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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma análise multirrepresentacional
da linguagem
Clara Oliveira Esteves
2013
ii
O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma análise multirrepresentacional
da linguagem
Clara Oliveira Esteves
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Linguística
Orientadora: Prof.a Dr.a Christina Abreu Gomes.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2013
iii
O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma análise multirrepresentacional da
linguagem
Clara Oliveira Esteves
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Christina Abreu Gomes
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística. Examinada por:
Presidente, Professora Doutora Christina Abreu Gomes – UFRJ
Professora Doutora Thaïs Cristófaro Silva - UFMG
Professora Doutora Jane Correia – UFRJ
Professora Doutora Renata Mousinho Pereira da Silva – UFRJ
Professora Doutora Myrian Azevedo de Freitas – UFRJ
Professora Doutora Márcia Cavadas – UFRJ, Suplente
Professora Doutora Kristine Stenzel – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
iv
DEDICATÓRIAS
Aos meus pais amados, Mônica e Altamiro, meus maiores incentivadores, que com todo o seu amor, me fizeram chegar até aqui! Ao meu avô amado, Antônio Carlos, que junto com Manoel de Barros, me permitiu voltar à infância, “desinventando” as memórias da vida!
Dedico esta tese com todo o meu carinho.
v
A todas as crianças que, por qualquer razão, entram no mundo da linguagem de uma forma tão única, me fascinando e me fazendo buscar a compreensão a todo instante desses singulares devires humanos,
dedico essa tese que busca desvendar algumas universalidades,
pois também é preciso entender essas generalizações para entrar no mundo das singularidades.
vi
AGRADECIMENTOS
Ao meu amigo e companheiro amado, André, que com toda a sua sensibilidade e amor incondicional me ofertou um porto seguro de paz e serenidade tão necessário neste momento de vida. Aos meus irmãos amados, Paula e Pedro, por todo o carinho, companheirismo e apoio, que nesse momento de vida vieram à distância, mas que deram sentido a tudo. À Paula, em especial, por todas as nossas discussões científicas interdisciplinares tão fundamentais para a construção do nosso conhecimento acadêmico. Às minhas avós amadas, Zeza e Marieta (in memoriam), por terem sempre me acolhido em seus “colos de vó”, por todo amor e carinho que me sustentaram ao longo da minha vida! A toda minha família e amigos queridos, tanto cariocas como baianos, por entenderem a minha ausência em diversos momentos e me incentivarem com tanto amor, carinho e amizade. À minha querida e eterna Mestre, Monica Rocha, que nunca me deixou esquecer de olhar para além dos “erros” de linguagem, para aquilo que escapa da regularidade das classificações, e que, assim, me faz refletir a todo instante sobre o lugar da clínica da linguagem. À minha querida orientadora, Christina Gomes, que, para além de cumprir seu papel com toda a maestria e profissionalismo, também me apoiou ao longo desses quatro anos com a sua enorme sensibilidade humana. Aos professores Gastão Coelho e Marcos Emanoel por se mostrarem tão disponíveis a ajudar com as “terríveis” análises estatísticas. Às fonoaudiólogas queridas Flávia Mendonça, Ana Paula Botelho, Carolina Magalhães, Gladis dos Santos, Tayane Almeida e Michele Santana por todas as discussões clínicas que contribuíram enormemente com a parte experimental deste projeto. À direção e às professoras das instituições educacionais, assim como a todos os pais e crianças que se disponibilizaram a contribuir com a parte experimental deste projeto. A todos os professores e funcionários da Pós-graduação em Linguística que acompanharam a evolução deste projeto e à FAPERJ pelo fomento à pesquisa, que proporcionou a bolsa de doutorado, sem a qual, este projeto não seria viável.
vii
“Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de Sol, de céu e de lua mais do que aprendeu na escola. No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo Mais do que os padres lhes ensinavam no internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida No tronco das árvores só serve pra poesia. No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos. Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas.”
“Repetir, repetir... até fazer diferente.”
(Manoel de Barros)
viii
Esteves, Clara Oliveira. O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio
Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma análise multirrepresentacional da linguagem/ Clara Oliveira Esteves. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2013.
xiv, 131f.: il; 31cm. Orientador: Christina Abreu Gomes Tese de Doutorado – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em
Linguística, 2013. Referências Bibliográficas: f. 114-119 1. Transtornos de Linguagem 2. Conhecimento Fonológico 3.
Modelos Multirrepresentacionais de Linguagem I. Gomes, Christina Abreu. II. UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Linguística. III. Título.
ix
RESUMO
O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma análise multirrepresentacional da
linguagem
Clara Oliveira Esteves Orientadora: Prof.ª Dr.ª Christina Abreu Gomes
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística.
Essa tese analisou o desempenho de 18 crianças com transtornos de linguagem (7 com Dislexia (DIS), 7 com Desvio Fonológico (DF) e 4 com Distúrbio Específico da Linguagem (DEL)) e 18 crianças com desenvolvimento típico (DT - 7 pareadas com o grupo DIS, 7 pareadas com o grupo DF e 4 pareadas com o grupo DEL pela idade) em um teste de Repetição de Pseudopalavras, a fim de investigar o conhecimento fonológico das mesmas. Medidas de memória sequencial auditiva, vocabulário receptivo e acuracidade de palavras reais foram utilizadas comparativamente. Assumiram-se os pressupostos dos Modelos Multirrepresentacionais (MMR), que preconizam a abstração da linguagem de forma gradual, constituindo diferentes tipos de conhecimento fonológico, a partir de um léxico adquirido através do uso da linguagem na interação com o outro e organizado em redes de conexão.
A comparação entre os desempenhos das crianças nos 4 testes mostrou que o principal preditor para o desempenho no teste de Repetição de Pseudopalavras foi vocabulário receptivo. Como consequência, neste teste, os grupos DT e DIS (com vocabulário dentro do esperado para a idade) obtiveram melhores desempenhos que o grupo DF (vocabulário 21% abaixo do esperado), que por sua vez, apresentou melhores desempenhos que o grupo DEL (vocabulário 65% abaixo do esperado). Os grupos DT, DIS e DF não foram sensíveis ao efeito de frequência silábica dos estímulos, diferindo do grupo DEL. Por fim, grupo DF acessou informações fonológicas abstratas, mas falhou na organização do detalhamento fonético, enquanto o grupo DEL apresentou dificuldades com os padrões fonológicos abstratos.
Estes resultados localizam os déficits fonológicos das crianças com diferentes transtornos de linguagem em tipos de conhecimento fonológico também diferentes, caracterizando a sua natureza distinta, além de reiterar os pressupostos dos MMR de linguagem, de que o léxico dá suporte à organização dos padrões fonológicos abstratos. Palavras-chave: transtornos de linguagem, conhecimento fonológico, léxico, gramática, modelos multirrepresentacionais de linguagem.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2013
x
ABSTRACT
Phonological knowledge in children with dyslexia, phonological disorder and specific language impairment: a usage-based analysis.
Clara Oliveira Esteves
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Christina Abreu Gomes
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística.
This study examined the performance of 18 children with language disorders
(7 with dyslexia (DYS), 7 with phonological disorder (PD) and 4 with specific language impairment (SLI)) and 18 typically developing children (TD – 7 pared with DYS, 7 pared with DF and 4 pared with DEL, by age) in a pseudoword repeat test in order to investigate the phonological knowledge of the children, setting similarities and differences. Measurements of sequential auditory memory, receptive vocabulary and accuracy of naming real words were also used comparatively. It was assumed the usage-based models (UBM), which assumes the abstraction of language gradually, forming different types of phonological knowledge, from a lexicon acquired by using language in interaction with the adult and organized into networks of connections.
The comparison between the performances of children in those four tests demonstrated that, in general, a measurement of receptive vocabulary is the main predictor for the test pseudoword repetition. As a result, TD and DYS groups (with vocabulary as expected for age) showed better results than the PD group (vocabulary 21% lower than expected), which in turn showed better performances than the SLI group (vocabulary 65% lower than expected). Still, TD, DYS and PD groups were not sensitive to the effect of syllabic frequency, differing of the SLI group. The PD group access abstract phonological information, but failed in the organization of phonetic detail, while the SLI group presented difficulties with phonological abstract patterns.
These results localize the phonological deficits of children with different language disorders in different types of phonological knowledge, characterizing their distinct nature, while corroborate with the assumptions of UBM, in witch lexicon supports the organization of phonological abstract patterns.
Key words: Language disorders, phonological knowledge, lexicon, grammar, usage-based models
Rio de Janeiro Fevereiro de 2013.
xi
SUMÁRIO
i. Lista de Tabelas ------------------------------------------------------------------- xii ii. Lista de Figuras, Quadros e Gráficos ---------------------------------------- xiii iii. Lista de Siglas --------------------------------------------------------------------- xiv
I. INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------- 15
II. O CONHECIMENTO LINGUÍSTICO ----------------------------------------------- 22 2.1 Como pensar o conhecimento linguístico? --------------------------- 22 2.2 A aquisição do conhecimento fonológico ----------------------------- 26
2.2.1 As primeiras propostas ------------------------------------------- 26 2.2.2 Caracterização dos Modelos Multirrepresentacionais --- 29
2.3 O conhecimento fonológico em adultos ------------------------------- 34 III. DISLEXIA, DESVIO FONOLÓGICO E DEL ------------------------------------- 40 3.1 Dislexia ------------------------------------------------------------------------- 40 3.2 Desvio Fonológico ----------------------------------------------------------- 46 3.3 Distúrbio Específico de Linguagem ------------------------------------- 53 3.4 Diferenças e semelhanças entre DIS, DF e DEL -------------------- 61
IV. OBJETIVOS, HIPÓTESES E MÉTODO DE TRABALHO -------------------- 65 4.1Objetivos e hipóteses de trabalho --------------------------------------------- 65
4.1.1. Objetivo geral ------------------------------------------------------- 65 4.1.2. Objetivo específico ------------------------------------------------ 66 4.1.3. Hipóteses ------------------------------------------------------------ 66
4.2 Método de trabalho ------------------------------------------------------------ 67 4.2.1. Participantes -------------------------------------------------------- 67 4.2.2. Procedimentos ----------------------------------------------------- 68 4.2.3. Instrumentos -------------------------------------------------------- 70 4.2.4. Modelos Estatísticos ---------------------------------------------- 79
V. RESULTADOS E DISCUSSÃO ----------------------------------------------------- 81 5.1 Caracterização dos grupos ----------------------------------------------- 81 5.2 Comparação dos grupos -------------------------------------------------- 87
5.1.1. Testes Padronizados --------------------------------------------- 87 5.1.2. Teste de Nomeação de Figuras ------------------------------- 89 5.1.3. Teste de Repetição de Pseudopalavras -------------------- 91
i. Desempenho dos grupos -------------------------------- 91 ii. Fatores preditores de desempenho ------------------ 93 iii. Efeitos de frequência -------------------------------------- 94 iv. Natureza das substituições fonológicas ------------- 98
5.3 Discussão --------------------------------------------------------------------- 103 VI. CONCLUSÕES ------------------------------------------------------------------------- 108
VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ----------------------------------------------- 114 VIII. ANEXOS --------------------------------------------------------------------------------- 120
xii
LISTA DE TABELAS
TABELA 01: Distribuição das crianças quanto à idade (meses) e gênero -------------- 81
TABELA 02: Medidas descritivas da distribuição por idade e por grupo ---------------- 82
TABELA 03: Medidas descritivas dos Escores de Memória Sequencial Auditiva ----- 84
TABELA 04: Medidas descritivas dos Escores de Vocabulário Receptivo -------------- 85
TABELA 05: Medidas descritivas dos Escores de Nomeação de Figuras -------------- 85
TABELA 06: Medidas descritivas dos Escores de Repetição de Pseudopalavras---- 86
TABELA 07: Médias dos escores obtidos e esperados nos testes de Memória Sequencial Auditiva e Vocabulário Receptivo, Proporção da diferença entre tais escores e medidas estatísticas --------------------------------------------------------------------- 87
TABELA 08: Teste de Mann Whitney – Teste de Nomeação de Figuras --------------- 90
TABELA 09: Efeito de Frequência – itens frequentes X não frequentes ---------------- 95
TABELA 10: Produção de criança com DEL – 11 anos e 6 meses ----------------------- 98
TABELA 11: Produção de criança com DEL – 5 anos e 4 meses ------------------------- 99
TABELA 12: Produção de criança com Desvio Fonológico --------------------------------- 100
TABELA 13: Produção de criança com Dislexia ----------------------------------------------- 101
TABELA 14: Produção de criança com Desenvolvimento Típico ------------------------- 101
xiii
LISTA DE FIGURAS, QUADROS E GRÁFICOS
FIGURA 1: Prancha Utilizada no Teste de Vocabulário Receptivo --------------- 69
GRÁFICO 01 – Distribuição dos escores do Teste de Repetição de Pseudopalavras por grupo ------------------------------------------------------------------ 92 GRÁFICO 02: Curva de Tendência para a média dos escores dos itens frequentes e não frequentes do teste de repetição de pseudopalavras em função do léxico – grupo DT ---------------------------------------------------------------- 97
QUADRO 01: Comparativo de Desempenho – Memória Sequencial Auditiva e Vocabulário Receptivo --------------------------------------------------------------------- 88
QUADRO 02: Comparativo de Desempenho – Nomeação de Figuras ---------- 90
QUADRO 03: Comparativo de Desempenho – Repetição de Pseudopalavras 92
QUADRO 04: Comparativo de Desempenhos – Resumo dos Testes ----------- 93
QUADRO 05: Comparativo de Características – Memória de Trabalho, Tamanho de Léxico e Representação Fonológica ------------------------------------ 103
xiv
LISTA DE SIGLAS
MMR = Modelos Multirrepresentacionais de Linguagem
GU = Gramática Universal
GS = Grau de Semelhança
TOT = “Tip Of the Tong”; estado de estar com a palavra “na ponta da língua”
ASPA = Avaliação Sonora do Português Atual; projeto de estudos linguísticos vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais.
PB = Português Brasileiro
AF = alta frequência
BF = baixa frequência
GCl = Grupos Clínicos
DIS = Dislexia
DF = Desvio Fonológico
DEL = Distúrbio Específico de Linguagem
GCo = Grupos de Controle
DTdis = Subgrupo dos grupos de controle com crianças de desenvolvimento típico pareado com as crianças com dislexia.
DTdf = Subgrupo dos grupos de controle com crianças de desenvolvimento típico pareado com as crianças com desvio fonológico.
DTdel = Subgrupo dos grupos de controle com crianças de desenvolvimento típico pareado com as crianças com distúrbio específico de linguagem.
DT = Desenvolvimento típico
SPAM = Teste de memória sequencial auditiva
PBDY = Teste de vocabulário receptivo
REP_FG = média de escores dos itens de alta frequência do teste de pseudopalavras
REP_NFG = média de escores dos itens de baixa frequência do teste de pseudopalavras
I INTRODUÇÃO
Por volta das décadas de 50 e 60, a Fonoaudiologia se constituía como um
saber técnico, voltado para a reabilitação comportamental dos distúrbios que
acometiam os mecanismos anatomofuncionais do aparelho fonoarticulatório. Dessa
forma, suas intervenções estavam pautadas muito mais no treinamento da fala do
que na intervenção sobre os processos de linguagem. A partir das décadas de 70 e
80, há uma aproximação da Fonoaudiologia com os saberes da Linguística Gerativa1
e, assim, as práticas fonoaudiológicas passam a se voltar para a caracterização e
compreensão de um objeto de estudo diferente do aparato vocal. Este novo objeto
de estudo se constitui pelos diferentes Distúrbios da Linguagem, que passam a ser
analisados sob a luz das teorias linguísticas de base gerativa (Rocha, 2007). Nesse
sentido, as práticas fonoaudiológicas se voltam, então, para o ensino da estrutura da
língua àquele que não a produz corretamente. Finalmente, em torno das décadas de
80 e 90, passa a haver também, nos discursos fonoaudiológicos, uma compreensão
da clínica a partir de uma concepção sócio-interacionista2, na qual se entende a
interação com o outro mediada pela linguagem como um fator constituinte do sujeito
humano (Freire, 2002).
Contudo, a Linguística Gerativa parte do pressuposto de que as crianças
seriam dotadas de um dispositivo e conhecimento linguístico inatos, que as
capacitaria para a aquisição da linguagem, tendo, o ambiente, um papel secundário
neste processo. Esse pressuposto não é compatível epistemologicamente com uma
concepção de clínica sócio-interacionista, que parte da dialética para explicar os
processos de aquisição de linguagem e, na qual a mediação do outro tem papel
fundamental. Nesse sentido, é necessário fazer uma aproximação da
Fonoaudiologia com trabalhos recentes da própria Linguística, que trazem
evidências empíricas refutando alguns dos postulados das teorias de base gerativa.
Essas novas concepções linguísticas formam o conjunto de teorias que se intitulam
Modelos Baseados no Uso (Usage-Based Models) ou Modelos Multirrepresenta- 1 No âmbito da Linguística, pode-se traçar a sua trajetória a partir dos postulados de Noam Chomsky, um pesquisador de grande importância para a literatura que, a partir da década de 50, sistematizou e conferiu o status de ciência cognitiva à Linguística. Em função disto, durante muito tempo, a Teoria Gerativa – de sua autoria – predominou nos estudos linguísticos e, consequentemente, também na literatura fonoaudiológica (cf. Ingram, 1976 para exemplo de uma aproximação da prática clínica com os modelos gerativistas). 2 Baseada na obra de Lev Vygotsky, psicólogo russo que inaugura os estudos da Psicologia Sócio-histórica.
I. Introdução 16
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
cionais de linguagem, e que postulam a existência de propriedades gerais inatas da
cognição humana, mas também e principalmente, o uso da linguagem na interação
com o outro como fundamentais para o processo de aquisição de linguagem. Tais
modelos pressupõem que a representação abstrata da linguagem emerge de forma
gradual, ao longo do desenvolvimento da criança, somente a partir de um léxico
adquirido com o uso da linguagem na interação com o outro. E ainda, tal léxico
emergente estaria organizado em redes de conexões e não de forma estática como
proposto pelos modelos gerativistas. Dessa forma, é possível estabelecer uma
ligação entre as intervenções terapêuticas pautadas na interação e as análises
cognitivas – também necessárias na clínica da linguagem – acerca das
representações linguísticas estabelecidas pela criança com algum distúrbio.
Assim, a fim de contribuir com este diálogo entre a Fonoaudiologia e essas
novas concepções da Linguística, o presente trabalho possui como objeto de estudo
o conhecimento fonológico de crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e Distúrbio
Específico de Linguagem, que serão analisados e discutidos sob a ótica dos
Modelos Multirrepresentacionais de linguagem (MMR) (Goldberg, 1995; Johnson,
1997; Tomasello, 2003; Vihman e Croft, 2007; Bybee, 2001 e 2010; Pierrehumbert,
2001, 2003 e 2012; Croft, in press). Tais patologias, apesar de suas diferenças
clínicas, foram escolhidas para este estudo em função de uma característica em
comum, que é apontada pela literatura fonoaudiológica como sendo um déficit
fonológico (Yavas et al., 1991; Santos e Navas, 2002; Befi-Lopes, 2004).
Analisar as características do conhecimento fonológico adquirido e
representado por crianças com esses diferentes distúrbios pode, portanto, trazer
contribuições importantes tanto para a literatura fonoaudiológica como para a
literatura linguística. Ou seja, os postulados dos MMR podem trazer contribuições
para a compreensão e caracterização dos diferentes distúrbios de linguagem que se
constituem como objetos de estudo da Fonoaudiologia; da mesma forma, a
comparação dos desempenhos dessas diferentes populações clínicas pode trazer
evidências importantes que refutem ou reiterem os postulados dos diferentes
modelos teóricos.
Especificamente, no que concerne à análise cognitiva, os MMR preconizam a
organização de um léxico mental em redes de similaridade fonética e semântica, e o
conhecimento fonológico constituindo uma escala de abstrações a partir da
I. Introdução 17
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
representação das formas das palavras no léxico. De acordo com a Fonologia
Probabilística (Pierrehumbert, 2003), a gramática do falante conteria os seguintes
tipos de conhecimento fonológico: a) fonético paramétrico, que é o mapa quantitativo
do espaço articulatório e acústico. Na percepção, descreve a codificação perceptual
do sinal de fala para cada ocasião. Na produção, descreve cada gesto articulatório
que se desenvolve/ocorre no tempo e no espaço; b) codificação fonética, que é
abstraída sobre o espaço fonético paramétrico, definindo o inventário disponível na
língua para a codificação da forma das palavras. Corresponde à fonologia nos
modelos clássicos; c) representação da forma sonora das palavras no léxico; d)
gramática fonológica que inclui a fonotática e descreve o conjunto de itens lexicais
possíveis na língua; e e) correspondências morfofonológicas, que são as
correspondências entre formas fonológicas e morfológicas, pois, de acordo com
Pierrehumbert, nem todas as alternâncias morfológicas se dão com base em um
padrão fonológico geral. Muitas dessas correspondências precisam ser aprendidas
com base na relação específica entre as palavras.
Interessa-nos, particularmente, os seguintes tipos de conhecimento
fonológico: a representação das formas fonéticas possíveis de realização dos itens
lexicais, que fazem parte da experiência auditiva e de produção do falante, e que
constituem abstrações sobre a fala; e o conhecimento mais abstrato a respeito de
categorias fonológicas e relações fonotáticas, que emergem das representações das
formas das palavras no léxico.
Já no âmbito da fonoaudiologia, o que se tem descrito sobre os distúrbios é
que a dislexia se caracteriza por um significativo déficit no reconhecimento de
palavras escritas na presença de habilidades cognitivas e instruções formais
adequadas. Na literatura, essa dificuldade na decodificação de palavras escritas tem
sido atribuída, por diversos autores, a um déficit de processamento da informação
fonológica (Siegel, 1993; Stanovich & Siegel, 1994; Manis et. al., 1997; Capovilla e
Capovilla, 2002; Fowlert & Swainson, 2004; Rispens, 2004; Bowey et. al., 2005). Tal
fator etiológico da dislexia pode ser identificado por dificuldades apresentadas em
testes que objetivam avaliar a conscientização fonológica, memória fonológica,
discriminação fonológica, nomeação de figuras; no entanto, não é observado nessas
crianças nenhum impedimento no que diz respeito à produção oral dos sons da
língua.
I. Introdução 18
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Ao contrário da dislexia, o desvio fonológico se constitui como uma desordem
da linguagem oral, cuja principal alteração linguística é exatamente a produção dos
sons da língua. De acordo com Wertzner (2004), tal alteração se dá em função de
uma representação diferenciada do sistema fonológico que essas crianças possuem.
O déficit fonológico encontra-se presente nessas crianças de forma isolada, não
sendo portanto resultado de alterações cognitivas e/ou motoras globais, assim como
na dislexia. Ainda, é critério diagnóstico que tal déficit fonológico se manifeste
também na ausência de outras alterações linguísticas, como sintáticas, semânticas
ou pragmáticas.
Por fim, distúrbio específico de linguagem também se constitui como um
distúrbio de linguagem oral, no entanto, se diferenciando do desvio fonológico por
possuir déficits linguísticos mais amplos como semânticos, sintáticos e narrativos,
além do déficit fonológico (Catts et. al., 2005). Esse impedimento linguístico, assim
como na dislexia e no desvio fonológico, aparece isoladamente na ausência de
dificuldades cognitivas gerais e não-verbais. De acordo com Befi-Lopes (2004),
distúrbio específico de linguagem seria definido como um acometimento da
linguagem oral na ausência de perda auditiva, alteração no desenvolvimento
cognitivo, alteração no desenvolvimento motor global e fino, síndromes, distúrbios
abrangentes do desenvolvimento, alterações neurossensoriais, lesões neurológicas
adquiridas ou qualquer outra patologia que justifique essa dificuldade. Em relação ao
déficit fonológico, além da grande dificuldade na produção da fala, é comum a
associação entre distúrbio específico de linguagem e dificuldades de consciência
fonológica e memória fonológica, especialmente em testes de repetição de
pseudopalavras (Bishop, 2006). Essa dificuldade fonológica apresentada por
crianças com distúrbio específico de linguagem nos leva a crer que futuramente,
essas crianças apresentarão também dificuldades na leitura, o que de fato ocorre
em alguns casos (Catts et. al., 2005).
Essa sobreposição de sintomas fonológicos que resultam em dificuldades na
escrita tem levado alguns autores a questionarem se dislexia e distúrbio específico
de linguagem fazem parte de um continuum de um mesmo distúrbio, sendo a
dislexia o caso mais leve, enquanto distúrbio específico de linguagem seria o mais
severo (Tallal et. al., 1997; Bishop e Snowling, 2004; De Bree et al., 2007). No
entanto, comparando trabalhos que estudaram as produções de crianças com
I. Introdução 19
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
dislexia, desvio fonológico e/ou distúrbio específico de linguagem, pode-se levantar
a hipótese de que as dificuldades fonológicas apresentadas em cada uma dessas
patologias sejam de naturezas distintas.
Esteves (2009) estudou a natureza da inabilidade para recuperação de
palavras apresentada por crianças com dislexia, através de um teste de nomeação
de figuras. Além das respostas espontâneas, também foram analisados os tipos de
facilitação com os quais as crianças mais se beneficiaram. Os resultados indicaram
que apesar de ocorrer ineficiência na recuperação da palavra num primeiro
momento, a forma sonora da palavra está disponível no léxico mental, uma vez que
houve um aumento significativo no número correto de respostas após pistas
semânticas e, principalmente, fonológicas fornecidas pelo avaliador. Além disso, as
substituições fonológicas realizadas pelas crianças com dislexia no teste (como a
palavra “harpa”, que tem como alvo ʹahpəә, mas foi produzida como ʹahkəә, ou a
palavra “iglu”, que tem como alvo iʹglu mas foi produzida como iʹblu3) indicam que a
informação dos padrões fonológicos abstratos, assim como boa parte da informação
da forma sonora da palavra se encontra preservada, apesar de a forma da palavra
não ser acessada corretamente, dada a semelhança entre a produção da criança e a
palavra alvo.
Já Beckman et. al. (2007) realizaram uma série de testes em crianças
diagnosticadas com distúrbio específico de linguagem e desvio fonológico, e em
crianças mais novas e com a mesma idade que as populações clínicas, mas com
desenvolvimento típico. Os testes visavam avaliar, em cada população diferente,
dois tipos de conhecimento fonológico: a representação fonética fina e a
representação mais abstrata que envolve as relações fonotáticas. Os resultados
mostraram, entre outras coisas, que crianças com distúrbio específico de linguagem
apresentam vocabulário empobrecido e maior dificuldade na repetição de
pseudopalavras formadas por difones com baixa probabilidade de ocorrência,
evidenciando um possível prejuízo no nível de representação dos padrões
fonológicos mais abstratos da língua, o qual permite ao falante a aquisição de novas
palavras. Já as crianças com desvio fonológico apresentaram desempenho
3 Em conformidade com os Modelos Multirrepresentacionais, que assumem que também há representação mental para a informação fonética tanto quanto há para as informações da gramática fonológica, optou-se pela não utilização dos colchetes ou barras cuja convenção está fortemente associada a outra concepção de representação.
I. Introdução 20
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
semelhante ao das crianças com desenvolvimento típico nesse teste de repetição de
pseudopalavras, mas se assemelharam a crianças mais novas com
desenvolvimento típico em relação à robustez das representações fonéticas
paramétricas (representação das características percepto-acústicas e articulatórias)
em testes de percepção e produção.
Como é possível perceber, cada uma dessas três patologias, apesar de
possuírem dificuldades fonológicas, possivelmente se distinguem entre si de forma
significativa no que diz respeito à natureza de tal dificuldade. E os MMR podem
auxiliar a compreender essas diferenças, uma vez que postulam diferentes tipos de
conhecimento fonológico.
É diante deste modelo teórico e em função das evidências de diferentes
trabalhos apresentadas acima que esta tese tem como objeto de estudo o
conhecimento fonológico de crianças com dislexia, desvio fonológico e distúrbio
específico de linguagem. Uma análise do desempenho fonológico dessas crianças
em diferentes testes será realizada de acordo com os pressupostos dos MMR,
identificando qual(is) tipo(s) de conhecimento fonológico estaria(m) afetado(s) em
cada uma dessas patologias. Em função do pressuposto teórico de que a gramática
fonológica é emergente e deriva das abstrações realizadas a partir do léxico mental
adquirido com o uso da linguagem, neste estudo espera-se encontrar uma relação
entre o desenvolvimento dos diferentes tipos de conhecimento fonológico e o
tamanho do léxico nessas crianças. Ou seja, espera-se que crianças com tamanho
de léxico maior apresentem uma maior consistência em seus padrões fonológicos
abstratos.
Este tipo de análise pode vir a trazer evidências a respeito da natureza do
déficit fonológico de cada um desses grupos, corroborando ou refutando a ideia de
continuum de uma mesma patologia com graus de severidade distintos. Isso possui
implicações clínicas, uma vez que, dependendo dos resultados, deve-se pensar em
abordagens terapêuticas diferenciadas. Além disso, essas análises também podem
trazer evidências empíricas que refutem ou validem o modelo teórico em questão,
uma vez que a existência de diferentes tipos de representação das informações
fonológicas e também a diferença entre os processos de representação e acesso a
essas informações pode ser pesquisado.
I. Introdução 21
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Para averiguar essas hipóteses, foram elaborados dois testes distintos com
objetivo de avaliar tipos de conhecimento fonológico também diferentes.
Primeiramente, um teste de Nomeação de Figuras adaptado da dissertação de
mestrado (Esteves, 2009), constituído por 36 figuras que se diferenciam entre si em
função da frequência de uso das palavras (alta e baixa) e do tamanho das palavras
(dissílabos e polissílabos). Este teste foi pensado a fim de avaliar a acuracidade
fonético-articulatória de palavras reais, assim como a capacidade de acesso lexical
das crianças. O segundo teste é de Repetição de Pseudopalavras e se constitui por
30 pseudopalavras que se diferenciam entre si em função da frequência de cada
sílaba que compõe o item (itens compostos somente por sílabas de alta frequência e
itens compostos somente por sílabas de baixa frequência) e o tamanho do item
(dissílabos, trissílabos e polissílabos de 4 sílabas). Esse teste foi elaborado a fim de
avaliar a robustez do conhecimento fonológico abstrato representado pelas crianças
dos diferentes grupos.
