma mesma internação. Além disso, a

necessidade de especialização dentro da medicina faz com que procedimentos diagnósticos ou

terapêuticos sejam realizados por profissionais que não tiveram o contato inicial com o

paciente. Diante disso, é necessário que esteja bem delimitado o ônus do dever de informar,

para que se assegure a proteção aos direitos de personalidade do doente.

Em atendimentos simples, em que só um profissional tem contato com o paciente,

podemos considerar a figura do médico assistente como titular indiscutível do dever de

informar. O problema ocorre nesses casos mais complexos, em que se tem uma equipe com

diversos profissionais ou quando há o encaminhamento do paciente a um especialista.

A jurisprudência francesa tem se valido da ampla responsabilização para solucionar esse

impasse. A Cour de cassation, ao julgar um caso sobre o tema106, entendeu que o dever de

informação pesa tanto sobre o médico prescritor, quanto sobre aquele que executa a

prescrição. A obrigação se dá independentemente da especialização ou do pertencimento a

determinada equipe, pois cada um deve adotar as cautelas necessárias para comprovar que a

informação foi prestada. Esse é também o regime adotado na Espanha na atualidade.

                                                                                                               105 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 415 106 Decisão de 29/05/1984. Apesar de antiga, essa permance sendo a visão dos tribunais franceses.

  44  

A doutrina portuguesa concentra o dever de informação no medico assistente.107 No

entanto, em uma situação em que toda uma equipe esteja envolvida no tratamento, certa

flexibilidade é admitida. Certas competências podem ser delegadas a médicos assistentes, no

entanto essa delegação deve seguir uma clara repartição de funções e tarefas. Não se pode

ocultar do paciente informações sobre a estrutura organizativa da equipe ou do papel de cada

profissional que solicita o consentimento informado dentro do tratamento, bem como suas

qualificações.108 No caso de uma cirurgia, por exemplo, cada profissional só é responsável

pelo procedimento que se encontra dentro de sua esfera de competência. Assim, um cirurgião

que informou dos riscos do procedimento não será responsável pela informação dos riscos

inerentes exclusivamente à anestesia, esse dever compete ao anestesista.

Em um encaminhamento do paciente a um especialista, o médico generalista que

realizou o primeiro atendimento não se responsabilizará pelo esclarecimento do paciente

sobre qualquer procedimento realizado subseqüentemente por seu colega. De modo similar,

quando temos a situação em que diferentes especialidades médicas coexistam dentro da

mesma equipe ou, no caso de encaminhamentos ou pedidos de parecer para especialistas

externos, adota-se o princípio de que cada médico deve fornecer informação de acordo com

sua especialização.109

A exigência da prestação de informação por parte de todos os médicos que atendem o

paciente, independentemente da divisão do âmbito de competência das especialidades, é uma

forma de se tentar maximizar a proteção da autonomia do paciente. Entretanto, essa

alternativa apresenta algumas falhas que merecem ser ressaltadas. No momento do

encaminhamento, muitas vezes o médico generalista não possui conhecimento exato do

procedimento a ser adotado pelo especialista. Parte da informação se tornaria, em certo grau,

mera especulação, podendo gerar angústia desnecessária ao paciente. O mesmo pode ser

mencionado no caso de equipes com profissionais de áreas diversas. A precisão da

informação fornecida tem direta relação com o conhecimento e a prática reiterada do

profissional, desse modo, o médico que possui maior expertise em cada área é o mais

adequando a esclarecer o paciente.

A divisão do dever de informação é o meio mais eficiente de se garantir maior

qualidade na prestação do dever de informação. No entanto, a maior complexidade da

                                                                                                               107 Com base em tal conceito o art. 6˚, n˚ 1, al. G da Lei dos Ensaios Clínicos de Medicamentos de Portugal (n˚ 46/2004, de 19 de agosto) cria a figura do médico de contacto. Esse profissional seria estabelecido como o titular dever de informação durante o andamento do estudo. 108 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. pp. 415, 416 109 Ibidem. p. 416

  45  

prestação de assistência à saúde e a existência das equipes multiprofissionais, resultam muitas

vezes na delegação excessiva de competências. Nesses casos, o paciente, órfão de um

profissional que assuma seu caso, pode se encontrar desprovido de esclarecimento.

Seguindo essa linha, o legislativo português por meio dos Projetos de lei de 2009 e 2010

sobre o Direito à Informação e ao Consentimento Informado procurou criar a figura do

médico assistente dentro dos ambientes hospitalares.110 O médico incumbido com essa

atribuição se responsabilizaria pelo direito a informação do doente coordenando outros

profissionais que viessem a intervir durante o tratamento. Desse modo poderíamos satisfazer a

proteção ao paciente sem repassar ônus desnecessário a profissionais que não seriam os mais

indicados à prestação de informações específicas.

2.5.Âmbito de Responsabilização pela no Falha Dever de Informação

No caso de uma intervenção médica que possui claro nexo causal com a lesão material

e/ou moral devido a uma atuação culposa, fica evidente a incidência da sua responsabilização

e, com isso a geração do dever de reparação. Contudo, no caso de lesão causada pela

realização de dano previsto como risco do procedimento (realizado perfeitamente de acordo

com a leges artis) o esclarecimento do paciente se torna um ponto crucial a ser verificado.

Nesses casos, em que o dano advém de um risco previamente informado, a obtenção do

consentimento resulta na aceitação do risco na esfera de responsabilidade do paciente e,

conseqüentemente, não responsabilização do médico. Entretanto, a concordância do paciente

depende da informação fornecida e, por isso, o cumprimento perfeito do dever de

esclarecimento poderia resultar na recusa do consentimento. Ou seja, diante de um

procedimento muito arriscado o doente poderia se recusar a prosseguir com a conduta,

afastando completamente os riscos inerentes à mesma. Desse modo, caso o dever de

esclarecimento não fosse perfeitamente cumprido, um argumento a ser levantado seria o de

que o médico se responsabilizaria por qualquer risco pois sua conduta falha diminuiu a

possibilidade de recusa completa do consentimento, recusa essa que teria resultado também

em afastamento completo do risco. Esta idéia levanta questões de resolução não tão fácil.

                                                                                                               110 O art. 2˚ do referido projeto dispunha que: “(6) O medico assistente é o responsável pela prestação de informações ao doente, sem prejuízo da colaboração de outros profissionais que realizem procedimentos concretos e prestem informações no âmbito de suas competências especificas. (7) O médico assistente é o responsável pela coordenação entre os vários profissionais de saúde que tiverem o dever de intervir no processo de prestação de informações. (8) O doente tem o direito de saber qual médico, ou outros profissionais de saúde, que realizam intervenções ou tratamentos, incluindo os meios complementares de diagnóstico.”

  46  

Caso o profissional não informasse o paciente de um risco do qual ele deveria ser informado

e, após o procedimento, ocorresse um efeito colateral raríssimo que, segundo posicionamento

jurisprudencial, não precisasse ter sido mencionado, caberia responsabilização pelo dano? De

outra forma, no caso de o médico ter cumprido o dever de informar diligentemente e durante a

operação ocorresse um dano de cujo risco não precisasse ter informado, haveria

responsabilidade do profissional em tal desfecho? Essas situações merecem uma análise mais

profunda.

O estabelecimento de um nexo de ilicitude111 entre o dever de esclarecimento deficiente

e o dano controverso é necessário. Esse vinculo jurídico irá ajudar na ponderação de qual

dano será ou não imputado judicialmente ao ato profissional. No contexto europeu, o tema

tem dado azo a ampla discussão jurisprudencial e doutrinária, especialmente em território

alemão.

O Bundesgerichtshof (BGH, Tribunal Federal Alemão), em seu posicionamento

clássico, considerava qualquer intervenção médica não consentida como uma ofensa corporal.

