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discurso (27), 1996: 139-155 o Conceito de Soberania no Methodus de Jean Bodin Alberto Ribeiro de Barros* Resumo: O conceito de soberania, de Jean Bodin (1530-1596), que é tratado pela primeira vez de maneira sistemática nos Six livres de la République (1576),já é objeto de reflexão no Methodus ad Facilem Historiarum Cognitionem (1566). O objetivo deste artigo é analisar essa primeira abordagem, que antecipa certos aspectos da teoria bodiniana. Palavras-chave: Bodin - soberania - direito - poder o poder soberano no quadro das ações humanas o tema da soberania aparece pela primeira vez na obra bodiniana no capítulo 111 do Methodus. Nele, Bodin adverte para a necessidade de classificar os relatos do passado, uma vez que se encontravam tão desordenados e desconexos, que era impossível retirar da sua leitura os ensinamentos indispensáveis tanto para a conduta pessoal quanto para a vida em sociedade(l). Era preciso, então, classificá-los e distribuí-los em grupos, de tal maneira que se pudesse posteriormente realizar a confron- tação e a seleção dos mais significativos. O objetivo é propor uma forma de organização das informações históricas em que temas essenciais, depois de sistematicamente definidos, seriam colocados sob determinadas rubri- * Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

o Conceito de Soberania no Methodus de Jean Bodinfilosofia.fflch.usp.br/sites/filosofia.fflch.usp.br/files/publica... · tanto, a ser aplicada à história dos homens, a mais acessível

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  • discurso (27), 1996: 139-155

    o Conceito de Soberaniano Methodus de Jean Bodin

    Alberto Ribeiro de Barros*

    Resumo: O conceito de soberania, de Jean Bodin (1530-1596), que tratado pela primeira vezde maneira sistemtica nos Six livres de la Rpublique (1576),j objeto de reflexo no Methodusad Facilem Historiarum Cognitionem (1566). O objetivo deste artigo analisar essa primeiraabordagem, que antecipa certos aspectos da teoria bodiniana.Palavras-chave: Bodin - soberania - direito - poder

    o poder soberano no quadro das aes humanas

    o tema da soberania aparece pela primeira vez na obra bodinianano captulo 111 do Methodus. Nele, Bodin adverte para a necessidade declassificar os relatos do passado, uma vez que se encontravam todesordenados e desconexos, que era impossvel retirar da sua leitura osensinamentos indispensveis tanto para a conduta pessoal quanto para avida em sociedade(l). Era preciso, ento, classific-los e distribu-los emgrupos, de tal maneira que se pudesse posteriormente realizar a confron-tao e a seleo dos mais significativos. O objetivo propor uma formade organizao das informaes histricas em que temas essenciais, depoisde sistematicamente definidos, seriam colocados sob determinadas rubri-

    * Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de So Paulo.

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    cas(2). No esprito do seu mtodo, ele pretende preparar o leitor para cami-nhar no labirinto formado pelos textos histricos, auxiliando-o a enfrentaressa massa de informaes, muitas vezes confusa e contraditria(3).

    Depois de ter dividido a histria em humana, natural e divina(4l, con-forme o objeto de investigao sejam as aes humanas, as causas operantesna natureza ou as manifestaes divinas (cap. I), e de ter estabelecido aordem que convm seguir nos relatos do passado (cap. 11), Bodin especi-fica como seu objeto de investigao a histria humana e a define como anarrao exata das aes do passado(5). A arte da leitura comear, por-tanto, a ser aplicada histria dos homens, a mais acessvel das trs(6),para depois se elevar progressivamente histria natural e enfim chegar histria divina(7).

    O primeiro passo nessa investigao a elaborao de um amploquadro das aes humanas. Ao contrrio do que se poderia esperar, numapoca marcada pela crtica filolgica, Bodin no discute o sentido da pala-vra ao, atribuindo-lhe uma extenso capaz de abranger os desejos, osdiscursos e os atos humanos (Bodin 2, capo 111, p. 22). Nesse momento,no lhe interessa nem a origem motivadora, nem o contedo dessas aes,mas somente o fato de elas serem fruto da vontade. A vontade, por sinal, considerada a principal faculdade da alma, porque conduz a ao numadeterminada direo(8). Nela, todas as outras faculdades se unem naafirmao da liberdade, que justamente o que diferencia o ser humano dosoutros seres totalmente submetidos necessidade natural (id., ibid., p. 23).

