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231 Persp. Teol. 38 (2006) 231-250 O CONCÍLIO VATICANO II OU A IGREJA EM CONTÍNUO AGGIORNAMENTO* Mario de França Miranda SJ RESUMO: O artigo examina textos do Concílio Vaticano II na perspectiva do diálogo e do aggiornamento, como chave principal de leitura do mesmo. Os três temas estudados, a saber, Igreja e ecumenismo, Igreja e diálogo inter-religioso e Igreja e cultura, demonstram que a atualização permanente da Igreja passa neces- sariamente pelo diálogo com as comunidades evangélicas, com as religiões não cristãs e com a cultura do tempo. Para tal se expõe gradualmente ao longo do artigo como isto aconteceu durante o evento conciliar, no período pós-conciliar e como repercutiu em nosso país. PALAVRAS-CHAVE: Vaticano II; aggiornamento; ecumenismo; religiões não cris- tãs; cultura. ABSTRACT: The article examines texts of the Second Vatican Council in the perspective of dialogue and of updating as principle keys to its reading. The three themes studied are the Church and ecumenism, the Church and interreligious dialogue, and the Church and culture. The themes demonstrate that the permanent updating of the Church occurs necessarily through dialogue with the evangelical communities, with the non-christian religions and with the culture in its temporal context. For this purpose it is explained gradually along the course of the article how this happened during the Council, in the post-conciliar period and how it has reverberated in our country. KEY-WORDS: Second Vatican Council; Aggiornamento; Ecumenism; Non-christian religions; Culture. * Texto de uma palestra dada no “Seminário Comemorativo dos 40 anos do Concílio Vaticano II”, ocorrido em Itaici, de 08 a 10 de fevereiro de 2006.

O Concílio Vaticano II ou a Igreja Em Contínuo Aggiornamento

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O artigo examina textos do Concílio Vaticano II na perspectiva dodiálogo e do aggiornamento, como chave principal de leitura do mesmo. Os três temas estudados, a saber, Igreja e ecumenismo, Igreja e diálogo inter-religioso e Igreja e cultura, demonstram que a atualização permanente da Igreja passa necessariamente pelo diálogo com as comunidades evangélicas, com as religiões não cristãs e com a cultura do tempo. Para tal se expõe gradualmente ao longo do artigo como isto aconteceu durante o evento conciliar, no período pós-conciliar e como repercutiu em nosso país.

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    Persp. Teol. 38 (2006) 231-250

    O CONCLIO VATICANO II OU A IGREJAEM CONTNUO AGGIORNAMENTO*

    Mario de Frana Miranda SJ

    RESUMO: O artigo examina textos do Conclio Vaticano II na perspectiva dodilogo e do aggiornamento, como chave principal de leitura do mesmo. Os trstemas estudados, a saber, Igreja e ecumenismo, Igreja e dilogo inter-religioso eIgreja e cultura, demonstram que a atualizao permanente da Igreja passa neces-sariamente pelo dilogo com as comunidades evanglicas, com as religies nocrists e com a cultura do tempo. Para tal se expe gradualmente ao longo doartigo como isto aconteceu durante o evento conciliar, no perodo ps-conciliar ecomo repercutiu em nosso pas.

    PALAVRAS-CHAVE: Vaticano II; aggiornamento; ecumenismo; religies no cris-ts; cultura.

    ABSTRACT: The article examines texts of the Second Vatican Council in theperspective of dialogue and of updating as principle keys to its reading. The threethemes studied are the Church and ecumenism, the Church and interreligiousdialogue, and the Church and culture. The themes demonstrate that the permanentupdating of the Church occurs necessarily through dialogue with the evangelicalcommunities, with the non-christian religions and with the culture in its temporalcontext. For this purpose it is explained gradually along the course of the articlehow this happened during the Council, in the post-conciliar period and how it hasreverberated in our country.

    KEY-WORDS: Second Vatican Council; Aggiornamento; Ecumenism; Non-christianreligions; Culture.

    * Texto de uma palestra dada no Seminrio Comemorativo dos 40 anos do ConclioVaticano II, ocorrido em Itaici, de 08 a 10 de fevereiro de 2006.

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    I. O sonho de Joo XXIII: Aggiornamento e dilogo

    Areflexo que me foi pedida, por abranger temas to diversos comoecumenismo, dilogo inter-religioso e cultura no Conclio Vaticano II,requer de incio uma chave interpretativa que permita fazer emergir o quetodos eles tm de comum. Pois s assim chegaremos raiz de onde bro-taram, conheceremos o contexto onde se situam e ganharemos maior com-preenso dos mesmos. Um objetivo fcil de se exprimir, mas tremenda-mente difcil de se concretizar. Pois buscar uma perspectiva de leituradestes temas, enquanto apresentados pelo Conclio Vaticano II, implicanecessariamente entrar no complexo debate sobre a correta interpretaodeste mesmo Conclio, sobre o que foi sua recepo real com seus acertose desvios, sobre a fidelidade ou no a seu esprito. Naturalmente estadiscusso extrapola a inteno de nosso estudo, tendo sido tratada commaestria e percia noutra conferncia deste seminrio.

    Mas o problema de encontrar uma perspectiva de fundo que elimine deantemo a impresso de tratarmos de temas disparatados e justapostos,sem qualquer conexo interna, continua nos urgindo a pensar numa sada.Vamos nos deixar guiar pelo que poderamos chamar de o sonho de JooXXIII. Duas palavras sintetizam o que pretendia com o Conclio:aggiornamento e dilogo, como bem observou um insigne participante domesmo1. Duas realidades que se completam, mas que tambm se implicammutuamente. Elas nos ajudaro a descobrir em temas aparentemente todiversos como os nossos o mesmo dinamismo de fundo, embora se mani-festando em configuraes diferentes.

    Aggiornamento significa atualizao, renovao, reforma mesmo. Pressu-pe primeiramente um descompasso da Igreja com a sociedade envolvente,uma dificuldade mais experimentada e sentida do que formulada de pro-clamar na cultura de ento a mensagem evanglica, uma convico firmedo fim de uma configurao histrica do catolicismo2. De fato, os limites daera ps-tridentina se faziam sentir. O Conclio de Trento teve o grandemrito de represar a ameaa de fragmentao da Igreja. Mas representoutambm um catolicismo romano afastado das outras tradies crists doocidente e do oriente, entrincheirado diante da cultura moderna, e avessoao contato com outras culturas nativas3. Para Joo XXIII no se tratava,portanto, de corrigir erros doutrinais ou morais, como acontecera nos

    1 A. LORSCHEIDER, Introduo, in P.S. LOPES GONALVES / V.I. BOMBONATTO(orgs.), Conclio Vaticano II. Anlise e prospectivas, S. Paulo: Paulinas, 2004, p. 6.2 G. ALBERIGO, La condition chrtienne aprs Vatican II, in G. ALBERIGO / J.-P.JOSSUA (orgs.), La rception de Vatican II, Paris: Cerf, 1985, p. 28.3 Ibidem, p. 26.

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    Conclios Ecumnicos anteriores. Fazia-se mister atualizar a mensagem dasalvao procurando exprimi-la para o mundo moderno. Aqui se situa aoriginalidade do Conclio Vaticano II4.

