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http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/ editor06.htm O CONCEITO DE LITERATURA * Gustavo Bernardo Apresentamos a literatura pelo que ela não é — e isto, esperamos demonstrar adiante, tem tudo a ver com o que ela é. Grosso modo, "literatura" se realiza com palavras. Entretanto, começaremos realizando o seu conceito através de uma imagem sem palavras: o desenho acima. Nele, o conhecido pintor espanhol, Pablo Picasso, representou um centauro. Na verdade, o fez com uma única linha, sem tirar o lápis do papel nem uma única vez. Picasso realizou muitos destes trabalhos "de uma única linha", como uma espécie de acrobacia artística. Escolhendo um ponto inicial — a ponta do rabo do animal-homem, ou a ponta da letra "R" que o homem-animal desenha, por sua vez, no ar —, percorria, na frente de testemunhas e espectadores devidamente embasbacados, todo o corpo da figura, sugerindo os músculos, a força, o movimento, e, ao mesmo tempo, a fantasia, a impossibilidade, a vontade.

o Conceito de Literatura

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Page 1: o Conceito de Literatura

http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/

editor06.htm

O CONCEITO DE LITERATURA *

Gustavo Bernardo

 

 

Apresentamos a literatura pelo que ela

não é — e isto, esperamos demonstrar

adiante, tem tudo a ver com o que ela é.

Grosso modo, "literatura" se realiza com

palavras. Entretanto, começaremos

realizando o seu conceito através de uma

imagem sem palavras: o desenho acima.

Nele, o conhecido pintor espanhol, Pablo

Picasso, representou um centauro. Na

verdade, o fez com uma única linha, sem

tirar o lápis do papel nem uma única vez.

Picasso realizou muitos destes trabalhos "de uma única linha", como

uma espécie de acrobacia artística. Escolhendo um ponto inicial — a

ponta do rabo do animal-homem, ou a ponta da letra "R" que o homem-

animal desenha, por sua vez, no ar —, percorria, na frente de

testemunhas e espectadores devidamente embasbacados, todo o corpo

da figura, sugerindo os músculos, a força, o movimento, e, ao mesmo

tempo, a fantasia, a impossibilidade, a vontade.

O espetáculo desta performance aconteceu apenas porque o artista

resistiu ao espetáculo, o que é uma evidente contradição. Esta

contradição, no entanto, configura o próprio motor da arte. Pablo

Picasso precisava ter o máximo controle sobre o seu movimento,

resistindo a torná-lo espetacular. Somente assim o seu desenho (e não

ele como artista) se tornaria um espetáculo por si mesmo. Podemos

chamar esta resistência de 1 "economia de meios". Selecionando

criteriosa e rigorosamente os seus meios de trabalho e de ação,

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aplicando a medida mais fina ao que faz, o artista consegue produzir,

no espectador, a indescritível sensação de que algo, ou alguém,

superou todas as medidas. A obra assim construída empresta aos

demais a sensação de transcendência dos limites do homem e das

coisas, sugerindo um caminho para além da essência que conhecemos.

A economia de meios é condição de toda técnica. O jogador de futebol

(Pelé, por exemplo) se torna um artista, um virtuose, somente quando

escolhe tais movimentos e não escolhe outros, buscando sempre o 2 efeito final — no seu caso, o gol, a vitória. Há muitos jogadores bem

dotados para o esporte que nunca se tornam artistas do ofício, porque

driblam bem, mas para o lado, ou porque correm muito, mas não fazem

a bola correr na direção certa. O diretor de cinema (Hitchcock, por

exemplo) se torna um artista, um virtuose, somente quando sabe

montar o seu filme cortando muitas cenas e encadeando as demais,

buscando sempre o efeito final — no seu caso, o espetáculo do

suspense, do medo e do humor associados. Há muitos cineastas, com

dinheiro e idéias, que, todavia, nunca se tornam artistas do ofício,

porque não sabem o ponto de corte e não conseguem eliminar a cena

que não devia entrar.

Picasso, Pelé e Hitchcock constroem, sobre meios e motivos à

disposição de todos os atletas e artistas, obras (imagens, jogadas,

cenas) completamente únicas, porque descobriram o que nenhum

manual, nenhum livro (como este), nenhum técnico, ensina: onde

cortar. O que escolher. É o que faz o pintor, que escolheu, para além da

técnica em si, como motivo, um ser que, sabemos, não existe, formado

por dois seres que, acreditamos, existem: o cavalo e o homem. Sobre o

corpo de um cavalo, emerge o torso de um homem. (3 toda obra de

arte vai criar o existente a partir do inexistente) Este ser, o centauro,

representa muito bem outra contradição: o artista, ao inventar, deve

respeitar o limite da existência, recorrendo a formas e entes que de fato

existem, para recombinar tais formas e entes de tal modo que crie o

inexistente. No entanto, dizer que um centauro "não existe" é uma

contradição nos próprios termos: afirmar que algo não existe já confere,

a este algo, existência (no mínimo, existência verbal). E este mínimo

não é pouco, se lembrarmos quantas coisas que nos são caras

(liberdade, vontade, desejo, medo) parecem ter existência

exclusivamente verbal (o que não é pouca coisa). E, assim, seguimos a

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pista do próprio centauro, que traça no ar uma letra: a letra "R". A

imagem chama o verbo; a pintura chama a literatura.

Então, como definir o conceito de literatura? Primeiramente,

observando que, nesta pergunta, nós temos, embutidas, duas questões:

o que é "literatura", e o que é "conceito" — vale dizer, o que é "o que

é"? Perguntar sobre o conceito de literatura implica também perguntar

por que nos interessamos pela literatura, por que a literatura tem

alguma importância como disciplina, e por que ela existe, enfim, como

questão e como um campo de questões. Isto tudo deve ser explicitado.

Definir o nosso objeto de estudo, a literatura, no caso, é fundamental

para todo o resto — para estudar, por exemplo, a literatura brasileira, a

literatura alemã, a literatura comparada, a teoria da literatura. Mas é,

ao mesmo tempo, talvez, a mais difícil de todas as tarefas, justamente

porque precisamos precisar o nosso lugar em relação ao tema. Para

demonstrá-lo, podemos recorrer à primeira das quatro perguntas

fundamentais do ser — quem sou eu, de onde eu vim, para onde vou,

mas que raios estou fazendo aqui —, perguntando, ao querido leitor:

quem é você?

Você (permita-nos, por um instante, tratá-lo assim, informalmente)

poderá responder de pronto: "sou um leitor, ou sou uma leitora".

Entretanto, esta resposta ainda não o, ou a, define: esperamos

sinceramente contar com muitos outros leitores e muitas outras leitoras

de nosso pequeno livro. Então, você prossegue: "eu sou homem, ou, eu

sou mulher; tenho vinte anos de idade, ou, fiz quarenta (e poucos) anos

no mês passado; chamo-me Paulo, ou Lúcia, ou Adauri Jobim Quelha de

Castro Rocha; eu sou estudante de Letras, ou, sou professor, ou, ainda,

sou astrofísico mas, nas horas vagas, como hobby, estudo literatura".