Esta tese será organizada da seguinte forma: no capítulo II será apresentado
um panorama geral sobre as discussões acerca do conhecimento linguístico, e mais
especificamente, do conhecimento fonológico tratados no âmbito da linguística em
geral, com ênfase nos MMR; no capítulo III será discutido o que a literatura
fonoaudiológica tem oferecido a respeito das principais características clínicas e
linguísticas de cada uma das patologias da linguagem estudadas neste trabalho, a
saber: dislexia, desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem; no capítulo IV
estarão descritos todos os processos metodológicos utilizados para recrutamento
dos sujeitos participantes desta pesquisa, para a elaboração dos testes utilizados e
para a análise estatística empregada, além de explicitar os objetivos e hipóteses do
trabalho; no capítulo V serão expostos detalhadamente todos os resultados obtidos,
assim como a análise quantitativa e qualitativa realizada e a discussão elaborada a
partir dos resultados; e finalmente, no capítulo VI estarão as conclusões tiradas a
partir dos achados deste trabalho, assim como as perspectivas futuras.
II. O CONHECIMENTO LINGUÍSTICO
ste capítulo apresenta a descrição dos pressupostos teóricos que
sustentam a análise dessa pesquisa, a saber, os Modelos
Multirrepresentacionais (MMR) de aquisição e de organização da
linguagem, também chamados Modelos Baseados no Uso
(Goldberg, 1995; Bybee, 2001 e 2010; Pierrehumbert, 2001, 2003 e
2012; Tomasello, 2003; Vihman e Croft, 2007; Croft, in press).
Inicialmente, coloca-se uma reflexão sobre as principais correntes
teóricas sobre aquisição e representação de linguagem de forma geral, e, em
seguida, são abordados os pressupostos teóricos dos MMR.
2.1 COMO PENSAR O CONHECIMENTO LINGUÍSTICO
Ao estudar a linguagem infantil – e as suas patologias – algumas questões
imediatamente vêm à tona: qual a origem do conhecimento linguístico? Como esse
conhecimento linguístico se organiza ao longo do desenvolvimento até chegar à
organização do adulto? Para responder a essas questões, atualmente, duas
principais correntes teóricas se fazem presentes na literatura da Linguística
Cognitiva, sejam elas: a corrente gerativista e a multirrepresentacional. De uma
forma geral, pode-se dizer que a primeira adota uma perspectiva representacional
categórica e discreta da linguagem, apresentando uma concepção mais
determinística; enquanto que em contrapartida, a segunda argumenta sobre uma
natureza gradiente, multirepresentacional e dinâmica das representações
linguísticas.
As abordagens gerativistas preconizam a existência de uma Gramática
Universal (GU) inata, de onde provêm os princípios estruturais do conhecimento
linguístico, sendo necessários alguns disparadores advindos do input linguístico para
que a criança organize toda a estrutura da língua a qual está exposta. Ou seja, o
contexto sócio-cultural no qual a criança se encontra inserida possui um papel
secundário no processo de aquisição de linguagem, enquanto é o dispositivo de
aquisição de linguagem inato (a Gramática Universal - GU) que direciona todo o
processo.
E
II. O Conhecimento Linguístico 23
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Para esses modelos formais de aquisição de linguagem, as línguas naturais
se caracterizam como (i) um conjunto de regras abstratas sintáticas inatas, a
princípio, desprovidas de significado e que serão interpretadas a partir da interface
com a semântica; e (ii) um léxico contendo os elementos linguísticos que vêm
carregados de significado e que serão combinados a partir dessas regras sintáticas
(Chomsky, 1988). Os princípios que regem essas regras abstratas constituem a
Gramática Universal – o centro da competência linguística – que não seria adquirido,
mas sim inato em todos os seres humanos. A periferia linguística seria constituída
pelo léxico, o sistema conceptual, as construções irregulares, expressões
idiomáticas, uso pragmático da língua, e deveria ser adquirida através de processos
normais de aprendizagem. Ainda, nessa visão tradicional, o léxico – área de
armazenamento para todas as palavras e morfemas da língua – é comparado a um
dicionário, no qual itens lexicais são apenas itens passivos numa lista, que esperam
para serem recrutados para estruturas sintáticas. Este léxico seria relativamente
estático, se comparado à gramática que gera infinitas sentenças, e seus itens não
teriam nenhuma relação entre eles (Chomsky, 1988). Ainda, este léxico seria
armazenado na memória para material linguístico, enquanto a gramática não
ocuparia espaço na memória já que se trata de estruturas abstratas. Vihman e
Kunnari (2006) comentam que esta visão gerativista implica no seguinte
questionamento: Como a criança reconhece os dados críticos do input que vão
tornar possível mapear os parâmetros apropriados ou rearranjar as restrições de
uma forma apropriada?
Já nas abordagens multirrepresentacionais, não é apenas a aquisição dos
principais padrões sintáticos capazes de gerar infinitas construções que está no foco
dos estudos, mas sim a aquisição de todos os padrões de uso da linguagem,
incluindo aqueles com pouca produtividade, as construções irregulares, as
construções mistas, expressões idiomáticas, metafóricas, e tudo o mais que estaria
na periferia da gramática para outras teorias. Ainda nesses Modelos
Multirrepresentacionais (MMR), a dimensão gramatical da linguagem é produto de
um conjunto de processos históricos e ontogênicos, chamados de gramaticalização,
e assim, a gramática individual seria um inventário de construções simbólicas
linguísticas com significado estruturado ao longo da ontogenia (Tomasello, 2003).
II. O Conhecimento Linguístico 24
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
De uma forma geral, numa visão que nega a existência da GU, a proposta é
de que, ao invés desse aparato inato específico para linguagem, as crianças
nasceriam com um aparato específico da espécie sim, mas que se configuraria
como um aparato cognitivo geral que as capacitaria a construir, ao longo de todo o
seu desenvolvimento e a partir da interação com o outro, qualquer sistema
simbólico, inclusive o conjunto das convenções linguísticas usadas pelas pessoas a
sua volta; e essa construção da linguagem da forma como os seres humanos o
fazem é que seria específico da espécie. Nesse sentido, a gramática emergiria de
forma gradual, a partir de um léxico adquirido no contexto de uso e organizado em
redes de conexões, dinâmico – e não estático como é proposto pelos modelos
inatistas – de forma que o uso da linguagem na interação com o outro afetaria e
poderia modificar significativamente as representações dessa gramática para cada
indivíduo. Portanto, o papel do contexto sócio-histórico no qual a criança se encontra
inserida se torna fundamental para o processo de aquisição e representação da
linguagem.
Ainda, este léxico não seria composto apenas por palavras (formas básicas),
mas também por unidades maiores como expressões e construções, o que leva a
pensar em uma relação muito mais estreita e interdependente entre léxico e
gramática (Goldberg, 1995). Os morfemas seriam abstrações feitas a partir do
léxico. As construções são vistas como um par indissociável entre estrutura sintática
e semântica, possuindo forma e significado e sendo, portanto, signos ou unidades
simbólicas (Croft, 2013). Cada palavra do léxico, além de expressar sua forma
sonora e significado, é também uma entrada para o detalhamento fonético, as
propriedades sócio-contextuais (Pierrehumbert, 2010). Ou seja, diferentemente da
visão gerativista de que a gramática é composta fundamentalmente pelo módulo
sintático, na visão dos MMR há um distanciamento dessa visão modular da
linguagem, pressupondo que existem redes de conexões, não só entre as diferentes
dimensões da linguagem (fonético-fonológica, morfossintática, semântica e
pragmática), mas sobretudo, entre a linguagem e os outros domínios da cognição,
como raciocínio matemático, percepção, etc. Dessa forma, ela se constitui como um
reflexo da construção cognitiva que cada indivíduo realiza a partir da sua experiência
interativa com o mundo e as pessoas ao seu redor, e seus padrões estruturais
II. O Conhecimento Linguístico 25
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
morfossintáticos e/ou fonológicos emergem baseados nas experiências relacionais,
sociais, culturais de cada sujeito.
Outro ponto importante é que, para os MMR, a memória de longo prazo que
armazena essas representações não é apenas a declarativa, passível de ser
descrita, mas também e, principalmente, uma memória de procedimento, que só é
manifestada durante a realização de uma determinada habilidade – no caso
específico, habilidade linguística (Bybee, 2001). Essa memória de procedimento é
altamente afetada pela repetição, sendo que quanto mais recorrente for uma
sequência de ações, mais fortemente ela será representada e mais fluente ela se
tornará. Nesse sentido, as unidades linguísticas armazenadas na memória de longo
prazo não estão sendo processadas em unidades estáticas e descritíveis apenas,
mas também como unidades de planejamento, produção e percepção (Tomasello,
2003). Para essa visão, as questões postas, de acordo com Vihman e Kunnari
(2006), seriam: Com qual conhecimento, se é que algum, a criança nasce? e Como
a criança obtém/constrói conhecimento da estrutura ou sistema linguístico?
De forma mais específica, no que diz respeito ao conhecimento fonológico, os
MMR têm conjugado uma série de evidências baseadas em dados empíricos para
discutir e propor uma organização fonológica que difere em alguns aspectos da
proposta gerativista. Tais estudos são a respeito da produção e respostas
perceptuais a estímulos linguísticos de crianças em processo de aquisição; dados
sobre desempenho linguístico de crianças com diferentes patologias cujos sintomas
sejam déficits especificamente linguísticos (dislexia, distúrbios especifico de
linguagem, desvio fonológico, etc.); estudos sobre processamento de
pseudopalavras e palavras reais em adultos, dentre outros. E são alguns desses
estudos sobre conhecimento fonológico que serão apresentados de forma
sintetizada a partir de agora, a fim de defender os pressupostos teóricos das
abordagens multirrepresentacionais sobre conhecimento fonológico, que são a base
teórica deste presente trabalho.
II. O Conhecimento Linguístico 26
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
2.2 A AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO FONOLÓGICO:
2.2.1 As primeiras propostas
Jakobson (1968) foi responsável pela primeira, e bem conhecida, teoria sobre
o desenvolvimento fonológico. Ele propôs uma explicação estruturalista para a forma
como as crianças adquirem a estrutura sonora da sua língua nativa, distinguindo
dois períodos para tal desenvolvimento: balbucio, que a seu ver seria um período
pré-linguístico; e a real aquisição da estrutura sonora da língua. Jakobson ainda
reforçou a ideia de que, durante o estágio pré-linguístico, a criança produziria uma
ampla variedade de sons que não são encontrados juntos em uma língua só, o que
possibilitou, mais tarde, reforçar a proposta teórica dos princípios e parâmetros. De
acordo com tal proposta, a criança nasceria capaz de mapear todos os traços
fonológicos, de qualquer língua e, consequentemente, aprender a produzir todos os
sons das línguas naturais no mundo, no entanto, em função do input recebido da
sua língua nativa, ela passaria a produzir apenas os sons da sua língua (Jusczyk,
1997).
Outro ponto da proposta de Jakobson diz respeito aos Universais
Linguísticos. Segundo ele, seriam tais princípios (presentes em todas as línguas do
mundo) que permitiriam às crianças a aquisição da língua materna. Apesar de
algumas diferenças entre as produções das crianças, de uma forma geral, elas
passariam por determinados estágios, nos quais as crianças iriam percebendo os
contrastes fonêmicos da sua língua e organizando dessa forma o seu sistema
fonológico. Foram propostos diferentes níveis (camadas) para o sistema fonológico,
níveis esses que seriam universais para todas as línguas e, dessa forma,
invariáveis. Essa sequência de níveis evoluiria do menos complexo e indiferenciado
para o mais complexo e diferenciado. Ou seja, as crianças começariam produzindo
uma vogal ótima (por exemplo, uma vogal média) e uma consoante ótima (como
uma consoante labial plosiva), sendo a junção desses dois segmentos a estrutura
silábica básica CV. A partir daí, haveria a produção sucessiva de outras sílabas com
essa mesma estrutura (papa, baba, mama...), que se diferenciariam através de
determinados traços distintivos, como sonoridade, nasalidade, etc. Traços esses
definidos pelos modos e pontos de articulação e pelas características de
ressonância da cavidade oral. Dessa forma, a criança passaria a produzir e
discriminar sequências cada vez mais complexas, seguindo uma determinada ordem
II. O Conhecimento Linguístico 27
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
de surgimento dos segmentos (por exemplo, plosivas labiais são adquiridas antes
das plosivas dento-alveolares) (Jusczyk, 1997).
Essa teoria de Jakobson foi fundamental para estimular outros estudos sobre
aquisição da fonologia, e ainda hoje serve de base para muitos estudiosos
interessados em descobrir como as crianças percebem os padrões sonoros da sua
língua materna e desenvolvem o seu sistema fonológico. No entanto, alguns
trabalhos realizados a partir da década de 70 com o objetivo de observar a relação
entre balbucio e início da fase linguística trazem evidências empíricas que não
corroboram estas ideias de Jakobson de (i) descontinuidade entre balbucio e
primeiras palavras e (ii) uma ordem sequencial e invariável de aquisição dos
padrões sonoros da língua. E essa discussão pode também trazer contribuições
para a proposição de novos modelos teóricos.
Por exemplo, a postulação de uma continuidade entre o período do balbucio e
a produção das primeiras palavras tem sido demonstrada por diversos autores.
Vihman et al. (2009) afirmam que o repertório sonoro encontrado no balbucio e as
combinações sonoras das primeiras palavras da criança são formados pelos
mesmos conjuntos de sons. Petitto e Marentette (1991) trazem evidências de um
“balbucio manual”: crianças que são expostas a língua de sinais, além de
usualmente produzirem gestos não linguísticos, produzem também gestos que se
assemelham aos sinais da língua. Outras evidências com língua de sinais também
podem ser encontradas no trabalho de Cheek et al. (2001). Vihman (2009) chega a
afirmar que “cada primeira palavra da criança pode ser ‘rastreada’ até o balbucio
dessa determinada criança” e exemplifica essa continuidade também com o trabalho
de outros autores como o de Oller et al. (1976).
Ainda, além de trabalhos que mostram essa continuidade de produção entre o
balbucio e as primeiras palavras, há também trabalhos que mostram a importante
relação entre balbucio e a exposição ao input sonoro. Nesse sentido, Oller e Eliers
(1988) trazem evidências de seu trabalho com bebês surdos, mostrando que esses
bebês, além de iniciarem o balbucio muito tardiamente (com aproximadamente 5
meses de diferença para aqueles com audição normal), também não produziram
vocalizações semelhantes as dos bebês com audição normal, concluindo que o
balbucio não se desenvolve normalmente na ausência de input auditivo. Além disso,
a fase final do balbucio tem forte relação com os sons linguísticos do input a que a
II. O Conhecimento Linguístico 28
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
criança está submetida, como demonstrado por Vihman, em vários de seus
trabalhos (Vihman e Croft, 2007; Vihman, 2009; Menn e Vihman, 2011).
Sobre a ideia de uma ordem sequencial e invariável de aquisição dos
fonemas da língua há estudos recentes que demonstram que a ordem de
emergência dos segmentos pode ser modificada em função dos padrões advindos
do ambiente linguístico no qual a criança se encontra inserida. Isso, somado ao fato
da variabilidade encontrada de criança para criança durante a aquisição das
primeiras palavras, pode sugerir que a proposta de Jakobson talvez não se sustente
(Menn e Vihman, 2011). Estudos de análise acústica de vocalizações de bebês,
comparativos entre diferentes línguas, podem revelar diferenças no repertório
fonético que são relacionadas ao ambiente linguístico no qual a criança está inserida
(Jusczyk, 1997). E como já visto anteriormente, os sons produzidos no balbucio
servem de treino articulatório motor que vai direcionando a produção das primeiras
palavras das crianças.
Outra proposta que vem sendo questionada por estudos sobre Fonologia
Articulatória e também, mais recentemente, em relação à aquisição de linguagem, é
a própria ideia de traços distintivos. Por exemplo, Menn e Vihman (2011) trazem a
discussão de que talvez os traços possam ser úteis na descrição das gramáticas dos
adultos e ajudar num estágio posterior do desenvolvimento infantil; mas para
caracterizar as primeiras palavras das crianças eles não teriam validade, uma vez
que não é possível determinar com certeza que a criança já possui um traço
distintivo abstraído simplesmente porque ela produz um segmento com aquele traço
em sua fala. Além disso, o fato de que, somente com o tempo, as crianças se
tornam gradualmente mais sistemáticas e mais similares com outras crianças,
embasa a hipótese de estudos atuais de que a fonologia emergiria com base na
experiência linguística e não que seria um resultado de universais inatos.
A partir dessas evidências empíricas que questionam as propostas de
Jakobson – assim como evidencias advindas de estudos psicolinguísticos e da
sociolinguística – novos modelos teóricos vêm sendo propostos para explicar a
aquisição da fonologia e, sendo assim, na próxima sessão, serão explicitadas as
principais características desses modelos, denominados Modelos
Multirrepresentacionais (MMR).
II. O Conhecimento Linguístico 29
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
2.2.2 Caracterização dos Modelos Multirrepresentacionais
Como já dito anteriormente, as abordagens multirrepresentacionais postulam
não haver um mecanismo inato especificamente linguístico como a GU, mas sim
mecanismos cognitivos gerais inatos que possibilitam a aprendizagem de sistemas
simbólicos, incluindo o sistema linguístico. Tomasello (2003) descreve esse aparato
cognitivo geral como, principalmente, dois conjuntos de habilidades: (i) “leitura de
intenções” e (ii) “busca de padrões”.
O primeiro grupo consistiria nas habilidades necessárias para que a criança
possa adquirir o uso apropriado dos símbolos linguísticos, e que emergem por volta
dos 9-12 meses de idade, como: compartilhar atenção com outras pessoas sobre
objetos e eventos de interesse mútuo; seguir a atenção e gestos de outras pessoas
sobre objetos distantes e eventos que não participem da interação imediata; dirigir,
ativamente, a atenção de outras pessoas a objetos distantes através de gestos não-
linguísticos; aprender, imitativamente, ações intencionais do outro, incluindo seus
atos comunicativos intencionais. O segundo conjunto incluiria as habilidades
necessárias para aquisição do padrão do modo como os adultos utilizam os
símbolos linguísticos em diferentes elocuções, construindo, assim, a representação
da gramática abstrata que é da competência linguística humana. São elas: formar
categorias perceptuais e conceituais de objetos e eventos similares; formar
esquemas sensório-motores a partir de padrões recorrentes; criar analogias entre
duas ou mais estruturas complexas, baseado nas funções de cada elemento nessas
estruturas diferentes.
Especificamente, no que concerne ao conhecimento fonológico, Vihman
(2009) aborda os mecanismos de aprendizagem, dividindo-os em (i) aprendizagem
lexical ou simbólica e (ii) aprendizagem distribucional ou estatística. O primeiro
mecanismo estaria relacionado à aprendizagem das palavras, do referencial
concreto ao qual cada palavra está relacionada. De fato, para aprender uma palavra,
a criança necessita estar inserida num momento de atenção compartilhada com o
outro, onde tanto a forma sonora como o uso de determinada palavra estejam
suficientemente salientes para que a criança possa aprender a palavra de forma
efetiva. Tal aprendizagem necessita de uma atenção direcionada, explícita da
criança, e por isso, está relacionada ao conhecimento explícito, armazenado na
memória declarativa.
II. O Conhecimento Linguístico 30
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Já o segundo mecanismo – a aprendizagem estatística – seria um
conhecimento implícito, probabilístico, armazenado na memória de procedimento.
Nos últimos anos, achados experimentais têm demonstrado que crianças e adultos,
automaticamente, percebem as regularidades distribucionais das estruturas às quais
eles são expostos enquanto respondem a diferentes testes (Saffran et al., 1997). De
acordo com Vihman (2009), esses achados somados aos estudos experimentais
descritos por Jusczyk (1997) sobre as respostas pré-linguísticas dos bebês à fala
demonstram uma aprendizagem muito mais probabilística do que categórica, e
permitem concluir que:
“as crianças, gradualmente, vão abstraindo os padrões do
input linguístico no nível dos segmentos, sílabas, padrões
acentuais, palavras e frases, sem nenhuma intenção em
aprender”. (Vihman, 2009, pp. 02)4
E ainda, parece que essa habilidade de perceber as regularidades não se
restringe às informações linguísticas, e sim, se aplica a qualquer sequência de
regularidades, seja de informação auditiva, seja de informação visual, tátil, etc,
advinda do ambiente em que se encontra a criança (Kirkham et al., 2002). Nesse
sentido, este mecanismo de aprendizagem estatística não seria algum mecanismo
especificamente linguístico como a GU, mas sim, um mecanismo cognitivo geral,
que permite a abstração de qualquer padrão de forma probabilística.
Em 2006, Vihman e Kunnari já haviam proposto um modelo de aquisição/
aprendizagem do conhecimento fonológico que integrasse ambos os mecanismos
de aprendizagem (implícito e explícito). Para as autoras, o início da aquisição da
linguagem passaria por três estágios: dois sendo produto do processo implícito de
aprendizagem (memória de procedimento) e outro como produto do sistema de
memória declarativa. Esses estágios aconteceriam da seguinte forma:
(i) Conhecimento implícito (memória de procedimento) a respeito das
regularidades percebidas nas informações sensoriais que chegam de 4 “infants gradually gain a sense of the patterns in the ambient input language at the level of segments, syllables, accentual patterns, words, phrases, and clauses, without any intention to learn.” (Vihman, 2009, pp. 02)
II. O Conhecimento Linguístico 31
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
qualquer tipo (frequência de ocorrência, sequenciamento, padrões
rítmicos, etc.)
(ii) Registro simbólico (memória declarativa) das associações arbitrárias entre
forma e significado, o que diz respeito a um léxico mental.
(iii) Conhecimento implícito secundário a respeito das regularidades inerentes
aos itens linguísticos registrados no léxico mental – o que as autoras
afirmam ser a “base para os componentes puramente linguísticos que são
a fonologia e a morfossintaxe”.
Ou seja, elas postulam que as crianças, a partir de habilidades cognitivas que
permitem uma aprendizagem estatística a respeito das regularidades encontradas
no ambiente, conseguem abstrair gradualmente o conhecimento fonológico a partir
de um léxico mental adquirido a partir da interação com o outro. Elas não adquirem
cada som da língua de forma independentemente, mas sim aprendem as
sequências fonológicas como partes integrantes das palavras ou sequências
sonoras maiores, que fazem sentido em suas interações.
Vihman e Kunnari (2006) também descreveram dados sobre as produções
iniciais de crianças adquirindo Inglês, Francês, Finlandês e Galês. As crianças
tiveram suas produções gravadas desde o balbucio até atingirem um léxico de
aproximadamente 50 palavras ou mais. Elas dividiram as produções das crianças
em (i) “Early Words” (Primeiras Palavras), (ii) “Selected Later Words” (Palavras
Selecionadas) e (iii) “Adapted Later Words” (Palavras Adaptadas). No primeiro
conjunto, estariam as 4 primeiras palavras produzidas inicialmente por cada criança.
As características dessas palavras seriam: se assemelharem com os padrões
motores produzidos no balbucio, terem algo de comum com as palavras-alvo dos
adultos, serem palavras de alta frequência de ocorrência na língua, terem estruturas
fonológicas relativamente mais simples (por exemplo, uma ou duas sílabas, poucos
ditongos ou encontros consonantais, conterem predominantemente consoantes
plosivas e nasais). No segundo e no terceiro conjunto, estariam as palavras
produzidas alguns meses depois, atingindo o ponto de 25 palavras em diante. As
palavras do segundo conjunto (“selecionadas”) parecem evidenciar tanto uma maior
aproximação com as formas produzidas pelo adulto como uma ou mais
características fonológicas semelhantes entre si, sugerindo a existência de um
processo implícito de organização fonológica. No último conjunto de palavras
II. O Conhecimento Linguístico 32
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
(“adaptadas”), as palavras parecem apresentar uma certa “regressão” na forma
fonológica, uma vez que começam a se diferenciar dos alvos dos adultos. No
entanto, uma análise mais apurada permite perceber uma maior organização e
coerência interna entre as produções da criança, evidenciando, nesse momento de
“regressão”, o marco de início de uma organização fonológica na criança.
Em outro trabalho, Vihman e Croft (2007) propõem o que eles chamam de
“Radical Templatic Phonology”, um modelo fonológico que, baseado nesse processo
de interação entre conhecimento implícito e explícito, propõe a ideia de templates
(moldes lexicais) para as primeiras estruturas produzidas pelas crianças e para a
organização do conhecimento fonológico do adulto. Os autores propõem que as
primeiras palavras das crianças seriam esses moldes lexicais resultantes de uma
associação implícita que as crianças fariam entre os modelos do adulto advindos do
ambiente linguístico e as suas próprias práticas vocais realizadas durante o
balbucio. Inicialmente, a criança desenvolveria um primeiro molde ou um pequeno
conjunto de moldes, a partir da fase palavras adaptadas, e a partir de então ela iria
introduzindo uma série de outras estruturas e categorias fonológicas nas suas
produções. Esses moldes lexicais se caracterizariam por um padrão fonológico
consistente dentro de um conjunto de primeiras palavras que envolvem estrutura
silábica e ocorrência dos mesmos segmentos sonoros, ou seja, há coerência interna
nas formas dos itens das crianças. No entanto, neste primeiro momento, é possível
que estas formas lexicais estejam mais distantes das formas do alvo do adulto, uma
vez que – dentre outros fatores – ainda se faz necessário, neste momento do
desenvolvimento, uma prática articulatória maior.
Vihman e Croft (2007) propõem três critérios para identificação desses
moldes lexicais: (i) um padrão consistente em um número substancial de formas de
palavras produzidas pela criança em uma ou mais sessões ou em um período de
semanas ou meses; (ii) ocorrência de correspondências fonológicas não usuais
entre a forma da criança e a forma do adulto, isto é regras, processos ou estratégias
de reparo, sobre a influência de um padrão dominante; (iii) frequentemente, um
rápido aumento na produção de palavras que se encaixam nesse padrão. E para
esses autores, a identificação desses moldes seria o indício da emergência de um
conhecimento fonológico abstrato inicial nas crianças. A partir daí, à medida que a
criança vai ampliando seu léxico, vai estabelecendo novos moldes, ampliando a sua
II. O Conhecimento Linguístico 33
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
gama de possibilidades fonológicas. Dessa forma, a diferença entre crianças e
adultos estaria, portanto, na restrita quantidade de tipos de moldes presentes nas
diferentes fases aquisitivas, que gradualmente aumentariam com o desenvolvimento
e estabelecimento da gramática.
Sendo assim, é importante enfatizar que para os MMR, a gramática das
crianças e dos adultos é organizada da mesma forma, sendo a diferença apenas em
termos da quantidade de material linguístico representado e abstraído em função da
crescente experiência linguística acumulada ao longo do tempo. Munson et al.
(2005b), ao falarem a respeito dos tipos de conhecimento fonológico que são
abstraídos, trazem evidências sobre essa continuidade entre gramática de crianças
e de adultos.
Por exemplo, eles mostram que crianças não possuem o mesmo
desempenho apresentado por adultos em alguns testes de percepção,
demonstrando que a capacidade das crianças em abstrair as informações
perceptuais acústicas mais robustas (como estrutura categórica) e também as mais
refinadas (como diferenças entre falantes) ainda encontra-se em desenvolvimento.
Sobre o amadurecimento das representações dos detalhes articulatórios nas
crianças, os autores trazem o exemplo do “contraste encoberto”, primeiramente
descrito por Macken e Barton (1980), que evidencia a tentativa das crianças em
produzir corretamente as diferenças entre os sons, apesar da imprecisão
articulatória. Ainda, para demonstrar que o desenvolvimento do conhecimento a
respeito da estrutura segmental fonológica e das regras fonotáticas de cada língua
também acontecem de forma gradual nas crianças, os autores explicitam os
resultados de Munson e Babel (2005), demonstrando que a influência da densidade
de vizinhança fonológica – conhecimento abstrato a respeito da similaridade entre as
palavras do léxico – sobre os tempos de respostas em testes de repetição de
palavras aumentam durante o desenvolvimento. Por fim, eles trazem evidências
tanto de que as variações sociofonéticas estão presentes nas produções das
crianças como também que elas são sensíveis à percepção acústica dessas
variações.
Portanto, em concordância com a proposta de Vihman e Croft (2007), Munson
et al. (2005b) propõem que as representações fonológicas abstratas que adultos
apresentam como conhecimento implícito vão emergindo gradualmente ao longo de
II. O Conhecimento Linguístico 34
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
todo o desenvolvimento da criança/ adolescente a partir da sua experiência
linguística.
2.3 O CONHECIMENTO FONOLÓGICO EM ADULTOS
Como já dito anteriormente, os MMR pressupõem a aquisição da gramática
de forma gradual e também em diferentes tipos de conhecimento. Mas quais seriam
estes tipos? Que tipo de conhecimento fonológico estaria sendo abstraído pelos
falantes da língua?
Munson et al. (2005b) descreveram quatro tipos de representação do
conhecimento fonológico abstrato que adultos possuem de forma implícita, sejam
eles: (i) conhecimento perceptual sobre as características acústicas dos sons; (ii)
conhecimento articulatório das características sonoras; (iii) conhecimento de
categorias fonológicas; (iv) conhecimento sobre as variações sociofonéticas da
língua.
O primeiro e o segundo tipo de conhecimento são descritos como mais
superficiais ou menos abstratos de conhecimento fonológico, que dizem respeito à
identificação e à produção das características físicas dos sons. Ou seja, o primeiro
estaria relacionado à capacidade de identificar todo o espectro de variedade das
características acústicas presentes na fala, tanto no que diz respeito às variações
fonéticas presentes nas produções intra- e inter- sujeitos, quanto em relação às
categorias sonoras existentes na língua. E o segundo tipo de conhecimento seriam
os planejamentos motores necessários à produção de cada som, de forma precisa.