    Tarefa difcil que exige srio discernimento para no sacrificar elementossubstanciais da f crist, como j alertara o prprio pontfice em sua alocuoGaudet Mater Ecclesia de 11 de outubro de 19625, embora esta distinotenha se mostrado de maior complexidade nos anos seguintes. Pois, o carterpastoral da doutrina dificulta a distino clssica entre doutrina e discipli-na ou dogma e heresia. Trata-se de um adjetivo que engloba doutrina edisciplina, e vai alm. Pois ele indica que o destinatrio da mensagemevanglica deve ser levado a srio para poder captar esta mensagem. Oque implica que seu contexto histrico e cultural seja respeitado, resultan-do da uma configurao atualizada da verdade revelada6.

    a partir daqui que se pode entender a afirmao de alguns de que este um Conclio de transio7. No no sentido de uma desvalorizao de seutexto em nome do esprito que o animava, como se pudesse chegar a esteprescindindo daquele. Mas enquanto indica aos vindouros que a tarefa deatualizao prossegue e deve prosseguir para que a Igreja continue sendoo sacramento da salvao de Jesus Cristo ao longo da histria. Mesmo queela experimente temporariamente certo desequilbrio, como j aconteceucom Conclios anteriores. O aggiornamento e a pastoralidade influencia-ram fortemente os Padres conciliares, mas tiveram dificuldade em seremtraduzidos e expressos nos textos, criando assim um hiato entre o eventoconciliar e as decises finais da assemblia8. J foi sugerida mesmo a dis-tino entre o texto do Conclio, a experincia que tiveram seus participan-tes e o evento conciliar, que se constitui como tal somente no juzo que delefaro as geraes futuras9. No nos compete entrar aqui no conflito deinterpretaes que marcou o perodo ps-conciliar10.

    4 F. CATO, O perfil distintivo do Vaticano II: recepo e interpretao, in LOPESGONALVES / BOMBONATTO, op. cit., p. 101.5 Assim se exprime Joo XXIII no texto original em italiano: Altra la sostanza dellanticadottrina del depositum fidei, ed altra la formulazione del suo rivestimento: ed diquesto che devesi con pazienza se occorre tener gran conto, tutto misurando nelleforme e proporzioni di un magistero a carattere prevalentemente pastorale (n.15). VerA. RAMREZ, A los cuarenta aos de la inauguracin del Concilio Vaticano II, CuestionesTeolgicas 30 (2003) 29-55, aqui p. 49.6 Ch. THEOBALD, As opes teolgicas do Conclio Vaticano II: em busca de um prin-cpio interno de interpretao, Concilium (2005) 115-138, aqui p. 128.7 H.J. POTTMEYER, Vers une nouvelle phase de rception de Vatican II, in ALBERIGO/ JOSSUA, op. cit., p. 52.8 G. ALBERIGO, O Vaticano II e sua histria, Concilium (2005) 7-19, aqui p. 17.9 J. KOMONCHAK, Vatican II as an event, Theology Digest 46 (1999) 337-352.10 Para uma resenha atualizada, ver A. MELLONI, O que foi o Vaticano II? Breve guiapara os juzos sobre o Conclio, Concilium (2005) 34-59.

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    A outra palavra-chave para uma correta compreenso do Conclio VaticanoII o termo dilogo. Uma realidade intimamente conexa e exigida peloaggiornamento e pela pastoralidade. Para que a sociedade perceba o sig-nificado profundo, a dimenso salvfica, bem como a razo de ser da Igre-ja, necessrio que a prpria Igreja conhea bem seu pblico. Da se imporo dilogo como instrumento deste conhecimento. Ao entrar em dilogocom seu interlocutor a Igreja no apenas fala, mas tambm escuta, apren-de, se repensa, se questiona, se modifica, se atualiza. Sua autocompreensose enriquece, se renova, se faz mais transparente em sua instituio. Odilogo uma realidade profunda e exigente que leva a srio a histria, asubjetividade, a sede de comunho11. Mas foi exatamente isso que quisJoo XXIII para que a Igreja realizasse sua misso salvfica.

    O dilogo rompe com a idia de uma Igreja voltada para si mesma, bas-tando-se a si mesma, identificando a verdade revelada com seus pronun-ciamentos e normas, sem ter em conta a origem histrica e contextualizadados mesmos. O dilogo recoloca em primeiro plano o sentido ltimo dainstituio eclesial como sacramento da salvao para o mundo, fazendo-a entrar seriamente no desenrolar histrico da humanidade, participar daaventura humana, conviver em sociedade e construir o futuro. O dilogopara fora ganha credibilidade atravs do dilogo no interior da prpriaIgreja, pois tambm em seu seio a subjetividade, a historicidade e a comu-nidade devem poder emergir e plasmar sua prpria fisionomia.

    Os textos deste Conclio confirmam saciedade como estava presente nosparticipantes o imperativo do dilogo. Este atinge todos os setores e ativi-dades, pessoas e obras, como nos atestam os vrios documentos. Seja den-tro da Igreja, estimando e reconhecendo as legtimas diversidades (GS 92),seja dos bispos com os sacerdotes (CD 28) ou dos sacerdotes com os leigos(AA 25), ou mesmo dos leigos com outros leigos (AA 31; GS 43). Estedilogo se d tambm com a sociedade (GS 92), devendo ser realizado portodos na Igreja: bispos (GS 43; CD 13), sacerdotes (PO 12; 19), seminaristas(OT 19) e leigos (AA 14). Ele expressamente recomendado nos pases demisso (AG 11), no trato com os irmos separados (UR 11; 19), com asoutras religies (NA 2) ou culturas (AG 34) e at com os incrdulos emvista da construo da sociedade (GS 21).

    Aggiornamento e dilogo constituem, portanto, o eixo em torno do qual ostemas do ecumenismo, das religies e das culturas iro se estruturar edeixar assim aflorar a unidade de fundo que os une. Depois do que vimos evidente que no estaremos violentando ou deturpando o sentido genu-no dos mesmos. Pelo contrrio. Pois exatamente desta raiz que estes

    11 A. LORSCHEIDER, Linhas mestras do Conclio Vaticano II, in A. LORSCHEIDERet alii, Vaticano II 40 anos depois, S. Paulo: Paulus, 2005, pp. 41-43.

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    temas brotaram, foram entendidos pelos Padres conciliares e conseguiramsuas expresses12. Esta ser a perspectiva de fundo da nossa reflexo quesempre nos dever acompanhar, seja ao examinarmos o contexto do pr-prio Conclio, seja ao estudarmos o tempo ps-conciliar, seja ainda ao con-siderarmos sua repercusso em nossa realidade. Esta trplice seqnciaser examinada em cada um dos temas: aggiornamento e dilogo com osirmos separados, com as outras religies e com as culturas.

    II. O dilogo ecumnico

    O decreto Unitatis Redintegratio do Conclio Vaticano II representa umarealizao concreta do desejo de Joo XXIII. No iremos entrar em todos osnumerosos e por vezes disputados aspectos do mesmo. Reconhecemos, istosim, neste texto um passo novo13 e corajoso da Igreja, embora signifique oincio de uma caminhada que deve prosseguir. De fato, o que pretende odocumento promover a reintegrao da unidade (UR 1) atravs do di-logo com os cristos no catlicos romanos. Entretanto, este dilogo nodeixar de repercutir no interior da prpria Igreja Catlica, levando-a auma renovao de cunho espiritual e institucional na medida em que elaacolhe os elementos eclesiais presentes em outras Igrejas e comunidadescrists14. Portanto, dilogo e aggiornamento caminham juntos, implicando-se mutuamente. Esta ser a linha condutora de nossa reflexo.