    As aes humanas so ento classificadas em quatro grupos, de acor-do com o tipo de necessidade que procuram satisfazer: aquelas ligadas aoinstinto de sobrevivncia, que visam conservar e proteger a vida, como acaa, a agricultura, a ginstica, a medicina, etc.; aquelas relacionadas organizao da vida social, que asseguram um bem-estar material, comoo comrcio, a indstria, a administraco poltica, etc.; aquelas que tm oobjetivo de estabelecer uma civilizao mais brilhante; e, finalmente, aquelasdirigidas para a satisfao dos sentidos ou do esprito (id., ibid., p. 24). Essasatividades, segundo Bodin, s podem ser realizadas numa comunidadepoltica. Ao tratar da estrutura dessa comunidade, ele reconhece trs dis-

    ciplinas responsveis pela sua ordenao e que garantem a sua existncia:a lei moral, que o indivduo aplica a si mesmo; a lei domstica, que exercida no seio da famlia por um indivduo (chefe de famlia) em rela-o aos seus dependentes (esposa, filhos e servos); e a lei civil, que regulaas relaes entre as vrias famlias. Entre as trs disciplinas, a lei civil considerada a mais importante, por ser a norma suprema em matria deprescrio ou proibio.

    A lei civil ento dividida em trs partes: o comando (imperium), adeliberao (consilium), e a sano (executio). Dada a sua relevncia,Bodin se detm sobre o comando supremo (summum imperium), do qual

    . as outras partes da lei civil derivam. Ele reconhece que o summum imperiumse manifesta de inmeras maneiras, mas principalmente em quatro aes(9):a criao de magistraturas e a atribuio de suas funes; o poder de pro-mulgar e revogar as leis; o direito de declarar a guerra e concluir a paz; aatribuio de penas e recompensas (Bodin 2, p. 25-6). Esto assim defini-dos os atributos do summum imperium, ou seja, os direitos da sobera-nia(IO), que do ao seu detentor as condies necessrias para governar acomunidade poltica.

    A soberania como critrio de existncia da Repblica

    A noo de soberania retomada no captulo VI atravs de umare~i.so dos principais conceitos polticos da Antiguidade. Depois de tercntIcado as definies aristotlicas e ciceronianas de Repblica(l'l, cida-do e magistratura, por serem muito restritas e imprecisas, Bodin denun-cia a omisso dos antigos sobre a questo da soberania, "esse comandosupremo que o prprio poder civil soberano, chamado por Aristteles decomando soberano, no qual se encontra a majestade e a constituio daRepblica, e que no foi definido em nenhuma parte" (id., ibid., capo VI,p. 157-8).

    Na sua redefinio de Repblica como "o conjunto de famlias oude colgios submetidos a um s e mesmo comando" (id., ibid., p. 160),

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    est estabelecida a condio imprescindvel para um agrupamento socialser considerado uma comunidade poltica: "Trs famlias ou mais, cincocolgios ou mais constituem uma Repblica se estiverem reunidos sob opoder de um comando legtimo" (Bodin 2, p. 159). A simples unio orga-nizada de grupos sociais, embora necessria, no suficiente para a for-mao de uma Repblica. No basta tambm haver interesses comuns oupartilhar do mesmo conjunto de leis. Na origem da Repblica est o reco-nhecimento do poder soberano, que anterior ao estabelecimento de qual-quer instituio: "No so, portanto, o comrcio, o direito, as leis, a religiodas diversas cidades confederadas que permitem consider-las como umaRepblica, mas sua unio sob um mesmo comando" (id., ibid., p. 170).

    O poder soberano, identificado como o princpio que determina aexistncia da Repblica, passa a ser o ponto de referncia na redefiniodas outras categorias polticas. O cidado definido como aquele quedesfruta da liberdade comum. e da proteo do poder soberano (id., ibid.,p. 160). Assim, a cidadania no est fundamentada em privilgios, emdireitos ou em deveres, mas no mtuo reconhecimento de submisso di-ante do mesmo comando (id., ibid., p. 161-8). J a magistratura definidacomo a participao nesse poder supremo, manifestando-se atravs dosditos, ou seja, dos mandatos, dos decretos, das ordens, etc. (id., ibid., p.172). O problema est em dimensionar a participao dos magistrados,para que o seu poder no se confunda com o poder soberano, do qual eleprovm. Alis, para Bodin, os autores que abordaram o tema da soberaniaconfundiram os seus direitos com os de certas magistraturas, chegando aoabsurdo de conceber alguns magistrados investidos de poder soberano:"Esse ponto esclarecido (os direitos da soberania), muitas das questesobscuras e difceis sobre a Repblica estaro resolvidas; notemos, entre-tanto, que Aristteles e aqueles que escreveram sobre a Repblica noenfrentaram esse tema" (id., ibid., 175).