No entanto, se faz importante salientar que a variabilidade e gradiência das
propriedades acústicas da fala, apesar de serem representadas em níveis mais
superficiais, ainda assim compõem um conhecimento intrínseco à organização
fonológica abstrata do falante/ouvinte. Já o terceiro tipo é descrito como o
conhecimento fonológico mais abstrato que seria concernente às relações
fonotáticas da língua e às relações dessas combinações de sons com os seus
significados. E finalmente, o conhecimento sobre as variações sociofonéticas da
língua diria respeito ao processamento de como a variação linguística é usada para
identificar e transmitir informações de pertencimento a diferentes grupos sociais.
II. O Conhecimento Linguístico 35
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Cada tipo de conhecimento não seria estático, mas sim estaria conectado e
integrado entre si e entre outros conhecimentos linguísticos não-fonológicos.
Há também outro modelo que faz parte do “guarda-chuva” dos MMR que
descreve a representação múltipla do conhecimento fonológico em adultos: a
Fonologia Probabilística, proposta por Pierrehumbert (2003). Esse modelo também
traz a noção de inferências probabilísticas (resultado da aprendizagem estatística)
acerca do material linguístico que o falante possui. Este mecanismo possibilitaria
aos falantes, por exemplo, a representação do detalhe fonético, não como algo
separado da gramática, mas sim como parte integrante da gramática do falante,
como já dito anteriormente. Nesse sentido, o modelo proposto por Pierrehumbert
(2003) descreve pelo menos cinco diferentes níveis 5 de representação que
envolveriam generalizações e abstrações de acordo com distribuições
probabilísticas, sejam eles: (i) representação fonética paramétrica; (ii) representação
da codificação fonética; (iii) representação das formas das palavras no léxico; (iv)
gramática fonológica; (v) e, finalmente, correspondências morfofonológicas.
De uma forma sintetizada, o primeiro nível corresponderia à representação da
codificação perceptual do sinal acústico de fala em cada ocasião particular, e
também, dos gestos articulatórios necessários para a produção no fluxo do discurso.
A partir deste espaço fonético paramétrico representado no primeiro nível, o
falante/ouvinte abstrairia o segundo nível, que seria, portanto, o inventário fonético
disponível na língua para a codificação da forma das palavras que o falante abstrai a
partir da experiência de perceber e produzir sinais acústicos. Importante ressaltar
que esses códigos fonéticos seriam menos abstratos do que a noção clássica de
fonema, uma vez que estariam incluídos nesses códigos fonéticos não só os
segmentos de fala, mas também aspectos prosódicos e entonacionais, além de toda
a informação redundante advinda da distribuição fonética total de uma língua, como
alofones, por exemplo. Já o terceiro nível seria a representação da estrutura sonora
de cada palavra no léxico, que se configura como abstrações do nível paramétrico,
mas também serviria para “alimentar” o nível paramétrico. A representação da forma
da palavra permitiria ao falante reconhecer determinada palavra apesar da variação 5 Neste trabalho de 2003, a autora utiliza o termo “nível” (em inglês, “level”) para designar os diferentes tipos de conhecimento fonológico. No entanto, este termo não está sendo mais utilizado atualmente em função da noção de hierarquia que o mesmo pode oferecer e que não é proposta pelos Modelos Baseados no Uso de forma geral e nem pela própria autora. No entanto, aqui, o termo será mantido para respeitar o que foi escrito pela autora à época.
II. O Conhecimento Linguístico 36
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
fonética resultante da diferença entre falantes e contextos. Essa mesma
representação seria a mediação entre percepção e produção, o que permitiria ao
falante a repetição de palavras já adquiridas. Esse nível de representação seria
fortemente influenciado pela frequência de ocorrência de cada palavra para aquele
determinado indivíduo.
O quarto e o quinto níveis seriam níveis mais abstratos e corresponderiam,
respectivamente, à representação de padrões fonológicos, como a estrutura
prosódica e fonotática da língua, e à representação das relações morfofonológicas.
Esses padrões mais abstratos emergiriam a partir das abstrações sobre as formas
das palavras no léxico e não diretamente a partir do sinal acústico da fala, e
permitiriam ao falante a aquisição de novas palavras. Esses níveis de representação
podem ser evidenciados por julgamentos de boa-formação de palavras, assim como
por neologismos e estrangeirismos.
Existem estudos que trazem evidências para as hipóteses de organização
sonora das línguas de acordo com os MMR, como por exemplo, a representação do
detalhe fonético. Johnson (2005) analisou o aspecto de gênero na variação
sociofonética6, variação essa, que, geralmente, é atribuída apenas às diferenças nos
tratos vocais entre homens e mulheres. No entanto, comparando dados de diversas
línguas sobre a variação fonética entre gêneros diferentes e analisando dados sobre
a aquisição de diferenças fonéticas de gênero, o autor sugere que essas diferenças
entre homens e mulheres não se deve apenas à anatomia diferenciada do trato
vocal, mas também às diferenças entre as línguas. O autor realizou um experimento
de reconhecimento de palavras, no qual foi possível observar que os ouvintes
repetiram/reconheceram as palavras mais rapidamente quando elas eram faladas
por vozes prototípicas de homens ou prototípicas de mulheres, em comparação a
vozes que fugiam do padrão. Segundo o autor, esse dado demonstra que os
ouvintes apresentam uma expectativa a respeito do gênero do falante e que quando
a voz do falante não se encaixa nessa expectativa, ela não é processada tão
rapidamente. Esse conjunto de dados parece evidenciar que o detalhamento
fonético a respeito do gênero do falante é informação linguística relevante para o
6 Variação sociofonética, como já dito anteriormente, diz respeito ao processamento de como a variação linguística é usada para identificar e transmitir informações de pertencimento a diferentes grupos sociais.
II. O Conhecimento Linguístico 37
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
processamento linguístico e não é descartada como sugere o processo de
normalização preconizado por alguns modelos de linguagem.
Outro estudo que traz evidências neste sentido é o de Goldinger et al. (1991),
com uma série de experimentos de reconhecimento de palavras, nos quais a
variabilidade do input ia aumentando em cada teste. Dentre outras coisas, os
autores analisaram a influência da voz do falante no reconhecimento de palavras, e
observaram que quando uma lista de palavras era falada por uma única pessoa,
essa lista era mais facilmente recuperada em comparação a uma lista onde cada
palavra era falada por uma pessoa diferente. Segundo os autores, esse resultado
evidencia que os ouvintes processaram a informação a respeito das diferentes
vozes, sobrecarregando, assim, a memória de curto prazo, tornando mais difícil a
recuperação de tanta informação. Eles ainda mostraram que, depois de treinados e
acostumados com uma determinada voz, os ouvintes reconheciam as palavras de
forma mais acurada se as ouviam faladas pelas vozes com as quais se
acostumaram do que se as ouviam faladas por vozes desconhecidas, evidenciando
novamente o processamento dessa nova informação de forma a aumentar a
demanda da memória de curto prazo.
Outras evidências que corroboram essa proposta, de diferentes níveis/tipos
de conhecimento linguístico organizados em redes de conexões, são estudos
psicolinguísticos que demonstram a existência de alguns fatores estruturais que
interferem no desempenho dos falantes/ouvintes em testes desse tipo. A presença
desse tipo de interferência parece corroborar a ideia dessa organização em redes de
conexão. Tais fatores seriam: frequência de ocorrência, frequência de tipo,
frequência da vizinhança, densidade de vizinhança, configuração fonotática, entre
outras.
Em estudos de julgamento de aceitabilidade de pseudopalavras, por exemplo,
pelo menos dois fatores são levados em consideração: a densidade de vizinhança
lexical e a frequência de tipo das sequências fonotáticas. O primeiro fator diz
respeito à semelhança fonológica de uma pseudopalavra com uma palavra real. Ou
seja, quanto mais vizinhos reais e semelhantes fonologicamente uma pseudopalavra
possuir, mais facilmente ela será aceita como sendo possível na língua. O segundo
fator diz respeito à frequência de ocorrência de cada padrão fonológico existente na
II. O Conhecimento Linguístico 38
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
língua. Ou seja, quanto mais frequente for uma sequência fonológica mais
facilmente aceita será a pseudopalavra que contiver esta sequência.
O estudo de Coleman & Pierrehumbert (1997) trouxe evidências nesse
sentido. Os autores elaboraram pares de pseudopalavras que eram formadas por
sequências que respeitavam (“glislas”) ou não (“mlislas”) os padrões fonotáticos do
Inglês e pediram a 6 sujeitos que fizessem um teste de julgamento de aceitabilidade
com essas pseudopalavras. Os resultados mostraram que, de fato, dois grupos bem
distintos foram estabelecidos: as formas que eram designadas para serem julgadas
como “bad” receberam escores significativamente piores do que aquelas que
deveriam ser julgadas como “good”. No entanto, pseudopalavras formadas com
sequências inexistentes e uma subparte existente (pertencentes ao grupo “bad”)
foram aceitas da mesma maneira que as sequências existentes de baixa frequência
(pertencentes ao grupo “good”) e não completamente rejeitadas, como se poderia
imaginar. Isso ocorreu, provavelmente, porque uma única subparte com
probabilidade de ocorrência igual a zero não é suficiente para eliminar a
possibilidade de existência de uma forma, principalmente se essa subparte estiver
associada à outra subparte com alta frequência de ocorrência, indicando que os
falantes têm uma percepção gradiente dessas relações sobre a frequência de
ocorrência das sequências fonológicas.
Em estudos sobre reconhecimento de palavras, Luce e Pisoni (1998)
demonstraram que quanto mais esparsa a densidade de vizinhança da palavra alvo,
menos competidores lexicais são ativados e, dessa forma, mais rápido é o seu
reconhecimento, enquanto palavras com uma densa vizinhança são reconhecidas
mais lentamente. Vitevitch (2002) observou um processo semelhante ao descrito
acima, analisando um corpus que continha erros de percepção da fala. Esses erros
são conhecidos como “slips of the ear” e foram coletados espontaneamente. Neste
trabalho, o autor encontrou que esses “slips of the ear” – por exemplo, entender
“cadeira” como “madeira” – tendem a acontecer em palavras com densa vizinhança,
novamente sugerindo a múltipla ativação de competidores durante o reconhecimento
da palavra.
Esse mesmo autor ainda cita alguns de seus trabalhos anteriores, nos quais a
realização de diferentes testes – a saber, análise de erros de fala espontâneos e
elicitados, teste nomeação de figuras e “tip-of-the-tongue elicitation task” – também
II. O Conhecimento Linguístico 39
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
levou a resultados que demonstraram a influência da densidade de vizinhança
também na produção de palavras faladas no Inglês. No entanto, na produção de
palavras esse efeito se mostrou invertido, ou seja, palavras com vizinhança densa
foram produzidas com mais rapidez e precisão do que palavras com vizinhança
esparsa, indicando que a similaridade entre as palavras facilita a produção das
mesmas.
Em resumo, são muitos os trabalhos recentes que demonstram a validade dos
MMR, os quais propõem que o conhecimento fonológico representado não seria algo
categórico, invariável e estático, mas sim uma representação probabilística e
dinâmica a respeito de todo o espectro de variações fonéticas existentes no fluxo de
fala, assim como a respeito das relações mais abstratas que podem emergir a partir
daí.
Além disso, existem também trabalhos realizados com crianças que possuem
patologias da linguagem que corroboram estes MMR. No que diz respeito a
patologias que são descritas na literatura como apresentando déficits fonológicos,
pode-se citar três principais, que serão estudadas nesta tese, a saber: (i) dislexia,
que se caracteriza por um transtorno específico de leitura (linguagem escrita) cuja
etiologia preconizada atualmente é de um déficit no processamento fonológico que
impediria a aprendizagem de um segundo sistema linguístico como o da língua
escrita; (ii) desvio fonológico, que se apresenta como um déficit especificamente
fonológico, sendo manifestado também na linguagem oral; e, finalmente, (iii)
distúrbio específico de linguagem, que é uma patologia que se caracteriza por
alterações da linguagem oral principalmente no que diz respeito à organização e
representação fonológica e morfossintática. Sendo assim, no próximo capítulo, cada
uma dessas diferentes patologias serão descritas mais detalhadamente, assim como
as discussões presentes na literatura a respeito dos seus respectivos déficits
fonológicos.
III. DISLEXIA, DESVIO FONOLÓGICO E DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM
omo já dito anteriormente, existem algumas patologias da linguagem
que são descritas na literatura por se caracterizarem por déficits
fonológicos. Neste trabalho, serão estudadas três dessas patologias
distintas, a saber: (i) dislexia, (ii) desvio fonológico e (iii) distúrbio
específico de linguagem, com o intuito de refletir sobre a natureza de
tais déficits fonológicos em cada uma delas. Portanto, neste capítulo,
serão apresentadas as diferentes características linguísticas dessas três patologias
estabelecidas pela literatura, assim como as respectivas discussões a respeito de
cada uma delas. Ao final, uma última seção contendo as discussões da literatura
acerca das semelhanças entre os três quadros clínicos será apresentada.
3.1 DISLEXIA
A Dislexia – atualmente chamada dislexia do desenvolvimento (ou no inglês,
developmental dyslexia) – é caracterizada pela literatura como um transtorno
específico de leitura que acomete o percurso natural de aprendizagem da leitura no
desenvolvimento infantil. Essa dificuldade específica para aprender a ler ocorre,
geralmente, na ausência de outras alterações cognitivas e linguísticas (mais
amplas), neurológicas, motoras, ambientais, emocionais, sociais. A criança possui
um desenvolvimento adequado, porém com uma dificuldade específica para ler, que
se manterá ao longo de sua vida, apesar de intervenções adequadas. Como muitas
outras alterações relacionadas à linguagem, é mais comum acometer meninos do
que meninas, sendo a prevalência na população geral estimada em torno de 3 a
10% (Bishop & Snowling, 2004).
Os primeiros relatos a seu respeito começaram a surgir há pouco mais de 100
anos, acompanhando o processo de alfabetização universal que as sociedades
ocidentais passaram a adotar. Em 1896, James Kerr e Pringle Morgan (apud Ellis,
1995) publicaram no British Medical Journal o primeiro relato sistemático dessa
dificuldade de leitura em crianças, empregando o termo “cegueira congênita”. Este
termo foi utilizado em razão de descrições realizadas anteriormente por Hinshelwood
(1895, apud Santos e Navas, 2002) a respeito das dificuldades de leitura
C
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 41
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
apresentadas por um jovem em decorrência de lesão cerebral. Em 1917,
Hinshelwood (apud Shaywitz, 2006), que era um oftalmologista escocês, publicou o
trabalho Congenital Word-blindness, e durante muitos anos a dislexia do
desenvolvimento foi relacionada a deficiências no processamento visual, atraindo a
atenção de muitos outros oftalmologistas (Ellis, 1995; Santos e Navas, 2002;
Shaywitz, 2006). Até meados da década de 1950, o interesse de neurologistas por
esses indivíduos com alterações na leitura também era grande, marcando uma
abordagem hegemonicamente médica para os transtornos da leitura (Salles et al.,
2004).
Já em 1937, com o trabalho de Samuel T. Orton, Reading, Writing and
Speech Problems in Children (apud Santos e Navas, 2002), começou-se a atribuir
déficits psicomotores – como lateralidade, organização espaço-temporal,
motricidade geral e fina – como a causa das dificuldades de leitura. Orton
argumentou que uma falha no desenvolvimento da dominância do hemisfério
esquerdo para a linguagem seria responsável pelos erros de espelhamento e de
sequências das letras observados em indivíduos disléxicos. Esta teoria foi refutada
pelo próprio autor, posteriormente (Nóbrega, 2006), e atualmente, entende-se que
alterações psicomotoras podem estar associadas como co-morbidades, mas não
como fator etiológico da dislexia (Salles et al., 2004).
Foi no final da década de 1960 que os primeiros trabalhos relacionando
déficits fonológicos com os distúrbios de leitura começaram a surgir, dando lugar a
uma abordagem cognitivista (Salles, 2004). Johnson & Myklebust (1967, apud
Santos e Navas, 2002) descreveram dificuldades em certas habilidades fonológicas
presentes em crianças com dislexia auditiva (classificação sugerida por eles), tais
como: perceber similaridades entre sons iniciais e finais das palavras, problemas
para dividir as palavras em sílabas e fonemas, evocar nomes de letras e palavras,
lembrar-se de informações verbais e pronunciar palavras fonologicamente
complexas. A partir de então, diversos outros trabalhos foram publicados
defendendo a hipótese de que os déficits fonológicos são os fatores etiológicos
funcionais da dislexia do desenvolvimento (Liberman et. al., 1974; Bradley & Bryant,
1981; Snowling, 1981; Stanovich & Siegel, 1994; Bowey, 1996; Manis et. al., 1997;
Capovilla e Capovilla, 2000; Rispens, 2004; Desroches et. al., 2005). Atualmente,
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 42
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
esta é a hipótese mais aceita na literatura no que diz respeito à abordagem que
investiga os fatores cognitivos da dislexia.
Ainda mais recentemente, uma abordagem neurobiológica a respeito da
causa da dislexia tem sido difundida, uma vez que, com o avanço da tecnologia,
estudos com neuroimagem funcional têm se tornado cada vez mais comuns. De
acordo com Shaywitz (2006), em um leitor competente, as áreas posteriores do
cérebro (parietotemporal e occipitotemporal) são aquelas mais ativadas durante a
leitura, enquanto que as áreas frontais (giro frontal inferior) são pouco ativadas. No
entanto, o que ocorre com os disléxicos é justamente o contrário: as áreas frontais
encontram-se superativadas, aparentemente, a fim de compensar a subativação das
áreas posteriores. Assim, a autora concluiu que esse padrão apresentado pelos
disléxicos seria uma espécie de “assinatura neural” para as dificuldades fonológicas
que caracterizam a dislexia. Outros trabalhos nessa vertente neurobiológica,
utilizando técnicas neuroanatômicas e citoarquitetônicas, trazem resultados
similares, no entanto, embora haja consenso de que há disfunções cerebrais
subjacentes à dislexia, até o momento não é consagrada na literatura nenhuma
relação de causa-e-efeito entre esses achados neurobiológicos e dislexia (Salles,
2004).
Portanto, no que que diz respeito à etiologia da dislexia, atualmente se
encontra presente na literatura principalmente duas vertentes de investigação: (i) a
dos fatores neurobiológicos, conduzida principalmente por médicos e
neuropsicólogos que se propõem a investigar as disfunções cerebrais que estariam
subjacentes à inabilidade na aprendizagem da linguagem escrita; e (ii) a dos fatores
funcionais, que lida com a caracterização dos déficits cognitivos relacionados aos
processos de leitura e escrita (Salles, 2004). Esta última, tradicionalmente conduzida
pela Psicologia Cognitiva e, recentemente, incorporando trabalhos da
Psicolinguística.
Com relação às classificações, as mais tradicionais se baseiam nas rotas de
leitura preferencialmente utilizadas por cada subtipo de dislexia (Ellis, 1995). De uma
forma geral, há aqueles leitores com dislexia cuja principal dificuldade é com
habilidades fonológicas, prejudicando a utilização da rota fonológica de leitura; este
perfil é posto em oposição àquele cujos leitores possuem dificuldades de
processamento visual, e consequentemente, com a rota lexical de leitura; há ainda
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 43
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
descrito um terceiro perfil cujas dificuldades englobariam tanto habilidades auditivas
como visuais, sendo este o grupo mais comprometido.
No entanto, alguns autores (Stanovich, Siegel e Gottardo, 1997; Manis et. al,
1996) argumentam que a dislexia relacionada com o processamento da rota lexical
estaria muito mais próxima de um atraso no desenvolvimento da leitura do que de
um distúrbio propriamente dito, uma vez que, quando comparadas a crianças com
mesmo nível de leitura, as crianças do grupo de dislexia visual (ou de superfície)
apresentam desempenho bastante semelhante em outras medidas, enquanto que os
de dislexia fonológica evidenciam várias diferenças significativas. Os autores ainda
acrescentam que poderia ser a falta de exposição à linguagem escrita o fator causal
do aparecimento da dislexia visual e que, ao invés de pensar que essas crianças
possuem um mecanismo lexical de reconhecimento de palavras alterado, deve-se
pensar que elas não possuem a forma lexical das palavras escritas, que é
normalmente adquirido pelo ato de ler. Nesse sentido, nesta tese, serão estudadas
crianças com dislexia fonológica do desenvolvimento.
Importante também é diferenciar a dislexia, também chamada de distúrbio
específico de leitura, com outras dificuldades que as crianças possam vir a
apresentar em seus processos de alfabetização e que culminem também no
fracasso da aprendizagem da leitura. Isso diz respeito a fatores ambientais, sociais,
emocionais, ou ainda a dificuldades linguísticas mais amplas, que extrapolem a
dimensão fonológica da linguagem. A dislexia é, portanto, um transtorno que
acomete especificamente habilidades fonológicas que permitirão à criança a
aprender a ler e a escrever.
Atualmente, uma definição bem conhecida e difundida a respeito da dislexia é
a do Orton Dyslexia Society Research Committee (www.interdys.org), que determina
que a dislexia é um distúrbio específico da linguagem de origem constitucional,
caracterizada por dificuldades na decodificação grafo-fonológica de palavras
isoladas, causada por uma ineficiência no processamento da informação fonológica.
Tais dificuldades na decodificação de palavras são, geralmente, inesperadas em
relação à idade e às outras habilidades cognitivas e acadêmicas; elas não são
resultado de um distúrbio geral do desenvolvimento ou de qualquer impedimento
sensorial.
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 44
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Apesar dessa definição se pautar no processamento da informação
fonológica, na literatura em geral, parece não haver clareza com relação à natureza
desse déficit fonológico. Alguns autores acreditam que o déficit é decorrente de
representações fonológicas alteradas, como Santos e Navas (2002), que após
extenso levantamento bibliográfico, concluem que “a dificuldade de estabelecimento
de representações fonológicas de boa qualidade é a principal causa dos déficits de
processamento fonológico encontrados nos disléxicos”. E também Fowlert &
Swainson (2004) que demonstraram que “a imprecisão no conhecimento fonológico,
especialmente sobre palavras longas, contribui para as dificuldades tanto na leitura
como na nomeação de figuras apresentadas pelas crianças disléxicas”.
Outros defendem que a questão é de processamento fonológico, como Siegel
(1993) que afirmou, a partir de testes de leitura, spelling e QI, que as habilidades de
processamento fonológico estão largamente relacionadas com as habilidades de
leitura, sendo este o principal déficit das crianças com dislexia. Manis et. al. (1997)
também defendem a hipótese do processamento a partir dos resultados obtidos na
aplicação de testes de consciência fonológica e identificação de fonemas em
crianças disléxicas, em crianças da mesma idade cronológica e em crianças com
mesmo nível de leitura. Os autores afirmam que o desempenho das crianças
disléxicas foi pior do que o desempenho das crianças com mesma idade
cronológica, mas não diferenciou das crianças com mesmo nível de leitura, e assim,
concluíram que os disléxicos podem possuir um déficit perceptual que estaria
interferindo no processamento da informação fonológica, apesar do fato de que esse
déficit perceptual provavelmente possa afetar também a representação fonológica.
Outros não definem exatamente como é essa dicotomia entre representação
e acesso, como Snowling (1981), que demonstrou que disléxicos são afetados pela
complexidade fonológica do estímulo, tanto num teste de leitura de pseudopalavras
como num teste de repetição de palavras reais e pseudopalavras. A autora conclui
que esses resultados sugerem um déficit fonêmico, e não explicita nada em relação
à representação e/ou ao acesso às informações fonológicas. E em um trabalho mais
recente, Bishop e Snowling (2004) afirmam ser crescente o número de estudos
apontando que “a maioria das crianças com dislexia tem maiores dificuldades no
processamento fonológico, ou seja, categorizar os sons da fala e relacioná-los à
ortografia” (pp. 858). E também Stanovich & Siegel (1994), que após realizarem
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 45
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
teste de leitura e repetição de pseudopalavras, e diferentes tarefas de consciência
fonológica, concluíram que o déficit que prejudica o reconhecimento da palavra na
leitura de pessoas com dislexia reside no domínio fonológico, porém não
especificam a natureza desse domínio.
Ainda há aqueles que delegam toda a natureza do déficit encontrado nos
disléxicos à consciência fonológica, como Rispens (2004) que afirma que crianças
disléxicas têm dificuldades na consciência fonológica, e conclui que essa dificuldade
pode indicar que dislexia tem relação com a qualidade das representações
fonológicas estabelecidas por elas. Enquanto outros preconizam uma alteração no
processamento de forma mais geral, resultando em diferentes manifestações, como
dificuldades na consciência fonológica, em nomeação, em memória fonológica, na
repetição de não-palavras, na percepção e discriminação de fonemas (Morton e
Frith, 1995; Bowey et. al., 2005).
De uma maneira geral, parece que mesmo sem definir exatamente a questão
representação/processamento, a grande maioria dos trabalhos atribui todas essas
diferentes manifestações (dificuldade em consciência fonológica, nomeação,
memória fonológica, etc...) a um déficit fonológico apresentado pelos disléxicos. Em
função disso, Esteves (2009) estudou a representação do conhecimento fonológico
e o acesso à tais informações fonológicas no léxico mental em crianças com dislexia
a partir de um teste de nomeação de figuras. Em tal dissertação, concluiu-se que a
dificuldade dos disléxicos parece residir muito mais no acesso à forma fonológica da
palavra no léxico, ou seja no processamento fonológico, do que na sua
representação propriamente dita. Essa conclusão se deve ao fato de que as
crianças disléxicas apresentaram escores compatíveis com a idade em medidas de
vocabulário, contudo, mostraram dificuldades no acesso às palavras no teste de
nomeação de figuras. Neste trabalho, verificou-se também que o teste de nomeação
de figuras foi importante para estudar o acesso lexical, mas não tão adequado para
averiguar a representação do conhecimento fonológico. Em função disso, nesta
tese, dentre outras coisas, se dará também a continuidade desse projeto de
mestrado, a partir de um teste de repetição de pseudopalavras, que será explicado
posteriormente.
Portanto, de forma resumida, o que se entende por dislexia atualmente é que
se trata de um transtorno específico de leitura, que se apresenta na ausência de
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 46
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
quaisquer fatores orgânicos, neurológicos, cognitivo-linguísticos gerais, emocionais,
sociais ou motores. A etiologia orgânica ainda não foi definida, apesar dos estudos
apostarem em determinadas disfunções neurofisiológicas e neuroanatômicas
determinadas geneticamente, que acarretam em dificuldades no processamento (ou
representação) fonológico. Não são descritos déficits linguísticos mais amplos, como
lexicais, sintáticos, entre outros. Somente as dificuldades fonológicas, que são
evidenciadas por diversas inabilidades, como: dificuldades de decisão lexical
auditiva (Esteves e Maia, no prelo) dificuldades de repetição de pseudopalavras (de
Bree et al., 2007); dificuldades de nomeação automatizada rápida (Wolf & Bowers,
1999) e nomeação de figuras (Esteves, 2009); dificuldades de consciência
fonológica (Rispens, 2004), dentre outros.
3.2 DESVIO FONOLÓGICO
O segundo transtorno da linguagem estudado nesta tese é o Desvio
Fonológico (ou Distúrbio Fonológico) – em inglês, phonological disorder (ou
phonological impairment) – caracterizado atualmente como um comprometimento da
linguagem oral, que se manifesta na forma de alterações fonológicas na fala não
mais esperadas para a faixa etária. As alterações encontradas nessas crianças não
são, geralmente, persistentes e com intervenção adequada é possível que elas
atinjam produções semelhantes ou iguais aos alvos dos adultos (dessa forma, o
termo “distúrbio” não é tão adequado para nomear esse quadro clínico). Assim como
nos casos de dislexia, as crianças com desvio fonológico também não apresentam
nenhuma alteração neurológica, motora, auditiva, nenhum comprometimento
intelectual ou social ou qualquer síndrome de base que possa justificar o déficit
fonológico. Não é descrito na literatura nenhuma alteração morfossintática, lexical ou
pragmática, tanto de produção como de compreensão (Mota, 2001). A única
característica que marca esta patologia é a fala ininteligível em função de todas as
alterações fonológicas, que podem aparecer na forma de omissões, acréscimos,
substituições, distorções, tanto no que diz respeito à estrutura fonêmica quanto à
estrutura silábica (Mota, 2001). É como se a fala das crianças com desvio fonológico
se assemelhasse à de crianças mais novas, havendo, no entanto, discrepância entre
as habilidades fonológicas e outros domínios da linguagem. Estima-se sua
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 47
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
prevalência em torno de 4% na população de 6 anos de idade, também acometendo
mais meninos do que meninas (Munson, 2010).
O desvio fonológico teve, nos seus primórdios, uma abordagem estritamente
articulatória. Os termos “desordem articulatória funcional”, “dislalia funcional” ou
“distúrbio articulatório” eram empregados pelos terapeutas da fala (ou
fonoaudiólogos 7 ) para designar todas as dificuldades de crianças que não
conseguiam “aprender” corretamente os sons da língua. Os estudos da época a
esse respeito consideravam que as limitações motoras e perceptuais eram a causa
do problema, que acarretavam em gestos articulatórios imprecisos e persistentes
(Mota, 2001). Nesse sentido, a terapia para tais distúrbios articulatórios consistia em
avaliar quais sons a criança não conseguia produzir, para então, ensinar o gesto
motor para a produção do som, um a um, de forma isolada, uma vez que os erros
eram considerados assistemáticos e sem relação uns com os outros. Ou seja, tanto
a avaliação quanto a terapia se centravam nos aspectos mecânicos da pronúncia
dos sons da fala.
Somente em meados da década de 1970, é que começaram a surgir os
primeiros trabalhos demonstrando que, apesar de não ocorrer da forma esperada
para a faixa etária, a aquisição do sistema fonológico de crianças com a fala
ininteligível parecia seguir uma organização e sistematização equivalentes ao de
uma criança com desenvolvimento típico. Ou seja, embora menor, o inventário de
sons dessas crianças representava uma aquisição ordenada (Mota, 2001). E ainda,
caso fosse somente uma questão de articulação, seria mais provável encontrar, na
fala dessas crianças, mais distorções e imprecisões articulatórias do que omissões e
substituições, quando na realidade, o padrão que se encontra é o inverso (Leonard,
1995).