    Antes de tudo um dado aqui fundamental. Trata-se do reconhecimentopor parte da Igreja do assim chamado movimento ecumnico, que surgiue se desenvolveu fora dela e que no passado foi olhado com reservas. Elao faz ao afirmar ser este movimento deslanchado pelo prprio EspritoSanto. E tambm, por graa do Esprito Santo, surgiu, entre nossos irmosseparados, um movimento sempre mais amplo para restaurar a unidadede todos os cristos (UR 1). Ela capta deste modo a vontade de Deusatravs da leitura de um dos sinais dos tempos.

    Pressuposto decisivo para a entrada da Igreja no dilogo ecumnico foi acompreenso de si prpria como de uma comunho. Pois enquanto seconsiderava juridicamente uma sociedade perfeita, tambm se identificava

    12 Na mesma linha ver J. RUIZ DE GOPEGUI, O Conclio Vaticano II quarenta anosdepois, Perspectiva Teolgica 37 (2005) 11-30.13 Dezesseis anos antes o Santo Ofcio ainda proibia a participao de catlicos emquaisquer reunies de carter ecumnico! Ver P.C. BARROS, A eclesiologia do VaticanoII e o ecumenismo, in J. BIZON / R. DRUBI (orgs.), A unidade na diversidade, S. Paulo:Loyola, 2004, p. 98.14 F. CATO, O ecumenismo catlico: prdromos, formulao e prospectiva de 1964 a2004, in BIZON / DRUBI, op. cit., p. 69.

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    sem mais com a Igreja de Jesus Cristo, de tal modo que fora de si s haviaum vazio eclesial. Mas enquanto se descreve a si prpria constituindo-sede uma pluralidade de elementos (Palavra de Deus, acolhimento na f,ao do Esprito Santo, sacramentos, ministrio ordenado), sem identificara Igreja de Cristo consigo mesma15, abre ela a possibilidade de que algunsdesses elementos possam se encontrar fora dela. Enquanto tais elementosso constitutivos da Igreja, so eles elementos eclesiais e justificam a deno-minao de Igrejas ou de comunidades eclesiais para alm da Igreja Cat-lica. Deste modo se reconhece poder se encontrar a Igreja de Cristo tam-bm fora da Igreja Catlica, na medida em que elas possuam e atualizemos componentes eclesiais. Este Decreto retoma, assim, o que vem afirmadona Constituio Dogmtica Lumen Gentium com o j famoso subsistit inEcclesia Catholica (LG 8)16. Sabemos mesmo que Paulo VI promulgou nomesmo dia a Lumen Gentium e a Unitatis Redintegratio, observando quea doutrina sobre a Igreja deveria ser interpretada luz das ulteriores ex-plicaes presentes no Decreto sobre o ecumenismo17.

    Entre os elementos eclesiais presentes nas comunidades e Igrejas em ques-to encontram-se em primeiro lugar a f em Jesus Cristo e sua expressosacramental no batismo (UR 3). Fato importante diante de uma sociedadesecularizada e tambm devido proximidade das outras grandes religies,que confere a todos os fiis batizados uma visvel identidade de fundo.Pois justificados pela f no batismo esto incorporados a Cristo, ou, comoutras palavras, fazem parte do Corpo de Cristo. Outros elementos presen-tes fora da Igreja Catlica so tambm citados no texto conciliar: a Palavraescrita de Deus, a vida da graa, a f, a esperana, a caridade e outros donsinteriores do Esprito Santo. E o pargrafo termina incisivamente: Tudoisso, que provm de Cristo e a Cristo conduz, pertence por direito nicaIgreja de Cristo (UR 3).

    Da serem as Comunidades e Igrejas separadas reconhecidas explicitamen-te como instituies salvficas que mediatizam a graa de Deus para seusmembros. A distino feita no Decreto entre elas e a Igreja Catlica dizrespeito plenitude dos meios salvficos queridos por Deus para sua Igre-ja. Plenitude, portanto, no significa perfeio das instituies eclesiais,nem que haja uma perfeita correspondncia entre o institucional e o espi-ritual na Igreja Catlica. Apenas quer afirmar que a totalidade dos meiosnela se encontra. Naturalmente os Padres conciliares no ignoravam que

    15 O texto conciliar em momento algum ao descrever a Igreja de Cristo a identifica coma Igreja Catlica, embora os elementos citados, sobretudo a meno aos sucessores dePedro confirme que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Catlica (UR 2).16 Para uma compreenso mais ampla ver o que escrevemos em Unidad y Unicidad dela Iglesia. Iglesia, Reino de Dios y Reino de Cristo, in Comentrio teolgico a la declaracinDominus Jesus, Bogot, 2001, pp. 187-225, aqui pp. 196-201.17 AAS 56 (1964) 1012s.

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    mesmo no mbito visvel, sacramental, ou institucional reinavam discre-pncias entre a compreenso catlica e as demais. De qualquer modo, coma idia de plenitude e de no-plenitude na incorporao Igreja de Cristoest intimamente conexa a afirmao de uma certa comunho, embora noperfeita, com a Igreja Catlica (UR 3). Outra conseqncia a concepode uma pertena ao Povo de Deus que se apresenta diversificada18. Da adistino entre Igrejas (ortodoxos) e Igrejas e comunidades eclesiais (insti-tuies nascidas na Reforma), que se encontra presente no texto conciliar19.

    Do que vimos podemos concluir se encontrarem nas demais Igrejas eComunidades Eclesiais elementos da Igreja de Jesus Cristo. Como diz oprprio decreto: mister que os catlicos reconheam, com alegria, eestimem os bens verdadeiramente cristos, oriundos de um patrimniocomum, que se encontram entre os irmos separados de ns. E maisadiante: Tudo o que a graa do Esprito Santo realiza nos irmos separa-dos pode contribuir tambm para a nossa edificao (UR 4). Deste modoelas dispem do que oferecer Igreja Catlica. Mas pode esta ltima quedispe da plenitude dos meios salvficos, ainda receber algo de fora? Oumais claramente, pode a Igreja Catlica mudar no dilogo ecumnico?

    O texto j comea a responder a tal questo ao chamar a ateno para ocarter peregrinante da Igreja, que na esperana caminha para a ptria (UR2). Este povo, enquanto peregrina c na terra, cresce incessantemente emCristo (UR 3). Como peregrina, a Igreja est imersa na histria, partici-pando inevitavelmente das limitaes e insuficincias de qualquer realida-de histrica. O que vem explicitamente mencionado pelo texto conciliarprimeiro com relao vivncia crist dos catlicos. Examinem, com es-prito sincero e atento, o que dentro da prpria famlia catlica deve serrenovado e realizado, para que sua vida d um testemunho mais fiel eluminoso da doutrina e dos ensinamentos recebidos de Cristo atravs dosApstolos (UR 4). Caso contrrio, a face da Igreja oferece aos olhos dosirmos de ns separados e do mundo inteiro um esplendor menor (UR 4).

    Em seguida com relao ao prprio modo de entender a doutrina cristque pode cair em unilateralidades ou mesmo omisses por contingnciashistricas. A experincia provinda da participao no dilogo ecumnicorevelou tais insuficincias. Estas ajudaram a aprimorar certas compreen-ses e nfases parciais na exposio doutrinal e na vida da Igreja Catlica.Poderamos citar a ao do Esprito Santo, o lugar proeminente da Palavrade Deus, o sacerdcio comum dos fiis, o carter comunitrio da liturgia,sem pretenso de sermos completos20. Como exprime o Decreto: Tudo o

    18 J. FEINER, Kommentar zum Dekret ueber den Oekumenismus, in LThK. Das ZweiteVatikanische Konzil II, Freiburg: Herder, 1967, p. 57.19 Ibidem, p. 55s.20 Ibidem, p. 68.