Assim um dever de consentimento violado, mesmo que parcialmente, justifica a ineficácia do

consentimento por completo.112 Essa teoria conduz à responsabilização ilimitada do médico.

Entretanto, com o tempo, o próprio tribunal alterou seu posicionamento. Os julgados dos

casos Rektoskopie-Urteil e Kortizon-Fall constituem o ponto de viragem da jurisprudência

alemã.113

A primeira lide diz respeito a um procedimento de retoscopia em que o profissional

responsável não orientou o paciente sobre o risco de fortes dores causadas pela intervenção. O

que se verificou foi que o exame não causou fortes dores, porém o paciente apresentou uma

perfuração intestinal (sem que houvesse vícios na indicação e na execução do procedimento).

Preliminarmente, o tribunal deliberou que o risco de perfuração intestinal era longínquo, por

isso sua omissão não se configurou como vício no dever de informar. O mesmo não pode ser

dito em relação ao esclarecimento das dores, que sim configuravam um risco previsível e

freqüente. Em sua decisão final, o BGH determinou que, em princípio a violação parcial do

dever de informar tornou o consentimento totalmente inválido, porém, no caso em questão,

não se estabeleceu o nexo de ilicitude entre a violação do dever de informar (das fortes dores)

                                                                                                               111 André Gonçalo Pereira se refere, ao utilizar tal expressão, a um nexo de imputação de ilicitude entre a conduta do agente e o dano realizado. Segundo o autor, os danos causados não devem ser automaticamente imputados ao profissional. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 470 112 BGH, Decisão de 21/09/82 113 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 473

  47  

e os danos ocorridos (perfuração intestinal). Desse modo, tribunal não responsabilizou o

médico, pois o dano se encontrava fora do âmbito de proteção da norma.

Já no caso Kortizon-Fall, um paciente, em tratamento para uma dor no ombro com

injeções intra-articulares de corticóide, desenvolveu septicemia (infecção generalizada) que

resultou em seu óbito. Alegou-se que o médico falhou em esclarecer o paciente dos riscos e

das opções terapêuticas alternativas. Assim, apesar de ser previsível e freqüente, a

possibilidade de ocorrência de uma infecção não foi informada. Já a septicemia, também não

informada, constitui um risco longínquo e de difícil ocorrência e previsão, por isso não

necessitaria de constar obrigatoriamente no rol de esclarecimentos.

Nesse caso, o BGH entendeu que apesar de violado o dever de informação com relação

a um risco, comum, que não ocorreu, e, subseqüentemente, havido dano resultante da

realização de um risco longínquo, haveria o dever de reparação. Isto porque entre a

informação do risco de uma infecção localizada e a ocorrência de uma infecção generalizada

estaria presente o nexo de ilicitude. A septicemia, por sua relação com o perigo que não foi

informado, seria enquadrada dentro do âmbito de proteção da norma.

Outro posicionamento adotado pelo tribunal por meio dessa decisão foi a necessidade

de se delimitar dentro do dever de esclarecimento o fornecimento da chamada informação

básica (Grundaufklärung). Esse conceito objetiva proteger o direito do paciente à autonomia.

O esclarecimento deve dar ao doente uma idéia abrangente da gravidade da intervenção para

que se delineie o comprometimento da integridade física possível. No caso da falta de

Grundaufklärung, o profissional limita de forma geral a autonomia a que o paciente tem

direito, autonomia de consentir ou não com a intervenção de forma fundamentada. Assim o

autor André Gonçalo Pereira resume bem o conteúdo de tal julgado além de explicar algumas

de suas conseqüências:

Por outro lado, o tribunal entendeu que perante a falta de uma informação básica (Grundaufklärung), o nexo de imputação entre os danos resultantes da intervenção médica e a falta de informação só se pode excluir quando os riscos não esclarecidos, pelo seu significado e importância para o paciente, não têm qualquer conexão com o risco verificado e o paciente esta informado, pelo menos da gravidade geral da intervenção.114

Existem, dentro da doutrina alemã, posicionamentos mais radicais do que o adotado

pelo BGH. Segundo a teoria do âmbito de proteção amplo do dever de informar, o médico

deveria ser responsabilizado por todos os danos causados pela intervenção no caso de

                                                                                                               114 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 477

  48  

violação do dever de informar. Isso porque o vício na informação automaticamente resultaria

em um vício no consentimento. Como não poderia haver realização de qualquer dano sem o

consentimento seu defeito colocaria qualquer dano na esfera de responsabilidade do

profissional. Assim, não há delimitação de responsabilidade e não importa se o risco não

informado não precisaria sê-lo.115

Já os defensores do âmbito de proteção limitado do dever de informar criticam a

decisão do caso Kortizon-Fall, pois a imputação do dano teria sido exagerada e precária.

Segundo esses autores, o médico deve responder pelas conseqüências negativas de sua

intervenção que sejam previsíveis e relevantes para o consentimento do paciente. Deve-se

estabelecer um claro nexo de ilicitude entre a falha e o dano para que seja configurada a

responsabilidade. Qualquer outra condição encontraria-se fora do âmbito de proteção da

norma.116

No Brasil, a discussão tanto doutrinária quanto jurisprudencial em relação ao direito

médico encontra-se restrita aos poucos especialistas que se dedicam ao direito médico.

Entretanto, podemos afirmar que não há aqui o reconhecimento de dano puramente

informativo.117

O dever de informar para os juristas brasileiros tem um âmbito de proteção bem

delimitado, sendo necessário o estabelecimento de claro nexo de ilicitude entre o

esclarecimento falho e o dano resultante. Para doutrinadores como Miguel Kfouri Neto, o

nexo causal deve ser claramente demonstrado pela vítima. O dano deve prover de um risco

acerca do qual o paciente deveria ter sido avisado, de modo a decidir acerca da aceitação ou

não do tratamento. 118 Mesmo em tais casos, existem ponderações a serem feitas, como

ressalta o mesmo autor: “Porém, caso o prejuízo que o paciente sofria, recusando o

tratamento, fosse maior que o dano decorrente da intervenção, a questão da falta da

informação resultaria sem importância.”119

A exigência do nexo causal (ou nexo de ilicitude para os portugueses) como elemento

fundamental para aceitação de uma demanda de responsabilidade por falta de informação tem

alguns efeitos práticos no Brasil. Em países com âmbito de proteção da norma amplo e, com                                                                                                                115 Ibidem. p. 477 116 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 477 117 Segundo o civilista brasileiro Bruno Miragem: “[...]o reconhecimento de tais danos, em uma compreensão tradicional, necessariamente deveria estar associado a um determinado prejuízo que se somasse à falta da informação. Ou seja, a violação do dever de informar per se, não seria suficiente para determinar a indenização.” MIRAGEM, Bruno Nuvens Barbosa. Responsabilidade Civil Médica no Direito Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 8 118 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 49 119 Ibidem. p. 49

  49  

isso, uma maior leviandade na caracterização da responsabilidade de informar do profissional,

vemos o crescimento do lamentável fenômeno da medicina defensiva e, por conseguinte, a

ampliação do mercado de seguros de responsabilidade profissional. Esses efeitos, ao longo do

tempo, acabam por prejudicar todos aqueles que necessitam de assistência à saúde. Ao agir

defensivamente, os médicos tendem a adotar uma postura mais tímida ao indicar

procedimentos diagnósticos e terapêuticos; sua cautela aumenta proporcional e

exponencialmente ao risco envolvido em cada procedimento. Mesmo quando se indica uma

terapia mais arriscada, isso só ocorrerá após o preenchimento de diversos formulários e a

solicitação dos mais diversos exames complementares e pareceres de outros especialistas. O

resultado desse círculo vicioso é a deterioração da qualidade do serviço, associada a uma

gradual distorção da relação médico-paciente.