Em qualquer das respostas, você pouco se define, porque pouco se

individualiza. Ao invés de nos responder "quem é", diz o sexo, a idade, o

nome e o sobrenome (que lhe deram), a ocupação profissional (do

momento). De fato, são circunstâncias que, propriamente,

circunscrevem a pergunta, mas não dão conta do "centro", do cerne, da

questão. Até porque, se você realmente conseguisse responder quem

você é, seria imediatamente cercado pelos filósofos, biólogos e outros

logos de todo o mundo, ansiosos em extrair o seu segredo.

Acontece que, apesar da impossibilidade de se responder à pergunta, a

pergunta não é, de modo algum, absurda. A questão "quem é você" o

acompanha desde sempre, e você a tem respondido, ainda que

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provisoriamente, de mil maneiras em mil momentos: desde "eu sou o

pai daquela menina", até "eu sou aquele que fez esta obra". A obra

pode ser o desenho de um centauro, o som de um "sim" na frente de

um altar, a educação de uma filha, a carreira profissional, ou um gesto.

A obra pode ser um único gesto, capaz de definir, sim, quem você é —

ainda que provisoriamente. 4 O caráter provisório da resposta

corresponde ao caráter igualmente provisório de todo e qualquer

conceito, o que não impede cientistas e filósofos de continuarem

perseguindo os seus conceitos. É necessário, não apenas conceituar,

mas estar sempre conceituando, ou seja, se encontrar sempre se

perguntando sobre o fundamento. Ora, como essa pergunta não

encontra uma resposta definitiva, portanto não encontra uma resposta

"certa", sua formulação constrói não uma certeza, mas uma hipótese. E

a hipótese, em todas as ciências, implica um raciocínio condicional do

tipo: "se o mundo fosse assim, então as conseqüências seriam estas e

aquelas". No momento em que se formula este se > então, temos uma

ficção; uma ficção necessária para se lidar com os fenômenos.

O conceito, qualquer conceito, é

uma ficção (a idéia que se tem e

não a coisa propriamente dita). Não

existe enquanto coisa, mas existe

enquanto condição sine qua non

para se lidar com as coisas. Logo, é

uma ficção necessária, o que nos

remete à própria literatura, que

produz ficções absolutamente

necessárias para nós, em particular,

e para a sociedade, como um todo.

A literatura, como conjunto

assumido de ficções, pode ser

reconhecida como ficção ela

mesma. Nessa hora, o nosso

argumento começa a se tornar circular — o conceito da literatura

começa a reconhecer a literatura em si como conceito ela mesma —, o

que não ocorre nem por acaso nem por conta de algum defeito. Esta

circularidade, este eterno retorno do argumento, faz com que o

pensamento progrida não para "frente", mas sim em espiral, na direção

de um centro ao qual se chega cada vez mais perto, ainda que nunca se

possa chegar "lá". A forma da espiral está contida no mito do Uroboro, a

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cobra que tenta desesperadamente devorar o próprio rabo, indicando

os dois extremos do esforço intelectual humano: a necessidade e a

impossibilidade. O uroboro foi representado, pelo gravador holandês M.

C. Escher, como uma espécie de dragão que, ao tentar se devorar (ou,

talvez, ao tentar se entender), acaba formando com o corpo um "8"

deitado, ou seja, forma o símbolo do infinito.

Assim, enfrentando o dragão de Escher, podemos começar a nos

apresentar a literatura pelo que ela é (ou parece ser), recorrendo às

duas primeiras estrofes de um dos poemas mais famosos de toda a

literatura mundial:

O poeta é um fingidorFinge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.   E os que lêem o que ele escreve Na dor lida sentem bem Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm.

O poema, de Fernando Pessoa, se chama "Autopsicografia". Não define

a literatura, exatamente, mas o literato — ou, mais propriamente, o

poeta (portanto, a si mesmo). Naquele caminho do dragão, o faz de

maneira circular, sem, entretanto, retornar ao mesmo ponto. Afirma,

primeiro, que o poeta é um fingidor, portanto, parente muito próximo

do mentiroso. Afirma, a seguir, que o seu fingimento é completo, vale

dizer, radical, chegando a fingir que é dor uma dor verdadeira. A dor,

verdadeira, pode até ser a motivação inicial do poeta: uma dor-de-

cotovelo, por exemplo. Ao representá-la, porém, pela radicalidade da

poesia, ela se transforma em outra coisa: a dor (sensação e emoção

indizíveis) vira "palavra" e, portanto, se torna dizível. A emoção primeira

se transforma em uma emoção nova, superando aquela emoção que

dera partida aos versos.

Nesta primeira estrofe do poema de Pessoa (que, como sabemos,

transformou-se ele mesmo em várias "pessoas"…), temos sintetizado

um dos mais difíceis e controvertidos conceitos da teoria da literatura: o

conceito de mímese. Assim como o mimetismo do camaleão o faz

confundir-se com a casca da árvore em que se encontra, sem, no

entanto, ser a árvore, de maneira equivalente a dor representada alude

à dor original, sem, no entanto, ser esta dor. Todavia, a segunda dor,

digamos, artificial, propriamente, ficcional, ajuda o poeta a lidar com as

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suas dores primeiras. É como se desta forma o poeta pudesse controlar

o incontrolável e interferir no acaso, tomando, pela imaginação, o seu

destino na mão.(mímese procedimento estético, é o termo grego para

imitação, é a imitação que não está preocupada com a coisa, mas com

o que essa coisa pode ser; qualquer tipo de ficção é um procedimento

de mímese)

Por isto, a segunda estrofe prossegue no caminho em espiral, trazendo

junto, agora, os leitores — que, ao lerem o que o poeta escreve,

sentem, na dor lida, não exatamente a dor que eles originalmente

teriam, mas ainda uma outra, diferente, de certo modo, talvez, até

mesmo mais intensa. Corresponde, para lembrarmos experiência

comum, àquela sensação que temos quando assistimos a um filme

lacrimejante e, então, choramos copiosamente. Ao sairmos do cinema,

entretanto, não nos encontramos tristes, ao contrário: sentimo-nos algo

aliviados. A segunda estrofe sintetiza, portanto, outro conceito capital

da teoria da literatura: 5 o conceito de catarse. A catarse, que

Aristóteles compreendia como uma espécie de "purgação" (porque

realiza um efeito purgante sobre as emoções reprimidas dos

espectadores), permite nos identificarmos com o sofrimento dos

personagens, ou dos poetas, sentindo temor e piedade. Ao sairmos do

teatro (ou do cinema, ou das páginas do livro), retomamos a nossa

própria identidade — mas enriquecida pela experiência ficcional, que

nos ajuda a conviver com as nossas dores e com os nossos dramas.

(Catarse é o efeito de purificação, uma lavagem estomacal dos seus

sentimentos. As obras de arte são construídas com efeito de catarse.)

Esta difícil convivência, porém (de nós conosco mesmos), não se dá

num plano exclusivamente racional. Não basta, de modo algum, a

compreensão da causa dos nossos dramas para nos sentirmos

tranqüilos. Como também se sabe, em termos de alma e de existência,

saber não implica, necessariamente, poder. Às vezes, sucede mesmo o

contrário: saber a razão do sofrimento somente intensifica o sofrimento.