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    que verdadeiramente cristo jamais se ope aos bens genunos da f, massempre pode fazer com que mais se compreenda o prprio mistrio deCristo e da Igreja (UR 4).

    Mas tambm do ponto de vista institucional pode a Igreja sofrer mudan-as, pois enquanto instituio humana e terrena necessita de contnua re-forma (UR 6). Alm desta afirmao mais bsica o Decreto reconhece queos elementos constitutivos da Igreja de provenincia divina se concretizamnecessariamente no interior da histria dentro de contextos determinadose situaes existenciais particulares. As circunstncias das coisas e dostempos no se limitam ao mbito moral, mas tambm ao da doutrina e dadisciplina, implicando assim uma reforma tambm institucional21. A con-figurao histrica da Igreja reflete inevitavelmente uma determinada po-ca, cultura, situao existencial. Assim o Decreto justifica a legitimidade datradio oriental: A herana deixada pelos Apstolos foi aceita de formase modos diversos e, desde os primrdios da Igreja, c e l, foi explicada devrias maneiras, tambm por causa da diversidade de gnio e condies devida (UR 14).

    A unidade da Igreja de Cristo, meta do movimento ecumnico, no consis-te num simples voltar Igreja Catlica, mas numa integrao cada vezmaior de todas as Igrejas e Comunidades Eclesiais que realize mais plena-mente e manifeste mais perfeitamente a Igreja de Jesus Cristo (UR 4). Mesmosem terem atingido a unidade podem as Igrejas e Comunidades Eclesiaiscolaborar mais efetivamente para o bem comum (UR 4) na obedincia conscincia crist, pois sejam os problemas e tarefas, sejam os imperativosticos decorrentes da f, so afinal comuns a todas. Naturalmente umamaior unidade do prprio cristianismo reverter em sua maior credibilidadeem face das outras religies.

    Dentro da perspectiva adotada neste estudo este Decreto sobre oEcumenismo confirma nossa hiptese inicial da ntima conexo entre di-logo e aggiornamento. Este ltimo mais profundo do que uma simplesatualizao ou modernizao da Igreja. O Decreto fala de renovao(renovatio) e de reforma (reformatio) sem diferenciar muito uma da outra,embora tenham conotao diversa no uso da tradio e do magistrio.Reforma implica reconstituio semelhana de uma era anterior, defor-mada pelo pecado humano, como a entendeu o sculo XVI deixando-seiluminar pela poca patrstica. J renovao concerne uma atitude de fun-do, que busca mais fiel e profundamente viver o Evangelho22. Ambas asconotaes esto presentes no termo aggiornamento. Ao entrar no dilogoecumnico a Igreja Catlica entrava inevitavelmente numa poca de reno-

    21 Ibidem, p. 72.22 Ibidem, p. 71 nota 23.

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    vao e de reforma. Pois no dilogo ecumnico todos examinam sua fide-lidade vontade de Cristo acerca da Igreja e, na medida do necessrio,iniciam vigorosamente o trabalho de renovao e de reforma (UR 4).

    O dilogo ecumnico vivido seriamente pressupe um adequado conheci-mento do interlocutor e de sua Igreja ou Comunidade Eclesial (UR 4). Nareflexo teolgica sobre a revelao, os dados provindos de fora tambmdevero ser considerados pelo telogo, constituindo-se mesmo como umnovo horizonte de compreenso, como um novo paradigma para a com-preenso da f. o que j foi chamado de hermenutica da unidade23.Naturalmente esta nova perspectiva, que j comea a dar frutos24, nodeixar de enriquecer a Igreja Catlica ampliando sua catolicidade e favo-recendo a unidade almejada.

    III. O dilogo inter-religioso

    O objetivo pastoral do Conclio Vaticano II, j anteriormente mencionadoe explicitado, aparece claramente na nova atitude diante das religies nocrists. No passado, em nome da verdade crist, estas religies eram vistaspelo cristianismo como realidades inferiores, cheias de falsidades e dege-neraes, que deveriam desaparecer para que se impusesse a nica verda-de da f crist25. J o texto da Declarao Nostra Aetate pretende conhecer,compreender, dialogar e cooperar com as demais religies num clima derespeito e de estima recprocas, excluindo qualquer tipo de discriminaoentre os seres humanos com base em raa, classe social ou religio (NA 5).No s se considera, sem depreciao, os membros das outras religies,mas tambm as mesmas enquanto tais. Este fato significa sem dvida umprogresso26.

    O fundamento teolgico aparece explcito: Todos os povos, com efeito,constituem uma s comunidade. Tm uma origem comum, uma vez queDeus fez todo o gnero humano habitar a face da terra. Tm igualmenteum nico fim comum, Deus, cuja providncia, testemunhos de bondade, eplanos de salvao, abarcam a todos (NA 1). Alm disso, esta Declarao,

    23 R. GIRAULT, La rception de lOecumenisme, in ALBERIGO / JOSSUA, op. cit., p.213.24 Ver J.M.R. TILLARD, Leucharistie sacrement de lglise communion, in B. LAURET/ F. REFOUL (orgs.), Initiation la pratique de la thologie III, Paris: Cerf, 1993, pp.437-463; B. SESBOU, Pour une thologie oecumnique, Paris: Cerf, 1990.25 A.-M. HENRY, Liminaire, in A.-M. HENRY (org.), Les relations de lglise avec lesreligions non chrtiennes. Dclaration Nostra Aetate, Paris: Cerf, 1966, p. 13.26 F. TEIXEIRA, O Conclio Vaticano II e o dilogo inter-religioso, in LOPES GONAL-VES / BOMBONATTO (orgs.), op. cit., p. 288.

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    um dos ltimos textos do Conclio a ser confeccionado, recebeu importan-tes contribuies teolgicas de textos precedentes, como a da ao univer-sal da graa (GS 22; LG 16).

    Tambm ele vem marcado por um otimismo salvfico presente em outrostextos conciliares que dizem respeito salvao dos no cristos. O que nopassado aparecia apenas como uma possibilidade baseada na misericrdiadivina, vem neste Conclio incisivamente afirmado. Com efeito, tendoCristo morrido por todos e sendo uma s a vocao ltima do homem, isto, divina, devemos admitir que o Esprito Santo oferece a todos a possibi-lidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistriopascal (GS 22). Mais cautelosos se mostram os Padres conciliares quandotratam de avaliar teologicamente as religies. Eles reconhecem em seusritos valores (LG 17; AG 9), em suas tradies preciosos elementos religi-osos e humanos (GS 92), ou as sementes do Verbo a ocultas (AG 11), ouainda a presena de verdade e da graa nas naes como secreta presenade Deus (AG 9).

    Estas afirmaes positivas se encontram de certo modo equilibradas pelaobservao freqentemente repetida de que tais componentes religiososdevem ser sanados, elevados e aperfeioados (LG 17). Pois a Igreja aoassumi-los os purifica, fortifica e eleva (LG 13), liberta-os dos contgiosmalignos (AG 9). E mais taxativamente: Ao mesmo tempo luz do Evan-gelho procurem iluminar, libertar e submeter essas riquezas ao domnio deDeus Salvador (AG 11). Pois a Declarao Nostra Aetate reconhece que osmodos de agir e de viver, os preceitos e as doutrinas das demais religiesestejam em muitos pontos em desacordo com a f crist (NA 2).