    Os direitos da soberania

    . ? poder sobera.no, par~ Bodin, deve se diferenciar dos outros pode-Ie~ eXIstentes na socIedade Justamente pela posse exclusiva de certos di-~eItos.. Aos, di.reit~s j

    A

    m~ncionad?s no captulo lII, acrescenta o poder deJulgaI e~ ultIma Insta~cIa. Essa Incluso revela a ntida preocupao emcaractenzar a soberama, pois "quando o comando bem constitudo ne-nhum dos direitos em questo atribudo aos magistrados salvo exc~ode um~ necessidade urgente" (Bodin 2, p. 176). '

    E claro que Bodin reconhece o fato de os magistrados assumiremalgumas vezes o~ d~reitos que seriam prprios da soberania. O problema sa?er se_ es~~s ?ueIto~ so totalmente transferidos ou no. A questo daahenaao Ja tInha SIdo certamente discutida nos seus manuscritosacadmicos De Imperio e De Jurisdictione, escritos no perodo de estudos,entI:e 1555 e 1?60. Embora no possam ser objeto de anlise, pois foramqueImados apos sua morte, conforme vontade testamentria os ttulosde~ses manuscritos.e as refer.ncias feitas a eles indicam uma p;eocupaoeVIdente en: determInar, a partIr do Corpus Iuris Civilis, os direitos prpriosda soberama ~ a9ueles qu.e podiam ser conferidos s magistraturas." . Alguns Junstas medIevais, na tentativa de manter a unidade do Imp-1I0 ?lante da crescente descentralizao, criaram argumentos e frmulas,~poIados ~o Co~pusIuri~ (I?ig. ~4, 2, 9 e Cod. 1, 1, 1), contrrios a qualquertIpO de ahenaao dos dIreItos Imperiais. Os juristas franceses do sculo?CVI, que estavam mais preocupados com o poder do rei do que com o doImperador,. tambm rejeitaram qualquer cesso das prerrogativas reais,em~ora eS~Ivessem convencidos de que a viso medieval desse problemae:,a I~con~I~tente com o uso em Roma, No Methodus, a inteno de Bodinnao e defI~Ir .as prerrogativas do rei francs ou do imperador, mas estabe-lecer .os dueItos da soberania e demonstrar que, embora pudessem ser~xe~'cId?s .em algum momento pelos magistrados, eles eram totalmenteInahenaveIs. A ~~nstituio da Roma republicana tomada como exemplo,uma vez que vanos autores renascentistas viam nas suas magistraturas apresena do summum imperium. Bodin reconhece que a ditadura romana

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    era realmente dotada de plenos poderes, mas no admite que ela seja con-siderada soberana, j que seu poder estava limitado a um determinadotempo. O ditador no passava de um depositrio dos direitos da soberania,pois seu poder poderia ser revogado a qualquer momento pelo povo, overdadeiro soberano, que lhe havia confiado o exerccio desses direitos.As outras magistraturas, na interpretao bodiniana, tinham um poder aindamais limitado: os pretores eram simples executores da lei, uma vez que aprpria lei estabelecia os critrios de sua aplicao; e os cnsules, eleitospela plebe, no tinham o poder de declarar a guerra e concluir a paz, umdos direitos fundamentais da soberania. Enfim, ele conclui que nenhumamagistratura romana podia ser considerada soberana (Bodin 2, p. 177-8).

    O caso de Roma tomado como um parmetro na anlise de outrasRepblicas. A participao de qualquer magistrado na autoridade pblicadepende sempre da concesso do detentor da soberania. Por mais amplosque sejam os seus poderes, o magistrado ser sempre um executor subor-dinado ao poder soberano: "Mesmo onde o comando de um magistrado estvel, ele no possui o direito nem da magistratura, nem da honra; masdeve se considerar como depositrio at que o seu exerccio tenha fim, ouque aquele que o investiu os retome novamente" (id., ibid., p. 179).

    Se a soberania inalienvel, basta ento identificar o detentor dosseus direitos, para se saber quem o soberano e, conseqentemente, qual a constituio da Repblica. Seguindo a tradio aristotlica, a formade constituio determinada a partir do nmero de pessoas que detm opoder soberano. A peculiaridade est na defesa intransigente da existn-cia de apenas trs formas: "A soberania pertence a um s indivduo, ou auma pequena parte dos cidados, ou a todos ou pelo menos a maioria doscidados, e ns temos, segundo o caso, uma monarquia, uma aristocraciaou uma democracia" (id., ibid., p. 192).