Há, portanto, um outro saber, que a literatura e a poesia admitem,

mobilizando razão e emoção nas voltas daquela espiral. É um saber

dinâmico, cujas respostas são móveis, metamorfas, de certo modo,

brincalhonas, irônicas (ou, para usar termo mais acadêmico, lúdicas),

como conclui a terceira e última estrofe do poema de Fernando Pessoa:

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E assim, nas calhas de roda,Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.

Assim, nas calhas de roda (como em um moinho que transforma o trigo

em pão), o coração, miticamente o centro da alma, gira, entretendo e

enganando a razão, para moer a dor transformando-a em verso — para

fazer com que a dor faça sentido.

Quando percebemos a enorme facilidade com que as crianças são

iludidas (comendo espinafre com prazer, só porque é comida do Popeye

ou do monstro), não dizemos: "me engana que eu gosto"? Mas, quando

lemos um romance policial típico, não percebemos que o narrador está

nos enganando, plantando pistas falsas no enredo, retardando a

solução do mistério, e não gostamos exatamente disto? A criança

também poderia brincar conosco, dizendo: me engana que eu gosto,

hein? Na verdade, crianças, leitores, jogadores, amantes, políticos,

eleitores, enfim, todo mundo necessita de ilusão. Esta ilusão ora tem a

forma da mentira que não pode se assumir como mentira, como, por

exemplo, no discurso de um político em ano eleitoral, ora tem a forma

da mentira que avisa que é mentira. A este segundo tipo de "mentira",

mentira honesta, na verdade, chamamos, com mais propriedade, de

ficção.(a ficção é necessária, não há vida sem ficção)

Mundus vult decipi, decipiatur ergo — o mundo quer ser enganado,

logo, que o seja. O adágio latino mostra a necessidade humana do

logro, talvez porque a verdade, última e primeira, nos seja inacessível.

Como não podemos responder quem somos, ficcionalizamos,

inventamos um personagem, até o ponto em que a invenção se torna

verdadeira. Lemos um romance de Machado de Assis, sabendo que

"qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera

coincidência", mas não podemos deixar de nos reconhecer na miséria e

na grandeza daqueles personagens. É como se, por determinados

instantes, Machado de Assis, que sequer nos conheceu nem ao nosso

século, nos conhecesse melhor do que nós mesmos.

O mundo é uma grande brincadeira, podemos afirmar com toda a

seriedade. Num pequeno texto chamado "Der Dichter und das

Phantasieren" (a melhor tradução seria "O poeta e o devanear"),

Sigmund Freud comparava o escritor de ficção à criança que brinca. Ao

observar crianças brincando, percebera a brincadeira como uma coisa

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muito séria. Não se pode impunentemente interromper uma

brincadeira, ou mudar as suas regras; há risco sério de choro, ranger de

dentes, arrancar de cabelos, traumas gravíssimos. Porque a antítese da

brincadeira não é a seriedade, mas sim a realidade. Como a realidade é

sempre muito "grande" e assustadora, a criança a reconstrói, sob seu

controle tanto racional quanto emocional, no jogo.

Ora, mas na chamada vida adulta e "real", o mesmo parece acontecer.

Se o leitor trapacear num reles jogo de pôquer no sábado à noite, seus

parceiros se sentirão profundamente ofendidos, ainda que não joguem

a vera, isto é, a dinheiro. Se o time de futebol para o qual torce desde

pequeno cair para a segunda divisão (desgraça!), periga de sentir a sua

própria identidade afetada, precisando se esforçar muito para não

reagir às brincadeiras agressivas (que são "só brincadeira" e, ainda

assim, agressivas) dos amigos que torcem para os demais times. Tudo

isso porque jogo é coisa séria. Tão séria, que as nossas atividades

profissionais e políticas se desenvolvem, sem que o notemos

claramente, como jogos — em suma, como instâncias ficcionais. Para

fazer parte de uma corporação profissional ou política é preciso não só

adquirir os conhecimentos e a competência necessários, mas também

aprender a dominar o jargão, os gestos, as regras escritas e não

escritas — em resumo, é preciso aprender a jogar o jogo.

Isto não significa, obrigatoriamente, ser cínico ou hipócrita. Mais cínico,

talvez, seja aquele que acusa os outros de serem meros jogadores, isto

é, atores de uma peça de ficção, como se a sua própria acusação não

fosse uma determinada jogada, ou seja, não fizesse parte… de um jogo.

Como professor, sei, por exemplo, que o ideal de uma avaliação justa e

objetiva é não mais do que isto: um ideal. Um horizonte necessário, mas

inalcançável. Sei que a nota, de 0 a 10, corresponde a uma medida

arbitrária, corresponde a uma regra do jogo. É necessária, não para ser

justo (isso, nunca se pode ser), mas para promover, ainda que

artificialmente, a necessidade e a vontade de saber. Entretanto, esta

concepção pedagógica, que pretendo honesta, não é de fácil aceitação

pelos alunos, porque é difícil um adulto se aceitar sentado sobre o

tabuleiro de um jogo. Em outras palavras, temos vergonha das nossas

fantasias, assim como temos vergonha de jogar (até quando,

marmanjos, jogamos bola, logo perdemos o humor e transformamos a

brincadeira em guerra, quebrando a perna do adversário).

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Freud reconhecia que as crianças, ao brincarem, sabem que brincam.

Mas observa que, ao crescerem, começam a ficar com vergonha de

brincarem em público, passando a fazê-lo intimamente — fantasiando,

devaneando. Só que ficam com vergonha de externar as suas fantasias,

os seus devaneios, reprimindo-se e recalcando-se. O escritor criativo, no

entanto, consegue "se pôr para fora", diferenciando-se do homem

comum ao encontrar uma maneira de dar forma pública às suas

fantasias e devaneios; ele "finge tão completamente que chega a fingir

que é dor a dor que deveras sente", o que ajuda os leitores a

encontrarem, na dor lida, não aquela que já tinham antes de lerem, mas

outra — aquela que ainda não tinham e que, por um efeito de

perspectiva, empresta sentido à dor primeira, à dor que não fazia

sentido.

Por isto, Wolfgang Iser reconhece a necessidade da literatura neste

efeito de perspectiva, vale dizer, na sua propriedade de obrigar o leitor,

ao identificar-se com um personagem, ou com o narrador, a olhar-se, e

ao mundo, por um ângulo novo, por um ângulo inusitado — por uma

nova perspectiva. As conseqüências estéticas, psicológicas e éticas

desta perspectivização podem ser radicais, obrigando-nos não só a

compreendermos a diferença representada pelo outro, sem exclui-lo

nem discriminá-lo, como também a compreendermos que a realidade,

em última instância, nos é inacessível — só temos acesso, no máximo, à

sua sombra. A realidade nos é inacessível porque ela engloba tudo o

que existe e todas as perspectivas possíveis. Ora, não podemos ver

"tudo", mas apenas nesgas de coisas, assim como não podemos ver

tudo "todo o tempo", mas apenas em determinado momento. A verdade

e a realidade, portanto, só podem ser não-toda (na formulação precisa

de Alain Badiou). A ficção, a literatura, fazem mais do que ampliar as

nossas perspectivas, ao mapearem a realidade, anunciando territórios

inexplorados e desconhecidos; a ficção e a literatura nos permitem

viver o que de outro modo talvez não fosse possível, ou seja, nos

permitem ser outros (os personagens) e adquirir, ainda que

momentanemente, a perspectiva destes outros — para, adiante, termos

uma chance de cumprir o primado categórico de todas as éticas, de tão

difícil realização: ser o que se é.