A proteção à autonomia do doente deve ser prioridade para médicos e juristas. Não

obstante, para que tal objetivo seja atingido não é eficiente nem razoável criar regras

extremamente rígidas, que incumbam o profissional de indenizar danos imprevisíveis que não

guardam relação com sua atuação. O amplo âmbito de proteção do dever de informar gera

uma atmosfera de insegurança para o profissional. Essa atmosfera acaba por trazer resultados

nocivos, prejudiciais à prática médica e aos próprios doentes. Por outro lado, a restrição

excessiva do alcance normativo do dever de informar gera insegurança para o doente e subtrai

importância ao esclarecimento prévio.

 

  50  

CAPÍTULO 3 – O direito de consentir e a defesa da autonomia

3.1.Requisitos para o consentimento válido do paciente

A obtenção do consentimento esclarecido fundamenta o ato médico legítimo. Para

Veloso de França, isso atende ao princípio da autonomia ou liberdade, pelo qual todo

indivíduo tem o direito de tomar decisões de modo a direcionar o rumo que quer dar a sua

vida. 120 Já Maria Helena Diniz considera que a obtenção do consentimento esclarecido resulta

do direito de autodeterminação, ou seja, do direito individual de se tomar decisões que afetem

seu bem estar físico e psíquico.121 Diferentes expressões partem do mesmo pressuposto, o

consentimento esclarecido é o pilar da proteção dos direitos de personalidade. Excetuando-se

situações especiais a serem descritas mais adiante, a ausência de obtenção do consentimento

incorre em culpa grave do profissional, por violação aos direitos da personalidade do doente.

O Código Civil brasileiro, em seu art. 104, exige a concorrência de três elementos para

que os negócios jurídicos (no caso do consentimento) sejam válidos: vontade, objeto e forma.

Desse modo, podemos afirmar que um consentimento válido e eficaz deve atender aos

seguintes requisitos: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e

forma prescrita ou não defesa em lei.

Caso o paciente não possa consentir, devido à ausência completa ou relativa da sua

capacidade civil, o instituto do consentimento substituto deverá ser aplicado. Assim, o

responsável legal pelo incapaz irá fornecer a autorização para a intervenção médica em seu

lugar. Embora eficaz, o consentimento substituto não possui implicações exatamente iguais às

do consentimento pessoal, tendo restrições em relação à sua aplicabilidade. Além disso, o fato

de a autorização para realização do procedimento ter sido dada por terceiro não exclui a

necessidade de o paciente ser informado e sua opinião levada em conta.

3.1.1. Vontade, Capacidade Civil e Consentimento Substituto: O Agente Capaz

Francisco Amaral, define a vontade como “elemento fundamental da produção dos

efeitos jurídicos sendo necessário, como é óbvio, que ela se manifeste, se exteriorize.”122 A

declaração de vontade é o instrumento da manifestação da volição do paciente. Consiste na

                                                                                                               120 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.250 121 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 808 122 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 7˚ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 387

  51  

afirmação dirigida a expressar a vontade pré-existente, o impulso de realização ou não de

certo ato.

Para que o consentimento seja eficaz deve-se procurar o sentido da vontade do doente.

Entre os itens que devem ser abrangidos por tal declaração devem constar, além da permissão

para o procedimento em si, autorizações referentes aos cuidados pré e pós-operatórios e, até

mesmo, a previsão acerca dos pagamentos pelos serviços profissionais diretamente ligados ao

objeto principal da contratação.123 Entretanto, para que a manifestação de vontade do paciente

seja admissível é necessário que este possua capacidade civil.

A capacidade civil definida como aptidão para exercer atos da vida civil está delimitada

nos artigos 3º e 4º do Código Civil Brasileiro, que exclui de forma absoluta os menores de 16

anos e os portadores de doenças mentais e de forma relativa os maiores de 16 e menores de 18

anos. Na ausência da capacidade civil é necessária a obtenção do consentimento substituto

para a execução de procedimentos médicos. O titular desse direito varia conforme a situação

fática apresentada e nem todo tipo de parentesco confere tal prerrogativa. 124 Caso o menor

tenha sido emancipado pelos pais, mediante instrumento público ou sentença do juiz, ele não

dependerá mais de responsáveis para consentir.

A responsabilidade de autorizar intervenções em pacientes menores de 16 anos recai

indubitavelmente sobre os seus pais, tal prerrogativa deriva do poder familiar e do dever de

cuidado.125 Na ausência dos genitores, o consentimento pode ser obtido dos tutores, pais

adotantes ou também por meio de ordem judicial. 126

De outro modo, se o problema surge com um menor beirando os 18 anos de idade,

tendo esse capacidade de discernimento, há posições divergentes. O consentimento ainda

segue os princípios mencionados anteriormente segundo a maior parte da doutrina.

Entretanto, autores como Antônio Jeová Santos afirmam que no caso de um indivíduo que

esteja beirando seus 18 anos de idade não concorde com a intervenção médica, em contraste

com a vontade de seu representante legal, deve então prevalecer a vontade do menor. 127 Vale

lembrar que estão sendo discutidos, nessa situação, bens como a autonomia, a integridade

física e mental e a saúde do indivíduo. Sendo assim, o autor prossegue, “é preferível acatar a

                                                                                                               123 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p.117 124 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.p.277 125 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 130 Ver art. 4, art. 1634 V e 1690 do Código Civil e também o art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente e Art. 299 da Constituição Federal Brasileira. 126 vide art. 1747, I do Código Civil e também LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 131 127 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. 4˚ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 282.

  52  

vontade deste, desde que ele possa compreender o alcance do ato a que vai ser submetido e

reúna condições de maturidade suficientes para consentir […].”128 Veloso de França segue a

mesma linha de raciocínio em sua obra:

Deve-se considerar ainda que a capacidade do indivíduo de consentir não reflete as mesmas proporções entre a ética e a lei. O entendimento sob o prisma ético não tem a mesma inflexibilidade da lei, pois certas decisões, embora de indivíduos considerados civilmente incapazes, devem ser respeitadas, principalmente quando se avaliam situações mais delicadas. 129

Apesar de fundamentado, o posicionamento do autor traz muitos problemas do ponto de

vista prático. Um indivíduo beirando os 18 anos de idade, sem nenhuma deficiência mental,

certamente, possui grau de esclarecimento suficiente para tomar muitas decisões importantes.

Entretanto, legalmente, esse indivíduo não possui capacidade civil. Seu consentimento teria

valor jurídico no mínimo discutível. Seria criada uma situação em que o titular do direito de

consentir não estaria bem definido, prejudicando a defesa ao direito à autonomia pretendida

pelo instituto.

Em situações como esta, o papel do médico, seguindo os princípios da benevolência e

da abstenção de fazer o mal, deve ser ativo na defesa da autonomia do paciente, seja por ação

direta (em casos de risco iminente de morte ou dano irreversível), seja solicitando a

intervenção dos órgãos da justiça.130 A opinião do indivíduo incapaz deve, diante do que já foi

exposto, ser respeitada, por mais que essa consideração não possa ser qualificada como a

palavra final por si só. Em acórdão sobre a recusa do consentimento dos pais a uma transfusão

fundamental para o tratamento de seu filho, da lavra do magistrado Marrey Neto, podemos

ver esses princípios enfatizados nos seguintes termos:

A vida humana é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade que ao indivíduo, egoisticamente, e a lei vigente exerce opção axiológica pela vida e pela saúde, inadmitindo a exposição desses valores primordiais na expressão literal de seu texto, a perigo direto e iminente (…). Uma vez comprovado o efetivo perigo de vida para a vítima, não cometeria nenhum delito o médico que, mesmo contrariando a vontade expressa dos por ela responsáveis, à mesma tivesse ministrado transfusão de sangue.131

A despeito da discussão em torno do dever de consentir, é ponto comum na doutrina

que o paciente incapaz (mas com discernimento) deve ser informado pelo médico sobre a

                                                                                                               128 Ibidem. p. 282. 129 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.250. 130 Como já mencionado o consentimento pode ser obtido excepcionalmente por ordem judicial. 131 Retirado de RJDTACrim-SP-Imesp 7/175 revista de julgados e doutrina do tribunal de alçada criminal de SP.