    A inteno de Bodin atacar a idia, defendida pela maioria dosseus contemporneos, de que a melhor constituio estaria na combina-o das caractersticas dessas trs formas. Eles se baseavam principal-mente na opinio de Polbio, para quem a grandeza de Roma no perodorepublicano estava no fato de o summum imperium residir em parte noSenado, em parte nos cnsules e em parte no povo (Polbio 11, p. 480-7).

    A constituio mista no seria assim apenas uma possibilidade terica,mas um modelo a ser imitado. Na anlise bodiniana, entretanto, a consti-tuio romana nesse perodo tinha sido democrtica, pois os poderesatribudos ao Senado e aos cnsules estavam submetidos em ltimainstncia vontade do pOVO(l2). Chega a utilizar as descries de Polbiosobre os direitos do povo romano para demonstrar a sua supremacia emrelao ao outros agentes da sociedade: "O povo tinha concedido ao Se-nado a administrao de todas as coisas pblicas, exceto a criao dasmagistraturas, a promulgao das leis, o direito de guerra e paz, o direitode vida e morte e o apelo em ltima instncia, que reservava para si, porserem direitos de quem detm o comando" (Bodin 2, p. 181). Processo deanlise semelhante utilizado para as Repblicas de Esparta e de Veneza,que tambm eram consideradas como exemplos de constituies mistas,com o mesmo resultado: ambas tinham sido democrticas no incio e de-pois se tornaram aristocrticas, mas em nenhum momento tiveram umaconstituio mista (id., ibid., p. 190-7).

    A diviso da soberania, segundo Bodin, absurda, porque a separa-o dos seus direitos resultaria na sua prpria destruio. A questo daindivisibilidade lhe parece to evidente, que no se encontra uma discus-so detalhada sobre essa possibilidade. O seu argumento favorito estbaseado na simples observao de que, se a soberania estiver distribudaem vrias partes da sociedade, o poder de comando desaparece, e o resul-tado s pode ser a anarquia. Na sua concepo, em todo grupo social deveexistir uma nica voz de comando, um nico centro de poder, que detenhacertos direitos e seja superior a qualquer outro.

    A constituio mista no passava, portanto, de uma iluso. Os seusdefensores haviam confundido a maneira como a soberania pode serexercida, a forma de governo, com a constituio da Repblica(l3): "Ento,em toda Repblica, preciso inicialmente considerar quem pode dar ouretirar o poder dos magistrados, quem pode promulgar ou anular as leis,se um s, a minoria ou a maioria dos cidados; isto estabelecido, fcildeterminar qual a constituio de uma Repblica, pois no h uma quartaespcie e nem se poderia imagin-la. Nem a virtude ou o vCio alteram asvariedades de ,Repblica; se o prncipe for injusto ou probo, no deixa de

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    ser uma monarquia; o mesmo deve ser considerado no governo dos nobresou do povo" (Bodin 2, p. 182).

    o direito de legislar

    Se o direito de instituir magistraturas e especificar suas atribuies considerado no Methodus o mais importante, pois determina em ltimainstncia o detentor da soberania, o direito de promulgar ou anular as leis o mais discutido{l4). Ao tratar da monarquia, Bodin diferencia o rei, cujopoder est fundamentado na justia, do tirano, cuja autoridade exercidacom iniqidade, desprezando todas as leis. Distingue, ento, duas classesde reis: os que no tm seu poder limitado pelas leis; e os que so obriga-dos a respeit-Ias. Na primeira classe, coloca os reis da Antiguidade quegovernavam unicamente baseados em sua conscincia, exercendo o podersem a interferncia das leis, uma vez que no dispunham de um sistemajurdico constitudo (id., ibid., p. 207-8). Mas, com a elaborao de siste-mas jurdicos e com o passar dos tempos, alguns monarcas comearam ase submeter autoridade das leis: "Bem diferente so os outros (os reis dasegunda classe), que no submetem apenas os particulares e os magistra-dos s leis, mas se submetem a si mesmos" (id., ibid., p. 211). Entretanto,tal sujeio no estaria em divergncia com o direito de promulgar e anu-lar as leis? Como o soberano pode estar ao mesmo tempo acima das leis ea elas submetido?