Como afirma Octavio Paz (citado por Perrone-Moisés), o poeta encontra

sempre, na linguagem, a alteridade (a otredad): "Escrevemos para ser o

que somos e aquilo que não somos. Num ou noutro caso, buscamos a

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nós mesmos. E se temos a sorte de encontrar-nos — sinal de criação —

descobrimos que somos um desconhecido." Arthur Rimbaud, poeta

francês, disse-o com maior economia de meios (de palavras): "je est un

autre". Mais do que afirmar que eu posso ser um outro, ou seja, posso

usar diferentes personas (em sentido estrito, máscaras), Rimbaud

afirma que "eu é um outro", isto é: minha identidade se define de fora,

pela linguagem e, principalmente, pela linguagem dos outros.

Reconhecê-lo pode ser desesperador, mas quebra toda a arrogância na

sua raiz.

Entretanto, devemos historicizar, ou seja, situar sob uma perspectiva

histórica, este nosso esforço de conceituar a literatura como

perspectivização da verdade. Se concordamos que possa ser assim

hoje, configurando ainda, a despeito da emergência dos media, a

necessidade da literatura, podemos concordar que sempre tenha sido

assim? Por que a literatura tem importância institucional? Por que é

ensinada nas escolas e nas universidades? Por que tantos alunos, e até

mesmo muitos professores (mormente das chamadas disciplinas

exatas), consideram o estudo da literatura o supra sumo da cultura

inútil e, a despeito, ela continua a ser ensinada e cobrada, com

significativo espaço na grade curricular e nos exames vestibulares? Um

pouco de história do seu conceito pode nos ajudar a responder a estas

perguntas.

Timothy Reiss, num trabalho chamado "The invention of Literature",

estabelece precisamente o ano de 1635 como o da invenção da

literatura, tal como desde então a conhecemos. Naquele ano, em

janeiro, o cardeal Richelieu, pouco depois de jogar a França na Guerra

dos Trinta Anos (que, obviamente, ainda não era conhecida assim),

ajuda a fundar a Academia Francesa, com o objetivo de tornar o francês

"the most perfect of the modern languages": não apenas elegante mas

ainda capaz de lidar com todas as artes e todas as ciências. Os

membros da Academia receberam as tarefas de compilarem um

dicionário e elaborarem uma gramática normativa. O dicionário deveria

prover o significado único de cada palavra, enquanto que a gramática

deveria prover as ferramentas analíticas necessárias a toda expressão

da atividade humana. Em 1637, o Cardeal acrescenta uma terceira

tarefa: formular as normas das bonnes lettres, ou seja, das letras

escritas para dar conta do "bom sentido", portanto, do sentido da

verdade, tal como recentemente o filósofo René Descartes proclamara.

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Estas normas se inspiravam, é certo, naquelas que Aristóteles teria

formulado na sua Arte poética muitos séculos antes, mas se

vinculavam, de maneira explícita, à defesa política de uma língua,

portanto, em conseqüência, à defesa política de uma nação.

No final daquele mesmo século, John Dennis (talvez o primeiro crítico

literário profissional)  afirmava que "without literature a nation’s

political greatness would disappear" — sem literatura a grandeza

política de uma nação poderia desaparecer. Relacionava assim, de

maneira explícita, a Literatura ao Poder. À época, a Política, a Filosofia e

a Ciência procuravam demonstrar ponto de vista semelhante: o de que

a linguagem correta e o método correto eram uma e a mesma coisa,

ambos essenciais para o conhecimento e para a ação humana. Justifica-

se, pela via da nacionalidade, portanto, a necessidade da literatura e,

conseqüentemente, a necessidade do ensino de literatura. A

consolidação dos Estados Nacionais, nos séculos XVIII e XIX, com sua

expansão imperialista e posteriores lutas de independência, apenas

reforça este projeto, atualizando-o através dos diferentes romantismos,

na arte propriamente dita, e através do ensino da literatura, implantado

oficialmente nas universidades e nas escolas.

O leitor mais perspicaz, entretanto, já terá percebido uma contradição

entre o projeto político-educacional da literatura e o Centauro com que

começamos a falar do seu conceito. Richelieu desejava a língua como

expressão unívoca da verdade, em termos gerais, para, nos termos

particulares, afirmar o domínio das verdades ocidentais e francesas,

enquanto que o animal-homem de Picasso e o poeta de Pessoa fingem,

de maneira não-unívoca mas, ao contrário, totalmente ambígua, a dor

que deveras sentem.

Esta contradição está presente nas salas de aula e nos manuais

didáticos. A disciplina Literatura Brasileira tem um razoável espaço na

grade curricular e nos exames vestibulares, mas alunos e professores

das demais matérias não conseguem compreender completamente a

sua utilidade, se comparada com Matemática, Biologia, até mesmo

História. Não à toa os manuais didáticos soberanamente se recusam a

tratar dos conceitos-chave da disciplina, ou o fazem num capítulo

introdutório e perfeitamente descartável, repisando a noção de

literatura como belles lettres e sua vinculação estreita com a

nacionalidade. Não à toa os manuais didáticos permanecem presos, no

final do século XX, à concepção romântica da história como combate de

Page 12: o Conceito de Literatura

antagonismos. O século XIX, romântico-positivista, leu os séculos

anteriores, anacronicamente, à luz da sua própria falsa dicotomia entre

a razão (realista) e a emoção (romântica). Essa concepção é

aparentemente uma bobagem, pela perspectiva de qualquer teoria do

conhecimento desenvolvida no nosso tempo. No entanto, se tal

concepção se manteve por tantas décadas — na verdade, se mantém

até hoje, na maioria absoluta dos manuais —, não basta dizer que é

uma bobagem. Porque serve aos propósitos dos Richelieu e demais

estadistas ou pedagogos de plantão, qual seja, a defesa,

simultaneamente espetacular e subliminar, da Língua e do Estado

nacionais — vale dizer, da Política e da Guerra. As aulas e os estudos de

literatura ou se tornam acontecimentos para exercícios de patriotismo e

pieguice, e neste sentido são soberanamente chatas, mas necessárias

(inclusive, creio, é necessário que sejam chatas), ou se tornam

realmente inúteis, se comparadas com a noção de utilidade presente

nas demais disciplinas do currículo.

Aquelas obras, entretanto, que não se encaixam nos malfadados

“estilos de época” (as de Miguel de Cervantes, William Shakespeare,

Machado de Assis e Guimarães Rosa, por exemplo), sugerem mistério

mais profundo que o da pátria geográfica. Patriotismo, a propósito, para

Vilém Flusser (filósofo tcheco que viveu no Brasil por trinta anos), é

sintoma de enfermidade estética, na medida em que transforma o

hábito — “a camada de algodão que encobre os fenômenos e ameniza

as rebarbas” — em algo misterioso, isto é, em algo a ser glorificado e

fetichizado. O patriota sempre corre o risco de cometer crime ético-

político ao santificar o costume. O costume mistificado encobre a feiúra,

a miséria, a doença da nação. Sempre que voltava a São Paulo de uma

viagem, Flusser se chocava com as crianças famintas nas favelas e nas

esquinas, mas depois se horrorizava porque, justamente, como

qualquer brasileiro, percebia-se se acostumando com o que via: “o

costume patriotizado é crime ético-político, ou seja, um pecado que o

patriotismo glorifica. Confundir morada com pátria, costume com

mistério, eis o que me parece ser o núcleo do patriotismo”, afirmava,

em artigo publicado n'O Estado de São Paulo de 14 de dezembro de

1991.