Sendo assim, com a ascensão dos estudos da área da Linguística, os
terapeutas da fala começaram a compreender tais patologias através do viés da
fonologia e, sendo assim, a avaliação e a terapia passaram a ter um novo enfoque a
partir de modelos linguísticos. O trabalho que marcou essa diferença foi o de Ingram
(1976), no qual o autor sugeriu uma interpretação dos transtornos da articulação
como transtornos que comprometiam o nível da organização mental do sistema de 7 O termo “terapeutas da fala ou da linguagem” é usado, ainda hoje, principalmente, em países europeus. No Brasil, este termo era usado antigamente, sendo sinônimo de “logoterapeutas”, profissão que mais tarde veio a ser regulamentada como Fonoaudiologia.
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 48
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
sons da fala. E, atualmente, há um consenso geral na literatura, de que essas
dificuldades tenham, em sua etiologia funcional, alguma alteração no domínio
fonológico da linguagem. Por isso, novos termos surgiram para designar tal
patologia que passou a ser considerada como uma patologia da linguagem: “desvio
fonológico”, “distúrbio fonológico”, “desordem fonológica” ou “inabilidade fonológica”.
A etiologia orgânica ainda é desconhecida.
Importante salientar que o desvio fonológico, tal como é entendido
atualmente, se diferencia do distúrbio articulatório puro, no qual são encontradas
somente distorções e imprecisões articulatórias em função de alguma alteração
orgânica nos órgãos fonoarticulatórios – embora compreenda-se que mesmo tais
distúrbios articulatórios de natureza orgânica também podem acabar por acarretar
em alguma alteração fonológica leve (Mota, 2001).
De acordo com Wertzner (2004), existem descritas na literatura diferentes
tentativas de classificação para o desvio fonológico, no entanto, nenhuma delas é
utilizada em ampla escala, com total consenso na literatura. De acordo com a
autora, isso se deve ao fato da grande variabilidade de fatores que caracterizam o
desvio fonológico, como a descrição da fonologia das crianças e a sua interação
com outros domínios linguísticos, a severidade do distúrbio, o comprometimento da
inteligibilidade da fala, a sua causa.
Assim, de acordo com as causas do desvio fonológico, Shriberg e
Kwiatkowski (1982) propuseram 5 subtipos: (i) com comprometimento genético; (ii)
com otite média de repetição (que pode levar a perda auditiva leve); (iii)
acompanhado de dispraxia verbal; (iv) com alterações psicossociais. No entanto,
essa classificação pode ser questionada em termos do que se considera atualmente
como critérios de inclusão no diagnóstico de desvio fonológico, como: audição
normal, inexistência de anormalidade anatômicas e/ou fisiológicas, ausência de
disfunção neurológica e/ou psicossocial relevante, capacidades intelectuais
adequadas para a faixa etária e linguagem expressiva, vocabulário e extensão
média do enunciado também adequados (Wertzner, 2004).
Já no que diz respeito às características linguísticas da criança, Ingram (1976)
propõe três subtipos de desvio fonológico: (i) atraso: a criança possui somente um
atraso na aquisição da fonologia, porém compatível com as etapas do
desenvolvimento típico; (ii) desviante 1: há a presença dos mesmos processos
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 49
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
fonológicos presentes no desenvolvimento típico, porém não respeitando as suas
etapas; (iii) desviante 2: há a presença de processos fonológicos típicos do
desenvolvimento em conjunto com processos fonológicos idiossincráticos. E há
também uma classificação mais atual proposta por Oliveira e Wertzner (2000): (i)
PFD: processos fonológicos do desenvolvimento não mais esperados para a idade;
(ii) PFND: processos fonológicos não observados no desenvolvimento; e (iii)
PFDND: processos mistos, ou seja, processos fonológicos do desenvolvimento não
esperados para a idade e processos fonológicos não observados no
desenvolvimento.
Outros critérios para a classificação dos desvio fonológico seriam os quesitos
inteligibilidade de fala e severidade do distúrbio. O primeiro poderia ser mensurado
através de escalas de porcentagem de palavras inteligíveis, como proposto por
Wertzner (2004), as quais resultam em (i) boa, quando a inteligibilidade está entre
80% e 100%, (ii) regular, quando a média é de 79% a 60%, e (iii) insuficiente, sendo
abaixo de 59%. Já em relação ao grau de severidade, existem trabalhos diferentes
que propõem diversos testes resultantes em medidas de grau de severidade.
Geralmente, são índices calculados em função da acuracidade da palavra nos testes
que resultam em graus do tipo leve, moderado e severo (Wertzner, 2004).
Os principais trabalhos sobre desvio fonológico adotam, histórica e
atualmente, a perspectiva linguística predominante, ou seja, a da fonologia gerativa
clássica e seus desdobramentos, como a fonologia natural, fonologia
autossegmental, fonologia métrica e a teoria da optimalidade (Ingram, 1976; Yavas,
Hernandorena e Lamprecht, 1991; Bernhartd & Stoel-Gammon, 1996; Gierut, 1998;
Mota, 2001; Wertzner, 2004). De uma forma geral, essas teorias de base gerativa
preconizam que a fonologia é adquirida através de processos fonológicos, restrições
ou regras derivacionais que vão guiando a organização do sistema fonológico da
criança. Diz-se que tal sistema fonológico está totalmente organizado quando todos
os traços distintivos da língua são adquiridos, e assim, as distinções de significado
também são possíveis de serem estabelecidas.
Baseados nesta perspectiva, muitos autores definem o desvio fonológico
como uma patologia que afeta a produção e/ou representação mental dos sons da
língua materna e que é manifestado pelo uso inadequado das regras fonológicas
características do sistema usado pelos falantes adultos dessa determinada língua
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 50
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
(Gierut, 1998). Ainda, de acordo com esta visão, existiriam dois componentes de
alteração: (i) fonético, no qual é possível identificar maiores comprometimentos no
nível do planejamento motor da fala; e (ii) fonêmico, que afetaria o modo pelo qual a
informação sonora seria armazenada e representada no léxico mental ou acessada
e recuperada cognitivamente (Wertzner, 2004).
Ainda nessa perspectiva, podem ser encontradas algumas descrições das
diferenças e semelhanças entre crianças com desenvolvimento típico e com desvio
fonológico no que diz respeito a aquisição das classes de fonemas a partir dos
traços distintivos e dos processos fonológicos. Mota (2001), por exemplo, diz que
crianças com desvio fonológico se assemelham a crianças com desenvolvimento
típico no que diz respeito: (i) ao aparecimento de sons e traços distintivos
respeitando o desenvolvimento típico; (ii) aos tipos de processos fonológicos mais
frequentes presentes em ambos os grupos; (iii) à presença de leis implicacionais
semelhantes em ambos os grupos; (iv) à presença de distinções subfonêmicas (ou
contraste encoberto) na fala de ambos os grupos; e (v) à sensibilidade que ambos
os grupos têm à língua ambiente, ou seja, ao fato de que os erros presentes nas
falas de crianças com desenvolvimento típico e com desvio fonológico se baseiam
em sons presentes nas línguas maternas.
A autora relata também algumas diferenças em relação a: (i) vozeamento,
que, segundo a autora, as crianças com desvio fonológico não seriam tão
proficientes na produção de contrastes de vozeamento; (ii) presença de “erros
incomuns” na fala de crianças com desvio fonológico, que a autora descreve como
“sons de aparecimento mais tardios substituindo sons mais iniciais” ou “produção de
consoantes não encontradas na língua ambiente”; (iii) uso assistemático, ou seja, as
crianças com desvio fonológico apresentam maior variabilidade do que crianças com
desenvolvimento típico; (iv) relação fonologia/léxico/memória de trabalho, que
segundo a autora, as crianças com desvio fonológico geralmente apresentam léxicos
iguais ou levemente inferiores aos seus pares cronológicos, apesar das suas
habilidades fonológicas apresentarem-se sensivelmente abaixo do esperado para
idade, com a consequente inabilidade também para a memória de trabalho
fonológica.
Portanto, ao centrarem o déficit das crianças com desvio fonológico na
dificuldade na aquisição dos traços distintivos, as teorias de base gerativa enfatizam
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 51
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
o déficit na organização das regras fonológicas da língua que culminam na
representação das categorias fonológicas, ou seja, da gramática fonológica. No
entanto, trabalhos recentes trouxeram evidências de que talvez o tipo de
conhecimento afetado nas crianças com desvio fonológico não seja esse da
gramática fonológica, mas sim das representações fonéticas paramétricas. Esses
trabalhos analisam as produções das crianças com desvio fonológico sob a ótica dos
Modelos Multirrepresentacionais de linguagem (MMR).
Por exemplo, Beckman et al. (2007) realizaram uma série de testes em
crianças diagnosticadas com distúrbio específico de linguagem e com desvio
fonológico e em crianças mais novas e com a mesma idade que as populações
clínicas – populações com desenvolvimento típico. Os testes visavam avaliar os
diferentes níveis de representação fonológica em cada população diferente. Os
resultados mostraram que, para o teste de repetição de pseudopalavras, as crianças
com desvio fonológico não apresentaram discrepância em relação às crianças com
desenvolvimento típico no efeito de probabilidade fonotática – ao contrário do que
aconteceu com as crianças com distúrbio específico de linguagem – e em um teste
que mensurava a acuidade perceptual auditiva, elas apresentaram um desempenho
semelhante ao da população mais nova com desenvolvimento típico e
significativamente pior do que o desempenho da população mais velha também com
desenvolvimento típico. Isso evidenciou que as crianças com desvio fonológico
possuem representações menos robustas da codificação perceptual do sinal
acústico de fala, e consequentemente, dos gestos articulatórios, e com significativo
atraso em relação às crianças da mesma idade com desenvolvimento típico, mas
apontam para uma preservação das informações fonológicas mais abstratas. A
“produção de consoantes não encontradas na língua ambiente”, tal como descrita
por Mota (2001) pode ser entendida como um resultado dessa dificuldade com a
codificação perceptual do sinal acústico de fala.
Munson et al. (2005a), ao falarem dos tipos de conhecimento afetados nas
crianças com desvio fonológico, reúnem trabalhos que evidenciam as dificuldades
com o conhecimento perceptual e articulatório – por exemplo, discriminar os sons
iniciais /s/ e /ʃ/ nas palavras ou apresentar gestos motores indiferenciados para
diferentes plosivas como /t/ e /k/ – assim como dificuldades com o conhecimento
sobre as variações sociofonéticas da língua. No entanto, segundo os autores,
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 52
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
também não há nenhuma evidência de que crianças com desvio fonológico possuam
dificuldades com as categorias fonológicas mais abstratas. Essa conclusão foi tirada
a partir dos resultados de diferentes testes padronizados, que visam medir tamanho
de vocabulário, conhecimento perceptual e articulatório, além do teste de repetição
de pseudopalavras, utilizado em Edwards et al. (2004). Os resultados mostraram
que as crianças com desvio fonológico obtiveram desempenho pior do que as
crianças com desenvolvimento típico no teste de repetição de palavras em função da
sua fala menos acurada, no entanto, o efeito da frequência de ocorrência das
sequências de fonemas foi o mesmo para ambos os grupos. Além disso, foi possível
estabelecer a influência do tamanho do vocabulário no efeito de frequência de
ocorrência das sequências de fonemas – quanto maior o vocabulário, menor o efeito
– e dissociar as medidas de conhecimento perceptual e articulatório desse efeito de
frequência.
Posteriormente, Munson et al. (2010) descrevem três experimentos distintos
elaborados com o intuito de avaliar os diferentes tipos de conhecimento fonológico
de crianças com desvio fonológico em comparação com seus pares cronológicos.
Eles encontraram que as crianças com desvio fonológico não se diferenciaram das
crianças com desenvolvimento típico em termos da velocidade de acesso lexical e
da capacidade de codificação fonológica, no entanto, se mostraram com habilidades
reduzidas para aprender as representações perceptuais de novas palavras. Ou seja,
as dificuldades das crianças com desvio fonológico parecem se centrar muito mais
nas representações paramétricas do que nas informações abstratas da gramática
fonológica.
Ainda, Giacchini et al. (2011), traz evidências de que algumas crianças com
desvio fonológico realizam, em suas falas, contrastes que, apesar de não serem
perceptíveis a “ouvido nu”, podem ser detectados através de análise acústica – são
os chamados contrastes encobertos. As autoras analisam esta evidência de acordo
com a perspectiva gerativista, afirmando que tais crianças possuiriam, em sua
estrutura fonológica subjacente, a forma sonora do alvo, mas não conseguiriam
produzi-la na fala. No entanto, é possível também analisar tal evidência sob a luz
dos MMR. De acordo com tal teoria, o contraste encoberto evidenciaria que as
crianças de fato possuem as habilidades de categorizar estruturas fonológicas
abstratas a partir de seu léxico, que parece permanecer de acordo com o esperado
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 53
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
para a faixa etária. No entanto, elas possuem dificuldades com a precisão das
características acústicas dos sons das palavras, acarretando em gestos motores
diferenciados.
Em suma, o que se tem na literatura atual a respeito do desvio fonológico é
que o mesmo se caracteriza por uma dificuldade específica na produção da fala e,
tal como na dislexia, se apresenta na ausência de quaisquer fatores orgânicos,
neurológicos, cognitivo-linguístico gerais, emocionais, sociais, motores. Sua etiologia
orgânica também é desconhecida ainda e o que se tem são as evidências de
alterações fonológicas expressas na fala. Não são relatadas outras dificuldades
linguísticas mais amplas. No entanto, ainda se coloca como uma questão para a
literatura qual(is) tipo(s) de conhecimento fonológico estaria(m) afetado(s) nessas
crianças: as representações da gramática fonológica ou das informações
paramétricas finas.
3.3 DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM
O terceiro e último transtorno de linguagem estudado nesta tese é o Distúrbio
Específico de Linguagem – em inglês, specific language impairment. Tal patologia se
caracteriza pela presença de alterações linguísticas (fonológicas, semânticas,
sintáticas e narrativas, em sua maioria), na ausência de qualquer outro transtorno
que justifique tal dificuldade. Assim como na dislexia e no desvio fonológico, de uma
forma geral, é consenso entre pesquisadores que a dificuldade no desenvolvimento
das habilidades linguísticas apresentadas por crianças com distúrbio específico de
linguagem se dá na ausência de deficiências auditivas e/ou mentais, alterações
neurológicas, comprometimentos motores, distúrbios globais do desenvolvimento,
danos cerebrais adquiridos, inadequações sociais ou qualquer distúrbio do
comportamento e emocional significativos. Ou seja, a única manifestação aparente
se concentra no distúrbio de linguagem sendo a etiologia também não definida.
Alguns estudos de neuroimagem parecem apontar para uma influência genética
neste distúrbio, em função das diferenças neuroanatômicas e neurofuncionais
encontradas nas crianças com distúrbio específico de linguagem, no entanto, estes
achados ainda não são conclusivos para serem identificados como possível etiologia
(Hage, 2001; Bishop, 2006). De acordo com Bishop & Snowling (2004), a taxa de
prevalência desse distúrbio na população em geral gira em torno de 3 a 10% – taxas
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 54
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
similares às de dislexia – acometendo mais meninos do que meninas, como a
maioria dos transtornos de linguagem.
O distúrbio específico de linguagem têm sido estudado tradicionalmente por
terapeutas da fala e da linguagem (ou fonoaudiólogos, no Brasil) (Bishop &
Snowling, 2004), embora desperte o interesse de uma gama variável de
profissionais como psicólogos, linguistas, pediatras, neurologistas (Law, 2001). Os
primeiros estudos sobre distúrbio específico de linguagem foram realizados pelo
Instituto da Criança Afásica, nos Estados Unidos, por volta da década de 1960 (Befi-
Lopes, 2004), coincidindo com a época em que os estudos da Linguística passaram
a fazer parte do arcabouço teórico da Fonoaudiologia. O Instituto da Criança Afásica
definiu o distúrbio específico de linguagem como um retardo na aquisição da
linguagem, ocorrendo na presença de funcionamento intelectual, socioeconômico e
auditivos normais (Befi-Lopes, 2004). O instituto utilizava termos como “afasia
desenvolvimental”, “afasia congênita” ou “disfasia” que foram, durante muito tempo,
utilizados para se referir ao distúrbio específico de linguagem. No entanto, com a
evolução do conhecimento, observou-se que o termo “afasia” – designação para
quadros nos quais há perda das habilidades linguísticas após o processo de
desenvolvimento de linguagem já ter sido completado – não poderia ser adequado
para um quadro que não é adquirido, mas sim, que possui um caráter congênito.
Dessa forma, termos como “distúrbio grave da expressão verbal”, “transtorno da
linguagem expressiva” passaram a ser utilizados, também em função da
nomenclatura dos manuais diagnósticos.
Contudo, a expressão que melhor caracteriza essa patologia é “Distúrbio
Específico de Linguagem”, uma vez que “distúrbio” traz a ideia de ter um caráter
persistente, ou seja, o indivíduo com distúrbio específico de linguagem levará
marcas da patologia ao longo de sua vida, mesmo com intervenção adequada; e
“específico” pois expressa o carácter de uma certa independência, ou pelo menos,
discrepância entre as demais habilidades cognitivas (Grivol, 2011).
A proposta mais conhecida de classificação do distúrbio específico de
linguagem é a de Rappin e Allen (1988), que, tomando por base a alteração de
níveis linguísticos e suas interfaces, subdividiram o distúrbio em 3 subgrupos: (i)
distúrbio expressivo (que engloba o distúrbio da programação fonológica e a
dispraxia verbal); (ii) distúrbio expressivo e de compreensão (que envolve o distúrbio
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 55
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
fonológico-sintático e a agnosia auditivo-verbal); e (iii) o distúrbio do processo de
formulação central (que inclui o distúrbio léxico-semântico e o distúrbio semântico-
pragmático. A seguir, uma breve descrição de cada um deles:
• Distúrbio de programação fonológica: Compreensão normal ou próxima do
normal; o aparecimento da fala é normal ou com leve atraso; a estrutura dos
enunciados é compatível com a faixa etária; a fala é ininteligível devido as alterações
fonológicas, fluência preservada.
• Dispraxia verbal: Compreensão normal ou próxima do normal; linguagem
oral se manifestando com atraso; o enunciado de restringe a uma ou duas palavras;
a fluência pode estar comprometida.
• Distúrbio fonológico-sintático: compreensão prejudicada quando o enunciado
é longo ou emitido com rapidez; linguagem oral se manifesta com atraso; alterações
de morfossintaxe (frases simples, telegráficas, erros de flexão verbal e nominal;
dificuldade de organização sintática; presença de varias alterações fonológicas.
• Agnosia verbal auditiva: compreensão da linguagem oral muito prejudicada
ou ausente, estando normal a compreensão de gestos; fala ausente ou muito restrita
(apenas palavras isoladas com articulação prejudicada).
• Distúrbio léxico-sintático: dificuldade de evocação e fixação do léxico; podem
ocorrer alterações fonológicas, mas sem afetar a inteligibilidade da fala; fluência
pode estar prejudica devido às dificuldades de evocação lexical; alteração na
compreensão de frases; dificuldade de manter a sequência dos elementos na frase
ou de usar palavras com sentido gramatical.
• Distúrbio semântico-pragmático: o aparecimento da fala pode estar normal;
enunciados e articulação desenvolvem-se normalmente ou com ligeiras dificuldades;
fala fluente; as dificuldades estão relacionadas ao nível pragmático (inadequação da
linguagem ao contexto, coerência temática instável, ecolalias; dificuldade na
compreensão de enunciados longos e entendimento literal da palavra exagerado).
Embora essa classificação seja utilizada até hoje, na prática clínica observa-
se que os subtipos mais prevalentes são o “fonológico-sintático” e o “léxico-
sintático”, assim como a mistura entre eles, ou seja, crianças que apresentam
déficits sintáticos, fonológicos e lexicais (Befi-Lopes, 2009). Atualmente, os manuais
diagnósticos disponíveis classificam as alterações de linguagem como “puramente
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 56
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
expressivas” ou “mistas” (com compreensão e expressão comprometidas) (Befi-
Lopes et al., 2012).
De uma forma geral, dentre as características linguísticas mais comumente
descritas, encontram-se alterações fonológicas, que tornam a fala ininteligível;
vocabulário restrito, com uso demasiado de dêiticos e gestos representativos,
dificuldade em adquirir novas palavras; estrutura frasal simplificada, com pouca
variação e, em alguns casos, com ordenação de palavras não usual; e dificuldades
de compreensão de sentenças (Hage e Guerreiro, 2004).
Especificamente no tocante às alterações morfossintáticas, estas têm sido
descritas pela literatura como o maior marcador clínico para o distúrbio específico de
linguagem. São descritas alterações na produção morfológica, na utilização
quantitativa e qualitativa de substantivos, verbos e adjetivos, usos inadequados de
pronomes, conjunções e preposições, medidas de extensão média de enunciados
reduzidas (Befi-Lopes, 2004). Araújo (2007) realiza um amplo levantamento
bibliográfico a respeito dessas alterações e aponta para a utilização de estruturas
frasais mais curtas e com menor complexidade, uso limitado de estruturas de
subordinação e omissão ou uso inadequado de elementos gramaticais obrigatórios e
funcionais.
Com relação às habilidades semântico-lexicais, Grivol (2011) descreve uma
série de trabalhos que apontam para as dificuldades neste domínio linguístico em
crianças com distúrbio específico de linguagem. Segundo a autora, essas
dificuldades se expressam, principalmente, em termos de conhecimentos
semânticos limitados a respeito das palavras, dificuldades na organização
semântico-lexical, dificuldades na recuperação das palavras no léxico, dificuldade na
aprendizagem de novas palavras, acarretando em vocabulário empobrecido,
diferenças em relação aos seus pares cronológicos tanto de vocabulário expressivo
como receptivo – embora haja a mesma diferença entre expressão e recepção que
há em crianças com desenvolvimento típico. Araújo (2007) também demonstra que
as crianças com distúrbio específico de linguagem apresentam atraso de,
aproximadamente, 1 ano para o aparecimento das primeiras palavras, falham na
grande expansão vocabular que ocorre, geralmente, entre os 18 e 24 meses de
idade, demonstram dificuldades em adquirir determinados conceitos, principalmente,
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 57
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
aqueles mais abstratos e figurativos, e apresentam limitações ao combinar os
significado das palavras para formar sentenças.
Ainda, são descritas na literatura alterações fonológicas que tornam a fala de
crianças com distúrbio específico de linguagem altamente ininteligível. De acordo
com Befi-Lopes (2004), crianças com tal patologia apresentam alterações referentes
às vogais e à omissão frequente das consoantes iniciais; dificuldades na percepção
de unidades subsilábicas e na representação de estruturas silábicas complexas;
utilização de processos fonológicos idiossincráticos de maneira predominante em
comparação àqueles presentes no desenvolvimento, além da ocorrência de um alto
índice de segmentos ininteligíveis, substituições e omissões em geral. A autora
ainda ressalta que essas alterações fonológicas parecem resultar de alterações
específicas e não como consequência de um simples retardo no desenvolvimento.
Em trabalho posterior, Befi-Lopes et al. (2010) concluíram, a partir de um teste de
decisão lexical auditivo, que as crianças com distúrbio específico de linguagem
apresentaram déficits na representação fonológica em função de diferenças na
formação e retenção das representações fonológicas na memória de trabalho,
discriminação auditiva e planejamento e execução motoras.
E, de fato, diversos trabalhos têm tentado demonstrar relações entre as
dificuldades fonológicas e lexicais e dificuldades na memória de trabalho de crianças
com distúrbio específico de linguagem (Gathercole e Baddeley, 1989; McGregor et
al., 2002; Gathercole, 2006; de Bree et al., 2007; Hoff et al., 2008). Tal dificuldade na
memória de trabalho é, geralmente, evidenciada a partir de testes de repetição de
pseudopalavras, nos quais crianças com distúrbio específico de linguagem não
apresentam desempenho favorável, sendo inclusive, tal desempenho ruim um
preditor para o diagnóstico dessa patologia (de Bree et al., 2007). No entanto, a
definição de qual tipo de habilidade de fato estaria exercendo alguma influência na
tarefa de repetição de pseudopalavras não é bem estabelecido.
Por exemplo, Gathercole (2006) apresenta um quadro teórico para explicar a
relação entre repetição de pseudopalavras e aprendizagem de novas palavras,
concluindo que ambos os processos se baseiam centralmente no armazenamento
fonológico temporário, e que um déficit nesta memória de trabalho poderia ocasionar
uma dificuldade tanto na repetição de pseudopalavras como na aprendizagem de
novas palavras. Ou seja, baseando-se nesta hipótese da memória de trabalho,
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 58
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
entende-se um vocabulário empobrecido como uma consequência da dificuldade de
repetição de pseudopalavras (daí a ideia de este ser um fator diagnóstico para casos
de distúrbio específico de linguagem). No entanto, a autora, neste mesmo trabalho,
também coloca que apenas um déficit de memória de trabalho pode não ser
suficiente para explicar as dificuldades encontradas em crianças com distúrbio
específico de linguagem. Archibald e Gathercole (2007) corroboram esta última
afirmação, ao investigarem o papel da memória de trabalho fonológica na repetição
de pseudopalavras em crianças com distúrbio específico de linguagem a partir da
comparação de dois testes: memória sequencial auditiva e repetição de
pseudopalavras. Os resultados mostraram que a dificuldade na repetição de
pseudopalavras persistiu mesmo quando as medidas de memória foram controladas
e, assim, mais uma vez, os autores concluíram que essa dificuldade das crianças
com distúrbio específico de linguagem não se deve apenas à memória de trabalho
fonológica.
Ainda, Archibald e Gathercole (2006) já haviam comparado dois testes de
repetição de pseudopalavras amplamente utilizados na literatura de estudos da
língua inglesa, Children´s Test of Nonword Repetition (CNRep) e Nonword
Repetition Test (NRT). A diferença entre esses dois testes encontra-se na
composição dos itens utilizados como estímulos para as tarefas. No CNRep, as
pseudopalavras são compostas por 2 a 5 sílabas, alguns itens possuem onsets
complexos e muitos itens possuem palavras ou morfemas como subpartes da
pseudopalavra. Ou seja, além da memória, esse teste exige controle motor para
produção dos onsets complexos e a tarefa pode ser facilitada pelo léxico e suas
relações morfofonológicas, em função da semelhança entre a pseudopalavra e
palavras reais. Já no NRT, o comprimento dos itens varia de 2 a 4 sílabas, todos
eles são formados por sílabas CV e nenhuma das pseudopalavras possui sílabas
correspondentes a itens lexicais reais. Os autores aplicaram esses testes em
crianças com distúrbio específico de linguagem e em dois grupos controles, um de
pares com mesma idade cronológica e outro com pares de mesma habilidade
linguística. Os resultados mostraram que, em todos os grupos, os escores médios
foram melhores para o CNRep do que para NRT, evidenciando talvez que a tarefa
tenha sido mediada pelo léxico, em função do grau de semelhança entre as
pseudopalavras e as palavras reais da língua, e não só pela memória de trabalho.
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 59
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Além disso, os autores encontraram também que as crianças com distúrbio
específico de linguagem obtiveram um desempenho significativamente pior em
ambos os testes, quando comparadas às crianças com mesma idade cronológica
(que possuem abstrações fonológicas e lexicais mais robustas) mas em relação às
crianças com mesmo desempenho linguístico, porém mais novas (que, a princípio,
deveriam ter tamanho de léxico e representações das informações fonológicas
abstratas equivalentes) as crianças com distúrbio específico de linguagem só
tiveram pior desempenho no CNRep, teste que é altamente mediado pelo léxico, e
não no NRT. Esta última evidencia, pode indicar que crianças com distúrbio
específico de linguagem possuem uma dificuldade em organizar as informações de
seus léxicos para generalizar e categorizar as informações fonológicas abstratas a
partir deles.
Parece, assim, que a hipótese da memória de trabalho como único fator
central para a repetição de pseudopalavra não é sustentada por completo. Além
disso, se analisamos esses resultados a partir das explicações dos MMR de
linguagem, podemos chegar a conclusões adicionais. Como já visto, para esses
modelos, as informações fonológicas abstratas emergem a partir das relações que
vão se estabelecendo entre as palavras no léxico, e quanto maior este léxico, mais
robustas as representações fonológicas; dessa forma, uma dificuldade em repetir
pseudopalavras é interpretada nesses modelos muito mais como uma consequência
de um vocabulário empobrecido do que como um fator causal (como o é na hipótese
da memória de trabalho).
Nesse sentido, Munson et al. (2005a) investigaram a influência do tamanho
do vocabulário, da probabilidade fonotática e do grau de semelhança entre
pseudopalavras e palavras reais na repetição de pseudopalavras em crianças com
distúrbio específico de linguagem e em seus pares de idade cronológica e de
desempenho linguístico. Eles observaram que em todos os grupos a probabilidade
fonotática afetou a acuracidade de repetição dos itens – ou seja, itens com
sequências de fonemas mais frequentes foram repetidos com mais acuracidade do
que sequências de fonemas menos frequentes. No entanto, no grupo de crianças
com distúrbio específico de linguagem e no grupo controle para desempenho
linguístico, cujos tamanhos de léxicos eram menores, esse efeito foi muito mais
significativo do que no grupo controle de idade cronológica, que possuíam léxicos
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 60
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
mais robustos. Ainda, as medidas de vocabulário foram melhores preditores para o
efeito de probabilidade fonotática, mesmo quando as idades foram controladas e
que esse efeito foi independente do grau de semelhança dos itens do teste. Os
autores concluem que o tamanho do vocabulário é um preditor para a influência da
probabilidade fonotática na repetição de pseudopalavras, talvez em função da sua
influência no refinamento contínuo das categorias fonológicas.