    Num primeiro momento, Bodin reconhece essa divergncia e reafir-ma a necessidade de o poder soberano no se submeter s leis, "pois quemordena deve ser superior s leis, para que possa abolir, ou derrogar, ousubstituir, ou at mesmo, se for necessrio, rejeitar uma lei obsoleta; issono ser possvel se quem d a lei estiver submetido a ela" (id., ibid.,p. 209). Mas, logo em seguida, afirma no existirem razes que impeamo rei de respeitar as leis que ele ordenou, desde que tenham sido promul-gadas e aceitas por todos. Apoiado no exemplo de Roma, onde o povo erasoberano e jurava se sujeitar lei que havia promulgado(J5), defende a

    submisso de todos os agentes sociais, inclusive do rei, autoridade dasleis: "Se aceitamos com efeito, pelas razes apresentadas, o princpio deque ~quele que ordena a lei permanece acima da lei, no vemos razesque Impeam o prncipe, uma vez a lei promulgada e aceita por um con-senti~ento unmine, de se submeter a essa lei que ele prprio ordenou"(Bodm 2, p. 209). Chega at mesmo a lamentar que muitos monarcas,como os da Turquia, da Prsia, da Inglaterra, e o prprio pontfice roma-n~, no reconheam o valor de ter seu poder controlado pelas leis, assu-mmdo .a postura de senhores absolutos. Embora essa postura em nadacontrane a natureza, ela no reconhecida como a maneira mais civiliza-da ~e ex~rce~ o poder (id., ib~d., p. 210). O verdadeiro monarca, paraBodm, nao so submete os magIstrados e os cidados ao cumprimento dalei, mas a si prprio(J6). Os soberanos cristos so mencionados como exem-plo, pois, a~ se~'em coro~dos, juram solenemente governar a Repblicaconforme .a JustIa, respeItando as leis consti tucionais (id., ibid., p. 211).

    Bodm ataca, ento, trs posturas que julga perniciosas para qualquerRepbl~ca. ~ pr~meira a de Aristteles, que teria dito que um reisubmetIdo as I~IS perde seu poder(J7). Ora, na monarquia francesa,reconhece Bodm, o rei dependia do consentimento da sociedaderepresentada pelas trs ordens, para alterar leis constitucionais ou usos ~costumes, e nem por isso deixava de ser soberano (id., ibid., p. 211). De~ato, .n? processo de consolidao do poder real francs, que pode serIdentIfIcado principalmente a partir do sculo XII, pode-se constatar umprofundo respeito, nem sempre voluntrio, pelos direitos das provnciasanexadas Coroa, pelos privilgios de certas corporaes e pelas decisesdas vrias assemblias - dos trs estados, dos delegados das cidadesassem.bli.as religiosas, o Grande Conselho do rei, etc. - que representava~os .maIs dIversos segmentos da sociedade (Douc.et 6, p. 312-396). Se apso fIm ~a.Guerra do~ Cem Anos, CharIes VII 0422-1461) conseguiu tomaruma sene de medIdas para o fortalecimento da monarquia na sua lutacontr~ a~ f~ras feudais - como a formao de um exrcito permanente, aconstItUl~ao de. uma administrao centralizada, a efetivao de umareforma fmanceIra, entre outras - e na sucesso dos reinados de Louis XI(1461-1483), Louis XII (1481-1515) e Franois I (1515-1547), a autoridade

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    real conseguiu se consolidar, as instituies representativas dos vriosagentes sociais no deixaram de ter sua participao nos assuntos do Reino(Major 10, p. 16-20).

    A segunda postura est na doutrina de certos juristas que estende-ram os direitos do imperador romano aos novos monarcas. Eles defendi-am que, como o imperador era legibus solutus e sua vontade tinha forade lei, assim tambm os reis deveriam estar acima das leis, uma vez quetinham no interior dos seus reinos os mesmos direitos do imperador(18). Acrtica de Bodin refere-se sobretudo ao uso indevido da terminologia dodireito romano. De fato, a partir do reinado de Philipe IV (1285-1314),encontram-se nos textos jurdicos frmulas como ce qui plest au Roi doistestre tenue pour la Loi(l9). Alguns juristas ligados ao rei, desejosos de .combater a nobreza feudal e ascender na hierarquia social, buscavam ar-gumentos no direito romano para afirmar, no plano interno, a superiorida-de do poder real diante dos grandes senhores e, no plano externo, a suaindependncia perante o imperador e o papa. Inspirados em princpios doCorpus /uris, atribuam o poder legislativo ao rei e, conseqentemente, odireito de modificar leis e costumes. Fazendo analogias com o princepsromano, eles reivindicavam a superioridade do poder real diante das leis apartir do princpio Princeps legibus solutus est(20). Mas a maioria dos ju-ristas franceses do sculo XVI no reconhecia essas prerrogativas. Alciat,por exemplo, afirmava que o poder real era limitado pela lei e pelos costu-mes, e que o prprio imperador romano no podia agir conforme sua von-tade, como afirmavam certos glosadores (Alciat 1, p. 43). Essa postura,que pode ser explicada em grande parte pela maneira como a monarquiafrancesa se consolidou, foi seguida por juristas como Bud, Connan, Cujase Hotman. O prprio Bodin parece seguir esses autores ao reconhecer anecessidade de o rei cumprir seu juramento de coroao, que o obriga amanter-se dentro das leis constitucionais e a respeitar os usos e costumes,submetendo qualquer alterao aprovao dos Estados Gerais: "Umavez feito esse juramento, o rei no pode viol-lo; mesmo se pudesse, noo desejaria fazer. De fato, ele ento regulado pelo direito como cada umdos particulares e est submetido s mesmas leis. Ele no pode mudar as

    leis constitucionais do seu reino, nem alterar os usos das cidades, nem osantigos costumes sem o consentimento das trs ordens" (Bodin 2, p. 211).