A capacidade da literatura de multiplicar ambigüidades contribui para

deslocar o costume do seu lugar confortável, tornando-o desconfortável.

Escreve-se, na verdade, não contra alguém ou algo, mas contra as

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idéias prontas. Isto pode parecer não exatamente inútil, mas

subversivo, ou revolucionário, quando aí sim teríamos uma utilidade

para a literatura, ainda que "à esquerda". Trata-se, no entanto, do

mesmo clichê espelhado. A literatura também não é revolucionária, a

despeito da literatura que se queria engajada. À pergunta "para que

serve a literatura", a resposta mais honesta seria: de fato, para nada.

Poesia e literatura não são úteis, no sentido pragmático e capitalista (ou

comunista) do termo. Num mundo em que “tempo é dinheiro”, a poesia

configura real perda de tempo — portanto, de dinheiro (como bem sabe

a maioria daqueles que se dedicam ao seu mister). É verdade que, para

os funcionários alienados de todos os aparelhos institucionais, para os

professores amarrados em múltiplas escolhas que não admitem

qualquer escolha (sempre só uma resposta será a certa, como se os

fenômenos admitissem uma e somente uma "alternativa" correta), para

os workaholics desesperados por ascenderem até o teto das suas

carreiras, para os políticos e governantes envolvidos com altas

economias e altas mutretas, a literatura pode ser não apenas inútil

como perigosa — como o demonstra muito bem a censura de todos os

Estados, que encontrou sua forma mais espetacular nas enormes

fogueiras nazistas de livros, durante a Segunda Grande Guerra. Mas

ainda assim ela é outra coisa, para além desse desmonte do costume e

da idéia pronta (porque, se não for esta "outra coisa", a própria

literatura se transtorna em costume, isto é: no estilo de uma época).

Um excelente ícone deste mundo encontramos nas corridas de Fórmula

1, em que se gastam fortunas imensas para construir carros cada vez

mais rápidos que correm todos em círculo exatamente no mesmo lugar,

numa monotonia insuportável quebrada tão-somente por um

"acidente", de preferência com uma boa morte (através da qual os

espectadores possamos purgar, simultaneamente, o nosso sadismo

cruel e a nossa piedade piegas). Mas, mesmo nesse mundo, mesmo

entre funcionários alienados, professores estressados, alunos

entediados, cientistas militarizados e políticos mutretados, encontra-se,

de repente, aquele que "perde" tempo em interromper a corrida circular

e volta-se para olhar a si mesmo e à sua tarefa sob outra perspectiva.

Estes podem fazer a diferença; podem ser inventores, descobridores,

filósofos, em suma, poetas. Podem ser, também e apenas, irônicos e

auto-irônicos, capazes de se libertar, ainda que por momentos e graças

à própria linguagem, das amarras da linguagem e dos aparelhos

cotidianos. Não à toa, novamente, os grandes cientistas e matemáticos,

Page 14: o Conceito de Literatura

como Heisenberg, Einstein e Russell, por exemplo, foram

simultaneamente grandes leitores, apreciando particularmente a

literatura stricto sensu. Que "utilidade", então, vislumbravam no fazer

literário? A de perspectivizarem o seu próprio conhecimento,

aprendendo, sem parar de aprender, a olharem o mundo, os fenômenos

e a si mesmos sob perspectivas inusitadas, superando por instantes os

limites da percepção e da história humanas.

Isto não significa, de modo algum, que a literatura seja o apanágio dos

bem-pensantes, ficando todo o resto para os não-pensantes. Posso

encontrar, se o quiser, outros tantos exemplos de grandes cientistas e

pensadores que não gostavam de literatura. Como bem disse Jean-Paul

Sartre, filósofo e dramaturgo francês, o mundo pode viver muito bem

sem literatura (na verdade, pode viver melhor ainda sem o ser

humano). Entretanto, como o autor destas linhas vive da e para a

literatura, forçamente tende a seu elogio (o que pelo menos é melhor

do que passar a vida lamentando as opção que fez). Descontada esta

parcialidade, podemos retornar ao nosso argumento, historicizando

mais um pouco o conceito de literatura.

Roberto Acízelo, no verbete inédito "Literatura" (preparado para um

futuro Dicionário de Termos Críticos e Literários), reconhece duas

hipóteses básicas para a constituição do conceito: a hipótese

nominalista e a hipótese realista. A hipótese nominalista entende que,

se o termo "literatura" é de fresca data (um marco plausível, como

vimos, seria 1637), os fatos literários também o seriam. Logo, falar em

"literatura grega antiga", por exemplo, encerraria, mais do que um

anacronismo, verdadeiro nonsense. A hipótese realista entende, por sua

vez, que os fatos literários existem independentemente do vocábulo

literatura, o que permitiria falar em "literatura grega antiga", mesmo

sabendo-se que tal modo de dizer constitui solução léxica recente, não

sendo contemporânea do fenômeno que designa. Para Acízelo, porém,

ambas as hipóteses são inconsistentes.

A hipótese realista não considera as mudanças históricas. As chamadas

"artes verbais", em meados do século XVIII, sofrem profunda

reconcepção, que se consuma no início do século XX. Muda, por

exemplo, e de maneira radical, a noção de "autor": à compreensão

medieval do autor como authoritas, vale dizer, autoridade, segue-se o

ideal moderno, romântico, do autor como individualidade criativa.

Muda, também, a relação entre arte e técnica, pela perspectiva do

Page 15: o Conceito de Literatura

trabalho: até o século XVIII, produtos discursivos heterogêneos — prosa,

verso, ciência, ficção, filosofia, carta — submetiam-se à mesma arte (no

sentido clássico: técnica, habilidade, perícia, ofício), quando se observa

o crescimento da distância conceitual entre razão e imaginação —

filosofia e ciência passam a se ocupar com a razão, enquanto a

imaginação torna-se apanágio de uma arte, cujos diversos gêneros logo

seriam recobertos pela palavra literatura, então submetida a uma

espécie de reciclagem de seu significado.