Outro trabalho que corrobora esta hipótese do léxico mental é de Frisch et. al.
(2000). Os autores estudaram os efeitos de comprimento do item e de probabilidade
de ocorrência dos segmentos na língua em relação ao processamento das
pseudopalavras. Os autores pediram aos participantes para classificarem os itens de
acordo com a semelhança entre as pseudopalavras e palavras reais. Eles
encontraram que os itens que obtiveram maior índice de grau de semelhança foram
aqueles cujos segmentos que os compunham tinham maior probabilidade de
ocorrência na língua e cujo número de sílabas era menor. Ainda, os autores
observaram também que os itens cujos índices de grau de semelhança eram altos
propiciaram um melhor desempenho em um outro teste de reconhecimento. Os
autores concluíram que os padrões lexicais dão suporte a uma competência
fonológica emergente que é utilizada no processamento de pseudopalavras. Ou
seja, o conhecimento fonológico do falante que, de acordo com os MMR de
linguagem, emerge a partir do léxico também dá suporte para o processamento
dessas pseudopalavras.
Beckman et al. (2007) também trazem evidências neste sentido. Como já
mencionado anteriormente, os autores realizaram uma série de testes em crianças
diagnosticadas com distúrbio específico de linguagem e desvio fonológico, e em
crianças do grupo controle mais novas e com a mesma idade que as populações
clínicas. Os testes visavam avaliar os diferentes níveis de representação fonológica
em cada população diferente. Os resultados mostraram que crianças com distúrbio
específico de linguagem apresentaram vocabulário empobrecido e maior dificuldade
na repetição de pseudopalavras formadas por difones com baixa probabilidade de
ocorrência, evidenciando um prejuízo num nível de representação menos refinado e
mais abstrato, como o da Gramática Fonológica que, como descrito nas sessões
anteriores, permite ao falante a aquisição de novas palavras.
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 61
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Diante destas evidências, ao propor um teste de repetição de pseudopalavras
para avaliar memória de trabalho, se faz necessário controlar também a estrutura
interna dos itens, de modo a controlar tamanho, o tipo de sílaba, a probabilidade
fonotática dos difones, o grau de semelhança entre pseudopalavras e palavras reais.
Dessa forma, se poderá identificar exatamente qual seria a maior dificuldade das
crianças com distúrbio específico de linguagem, por exemplo. Será que se trata de
uma dificuldade estritamente de memória de trabalho, acarretando em déficits de
vocabulário? Ou há uma dificuldade cognitivo-linguística intrínseca que as impede
de ampliar e organizar seus vocabulários e, assim, abstrair generalizações
fonológicas? Ou ambos? Essas questões ainda permanecem em aberto na
literatura.
Portanto, de forma sucinta, o que se pode concluir a respeito do distúrbio
específico de linguagem é que se trata de um distúrbio que afeta diferentes domínios
da linguagem de forma específica, havendo discrepância entre as habilidades
linguísticas e outras habilidades cognitivas. Assim como em dislexia e desvio
fonológico, essas alterações linguísticas ocorrem na ausência de defasagem
sensorial, motora, intelectual, transtornos psiquiátricos, privação social ou lesão
cerebral evidente. Assim como na dislexia, essas alterações têm caráter duradouro,
podendo persistir ao longo da vida. Sua etiologia também é desconhecida, embora
haja estudos apontando para um caráter genético que determine disfunções
neuroaunatômicas e neurofisiológicas, assim como ocorre na dislexia. E no que
tange aos déficits fonológicos, se faz necessário caracterizar que tipo(s) de
conhecimento(s) fonológico(s) está(ão) alterado(s) nessas crianças, assim como
caracterizar as relações destes com as alterações lexicais descritas.
3.4 DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE DISLEXIA, DESVIO FONOLÓGICO E DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM
Como visto anteriormente, os estudos dessas diferentes patologias
percorreram, ao longo da história, caminhos diferentes no que diz respeito aos
saberes que se debruçaram sobre elas. Enquanto os estudos sobre dislexia foram
inicialmente conduzidos pela área médica e, posteriormente, por educadores e
psicólogos, os estudos sobre desvio fonológico têm a tradição de serem realizados
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 62
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
por terapeutas da fala, com a inserção recente da linguística, e os estudos sobre
distúrbio específico de linguagem começaram com terapeutas da linguagem, se
tornando também objeto de estudo de psicólogos e linguistas, com o passar do
tempo.
Portanto, embora no começo tenham sido descritas como patologias
completamente distintas, atualmente há um crescente número de pesquisadores
interessados em investigar as diferenças e semelhanças entre esses distúrbios
(Bishop e Snowling, 2004).
Principalmente entre dislexia e distúrbio específico de linguagem, há uma
série de características descritas na literatura que se sobrepõem. Diversos
pesquisadores tentam descrever marcadores genéticos e/ou neurobiológicos para
ambos os quadros (Hage e Guerreiro, 2004; Shaywitz, 2006); alterações
persistentes e específicas à linguagem também são descritas em ambos os quadros
(Santos e Navas, 2000; Befi-Lopes, 2004). Ainda, alterações fonológicas, sejam elas
de processamento ou de representação, são descritas, não só na dislexia e no
distúrbio específico de linguagem, mas também no desvio fonológico (Santos e
Navas, 2000; Befi-Lopes, 2004; Wertzner, 2004). Por fim, dificuldades relacionadas
à linguagem escrita são apresentadas como as dificuldades específicas da dislexia,
mas também são encontradas alterações desta natureza em crianças com desvio
fonológico (Mota, 2001) e com distúrbio específico de linguagem (Bishop e Snowling,
2004).
Em função dessa sobreposição de caracterísitcas, alguns autores defendem a
ideia de que dislexia e distúrbio específico de linguagem seriam dois extremos do
continuum de um mesmo distúrbio, sendo a dislexia o caso mais leve, enquanto
distúrbio específico de linguagem seria o mais severo (Tallal et. al., 1997). Um outro
trabalho apontando para essa semelhança entre ambos os quadros é o de de Bree
et. al. (2007), no qual os autores aplicaram um teste de repetição de pseudopalavras
e concluíram que esta habilidade é um preditor para ambas as patologias.
Bishop e Snowling (2004) também investigaram a relação entre dislexia e
distúrbio específico de linguagem, indagando se os trabalhos neste campo devem
abandonar a distinção entre tais patologias ou se há necessidade de manter alguma
diferenciação. As autoras argumentam que trabalhos que tentam convergir dislexia e
distúrbio específico de linguagem em um mesmo continuum somente com graus de
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 63
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
severidade diferenciados, subestimam a influência das dificuldades semânticas e
sintáticas presentes nas crianças com distúrbio específico de linguagem e a forma
como essas alterações afetam, de maneiras distintas da dislexia, a leitura
proficiente. Nesse sentido, elas propõem um modelo bidimensional para explicar as
relações entre dislexia e distúrbio específico de linguagem, que leva em
consideração as habilidades fonológicas e não-fonológicas. Deste modelo,
resultariam 4 grupos de crianças: (i) crianças sem alteração: habilidades fonológicas
boas + habilidades não-fonológicas boas; (ii) crianças com dislexia: habilidades
fonológicas ruins + habilidades não-fonológicas boas; (iii) maus leitores: habilidades
fonológicas boas + habilidades não-fonológicas ruins; e, por fim, (iv) crianças com
distúrbio específico de linguagem: habilidades fonológicas ruins + habilidades não-
fonológicas ruins. Dentro deste modelo, as crianças com desvio fonológico seriam
descritas da mesma forma que as crianças com dislexia: habilidades fonológicas
ruins + habilidades não-fonológicas boas. Assim, este critério não parece resolver
por completo a questão.
No entanto, uma análise realizada a partir de um modelo explicativo de
linguagem que pressuponha a existência de diferentes tipos de conhecimento
fonológico – como é o caso dos MMR – pode trazer elucidações a respeito das
diferentes características de cada uma dessas patologias. Ao analisar em conjunto
os trabalhos de Beckman et. al. (2007), Esteves (2009) e Munson et al. (2010), já
descritos anteriormente, pode-se perceber uma dissociação entre diferentes tipos de
conhecimento fonológico alterados: enquanto crianças com dislexia parecem
apresentar apenas um déficit de acesso às informações mais detalhadas da forma
fonética das palavras, crianças com desvio fonológico parecem apresentar
dificuldades na representação dessas informações do detalhamento fonético fino
das palavras, mas não com a gramática fonológica, e por fim, crianças com distúrbio
específico de linguagem parecem apresentar um déficit de representação dos
padrões abstratos fonológicos da língua, caracterizando assim, déficits fonológicos
de naturezas distintas.
Diante desta discussão, o presente estudo tem como objetivo analisar essas
diferenças e semelhanças entre crianças com dislexia, desvio fonológico e distúrbio
específico de linguagem a partir das habilidades fonológicas que as mesmas
apresentam. Essa análise pode trazer contribuições importantes para pensar as
III. Dislexia, Desvio Fonológico e DEL 64
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
características clínicas de cada patologia, assim como corroborar ou refutar os
pressupostos dos MMR de linguagem. Espera-se que diferenças no tamanho de
léxico das crianças possam atestar diferenças nos desempenhos fonológicos, tal
como é proposto pelo MMR.
IV. OBJETIVOS, HIPÓTESES E MÉTODO DE TRABALHO
presente capítulo apresenta os objetivos e as hipóteses de
trabalho, assim como os grupos de sujeitos participantes da
pesquisa, os testes utilizados para coleta dos dados e o método de
quantificação, análise estatística e análise qualitativa que foram
utilizados a fim de testar as hipóteses levantadas.
4.1 OBJETIVOS E HIPÓTESES DE TRABALHO
O presente trabalho tem como objeto de estudo o conhecimento fonológico de
crianças com dislexia, desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem. Como
já descrito no capítulo 3, em função da sobreposição de déficits fonológicos
descritos na literatura que caracterizam a dislexia e o distúrbio específico de
linguagem, alguns autores têm questionado se essas patologias podem fazer parte
de um mesmo continuum. No entanto, conforme já foi explicitado, há trabalhos que
demonstram que, em cada uma dessas patologias, essas alterações fonológicas
teriam uma natureza distinta, estando relacionadas a déficits de processamento e/ou
de representação de diferentes tipos de conhecimento fonológico. Além disso,
comparar também o conhecimento fonológico de crianças com desvio fonológico
pode trazer contribuições importantes para a elucidação dessa questão, uma vez
que este quadro clínico possui como única alteração descrita na literatura o déficit
fonológico.
4.1.1 Objetivo Geral
O objetivo geral desta tese é, portanto, investigar o conhecimento fonológico
de crianças com dislexia, com desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem.
Será estabelecida uma comparação entre os desempenhos de crianças com essas
três patologias entre si, assim como entre crianças com desenvolvimento típico.
O
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 66
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
4.1.2 Objetivos específicos:
- Identificar as dificuldades fonológicas específicas tanto de crianças com dislexia
como de crianças com desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem;
- Definir a natureza dessas dificuldades fonológicas – se é um déficit de
representação ou de acesso às informações fonológicas – tanto de crianças com
dislexia como de crianças com desvio fonológico e distúrbio específico de
linguagem;
- Caso seja um déficit de representação, definir o tipo de conhecimento fonológico
cuja representação esteja afetada; ou caso seja um déficit de acesso, definir o
tipo de conhecimento fonológico cuja acesso esteja comprometido;
- Identificar as possíveis semelhanças e diferenças entre as crianças com dislexia,
desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem, e as crianças com
desenvolvimento típico, no que diz respeito ao conhecimento fonológico.
4.1.3 Hipótese
A análise do conhecimento fonológico dessas crianças será realizada de
acordo com os pressupostos dos MMR de linguagem, que postulam a abstração de
diferentes tipos de conhecimento fonológico de forma gradual, a partir de um léxico
organizado em redes de conexões. Espera-se, portanto, com esta análise identificar
qual(is) tipo(s) de conhecimento fonológico estaria(m) afetado(s) em cada uma
dessas patologias, encontrando uma relação entre o desenvolvimento dos diferentes
tipos de conhecimento fonológico e o tamanho do léxico nessas crianças. Ou seja,
espera-se que crianças com tamanho de léxico maior apresentem uma maior
consistência em seus padrões fonológicos abstratos.
Este tipo de análise pode vir a trazer evidências a respeito da natureza do
déficit fonológico de cada um desses grupos, corroborando ou refutando a ideia de
continuum de uma mesma patologia com graus de severidade distintos. Isso possui
implicações clínicas, uma vez que dependendo dos resultados, deve-se pensar
abordagens terapêuticas diferenciadas. Além disso, essas análises também podem
trazer evidências empíricas que refutem ou validem o modelo teórico em questão,
uma vez que a existência de diferentes tipos de representação das informações
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 67
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
fonológicas e também a diferença entre os processos de representação e acesso a
essas informações pode ser pesquisado.
4.2 MÉTODO DE TRABALHO
4.2.1 Participantes
Neste estudo foram selecionadas 36 crianças, em idade pré-escolar e escolar,
cuja faixa etária variou entre 4:9 (quatro anos e nove meses ou 57 meses) e 11:8
(onze anos e oito meses ou 140 meses), de ambos os gêneros e de classe
socioeconômica média baixa. Desse total, 18 pertenciam aos Grupos Clínicos (GCl),
sendo 7 delas com diagnóstico de dislexia e compondo o subgrupo DIS, 7 com
diagnóstico de desvio fonológico e compondo o subgrupo DF e 4 com diagnóstico de
distúrbio específico de linguagem e compondo o subgrupo DEL; e 18 pertenciam ao
Grupo Controle (GCo), sendo todas elas com desenvolvimento típico e pareadas
pela idade cronológica com as crianças dos GCl, na proporção de uma criança com
transtorno de linguagem para uma com desenvolvimento típico. Esse pareamento
resultou em três subgrupos do GCo: crianças com desenvolvimento típico pareadas
com as crianças do subgrupo DIS (DTdis); crianças com desenvolvimento típico
pareadas com as crianças do subgrupo DF (DTdf); crianças com desenvolvimento
típico pareadas com as crianças do subgrupo DEL (DTdel). O gênero das crianças
não foi controlado para fins de análise.
4.2.1.1 Grupos Clínicos
As crianças dos GCl foram, selecionadas a partir de diferentes instituições
fonoaudiológicas do município de Salvador-BA e do município do Rio de Janeiro-RJ.
Essa coleta em diferentes municípios se deu por razões profissionais da
pesquisadora, que levou à necessidade de concluir a coleta de dados – que já tinha
sido iniciada no município do Rio de Janeiro – no município de Salvador. Em função
disso, alguns testes foram submetidos a procedimentos de análise diferentes
daqueles inicialmente concebidos, conforme será melhor explicitado adiante, na
descrição dos instrumentos. Os critérios de inclusão para esses sujeitos foram:
- Estar em atendimento fonoaudiológico por pelo menos 6 meses;
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 68
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
- Ter sido diagnosticado com dislexia, desvio fonológico ou distúrbio específico de
linguagem, de acordo com os parâmetros estabelecidos pela literatura específica.
Para o diagnóstico das três patologias, era necessário que se descartasse
qualquer alteração orgânica, motora, sensorial ou cognitiva geral que justificasse
as alterações de linguagem. Especificamente, para o diagnóstico de dislexia, era
necessário, que a criança obtivesse nível de leitura abaixo do esperado para a
idade/escolaridade, apresentasse histórico de letramento compatível com o
esperado, tanto na escola, como em casa e possuísse 2 anos de ensino formal
da língua escrita (Santos e Navas, 2002). Para o diagnóstico de desvio
fonológico, era necessário que a criança obtivesse desempenho adequado nas
avaliações de sintaxe, semântica e pragmática, contudo, apresentasse
alterações nas avaliações fonológicas (Wertzner, 2004). Por fim, para o
diagnóstico de distúrbio específico de linguagem, era necessário que a criança
apresentasse alterações sintáticas e/ou semânticas e fonológicas de caráter
persistente (Befi-lopes, 2004).
4.2.1.2 Grupo Controle
As crianças dos GCo foram selecionadas em escola de educação infantil e
ensino fundamental do município de Salvador-BA. Os critérios de inclusão para
estes sujeitos foram:
- Não apresentar queixa e/ou histórico de alterações no desenvolvimento de
linguagem oral, audição e visão, e ainda, ter desempenho escolar compatível
com a idade e escolaridade;
- Pertencer à faixa etária de 4:9 (quatro anos e nove meses ou 57 meses) e 11:8
(onze anos e oito meses ou 140 meses), de acordo com a faixa etária obtida com
os GCl;
- Apresentar desempenho compatível com a idade cronológica nos testes de
vocabulário receptivo e memória sequencial auditiva.
4.2.2 Procedimentos
Para a seleção das crianças dos GCl, foram realizadas entrevistas junto às
fonoaudiólogas responsáveis pelo atendimento de cada criança, com o intuito de se
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 69
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
certificar a respeito das avaliações realizadas para o diagnóstico das mesmas.
Nessa etapa, a pesquisadora selecionou, junto com as fonoaudiólogas, quais seriam
as crianças que se enquadrariam nos critérios de inclusão. Posteriormente, as
fonoaudiólogas conversaram com os pais das crianças, entregando-lhes os termos
de consentimento 8 . No dia estabelecido para a realização das avaliações, a
pesquisadora conversou com cada responsável antes da avaliação de cada criança,
a fim de realizar quaisquer esclarecimentos aos pais sobre a pesquisa. Ao total,
foram avaliadas 29 crianças, das quais, 18 atenderam a todos os critérios de
diagnóstico.
Para a seleção das crianças do GCo, foi solicitado à coordenadora da escola
que conversasse com as professoras para que elas selecionassem crianças que
possuíssem de 4 a 12 anos e que, de acordo com a avaliação delas, atendesse ao
primeiro critério descrito acima para o GCo. Posteriormente, foi solicitado às
professoras que conversassem com os pais das crianças, entregando-lhes o termo
de consentimento. E finalmente, após esse procedimento, foi marcado um dia no
qual a pesquisadora esteve disponível, durante o dia inteiro, para que os pais
pudessem esclarecer quaisquer dúvidas sobre a pesquisa. Ao todo, foram avaliadas
25 crianças, das quais 18 atenderam a todos os 3 critérios descritos acima para GCo
e cujos dados foram incluídos para análise. As 7 crianças restantes foram excluídas
das análises em função de suas idades.
A aplicação dos testes nas crianças dos GCl foi realizada individualmente, na
própria sala de atendimento fonoaudiológico, no horário de atendimento da criança
(quando permitido pelos pais) ou em horários extras, previamente agendados pela
pesquisadora com o consentimento da fonoaudióloga e dos pais. Já com as crianças
dos GCo, as avaliações ocorreram no período da tarde (fora do horário das
atividades formais da escola), em sala pré-determinada pela direção da escola,
sendo esta silenciosa, na qual foi possível a realização da avaliação de forma
individual.
Para ambos os grupos, a aplicação de todos os testes ocorreu em apenas
uma sessão e a ordem de aplicação dos testes não variou, sendo a seguinte: (i)
teste de memória sequencial auditiva (Bogossian e Santos, 1977); (ii) teste de
vocabulário receptivo (Dunn e Dunn, 1997); (iii) teste experimental de nomeação de 8 O modelo de termo de consentimento livre e esclarecido encontra-se em anexo.
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 70
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
figuras; e, por fim, (iv) teste experimental de repetição de pseudopalavra. A duração
média de cada teste foi de 10 minutos, com pequenas variações entre os diferentes
sujeitos, resultando em sessões médias de 40-50 minutos. Todas as sessões foram
gravadas em aparelho digital SONY NWD-B103F para que as falas das crianças
pudessem ser posteriormente transcritas, quantificadas e analisadas.
Os procedimentos de elaboração dos testes experimentais, assim como a
descrição detalhada dos mesmos e dos testes padronizados serão descritos a
seguir.
4.2.3 Instrumentos
Conforme explicitado nos capítulos teóricos, esta tese se baseia em um
aparato teórico que preconiza a existência de diferentes tipos de representação
fonológica, que vão se desenvolvendo de acordo com a experiência linguística do
falante. Nesse sentido, para avaliar as características do conhecimento fonológico
das populações a serem estudadas, se mostrou necessária a utilização de diferentes
testes e medidas que acessassem esses diferentes tipos de conhecimento.
Primeiramente, portanto, foi elaborado um teste de Nomeação de Figuras
adaptado da dissertação de mestrado (Esteves, 2009), constituído por 36 figuras
que se diferenciam entre si em função da frequência de uso das palavras (alta e
baixa) e do tamanho das palavras (dissílabos e polissílabos). Este teste foi
elaborado com a finalidade de avaliar a acuracidade fonético-articulatória de
palavras reais, assim como a capacidade de acesso lexical das crianças. O segundo
teste elaborado foi o de Repetição de Pseudopalavras e se constituiu por 30
pseudopalavras que se diferenciaram entre si em função (i) da frequência de
ocorrência das sílabas que compuseram o item (itens compostos somente por
sílabas de alta frequência e itens compostos somente por sílabas de baixa
frequência) e (ii) do tamanho do item (dissílabos, trissílabos e polissílabos de 4
sílabas). Este teste foi elaborado a partir da metodologia de Frish et al. (2000) com o
intuito de avaliar a representação dos padrões fonológicos abstratos constituintes
das pseudopalavras e a frequência fonotática dos seus segmentos.
Ainda, além destes testes experimentais, também foram aplicados outros dois
testes padronizados, que são utilizados rotineiramente por fonoaudiólogos e também
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 71
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
em estudos psicolinguísticos, a fim de caracterizar cada grupo em função da
memória de trabalho e do léxico. São eles, respectivamente, Teste Illinois de
Habilidades Psicolinguísticas (ITPA) – subteste 5 Memória Sequencial Auditiva
(Bogossian e Santos, 1977) e Teste de Vocabulário Receptivo Peabody III (Dunn e
Dunn, 1997).
4.2.3.1 Teste Illinois de Habilidades Psicolinguísticas (ITPA) – subteste 5 Memória
Sequencial Auditiva (Bogossian e Santos, 1977)
O Teste Illinois de Habilidades Psicolinguísticas (ITPA) – subteste 5 Memória
Sequencial Auditiva (Bogossian e Santos, 1977) constitui uma subparte de uma
bateria de testes psicolinguísticos que visam a avaliação da criança em relação a
diferentes habilidades psicolinguísticas visuais e auditivas. O Subteste 5 – Memória
Sequencial Auditiva é amplamente utilizado para avaliação de crianças com
patologias da linguagem a fim de se obter uma medida do desempenho da criança
em relação à memória de trabalho auditiva.
O subteste consiste em sequências de números que são apresentadas
auditivamente para a criança, que deve repeti-la na ordem apresentada assim que
ouvir. Essas sequências vão aumentando gradativamente até que se atinja o teto
para aquela determinada criança. Após achar a base e o teto para cada criança,
obtém-se o escore padronizado pelo teste e verifica-se a conformidade ou não do
desempenho da criança com a sua idade. O teste foi administrado conforme as
instruções especificadas no manual. Para obter o teste completo, conferir ANEXO I.
4.2.3.2 Teste de Vocabulário Receptivo Peabody III (Dunn & Dunn, 1997)
O Teste de Vocabulário Receptivo Peabody III (Dunn & Dunn, 1997) é um
teste de compreensão que visa quantificar o conhecimento do vocabulário em
crianças (a partir de 2 anos e meio) e adultos. Este teste ainda não está padronizado
no Brasil, mas existe uma pesquisa sendo realizada por Capovilla (1997) para
padronização para o português brasileiro. Este teste é utilizado como referência para
os trabalhos em linguística sobre aquisição e população clínica infantil (Ferreira,
2007).
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 72
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
O teste de vocabulário receptivo consiste de uma série de pranchas que
especificam um total de 244 vocábulos, cada qual contendo 4 gravuras diferentes.
Para cada prancha, a criança é solicitada a identificar e apontar para a gravura que
melhor representa o significado da palavra enunciada pelo examinador. A FIGURA 1
ilustra uma das pranchas do teste, cuja palavra alvo é “pedal”.
FIG. 1: Exemplo de Prancha Utilizada no Teste de Vocabulário Receptivo
Após achar a base e o teto para cada criança, obtém-se o escore padronizado
pelo teste e verifica-se a conformidade ou não do desempenho da criança com a sua
idade. O teste foi administrado conforme as instruções especificadas no manual,
com as palavras traduzidas para o português. Para obter o teste completo, conferir
ANEXO II.
4.2.3.3 Teste de Nomeação de Figuras
O teste de nomeação de figuras consiste em uma avaliação na qual é
demandada à criança a evocação de um item lexical a partir de um estímulo visual.
O teste que foi utilizado neste projeto foi baseado naquele elaborado para a
dissertação de mestrado (Esteves, 2009), cuja análise das respostas das crianças, à
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 73
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
época, foi feita de acordo com o paradigma de Tip of the Tongue (TOT), proposto
por Swan & Goswami (1997).
Este paradigma, em Esteves (2009) havia sido escolhido em função das suas
características de coleta e análise de dados que, ao invés de medirem a velocidade
de nomeação – fornecendo respostas quantitativas do tipo “tudo-ou-nada” e
disponibilizando pouca informação sobre os processos subjacentes à nomeação –
buscam avaliar qualitativamente o que os falantes podem saber e dizer em relação
ao item lexical quando eles estão vivenciando um breakdown temporário na
recuperação deste item. Neste tipo de tarefa, as informações fonológicas
demandadas são aquelas que se encontram representadas no espaço paramétrico
fino articulatório, que diz respeito à forma fonética fina das palavras, e também às
informações fonológicas da própria representação das palavras no léxico (de acordo
com o modelo de Pierrehumbert, 2003). Portanto, este teste, em Esteves (2009),
visava avaliar a acuracidade fonético-articulatória de palavras reais, assim como a
capacidade de acesso lexical das crianças. E ainda, o público alvo em tal trabalho
eram crianças na faixa etária de 8 a 11 anos, e assim, as figuras selecionadas
coincidiam com palavras esperadas do vocabulário de crianças dessa faixa etária.
Para esta tese, inicialmente, esperava-se encontrar crianças pertencentes aos
GCl – subgrupos DIS, DF e DEL – cuja faixa etária fosse de 8 a 11 anos, e para as
quais as figuras deste teste de nomeação de figuras fossem adequadas. Essa
expectativa se configurou em função das primeiras crianças que participaram do
estudo: 6 no total, 2 de cada subgrupo dos GCl, todas na faixa etária de 8 a 11 anos.
Contudo, com o decorrer da aplicação dos testes no restante dos GCl, foi
encontrada uma maior variedade da faixa etária das crianças, e em função disto, o
teste de nomeação de figuras não se mostrou pertinente para a avaliação do acesso
lexical das crianças. Ou seja, as figuras desse teste nem sempre coincidiram com o
vocabulário esperado dos participantes, uma vez que as idades foram muito
variadas. Além disso, houve também uma variedade sociocultural nas evocações
lexicais, em função dos diferentes municípios aos quais as crianças pertenciam.
Portanto, com o intuito de não excluir do estudo os resultados encontrados
para as primeiras crianças e almejando analisar todos os resultados de uma forma
menos enviesada pela idade e pelas diferenças dialetais, optou-se por utilizar tal
teste somente para avaliar a acuracidade fonético-articulatória das palavras reais,
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 74
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
em comparação à acuracidade de repetição das pseudopalavras. Esta forma de
análise do teste excluiu a análise qualitativa das informações fonológicas e
semânticas que as crianças podiam evocar enquanto experienciavam o estado de
TOT, citado anteriormente, e que foi realizado em Esteves (2009). Contudo,
adicionou a elaboração de um escore que permitiu quantificar a acuracidade
fonético-articulatória da nomeação das figuras – o que não havia sido realizado em
tal trabalho. Sendo assim, o Teste de Nomeação de Figuras, nesta tese, será
utilizado como um Teste de Acuracidade de Nomeação de Palavras Reais (a partir
da nomeação de figuras).
Para esta tese, portanto, esse teste consistiu de 36 figuras correspondentes a
palavras de alta e baixa frequência de uso, e de dissílabos e polissílabos. A
frequência de uso das palavras foi obtida a partir de um corpus de 130 milhões de
palavras coletado pelo Projeto ASPA – Avaliação Sonora do Português Atual. Este
projeto, coordenado pela Profa. Thais Cristófaro Silva, é fruto de um trabalho
desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais, com o intuito de construir
um conhecimento probabilístico sólido a respeito da estrutura do Português
Brasileiro contemporâneo (www.projetoaspa.org). O teste na íntegra encontra-se no
ANEXO III.
As figuras foram mostradas em ordem aleatória, através de programa de
computador de apresentação de imagens Office PowerPoint, da Microsoft. O
examinador mostrava a figura e a criança deveria nomeá-la. Caso não nomeasse de
acordo com o alvo esperado, a criança era encorajada a falar o que sabia sobre a
palavra. Caso a criança não soubesse falar nada, o examinador fornecia pistas,
como a utilidade do objeto ou a forma sonora inicial da palavra. Caso a criança
nomeasse de acordo com o alvo esperado, mas apresentando trocas fonológicas, a
resposta era aceita e outro estímulo era apresentado. Caso houvesse substituições
lexicais devido à variação dialetal, a palavra alvo era pronunciada pelo examinador e
repetida pela criança. Todo este processo foi gravado, conforme explicitado
anteriormente.
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 75
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Quantificação e análise das respostas
A análise das respostas se deu, portanto, a partir de escores. As respostas
diferentes do alvo obtiveram escore final 0 (zero). As respostas iguais aos alvos
foram pontuadas de acordo com o seguinte critério (que foi o mesmo utilizado no
teste de repetição de pseudopalavra, como será descrito adiante): 2 pontos para
cada segmento correto, 1 ponto para cada segmento substituído, -1 ponto para cada
segmento adicionado e 0 ponto para cada segmento omitido. Ao final, somavam-se
todos os pontos e dividia-se pelo total de pontos possíveis para aquela palavra. O
resultado final era um escore entre 0 (zero) e 1 (um) para cada item do teste. Como
exemplo, o item “milho”, cujo alvo esperado era ʹmiʎʊ ou ʹmilyʊ, foi produzido por
uma criança como ʹmiyʊ Sendo assim, este item recebeu a pontuação da seguinte
forma:
O escore final para este item foi, portanto, 0,86. Para uma outra palavra,
polissílaba, por exemplo, “detetive”, cujo alvo esperado era deteʹʧivɪ e a produção da
criança foi eteʹʧifɪ o escore foi calculado assim:
Dessa forma, cada criança obteve 36 escores, um para cada item do teste.