    Contudo, o posicionamento positivo do Conclio em face das outras religi-es deixa sem resposta perguntas j presentes na mente de vrios partici-pantes, como, por exemplo, o significado das mesmas no desgnio salvficode Deus. No mesmo sentido permanece obscura a problemtica da verda-de da religio crist em face das outras religies ou a questo dos critriospara discernir o que bom e verdadeiro nas mesmas27. S valeriam crit-rios cristos? Mais sria a questo sobre a capacidade salvfica de taisreligies. So elas mediaes de salvao para seus membros?28

    Porm o fato de no terem abordado questes teolgicas sobre o valor e aautonomia salvfica das demais religies, tema que ocupar os estudiososnas dcadas posteriores, no impediu que os Padres conciliares recomen-dassem o dilogo com as religies no crists (GS 92). O dilogo facilitar

    27 D. RACCA, Il dialogo interreligioso nel Concilio Vaticano II: aperture e limiti, Rassegnadi Teologia 38 (1997) 637-663, aqui p. 662.28 J. DUPUIS, Vers une thologie chrtienne du pluralisme religieux, Paris: Cerf, 1997,p. 243.

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    o conhecimento mtuo, a descoberta de valores comuns, a colaborao emvista da paz e da justia no mundo (AG 11; 34). O Conclio exorta oscatlicos no s a reconhecer tais valores, mas ainda a manter e desenvol-ver os bens espirituais e morais como tambm os valores scio-culturaispresentes nas outras religies (NA 2). Por outro lado, o Conclio deixa emaberto a questo sobre se tais bens possam ou no ser encontrados tambmna Igreja29. Pois dialogar implica no s dar, mas tambm receber. Teria ocristianismo algo a receber das outras religies? A est uma questo queno foi respondida no Vaticano II.

    De qualquer modo, entretanto, o dilogo inter-religioso representa para oConclio no s um componente essencial para a evangelizao, como tam-bm no deixar de repercutir para dentro do cristianismo. Pois conhecere respeitar o diferente, sem procurar destru-lo como uma ameaa pr-pria identidade, j implica se ver questionado nas prprias convices,revendo-as luz dos dados provindos de fora. o que j foi caracterizadocomo o dilogo intra-religioso30, anterior mesmo ao dilogo inter-religiosotal como o conhecemos.

    IV. O dilogo com a cultura

    Certamente o fator mais importante que levou Joo XXIII a enfrentar odesafio do aggiornamento para a Igreja foi o hiato, construdo ao longo desculos, entre Igreja e sociedade e mais concretamente entre Igreja e cultu-ra hodierna31. Esta preocupao esteve presente tambm entre os Padresconciliares, como nos atestam os numerosos textos sobre esta questo,encontrados em diversos documentos. O Conclio Vaticano II, mesmo semapresentar uma compreenso da relao f e cultura, tal como a temoshoje, representa uma tomada de conscincia indita na histria da Igreja,que ir desencadear todo um processo de reflexo e de ao nos anosposteriores.

    Para demonstrar a importncia central da cultura na vida humana ele seafasta de uma concepo elitista da mesma, assumindo uma perspectivade cunho antropolgico. A cultura desenvolve as qualidades corpreas eespirituais do ser humano, subjuga a natureza, constri a vida social, ex-pressa conquistas histricas. A cultura manifesta como um grupo humanose entende, se organiza, se desenvolve num determinado contexto social

    29 H. MAURIER, Lecture de la dclaration par un missionarie dAfrique, in HENRY(org.), op. cit., p.133s.30 R. PANIKKAR, The Intra-Religious Dialogue, New York: Paulist Press, 1978.31 A. DONDEYNE, Lessor de la culture, in Y. CONGAR / M. PEUCHMARD (orgs.),Lglise dans le monde de ce temps. Tome II, Paris: Cerf, 1967, p. 458.

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    (GS 53). Este fato ocasiona no s uma pluralidade de culturas, mas tam-bm mudanas contnuas nas mesmas ao longo da histria (GS 54). Asmudanas culturais dos ltimos tempos no passaram desapercebidas aosparticipantes do Conclio, como atesta a descrio que delas faz um textoda Gaudium et Spes, onde j se vislumbra o que hoje chamamos deglobalizao (GS 54). Tambm a dificuldade de uma sntese do conheci-mento pela enorme produo de dados culturais no deixou de ser obser-vada pelos Padres conciliares (GS 61).

    A cultura, assim como as demais realidades humanas, possui um valorprprio, est a servio da vocao integral do homem, e tambm se viuatingida pelo pecado (AA 7). Por outro lado, ela goza de liberdade para sedesenvolver e de autonomia para atuar, desde que respeite os direitos dapessoa e da comunidade humana (GS 59). Na medida em que no satisfazesta condio, se tornando um obstculo realizao ltima do ser huma-no, deve a cultura sofrer correes e aperfeioamentos (LG 17; AA 7).

    A ntima relao entre f e cultura tem seu fundamento teolgico com aprpria encarnao de Cristo nas condies sociais e culturais do contex-to onde viveu (AG 10). Observa-se tambm que Deus sempre se reveloude acordo com a cultura prpria de diversas pocas (GS 58). Igualmentea Igreja sempre se serviu das culturas na proclamao da mensagem evan-glica, na celebrao litrgica e na vida da comunidade eclesial, emborasem se identificar com cultura alguma (GS 44; 58). Pois h uma distinoentre o depsito da f e o modo de apresent-la, mantendo-se a identidadeda mensagem crist (GS 62), embora esta afirmao aparea hoje maiscomplexa do que parecia ento. De qualquer modo a inevitvel expressoda f sempre num determinado contexto scio-cultural exige da reflexoteolgica uma atualizao permanente (GS 62), uma formao presbiteralconforme os costumes de cada povo (AG 16) e cursos e congressosadaptados s condies de cada territrio (PO 19). Tambm os leigosdevem manifestar sua vida crist no mbito da sociedade e da culturaptrias, segundo as suas tradies nacionais. Devem conhecer esta cultura,purific-la e conserv-la, desenvolv-la segundo as recentes situaes, efinalmente aperfeio-la em Cristo (AG 21).

    Mas no s na expresso e na celebrao da f crist se revela a culturacomo fator importante para a Igreja. Pois no so apenas as culturas queno contato com a f crist aprofundam, corrigem e aperfeioam o que lhes prprio. Igualmente a Igreja tendo uma estrutura social visvel... seenriquece tambm com a evoluo da vida humana social... para conhec-la mais profundamente, melhor exprimi-la e adapt-la de modo mais felizaos nossos tempos (GS 44). Observemos expressamente que o Concliotem em vista no s a inculturao da mensagem salvfica, mas a prpriaIgreja em sua dimenso institucional. Por isso mesmo o contato com acultura local poder abrir caminhos para uma mais profunda adaptao

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    em todo o mbito da vida crist (AG 22)32 . Como conseqncia teremosconfiguraes especficas de Igrejas particulares que, enquanto ornadas comsuas tradies prprias, tero seu lugar na comunho eclesial (AG 22). Sassim podero elas se enraizar profundamente num povo (AG 15).

    V. O tempo ps-conciliar

    O Conclio Vaticano II, como j vimos no incio desta reflexo, representao fim de uma era e o comeo de uma nova etapa na vida da Igreja. Comoa continuidade e a novidade sempre caminham juntas, conforme a sensi-bilidade de cada um, esta caracterstica de ter sido um Conclio-eventosuscitar naturalmente interpretaes diversas. E tambm expectativas, nemsempre muito realistas, que deram lugar a uma fase de desnimo e pessimis-mo depois dos primeiros anos de entusiasmo e otimismo. J os estudiosos dosConclios Ecumnicos observam que nenhum deles foi seguido de uma re-cepo tranqila e unnime. Pelo contrrio, por implicarem mudanas des-pertaram medos e resistncias, geraram crises e tenses. No deveras sim-ples desfazer-se de hbitos arraigados, de mentalidades familiares, de prti-cas longevas. Acolher o novo implica inevitavelmente coragem e risco.