    A terceira postura a ser combatida a do jurista lason de Mayno(1435-1519), conselheiro de Louis XII e um dos principais representantesda escola bartolista, que defendia o direito de o rei ser proprietrio detodas as coisas do reino, inclusive das propriedades particulares dos seussditos. Ora, essa reivindicao no tinha, para Bodin, qualquersustentao jurdica. O poder do rei no poderia estender-se propriedadeprivada dos sditos, que deve ser sempre respeitada. Utilizando oargumento de Sneca (De Beneficiis, Livro VII, 4) de que o poder pbli-co pertence aos reis e a propriedade aos particulares, Bodin repudia essapostura e a considera como a mais perniciosa de todas (id., ibid., p. 212).

    Essas reflexes no deixam de ser desconcertantes. Num momentoBodin afirma que o poder soberano deve estar acima das leis, para podersubstitu-las ou rejeit-las, o que est de acordo com o direito de legislar.Logo em seguida, defende a submisso do soberano diante das leis comoa melhor maneira de exercer o poder, elogiando os reis que assim procedem.No haveria a uma clara contradio? Alguns comentadores apontam essaincoerncia e procuram justific-la como uma tentativa de adaptar prin-cpios necessrios ao fortalecimento dos novos monarcas com a forma dedesenvolvimento da monarquia francesa, ou ainda como um esforo paraconciliar a tradio constitucionalista medieval com a idia moderna depoder soberano. Mas ser que h em Bodin uma contradio to evidente,possvel de ser facilmente detectada no intervalo de algumas pginas?No se pode esquecer que, embora ele prefira o soberano que se submetes leis, considera ambas as possibilidades no exerccio da soberania: "H,portanto, essa diferena entre os reis que comandam com justia, uns estoligados por certas leis do reino, outros esto totalmente livres" (id., ibid.).O fato de o soberano submeter-se ou no s leis no altera os direitos dasoberania, que no dependem da maneira como ela exercida.

    Na verdade, existe nessas concepes do Methodus uma impreci-so. No h uma clara diferenciao entre o poder soberano, como atribu-to essencial da comunidade poltica, e o soberano, como aquele que assumeos direitos da soberania para poder governar essa comunidade. Nesse mo-

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    mento, Bodin ainda no especifica quais so as leis que o soberano deverespeitar e diante de quais ele est livre. Se faz referncia s leis constitu-cionais, no identifica quais so, nem justifica por que o soberano estsubmetido a elas. Se utiliza o juramento de coroao como compromissode sujeio do sober~no diante das leis e dos costumes do reino, no jus-tifica tal submisso. Enfim, pode-se dizer que o Methodus representa ummomento constitutivo do pensamento bodiniano, no qual as idias aindano esto bem definidas. Para uma teoria da soberania, ser preciso espe-rar a publicao do Les six livres de la Rpublique.

    Abstract: The concept of sovereignty, which is dealt with (examined) systematically, for thefirst time in the Six livres de la Rpublique (1576), already stands as an issue for reflexion inthe Methodus ad Facilem Historiarum Cognitionem (1566). The aim of this essay is to analysethis first aproach which antecipates certain aspects of Bodin's theory.Key-words: Bodin - sovereignty - right - power

    Notas

    (J) A idia de que as narraes histricas fornecem os exemplos ideais para aeducao moral e poltica um lugar-comum entre os autores do sculo XVI,que buscam nos modelos da Antiguidade a inspirao para construir sua soci-edade. Nesse sentido, Bodin considera a histria mestra da vida, pois tudo queas antigas geraes souberam descobrir e conhecer, depois de uma longa ex-perincia, estava registrado nos seus livros. Sem o seu auxlio, a filosofia noteria condies de ser a guia da vida, uma vez que a partir das informaestrazidas pela histria que se podem determinar o bem e o mal: "A partir dahistria no somente o presente facilmente explicado, mas tambm o futuro deduzido e so formados de modo correto os preceitos sobre as coisas que sedevem desejar e evitar" (Bodin 2, p. 1).