Além disso, foi calculado também um escore global para cada criança, somando-se
os escores de todos os itens diferentes de zero e dividindo pelo total de itens com
escore diferente de zero. O escore global também variou de 0 (zero) a 1 (um). Esse
escore global foi necessário para realizar as comparações de desempenhos nos
diferentes testes padronizados.
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 76
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
4.2.3.4 Teste de Repetição de Pseudopalavras
O teste de repetição de pseudopalavras consiste em uma atividade na qual a
criança é instruída a repetir todas as palavras “engraçadas” que vão sendo ditas a
elas uma a uma. A repetição de pseudopalavras é um teste tradicionalmente
conhecido por avaliar a memória fonológica de curto prazo. No entanto, como já
demonstrado no capítulo 3 desta tese, há na literatura recente, uma discussão sobre
qual habilidade estaria subjacente ao desempenho nestes testes de repetição de
pseudopalavras.
Há aqueles que defendem a ideia de que seria a Memória de Trabalho
Fonológica a principal responsável pelo sucesso nestas tarefas, entendendo que
déficits de memória de trabalho fonológica, uma vez acarretando dificuldades na
repetição de pseudopalavras, acarretariam também em dificuldades na
aprendizagem de novas palavras. Logo, crianças com distúrbio específico de
linguagem, por exemplo, teriam um vocabulário empobrecido em função do déficit de
Memória de Trabalho Fonológica, com consequências para a representação de
longo termo (Gathercole, 2006; Gathercole e Archibald, 2006; Gathercole e
Archibald 2007).
No entanto, outros autores apostam na proposição de que o vocabulário
empobrecido das crianças com distúrbio específico de linguagem estaria muito mais
como um fator etiológico para as dificuldades de repetição de pseudopalavras do
que como uma consequência das mesmas, uma vez que é a partir das palavras no
léxico que as crianças abstraem as informações fonológicas necessárias em um
teste como este (Frisch et al., 2000; Edwards et al., 2004; Munson et al., 2005a).
Esses autores argumentam que fatores como tamanho do item, tipo de sílaba,
probabilidade fonotática dos difones ou das sílabas, grau de semelhança entre
pseudopalavras e palavras reais, são também fortes preditores para o desempenho
das crianças em testes de repetição de pseudopalavras.
Conforme já mencionado no capítulo 2, os resultados obtidos para o inglês
mostraram que o grau de semelhança (GS) entre as pseudopalavras e as palavras
reais, por exemplo, é compreendido de forma que quanto maior o item e menos
frequentes as suas sequências, menor o GS entre a pseudopalavra e uma palavra
real da língua. Dessa forma, quanto menor o GS, menor a influência do tamanho de
léxico da criança. E, ao contrário, quanto menor o item e mais frequentes as suas
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 77
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
sequências, maior o GS e menor a influência da memória de trabalho, uma vez que
o léxico vai prover a robustez necessária para a abstração das relações fonotáticas.
O trabalho de Gomes et al. (2011) traz evidências quanto a isso. Os autores
utilizaram os itens elaborados para o teste de repetição de pseudopalavras desta
tese em um teste de julgamento de grau de semelhança, que foi aplicado em adultos
universitários, falantes do português brasileiro. Os resultados mostraram que tanto o
tamanho dos estímulos quanto a frequência de ocorrência das sílabas CV se
mostraram significativos em relação à resposta apresentada, sendo que os itens
mais aceitos pelos falantes foram as pseudopalavras constituídas por duas sílabas e
de alta frequência.
Diante destas evidências, e pensando a respeito da discussão sobre qual
habilidade estaria subjacente ao desempenho das crianças nestes testes de
repetição de pseudopalavras, se faz necessário controlar a estrutura interna dos
itens do teste, de modo a controlar tais fatores como tamanho do item, tipo de
sílaba, probabilidade fonotática dos difones ou das sílabas, grau de semelhança
entre pseudopalavras e palavras reais.
Como este teste é o primeiro realizado no Português Brasileiro (PB) a partir
dos Modelos Multirrepresentacionais, em sua elaboração, optou-se por incluir
somente dois desses fatores como variáveis independentes do teste, a saber, a
frequência das sílabas que compuseram as pseudopalavras (alta e baixa) e o
comprimento de cada item (dissílabo, trissílabo e polissílabo de 4 sílabas). Assim, a
variável complexidade articulatória do item foi controlada, uma vez que a estrutura
silábica e o acento lexical dos itens não variou, sendo todos eles CV e paroxítonos.
A contagem da frequência de ocorrência das sílabas CV na língua portuguesa
foi obtida a partir do corpus do Projeto ASPA/UFMG, citado anteriormente. Essa
contagem da frequência e da probabilidade de ocorrência de todas as sílabas CVs
de dissílabas, de trissílabas e de palavras de 4 sílabas paroxítonas do PB foi
realizada por Marcela Branco da Silva e Suzana do Couto Mendes, à época,
bolsistas de Iniciação Científica do projeto “Efeito de Wordlikeness no
Processamento de Pseudopalavras em Adultos e Crianças com Desenvolvimento
Típico”, coordenado pela Professora Christina Abreu Gomes. Tal levantamento
resultou nas sílabas que foram utilizadas nesta tese para elaborar os itens do teste.
Estas pseudopalavras foram posteriormente utilizadas no trabalho de Gomes et al.
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 78
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
(2011), para a testagem do julgamento do grau de semelhança, citado
anteriormente; e o teste de repetição de pseudopalavras completo está sendo
aplicado também em sujeitos afásicos (Senna, 2013), crianças com atraso simples
de linguagem (Branco, 2012) e em um amplo número de crianças com
desenvolvimento típico de diversas faixas etárias (Mendes, 2012).
O teste foi composto, portanto, por 30 itens no total, sendo 15 itens
compostos apenas por sílabas de alta frequência, denominados “itens de alta
frequência” (AF); e 15 itens compostos apenas por sílabas de baixa frequência,
denominados “itens de baixa frequência” (BF). Esses grupos ainda foram
subdivididos de forma que cada um possuía 5 itens dissílabos, 5 itens trissílabos e 5
itens polissílabos de 4 sílabas.
Todos os itens foram gravados por aparelho sonoro estéreo por um mesmo
falante do sexo feminino, em ambiente tratado acusticamente, de forma a não
receber interferências na gravação e, consequentemente, na apresentação do
estímulo. Os estímulos sonoros foram apresentados através do programa de
computador Psyscope, desenvolvimento para Macintosh, utilizando-se caixas de
som PHILIPS modelo SPA5210 – Portable Speaker System. A cada estímulo
sonoro, a criança deveria repetir o que conseguisse. Não era permitido repetir a
apresentação do estímulo. Todo o processo foi gravado, conforme explicitado
anteriormente. No ANEXO IV, encontram-se todos os itens utilizados neste teste.
Quantificação e análise das respostas
As respostas de cada criança foram transcritas e analisadas em função da
sua acuracidade, que foi definida em função da quantidade de segmentos corretos
(iguais ao alvo) na produção da criança. O critério de pontuação de acuracidade de
cada item de cada criança foi o mesmo utilizado no teste de nomeação de figuras
(teste de acuracidade de nomeação de palavras reais): (i) 2 (dois) pontos para os
casos nos quais o segmento era igual ao alvo; (ii) 1 (um) ponto para os casos de
substituição de segmentos; (iii) -1 (um negativo) ponto para os casos de acréscimo
de segmentos; e (iv) 0 (zero) ponto para os casos de ausência de segmento. Esses
pontos eram somados, resultando em um escore total para cada item (cuja
quantidade de segmentos diferia de dissílabos, trissílabos e polissílabos de 4
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 79
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
sílabas). Esse escore total foi dividido pelo número máximo da pontuação possível
de ser obtida para aquele determinado item em função da quantidade de segmentos
que o constituía, de maneira a formar um escore padrão para todas as categorias de
itens. Por exemplo, para o item alvo meʹsivəә, se a criança produzisse eʹfifəә, ela teria
a seguinte pontuação para este item:
Assim como no teste de nomeação de figuras, cada criança obteve 30
escores, um para cada item do teste. Além disso, foi calculado também um escore
global para cada criança, somando-se os escores de todos os itens diferentes de
zero e dividindo pelo total de itens com escore diferente de zero. O escore global
também variou de 0 (zero) a 1 (um). Assim como no teste de nomeação de figuras,
esse escore global foi necessário para realizar as comparações de desempenhos
nos diferentes testes padronizados.
Dessa forma, os escores do teste de repetição de pseudopalavras,
juntamente com os escores dos outros testes padronizados (de memória e de
vocabulário) e com as respostas do teste de nomeação de figuras (teste de
acuracidade de nomeação de palavras reais) constituíram o conjunto de dados desta
tese e foram analisados estatisticamente em função das variáveis independentes de
cada teste e também em relação à interação entre os testes em si.
4.2.4 Modelos Estatísticos
Após todo o processo de quantificação dos dados obtidos com os testes, foi
feita uma consulta a um profissional de Estatística a fim de definir qual modelo
estatístico se enquadraria e forneceria uma melhor explicação sobre os dados
obtidos. Dessa forma, optou-se por utilizar os seguintes testes estatísticos: Teste de
Wilcoxon e Teste de Mann-Whitney.
IV. Objetivos, hipóteses e método de trabalho 80
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Primeiramente, o Teste de Wilcoxon se constitui de um método não-
paramétrico para comparação de duas amostras pareadas. Ele foi indicado a ser
utilizado nesta tese em detrimento ao Teste “t” de Student, porque os dados das
amostras obtidas não satisfaziam as exigências deste último. Contudo, para se
realizar o Teste de Wilcoxon é necessário que os pares das amostras sejam
mutuamente independentes, que as diferenças entre as amostras sejam variáveis
contínuas, com distribuição simétrica e que o nível de mensuração tenha sido feito
em escala intervalar. E essas exigências foram atendidas para analisar a presença
ou não de efeitos de frequência nos desempenhos das crianças no teste de
repetição de pseudopalavras. As amostras foram os escores obtidos para os itens
mais frequentes em comparação aos escores dos itens menos frequentes obtidos
por cada criança.
O Teste de Mann-Whitney também é um teste não-paramétrico, utilizado para
a comparação de dois grupos independentes (não pareados) a fim de se verificar se
pertencem ou não à mesma população. Ele foi utilizado nesta tese para analisar
comparativamente os desempenhos dos diferentes grupos clínicos e de controle nas
quatro avaliações realizadas (teste de memória sequencial, de vocabulário receptivo,
de nomeação de figuras e de repetição de pseudopalavras). Este teste foi escolhido
para essa tese em detrimento à Análise de Variância Unilateral (ANOVA) em função
de algumas características dos grupos que compuseram as amostras de análise.
Essas características foram: existência de uma amostra pequena e as variáveis
numéricas que não apresentavam uma variação normal.
Ainda, em todos esses procedimentos estatísticos, o intervalo de confiança
considerado foi de 95%, sendo, portanto, o p-valor considerado significativo quando
era abaixo de 0,05. Os pacotes estatísticos utilizados para rodar as análises foram
“SPSS” e “R”.
V. RESULTADOS E DISCUSSÃO
ste capítulo destina-se à descrição e caracterização dos grupos
participantes, assim como ao processo de análise estatística e
qualitativa empregada nos dados obtidos com a aplicação dos
diferentes testes. Por fim, uma discussão acerca de todo o
conjunto de dados será realizada, articulando as questões presentes na literatura, os
objetivos e hipóteses com os achados deste estudo.
5.1 CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS
A fim de descrever e caracterizar os grupos que foram alvo de análise, serão
apresentadas, a seguir, as TABELAS 01 e 02, contendo: a distribuição das crianças
quanto à idade e gênero em cada grupo e as medidas descritivas (média, valores
mínimos e máximos, e desvio padrão) da distribuição por idade em cada grupo,
respectivamente.
TABELA 01: Distribuição das crianças quanto à idade (meses) e gênero. Sujeito Gênero Idade GCo GCl Idade Gênero Sujeito
1 Masculino 141 DTdis DIS 140 Feminino 19 2 Feminino 133 DTdis DIS 131 Masculino 20 3 Masculino 126 DTdis DIS 126 Feminino 21 4 Masculino 119 DTdis DIS 117 Feminino 22 5 Feminino 111 DTdis DIS 114 Feminino 23 6 Masculino 111 DTdis DIS 110 Masculino 24 7 Feminino 110 DTdis DIS 109 Feminino 25 8 Masculino 140 DTdf DF 138 Masculino 26 9 Feminino 107 DTdf DF 108 Masculino 27
10 Feminino 110 DTdf DF 110 Feminino 28 11 Masculino 97 DTdf DF 105 Masculino 29 12 Feminino 64 DTdf DF 62 Masculino 30 13 Masculino 67 DTdf DF 64 Masculino 31 14 Feminino 62 DTdf DF 57 Masculino 32 15 Masculino 137 DTdel DEL 138 Masculino 33 16 Masculino 100 DTdel DEL 102 Masculino 34 17 Feminino 72 DTdel DEL 70 Masculino 35 18 Masculino 65 DTdel DEL 64 Feminino 36
Legendas: GCo = grupo controle; DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; GCl = grupos clínicos; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
E
V. Resultados e Discussão 82
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
TABELA 02: Medidas descritivas da distribuição por idade Grupos N Média (meses) Mínimo (meses) Máximo (meses) DP (meses)
Grupos de Controle
- - - - -
DTdis 7 121,57 110 141 12,191
DTdf 7 92,29 62 139 29,130
DTdel 4 93,50 65 137 32,706
Grupos Clínicos
- - - - -
DIS 7 121,00 109 140 11,662
DF 7 92,00 57 138 31,021
DEL 4 93,50 64 138 34,034
Legendas: DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
Quanto à distribuição das crianças pelos grupos, como mostram as TABELAS
01 e 02, de um total de 36 crianças, 18 (50%) apresentavam alguma alteração de
linguagem, pertencendo aos grupos clínicos (GCl); e 18 (50%) apresentavam
desenvolvimento típico (DT), pertencendo aos grupos de controle (GCo). Das 18
crianças dos GCl, 7 (19,4% do total) foram diagnosticadas com dislexia (compondo o
subgrupo DIS), 7 (19,4% do total) foram diagnosticadas com desvio fonológico
(compondo o subgrupo DF) e somente 4 (11,1% do total) foram diagnosticadas com
distúrbio específico de linguagem (compondo o subgrupo DEL). Essa discrepância
entre os GCl se deve à dificuldade de se encontrar crianças com diagnóstico de
distúrbio específico de linguagem nos municípios de Salvador-BA e Rio de Janeiro-
RJ. Os GCo foram compostos de acordo com a distribuição dos GCl, sendo 7
crianças com desenvolvimento típico (19,4% do total) pareadas com o subgrupo
DIS, outras 7 (19,4% do total) pareadas com o subgrupo DF, e 4 (11,1% do total)
pareadas com o subgrupo DEL.
A distribuição por gênero não foi controlada como parâmetro de análise,
conforme mencionado no capítulo anterior, contudo, como mostra a TABELA 01,
acima, nessa amostra obteve-se para os GCo 10 (55%) crianças do sexo masculino
e 8 (45%) do sexo feminino; enquanto para os GCl, obteve-se 11 (61%) crianças do
sexo masculino e 7 (39%) do sexo feminino.
V. Resultados e Discussão 83
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
A faixa etária das crianças dos GCo variou em função da faixa etária dos GCl.
As crianças dos GCo foram selecionadas de forma a serem pareadas pela idade de
cada criança dos GCl, como mostram as TABELAS 01 e 02, acima. Sendo assim,
conforme mostra a TABELA 02, tem-se que nos GCo, a faixa etária do subgrupo
DTdis variou de 110 a 141 meses de idade, com desvio padrão de 12,191; enquanto
o subgrupo DTdf variou de 69 a 139 meses de idade, com desvio padrão de 29,130;
e por fim, o subgrupo DTdel variou de 65 a 137 meses de idade, com desvio padrão
de 32,706. Já para os GCl, a faixa etária das crianças do subgrupo DIS variou de
109 a 140 meses de idade, com desvio padrão de 11,66 (grupo mais homogêneo
dentre os subgrupos dos GCl), enquanto o subgrupo DF variou de 57 a 138 meses
de idade, desvio padrão de 31,02, e o subgrupo DEL variou de 64 a 138 meses de
idade, desvio padrão de 34,03, sendo os dois últimos subgrupos os mais
heterogêneos quanto à idade.
Essa distribuição da faixa etária dos GCl se deve a características próprias de
cada entidade nosológica. O diagnóstico de dislexia, por exemplo, só é confirmado
caso a criança persista com dificuldades no processo de alfabetização mesmo após
2 anos de instrução formal da linguagem escrita. Ou seja, mesmo que as crianças
que apresentem dificuldades escolares sejam encaminhadas pela escola
precocemente para o tratamento, esse diagnóstico, em geral, é dado somente a
partir dos 8-9 anos de idade. Já os diagnósticos de desvio fonológico e distúrbio
específico de linguagem são dados tão logo os pais/escola (em geral) percebam as
dificuldades na fala do filho e procurem por tratamento (apesar de ser critério
diagnóstico para distúrbio específico de linguagem a idade de 5 anos ou mais).
Contudo, essa percepção pode variar em termos sociais e culturais, e assim, a idade
com que as crianças com tais transtornos chegam para tratamento também varia
consideravelmente no Brasil.
Abaixo, encontram-se as TABELAS de 03 a 06, contendo as medidas
descritivas (média, valores mínimos e máximos, e desvio padrão) do desempenho
nos quatro testes aplicados para cada grupo de crianças. Conforme descrito no
capitulo 4 sobre o método de trabalho, o teste de memória sequencial auditiva avalia
a memória de trabalho e resulta em um escore padronizado que varia de 0 a 40. O
teste de vocabulário receptivo avalia o tamanho do léxico e resulta em um escore
padronizado que varia de 0 a 177. Nesses dois testes padronizados, os escores
V. Resultados e Discussão 84
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
variam em função da idade. O teste de nomeação de figuras foi analisado aqui como
um teste de acuracidade de nomeação de palavras reais e resulta em um escore
elaborado experimentalmente que varia de 0,00 a 1,00. Por fim, o teste de repetição
de pseudopalavras também foi analisado em termos da acuracidade e também
resulta em um escore elaborado experimentalmente que varia de 0,00 a 1,00. O
cálculo de obtenção dos escores, tanto do teste de nomeação de figuras como do
teste de repetição de pseudopalavras, se encontra descrito no capítulo 4.
TABELA 03: Medidas descritivas dos Escores de Memória Sequencial
Grupos N Média Mínimo Máximo DP
Grupos de Controle
- - - - -
DTdis 7 27,29 18 37 6,751
DTdf 7 22,43 13 31 7,254
DTdel 4 27,00 21 40 8,756
Grupos Clínicos
- - - - -
DIS 7 22,14 13 30 5,872
DF 7 15,43 13 18 1,618
DEL 4 5,75 4 7 1,258
Legendas: DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
Conforme demonstrado na TABELA 03, acima, no teste de memória
sequencial auditiva, tem-se o seguinte desempenho para os grupos de controle
(GCo): o subgrupo DTdis apresentou uma média de escore 27,29, sendo o mínimo
18 e máximo 37; o subgrupo DTdf apresentou uma média de escore 22,43, sendo o
mínimo 13 e máximo 31; o subgrupo DTdel apresentou uma média de escore 27,00,
sendo o mínimo 21 e máximo 40. Com relação aos grupos clínicos (GCl), tem-se
que: o subgrupo DIS apresentou uma média de escore 22,14, sendo o mínimo 13 e
máximo 30; o subgrupo DF apresentou uma média de escore 15,43, sendo o mínimo
13 e máximo 18; o subgrupo DTdel apresentou uma média de escore 5,75, sendo o
mínimo 4 e máximo 7.
Já a TABELA 04, abaixo, demonstra que no teste de vocabulário receptivo, o
desempenho dos GCo foi: média de 131,14 para o subgrupo DTdis, com mínimo de
V. Resultados e Discussão 85
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
112 e máximo de 153; média de 99,00 para o subgrupo DTdf, com mínimo de 49 e
máximo de 150; e, por fim, média de 104,00 para o subgrupo DTdel, com mínimo de
50 e máximo de 165. Para os GCl, o resultado foi o seguinte: média de 122,00 para
o subgrupo DIS, com mínimo de 109 e máximo de 146; média de 78,86 para o
subgrupo DF, com mínimo de 40 e máximo de 113; e, por fim, média de 34,75 para
o subgrupo DEL, com mínimo de 14 e máximo de 72.
TABELA 04: Medidas descritivas dos Escores de Vocabulário Receptivo
Grupos N Média Mínimo Máximo DP
Grupos de Controle
- - - - -
DTdis 7 131,14 112 153 17,257
DTdf 7 99,00 49 150 31,565
DTdel 4 104,00 50 165 47,420
Grupos Clínicos
- - - - -
DIS 7 122,00 109 146 12,247
DF 7 78,86 40 113 33,958
DEL 4 34,75 14 72 25,682
Legendas: DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
TABELA 05: Medidas descritivas dos Escores de Nomeação de Figuras
Grupos N Média Mínimo Máximo DP
Grupos de Controle
- - - - -
DTdis 7 1,00 1 1 0,004
DTdf 7 1,00 1 1 0,011
DTdel 4 0,99 0,99 1 0,014
Grupos Clínicos
- - - - -
DIS 7 0,99 0,98 1 0,011
DF 7 0,88 0,83 0,93 0,049
DEL 4 0,54 0,35 0,73 0,122
Legendas: DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
V. Resultados e Discussão 86
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Conforme a TABELA 05, acima, os escores de desempenho no teste de
nomeação de figuras (que avaliou a acuracidade de palavras reais) foram: média de
1,00 tanto para o subgrupo DTdis, como para o subgrupo DTdf, não havendo
variação entre os valores mínimos e máximos; e, média de 0,99 para o subgrupo
DTdel, com mínimo de 0,99 e máximo de 1,00. Para os GCl, o resultado foi o
seguinte: média de 0,99 para o subgrupo DIS, com mínimo de 0,98 e máximo de
1,00; média de 0,88 para o subgrupo DF, com mínimo de 0,83 e máximo de 0,93; e,
por fim, média de 0,54 para o subgrupo DEL, com mínimo de 0,35 e máximo de
0,73.
E, finalmente, conforme demonstrado na TABELA 06, abaixo, no teste de
repetição de pseudopalavras, tem-se o seguinte desempenho para os GCo: os
subgrupos DTdis e DTdf apresentaram médias de escore de 0,9886, sendo o
mínimo 0,98 e máximo 1,00 para ambos os grupos; e o subgrupo DTdel apresentou
uma média de escore 0,9850, sendo o mínimo 0,98 e máximo 0,99. Com relação
aos GCl, tem-se que: o subgrupo DIS apresentou uma média de escore 0,9829,
sendo o mínimo 0,97 e máximo 0,99; o subgrupo DF apresentou uma média de
escore 0,8957, sendo o mínimo 0,85 e máximo 0,93; o subgrupo DTdel apresentou
uma média de escore 51,25, sendo o mínimo 0,39 e máximo 0,67.
TABELA 06: Medidas descritivas dos Escores de Repetição de Pseudopalavras
Grupos N Média Mínimo Máximo DP
Grupos de Controle
- - - - -
DTdis 7 0,9886 0,98 1,00 0,00690
DTdf 7 0,9886 0,98 1,00 0,00690
DTdel 4 0,9850 0,98 0,99 0,00577
Grupos Clínicos
- - - - -
DIS 7 0,9829 0,97 0,99 0,00756
DF 7 0,8957 0,85 0,93 0,03259
DEL 4 0,5125 0,39 0,67 0,13961
Legendas: DTdis = desenvolvimento típico pareado com DIS; DTdf = desenvolvimento típico pareado com DF; DTdel = desenvolvimento típico pareado com DEL; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
Os resultados de todos esses quatro testes serão analisados
comparativamente entre os grupos na seção a seguir.
V. Resultados e Discussão 87
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
5.2 COMPARAÇÃO ENTRE OS GRUPOS
5.2.1 Testes Padronizados
Os testes de memória sequencial auditiva e de vocabulário receptivo são
testes padronizados e utilizados na literatura em geral. Assim, é possível analisar os
escores obtidos pelas crianças em função dos escores esperados para cada faixa
etária. Tal análise permite obter tanto o desempenho da criança em relação ao teste
em si, como também realizar uma comparação de tais desempenhos entre os
grupos. Dessa forma, a TABELA 07, a seguir, mostra a comparação entre as médias
dos escores obtidos e esperados para cada grupo, nesses dois testes, e também os
resultados estatísticos da comparação realizada. A estatística empregada foi o Teste
de Mann-Whitney para amostras não pareadas.
TABELA 07: Médias dos escores obtidos e esperados nos testes de Memória Sequencial Auditiva e Vocabulário Receptivo, Proporção da diferença entre tais escores e medidas estatísticas.
GRUPO TESTE MEE MEO %DFÇ Valor “Z” p-valor
DTdis SPAM 28,43 27,29 -4,00% -0,650 0,516
PBDY 133,71 131,14 -1,92% -0,384 0,701
DTdf SPAM 24,00 22,43 -6,54% -0,386 0,700
PBDY 99,28 99,00 -0,28% -0,064 0,949
DTdel SPAM 24,00 27,00 +12,50% -0,436 0,663
PBDY 100,00 104,00 +4,00% 0,000 1,000
DIS SPAM 28,42 22,14 -22,10% -2,003 0,045*
PBDY 128,42 122,00 -4,90% -1,217 0,224
DF SPAM 23,42 15,43 -34,11% -2,914 0,004*
PBDY 100,00 78,86 -21,14% -1,597 0,110
DEL SPAM 24,00 5,75 -76,04% -2,323 0,020*
PBDY 99,75 34,75 -65,16% -2,021 0,043*
Legendas: SPAM = escore do teste de memória sequencial auditiva; PBDY = escore do teste de vocabulário receptivo; MEE = média do escore esperado; MEO = média do escore obtido; %DFÇ = proporção da diferença entre os escores obtidos e esperados.
Os valores apresentados na TABELA 07 são indicativos de que as crianças
de todos os GCo, ou seja, crianças com desenvolvimento típico, não mostraram
dificuldade alguma nem na prova de memória sequencial auditiva, nem na de
vocabulário receptivo. Essa análise é feita uma vez que, para os três subgrupos as
diferenças entre as médias de escores obtidos e as médias dos escores esperados
V. Resultados e Discussão 88
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
não foi estatisticamente significativa (DTdis: p=0,516 para memória sequencial e
p=0,701 para vocabulário receptivo; DTdf: p=0,700 para memória sequencial e p=0,949
para vocabulário receptivo; DTdel: p=0,663 para memória sequencial e p=1,000 para
vocabulário receptivo).
Já em todos os GCl, pode-se perceber alguma alteração, tanto em relação ao
léxico, como em relação à memória. O subgrupo DIS apresentou, em média, escore
22,1% abaixo do esperado no teste de memória sequencial auditiva, sendo esta
diferença estatisticamente significativa (p=0,045*), mas somente 4,9% abaixo do
esperado no teste de vocabulário receptivo, o que não representou diferença
estatisticamente significativa (p=0,224). O subgrupo DF obteve um desempenho um
pouco pior: 34,11% abaixo do esperado para memória sequencial auditiva e 21,14%
abaixo do esperado para vocabulário receptivo; no entanto, apenas a diferença no
teste de memória sequencial auditiva foi significativa estatisticamente (p=0,004*). Por
fim, o subgrupo com pior resultado foi o DEL, apresentando desempenho 76,04%
abaixo do esperado para memória sequencial auditiva e 65,16% abaixo do esperado
para vocabulário receptivo, ambos com diferença estatisticamente significativa
(p=0,020* e p=0,040*, respectivamente).
Em suma, pode-se dizer que: (i) nenhuma criança com desenvolvimento
típico mostrou alteração nem de memória de trabalho nem de tamanho de léxico,
estando de acordo com o esperado para a idade; (ii) as crianças com dislexia e
desvio fonológico apresentaram dificuldades principalmente com memória de
trabalho, apesar de apontar uma pequena alteração nos léxicos das crianças com
desvio fonológico; e, por fim, (iii) as crianças com distúrbio específico de linguagem
demonstraram muita dificuldade, tanto de memória de trabalho como de tamanho de
léxico. O QUADRO 01 abaixo, sumariza esses resultados de forma qualitativa.
QUADRO 01: Comparativo de desempenho – Memória Sequencial e Vocabulário Receptivo
Desenvolvimento Típico
Dislexia Desvio Fonológico
DEL
Memória Sequencial
Adequada Levemente Alterada
Levemente Alterada
Muito Alterada
Vocabulário Receptivo
Adequado Adequado Levemente Alterado
Muito Alterado
V. Resultados e Discussão 89
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Esses resultados estão de acordo com a literatura: crianças com dislexia
geralmente apresentam dificuldades com memória de trabalho, mas não com
aquisição de vocabulário (Santos e Navas, 2002; Bishop e Snowling, 2004); crianças
com desvio fonológico podem apresentar alterações leves de vocabulário (Mota,
2001) 9 enquanto crianças com distúrbio específico de linguagem apresentam
dificuldades em ambas as habilidades (Befi-Lopes, 2004; Gathercole, 2006;
Beckman et al., 2007). Esses resultados serão discutidos posteriormente em
conjunto com o desempenho desses grupos no teste de repetição de
pseudopalavras.