    Creio que a melhor leitura deste perodo ps-conciliar aquela que realis-ticamente o interpreta como um tempo de iniciativas e de omisses, deavanos e de recuos, de conservao e de novidade. Sem dvida alguma uma poca marcada por tenses e embates, uma poca de crise enquantoconseqncia natural de mudanas doutrinais ou institucionais. Mas tam-bm, como j foi agudamente observado, uma poca de aprendizado e delenta gestao de uma nova configurao eclesial. E isto no , sem dvidaalguma, algo simples e realizvel em poucos anos33. Fundamental aqui conseguir ver para alm dos fatos e das disputas um avano persistente narecepo dos anseios conciliares, mesmo que diminudos, dificultados,sujeitos a outras leituras, traduzidos melhor ou pior em realidades concre-tas. fundamental ter conscincia disso ao abordarmos brevemente a re-percusso real na vida da Igreja do que nos ensinaram os textos conciliares.E tambm no perder de vista a nossa perspectiva na linha doaggiornamento e do dilogo.

    Com relao ao dilogo ecumnico passos importantes foram dados34 des-de os encontros de Paulo VI com o patriarca Atengoras e com o Dr.

    32 O itlico nosso.33 G. ROUTHIER, A 40 anni dal Concilio Vaticano II. Un lungo tirocinio verso un nuovotipo di cattolicesimo, La Scuola Cattolica 133 (2005) 19-52, aqui p. 24s.34 R. GIRAULT, art. cit., p. 187-226.

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    Ramsey, o fim dos antemas recprocos com os ortodoxos, a colaboraocom o grupo F e Constituio, a participao no Conselho Mundial dasIgrejas em Nova Delhi, a criao de Centros Ecumnicos com suas revistas,os textos do grupo de Dombes, a criao da Comisso InternacionalAnglicano-Catlica Romana (ARCIC), os trabalhos conjuntos com a Fede-rao Luterana Mundial, a presena da Igreja Catlica na assemblia doConselho Mundial das Igrejas em Nairobi (1975) e em Vancouver (1983),os estudos em conjunto com a Igreja Anglicana sobre a Eucaristia, os Mi-nistrios e a Autoridade na Igreja, o texto da F e Constituio sobre obatismo, a eucaristia e o ministrio, conhecido como o texto de Lima (1982),a Encclica Ut unum sint de Joo Paulo II (1995), a Declarao Conjuntasobre a Doutrina da Justificao por parte da Igreja Catlica Romana e daFederao Luterana Mundial (1999).

    Tambm aconteceram momentos crticos, como por ocasio da publicaoda Declarao Dominus Jesus (2000), pelo modo como expressou a doutri-na conciliar sem ter em considerao a rica evoluo ecumnica do perodops-concliar. Igualmente certa centralizao romana efetuada durante opontificado de Joo Paulo II dificultou sobremaneira o ecumenismo, dadaa figura concreta do sucessor de Pedro que dela emerge, como o reconhe-ceu o prprio Joo Paulo II em sua mencionada Encclica. Os pontosdoutrinais que ainda impedem a unio desejada esto estimulando estudosimportantes, maior conhecimento mtuo, depurao de configuraes his-tricas contextuais e, sobretudo, uma compreenso mais profunda do dadorevelado. Assim a noo de Igreja, de sacramento, da eucaristia, da suces-so apostlica, do ministrio petrino, de ministrio ordenado, para citaralguns destes pontos em litgio.

    Como podemos constatar, o dilogo ecumnico contribui fortemente parao aggiornamento desejado por Joo XXIII. Ao interpretar a Palavra deDeus a Igreja Catlica leva em considerao tambm a perspectiva ofere-cida pelas outras Igrejas e Comunidades Eclesiais. Este procedimento pres-supe que a leitura catlica tradicional est inevitavelmente situada nointerior da histria, condicionada por conjunturas concretas, podendo,portanto, receber compreenses e expresses mais adequadas sem perdersua verdade. O dilogo ecumnico proporciona uma volta s fontes que,levada com objetividade, conduz sempre mais seus participantes para averdade crist. Naturalmente esta renovada compreenso doutrinal terconseqncias para a liturgia, a disciplina eclesial, a organizao eclesial,a figura do leigo, o ministrio presbiteral, enfim, para uma nova configura-o institucional da prpria Igreja.

    Tambm o tema do dilogo inter-religioso apresentou um rico desenvolvi-mento na poca ps-conciliar, especialmente devido aos pronunciamentosde Joo Paulo II. J no incio de seu pontificado ele acentua a linha deGaudium et Spes atribuindo ao Esprito Santo a firmeza encontrada nos

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    adeptos de outras religies (Redemptor hominis 6), ou mesmo a oraopresente no corao de toda pessoa35, ou ainda a ao salvfica de Deusantes da era crist e para alm da Igreja (Dominum et vivificantem 53),aludindo ao texto de Gaudium et Spes 22. A Encclica Redemptoris missiorepresenta um passo avante, pois reconhece que a presena e a atividadedo Esprito no digam respeito somente aos indivduos, mas sociedadee histria, aos povos, s culturas, s religies (RM 28).

    Um documento, emanado conjuntamente pelo Pontifcio Conselho para oDilogo Inter-Religioso e pela Congregao para a Evangelizao dos Po-vos no ano de 1991, faz avanar ainda mais o reconhecimento das demaisreligies como tais, ao afirmar que muitas pessoas sinceras, inspiradaspelo Esprito de Deus, assinalaram certamente com a sua marca a elaboraoe o desenvolvimento das suas respectivas tradies religiosas, embora semimplicar que tudo nelas seja bom (Dilogo e Anncio 30). Estas tradies sode certo modo valorizadas enquanto ajudam seus adeptos a receberem asalvao de Jesus Cristo na prtica do que bom nas suas prprias tradiesreligiosas e seguindo os ditames da sua conscincia (DA 29).

    E mais adiante este importante documento reafirma, por um lado, que nose deve entrar no dilogo sacrificando as prprias convices; por outro,reconhece que os cristos individualmente no gozam da garantia de te-rem assimilado a plenitude da verdade recebida de Jesus Cristo. Pois setrata de um processo sem fim. Mantendo sua identidade podem os cristosaprender e receber dos outros os valores positivos de suas tradies. Estedilogo inter-religioso poder mesmo ajudar na purificao da prpria f(DA 49). Poderamos acrescentar nem individualmente, nem coletivamen-te, porque na tradio dos Apstolos cresce, com efeito, a compreensotanto das coisas como das palavras transmitidas, de tal modo que a Igrejatende continuamente plenitude da verdade divina (Dei Verbum 8). Portrs deste texto est a caracterstica peculiar da verdade crist36, pois spodemos expressar Deus de modo anlogo e fragmentado, como j notaraS. Paulo: agora vemos em espelho e de modo confuso e o nosso conhe-cimento limitado (1Cor 13,12).