  53  

necessidade de determinadas condutas, seus riscos e suas conseqüências. Isso mesmo quando

seus pais ou responsáveis legais já tiverem consentido com a realização da intervenção.132

A incapacidade de decidir, seja por transtorno mental permanente ou temporário,

também deve ser suprida pelo consentimento substituto no caso da necessidade de

intervenções médicas. A titularidade da responsabilidade legal por essas pessoas,

especialmente quando maiores de idade, pode variar enormemente. Os doentes mentais

normalmente são representados por curadores, sendo estes os titulares do direito de consentir.

Já os portadores de perda transitória da consciência ou alteração momentânea da cognição

geralmente serão representados por parentes próximos. É importante ressaltar que amigos,

colegas e namorados não possuem legitimidade para decidir em nome do paciente em

questões de tratamento de saúde, pois é essa matéria entendida como direito

personalíssimo.133

Na hipótese de pessoa casada, caso um dos cônjuges necessite de determinada conduta

ou intervenção médica e esteja sem condições para manifestar sua vontade, o outro cônjuge

terá o direito de consentir em substituição ao doente. Esta titularidade decorre de um dos

deveres legalmente estabelecidos aos cônjuges, o da mútua assistência.134 O mesmo raciocínio

se aplica ao casal que se forma a partir da denominada união estável.135

3.1.2. Tratamentos experimentais, Leges Artis e a vontade do paciente: O Objeto Lícito

O objeto de um negócio jurídico será lícito se não afrontar a lei, a ordem pública e os

bons costumes. O entendimento de licitude que trazemos aqui é amplo, abarcando também

normas administrativas emanadas pelos conselhos profissionais e diretrizes das sociedades de

especialistas.136 Assim, não pode o consentimento ser válido se seu objeto não segue tais

preceitos. A Leges Artis médica (literalmente, as regras da arte médica, parâmetros para o

bom exercício da profissão) deve ser observada sempre que se prescreve uma conduta ao

paciente antes de se pensar na autorização do doente.

O consentimento para emanar seus efeitos deve ser obtido em razão da execução de

opções terapêuticas adequadas, de acordo com o conceito amplo de licitude apresentado. Não

                                                                                                               132FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 250. LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 129 134 O art 1566 do CC estabelece em seus incisos os deveres conjugais. 135 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 131 CFB e no CC Art. 227 p 3 da CFB e 1724 do CC 136 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p. 122.

  54  

é legítimo o consentimento dado a um procedimento que não esteja de acordo com as práticas

médicas vigentes. Tratamentos experimentais devem ser objeto de consentimento que ressalte

especificamente que o tratamento não é aprovado pela comunidade médica e com dever de

informação reforçado, a exemplo das pesquisas científicas em humanos.

É importante observar que o paciente não possui o direito de definir qual tratamento é o

mais indicado para o seu caso. O direito de consentir permite ao paciente manifestar sua

vontade de seguir ou não com um tratamento indicado, sua vontade isolada não indica

condutas que não estão indicadas para seu caso.137 Desse modo, o profissional não pode se

escusar de responsabilidade caso tenha indicado um procedimento ou tratamento apenas pelo

desejo do paciente. Isso é especialmente verdade em caso de condutas reguladas ou proibidas

pela lei. Podemos citar aqui a eutanásia, o abortamento e o auxílio ao suicídio.138

3.1.3. Informação adequada e redução a termo escrito: A forma de acordo com a lei

É prática comum em hospitais o requerimento da assinatura dos pacientes. nos

chamados termos de consentimento livre e esclarecido. 139 Tais formulários geralmente trazem,

além da identificação das partes e das suas responsabilidades e declarações de vontade, vários

alertas sobre riscos e características do procedimento em questão.

Hospitais e profissionais solicitam a assinatura desses documentos muitas vezes por

causa de receio do ajuizamento de demandas judiciais que recaiam sobre a violação do dever

de informação ou consentimento. Caso forem demandados, os réus alegariam, sustentados por

prova documental, que o requisito do consentimento informado foi cumprido. Apesar disso,

na doutrina brasileira, a discussão quanto ao ônus da prova nesse tipo de ação não foi

pacificada. Autores como Iberê Garcia argumentam que, como a responsabilidade médica não

é objetiva, não há onus probandi do médico quanto ao consentimento do paciente.140 Miguel

Kfouri Neto discorda de tal posição, afirmando categoricamente que o médico deve sempre

produzir prova de que obteve o consentimento. Como fundamento, o autor se remete à

jurisprudência francesa, que adota esse tipo de posicionamento. 141 Independente do resultado

                                                                                                               137 Ibidem. p. 122. 138 art. 121, § 1; 125; 126 e 122 do Código Penal, respectivamente. 139 LIMA, Gilberto Baumann. Consentimento informado na relação entre profissionais, instituições de saúde e seus pacientes. Londrina: GB de Lima, 2005. p.117 140 GARCIA, Iberê Anselmo. O risco permitido como critério de imputação do erro médico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista do Tribunais, 2006. p. 38. 141 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 51.

  55  

de tal discussão, a redução a termo escrito do consentimento não necessariamente adquire o

efeito que os profissionais e instituições hospitalares esperam.

Não existe, em lei específica ou no Novo Código de Ética Médica (NCEM) forma

definida para o consentimento informado de forma geral. Isso se baseia na ideia de propiciar

o contato entre o profissional e o doente, fortalecendo, assim, a relação médico paciente.

Diante da subjetividade dessa relação, a forma se torna secundária ao objetivo real do

instituto. Essa idéia vêm de encontro à prática habitual de se exigir formulários escritos em

instituições de saúde; e pode ser encarada como proposital, pois o texto do NCEM, quando

encarado como um todo, privilegia o contato pessoal e o vínculo de confiança entre médico e

paciente.

Exceções existem a essa regra. Um exemplo é o consentimento para cirurgias de

esterilização voluntária (vasectomia e laqueadura tubária), previsto na Lei de Planejamento

Familiar. Entre os pré-requisitos para a realização desses tipos de procedimento está o

consentimento por escrito do paciente e de seu cônjuge, se houver (art. 10, § 1º, Lei 9

263/1996). Entretanto, o próprio texto legal menciona o princípio da informação adequada,

afirmando que o consentimento documentado só deve ser obtido após o devido

esclarecimento do paciente.

Assim, a assinatura de formulários com grande quantidade de páginas, letras minúsculas

e com emprego excessivo de termos técnicos não configura um consentimento informado142.

Para que o formulário tenha qualquer valor, o paciente necessita de real esclarecimento

(princípio da informação adequada). 143. Edmilson de Almeida Barros Junior chega a afirmar

que o consentimento deve ser informado sempre de forma oral, apesar de admitir o registro

gráfico com fim de proteção legal do médico.144

No entanto, o objetivo de informar o doente e de obter seu consentimento será sempre a

sua proteção. Assim, apesar das divergências, conclui-se que a forma da autorização não

possui tanta importância, desde que haja real cumprimento do dever de esclarecimento, antes

da assinatura de termos escritos. O valor probatório dos termos escritos deve ser sim levado

em conta desde que esses termos reforcem o conteúdo da informação e endossem um

consentimento obtido segundo os parâmetros estabelecidos anteriormente.