5.2.2 Teste de Nomeação de Figuras (Acuracidade de Palavras Reais)
Este teste, como já descrito no capítulo 4, é um teste experimental, adaptado
de Esteves (2009), que será analisado a partir dos escores obtidos pela criança para
a acuracidade de nomeação para palavras reais. Na seção anterior, foi apresentada
a TABELA 05, na página 85, contendo as medidas descritivas dos escores obtidos
pelas crianças de todos os grupos nesse teste de nomeação de figuras. A seguir,
serão demonstrados os resultados obtidos pela análise estatística realizada a fim de
comparar os desempenhos das crianças dos grupos clínicos (GCl) e grupos de
controle (GCo).
Os resultados do Teste de Mann-Whitney mostram que entre o subgrupo DIS
e seus controles (subgrupo DTdis) não houve diferença de desempenho (Z= -1,209,
p= 0,227); enquanto que entre o subgrupo DF e seus controles (subgrupo DTdf) e o
subgrupo DEL e seus controles (subgrupo DTdel) houve diferença estatisticamente
significativa (Z= -3,266*, p= 0,001 e Z= -2,323, p= 0,020*, respectivamente). Ainda,
realizando uma comparação entre os três subgrupos clínicos, observa-se que há
diferença de desempenho entre os três. Ou seja, o desempenho das crianças com
dislexia é diferente do desempenho das crianças com desvio fonológico que é
diferente do desempenho das crianças com distúrbio específico de linguagem (Z= -
3,176, p= 0,001*; Z= -2,714, p= 0,007*; Z= -2,658, p= 0,008*, respectivamente). A
TABELA 08, abaixo, sumariza estes resultados.
9 Contudo, Munson et al. (2005a) e Beckmann et al. (2007) não relatam alterações lexicais nas crianças com desvio fonológico avaliadas nos seus respectivos trabalhos.
V. Resultados e Discussão 90
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
TABELA 08: Teste de Mann-Whitney – Teste de Nomeação de Figuras Comparação com grupos de controle Comparação entre grupos clínicos
DIS X DTdis p= 0,227 sem diferença DIS X DF p= 0,001* com diferença
DF X DTdf p= 0,001* com diferença DIS X DEL p= 0,007* com diferença
DEL X DTdel p= 0,020* com diferença DF X DEL p= 0,008* com diferença
Essa análise estatística em conjunto com uma análise qualitativa acerca das
médias obtidas pelos diferentes subgrupos de crianças (DTdis=1,00; DTdf=1,00;
DTdel=0,99; DIS=0,99; DF=0,88; DEL=0,54), permite chegar à conclusão de que
houve três padrões de desempenho distintos, sendo o desempenho das crianças
dos GCo semelhante ao desempenho das crianças do subgrupo DIS e superior ao
desempenho das crianças do subgrupo DF, que, por sua vez, foi melhor do que o
desempenho das crianças do subgrupo DEL. Ou seja, em relação à acuracidade das
palavras reais, as crianças com dislexia não se diferenciam das crianças com
desenvolvimento típico, apresentando uma acuracidade maior do que as crianças
com desvio fonológico, que por sua vez, possuem maior acuracidade do que as
crianças com distúrbio específico de linguagem. O QUADRO 02 abaixo, apresenta
um quadro comparativo de desempenho, que resume essas conclusões.
QUADRO 02: Comparativo de desempenho – Nomeação de Figuras
Desenvolvimento Típico
Dislexia Desvio Fonológico
DEL
Acuracidade das Palavras
Reais
Alta escore médio:
1,00
Alta escore médio:
0,99
Média escore médio:
0,88
Baixa escore médio:
0,54
Esses resultados estão em conformidade com o esperado, uma vez que não
há descrito na literatura nenhuma dificuldade na expressão verbal de crianças com
dislexia (Santos e Navas, 2002), enquanto que para as crianças com desvio
fonológico e distúrbio específico de linguagem, as alterações fonológicas na fala são
marcas dessas patologias (Mota, 2001; Befi-Lopes, 2010). As diferenças de
desempenho entre os grupos DF e DEL serão discutidas posteriormente no que diz
respeito à natureza das representações afetadas. Ainda, o conjunto desses
V. Resultados e Discussão 91
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
resultados, também será utilizado, adiante, para fins comparativos com os
resultados dos testes padronizados e do teste de repetição de pseudopalavras.
5.2.3 Teste de Repetição de Pseudopalavras
O teste de Repetição de Pseudopalavras é o segundo instrumento de
testagem experimental e que foi elaborado neste projeto de doutorado, como já
descrito no capítulo 04. Sendo assim, ele será analisado de forma mais minuciosa,
fazendo uma comparação desses resultados com os resultados dos demais testes.
Com esta análise, pretende-se entender os padrões de desempenhos dos diferentes
grupos, discutindo a natureza dos déficits representacionais de cada grupo clínico, e
também elucidar os preditores do teste.
5.2.3.1 Desempenho dos grupos
Assim como ocorreu com o teste de nomeação de figuras, também para o
teste de repetição de pseudopalavras foi apresentada, na seção anterior, a TABELA
06, na página 86, contendo as medidas descritivas dos escores obtidos pelas
diferentes crianças neste teste. A seguir, portanto, serão apresentadas as análises
estatísticas realizadas a partir desses dados. Novamente, a estatística empregada
foi o Teste de Mann-Whitney para amostras não pareadas.
Assim como no teste de nomeação de figuras, o resultado indicou que entre o
subgrupo DIS e seus pares de mesma idade não houve diferença estatisticamente
relevante (Z= -1,330, p= 0,184), contudo, entre o subgrupo DF e seus pares e o
subgrupo DEL e seus pares houve diferença (Z= -3,176, p= 0,001*; e Z= -2,337, p=
0,019*, respectivamente). E novamente, ao comparar os subgrupos clínicos entre si,
foram encontradas diferenças significativas: entre DIS e DF (Z= -3,165, p= 0,002*);
entre DIS e DEL (Z= -2,695, p= 0,007*); e entre DF e DEL (Z= -2,658, p= 0,008*). Ou
seja, as crianças com dislexia novamente apresentaram desempenhos equivalentes
aos desempenhos das crianças com desenvolvimento típico e melhores que as
crianças com desvio fonológico que, por sua vez, apresentaram melhores
desempenhos que as crianças com distúrbio específico de linguagem.
V. Resultados e Discussão 92
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Ainda, o GRÁFICO 01, a seguir, demonstra a distribuição dos escores obtidos
por cada subgrupo no teste de repetição de pseudopalavras, explicitando claramente
a distinção nos desempenhos entre os subgrupos, uma vez que o intervalo de
valores para o subgrupo DEL não se sobrepõe ao do subgrupo DF, que também não
se sobrepõe aos do subgrupos DIS e aos dos grupos de controle. Estes dois últimos,
se apresentando muito próximos. Além disso, é possível perceber também a grande
dispersão dos escores do subgrupo DEL em comparação aos demais subgrupos e
controles, que obtiveram escores mais homogêneos. A diferença de dispersão dos
escores nos quatro grupos também pode ser demonstrada pelo resultado para
desvio padrão de cada grupo apresentado na TABELA 06, na página 86.
GRÁFICO 01 – Distribuição dos escores do Teste de Repetição de Pseudopalavras por grupo.
Sumarizando os resultados, o QUADRO 03 abaixo, apresenta um quadro
comparativo de desempenho para o teste de repetição de pseudopalavras.
QUADRO 03: Comparativo de desempenho – Repet. de Pseudopalavras
Desenvolvimento Típico
Dislexia Desvio Fonológico
DEL
Acuracidade das
Pseudopalavras
Alta escore médio:
0,987
Alta escore
médio: 0,982
Média escore médio:
0,896
Baixa escore
médio: 0,513
V. Resultados e Discussão 93
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
5.2.3.2 Fatores preditores de desempenho
Para compreender quais fatores influenciaram nesses desempenhos
discrepantes entre os grupos, foi feita uma análise qualitativa das correlações entre
as variáveis explicativas estabelecidas para a testagem das hipóteses apresentadas
no capítulo 4 – a saber, teste de memória sequencial auditiva, de vocabulário
receptivo e de acuracidade de palavras reais – com os resultados do teste de
repetição de pseudopalavras. Essa análise resultou no QUADRO 04, a seguir:
QUADRO 04: Comparativo de desempenho – Resumo dos Testes
Desenvolvimento Típico
Dislexia Desvio Fonológico
DEL
Memória Sequencial
Auditiva
Adequada Levemente Alterada
Levemente Alterada
Muito Alterada
Vocabulário Receptivo
Adequado Adequado Levemente Alterado
Muito Alterado
Acuracidade de Palavras Reais
Alta Alta Média Baixa
Acuracidade de Pseudopalavras
Alta Alta Média Baixa
Esse quadro comparativo dos desempenhos das crianças nos quatro testes
aplicados pode fornecer alguns indícios de qual seria a habilidade que estaria
influenciando a capacidade de repetir acuradamente as pseudopalavras. As crianças
com distúrbio específico de linguagem apresentaram grandes alterações tanto de
memória sequencial auditiva como de vocabulário receptivo. Além disso, elas ainda
apresentaram habilidades fonológicas bastante afetadas, uma vez que a
acuracidade das palavras reais foi muito baixa. Assim, era de se esperar que elas
apresentassem também baixa acuracidade na repetição de pseudopalavras. Já as
crianças com dislexia, que não apresentaram nenhuma alteração de vocabulário
receptivo e somente uma pequena alteração de memória sequencial auditiva,
tiveram um desempenho equiparado ao desempenho das crianças com
desenvolvimento típico. Assim, parece que a pequena alteração na memória de
trabalho não foi suficiente para afetar o desempenho na repetição de
V. Resultados e Discussão 94
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
pseudopalavras. Soma-se a esse fato, o desempenho das crianças com desvio
fonológico: as mesmas apresentaram a mesma pequena alteração na memória
sequencial auditiva que as crianças com dislexia, contudo apresentaram também
uma alteração no vocabulário receptivo; e ainda as suas habilidades fonológicas se
mostraram também um tanto afetadas, uma vez elas obtiveram uma acuracidade
média das palavras reais. O resultado disso foi um desempenho mediano também
no teste de repetição de pseudopalavras.
Em suma, pode-se concluir que o tamanho do léxico parece ter sido
determinante para a habilidade de repetição de pseudopalavras. Esses resultados
reiteram as conclusões tanto de Munson et al. (2005a) quanto de Beckman et al.
(2007). Em ambos os trabalhos com crianças falantes do inglês, a partir de medidas
de repetição de pseudopalavras controladas pela probabilidade fonotática dos
difones, foi possível concluir que o tamanho do léxico é um preditor melhor do que a
idade para avaliação do conhecimento fonológico abstrato.
5.2.3.3 Efeitos de Frequência
Outra análise realizada para o teste de repetição de pseudopalavras foi com
relação ao efeito de frequência dos itens do teste. Como já descrito no capítulo 2, de
acordo com os pressupostos dos MMR, analisar o efeito de frequência das sílabas
que compõem cada pseudopalavra pode fornecer informações a respeito da relação
entre o tamanho do léxico e a robustez das representações fonológicas abstratas
que dizem respeito aos segmentos e suas relações fonotáticas. Isso porque, espera-
se que o léxico adulto seja suficientemente grande para conferir robustez a qualquer
representação abstrata, independentemente da frequência com que ela apareça no
léxico.
Ao transpor essas hipóteses para o léxico infantil, espera-se que as crianças
atinjam esse nível de robustez das representações fonológicas a partir de um
determinado tamanho de léxico. Essa medida ainda não é conhecida para o
Português Brasileiro (PB), como o é para a língua inglesa, por exemplo. Sendo
assim, caso os resultados obtidos nessa tese confirmem a hipótese de relação entre
tamanho de léxico e acuracidade de repetição de pseudopalavras, irão também
V. Resultados e Discussão 95
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
indicar, para o PB, a partir de que intervalo de tamanho de léxico pode-se esperar a
ausência do efeito de frequência dos estímulos na acuracidade de repetição.
Resumindo, espera-se que crianças com tamanhos de léxico suficientemente
grandes não apresentem problemas em estabelecer abstrações de qualquer
natureza e, assim, não se mostrem sensíveis ao efeito de frequência.
A comparação entre as médias obtidas por cada grupo para os itens
frequentes e não frequentes foi feita a partir do Teste de Wilcoxon com pareamentos
de dois a dois, em cada grupo de crianças. As crianças dos três subgrupos do GCo
foram redistribuídas em somente dois subgrupos, a fim de analisar o efeito de
frequência nas crianças com desenvolvimento típico em função da idade: (i) 13
crianças mais velhas (faixa etária de 9 a 11 anos) e (ii) 5 crianças mais novas (faixa
etária de 5 a 6 anos). No subgrupo DIS não havia nenhuma criança mais nova. Os
dados do subgrupo DF não puderam ser analisados controlando a idade em função
do pequeno número de sujeitos em cada grupo. Os dados do subgrupo de DEL não
puderam ser analisados de forma alguma em função do pequeno número de
crianças. Os resultados gerais para efeito de frequência encontram-se na TABELA
09, logo abaixo.
TABELA 09: Efeito de Frequência – itens frequentes X não frequentes
Grupos N “z” p-valor
DT (mais velho) 13 -0,913 0,361
DT (mais novo) 5 -2,023 0,043*
DIS (geral) 7 -1,690 0,091
DF (geral) 7 -1,826 0,068
Legendas: DT = Desenvolvimento Típico; DIS = dislexia; DF = desvio fonológico; DEL = distúrbio específico de linguagem
A partir da TABELA 09, pode-se perceber que as crianças mais velhas com
desenvolvimento típico, assim como as crianças do subgrupo DIS, cujos léxicos
apresentaram tamanhos esperados para a idade, não se mostraram sensíveis a
esse efeito de frequência. Esse resultado confirma as expectativas de que léxicos
maiores fornecem suporte para o estabelecimento das abstrações mais robustas da
gramática fonológica, deixando, assim, de sofrer efeitos de frequência das sílabas.
V. Resultados e Discussão 96
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Ainda, observa-se, também, que as crianças com desenvolvimento típico
mais novas apresentaram uma tendência para o efeito de frequência. Essa
tendência aparece, provavelmente, em função da menor robustez fonológica
resultante do tamanho de seus vocabulários. Contudo, por ser somente uma
tendência, evidenciada por um p-valor “limítrofe” (p = 0,043), necessita ser checada
com um grupo maior de crianças.
Já as crianças do subgrupo DF, apesar de apresentarem medidas de
vocabulário um pouco abaixo do esperado para a idade, também não se mostraram
sensíveis ao efeito de frequência, evidenciando que, mesmo com o léxico um pouco
abaixo do esperado para a idade, elas não apresentam dificuldades na
categorização das informações fonológicas abstratas. Seria esperado que as
crianças mais novas do subgrupo DF apresentassem efeito de frequência, assim
como as crianças mais novas com desenvolvimento típico. Mas isso não pôde ser
observado em função do pequeno número de sujeitos.
Portanto, a partir do resultado mostrado na TABELA 09 para as crianças dos
GCo, que evidenciou diferenças entre as crianças mais velhas e as mais novas,
tentou-se identificar se havia relação dessa diferença de efeito de frequência com as
diferenças de vocabulário que caracterizam tais grupos. A variabilidade entre as
respostas das crianças dos grupos de controle, tanto mais velhas como mais novas,
foi muito pequena: os escores se concentraram entre 0,97 e 1,0 para os estímulos
de baixa frequência e 0,98 e 1,0 para os de alta frequência. Tal concentração de
escores dificultou uma avaliação estatística porém foi possível identificar, na curva
de tendência, a diferença entre os itens frequentes e os não frequentes em relação
ao tamanho do léxico das crianças com desenvolvimento típico. Esse resultado é
apresentado pelo GRÁFICO 02, abaixo.
V. Resultados e Discussão 97
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
GRÁFICO 02: Curva de Tendência para a média dos escores dos itens frequentes e não frequentes do teste de repetição de pseudopalavras em função do léxico – GCo
Legendas: PBDY = escores de vocabulário receptivo; REP_FQ = média dos escores dos itens frequentes; REP_NFQ = média dos escores dos itens não frequentes.
Pelo gráfico, apesar de todos os escores serem altos (iguais ou próximos de
1), os itens mais frequentes (linha vermelha) não sofreram tanta influência do léxico
como os itens menos frequentes. Como todos os itens eram formados por sílabas
CV (padrão silábico mais frequente do PB, e adquirido muito precocemente) é
plausível supor que as representações desse tipo silábico nos itens mais frequentes
já tenham sido estabelecidas muito precocemente, e que os itens menos frequentes
ainda estejam atingindo robustez representacional à medida que o léxico se amplia
para o intervalo de tamanho de léxico capturado nos sujeitos dessa amostra.
Importante enfatizar que, de fato, essa diferença de efeito de frequência diminui com
a idade e que, como mostrado na TABELA 09 acima, somente para as crianças com
desenvolvimento típico mais novas essa diferença foi estatisticamente significativa.
V. Resultados e Discussão 98
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
5.2.3.4 Natureza das Substituições Fonológicas
Até o momento, a maioria dos dados foram tratados de forma quantitativa,
realizando generalizações a partir de resultados estatísticos. Contudo, em função do
restrito número de sujeitos dos GCl, algumas análises estatísticas ficaram
prejudicadas. Nesse sentido, para complementar tais análises, se faz importante
também realizar uma descrição qualitativa detalhada acerca da natureza das
produções das crianças – principalmente do grupo DEL, cujos resultados estatísticos
ficaram mais prejudicados. Esta análise, em conjunto com a análise dos efeitos de
frequência das sílabas das pseudopalavras podem fornecer subsídios para
identificar a qual tipo de conhecimento fonológico as crianças recorreram ao
realizarem a tarefa solicitada.
Nesse sentido, primeiramente, as TABELAS 10 e 11 a seguir, apresentam
alguns exemplos de pseudopalavras produzidas por duas crianças com distúrbio
específico de linguagem: uma de 11 anos e 6 meses (ou 138 meses) e outra com 5
anos e 4 meses (ou 64 meses) a fim de descrever e comparar essas produções. As
descrições fonéticas em preto correspondem ao alvo esperado, enquanto aquelas
em vermelho, são transcrições das produções das crianças.
TABELA 10: Produção de criança com DEL – 11 anos e 6 meses
V. Resultados e Discussão 99
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
TABELA 11: Produção de criança com DEL – 5 anos e 4 meses
A dificuldade observada na produção da criança com distúrbio específico de
linguagem de 11 anos foi muito grande. Ela não só deixou de produzir corretamente
o detalhe fonético dos itens, substituindo /b/ por /p/ ou /v/ por /f/, por exemplo, mas
também, realizou omissões de estruturas silábicas inteiras, omissões de segmentos,
algumas vezes não manteve o padrão acentual do item. Ou seja, a produção não só
das informações fonético-paramétricas ficou prejudicada, mas também a das
informações fonológicas mais abstratas. Esse padrão de substituições se deve,
provavelmente, aos seus restritos moldes lexicais (tais como propostos por Vihman
e Croft, 2007). Parece que o molde CVCV já está bem estabelecido para essa
criança, uma vez que ela foi capaz de produzir todas as vogais, e substituiu (sem
omitir) ou realizou corretamente todas as consoantes dos estímulos de duas sílabas.
Contudo, quando aumenta o comprimento da palavra, a criança passa a realizar
várias omissões, atestando a não robustez do molde CVCVCV ou acima.
Quando se analisa a produção da criança com 5 anos, a dificuldade só
aumenta. Seus moldes lexicais parecem mais restritos ainda, de forma que sua
produção fica muito comprometida. Em todos os tamanhos de itens, a criança foi
capaz de produzir somente CVC ou VCV. Quando muito, ela parece ter abstraído
um molde que não é comum de aparecer nas primeiras representações infantis de
modo geral, mas que para ela foi muito produtivo: CVCC, onde a realização da
sílaba final não varia, como em tuks, dɔks, ʃeks. Ao analisar individualmente o escore
V. Resultados e Discussão 100
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
de vocabulário receptivo dessa criança (escore = 14), observa-se que o mesmo
corresponde ao vocabulário de uma criança menor do que 1 ano e nove meses.
Para uma criança com essa idade, de fato, é esperado tanto moldes lexicais
restritos, como ausência de efeito de frequência na repetição de pseudopalavras.
Esse dados só atestam para a dificuldade de organização e categorização
das representações fonológicas abstratas, que encontram-se em número bastante
restrito, das crianças com distúrbio específico de linguagem. Assim, mesmo que não
tenha sido possível realizar uma análise estatística a respeito do efeito de frequência
para as crianças com distúrbio específico de linguagem, é plausível supor que o
tamanho de léxico dessas crianças é tão restrito que nem a alta frequência dos
componentes dos itens seria capaz de auxiliar na repetição das pseudopalavras.
Pois, a frequência somente poderia ser um facilitador caso já houvesse um mínimo
de informações abstraídas e categorizadas em função dos padrões abstratos
existentes na língua materna. Mas parece que a dificuldade das crianças com
distúrbio específico de linguagem é justamente nessa categorização de padrões
abstratos, o que significa que ela deve ter poucos padrões abstraídos, que são
estendidos sistematicamente a todas as situações.
As TABELAS 12, 13 e 14, abaixo, mostram alguns exemplos das produções
das crianças com desvio fonológico, dislexia e com desenvolvimento típico,
respectivamente.
TABELA 12: Produção de criança com Desvio Fonológico
V. Resultados e Discussão 101
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
TABELA 13: Produção de criança com Dislexia
TABELA 14: Produção de criança com Desenvolvimento Típico
Como se pode perceber, as crianças com desenvolvimento típico, assim
como as crianças com dislexia e com desvio fonológico apresentaram o mesmo
padrão de substituição fonológica: elas foram capazes de acessar a maioria das
informações abstratas dos itens apresentados, tais como tamanho da palavra,
número de sílabas e de segmentos, acentuação; contudo as substituições se
g ɔ f ʊ z i g e f ə k e t ɔ n i s ʊg ɔ ʃ ʊ z i g i t ə t e t ɔ n i ʃ ɪʒ e f ə m ɔ ʒ e p ɪ g i v ɛ p o f ʊʒ e f ə m ɔ ʒ i p ɪ g i v ɛ p o f ʊʃ e ʎ ʊ g u f o ʃ ʊ v u r ɛ h u p əʃ e y ʊ g u f o ʃ ʊ v u r ɛ h u p ən o ʎ ɪ v u b o h ɪ z e ʃ o f u b ɪn o ʎ ɪ v u b o h ɪ z e f o f u b ɪz u b ɪ g e p ɔ n ə ʒ o p ɛ g e f əz u b ɪ g e p ɔ n ə ʒ o p ɛ g i f ətʃ i b ə k o p i z ə h e l a n i t ʊʃ i b ə k o p i z ə h e l a m i t ʊh a dʒ ɪ t a r e k ʊ k o v i t u n əh a dʒ ɪ t a r e p ʊ k o v i t u n əs ɛ b ə m e s i v ə dʒ i m e r ɔ t əs ɛ b ə m e s i v ə dʒ i m e r ɔ t əm a s ɪ v a b i t ʊ m e k u l i v əm a s ɪ v a b i t ʊ m e k u l i v əm i b ə d e t u k ə m o l i r a t ʊm i b ə d e t u k ə m o l i r a t ʊ
Dissilaba
s não
freq
uentes
Trissílaba
s não
Frequ
entes:
Polissílab
as não
Frequ
entes:
Dissílaba
s frequ
entes
Trissílaba
s Frequ
entes:
Polissílab
as Frequ
entes:
V. Resultados e Discussão 102
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
concentraram no detalhamento fonético. As crianças com dislexia não diferiram
daquelas com desenvolvimento típico nem mesmo na quantidade de substituições
realizadas, que foram muito poucas, como mostrado pelos escores semelhantes
(média de 0,987 para o GCo e 0,983 para o subgrupo DIS). Somente as crianças
com desvio fonológico apresentaram uma maior quantidade de substituições,
ficando a sua produção mais prejudicada do que dos outros dois grupos (a média do
escore para o subgrupo DF foi de 0,896). Contudo, é importante salientar, que tais
aspectos fonéticos que não foram produzidos, foram substituídos pelos mesmos
segmentos na fala espontânea dessas crianças, conforme pôde ser observado
através do teste de produção de palavras reais.
Portanto, sumarizando a natureza das substituições fonológicas realizadas
pelas crianças dos diferentes grupos, observa-se que as crianças com distúrbio
específico de linguagem foram aquelas que mais se diferenciaram das demais,
apresentando substituições que envolviam informações fonológicas abstratas. Todas
as demais, produziram substituições que diziam respeito ao detalhamento fonético-
paramétrico dos itens. Ainda, somente as crianças com desvio fonológico se
diferenciaram das crianças com desenvolvimento típico, apontando para uma
dificuldade específica nessas crianças, em oposição às crianças com dislexia.
Assim, no que diz respeito à representação do conhecimento fonológico, tal
como entendido pelos MMR de linguagem (Pierrehumbert, 2003), pode-se concluir
que as crianças com dislexia não apresentaram alteração alguma, assim como as
crianças com desenvolvimento típico; as crianças com desvio fonológico
apresentaram alterações na representação do tipo de conhecimento que diz respeito
ao detalhamento fonético paramétrico; e, por fim, as crianças com distúrbio
específico de linguagem apresentaram alterações na representação do tipo de
conhecimento fonológico abstrato, que diz respeito à gramática fonológica em si.
Ainda, essas alterações fonológicas podem ser relacionadas com as
características de vocabulário receptivo e memória sequencial auditiva encontradas
nesses grupos de crianças. Essa correlação reitera a influência do léxico nas
habilidades fonológicas das crianças, uma vez que é a diferença de léxico (e não de
memória de trabalho) que coincide com as diferenças de habilidades fonológicas
afetadas. Essa correlação encontra-se no QUADRO 05, a seguir.
V. Resultados e Discussão 103
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
QUADRO 05: Comparativo de Desempenho – Memória Sequencial Auditiva, Vocabulário Receptivo e Representação Fonológica
Desenvolvimento Típico
Dislexia Desvio Fonológico
DEL
Memória Sequencial
Auditiva
Adequada Levemente Alterada
Levemente Alterada
Muito Alterada
Vocabulário Receptivo
Adequado Adequado Levemente Alterado
Muito Alterado
Conhecimento Fonológico
Afetado
Nenhum Nenhum Conhecimento Fonético
Paramétrico
Gramática Fonológica
5.3 DISCUSSÃO
O objetivo deste trabalho foi estudar a natureza dos déficits fonológicos
apresentados tanto por crianças com dislexia como por crianças com desvio
fonológico e distúrbio específico de linguagem, de modo a elucidar as semelhanças
e diferenças concernentes a essas três desordens, tendo como comparativo o
conhecimento fonológico de crianças com desenvolvimento típico.
Esse estudo foi motivado pela discussão da literatura que situa a dislexia e o
distúrbio específico de linguagem dentro de um continuum de um mesmo distúrbio
(Tallal et al., 1997; Bishop e Snowling, 2004; De Bree et al., 2007). Além disso, há
também diferentes discussões na literatura acerca das características específicas do
conhecimento fonológico de cada uma dessas três patologias. No caso da dislexia,
diferentes autores divergem quanto à natureza do déficit fonológico, se seria uma
questão de acesso (Esteves, 2009) ou de representação das informações
fonológicas (Santos e Navas, 2002; Fowlert e Swainson, 2004). Com relação ao
desvio fonológico, a questão que se coloca é em relação ao tipo de conhecimento
fonológico que estaria afetado nesse transtorno, se seriam as representações
fonético-paramétricas (Munson et al., 2010) ou as informações fonológicas abstratas
da gramática fonológica (Yavas et al., 1991). E por fim, no que diz respeito ao
distúrbio específico de linguagem, a discussão na literatura passa pelo
questionamento do papel do conhecimento fonológico armazenado na memória de
V. Resultados e Discussão 104
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
longo prazo (Beckmam, Munson & Edwards, 2007) ou da memória de trabalho
fonológica para o processo de aprendizagem lexical (Gathercole, 2006).
Assim, para investigar o conhecimento fonológico de crianças diagnosticadas
com essas três patologias tomou-se como embasamento teórico os Modelos
Multirrepresentacionais de linguagem (MMR), que pressupõem a abstração da
linguagem de forma gradual ao longo do desenvolvimento, constituindo diferentes
tipos de conhecimento fonológico, a partir de um léxico adquirido com o uso da
linguagem na interação com outro e organizado em redes de conexões. Ou seja,
como pressuposto, o léxico propiciaria robustez à organização das informações
fonológicas abstratas necessárias em um teste de Repetição de Pseudopalavras.
Assim, esperava-se que os desempenhos dos diferentes grupos de crianças neste
teste variasse em função da diferença de tamanho de vocabulário entre eles.
Primeiramente, realizando uma análise comparativa entre os grupos a fim de
verificar um preditor para o desempenho no teste de repetição de pseudopalavras,
observou-se que as crianças com dislexia, mesmo obtendo escores de memória
sequencial auditiva abaixo do esperado para a idade, apresentaram escores de
repetição de pseudopalavras equivalentes aos das crianças de mesma idade com
desenvolvimento típico, provavelmente em função de seus léxicos, que não
apresentaram alteração. Porém, as crianças com desvio fonológico, que obtiveram
tanto escores de memória sequencial auditiva como de vocabulário receptivo abaixo
do esperado para a idade, apresentaram desempenhos no teste de repetição de
pseudopalavras piores do que seus pares de mesma idade com desenvolvimento
típico. Ainda, o efeito de frequência das sílabas constituintes das pseudopalavras
diminuiu em função do aumento do tamanho de léxico nas crianças com
desenvolvimento típico, indicando que o léxico deu suporte para a robustez das
representações fonológicas abstratas e, consequentemente, para a acuracidade do
teste de repetição de pseudopalavras. Nesse sentido, embora se reconheça algum
papel da memória de trabalho para a execução deste tipo de tarefa, pode-se
questionar a sua centralidade, tal como proposta por Gathercole (2006).