    (2) Segundo Freund, a originalidade de Bodin est justamente em procuraruma coerncia na complexa massa de informaes histricas, fornecendo aoleitor uma viso de conjunto, sinttica e ordenada. O seu mrito est no desejode encontrar uma coeso, uma ligao entre os elementos esparsos dos vrioshistoriadores. S nesse sentido, as numerosas classificaes que se encontramao longo do texto tornam-se inteligveis (Freund 8, p.l07-8). Como afirmaDesan, Bodin pretende organizar o material histrico disperso nos livros doshistoriadores, para facilitar a sua leitura e retirar deles o melhor ensinamentopossvel. O seu objetivo construir um quadro da histria da humanidade quepossa ser facilmente percorrido e memorizado. Para Desan, Bodin desejarealmente estabelecer, a partir da histria, uma linguagem e um modelo deconduta cientfica, que pudessem ser aplicados posteriormente em outras reasdo saber (Desan 5, p.128-9).

    (3) Como dito no Prefcio, o Methodus pretende, como outros tratados dapoca, ensinar a "colher as flores da histria'e recolher os seus mais docesfrutos" (Bodin 2, p. viii). Durante o sculo XVI foram publicados vrios trata-dos tericos sobre a maneira de ler e escrever a histria: as artes historicae.Na segunda metade do sculo XVI, Jean Wolf, jurista e autor de alguns trata-dos histricos, publicou uma compilao de doze artes historicae com o ttulo

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    Tabulae Mnemonicae Historiae Universalis (Basilia, P Perna, 1576). Tendosido um grande sucesso, ampliou essa coletnea para dezoito tratado~ co~n ottulo Artis Historicae Penus (Basilia, P. Perna, 1579). Nas duas comptlaoes,o Methodus de Bodin ocupa um lugar de destaque, sendo o primeiro a sercompilado.

    (4) Bodin levanta ainda a possibilidade de uma histria matemtica. E.l~a s~rviria para aqueles que no querem misturar as matemticas com as ClenClaSnaturais, que no so rigorosamente exatas, na medida em que podem serperturbadas pela matria e pelos maus espritos (Bodin 2, p. 12-13). No entanto,nada mais escreve sobre esse quarto gnero de histria, incluindo-o portantona histria natural.

    (5) Para Hupert, o Methodus o primeiro tratado que prope uma teoria dahistria universal, independente de qualquer considerao religiosa, fundadaapenas sobre o estudo das aes humanas (Hupert 9, p. 110).

    (6) Dubois afirma que ao colocar o homem no centro, como c~usa e fi.m dahistria, Bodin deseja mostrar que ela no pode ter regras e lels defintdas apriori, uma vez que uma cincia que se constri no dia-a-dia e no cessa dese enriquecer com novas questes (Dubois 7, p . 94-113).

    (7) Se o Methodus trata da histria humana, pode-se ver a realizao do pro-jeto bodiniano corh o Universae Naturae Theatrum (1596), que trat~ ~as cau-sas operantes na natureza, e com o Colloquium Heptaplomer~s?esAd.ltls R~rumSublimiumArcanis (escrito provavelmente em 1596; seu onglnalfol perdldo erestam apenas cpias publicadas a partir de 1841), que trata das manifesta-es divinas.

    (8) A alma humana definida por Bodin como uma forma substancialvivificante, que comunica fora, sensibilidade e inteligncia substncia cor-poral durante o tempo de vida do homem. Ela considerad~ a forma naturaldo corpo, podendo retirar-se dele sem perder as suas propnedades. Segl~ndoBodin, a alma no sofre divises, estendendo-se por todo o corpo e possumdodiferentes funes como a sensao, a memria, a vontade, etc. O seu lugar o campo das aes humanas, pois prprio da alma originar movimento, umavez que participa das leis do corpo. Sobre uma anlise mais detalhada dateoria bodiniana da alma, ver Mesnard, Pierre. "The psychology and pneu-

    matology of Jean Bodin". In: International Philosophical Quarterly, nQ 2, p.244-64, 1962.

    (9) Embora cite vrios autores, parece que a principal fonte inspiradora deBodin a descrio que Polbio faz dos direitos do povo romano durante operodo republicano (Polbio 11, Livro 111).

    (10) A expresso comando supremo (summum imperium) pode ser empregadacomo sinnimo de soberania. O prprio Bodin torna possvel essa associao:"Chegamos definio de comando supremo (summum imperium), na qualreside a forma da Repblica, e que Aristteles chama de poder poltico supremoou poder supremo, os italianos, senhoria, e ns, soberania" (Bodin 2, p. 175).