                                                                                                               142 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 277. A decisão do recurso de apelação cível n˚ 20100112316318/DF entra em consonância com tais argumentos ao trazer o seguinte trecho: “A assinatura da paciente aposta em formulário padrão, com recomendações genéricas, não configura consentimento informado, haja vista não elencar de modo claro as complicações do procedimento cirúrgico de mamoplastia com a utilização de próteses de silicone a que fora submetida.” p. 2. 143 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 12˚ ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 250. 144 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 110.

  56  

3.2.Exceções ao dever de obtenção do consentimento informado

3.2.1. Situações de urgência e de emergência

Urgências são definidas pela resolução n˚ 1451/95145 do CFM como “a ocorrência de

imprevisto agravo à saúde, com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessite de

assistência imediata.” Já o termo emergência é reservado para situações mais graves em que

haja “constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente

de vida ou de sofrimento intenso, exigindo, portanto tratamento médico imediato”. Vamos

tratar aqui de situações em que a gravidade do estado de saúde e a inconsciência do paciente,

a necessidade de tomada rápida de determinada conduta e a falta de familiares presentes

obrigam o profissional a tomar medidas sem obter o consentimento de forma tempestiva.

Em tais cenários, especialmente quando estão presentes outras situações adversas como

a incapacidade do doente, é permitido ao médico agir sem o consentimento do paciente. A

finalidade de salvar a vida ou impedir um agravamento do estado de saúde do doente, quando

presente o perigo pela demora, justificam a intervenção sem autorização prévia. A ilicitude da

violação ao direito à autonomia é afastada por uma situação de estado de necessidade. 146 A

própria lei penal do Brasil exclui a responsabilidade do médico, caso esse tome decisões sem

autorização do paciente, entretanto, tal exceção só é valida em situações de iminente risco de

vida, não de qualquer urgência ou emergência147.

A maior liberdade de ação do médico em relação ao consentimento informado não

exclui seus outros deveres legais. Não pode o profissional utilizar-se arbitrariamente de

cirurgias de indicação duvidosa ou de tratamentos alternativos à prática médica costumeira.148

O dever de cuidado ainda deve guiar o médico, o que impõe uma prática que beneficie o

paciente. 149 Autores norte-americanos também vêm admitindo situações de urgência e

emergência como excludentes do dever de informar. Nisso, esses doutrinadores concordam

que o médico deve agir em tais situações guiado pela vontade que o paciente manifestaria

                                                                                                               145 Vide publicação no DOU, seção I, n˚ 53, página 3666, de 17 de março de 1995. 146 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 112 147 Código Penal: art. 146, §3˚, I: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Não se compreendem na disposição deste artigo: a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. 148 FARAH, Elias. Atos médicos – Reflexões sobre suas responsabilidades. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 152 149 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 4˚ed. p.281

  57  

caso fosse possível. 150 No direito português, essa é a chamada vontade hipotético-

conjuntural. 151 Para os juristas lusitanos, como André Gonçalo Pereira, em casos de

necessidade de intervenção urgente, o médico deve respeitar os princípios do consentimento

presumido, ou seja, a autorização que o paciente daria, de acordo com sua vontade hipotética,

caso estivesse em condições de responder152. Para Maria Helena Diniz, em casos de urgência

ou emergência, o médico deve também aplicar o instituto do consentimento presumido,

podendo, caso falhe em tomar uma conduta, ser responsabilizado penalmente por omissão de

socorro (CP, art. 135)153.

Desse modo, as situações de urgência e emergência dispensam muitas formalidades

necessárias para a realização de tratamentos. Entretanto, mesmo essas situações dramáticas

não justificam atuações arbitrárias. O médico deve sempre seguir seus deveres profissionais e

respeitar a vontade do paciente, ou ao menos supor essa vontade. As particularidades de cada

situação não podem ser afastadas, e, por isso, cada situação deve ser analisada

individualmente.

3.2.2. Recusa do direito de ser informado

O direto à autonomia pode adquirir várias facetas. A liberdade de decisão de um

indivíduo permite que ele aja livremente, nos limites da lei. Entretanto, desse conceito decorre

uma pergunta interssante: o direito à autonomia outorga a seu portador o direito de dela

abdicar? Mais especificamente, pode o paciente recusar seu direito de consentimento ou de

informação diante da necessidade de tratamento médico?

No caso do direito de informação, a resposta é afirmativa. A Declaração de Direitos dos

Pacientes (OMS, 1994) reconhece que “os pacientes têm o direito de não serem informados, a

seu expresso pedido.” Já a Recomendação n. 1418 (1999), adotada pela Assembléia

Parlamentar do Conselho da Europa, discorrendo sobre a proteção aos direitos humanos e à

dignidade dos enfermos terminais e moribundos, admite que estes pacientes não devem ser

informados de sua patologia caso assim seja seu desejo.

                                                                                                               150 SMITH, George P. The Vagaries of Informed Consent. Indiana Health Law Review. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 2 de maio de 2014. p. 113 151Ibidem. p. 522 152 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 510. 153 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 525.

  58  

Segundo o português André Gonçalo Pereira154, a renúncia à informação pode ser

expressa ou tácita. Devendo ser também clara e inequívoca. Tal autor defende que para que a

recusa à informação seja válida, são necessários dois pré-requisitos. O primeiro é a certeza de

que o paciente possui o conhecimento da possibilidade de conhecimento. Isto é, que o doente

saiba que existe a possibilidade de, a qualquer momento, obter esclarecimento sobre certos

aspectos de sua condição clínica. No entanto, isso poderia levar a uma, “recusa de informação

informada”, ou seja, para que o paciente possa recusar o seu direito à informação

conscientemente, o profissional deverá fornecer algum esclarecimento sobre a sua condição.

Caso o conteúdo divulgado ao doente seja muito amplo, teríamos o esvaziamento da recusa à

informação. Assim, ainda segundo o doutrinador lusitano, o segundo pré-requisito é o

fornecimento de uma informação básica, consistindo na transmissão delicada do

conhecimento suficiente para que o paciente pondere sobre seu direito de não receber dada

informação.

No caso brasileiro, autores como Maria Helena Diniz155 reafirmam o direito do paciente

recusar informações. A autora indica que a recusa deve ser expressa e consignada em ficha

clínica e que parentes próximos ou responsáveis devem ser informados no lugar do paciente.

Antônio Jeová Santos também admite que o doente, livre e esclarecido, não deve ser

informado, se este não for seu desejo, devendo, esse fato, porém, ser bem explicitado pelo

médico na ficha clínica.156

Há restrições ao direito a não saber. A comunicação da predisposição a moléstias graves

com fins preventivos e do contágio por doenças infecciosas, especialmente AIDS, com fim de

proteção de terceiros são exceções previstas pela Convenção Européia de Direitos do Homem

e Biomedicina157. Podemos acolher tais previsões no direito brasileiro, mesmo sem uma

legislação específica sobre o assunto, afinal o dever de cuidado e de beneficência do médico

exigem que o profissional tome alguma atitude em caso de risco de dano à saúde do paciente.

Este fato deve, no mínimo, por em discussão o direito de ser informado, principalmente na

possibilidade de que medidas preventivas diminuam ou façam cessar os malefícios que uma

doença possa causar ao paciente. A comunicação do doente de patologias infecto-contagiosas

adquire relevância maior que o direito de não informar, pois sua transmissão é tipificada pelo

Código Penal158 como crime, especialmente no que diz respeito a doenças sexualmente

                                                                                                               154 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 517. 155 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 813 156 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 4˚ed. p.283 157 CDHBio, arts. 10˚, n. 3 e 26˚. 158 Código Penal: arts. 130, 131.

  59  

transmissíveis. Diante da possibilidade de repressão penal, temos uma legítima causa de

afastamento do direito de não ser informado.

3.2.3. Privilégio terapêutico

O paciente pode ser privado de informações caso, após a verificação de suas condições

psicológicas e emocionais, o médico avalie que o esclarecimento pode causar dano ainda

maior ao bem estar e à saúde do doente. Esse instituto é chamado de privilégio terapêutico e

constitui uma das causas excepcionais de afastamento do dever de informação.