A hipótese nominalista, por seu lado, sofre do pecado oposto,

encarando a reciclagem de um significado como a invenção de

significado inteiramente novo. Na verdade, o termo literatura não seria

uma solução léxica tão recente assim. Em latim, a palavra littera traduz

o termo grego gramma, significando letra do alfabeto, ou carácter da

escrita. O coletivo litterae, equivalente ao grego grammata, indica,

primeiro, uma carta (epistula), e depois, por extensão, qualquer tipo de

obra escrita, ou então instrução, cultura. Cícero, no século II antes de

Cristo, já empregava litterae, bem como o neologismo litteratura, no

sentido de cultura obtida mediante o domínio da arte de ler e de

escrever. Aulo Gélio, no século II depois de Cristo, identifica o latim

humanitas com o grego paidéia, servindo-se do vocábulo litterae para

designar o estudo das artes e letras dos gregos, concebidas como

representantes da idéia geral de homem (donde humanitas,

literalmente, "humanidade"). No latim medieval, os vocábulos da família

morfológica litterae tornam-se pouco utilizados, recobrando alento no

Renascimento, derivando-se em lettres humains e bonnes lettres

(século XVI), good letters e belles lettres, littérature e literature (século

XVII). A partir do século XVIII, a palavra "literatura" passa a significar,

nos diversos idiomas ocidentais, certo corpo heterogêneo de escritos,

repositório de saberes tidos por relevantes para todos os homens. Com

a autonomização e especialização das diversas ciências, este sentido se

restringe às produções ficcionais e de poesia, embora ainda se use,

concomitantemente, para designar outros conjuntos de escritos (por

exemplo, "literatura jurídica"). A vinculação estreita que se faz entre

aquelas produções ficcionais e as línguas nacionais (promovida desde

Richelieu, como vimos) abre espaço para expressões como "literatura

brasileira", "literatura portuguesa", "literatura francesa", e assim por

diante. Verifica-se, portanto, considerando o trajeto histórico da palavra,

que ela está longe de ser uma novidade setecentista ou oitocentista.

Page 16: o Conceito de Literatura

Entretanto, exatamente o seu caráter plurissignificativo, já referido,

associado às mudanças históricas observadas, deve nos advertir para a

fluidez do conceito. Capturar o seu sentido, bem como o sentido das

suas manifestações (dos contos, dos poemas, das obras), não se mostra

tarefa simples que se possa executar com dois passos, apenas

observando e relatando o observado. Em relação às manifestações

literárias propriamente ditas, quais sejam, os textos, não existe um

instrumento adequado, do tipo microscópio semântico, capaz de nos

ajudar a ler nas suas entrelinhas, isto é, capaz de nos ajudar a explicitar

o que se encontra implícito, ou dizer o "não-dito". A máxima do cientista

do século XIX, na verdade a mesma de São Tomé — “só acredito no que

se possa ver” —, não funciona em relação à literatura. O texto literário,

ao menos como o conhecemos hoje, menos descreve determinado

fenômeno que o autor teria observado, porque antes sugere alguma

coisa que não está ali nem é dita. Logo, o fundamento da literatura é,

paradoxalmente, invisível, advindo de um efeito de sugestão. Tal efeito

parte da economia de meios a que nos referíamos, na abertura do

trabalho, com relação a Picasso, Pelé e Hitchcock.

Reduzir um centauro a linhas — na verdade, a uma única linha — é um

trabalho colossal, implicando toda a energia e concentração de uma

vida. Deve parecer ao espectador, todavia, simples, sugerindo, com

leveza máxima, os músculos, a força, a vontade, o desejo, a fantasia e a

impossibilidade. O escritor faz aproximadamente o mesmo, reduzindo

um fenômeno a uma espécie de forma alusória e ilusória, apresentando

isto no lugar daquilo, de tal modo que o leitor "veja" isto e aquilo, e

ainda o que o escritor não viu nem pôde imaginar. Esta redução

condensada do fenômeno toma os prosaicos nomes de "metáfora" (isto

no lugar daquilo, exatamente) e "metonímia" (a parte pelo todo, ou o

todo pela parte, mais precisamente).

A metáfora também é chamada, pela teoria psicanalítica, de

"condensação", enquanto a metonímia se reconhece como um

"deslocamento". Ambos os conceitos e processos, fundamentais para se

compreender o conceito propriamente dito de literatura, também o são

para se compreender os movimentos oníricos, vale dizer, os sonhos de

toda a gente. Na verdade, não são apenas os poetas e os professores

de literatura que ficam fazendo metáforas ou falando delas; o leitor, no

momento em que fecha os olhos e adormece, tem sonhos nos quais

produz sucessivas metáforas e metonímias — nos quais faz, podemos

Page 17: o Conceito de Literatura

reconhecer, poesia. Se sonha com uma intensa cor vermelha se

sobrepondo às trilhas do seu caminho, pode, sem que conscientemente

o saiba, estar promovendo o deslocamento metonímico da cor da

camisa de determinada pessoa que encontrou durante o dia; se sonha

com um ninho de passarinho, vazio, pode, sem que conscientemente o

saiba, estar figurando a condensação metafórica de um certo colo,

profundamente desejado.

O ninho, no caso, como qualquer imagem metafórica, não é somente

um resumo da idéia de "colo" (ou outra parecida, que não nos cabe

interpretar assim, com tanta segurança, os sonhos do leitor, ou leitora),

mas uma espécie mesma de redução do fenômeno à sua potência.

Condensar, neste caso, não implica apenas tornar breve, mas

igualmente saturar de sentido. O centauro de Picasso não somente

resume as idéias mitológicas dos homens-animais, como minotauros e

sereias, mas gera um enigma que só pode ser momentaneamente

resolvido em confronto com as dúvidas mais íntimas do espectador, isto

é, em contato com o caráter radicalmente enigmático da existência de

nós todos (afinal de contas, quem somos, de onde viemos, para onde

vamos, o que estamos fazendo aqui?).

Para que o leitor possa lidar com o enigma que a literatura e, quiçá, a

vida, representam, há a necessidade, como Samuel Coleridge formulou,

da “suspensão voluntária da descrença” — the willing suspension of

disbelief —, movimento que todo leitor de poesia precisa fazer para se

permitir “embarcar” no poema que lê, de modo a poder de fato “curti-

lo” (nos sentidos arcaico e popular do termo). A suspensão da

descrença vale tanto para um poema quanto para um filme estilo 007,

em que o espectador se exige embarcar na narrativa como se fosse

verdade. Esta atitude do "como se" (derivada do se ® então que gera

os conceitos e o pensamento) é fundamental, porque, sem ela, o

espectador se sente enganado ao assistir a tanta "mentira". Na

verdade, um bom espectador e um bom leitor desejam ser enganados

— mundus vult decipi, decipiatur ergo —, para que, por sua vez, se

sintam existencialmente capazes de enganar, vale dizer, de iludir,

transformando-a, a própria realidade. Naturalmente, a suspensão da

descrença é uma espécie de exercício que se faz por certos momentos;

se suspendêssemos a descrença para sempre, entraríamos na tela do

filme (como o faz a personagem de The purple rose of Cairo, filme de

Woody Allen) para não sair nunca mais.

Page 18: o Conceito de Literatura

E como deve ler o leitor especializado, isto é, o teórico, o crítico, ou o

professor? Creio que nós precisamos efetuar uma espécie de

“suspensão da suspensão da descrença”, ou seja, uma suspensão de

segundo nível que implica uma segunda leitura. Afinal de contas,

sustentamos em nossas aulas, tudo o que merece ser lido merece ser

relido. Um dos perigos que corremos é fazer a primeira leitura como se

já fosse a segunda, analisando apressados o texto em suas partes

constitutivas. Se isto acontece, perdemos o prazer que nos levara, certo

dia, a estudar literatura. A tarefa crítica, propriamente, deve se exercer

no momento da segunda leitura que, aí sim, se desdobra em duas

perspectivas: pela primeira perspectiva, deve-se reler o texto para

melhor entendê-lo e para melhor relacioná-lo com os outros textos que

conhecemos; pela segunda perspectiva, deve-se procurar ler

exatamente a nossa primeira leitura, isto é, como lemos da primeira

vez, como o texto nos afetou, nos mobilizou, por que veredas nos

interessou. Este é o segredo (bem, agora não é mais segredo) que junta

as pontas da razão com as pontas da emoção, tornando honesto e

significativo o nosso trabalho. Dessa maneira, podemos entender o

processo que não só faculta como provoca aquela “suspensão da

descrença” (processo que, de resto, nas melhores histórias, persiste

misterioso).