Em tal trabalho, a autora apresenta um quadro teórico para explicar a relação
entre repetição de pseudopalavras e aprendizagem de novas palavras, concluindo
que ambos os processos se baseiam centralmente no armazenamento fonológico
temporário, e que um déficit nesta memória de trabalho poderia ocasionar uma
V. Resultados e Discussão 105
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
dificuldade tanto na repetição de pseudopalavras como na aprendizagem de novas
palavras. O efeito de frequência das pseudopalavras, segundo a autora se deveria,
no caso das pseudopalavras com componentes de alta frequência ao léxico, à
memória de longo termo, e o efeito dos estímulos de baixa frequência, à memória de
trabalho. Contudo, os resultados desta tese não corroboram essa afirmação. Assim,
sem negar que déficits na memória de trabalho podem vir a culminar em algumas
dificuldades lexicais, os resultados desta tese demonstram que o léxico exerce maior
influência do que a memória de trabalho na repetição de pseudopalavras de crianças
em idade escolar.
Outra vertente da análise dos dados desta tese diz respeito ao padrão de
desempenho das crianças dos diferentes grupos no teste. Nesse sentido, os
resultados mostraram que o padrão de desempenho no teste de repetição de
pseudopalavras de cada grupo clínico foi bastante discrepante entre si. As crianças
do subgrupo DIS obtiveram escores semelhantes aos seus pares com
desenvolvimento típico, sendo melhores e menos dispersos do que as crianças do
subgrupo DF que por sua vez, foram melhores e menos dispersos ainda do que o
subgrupo DEL. Ainda, os subgrupos clínicos DIS e DF não se mostraram sensíveis
ao efeito de frequência das sílabas constituintes das pseudopalavras, assim como
as crianças mais velhas com desenvolvimento típico; em contrapartida, para o
subgrupo DEL não foi possível tirar conclusões assertivas sobre esse efeito. Se essa
análise quantitativa for somada a uma análise qualitativa da produção das crianças
de cada grupo, essa diferença entre os grupos clínicos se acentua. Crianças dos
grupos de controle, assim como dos subgrupos DIS e DF apresentaram os mesmos
tipos de substituições, que dizem respeito às informações paramétricas do detalhe
fonético. A diferença entre eles foi a quantidade de substituição que, como retratado
pelo escore, foi bem maior somente no subgrupo DF. Já as crianças do subgrupo
DEL apresentaram falhas não só na produção do detalhamento fonético, mas
também e, principalmente, das informações fonológicas abstratas. Esses mesmos
padrões distintos foram encontrados também no teste que mediu a acuracidade para
palavras reais.
Esses resultados, tomados em conjunto, localizam as dificuldades das
crianças dos subgrupos clínicos em tipos de conhecimento fonológico diferentes. As
crianças com dislexia não apresentaram nenhum indício de alteração na
V. Resultados e Discussão 106
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
representação das informações categóricas abstratas, uma vez que elas não foram
sensíveis ao efeito de frequência e nem apresentaram escores diferentes dos
grupos de controle no teste de pseudopalavras e também de palavras reais. Esses
resultados não confirmam os pressupostos de Santos e Navas (2002) que afirmam
que “a dificuldade de estabelecimento de representações fonológicas de boa
qualidade é a principal causa dos déficits de processamento fonológico encontrados
nos disléxicos”. Contudo, eles reiteram o trabalho de Esteves (2009), no qual foi
encontrado que disléxicos apresentaram dificuldades em acessar a forma sonora
das palavras no léxico, mas não pareciam apresentar dificuldades de representação
das mesmas, assim como das informações fonológicas mais abstratas.
Já os resultados das crianças com desvio fonológico parecem apontar para
uma dificuldade diferente das crianças com dislexia. Elas também não se mostraram
sensíveis ao efeito de frequência e foram capazes de acessar a maioria das
informações abstratas dos itens apresentados, apontando para uma integridade da
organização do conhecimento fonológico abstrato. Contudo, suas produções tanto
de palavras reais como de pseudopalavras foram sensivelmente menos acuradas
em termos quantitativos do que as crianças com desenvolvimento típico e com
dislexia, evidenciando uma dificuldade na produção das informações representadas
no espaço paramétrico fino. Esses resultados questionam a concepção tradicional
de que as crianças com desvio fonológico teriam dificuldades com a gramática
fonológica (Yavas et al., 1991; Mota, 2001) e corroboram os trabalhos de Munson et
al. (2010), que mostram a dificuldade das crianças com desvio fonológico em
relação às representações paramétricas. Em tal trabalho, as crianças com desvio
fonológico não se diferenciaram das crianças com desenvolvimento típico em termos
da velocidade de acesso lexical e da capacidade de codificação fonológica abstrata.
No entanto, se mostraram com habilidades reduzidas para aprender as
representações perceptuais de novas palavras.
E por fim, as crianças com distúrbio específico de linguagem obtiveram os
piores resultados, tanto em termos quantitativos, como em termos qualitativos em
todos os quatro testes, parecendo evidenciar uma significativa dificuldade na
representação do conhecimento fonológico abstrato. Esses resultados estão em
conformidade com os trabalhos de Munson et al. (2005a) e Beckman et al. (2007),
que concluem que crianças com distúrbio específico de linguagem apresentaram
V. Resultados e Discussão 107
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
um prejuízo num nível de representação menos refinado e mais abstrato, como o da
Gramática Fonológica que permite ao falante a aquisição de novas palavras.
Localizar, portanto, as dificuldades dessas crianças em conhecimentos
fonológicos distintos traz significativas implicações clínicas tanto para o diagnóstico
em si como para o tratamento. Atualmente, como já descrito no capítulo 2, sobre as
patologias, um dos indicadores diagnósticos para distúrbio específico de linguagem
é a dificuldade na memória de trabalho. Contudo, como visto neste trabalho, tanto
crianças com dislexia, como crianças com desvio fonológico também apresentaram
dificuldades na memória de trabalho. Nesse sentido, parece que os fatores
diferenciadores entre os três grupos foram muito mais com relação ao tamanho de
léxico e ao tipo de conhecimento fonológico afetado do que à memória de trabalho.
Portanto, para fins diagnósticos, parece que identificar as dificuldades lexicais e de
tipo de conhecimento fonológico se traduz em procedimentos mais confiáveis para a
diferenciação entre desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem que,
muitas vezes, podem apresentar manifestações linguísticas muito semelhantes. E
certamente, para fins terapêuticos, concentrar as tarefas em termos da percepção
das características acústicas da fala ou em termos das informações fonológicas
abstratas pode fazer toda a diferença no tempo total de terapia a qual a criança se
submete. Tendo sempre o pressuposto de que tais informações sobre os diferentes
tipos de conhecimento fonológico não são percebidas pelas crianças de forma
dissociada do contexto interativo e significativo em que se encontram. Além disso, a
hipótese teórica de que dislexia e distúrbio específico de linguagem fariam parte de
um continuum de um mesmo distúrbio (Tallal et al, 1997) não se sustenta, uma vez
que, apesar dos sintomas que se sobrepõem, crianças com essas patologias
possuem desempenhos completamente distintos que se mostram como resultados
de dificuldades fonológicas também distintas.
Adicionalmente, esses resultados trazem contribuições teóricas significativas,
uma vez que apresentam evidências para atestar a importância de se considerar a
organização sonora das línguas em diferentes tipos de conhecimento fonológico,
que se organizam de forma gradual ao longo do desenvolvimento em função do
léxico da criança, tal como proposto pelos MMR.
VI. CONCLUSÕES
ste trabalho se propôs a realizar uma aproximação entre o campo
da Fonoaudiologia e as propostas recentes do campo da
Linguística, analisando o conhecimento fonológico de crianças
com diferentes patologias da linguagem a partir dos pressupostos
teóricos dos Modelos Multirrepresentacionais (MMR) de linguagem (Goldberg, 1995;
Johnson, 1997; Tomasello, 2003; Vihman e Croft, 2007; Bybee, 2001 e 2010;
Pierrehumbert, 2001, 2003 e 2012; Croft, in press).
A ideia de investigar três patologias tão distintas como a dislexia, o desvio
fonológico e o distúrbio específico de linguagem foi impulsionada por uma discussão
da literatura acerca das manifestações linguísticas semelhantes apresentadas pelas
mesmas, a saber, déficits em memória fonológica, em consciência fonológica e no
acesso lexical (Santos e Navas, 2002; Befi-Lopes, 2004; Wertzner, 2004). Há
autores, inclusive, que afirmam a possibilidade de dislexia e distúrbio específico de
linguagem fazerem parte de um continuum do mesmo transtorno, no qual a dislexia
seria a manifestação de grau leve e o distúrbio específico de linguagem a de grau
mais severo (Tallal et al., 1997). No entanto, realizando-se uma análise mais
aprofundada a respeito do déficit fonológico apresentado por cada uma dessas
patologias, constata-se que há especificidades de cada uma que as caracterizam de
forma diferenciada (Munson et al. 2005a; Beckman et al., 2007; Esteves, 2009).
Além disso, trazer dados de diferentes populações clínicas para dentro da discussão
acerca dos modelos explicativos da aquisição/ desenvolvimento/ representação da
linguagem pode trazer contribuições importantes que refutem ou reiterem tais
modelos teóricos.
Os MMR preconizam que a criança não nasce com as categorias fonológicas
abstratas prontas. Ao contrário, ao longo do desenvolvimento da criança diferentes
tipos de conhecimento fonológico vão surgindo a partir de abstrações e
generalizações que vão sendo feitas gradativamente sobre os moldes lexicais
iniciais da criança. Tais moldes lexicais somente são efetivamente adquiridos a partir
da interação com outro em contextos socialmente significativos para a criança. Os
diferentes tipos de conhecimento fonológico que a criança vai organizando em seu
desenvolvimento dizem respeito tanto a categorias abstratas fonológicas e
morfofonológicas que cognitivamente se formam aos poucos, mas também às
E
VI. Conclusões 109
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
informações mais concretas a respeito das características percepto-acústicas e
articulatórias da fala, com as quais a criança tem experiência direta com o uso
linguístico. Nesse sentido, é necessário que a criança seja inserida em situações
sócio-interativas que lhe confiram significativa experiência linguística, e também que
ela possua capacidades cognitivas íntegras para que, a partir do uso da linguagem e
por meio de processos de generalização e categorização inatos, ela possa
desenvolver o conhecimento linguístico abstrato. Ou seja, no que diz respeito ao
conhecimento especificamente fonológico, quanto maior o seu vocabulário, mais
robustas serão as suas representações acerca das categorias fonológicas abstratas
(Goldberg, 1995; Johnson, 1997; Tomasello, 2003; Vihman e Croft, 2007; Bybee,
2001 e 2010; Pierrehumbert, 2001, 2003 e 2012; Croft, in press).
Na literatura, há uma discussão a respeito de quais habilidades seriam
necessárias para a realização de um teste de pseudopalavra. Alguns autores
preconizam que a memória de trabalho fonológica exerce influência principal, de
forma que para executar tal tarefa usar-se-ia somente tais informações fonológicas
armazenadas temporariamente. Assim, um déficit nesta habilidade de memória de
trabalho prejudicaria a capacidade de repetir pseudopalavras, assim como de
aprender novas palavras, acarretando em um léxico empobrecido (Gathercole,
2006). Outros autores defendem a ideia de que seriam as informações fonológicas
estocadas na memória de longo prazo, ou seja, no léxico, que seriam utilizadas
prioritariamente em um teste como esse. Esses trabalhos demonstram que, ao
controlar algumas variáveis como grau de semelhança, probabilidade fonotática,
densidade de vizinhança, entre outros, o teste de repetição de pseudopalavras se
torna um bom avaliador da integridade das representações fonológicas abstratas. E
assim, um léxico empobrecido seria possivelmente a causa (e não a consequência)
de um desempenho ruim no teste de repetição de pseudopalavras (Frisch et al 2000,
Munson et al. 2005a).
Portanto, tendo como base os trabalhos que corroboram os pressupostos dos
MMR de linguagem e defendem a ideia de que o tamanho do léxico seria o principal
preditor para o desempenho em testes de repetição de pseudopalavras, este
trabalho se propôs a aplicar tal teste em crianças com patologias da linguagem – a
saber, dislexia, desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem – e em
crianças com desenvolvimento típico, de modo avaliar o conhecimento fonológico
VI. Conclusões 110
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
das mesmas. Medidas de memória sequencial auditiva, vocabulário receptivo e
acuracidade de nomeação de palavras reais foram utilizadas de forma comparativa a
fim de identificar os preditores para o desempenho do teste de repetição de
pseudopalavras.
Os resultados mostraram que, de uma forma geral, embora não se possa
descartar a influência da medida de memória sequencial auditiva e da idade, o
principal preditor para o desempenho no teste de repetição de pseudopalavras foi a
medida do vocabulário receptivo. Ainda, o efeito de frequência das sílabas
constituintes das pseudopalavras diminuiu em função do aumento do tamanho de
léxico, nas crianças com desenvolvimento típico, indicando que o léxico deu suporte
para a robustez das representações fonológicas abstratas.
Esses resultados estão em conformidade com os estudos de Munson et al.
(2005a) e Beckman et al. (2007), que também encontraram evidências que reiteram
o papel principal do léxico nesta tarefa. Contudo, questionam o trabalho de
Gathercole (2006), no qual a autora atesta que repetição de pseudopalavras e
aprendizagem de novas palavras se baseiam centralmente no armazenamento
fonológico temporário. Assim, sem negar que déficits na memória de trabalho podem
vir a culminar em algumas dificuldades lexicais, os resultados desta tese
demonstram que o léxico exerce maior influência do que a memória de trabalho na
repetição de pseudopalavras de crianças em idade escolar.
Os resultados mostraram também que as crianças dos diferentes grupos
clínicos apresentaram diferentes características em termos de vocabulário e de tipo
de conhecimento fonológico afetado. As crianças com dislexia, apesar de se
mostrarem com dificuldades na memória de trabalho fonológica, não apresentaram
nenhuma alteração de vocabulário receptivo e nem nenhum indício de alteração na
representação das informações categóricas abstratas, uma vez que elas não foram
sensíveis ao efeito de frequência e nem apresentaram escores diferentes de
crianças com desenvolvimento típico no teste de pseudopalavras e também de
palavras reais. Esses resultados não confirmam os pressupostos de Santos e Navas
(2002) que afirmam que “a dificuldade de estabelecimento de representações
fonológicas de boa qualidade é a principal causa dos déficits de processamento
fonológico encontrados nos disléxicos”. Contudo, eles reiteram o trabalho de
Esteves (2009), no qual foi encontrado que disléxicos apresentaram dificuldades em
VI. Conclusões 111
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
acessar a forma sonora das palavras no léxico, mas não pareciam apresentar
dificuldades de representação das mesmas, assim como das informações
fonológicas mais abstratas.
Já os resultados das crianças com desvio fonológico apontam para uma
dificuldade diferente das crianças com dislexia. Elas apresentaram déficits de
memória de trabalho e uma pequena defasagem em seus vocabulários. Elas
também não se mostraram sensíveis ao efeito de frequência e foram capazes de
acessar a maioria das informações mais abstratas dos itens apresentados,
apontando para uma integridade da organização do conhecimento fonológico mais
abstrato. Contudo, suas produções tanto de palavras reais como de pseudopalavras
foram sensivelmente menos acuradas em termos quantitativos do que seus pares
com desenvolvimento típico e as crianças com dislexia, evidenciando uma
dificuldade na produção das informações representadas no espaço paramétrico fino.
Esses resultados questionam a concepção tradicional de que as crianças com
desvio fonológico teriam dificuldades com a gramática fonológica (Yavas et al., 1991;
Mota, 2001) e corroboram os trabalhos de Munson et al. (2010), que mostram a
dificuldade das crianças desvio fonológico com as representações paramétricas. Em
tal trabalho, as crianças com desvio fonológico não se diferenciaram das crianças
com desenvolvimento típico em termos da velocidade de acesso lexical e da
capacidade de codificação fonológica abstrata. No entanto, se mostraram com
habilidades reduzidas para aprender as representações perceptuais de novas
palavras.
E por fim, as crianças distúrbio específico de linguagem obtiveram os piores
resultados, tanto em termos quantitativos, como em termos qualitativos em todos os
quatro testes, parecendo evidenciar uma significativa dificuldade na representação
do conhecimento fonológico abstrato. Esses resultados estão em conformidade com
os trabalhos de Munson et al. (2005a) e Beckman et al. (2007), que concluem que
crianças com distúrbio específico de linguagem apresentaram um prejuízo num nível
de representação menos refinado e mais abstrato, como o da Gramática Fonológica
que permite ao falante a aquisição de novas palavras.
Resumindo, as crianças com dislexia não apresentaram nenhuma alteração
na representação das informações fonológicas. As crianças com desvio fonológico
apresentaram dificuldades na representação das informações fonológicas
VI. Conclusões 112
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
paramétricas, do detalhamento fonético fino, enquanto as crianças com distúrbio
específico de linguagem se mostraram com muitas dificuldades na categorização
dos padrões fonológicos abstratos, que constituem a gramática fonológica.
Esses resultados, além de trazerem implicações clínicas que podem mudar o
direcionamento tradicional tanto dos processos diagnósticos como terapêuticos,
também atestam a importância de se considerar a organização sonora das línguas
em diferentes tipos de conhecimento, que se organizam de forma gradual ao longo
do desenvolvimento em função do léxico da criança, tal como proposto pelos MMR.
A título de considerações finais, é importante ressaltar como que o teste piloto
de repetição de pseudopalavras utilizado nesta tese foi significativo para elucidar
inicialmente algumas questões a respeito do conhecimento fonológico tanto das
crianças com desenvolvimento típico como das crianças com transtornos de
linguagem. No entanto, como dito, este foi um teste piloto, o início das investigações
deste tipo de tarefa analisado sob a ótica dos Modelos Multirrepresentacionais de
linguagem. E como tal, se faz necessário o aprimoramento do mesmo para que
novas investigações possam ser realizadas. Por exemplo, este teste só levou em
consideração o tipo silábico CV e o acento lexical paroxítono. Contudo, seria
importante incluir no teste, outros tipos silábicos e prosódicos que possibilitariam
observar, ao longo do desenvolvimento infantil, como se dá a gradual abstração
dessas diferentes informações a respeito da fonotática do Português Brasileiro. Se
faz necessário, portanto, aprimorar tal teste de repetição de pseudopalavras, para
que essa e muitas outras questões que possam vir a aparecer sejam respondidas.
Alguns outros questionamentos clínicos também se mostram sem respostas a
partir da conclusão deste trabalho, se fazendo necessário aprofundar, em separado,
as discussões clínicas de cada uma das patologias da linguagem investigadas. Por
exemplo, qual será a relação existente entre as dificuldades de memória de trabalho
e acesso lexical (Esteves, 2009) encontradas nas crianças com dislexia? As
dificuldades de crianças com desvio fonológico no que tange às representações
fonético-paramétricas se devem à alterações na percepção acústica do som ou à
retenção dessas informações (tal como proposto por Munson et al., 2005a, uma vez
que nesta tese tais crianças também apresentaram dificuldades de memória de
trabalho)? Será que as dificuldades de categorização das informações fonológicas
abstratas encontradas nas crianças com distúrbio específico de linguagem são
VI. Conclusões 113
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
extensíveis a outros conhecimentos abstratos? Esses são questionamentos clínicos
importantes que devem ser melhor investigados a fim de que os processos
terapêuticos possam também se aprimorar.
Por fim, se faz importante também refletir acerca dos limites que são impostos
na clínica da linguagem ao se adotar determinado modelo teórico em detrimento de
outro. Em função da própria definição, um modelo teórico é sempre um recorte do
mundo, que lança um olhar sobre o mesmo a partir de um determinado ponto de
vista, delimitando-o. E, quando se fala em clínica, se fala em trabalho vivo em ato,
onde as múltiplas facetas dos processos interativos estão em jogo. Dessa forma, foi
intuito deste trabalho oferecer um olhar específico sobre os distúrbios de linguagem,
que muito contribui para a compreensão e descrição dos mesmos. Contudo, é
necessário não perder de vista a multiplicidade envolvida no agir terapêutico com as
crianças que não entram no mundo da linguagem de forma plena.
VII. Referências Bibliográficas
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Anexos 120
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
ANEXO I - Teste de Memória de Sequencial Auditiva (Bogossian e Santos, 1977)
Prova: Memória Sequencial Auditiva – ITPA – Subteste 510
Data: _____/________/______
Nome: ____________________________________________________
Idade: ______________________________________________ D.N.: ______/________/_______
Escolaridade: ____________________________________________________________________
Examinadores: __________________________________________________________________
1ª 2ª 1ª 2ª 1ª 2ª 1ª 2ª
9-1 8-2-9-3 2-9-6-1-8-3 8-1-6-2-5-9-3
7-9 1-6-9-5 7-4-8-3-5-5 2-7-4-1-8-3-6
6-4-9 4-7-3-9-9 6-9-5-7-2-8 4-9-6-3-5-7-1
8-1-1 6-1-4-2-8 5-2-4-9-3-6 3-1-9-2-7-4-8-8
5-2-8 1-5-2-9-6 4-7-3-8-1-5 8-2-5-9-3-6-4-1
2-7-3-3 7-3-1-8-4 3-6-1-9-2-7-7 4-7-3-1-6-2-9-5
6-3-5-1 5-9-6-2-7 5-3-6-9-7-8-2 9-6-3-8-5-1-7-2
Escore
10 Base e Teto – Crianças abaixo de 6 anos: Não há base. O examinador continua a aplicação, item por item, até que 2 itens consecutivos sejam errados em ambas as tentativas (teto). Para crianças com idade igual ou superior a 6 anos se a criança erra a primeira tentativa de qualquer um dos 3 primeiros itens que lhe são apresentados (5, 6 ou 7) o examinador deve administrar a segunda tentativa daquele item e aplicar os itens imediatamente anteriores, até obter 3 acertos consecutivos na primeira tentativa (BASE). Volta, então, ao ponto onde ocorreu o primeiro erro e continua a aplicação até que ocorram 2 erros consecutivos em ambas as tentativas (TETO).
DEMO
a. 2 -2 b. 2 -1
Anexos 121
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
ANEXO II
Teste de Vocabulário Receptivo Peabody III (Dunn & Dunn, 1997)
Anexos 122
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Anexos 123
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Anexos 124
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
ANEXO III – Figuras Utilizadas no Teste de Nomeação de Figuras
Anexos 125
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Anexos 126
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Anexos 127
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
Anexos 128
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
ANEXO IV – ITENS DO TESTE DE REPETIÇÃO DE PSEUDOPALAVRA
Dissílabas Não-Frequentes 1- gɔfʊ 2- ʒefəә 3- ʃeʎʊ 4- noʎɪ 5- zubɪ Dissílabas Frequentes 1- tʃibəә 2- hadʒɪ 3- sɛbəә 4- masɪ 5- mibəә Trissílabas Não-Frequentes 1- zigefəә 2- mɔʒepɪ 3- gufoʃʊ 4- vubohɪ 5- gepɔnəә Trissílabas Frequentes 1- kopizəә 2- tarekʊ 3- mesivəә 4- vabitʊ 5- detukəә 4 sílabas Não-frequentes 1- ketɔnisʊ 2- givɛpofʊ 3- vurɛhupəә 4- zeʃofubɪ 5- ʒopɛgefəә 4 sílabas Frequentes 1- helanitʊ 2- kovitunəә 3- dʒimerɔtəә 4- mekulivəә 5- moliratʊ
Anexos 129
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
ANEXO V – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
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Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Título do Estudo: O conhecimento fonológico de crianças com dislexia, desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem: uma análise multirrepresentacional
Pesquisador Responsável: Clara Oliveira Esteves
Senhor(a) o seu(sua) filho(a) está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa. Por favor, leia este documento com bastante atenção antes de assiná-lo. Caso haja alguma palavra ou frase que o(a) senhor(a) não consiga entender, converse com o pesquisador responsável pelo estudo ou com um membro da equipe desta pesquisa para esclarecê-los.
A proposta deste termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) é explicar tudo sobre o estudo e solicitar a sua permissão para participar do mesmo.
OBSERVAÇÃO: Caso o paciente não tenha condições de ler e/ou compreender este TCLE, o mesmo poderá ser assinado e datado por um membro da família ou responsável legal pelo paciente.
Objetivo do Estudo
O objetivo do estudo é analisar o conhecimento fonológico apresentado por crianças com diferentes transtornos da linguagem, de modo a identificar as possíveis semelhanças e diferenças entre essas desordens. Entendendo a organização do conhecimento fonológico é possível propor melhores formas de terapia para as crianças com transtornos de linguagem.
Duração do Estudo
A duração total do estudo é de 4 anos.
No entanto, a participação de seu(sua) filho(a) no estudo será de apenas 1 sessão de 40 min composta por quatro avaliações.
Descrição do Estudo
Participarão do estudo aproximadamente 50 crianças, distribuídas entre 5 grupos diferentes: (i) grupo clínico de Dislexia; (ii) grupo clínico de Desvio Fonológico; (iii) grupo clínico de Distúrbio Específico de Linguagem; (iv) grupo de controle por idade; (v) grupo controle por nível de linguagem.
Este estudo está sendo realizado junto ao Programa de Pós-graduação em Linguística da UFRJ sob a forma de um projeto de doutorado da pesquisadora.
( ) O(a) seu(sua) filho(a) foi escolhido(a) a participar do estudo compondo um dos grupos de controle porque se encontra na faixa etária das crianças selecionadas e por apresentar bom desempenho escolar, sem a presença de nenhuma alteração de linguagem.
( ) O(a) seu(sua) filho(a) foi escolhido(a) a participar do estudo porque está realizando tratamento fonoaudiológico para transtornos de linguagem e, assim, está sendo convidado a participar do estudo compondo um dos grupos clínicos.
Procedimento do Estudo
A participação de seu(sua) filho(a) consistirá, tão somente, na realização de 4 testes diferentes: um de vocabulário receptivo, um de memória, um de nomeação de figuras e outro de repetição de palavras inventadas.
Todos esses testes são questionários ou tarefas que o(a) seu(sua) filho(a) deverá realizar, não constituindo, assim, em nenhum procedimento invasivo.
Os testes serão aplicados de forma sequencial, respeitando a ordem descrita acima, em apenas
Anexos 130
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
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uma sessão. A duração de cada teste é de aproximadamente 10 min, sendo necessário, no total, 40 min para a participação completa na pesquisa.
Posteriormente, os resultados dos testes serão analisados em conjunto com os de outras crianças, não sendo possível a realização de análises individuais.
Riscos Potenciais, Efeitos Colaterais e Desconforto
A participação do(a) seu (sua) filho(a) nesta pesquisa é voluntária e esta avaliação clínica resumida não determinará qualquer risco para o mesmo.
Benefícios para o participante
Não há benefício direto para o participante desse estudo. Trata-se de estudo quantitativo testando a hipótese de que os déficits fonológicos apresentados por crianças com o diagnóstico de DISLEXIA, DESVIO FONOLÓGICO ou DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM possuem naturezas subjacentes distintas.
Somente no final do estudo poderemos concluir a presença de algum benefício para a crianças com alterações de linguagem. Porém, os resultados obtidos com este estudo poderão ajudar a pensar em formas de intervenção terapêutica distintas para essas crianças.
Compensação
Seu(sua) filho(a) não receberá nenhuma compensação para participar desta pesquisa e também não terá nenhuma despesa adicional.
Participação Voluntária/Desistência do Estudo
A participação do(a) seu (sua) filho(a) neste estudo é totalmente voluntária, ou seja, ele somente participa se quiser.
A não participação no estudo não implicará em nenhuma consequência para o mesmo.
Novas Informações
Quaisquer novas informações que possam afetar a sua segurança ou influenciar na sua decisão de continuar a participação no estudo serão fornecidas a você por escrito. Se você decidir continuar neste estudo, terá que assinar um novo (revisado) Termo de Consentimento informado para documentar seu conhecimento sobre novas informações.
Em Caso de Danos Relacionados à Pesquisa
Em caso de dano pessoal, diretamente causado pelos procedimentos ou tratamentos propostos neste estudo (nexo causal comprovado), o participante tem direito a tratamento médico na Instituição, bem como às indenizações legalmente estabelecidas.
Utilização de Registros Médicos e Confidencialidade
Todas as informações colhidas e os resultados dos testes serão analisados em caráter estritamente científico, mantendo-se a confidencialidade (segredo) do paciente a todo o momento, ou seja, em nenhum momento os dados que o identifique serão divulgados, a menos que seja exigido por lei. Os registros médicos que trazem a sua identificação e esse termo de consentimento assinado poderão ser inspecionados por agências reguladoras e pelo CEP.
Os resultados desta pesquisa poderão ser apresentados em reuniões ou publicações, contudo, sua identidade não será revelada nessas apresentações.
Quem Devo Entrar em Contato em Caso de Dúvida
Em qualquer etapa do estudo você terá acesso aos profissionais responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. A responsável pelo estudo nesta instituição é a Fga. Clara Oliveira Esteves que poderá ser encontrada na Faculdade de Letras da UFRJ ou no seguinte
Anexos 131
Conhecimento fonológico em crianças com Dislexia, Desvio Fonológico e DEL: uma análise multirrepresentacional da linguagem
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telefone: (71) 9142-6857
Declaração de Consentimento
Concordo em participar do estudo intitulado "_____". O conhecimento fonológico de crianças com dislexia, desvio fonológico e distúrbio específico de linguagem: uma análise multirrepresentacional
Li e entendi o documento de consentimento e o objetivo do estudo, bem como seus possíveis benefícios e riscos. Tive oportunidade de perguntar sobre o estudo e todas as mminhas dúvidas foram esclarecidas. Entendo que estou livre para decidir não participar desta pesquisa. Entendo que ao assinar este documento, não estou abdicando de nenhum de meus direitos legais.
Eu autorizo a utilização dos meus registros médicos (prontuários médico) pelo pesquisador, autoridades regulatórias e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição.
Nome do Sujeito de Pesquisa (Letra de Forma ou à Máquina)
Nome do Representante Legal do Sujeito de Pesquisa (Letra de Forma ou à Máquina)
Data
Assinatura do Representante Legal do Sujeito de Pesquisa
Nome do Pesquisador Principal (Letra de Forma ou à Máquina)
Data
Assinatura e Carimbo do Pesquisador Principal
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