Maria Helena Diniz afirma em sua obra que o privilégio terapêutico deriva de dois

princípios da atividade médica: a beneficência e a não maleficência.159 Dessa forma, não pode

ser exigido do profissional o cumprimento de um dever que vá de encontro com os

fundamentos de sua arte. O propósito curativo da terapêutica é posto em cheque caso a

revelação de seus detalhes cause uma perturbação anímica no paciente que comprometa a

efetividade do tratamento ou ponha em risco sua integridade, como por exemplo a revelação

do diagnóstico de uma doença sem possibilidades curativas para um paciente com tendências

suicidas.

A legislação portuguesa acolhe o conceito do privilégio terapêutico caso a comunicação

com o paciente ponha em risco a sua vida ou possa lhe causar grave dano à saúde, física ou

psíquica.160 Apesar disso, existem restrições à aplicação do instituto nesse país. No caso de

procedimentos não terapêuticos (as chamadas operações “d’agrément”), o paciente não pode

ser privado de seu direito ao esclarecimento em nenhuma hipótese.161

Embora o Novo Código de Ética Médica preveja o instituto do privilégio terapêutico

(sem utilizar essa denominação), o afastamento da obrigação de informar não é

completamente exaurido por esse texto. O art. 34 do documento afirma que o médico não

pode deixar de informar o paciente, “salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar

dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.” Desse modo, o

direito de ser informado permanece de forma relativa, com seu titular modificado.

O privilégio terapêutico deve ser aplicado de maneira restrita. Embora não se possa

negar que a informação pode causar dano ao paciente, o direito à autonomia deve ser

                                                                                                               159 DINIZ, Maria Helena. O atual estado do Biodireito. 9˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 813. 160 Código Penal Português: art. 157. 161 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 513.

  60  

preservado no maior grau possível. Desse modo, é razoável a restrição do instituto para

intervenções estritamente terapêuticas ou paliativas.

3.3.O consentimento antecipado

3.3.1. O Testamento Vital

A crescente evolução da ciência médica trouxe o desenvolvimento de terapêutica

curativa para muitas patologias outrora fatais. De outra forma, foram desenvolvidas técnicas e

medicamentos capazes de dar suporte vital a pacientes graves, enquanto o tratamento curativo

fazia seu efeito. O progresso mencionado gerou um efeito colateral de extrema importância

para campos como a ética médica e o direito civil. Hoje é possível prolongar, por considerável

período de tempo, estados terminais, mesmo que não exista qualquer possibilidade concreta

de cura ou recuperação dos pacientes.162 Associadamente, temos a maior participação de

idosos (usuários freqüentes dos serviços de saúde) dentro da sociedade, a presença de crenças

religiosas que proíbem seus seguidores de realizar certos procedimentos e a maior

conscientização da população em relação ao risco-benefício de alguns procedimentos médicos

mais comuns.163

O panorama apresentado gera pressão por autonomia por parte dos pacientes, mesmo

que estes estejam acometidos por estados de inconsciência. O consentimento substituto,

solução comum para essa questão, apresenta (como foi exposto) diversas falhas sendo a

principal delas o fato de não refletir diretamente a vontade do doente. Para solucionar esse

problema, foram desenvolvidos meios de expressar o consentimento antecipadamente, de

forma que, ocorrendo uma situação de inconsciência, o médico possa embasar sua conduta em

uma manifestação objetiva da vontade do doente.

O primeiro deles foi o testamento vital, também conhecido como disposição

paratestamentária. Tal instituto é definido por André Gonçalo Pereira da seguinte forma:

O testamento de paciente consistem num documento escrito por uma pessoa maior e capaz, perante uma autoridade pública ou perante testemunhas, e que contém declarações

                                                                                                               162 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 307. 163 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 569.

  61  

antecipadas de vontade a respeito dos tratamentos que deseja ou não receber, tendo em vista eventuais situações de incapacidade de tomar decisões por e sobre si próprio.164

O paciente deve por meio do testamento vital declarar suas diretrizes antecipadas de

vontade, ou seja, cláusulas que disponham sobre certos procedimentos médicos a serem ou

não executados em caso de incapacidade do agente. As disposições paratestamentárias se

distinguem do testamento tradicional pelo caráter extrapatrimonial de suas cláusulas e pela

sua execução em vida do testador. As diretrizes antecipadas geralmente dispõe sobre a

realização ou não de métodos de reanimação cardiorrespiratória em caso de parada

cardiorrespiratória do paciente terminal, transfusões sanguíneas ou de órgãos, amputações,

etc.165

Tanto de maneira alternativa quanto cumulativa, o paciente pode designar um

procurador para cuidados de saúde, o qual decidirá pelo paciente incapaz. Esse instituto será

tratado posteriormente neste trabalho.

A doutrina americana foi pioneira na legalização do costume jurídico chamado no país

de living will pela edição de diplomas legais como o Natural Death Act, de 1976, e o Patient

Self-Determination, de 1991. Esses diplomas normativos atribuíram maior força vinculante às

disposições paratestamentárias em território americano166. Em Portugal, o testamento vital foi

consolidado pela Lei n.˚ 25/2012, que regulou as diretrizes antecipadas de vontade e a

nomeação de procurador para cuidados de saúde. A referida lei também criou o Registro

Nacional do Testamento Vital na tentativa de dar maior regulação ao instituto. Várias nações

européias admitem em sua legislação manifestações antecipadas de consentimento.167 Assim,

pode-se afirmar que a doutrina européia tende majoritariamente a aceitar, por exemplo, que

um paciente se recuse a um tratamento por meio de documento que ateste sua vontade

prévia.168

                                                                                                               164 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 571. 165 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Direito Médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2˚ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 110 166 A primeira menção legal do living will foi no estado americano da Califórnia em 1 de outubro de 1976 pelo Natural Death Act. Em 1991, 42 estados deste país já reconheciam tal instituto. Assim, em 1 de dezembro de 1991 foi editado o Patient Self-Determination Act que reforçou a autonomia do paciente em estabelecimentos privados financiados pelo Estado por meio da informação sobre o consentimento livre e esclarecido e do direito de estabelecer testamentos vitais. 167 A Espanha reconhece as chamadas instrucciones previas e, por meio da Ley 41/2002, delega a regulação dessa matéria para as Comunidades Autônomas. O Reino Unido apresentou tal conceito no Mental Capacity Act de 2005. Na França, a matéria é regulada pela Loi du 4 mars (dispondo sobre o procurador para cuidados de saúde) e pela Loi n.˚ 2005-370 du 22 avril 2005 (relativa ao testamento vital). O direito germânico recepcionou esse instituto pela lei de 1 de setembro de 2009. Para mais informações vide: PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 575.

  62  

O Conselho Federal de Medicina (CFM) deu um importante passo em direção à

autonomia dos pacientes por meio da Resolução n˚ 1.995/2012, que abordou a questão da

vontade antecipada do doente. Miguel Kfouri Neto menciona que tal documento é “[...]o

primeiro e importante passo, rumo à normatização do tema em nossa codificação civil”169. O

tema também foi contemplado na V Jornada de Direito Civil que, por meio de seu enunciado

528, declara a validade do instituto170. Apesar disso, até o momento, o legislativo brasileiro

não editou diplomas normativos que versassem especificamente sobre o tema.171

A resolução do CFM aplica às diretrizes antecipadas de vontade o conceito de

testamento vital (não mencionando o último termo) e estabelece que elas devem prevalecer

sobre qualquer outro parecer não-médico e também sobre o desejo de familiares. Além disso,

não havendo diretrizes antecipadas e discordando os responsáveis sobre a conduta a ser

tomada, o profissional deve procurar a Comissão de Ética Médica do hospital ou os

Conselhos Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos

éticos, sempre que entender esta medida como necessária.