    (11) Bodin no utiliza a palavra Estado, j empregada por Maquiavel, paradesignar a comunidade poltica organizada, mas Repblica, realada nesseperodo pela cultura humanista e pelo uso do latim clssico.

    (12) "Assim que foram cassados os reis da cidade, Brutus fez aprovar umaprimeira lei constitucional em virtude da qual o povo elegeria a cada ano doiscnsules" (id., ibid., p. 183); "O Senado, na verdade, tirava toda a autoridadedo povo e nunca decidiu algo sem a ordem ou o consentimento do povo: osseus atos eram sempre tomados em nome do povo" (id., ibid., p. 188).

    (13) A distino entre forma de Estado (a constituio) e forma de governo(maneira de exercer o poder), que est em germe nessa concepo, ser plena-mente desenvolvida na Rpublique (id., ibid., Livro 11, 1).

    (14) Na Rpublique, Bodin mantm os cinco direitos como as marcas distinti-vas da soberania, s que o direito de legislar apontado como o mais impor-tante, pois todos os outros derivam do direito de dar e anular a lei (id., ibid.,Livro J, 10).

    (15) "Portanto, como o povo (romano) se submetia sua lei, devemos entoconsiderar os prncipes igualmente submetidos (mesma obrigao; e utilizam-se de sofismas aqueles que declaram ao povo que estar livre das leis significapermanecer acima delas e que nada pode contrari-los, ou, o que maisrepugnante ainda, que tudo o que lhes agrada tem fora de lei" (idem 2, p. 210).

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    (16) Se o Corpus Iuris permite a defesa de um poder imperial, responsvelpela legislao, acima das leis - princeps legibus solutus est (Dig. 1, 3, 31)-,ele tambm apresenta a noo de um imperador legislador que deve subordi-nar-se lei (Cod. 1, 14, 4). Essa dupla indicao marcar o confronto entrejuristas medievais sobre a relao do governante com a lei.

    (17) Essa parece ser ulna leitura imprecisa de Bodin, uma vez que nao se en-contra nos escritos aristotlicos tal afirmao.

    (18) Calasso descreve minuciosamente a gnese e o desenvolvimento da fr-mula rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator (Calasso 4,p. 17-40).

    (19) Expresso utilizada por Philipe de Beaumonoir no Artigo 1043 emCoutumes de Beauvaisis (1280), que poderia ser a traduo dafrmula roma-na quod placuit principi legis habet vigorem (Dig. 1, 4, 1).

    (20) Ullmann identifica duas posturas entre os juristas franceses: aqueles que,seguindo as observaes de Inocncio 111 - insuper cum rex superiQrem intemporalibus minime recognoscet (Decretales 4, 17, 13) -, defendiam a inde-pendncia defato do rei, mas reconheciam a supremacia de direito do impera-dor; e aqueles que, influenciados pelas idias de Inocncio IV - de facto, namde jure subest imperatori Romano ut quidam dicunt, nos contra (Decretales4,17,13) -, reivindicavam a independncia defato e de direito, atribuindo aorei o mesmo status poltico e jurdico do imperador - rex Franciae est princepsin regno suo (Guilelmus Durandus, Speculum Judiciale 4, 3). Cf Ullmann 12,p. 4-10.

    Referncias Bibliogrficas

    1. ALCIAT, A. De Formula Romani Imperii. Basilia, 1554.

    2. BODIN, !. _Methodus ~d Facilem Historiarum Cognitionem. Reimpr.da edlao Ravestemy. Amsterdam, 1650. Scientia Verlag Aalen1967. '

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    4. CALASSO, F. I glossatori e la teoria della sovranit. Milo, Dott A.Giuffr, 1951.

    5. DESAN, P. "Jean Bodin et l'ide de mthode au XVI sicle." In: Actesdu Colloque Interdisciplinaire d'Angers. Angers, 1985.

    6. DOUCET, R. Les institutions politiques de la France au XVI siecle.Paris, Picard, 1948.

    7. DUBOIS, C.G. La conception de l'histoire en France au XVI siecle.Paris, Nizet, 1977.

    8. FREUND, J. "Quelques aperu sur la conception de l'historie de JeanBodin." In: Actes du Colloque International Jean Bodin. Munique,1973.

    9. HUPERT, G. L'ide de l'histoire parfaite. Paris, Flammarion, 1973.

    10. MAJOR, J.R. Representative institutions in Renaissance France: 1421-1559. Madison, University of Wisconsin Press, 1960.

    11. POLBIO. Histoire. Paris, Gallimard, 1970.

    12. ULLMANN, W. "The development of the medieval idea ofsovereignty". English Historical Review, n 61, 1949.