Mas esta segunda leitura (que não apenas relê um texto, como também

"lê" a primeira leitura) não basta, se quisermos compreender um pouco

mais o conceito de literatura. Parte da filosofia propõe algo bastante

parecido com a suspensão da descrença, formulada por Coleridge, e

com a "suspensão da suspensão da descrença", que formulamos nós.

Poderíamos chamar este algo, por comparação, de suspensão da crença

— suspensão da crença nos mapas, vale dizer, na teoria, na filosofia, na

ciência. O exercício de “suspensão da crença” é o principal responsável

pelo misto de fascinação e vertigem que continua provocando a leitura

dos livros e do mundo, mesmo no leitor que vai se especializando. Tal

qual acontece com a suspensão da descrença, trata-se de um exercício

que se faz por um momento; depois, precisamos refazer, embora sob

perspectiva renovada, a nossa crença nos mapas do mundo: na teoria,

na filosofia, na ciência.

A suspensão da crença é a epokhé. Para os gregos, a epokhé era o

estado de repouso mental, no qual não afirmamos nem negamos nada,

o que tanto nos conduz à imperturbabilidade, quanto nos deixa abertos

Page 19: o Conceito de Literatura

a todas as perspectivas dos fenômenos. O filósofo Edmund Husserl,

bem mais tarde, revive o conceito, tornando-o o eixo da sua "redução

fenomenológica", pela qual "suspendemos o juízo acerca do conteúdo

doutrinal de toda filosofia determinada e realizamos todas as nossas

comprovações dentro do quadro desta suspensão". A epokhé, portanto,

corresponde à suspensão momentânea do juízo, para se tentar "ver" o

fenômeno sob nova perspectiva.

Quando exercitamos a segunda leitura sobre os textos e sobre as

coisas, somos inevitavelmente teóricos. Na verdade, a teoria não é

necessariamente "chata", nem elimina o chamado "prazer do texto"

(que é, aliás, uma expressão teórica). A teoria se torna árida, seca,

burocrática, somente quando pára de pensar sobre si mesma,

acreditando-se acima da crítica e da reflexão e se sobrepondo

totalitariamente ao método e à prática. Quando se coloca a teoria na

frente do método, ela fica se parecendo com uma chave de fenda que

não encontra, na dimensão do real, a fenda que lhe cabe, e então

“arranha” o real até forjar a fenda e torcer o fenômeno para onde a

teoria dizia a priori que ele ia. Quando, pelo contrário, se coloca o

método na frente da teoria, no entanto, os procedimentos se tornam

mais difíceis e mais delicados, porque o fenômeno ele mesmo passa a

revelar a teoria que o informa, construindo, a partir daí, uma nova

teoria que contemple as relações do sujeito com o acontecimento.

Quando se coloca o método na frente da teoria, se faz indispensável

suspender, de quando em quando, a crença na própria teoria, justo para

vivificá-la.

Encontramos eco importante desta epistemologia no trabalho do

psicanalista Fábio Herrmann. A psicanálise, aliás, é mestra na segunda

leitura, ensinando seus praticantes e pacientes a desconfiar do que se

diz, de si mesmos e das suas próprias teorias sobre o ser humano e

sobre a realidade — porque procura, no não-dito, nas entrelinhas, a

chave escondida. Neste sentido, a interpretação psicanalítica pode nos

ajudar bastante na interpretação literária (assim como a literatura

ajudou a psicanálise — é só lembrar como a peça de Sófocles, Édipo-

Rei, emprestou a Freud os personagens e as tramas para o fundamental

conceito de "complexo de édipo").

Herrmann propõe um processo terapêutico em que o método, e não as

teorias, determina a escolha e a seqüência das etapas, justamente para

se poder criar com cada paciente a teoria original que melhor lhe cabe.

Page 20: o Conceito de Literatura

Considera fundamental não confundir o paciente vivo com a psicanálise

e seu jargão, para não enxergar apenas as lentes no lugar do objeto

visado. É preciso, Herrmann o diz explicitamente, ensaiar, desde a

primeira entrevista, um corte fenomenológico na ação psicanalítica. Não

se deve sonhar em conhecer o paciente “como ele é”, sob pena de

hybris (isto é, de arrogância desmedida). Freud propunha a escuta

analítica regida por uma espécie de “atenção livremente flutuante”, que

outra coisa não é do que a condição sine qua non para se ler a própria

primeira leitura. Poderíamos chamá-la, também, de “desatenção

heurística”. Equivale a assistir a um “filme de autor”, daqueles

instigantes mas indefinidos, recusando-se a atribuir-lhe um sentido pelo

maior tempo suportável — até que, de repente, surja, como um insight,

como um estalo, aquela sensação de compreensão totalizante. Todavia,

é importante, nesta hora, fazer nada. Nada. Apenas tomar em

consideração e não se apressar em explicar, não se apressar em

traduzir em palavras. As palavras apressadas não só não conseguem

traduzir aquela sensação íntima, como ainda a encolhem e a

amesquinham irremediavelmente.

Sentimos isso quando saímos do cinema, depois de um filme

particularmente mobilizante. Mal nos levantamos da cadeira, a

sensação é de compreensão global, como se a emoção tivesse tomado

a forma da narrativa e nos devolvesse inteiros, razão e afeto

reconciliados. No entanto, a pessoa que está conosco não se contém e

pergunta, ansiosa: "e aí, o que achou?" Neste instante, a tal sensação

de compreensão se esvai por um ralo, e não conseguimos expressar

nada mais do que clichês vazios, do que exclamações sem frases e sem

idéias. Precisávamos de mais tempo, tempo interno, para elaborar a

experiência em silêncio. Esta elaboração silenciosa da experiência é

necessária tanto na literatura quanto na psicanálise. Herrmann chama a

isso de “nado de peito”: uma longa imersão no material do paciente —

para deixar que surja —, seguida de um movimento de ascensão,

quando se respira e se contempla o conjunto — para poder tomar em

consideração. Segue-se, sempre, não uma interpretação pontual, mas

sim uma nova braçada, para imergir no fenômeno e deixar, novamente,

que surja.