A resolução não dita forma específica para as diretrizes antecipadas, nem tampouco

exige registro em cartório. Caso o paciente manifesta sua vontade, de forma livre e capaz, de

modo a aceitar ou a recusar procedimentos futuros, o profissional deverá consignar esse fato

em prontuário clínico, constituindo tal registro fonte legítima de prova dada a fé pública

atribuída ao médico assistente.172 Apesar de não ser condição necessária, é facultado ao

paciente o registro de sua vontade antecipada em cartório, uma exigência para a validade do

termo em países como Portugal.

Uma interessante questão sobre o normatização realizada pelo CFM é que em momento

nenhum o órgão restringe a aplicabilidade do instituto. O testamento vital é uma prática muito

ligada a pacientes cujo estágio de doença não permite mais intervenções curativas, embora

nada impeça sua aplicação em outras situações de incapacidade. 173 Apesar dessas

                                                                                                               169 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 308 170 528 – Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade. V Jornada de Direito Civil. 171 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 319 172 Nota do CFM sobre a Resolução n˚ 1.995/2012 disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23197:pacientes-poderao-registrar-em-prontuario-a-quais-procedimentos-querem-ser-submetidos-no-fim-da-vida&catid=3 173 Um exemplo comum a ser mencionado é o caso dos pacientes que professam religiões que proíbem a transfusão de órgãos ou sangue. Em situações de urgência que indicassem esses procedimentos, a presença de testamento vital poderia mitigar o dever de beneficência do médico, provendo mais força à vontade do doente.

  63  

liberalidades, autores como Miguel Kfouri Neto e André Gonçalo Pereira afirmam que, no

Brasil, as diretrizes antecipadas de vontade têm seus efeitos restritos a situações de cuidados

paliativos, promovendo a prática da ortotanásia (morte sem sofrimento)174. O CFM, por meio

de nota publicada em seu site oficial, esclareceu (embora de forma pouco direta) que adota a

posição de que a utilização do testamento vital está reservada a fases terminais de doenças.175

Mesmo com o avanço na discussão sobre a matéria, ainda é necessário muito trabalho

de órgãos judiciários e legislativos, associações médicas e representantes de pacientes, de

forma a assegurar uma maior conscientização da população e dos profissionais sobre os

direitos protegidos pelas diretrizes antecipadas de vontade. Além disso, é preciso assegurar a

força vinculante ao testamento vital, de forma a garantir maior segurança a pacientes e

profissionais.

3.3.2. Procurador para Cuidados de Saúde

O procurador para cuidados de saúde (ou portador de um mandato duradouro) seria o

agente designado pelo paciente para tomar decisões por ele em caso de incapacidade.176 É

importante ressaltar que, antes de se verificar a incapacidade do agente, o mandato pode ser

revogado a qualquer tempo177. De qualquer forma, o mandato duradouro foi desenvolvido

para suprir algumas das limitações das diretrizes antecipadas de vontade.

O conceito de procurador para cuidados de saúde complementa a idéia de testamento

vital. Em virtude de serem previamente estabelecidas, as diretrizes antecipadas não têm a

capacidade de se adaptar a novas circunstâncias. Por isso, muitas vezes se complementa a

prática com o fornecimento de um mandato duradouro. O fundamento dos institutos de

procuração para cuidados de saúde e de testamento vital seria a admissão da possibilidade do

paciente manifestar antecipadamente sua vontade no tocante a intervenções de saúde e

principalmente ao prolongamento da vida no caso de falta de capacidade. Miguel Kfouri Neto

esclarece o conceito desse instituto oriundo do direito americano:

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Sobre o enfraquecimento do dever de beneficência em face a diretrizes antecipadas de vontade, vide KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 308. 174 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 317-318; PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 579-580 175 Nota do CFM sobre a Resolução n˚ 1.995/2012 disponível em: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23197:pacientes-poderao-registrar-em-prontuario-a-quais-procedimentos-querem-ser-submetidos-no-fim-da-vida&catid=3> 176 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 571. 177 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 317.

  64  

O procurador para cuidados de saúde é o representante escolhido pelo paciente na plena posse de suas capacidades intelectuais e volitivas, para, na eventualidade de incapacidade superveniente, tomar decisões necessárias, relacionadas a saúde do mandante.178

A Resolução n˚ 1.995/2012 do CFM admite a figura do procurador para cuidados de

saúde, embora não especifique o termo a ser utilizado.179 O mesmo documento limita a

vontade do paciente e do seu representante, que não pode descumprir os preceitos éticos da

medicina. Não há qualquer outra restrição ou formalidade no instituto.

A aceitação da figura do procurador para cuidados de saúde não é tão ampla quanto a do

testamento vital. Isto porque alguns autores afirmam que os direitos da personalidade, como o

direito a vida e à integridade física, têm caráter pessoal e intransmissível.180 A linha oposta de

argumentação defende que a proteção do direito a autonomia admite a realização de

procurações, desde que as decisões sejam tomadas com o propósito de proteção de bens

essenciais, como a saúde e a vida do enfermo. 181

Miguel Kfouri Neto, tomando por base legislações internacionais acerca do tema, traça

algumas considerações acerca do instituto, e afirma que, além da forma escrita e da concessão

expressa de poderes, é exigida a presença de um notário ou de três testemunhas para a

validade do mandato duradouro182.

Devido às discussões acerca da validade do instituto da procuração para cuidados de

saúde relacionada à possibilidade de disposição, em favor de terceiros, de direitos da

personalidade, os quais consistem nos bens jurídicos mais preciosos de qualquer indivíduo, é

necessária maior regulação da procuração. O abuso de direito põe em choque o profissional e

o procurador. Enquanto esse possui o mandato com certa força vinculante, aquele possui o

dever de cuidado e de beneficência. Desse modo, mais do que no caso do testamento vital,

uma maior restrição e condicionamento dos poderes que podem ser atribuídos ao procurador

são absolutamente necessários, para que se possibilite maior proteção do paciente que se

encontra em uma situação de grande vulnerabilidade, tanto física quanto psíquica.

                                                                                                               178 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 316. 179 A Resolução n˚ 1.995/2012 do CFM em seu Art. 2˚ expõe que: Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1˚ Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. 180 Rui Nunes e Helena Pereira de Melo expõem um panorama sobre o estado desse debate entre a doutrina portuguesa. NUNES, Rui; MELO, Helena Pereira de. Testamento Vital. Coimbra: Almedina, 2011. p. 175-177. 181 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8˚ ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 316. 182 Ibidem. p. 317.

  65  

CONCLUSÃO

O consentimento livre e esclarecido é, hoje, um dos pilares da boa prática médica. O

combate à enfermidade é o laço que une os esforços do profissional, portador do

conhecimento técnico e prático, e o paciente, conhecedor do seu próprio processo patológico

e detentor da vontade necessária para a execução do tratamento. Desse modo, a busca da cura

pode ser caracterizada como um processo de cooperação entre o profissional e o doente.

Esse entendimento concretizou-se a partir da falência do modelo paternalista de relação

médico-paciente. A postura do profissional naquele regime, de se incumbir do dever de cura

sozinho, desconsiderando a participação do doente, não pode ser mais sustentada hoje. De

modo geral, esse modelo de relação médico-paciente, do início do século XVIII, falhou em

promover uma maior cooperação entre as partes, pois levava o profissional a acreditar que sua

perícia e seu trabalho, baseados no conhecimento científico, eram o único caminho para o

sucesso terapêutico.