    Afirmar que a revelao de Deus foi definitiva em Jesus Cristo no excluique a expresso desta verdade possa se desvelar ao longo da histria,aprofundando-se, esclarecendo-se e completando-se a partir de vrias pers-pectivas e situaes, provindas tambm de outras religies. Porm a teo-logia crist das religies se encontra diante de uma questo que aindabusca uma resposta adequada. Como conciliar a afirmao de que Jesus

    35 Alocuo Cria Romana antes da celebrao do Natal, La Documentation Catholique84 (1987) 133-136, aqui p. 136.36 M. FRANA MIRANDA, Verdade crist e pluralismo religioso, Atualidade Teolgica7 (2003) 32-49.

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    Cristo o nico e universal salvador da humanidade com um reconheci-mento da autonomia salvfica tambm das outras religies no crists?Fundamental aqui a abertura da Igreja para as demais religies, no srespeitando-as em sua identidade, mas ainda unindo-se com elas para atarefa comum pela paz e pela justia no mundo, voltado para os bensmateriais e dominado pela racionalidade fria e desumana da economia.Deste modo, o dilogo inter-religioso tambm repercute no interior daIgreja purificando-a, renovando-a e adequando-a melhor a sua missosalvfica para a humanidade.

    O tema do dilogo da Igreja com a cultura, j presente em vrios textosconciliares, como vimos anteriormente, ir receber uma mais completacompreenso nos anos seguintes. A Exortao Apostlica EvangeliiNuntiandi recomenda s Igrejas Particulares que anunciem o Evangelho nalinguagem local (EN 63) e o Documento de Puebla trata com competnciadeste tema, acentuando mais a evangelizao da cultura, sem descurar,entretanto a inculturao da f (Puebla 385-443). O ensinamento de JooPaulo II representa um avano significativo com relao a esta temtica. Defato, este papa demonstra grande sensibilidade para com o fator cultural naobra da evangelizao, ao enfatiz-lo na transmisso da f (CatechesiTradendae 53), na obra missionria de Cirilo e Metdio (Slavorum Apostoli19) e ao falar para o Pontifcio Conselho para a Cultura (20/05/1982), quandoento afirma que uma f que no se torna cultura uma f que no foiplenamente recebida, no inteiramente pensada, no fielmente vivida.

    Em 1988 a Comisso Teolgica Internacional oferece um texto sobre A Fe a Inculturao com uma exposio bem estruturada do tema. A EncclicaRedemptoris Missio demonstra uma compreenso mais ampla desta mat-ria, distinguindo a inculturao da f da evangelizao da cultura, reco-nhecendo que o processo estimula a Igreja a uma renovao contnua,desde que permanea compatvel com o Evangelho e em comunho coma Igreja Universal, sendo este processo tarefa de todo o Povo de Deus (RM53). A Exortao Ps-Sinodal Ecclesia in Africa v na inculturao da f umaprioridade e uma urgncia na vida da Igreja deste continente (78), enquantoa Exortao Ecclesia in America insiste mais na evangelizao da cultura (70).J a Exortao Ecclesia in Asia oferece uma boa sntese do tema (21).

    Naturalmente so as Igrejas do Terceiro Mundo que demonstram melhora importncia desta temtica, estudando-a em sua complexidade, aplican-do-a inteleco e expresso da f, celebrao litrgica, atividadepastoral, espiritualidade. Constata-se que as culturas nativas esto embe-bidas de componentes religiosos. Este fato exige um maior discernimentona utilizao dos elementos culturais do contexto. Mas tambm as Igrejasdo Primeiro Mundo, por estarem s voltas com uma sociedade pluralistae secularizada, sentem em si prprias a necessidade urgente deste dilogoda f com a cultura. O tema se torna verdadeiramente universal.

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    Como aparece desta breve resenha, o dilogo f-cultura no s reverte emproveito para as culturas nativas, mas ainda ajuda Igreja em sua missosalvfica. Inculturao da f e evangelizao das culturas caminham sem-pre juntas. A conscincia atual da Igreja com relao a esta realidade, quesempre esteve presente ao longo de sua histria, confirma a intuio deJoo XXIII: o aggiornamento da Igreja passa pelo dilogo com a sociedade,que sem deixar de ser crtico sabe dela aprender para ser, de fato, sacra-mento da salvao de Jesus Cristo. Para tal ela deve no s se fazer enten-der em sua proclamao, mas tambm saber se configurar como institui-o, naturalmente sem sacrificar sua identidade teolgica recebida de Deus.

    VI. Dilogo e aggiornamento na Igreja do Brasil

    Primeiramente faamos certas observaes iniciais. A recepo do ConclioVaticano II na Igreja do Brasil est intimamente relacionada com as Assem-blias Gerais do CELAM, sobretudo as de Medelln e de Puebla, nas quaisos representantes de nosso episcopado tiveram forte influncia. Notemostambm certas caractersticas peculiares de nosso pas que facilitam oudificultam o acolhimento da renovao conciliar e que iro se refletir nostrs dilogos tratados neste estudo. O enorme tamanho do territrio bra-sileiro, a diversidade cultural nas vrias regies, a ausncia de umaevangelizao sria no passado, o fato de o catolicismo ter sido sempreuma religio majoritria, favorecendo uma pastoral de manuteno e umareligio tradicional, so elementos que dificultaram a recepo do Conclio.Por outro lado, o fato de sermos uma jovem nao, aberta ao futuro, pres-sionada por urgentes problemas sociais, atravessada por aceleradas mu-danas culturais e transformada por um crescente processo de seculariza-o, representa estmulo e motivao para uma renovao eclesial.

    O dilogo ecumnico em decorrncia do Decreto Unitatis redintegratiosignificou um dado novo na Igreja Catlica do Brasil, sobretudo a nvelinstitucional, como a criao do setor de ecumenismo da CNBB, a semanade orao pela unidade dos cristos, o surgimento do Conselho Nacionalde Igrejas Crists (CONIC), a incluso do ecumenismo nos Planos de Pas-toral de Conjunto da CNBB ou em algumas Campanhas da Fraternidade.Com variaes bem significativas conforme as regies do pas, o avano doesprito ecumnico entre os catlicos foi, de um modo geral, modesto.Constituem excees iniciativas ecumnicas como o CESEP ou o CEBI,para citar algumas37. Ajudou muito o trabalho conjunto por uma sociedademais justa na linha da libertao crist. A entrada do pentecostalismo signifi-

    37 Para uma exposio mais completa ver E. WOLFF, A recepo do Decreto Unitatisredintegratio no Brasil, in BIZON / DRUBI, op. cit., pp. 23-53.

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    cou mais um componente complicador no ideal ecumnico, que no por eleaceito. O sucesso pentecostal desfigurou a imagem do protestantismo hist-rico e no deixou de repercutir no interior da prpria Igreja Catlica.

    O dilogo inter-religioso num pas maciamente cristo se tornou maisuma tema para telogos, incentivados pelo surgimento de institutos desti-nados a Cincias da Religio, do que propriamente um dilogo motivadopor necessidades pastorais. Neste sentido predominam as discusses sobrepublicaes do Primeiro Mundo. Por outro lado no nos faltam problem-ticas bem nossas a pedir reflexes urgentes e solues pastorais. As religi-es africanas, j reconhecidas em seus direitos, so assumidas tambm porcatlicos, desafiando assim os padres clssicos de pertena religiosa, semque possamos incluir tal comportamento num sincretismo objetivo. La-mentamos que os estudos em curso, que no so poucos, permaneam nombito da sociologia ou da fenomenologia religiosa e no alcancem o nvelpropriamente teolgico onde poderia se dar o dilogo inter-religioso.