Deste modo a interpretação, antes de se afigurar completamente

ciência, é uma arte: a arte de agarrar a poça d’água (como na fábula de

Menelau e o veraz Proteu que, tal qual a verdade, metamorfoseava-se

Page 21: o Conceito de Literatura

continuamente em fera, em árvore e em água), mais um dedilhar da

alma alheia do que uma formulação pseudocientífica sobre o discurso

do outro. Na minha disciplina específica, em outro momento (no livro

Quem pode julgar a primeira pedra?), eu dizia preferir, aos sintagmas

“teoria literária” (que presume uma teoria com a vã pretensão de se

substituir a seu próprio objeto) e “teoria da literatura” (que presume um

distanciamento dito objetivo) a expressão “teoria na literatura”. A

vantagem dessa expressão reside em, primeiro, não recair nos

equívocos suscitados pelos outros dois sintagmas, e, segundo, escapar

dos preconceitos de imanência a que a própria gramática nos força,

substantivando e concretizando processos e contextos. A atenção

flutuante, a leitura da leitura, a desatenção heurística, a redução

fenomenológica, a teoria na literatura, são maneiras, ou métodos,

propriamente, de assumir as curvas do caminho, reconhecendo que não

há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. Deduz-se, daí, a

necessidade da suspensão da crença, a necessidade da epokhé,

porque, “a bem da verdade, não existe a razão, ela só existe em

pedaços” (conforme a formulação feliz de Deleuze).

Só assim podemos nos espantar, não com uma

pintura, mas com o próprio gesto de pintar, tal

como nos foi reapresentado por René Magritte

no seu quadro de 1928, Tentando o impossível,

que retoma, de maneira especialmente

perturbadora, a lenda do escultor Pigmalião.

Agora é o pintor que "esculpe", não com o cinzel

mas com o pincel, a sua bela mulher. Este

quadro mostra que não existe algo assim como

um pintor, que de fora possa escolher pintar

uma modelo, nem algo assim como uma

modelo, que existe prestes a ser retratada: existe, sim, o gesto concreto

de pintar, e nele se "realizam" (na acepção britânica do verbo) pintor e

modelo (ainda que sempre falte o braço de Vênus).

Admite-se que semelhante descrição do gesto de pintar, bem como

tudo o que até aqui se falou do espanto, da redução fenomenológica e

da epokhé, soa a mística, se por "mística" se entende a "desaparição", a

indistinção do sujeito e do objeto na realidade concreta. De fato,

estamos nos aproximando (alguns diriam: perigosamente…) da

concepção do budismo-zen, da união mística e íntima do arqueiro com o

Page 22: o Conceito de Literatura

alvo, do chá com a cerimônia de tomar o chá. Com efeito, o zen deseja

acentuar, como o método da fenomenologia, a vivência concreta dos

fenômenos. O mestre zen não vive a meditar, as pernas cruzadas em

posição de lótus (esse é um clichê ocidental); ele deve ser

profundamente iconoclasta, chutando, literalmente, todas as imagens,

principalmente as imagens da sua própria cultura (as de Buda, por

exemplo), para banir toda distinção entre o sagrado e o profano, de

maneira a sacralizar o cotidiano. De outra parte, a literatura parece

fazer o mesmo: sacraliza o cotidiano, ao erigir um altar fugaz, sem

pompa e sem pose, ao enigma.

Os koans, charadas paradoxais do zen, revelam que o mundo, tal como

o concebemos, é mera dependência da linguagem. Duvida-se

metodicamente, ou melhor, religiosamente: a imagem de um indivíduo

ocupado em serrar o galho sobre o qual está sentado seria a expressão

mais precisa desta dúvida primordial. Suspender a crença e o juízo

equivale, sem dúvida, a tentar serrar, metódica e seriamente, o galho

sobre o qual se está sentado. É por isso que dizem que a

fenomenologia, o pensamento de Husserl e de Flusser em especial,

radicaliza o pensamento cartesiano, assumindo a dúvida não apenas

metódica, como propriamente urobórica, por seu método. Bem a

propósito, Vilém Flusser entendia a obra literária de duas maneiras: ou

como uma resposta ao contexto histórico em que surgiu (como uma

resposta a um texto que a tenha antecedido), ou como uma pergunta a

dado leitor em dado momento. Se tentarmos compreender a obra como

resposta, dizia ele, precisaremos analisá-la e analisar as suas relações

ou com o contexto de que emergiu, ou com o texto que a antecedeu. O

campo dessa tentativa é a crítica. Se tentarmos enfrentar a obra como

uma pergunta (vale dizer, como uma provocação), nos obrigamos a

conversar com ela. O campo da segunda tentativa é o da especulação.

Os dois campos não podem ser rigorosamente delineados. A

investigação crítica suscita especulações, enquanto que a especulação

termina por demandar a investigação crítica. Não obstante, aos dois

campos correspondem duas atitudes diferentes. Ao campo da crítica

corresponde a atitude da curiosidade, enquanto ao campo da

especulação corresponde a atitude da simpatia, no sentido grego da

palavra, ou seja, no sentido de co-vibração. Neste segundo caso, cabe

entender a obra que se lê como pretexto, propriamente pré-texto

daquele texto que o leitor se disporá a assinar, como resposta sua à

Page 23: o Conceito de Literatura

pergunta, à provocação que a obra lhe fez. Sem descartar ou

desvalorizar a crítica, Flusser opta pela especulação, quer dizer, opta

por tomar o seu lugar na conversação geral, da qual a obra literária é

parte nobre.

Nesse campo, o da especulação, encontramos Luiz Costa Lima,

lembrando, em artigo publicado no Jornal do Brasil de 12 de setembro

de 1998, que a tradição insiste em tomar a ficção romanesca ou como

uma fantasia compensatória do mundo efetivo, ou como um

espelhamento de certo tempo histórico, ou, ainda, como uma reflexão

imaginativa que desvela a "estrutura" da sociedade. No primeiro caso, a

obra literária serve de divertimento, para o leitor comum, e, para o

leitor especializado, se presta ao estudo particularizado e fragmentado

de seus recursos expressivos (a ironia, a alegoria, a metáfora, e assim

por diante). No segundo caso, a obra literária é um espelho que revela à

sociedade como ela seria. O terceiro caso é uma variante sofisticada do

segundo: a literatura não seria bem um reflexo da sociedade, mas uma

espécie de processo imaginativo que captaria o cerne, a "alma" da

sociedade.

Ora, os três casos fazem a maior força para emprestar, à literatura,

aquela utilidade que dizíamos não existir, até porque essa noção de

utilidade é unívoca e linear, estabelecendo relações estreitas de causa e

efeito, ou de intencionalidade e resultado, que contradizem o espírito

espiralado da arte (quiçá de todo o pensamento humano, como

admitem muitos filósofos e cientistas). Por isso, Luiz pode afirmar que

aceitar a leitura de uma obra enquanto ficcional implica pôr em

questão, simultaneamente, tanto a possibilidade de significação da

ficção quanto a possibilidade do nosso sentido da realidade: "se é

ficção, como pode ser séria? Se é séria, como o leitor não sentirá

perturbadas as respostas sérias que dá ao dia-a-dia?" Gera-se desse

modo uma tensão de atitudes, em que cada uma é minada pelas

outras. É o assumir da tensão que faz a fecundidade da postura

especulativa. Por isso, nem a leitura técnica nem a leitura histórico-

sociológica do texto literário seriam suficientes. Não haveria, portanto,

pergunta Costa Lima, algum homólogo à fala que mostrasse o mundo

como um útero múltiplo, onde a miséria e o absurdo pudessem conviver

com formas inesperadas de alegria?

Esta pergunta é muito boa. Podemos terminar com ela.

Page 24: o Conceito de Literatura

 

 

* O texto "O conceito de literatura" foi publicado no livro Introdução aos termos literários (1999), organizado por

José Luís Jobim e editado pela EdUERJ.

 

referências bibliográficas

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