Por isso, houve uma paulatina modificação dos papéis do profissional e do enfermo

dentro do processo patológico. Hoje podemos vislumbrar a ascensão de um novo padrão de

relação médico-paciente: o modelo contratualista. O objetivo dessa mudança é possibilitar

uma maior paridade entre informação e responsabilidade, o que reforçaria a confiança mútua

entre as partes envolvidas. É importante ressaltar que esse modelo de relacionamento não é

estanque mas, pelo contrário, é ainda um processo inacabado e em contínuo amadurecimento.

Resquícios da velha mentalidade permanecem entre profissionais e até mesmo entre

pacientes. Restam também algumas incertezas que este novo modelo ainda não conseguiu

resolver.

Neste contexto de transição, a doutrina do consentimento informado surge como um

importante impulso em direção à mudança. Por isso, o dever de informar e o direito de

consentir constituem práticas essenciais a uma atuação médica que valorize e respeite a

autonomia do enfermo. Não obstante sua importância, os limites desses conceitos não se

encontram tão bem estabelecidos quanto médicos e pacientes poderiam esperar.

Mesmo diante de todo esforço que o médico possa incutir no esclarecimento do

paciente, dificilmente esse, que não tem um treinamento médico com anos de estudo e prática

clínica, irá possui discernimento comparável ao de um profissional habilitado. Por esse

motivo, o dever de informar, no plano internacional, é um dos temas mais debatidos dentro do

consentimento informado. Os limites dessa obrigação médica são frequentemente

questionados nas cortes estrangeiras, alimentando o debate doutrinário sobre o tema. Muitas

  66  

teorias apresentadas tentam delinear o tema juridicamente. O objetivo seria diminuir a

distância entre o leigo e o profissional, de forma a proteger o direito à autonomia.

A informação deve ser fornecida de maneira compreensiva e suficiente, para que seu

receptor tenha significativo poder decisório. Assim, informações sobre diagnóstico, indicação

do tratamento, opções terapêuticas alternativas e riscos do procedimento são absolutamente

necessárias. Outra questão pertinente ao dever de informação é a verificação da titularidade

do dever de esclarecimento, o qual deve ser claro e bem definido, de modo a reforçar a

proteção dos direitos do paciente. Para isso, a obrigação do profissional deve estar claramente

delineada, de forma que possa se concentrar em fornecer a informação relativa à sua área de

especialização mais eficazmente. No entanto, dificilmente o paciente vai ser assistido por um

mesmo médico durante toda sua internação e as delimitações das obrigações de cada

profissional podem criar lacunas, ou seja, situações em que ninguém se responsabilizaria por

esclarecer o doente. Como importante instrumento para solucionar eventuais brechas na

titularidade do dever de informação, podemos indicar a figura do médico assistente, que vem

ganhando força na doutrina e na jurisprudência lusitana.

Ademais, riscos são uma parte importante do conteúdo da informação. A doutrina

majoritária indica que os riscos a serem revelados são os mais comuns. Riscos graves, mesmo

que raros também devem ser revelados, pois teriam a capacidade de fazer o paciente mudar

sua opinião sobre o consentimento, reforçando o conceito de risco significativo. Embora

tribunais de alguns países defendam a obrigação de se explicitar todos os riscos de um

procedimento, essa prática dificilmente traz uma maior proteção à autonomia do paciente,

uma vez que a utilidade marginal da informação de riscos excepcionais é muito baixa e gera

insegurança nos pacientes, a qual se direciona aos profissinais.

Para aumentar a segurança jurídica do dever de informar, deve-se admitir o seu âmbito

limitado de proteção. O médico, responsável pelo dever de informar, deve cumprir sua

obrigação em conscientizar o paciente dos riscos inerentes a cada procedimento. Após a

aceitação da conduta, baseada nos riscos significativos, a concretização de um dano

proveniente de um fato imprevisível ou extremamente incomum não deve ser imputada ao

profissional, pois esse dano se situa na esfera de risco do paciente. Uma compreensão no

sentido contrário, como foi explicitado, acarreta a deterioração da relação médico-paciente, o

que prejudica o processo terapêutico. A confiança é um bem valioso nesse processo e ambas

as partes devem buscar protegê-la.

Uma das formas de proteção da confiança é a necessidade do consentimento para a

realização de procedimentos. Excetuando-se aqui situações bem fundamentadas de dispensa

  67  

na obtenção de consentimento, tais como situações de emergência e urgência, está claro que a

autorização prévia do paciente deve ser pré-requisito para a execução de qualquer cirurgia ou

procedimento invasivo. Contudo, trata-se de situações nebulosas, às que exigem maior

atenção por parte da ciência jurídica.

Agentes sem capacidade não tem a prerrogativa de consentir. A vontade de tais

indivíduos possui valor jurídico limitado, devendo seus representantes legais e os assistentes

em conjunto com o assistido buscar atingir os melhores interesses do paciente incapaz. Para

esse fim, no caso de menores de idade e portadores de psicopatias, o consentimento substituto

supre a incapacidade desses indivíduos. É reservado ao médico o importante papel de

verificar se o consentimento, ou sua ausência, é compatível com o bem estar do doente.

Diante da resposta negativa, cabe ao profissional recorrer ao consentimento judicial ou, em

caso de emergência, seu dever de beneficência o respalda a proceder com a melhor conduta,

mesmo à revelia do representante.

Pacientes incapazes mas que durante parte da sua vida estiveram lúcidos podem se valer

de outro meio para fornecer o consentimento. Exemplos clássicos dessa situação podem ser

encontrados nos casos de enfermos com perda transitória de consciência devido a traumas

craniencefálicos ou vasculopatias cerebrais ou em estágios terminais de doenças

neurodegenarativas ou neoplasias metastáticas. A vontade desses indivíduos, em certa parte

de sua vida, pôde ser livremente expressa. Assim, para que se evite o desvirtuamento dos

desejos de um indivíduo sobre sua saúde e sua integridade física, deve ser facultado ao

paciente a possibilidade de redigir um documento que contenha suas diretrizes avançadas de

saúde, também conhecido como testamento vital.

O endosso de tal prática, fornecido pela Resolução n˚ 1.995/2012 do CFM e pelo

enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil, é sem duvida um progresso. No entanto, a

recepção das modalidades de consentimento antecipado dentro do sistema jurídico brasileiro

está longe de ter amadurecido. Ainda é necessário muito trabalho doutrinário e jurisprudencial

para delinear melhor o instituto do testamento vital e de seu complemento, a procuração para

cuidados de saúde. A forma jurídica, o âmbito de aplicação e, principalmente, as limitações

do consentimento antecipado devem ser matérias essenciais em qualquer trabalho sobre o

tema. Felizmente, o tratamento dado pelo CRM ao testamento vital nos oferece um

interessante ponto de partida para o debate. Apesar disso, não se deve tratar de maneira

exclusivamente ética o condicionamento a um documento ou a terceiros da vontade pessoal

concernente a direitos de personalidade.

  68  

O consentimento informado não é uma solução extraordinária para todas contendas

advindas da difícil relação entre curador e enfermo. Trata-se de um instrumento poderoso, um

processo desenvolvido ao longo de anos de esforços, erros e inovações. Diversas gerações de

médicos, juristas e doutrinadores já se debruçaram sobre esse tema. A atual forma do instituto

do consentimento não é definitiva, mas sim um processo em evolução. Apesar de muitos dos

problemas passados terem sido solucionados e expostos neste trabalho como pontos pacíficos

e com perfeita fundamentação lógica, não foram deixados para trás lacunas, temas

controversos ou temas ainda em discussão. Desse modo, o trabalho de construção doutrinária

continua. Embora o presente estudo tenha tentado abarcar e descrever todo esse

conhecimento, muito trabalho sobre o tema do consentimento informado ainda se faz

necessário. Deve-se, obviamente, direcionar esse esforço para assegurar a manutenção da

dignidade e bem estar do ser humano, a qual é o ponto de partida e de chegada não só da arte

médica, mas também da ciência jurídica.

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