    O dilogo com a cultura se mostra tambm complexo. Pois, de um ladotemos no pas uma diversidade cultural que constitui uma grande riqueza,mas que no encontra acolhimento oficial nas expresses da f, nas prti-cas de culto, nas pastorais da Igreja. Aqui, como em outros pases, a tarefade inculturao desencadeada nos pronunciamentos de Joo Paulo II seviu tolhida pelas medidas disciplinares provindas da Santa S. Deste modo,a inculturao realmente bem sucedida, embora sempre sujeita a correescomo qualquer realidade humana, se encontra mais na religiosidade popu-lar, como reconhece o Documento de Santo Domingo (36)38. Ao contrriodo que acontece na frica e na sia, dotadas de culturas nativas bemdiversas da cultura ocidental, temos uma cultura hbrida com componen-tes europeus, africanos e indgenas, com forte predominncia do fatorocidental, fato este que dificulta tambm a devida inculturao da f.

    Concluso

    A pastoralidade do Conclio Vaticano II caracteriza o que ele tem de pr-prio, distinguindo-o dos demais Conclios anteriores. Esta caracterstica seconcretiza nos dois termos dilogo e aggiornamento. Deste modo esteConclio desencadeia na Igreja um processo constante para que ela consiga,de fato, transparecer em sua vida e em sua proclamao a mensagemsalvfica de Jesus Cristo, para que ela seja, de fato, e no apenas teologica-mente, o sacramento da salvao para a humanidade. Este processo impli-ca compreenses mais adequadas da prpria f, expresses mais atualizadas

    38 Ver M. FRANA MIRANDA, Inculturao da f. Uma abordagem teolgica, S. Paulo:Loyola, 2001, pp. 129-147.

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    do Evangelho, instituies mais condizentes com a poca. Posto em movi-mento traria certamente uma configurao eclesial que respondesse aosdesafios do tempo e da sociedade, como j aconteceu no passado39.

    Sabemos j, depois de quarenta anos, quo difcil e complexa esta tarefade uma recepo criativa do Conclio. As razes j nos so de certo modoconhecidas: diferentes linhas teolgicas presentes nos prprios textos con-ciliares, simplificaes e abusos na aplicao do Conclio, ao da CriaRomana a favor da linha minoritria durante o Conclio, a natural resistn-cia a qualquer mudana, a dificuldade de se expressar dados teolgicos emcategorias institucionais e jurdicas, a rapidez das transformaes scio-culturais com a emergncia de novos desafios40. Certamente ainda outraspoderiam ser aduzidas, mas todas elas no nos dispensam de continuar lu-tando por uma recepo criativa e localizada das linhas mestras deste Con-clio para a Igreja do Brasil. Pois as trs modalidades de dilogo que nosocuparam nesta reflexo, no s acontecem em nosso pas, no s constituemtambm para ns autnticos desafios, mas tambm provocam transformaesna mentalidade e na instituio eclesial caractersticas de nossa Igreja.

    O dilogo ecumnico dever enfatizar a f na pessoa de Jesus Cristo. Sejadevido carente evangelizao dos cristos no Brasil, seja pela diluio edeformao da prpria f crist, submetida a leituras de cunho neoliberal,a manipulaes para fins polticos, a sincretismos de auto-ajuda. Diante deuma sociedade em processo crescente de secularizao, com a ameaa daindiferena religiosa j dominante em alguns pases europeus, faz-se mis-ter enfatizar a consciente opo da f em Jesus Cristo, sentido ltimo davida humana e patrimnio comum dos cristos. Implicada nesta f que nosleva ao amor fraterno est a luta pela justia e o cuidado com os excludosda sociedade, frente de batalha comum como j vem se dando. Num tem-po de cristandade catlicos e evanglicos podiam acentuar mais suas dife-renas e se combaterem mutuamente. Numa poca de rpidadescristianizao eles devem enfatizar mais os pontos comuns e se ajuda-rem mutuamente. O que no deixar de repercutir na configurao destascomunidades eclesiais. No nos compete resolver daqui as desavenasoriginadas no Primeiro Mundo, tarefa j em curso naquelas Igrejas.

    O dilogo com as religies dever levar mais a srio o conhecimento dasreligies africanas e indgenas do Brasil. Ambas j tiveram vrios de seuselementos assimilados pela religiosidade popular catlica, apesar dos esfor-os contrrios da hierarquia. O dilogo com as mesmas uma tarefa maisimportante para ns do que com as milenares religies asiticas ou mesmocom o judasmo ou com o islamismo. Elas j entraram profundamente nacultura brasileira, j fazem parte de nosso universo simblico e do nosso

    39 Y. CONGAR, Lglise de saint Augustin l poque moderne, Paris: Cerf, 1970.40 G. ALBERIGO, Fedelt e creativit nella ricezione del concilio Vaticano II. Criteriermeneutici, Cristianesimo nella Storia 21 (2000) 383-402.

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    ethos. Na medida em que sua perspectiva de leitura fosse aproveitada paraa f crist, ela certamente nos ajudaria num aggiornamento da mensagemevanglica condizente com a mentalidade religiosa de nosso povo.

    O aggiornamento na linha cultural implica um maior reconhecimento dasdiversidades culturais de cada regio deste pas continental. Uma tarefaprpria dos regionais da CNBB, que deveriam gozar de quadros compe-tentes e de liberdade de ao para fazer com que os brasileiros possamviver e expressar sua f a partir da respectiva cultura, responsvel por suaprpria identidade. Com isso no se negam os componentes culturais na-cionais, assimilados, num segundo momento, pelos brasileiros e que noscaracterizam aos olhos dos estrangeiros. Outro ponto significativo vem aser a sociedade pluralista em que vivemos, que no mais aceita o catolicis-mo como componente interno do patrimnio cultural transmitido. A Igreja,por conseguinte, dever ser mais ativa na ao missionria dentro do pase reforar a dimenso comunitria da f que contrabalance o impacto de sesentirem minoria por parte dos catlicos conscientes. Dado que a maioriada nossa populao constituda pelos pobres, tambm no futuro a Igrejadever prosseguir sua opo preferencial por eles, como j o vem fazendo.

    Para este aggiornamento a reflexo teolgica local tem papel decisivo parafundamentar as opes pastorais do episcopado. Naturalmente, sejam ossubsdios teolgicos, sejam os compromissos pastorais, pressupem equi-lbrio e discernimento, respeito pelos juzos diferentes, comunho com aIgreja Universal, maior participao do Povo de Deus, grande confianaem Deus e, sobretudo, aceitao do mistrio pascal como a verdade ltimada nossa vida e da vida pastoral da Igreja. De fato, mais do que as teolo-gias, recursos e poderes humanos, a Igreja avana na histria fundamen-tada num Messias crucificado e ressuscitado, fora e sabedoria de Deus(1Cor 1,24).

    Mario de Frana Miranda, SJ, doutor em teologia pela Pontifcia UniversidadeGregoriana (Roma). Atualmente professor de teologia sistemtica na Pontifcia Univer-sidade Catlica (Rio de Janeiro). Publicou entre muitos livros e artigos: O Mistrio deDeus em nossa vida, So Paulo: Loyola, 1975; O cristianismo em face das religies, SoPaulo: Loyola, 1998; Inculturao da f: uma abordagem teolgica, So Paulo: Loyola,2001; A salvao de Jesus Cristo: doutrina da Graa, So Paulo: Loyola, 2004; Existnciacrist hoje, So Paulo: Loyola, 2005.

    Endereo: R. Marqus de So Vicente, 38922451-041 Rio de Janeiro RJe-mail: [email protected]